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Apontamentos sobre a noção de inconsciente

na clínica lacaniana com crianças

Aula ministrada no Colegio Clínico del Río de la Plata,


Setembro de 2012

Somos muitos os psicanalistas que seguindo uma indicação de Lacan não


retrocedemos ante as crianças - algo que não é tão fácil de decidir lendo somente Freud.
Entretanto, faz falta um trabalho de revisão crítica dos conceitos fundamentais da
psicanálise para que esses se articulem da melhor maneira com as situações clínicas que se
nos apresentam nos encontros com nossos analisantes crianças. Assim, antes de começar a
trabalhar na lógica das intervenções analíticas na clínica psicanalítica lacaniana com
crianças, convém fazer uma crítica das noções fundamentais que utilizaremos. Proponho-
lhes a seguinte série: inconsciente, sujeito, demanda e desejo.
Comecemos situando uma noção de inconsciente que nos seja operativa para o que
se seguirá.
Como lhes dizia, nem todas as definições do inconsciente articulam-se bem na
clínica com crianças (digo: ainda no caso de supor que todas são corretas). Por isso,
proponho-lhes que trabalhemos para situá-lo a partir da estrutura da linguagem - Lacan
dizia que o inconsciente está "estruturado como uma linguagem". Contudo, ele também
afirmava que a linguagem dava seu suporte material ao inconsciente, isto é, por estar
apoiado na linguagem - algo bem concreto - o inconsciente não era uma ideia abstrata e a
psicanálise não se convertia em um idealismo. No seminário Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, Lacan (1964/1998) falava do "jogo combinatório operando
em sua espontaneidade, sozinho, de maneira pré-subjetiva – é esta estrutura que dá seu
estatuto ao inconsciente" (p. 26). A ideia é clara: certo funcionamento da linguagem é
prévio a supor ali um inconsciente e um sujeito... Há outra fórmula de Lacan para dizer o
mesmo: "a linguagem é a condição do inconsciente".
Irei propor-lhes que o inconsciente é um modo particular, criado por Freud, de ler
dois fenômenos da linguagem. Esses fenômenos já existiam antes que a psicanálise fizesse
sua aparição na cultura, são prévios. Por isso, justamente, são fenômenos do dia a dia,
cotidianos, simples e manifestos. Aquilo verdadeiramente genial do ato de Freud foi ter
reparado neles... Vamos ao primeiro.
Apresento-o da seguinte maneira: cada vez que alguém fala, diz sempre mais,
menos ou algo diferente do que queria dizer. Há uma defasagem entre a vontade do falante
e o produto de seu dizer, que é efeito da própria linguagem: a causa não está na inteligência
nem na capacidade oratória de ninguém. É um efeito próprio da estrutura da linguagem e a
estrutura mesma é sua causa.
Isso é algo que todos, alguma vez, já experienciamos. Pensem quantas vezes, após
uma entrevista de trabalho ou com um paciente, sentiram que falaram demais. Porém,
também, quantas vezes sentimos que não dissemos tudo que poderíamos ter dito sobre
determinado assunto, especialmente quando o melhor argumento só nos ocorre várias horas
depois... O melhor exemplo é a clássica conversa de casal. Nunca sabemos muito bem onde
vai dar... É uma experiência comum que funciona sem necessidade de atos falhos e
sintomas, em que a linguagem mostra seu efeito de maneira brutal. Em qualquer caso,
verificamos que houve defasagem entre o que se pensou dizer e o que finalmente se disse.
O ato de dizer produz algo: uma diferença, uma desproporção entre objetivos e fins que é
irredutível justamente porque não se pode eliminar. Aí radica a aposta de Freud: considerar
positivamente isso que se produz. Para Freud não se trata de déficit, não é um ruído na
comunicação (como diziam alguns antigos teóricos da comunicação), e sim é algo que se
pode ler colocando-o em concordância com o assunto ou sujeito que mantém capturado o
falante. Mas, cuidado, porque "colocá-lo em concordância com o assunto que mantém
capturado o falante" não quer dizer interpretá-lo de acordo com a posição subjetiva do
analista ou os sistemas de deciframento que valem para toda a cultura, ou seja, seu
significado não é evidente. A interpretação analítica servirá para esse caso, somente... A
idéia de Freud é que isso que aparece, e que não é deficitário, quer dizer algo.
