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A solução favorita - e completamente

equivocada - da mídia para todos os declínios


econômicos é que o Banco Central vá diminuindo
a taxa básica de juros até que a economia comece
a mostrar alguma revigorada. O que há de errado
com essa abordagem? Imprimir dinheiro - que é o
que significa reduzir as taxas de juros para níveis
abaixo do mercado - é uma maneira artificial de
se recuperar de uma recessão que foi causada por
um crescimento econômico artificial; um boom
de prosperidade que não teve qualquer
fundamento real. Esse ponto, no entanto, é
completamente desconhecido por quase todos os
comentaristas, porque eles não têm a menor
compreensão da Teoria Austríaca dos Ciclos
Econômicos.
O presente artigo faz um breve resumo da
teoria, que fornece uma explicação sobre os
recorrentes períodos de prosperidade e recessão
que parecem assolar como uma praga as
sociedades capitalistas. Como Salerno (1996)
argumentou, a Teoria Austríaca dos Ciclos
Econômicos é de muitas maneiras a
quintessência da economia austríaca, pois ela
integra várias idéias que são singulares àquela
escola de pensamento, tais como a estrutura do
capital, a teoria monetária, o cálculo econômico e
o empreendedorismo. Assim sendo, seria
impossível explicar adequadamente uma teoria
tão rica em tão curto espaço. (Ver
Rothbard, America's Great Depression, para
maiores detalhes). Entretanto, será feita aqui uma
tentativa de mostrar como essas idéias relevantes
se combinam para formar uma estrutura
unificada.
A Teoria
O homem está sempre lidando com um
mundo em que há escassez física. Isto é, nem
todos os nossos desejos e necessidades, que são
praticamente ilimitados, podem ser satisfeitos.
Fora do Jardim do Éden, temos de produzir para
poder consumir, e isso significa que temos de
combinar o nosso trabalho a quaisquer que sejam
os recursos da natureza que nos sejam
disponibilizados. Como um ser inerentemente
racional, o homem descobriu várias maneiras de
resolver esse problema, tais como a cooperação
pacífica sob a divisão do trabalho - o que leva a
um aumento da produtividade -, e os direitos
sobre a propriedade privada, que permitem o
cálculo econômico de modo que diferentes
trajetórias de ação possam ser comparadas de
maneira significante.
(Isso não significa que o homem tem uma
presciência perfeita e está sempre antecipando
corretamente os resultados, bons ou ruins, de
suas ações; significa apenas que o homem age
propositalmente - ele sempre julga ex ante qual a
linha de ação que supostamente melhorará a sua
situação - e é capaz de distinguir o sucesso do
fracasso, e agir de acordo).
Entretanto, será de grande auxílio
considerar a trajetória do desenvolvimento
econômico através de um exemplo simplificado,
aquele de um "Robinson Crusoé" isolado em uma
ilha. A circunstância ilustrada aqui é que uma
pessoa deve de alguma forma combinar o seu
trabalho com os recursos disponíveis na natureza
para que ela possa produzir bens para seu
consumo (tipo comida, abrigo, etc.). Por
exemplo, eu posso colher frutas com a minha
mão, o que vai me permitir um certo nível de
consumo. Entretanto, se eu quiser ter um nível
maior de consumo, eu terei de criar algum meio
de aumentar minha coleta de frutas - por
exemplo, construindo uma vara com a qual
arrancar as frutas dos arbustos, e uma rede para
coletá-las enquanto elas caem.
A menos que esses meios já me sejam dados
prontos, eu terei de construí-los por conta
própria, e isso vai tomar tempo - tempo durante o
qual eu não poderei coletar e consumir frutas
utilizando o meu velho método. Assim, durante o
tempo em que eu estiver criando o meu novo - e
presumivelmente mais eficiente - método, eu
tenho de continuar me sustentando de alguma
forma. E isso só será possível se eu tiver poupado
(isto é, me abstido de consumir) uma quantia
suficiente de frutas no passado, de forma que eu
possa me concentrar em outros afazeres agora e,
ao mesmo tempo, poder continuar me
alimentando. (Para mais sobre esse processo, ver
Rothbard, Man, Economy, and State, capítulo 1).