Em primeiro lugar, quer dizer algo no sentido de que deve traduzir-se. Isso é
interessante porque então não pode ser interpretado de forma direta. Impõe-se sempre ante
essa aparição a pergunta acerca do que quer dizer isso no assunto desse falante, no sujeito
que o determina. Em segundo lugar, isso quer dizer algo no sentido de que impulsiona a ser
dito. Vemos aí uma espécie de pressão para que se diga. Teram notado que falo sempre em
termos de "isso" e fica, não obstante, colocada a pergunta pelo lugar que tem o falante ante
esses fenômenos. Já voltaremos a esse ponto. Por enquanto, deixo-o em aberto, mas capta-
se bem que tudo isso ocorre apesar dele, não?
Além disso, esse apoio do inconsciente sobre a linguagem introduz imediatamente
uma espacialidade comum a ambos. Assim como ninguém poderia afirmar o que tem a
linguagem dentro de si, tampouco é muito coerente supor que tenha em seu interior o
inconsciente. Tal como ocorre com a linguagem, o inconsciente exige a presença de ao
menos dois sujeitos humanos falantes para se desdobrar: motivo suficiente para que Lacan
impugnasse a espacialidade euclidiana, da qual Freud ficou cativo, a favor de uma
topologia de superfícies cuja estrutura real é bidimensional. Assim, de uma só vez,
desaparece o inconsciente submerso nas profundidades e não há ninguém que possa afirmar
que tem um inconsciente. No máximo, poderão coexistir um eu, tu e o inconsciente, tal
como ocorre na sessão de análise: trata-se de um inconsciente transindividual. E assim, por
acréscimo, soluciona também o problema que o mundo exterior representava para Freud,
problema que o levou a propor que esse mundo exterior era mais uma instância de sua
segunda tópica... A bidimensionalidade do inconsciente suportado pela linguagem pode ser
pensada a partir das duas leis de sua constituição: a metáfora que toma o relevo do eixo
vertical do plano (↓), e a metonímia, que toma o relevo do eixo horizontal (→). Assim, com
um inconsciente infinitamente plano, sem profundidade nem obscuridades, já não há nada
oculto nas profundezas porque a estrutura do inconsciente define-se como uma superfície
unilateral, com a mesma estrutura da banda de Moebius. Façamos um esclarecimento:
habitualmente, nós a construímos com uma tira de papel, mas o papel tem espessura -
talvez seja muito pouco, mas tem. É o problema da noção de superfície: uma superfície não
tem espessura, ou seja, é de duas dimensões, 2D como se diz agora... A nós, na escola, nos
ensinaram que o exemplo de um objeto de duas dimensões era o plano. O problema é que
nós nunca vimos um plano! Qualquer exemplo que consideremos, a lousa ou uma folha de
papel, tem espessura. Ou seja, se atravessamos a lousa ou uma folha de papel com uma
agulha, uma parte dessa ficará em contato com uma das faces, outra parte com a outra face
e uma terceira parte com o que seja a espessura... Quiçá o único exemplo - bastante difícil
de pensar por certo - de superfície que realmente conhecemos seja a superfície da água em
uma piscina. Se pulássemos na água a partir de um trampolim e congelássemos o momento
exato do primeiro contato com a água, uma parte de nosso corpo ficaria em contato com o
ar e outra parte, com a água, mas nenhuma parte teria contato com nenhuma espessura. Aí,
sim, trata-se de uma superfície com uma estrutura real de duas dimensões, 2D. Por isso,
para pensar o inconsciente, convém fazer uma banda de Moebius com uma tira de papel
transparente. Assim, se fazemos, por exemplo, um ponto em uma de suas supostas faces,
ele também aparecerá do outro lado. Dessa forma, eliminaremos a idéia de espessura. De
fato, essa espacialidade é muito interessante para pensar as irrupções daquilo inconsciente e
a surpresa que geram. O que supostamente estava inscrito na outra face (que, insisto, não é
outra face) é um saber-não-sabido que, ao irromper, surpreende-nos, justamente, porque o
sabíamos.