Sejamos claros sobre o que está
acontecendo: essa pessoa não está simplesmente
mudando do consumo para a produção; ela está
mudando de uma forma de produção para outra
forma de produção. Ela não pode consumir uma
coisa até que esta tenha sido produzida, o que
significa que todos os processos de produção
devem anteceder o consumo. A questão, no
entanto, é o que deve ser feito para que se possa
mudar para um meio de produção supostamente
mais efetivo.
É óbvio que se o sistema de vara e rede,
presumivelmente mais produtivo, tivesse
requerido a mesma quantidade de tempo para ser
construído do que o método manual de coleta, eu
já teria utilizado-o desde o início. Mas é claro que
esse não é o caso. E dado que adquirir um
aumento de produtividade tem um custo - a
saber, o tempo que era gasto utilizando o método
antigo passa a ser gasto na criação de meios para
se facilitar a produção e, consequentemente, o
consumo -, deve haver algum meio de se pagar
esse custo.
É claro, nem todos os processos de
produção mais extensos são mais produtivos. Mas
em qualquer tempo e lugar, o homem sempre vai
escolher aqueles processos de produção que
podem produzir uma determinada quantidade de
produto para consumo no menor período de
tempo. Um processo que tome mais tempo para
chegar ao seu estágio final somente será adotado
se for analogamente mais produtivo. Na
concepção austríaca, uma maior poupança
permite a criação de processos de produção mais
"indiretos" - isto é, processos de produção cada
vez mais distantes de seu produto acabado. Esse é
o papel da poupança, e podemos perguntar o que
determina um nível particular de poupança.
A preferência temporal é o grau em que as
pessoas valoram o consumo presente em relação
ao consumo futuro. Quanto maior a preferência
temporal, maior o valor dado ao consumo
presente. O ponto chave da Teoria Austríaca dos
Ciclos Econômicos é que intervenções no sistema
monetário - e há algum debate sobre qual forma
essas intervenções devem ter para gerar o
processo de expansão-recessão - criam um
descompasso entre as preferências temporais do
consumidor e os julgamentos dos empresários em
relação a essas preferências temporais.
Retornemos ao exemplo do Crusoé acima, e
consideremos algumas tentativas de se construir
meios mais produtivos para a extração de frutas.
O que me restringe nesse empreendimento é o
meu nível de preferência temporal. Se eu aprecio
o consumo presente de tal maneira que a idéia de
um aumento no consumo futuro não é capaz de
me fazer deixar de comer algumas frutas hoje,
meu sistema de vara e rede não será construído. E
mesmo se houvesse um sistema bancário de
reservas fracionárias, a criação (impressão) de
notas de papel (ticket-fruta) não poderia mudar
esse fato.
Como exemplo numérico, considere o caso
em que a coleta manual me garante doze frutas
por dia e que eu simplesmente não esteja
disposto a consumir menos de dez frutas por dia.
Suponha também que minha preferência
temporal diminua, de tal forma que esteja
disposto a poupar duas frutas por dia durante
sete dias (ignoremos questões como
perecibilidade, que obviamente não se aplica a
uma economia monetária). Assim, eu terei então
uma reserva de catorze frutas. Feita essa
poupança, assuma que eu passe a trabalhar
durante um quarto do dia desenvolvendo meu
novo método de produção e gaste os restantes
três quartos do dia coletando frutas utilizando a
minha técnica antiga. Esse velho método vai me
garantir nove frutas por dia (em um dia inteiro eu
colhia doze, em três quartos do dia um vou
colher nove), e eu posso usar uma fruta da minha
poupança para satisfazer minhas necessidades de
consumo atuais (não aceito consumir menos do
que dez frutas por dia).
Se eu puder finalizar o sistema de vara e
rede em catorze dias (a durabilidade das minhas
reservas), então tudo estará bem, e eu poderei
curtir os frutos do meu trabalho (sem trocadilho).
Entretanto, se eu calcular mal e o processo me
tomar mais do que catorze dias, eu terei de
suspender temporariamente a produção (ou ao
menos atrasá-la) para poder financiar meu
consumo atual (alimentação), já que, como
assumido, eu valorizo mais um determinado nível
de consumo atual do que um consumo futuro
maior (sendo essa a essência da preferência
temporal). O ponto é que deve existir
propriedade (frutas) suficiente para alongar a
estrutura de produção, e essa propriedade só
pode advir da poupança. Se a minha preferência
temporal não gerar propriedade em quantidade
suficiente para criar esse processo de produção,
meus esforços redundarão em fracasso.