É assim que Lacan redefine o inconsciente. Por isso, há uma aula no seminário Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1998) que se intitula "O inconsciente
freudiano e o nosso". Nosso inconsciente é bem distinto do de Freud: não há nada oculto
nas profundezas, não há um lugar onde as representações vão parar, não há um reservatório
em que estão as representações, não há nada dentro de ninguém... A idéia de superfície cai
por terra com isso e abre a uma clínica diferente que pode perfeitamente ocupar-se das
crianças - algo que, como sabem, com Freud era bastante problemático.
Como lhes dizia ao início, a noção de inconsciente apoiada na linguagem parte de
dois fenômenos. Descrevemos o primeiro deles. O segundo, que também é prévio à
existência da psicanálise, somente pôde ser definido com precisão por Lacan, e bastante
tardiamente naquilo que é considerado seu último escrito intitulado, em francês, L’étourdit
(O aturdito, 1973). Em dito texto, Lacan propõe uma fórmula da qual irei oferecer-lhes
minha tradução (não me satisfazem totalmente nenhuma das duas traduções mais
conhecidas em espanhol, que são as da revista Escansión e dos recentes Outros Escritos). A
frase que está na primeira página do texto diz o seguinte: "Que se diga fica esquecido por
trás do que se diz em o que ouve" (LACAN, 1973/2003, p.448). Proponho tarduzir assim:
que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se escutaentende.
Começo pelo final porque tive que inventar um neologismo por condensação para
traduzir o verbo francês entendre, que quer dizer "escutar" e "entender". Na frase, ambos
sentidos estão presentes e, por isso, é conveniente preservá-los.
Insisto que essa fórmula situa um fenômeno da linguagem, um efeito de sua
estrutura que se fixa no "fica esquecido". O funcionamento da estrutura da linguagem
produz um esquecimento que tranquilamente poderíamos associar à idéia de repressão: uma
repressão sem agente, sem uma instância que a opere ou que a decida. Aqui, na frase de
Lacan, é a própria estrutura a que reprime - não tem nada a ver com nenhuma representação
inconciliável nem nada do tipo. O que é que reprime? O que reprime é o "que se diga", o
que, na teoria de Lacan, é a enunciação. "O que se diz", o enunciado, aquilo que se pode
recolher, por exemplo, em uma dedução desgrabación ou em uma nota escrita é o que se
escutaentende. Escuchamos e entendemos esse texto, mas esquecemos que isso tenha sido
dito, que houve um ato de dizer. Aqui, novamente, não se trata de um déficit da estrutura da
linguagem. Esse esquecimento, não necessariamente é uma perda, não é um defeito da
estrutura. Ao contrário. Há ali algo positivo, porque, advertidos desse funcionamento,
tratar-se-á de recuperar isso que "fica esquecido" nos rastros que deixou naquilo "que se
diz" e não se esquece. Recuperá-lo e colocá-lo em concordância com certa posição do
falante que - com Lacan - chamaremos "analisante".
Detenhamo-nos por um momento nesse ponto e comparemos como se reage ante
esses fenômenos em função da posição do falante. Para isso, devemos recuperar uma
distinção que Lacan, parafraseando Ferenczi, introduz no seminário A identificação (1961-
1962). Trata-se da diferença entre a linguagem adulta e a linguagem infantil. Em 2006,
trabalhei extensamente esse assunto em meu livro Fundamentos de la clínica
psicoanalítica lacaniana con niños, publicado pela Letra Viva - podem utilizá-lo como
bibliografia que amplia o que se segue.
O primeiro que convém dizer a respeito é o que habitualmente chamamos
“educação”. É um dispositivo social, um modo de laço, que tende a que todos os falantes
utilizem a linguagem adulta. Para normalizar o uso da linguagem adulta trata-se de
legitimar esse esquecimento do “que se diga”, de ler a defasagem entre o dito e o que se
queria dizer como um déficit na formação do falante (ou seja, atribuir o fenômeno a ele, e
não à estrutura da linguagem) e, finalmente, estabelecer para o sujeito humano que fala uma
organização de afirmações e negações estabelecidas segundo o triplo princípio lógico
proposto por Aristóteles – o que é um modo bem lacaniano de definir o Eu.
Todos vocês estudaram esse tripé lógico no Ensino Médio, mas, por via das
dúvidas, vamos relembrá-lo. É composto por três princípios: identidade, não contradição e
terceiro excluído. Podemos, inclusive, afirmar que esses três princípios configuram nosso
senso comum: tudo que pensa no senso comum está montado a partir deles, o que
evidentemente nos afasta muito do inconsciente – nada mais distante do senso comum que
a noção do inconsciente, não lhes parece?
Se, nessa lógica, A é igual a A (A = A), nenhum significante é idêntico a si mesmo.
Curiosamente, a identidade não é uma propriedade do significante. O significante somente
adquire valor por sua diferença em relação a algum outro. Apesar de ser comum
acreditarmos que “eu sou eu”, é muito freqüente na clínica encontrar alguém que não se
reconhece em certa situação, que não consegue aceitar que foi ele quem realizou esta ou
aquela ação, ou que não logra compreender os motivos de uma ação que reconhece como
sua... Aqui, aparece esse matiz demoníaco de que falou Freud alguma vez, essa idéia da
possessão, daquilo outro que atua em mim, do outro que fala em minhas palavras. Aí,
claramente, eu não sou eu.
Um garoto que cursava o sétimo ano e que foi levado a meu consultório em função
de seu mau comportamento em sala de aula, dizia-me que não tinha idéia de por que fazia o
que fazia. Chegou a perguntar-me se eu acreditava em demônios, se era possível que tivesse
algum dentro dele (o menino freqüentava uma escola religiosa e, aparentemente, alguém de
lá sugeriu-lhe essa possibilidade). De qualquer forma, ele não conseguia reconhecer-se
como causa da conduta que, entretanto, manifestava-se por meio dele, de seu corpo e de
suas palavras. É muito diferente que um garoto comporte-se mal na escola e diga que isso
se deve a seu ódio pela professora ou pela própria instituição, do que reconheça que algo
nele age mais além dele...
A não contradição também é algo com o que temos contato quase diariamente. Em
uma primeira aproximação mais filosófica, a idéia é que nada pode ser e não ser ao mesmo
tempo. Mas, aproximando-nos mais da questão lógica, poderíamos explicá-la indicando que
nenhuma proposição pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. É curioso porque... há
tantos analistas que trabalham assinalando contradições a seus analisantes! Gabam-se,
assim, de ser mais inteligentes que eles, mais lógicos, mas, na realidade, estão trabalhando
em um sentido que é contrário ao inconsciente, no qual a contradição não existe. As
crianças estão menos tomadas por essa ideia: podem torcer por Boca e Ríver ao mesmo
tempo, amar e odiar algum colega da escola... mas a nós, pretendidamente adultos, essa
posição nos é difícil. Há vários programas de televisão que situam essas contradições nos
políticos, nos atores, nas guerras entre as vedettes... E, sem dúvida, trata-se de uma
aplicação do senso comum, porque como você vai querer amar e odiar uma pessoa ao
mesmo tempo? Como, inclusive, alguém poderia amar sua esposa (ou esposo) e sua
amante, ao mesmo tempo, com a mesma intensidade? Contudo, isso é possível no
inconsciente e se, às vezes, resistimos a tais posições, é um efeito do Eu tal qual o estamos
estabelecendo.