Para que esse exemplo não seja tido como
artificial, consideremos uma situação em que as
minhas necessidades são de nove frutas por dia.
Seria plausível imaginar que eu ainda poderia
trabalhar durante um quarto do dia na minha
nova técnica sem a necessidade de ter poupado
uma provisão de alimentos, já que os
remanescentes três quartos do dia, nos quais eu
coleto frutas utilizando o método antigo,
satisfarão minhas necessidades. No entanto, duas
coisas devem ser observadas. Primeiro, minha
preferência temporal deve diminuir de um
consumo diário de doze frutas para um de nove.
Segundo, e esse é o ponto principal, caso eu
tivesse poupado previamente, eu poderia gastar
ainda mais tempo na criação do novo método, o
que me traria um aumento da coleta de frutas
mais rapidamente. A poupança ainda permanece
o aspecto chave desse processo de construção de
capital, e a poupança é guiada pela preferência
temporal. Na verdade, a preferência temporal se
manifesta através da poupança.
Esse mesmo processo de se utilizar a
poupança para financiar a produção atual de bens
que serão consumidos no futuro é igualmente
válido para economias mais complexas. (É claro,
a introdução de mais de indivíduo torna possível
o reconhecimento do aumento da produtividade
inerente à divisão do trabalho, o que
consequentemente tira o homem do seu atual
estado de subsistência e ainda por cima torna
possível a criação de um conjunto de poupanças).
Em qualquer momento, os indivíduos de uma
sociedade estarão envolvidos em um processo de
produção cujo objetivo final é saciar algum
"nível" de necessidade de consumo. Para que
possa haver processos de produção mais longos -
e, assim, mais produtivos - é necessário que
alguns indivíduos tenham se abstido de consumir
no passado para que outros indivíduos possam
ser financiados e auxiliados na construção dessa
nova estrutura, durante a qual eles não podem
produzir - e, portanto, não podem consumir -
bens de consumo utilizando os métodos da
estrutura antiga.
A base da Teoria Austríaca dos Ciclos
Econômicos (TACE) é que a inflação do crédito
distorce o processo acima descrito,
fazendo aparentar que existem meios abundantes
para a produção atual, quando, na verdade, os
meios existentes são muito menores do que
aparentam e, portanto, não sustentáveis (ao
menos em algumas interpretações; vide
Hülsmann [1998] para uma exposição "não-
padrão" da TACE).
Dado que isso é na verdade uma ilusão
(imprimir notas fiduciárias [Banco Central] ou
criar empréstimos tendo como lastro depósitos a
vista [sistema bancário de reservas fracionárias]
significa meramente inflação, e de maneira
alguma representam uma genuína poupança ou
propriedade sobre alguma coisa; vide Hoppe et
al. [1998]), os esforços dos empresários em criar
uma estrutura de produção que na realidade não
reflete as atuais preferências temporais do
consumidor (manifestadas na poupança real
disponível para a compra de bens de produção)
vão terminar em colapso.
Qualquer tipo de economia que esteja
acima do estágio mais primitivo já não faz mais
uso do escambo, é óbvio; ela utilizará o dinheiro
como meio de troca para superar o problema da
ausência de uma dupla coincidência de desejos
(se A está vendendo ovos e B tem um par de
sapatos, como eles vão transacionar se A quiser
uma gravata? Não está havendo aí uma dupla
coincidência de desejos. Assim, apenas o dinheiro
pode satisfazer ambas as necessidades, pois
representa um meio indireto de troca). Deve-se
enfatizar, no entanto, que além desse papel
único, o dinheiro também é um bem em si, o bem
mais comercializável que existe. Para que não
haja dúvidas, o dinheiro será valioso até o ponto
em que as pessoas estiverem dispostas a aceitá-lo
numa troca. Ademais, o dinheiro deve
primeiramente ter se originado como um bem
diretamente aproveitável antes de se tornar um
bem indiretamente aproveitável (i.e., dinheiro).
Essa é a base do teorema da regressão de Mises
(Mises [The Theory of Money and Credit];
Rothbard [Man, Economy, and State], capítulo 4).