O princípio do terceiro excluído é meu preferido... A idéia de Aristóteles é que a
disjunção (ou seja, o que se indica com “ou”) entre uma proposição e sua negação é sempre
verdadeira. Apresentemos um exemplo. Analisemos a seguinte proposição: “O sol nasce ou
não nasce”. “O sol nasce” é nossa proposição (chamemo-la de A) que está separada por sua
negação “não nasce” (que podemos escrever como ¬A; esse símbolo indica o “não” em
lógica) mediante uma disjunção (ou seja, o “ou”; indica-se em lógica pelo seguinte signo:
V). Então, no senso comum, sempre é verdadeiro afirmar a disjunção entre algo e seu
contrário. Retomando um exemplo anterior, nesse sentido poder-se-ia dizer “amo a minha
esposa ou a minha amante”, mas, seguindo Aristóteles, seria impossível que fosse certo
amar as duas... Aqui, a clínica surpreende-nos. Para justificar esse tipo de situação, em
algumas ocasiões, nossos analisantes dizem algo como “eu sei (logicamente no senso
comum) que é impossível amar duas pessoas, mas meu coração o nega...”- o que não é mais
que uma versão possível do célebre aforismo de Pascal que dizia algo como “o coração tem
razões que a própria razão desconhece”.
As crianças não têm muito problema com isso. Elas, sim, podem reconhecer como
certo que, como dizia Hans, uma menina esteja “pelada e de camisola” - lembram? - ou
que, em certa confusão que houve na escola, “eu estava e não estava”... Aliás, vejam como
nesses casos o que na fórmula original era uma disjunção (ou seja, uma relação entre
proposições a partir do “ou”), converte-se aqui em uma conjunção (então, troca-se o “ou”
por “e”). Embora estejamos aqui falando do princípio do terceiro excluído com certa
rigorosidade na definição, esse freqüentemente desloca-se e confunde-se com o princípio da
bivalência, de acordo com o qual toda proposição é verdadeira ou falsa. Como terão notado,
esse princípio de bivalência é já uma aplicação do anterior. Por quê? Porque poderíamos
reescrevê-lo da seguinte maneira: “toda proposição é verdadeira ou não verdadeira (falsa)”.
Continuamos na mesma lógica de Aristóteles e há muita gente que se gaba de ser “binária”,
de não admitir tempo ruim grises; como se isso fosse um mérito ou algo a ser destacado,
quando, na realidade, não é mais do que um modo bastante pobre de conceber uma posição
na linguagem. Outra vez, nisso, as crianças levam muita vantagem – e muitas vezes, os
adultos nos surpreendemos quando se manifesta de alguma maneira.
Como forma de encerramento dessa exposição, gostaria de dizer que o processo
educativo em geral - não me refiro somente àquele que ocorre em uma escola - a sociedade,
a cultura, nos leva a organizar nosso sistema de linguagem em termos do triplo princípio de
Aristóteles. Se alguém pretende fazer análise, é preciso que abra mão um pouco disso e
autorize-se a enunciar o que é seu a partir de um lugar diferente. Quando trabalhamos
analiticamente com crianças, nossas conversas, nossas brincadeiras e nossos desenhos
liberam-se imediatamente de tais restrições. Não é mais que uma resistência do analista se,
em algum momento, incorremos em assinalar contradições, em requerer identidade, em
exigir que algo não possa ser verdade e seu contrário...
Feito esse percurso, fica então estabelecido que o que chamei de linguagem infantil
recusa o triplo princípio lógico de Aristóteles e o "fica esquecido" que a estrutura da língua
produz sobre a enunciação - com freqüência, as crianças defendem com todo rigor, custe o
que custar, que tal ou qual afirmação foi dita por alguém, sua professora, por exemplo, e
que isso lhe dá um valor de verdade indiscutível, mesmo que o enunciado seja
absolutamente falso. Volto a dizer que essa posição na linguagem não coincide com uma
idade da vida: de fato, um analisante adulto pratica-o em cada sessão, assim como os
analistas que não retrocedemos ante as crianças. Mas, além disso, um menino de sete anos,
um pouco pressionado por seu entorno, pode perfeitamente chegar à primeira sessão
falando uma linguagem adulta e, sustentando o "fica esquecido", afirmar "sou adotado e,
como isso me trará problemas, venho ao analista...". Que louco, não?! A partir de onde está
afirmando isso? Custa pensar que se trata de uma posição infantil.