Como em qualquer outra troca, uma pessoa
pode achar, depois do ocorrido, que esta não foi
do seu agrado; por exemplo, ela pode descobrir
que o bem utilizado como dinheiro não é mais
aceito pela "sociedade". Nesse aspecto, não há
nada de único em relação ao dinheiro. O que há
de único no dinheiro é o seu uso no cálculo
econômico. Dado que todas as trocas são, em
última instância, trocas envolvendo propriedade,
uma unidade em comum que compare tais trocas
é indispensável. Em particular, a quantidade de
dinheiro na forma de poupança representa uma
"medida" da quantidade de propriedade
disponível para os processos de produção. (De
fato, mesmo manter uma dada estrutura de
produção requer alguma abstinência de
consumo, para que a produção dedicada à
manutenção ao invés de ao consumo seja
efetuada).
Guardar dinheiro (na sua carteira, em uma
lata de estanho no quintal, debaixo da cama, etc.)
não é uma forma de poupança. O saldo de caixa -
ou o efetivo disponível - pode aumentar sem que
as preferências temporais tenham diminuído, que
é o que ocorre quando se poupa. (Com efeito,
uma pessoa poupa porque sua preferência
temporal diminui). É possível que uma pessoa
aumente seu efetivo disponível diminuindo seu
gasto com consumo E TAMBÉM com bem bens
de produção. Poupar, por outro lado,
significa diminuir o gasto com bens de consumo
e aumentar o gasto com bens de produção.
O fato de que poupar normalmente envolve
um intermediário (i.e., um banco) que vai
permitir que uma outra pessoa gaste com bens de
produção em nada altera essa questão. O
dinheiro é inerentemente um bem presente;
guardá-lo significa que se está "comprando" alívio
em relação a uma atual inquietação quanto a um
futuro incerto. (Vide Hoppe [1994] e Hoppe et al.
[1998] para uma discussão sobre a natureza do
dinheiro). Fazer empréstimos que têm como
lastro depósitos a vista (dinheiro de terceiros que,
teoricamente, pode ser sacado a qualquer
momento) não pode facilitar a compra de bens de
produção (para a criação de bens futuros em
detrimento de bens presentes) - e olhe que ainda
nem estamos fazendo qualquer consideração
quanto aos aspectos jurídicos envolvidos.
(Clique aqui para ler sobre a ilegitimidade do
sistema bancário).
O aspecto crucial em relação ao dinheiro é
que ele permite o cálculo econômico, a
comparação entre as receitas esperadas advindas
de uma ação e os seus custos potenciais, tudo isso
baseando-se em uma unidade comum. Ou seja,
uma pessoa adquire propriedade em troca de
outra propriedade tendo por base seu julgamento
quanto ao futuro, e isso seria impossível - ou,
mais ainda, sem sentido - caso não houvesse uma
unidade comum para comparar as alternativas.
Dinheiro é propriedade, e em um sistema
monetário que faz parecer que existe mais
propriedade para a produção do que de fato há, o
colapso é inevitável.
Não é preciso tentar imaginar se os
empresários "lêem" corretamente as taxas de
juros ou não. Empresários fazem julgamentos
sobre o futuro e, é claro, podem sempre estar
potencialmente errados; o sucesso não pode ser
sabido de antemão. Entretanto, os julgamentos
sempre serão errados quando uma pessoa se
defrontar com a ilusão de que há um maior
conjunto de poupança do que as atuais
preferências dos consumidores podem de fato
justificar. Essa é exatamente a situação
estabelecida pelo sistema bancário - como
intermediários entre poupadores e produtores,
ou "investidores" - atualmente no Ocidente. Esse
sistema garante que haverá erros, não obstante
não impeça o sucesso; daí a existência de um
genuíno crescimento econômico ao lado de
vários maus investimentos.
Essa análise não é uma insistência moralista
para que a economia seja basicamente fundada
em algo "real". É um reconhecimento de que
meros desejos subjetivos não podem transformar
em realidade mais propriedades do que as que já
existem. Caso um sistema monetário dê a ilusão
de que as preferências temporais dos
consumidores - como fornecedores de
propriedade para propósitos de produção - são
menores do que realmente são, então a estrutura
de produção construída sobre tal sistema
é inerentemente equivocada. Quaisquer planos
que aparentem ser plausíveis durante a fase
inicial da expansão econômica (boom),
inevitavelmente revelar-se-ão errados devido a
uma insuficiência de propriedade (poupança
real). Esse é o ponto mais importante da Teoria
Austríaca dos Ciclos Econômicos.

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