Antes de situar essa distinção, convém notar que as diversas posições determinam
dois efeitos pontuais que gostaria de comentar. O primeiro efeito: vou articular à idéia de
responsabilidade. O segundo, com o narcisismo. Vou desenvolver um pouco isso.
Comecemos pela responsabilidade. A responsabilidade é um conceito jurídico, ou
seja, provém do Direito. Segundo um filósofo contemporâneo muito importante, Giorgio
Agamben, essa noção contaminou o campo da ética e, digo eu, também o da psicanálise.
Em todo caso, se vamos utilizá-lo, é preciso redefini-lo. Chama-me muito a atenção uma
tendência muito contemporânea de alguns analisantes de encontrar certo modo de
satisfação nisso de "assumir" ou de "fazer-se responsável". Pareceria até que de alguma
maneira gostariam muito de enunciar isso, gabar-se de que vêm à análise para assumir algo,
para se responsabilizar. Se já lhes aconteceu o mesmo algumas vezes, se repetiram algum
fracasso, quem, senão eles, poderiam ser os responsáveis? Todavia, isso não ocorre com as
crianças. Para elas, quase sempre, a causa - ou a culpa, em certos casos - é do outro. O
famoso "não fui eu" - lembro-me de um episódio sensacional dos Simpsons em que Bart
fica famoso por essa frase - é uma espécie de leitmotiv. Na aula XVIII do seminário Os
escritos técnicos de Freud, Lacan (1953-1954/1986) afirma que “a palavra admirável da
criança é talvez palavra transcendente, revelação do céu, oráculo do pequeno deus, mas é
evidente que não a engaja a nada” (p.262). Noto sorrisos em alguns de vocês. Com certeza,
a afirmação de Lacan é certa. Esse tipo de linguagem dá um lugar muito especial ao outro,
ao semelhante. E não tem muito sentido fazer com que se encarreguem pelo sucedido,
fundamentalmente porque isso seria entrar na série parental ou na de seus educadores. Se
para elas a causa está no outro, convém que o desenvolvam, que expliquem o porquê.
Como também afirmava Lacan, "entre a criança e seu semelhante há um espelho instável"
e, se afirmam que a causa ou a culpa está no outro, isso pode ser lido através desse espelho.
É como se as crianças tentassem transmitir-nos em que sistema de coordenadas estavam
incluídas quando ocorreu isso que é denunciado. A nós, analistas, isso nos serve. Permite-
nos uma captação muito mais clara de como se posiciona esse falante no mundo que lhe
resta viver, no qual não está isolado, mas é um elo de certa cadeia - cadeia que,
curiosamente, quem insiste em fazer-se responsável finge ignorar.
Introduzo agora o segundo fenômeno que se articula a partir do narcisismo. O
falante adulto que insiste em fazer-se responsável declara com freqüência um problema de
auto-estima. Sabemos que, na perspectiva freudo-lacaniana, a auto-estima não existe.
Ninguém pode estabelecer seu valor a partir de si mesmo, isolado do outro. Toda valoração
que um sujeito realize de sua posição ganha relevo do valor que teve para outro. Em todo
caso, parafraseando Lacan, poderíamos dizer que o sujeito estabelece seu valor desde o
lugar do Outro (com letra maiúscula, nesse caso). Vemos-nos como seríamos vistos desde o
lugar do Outro - isso se vê bem com o esquema dos dois espelhos. Aqui, a criança nos
surpreende ao se apresentar como a melhor: a mais rápida de sua sala, a mais hábil no
futebol, a mais bela das princesas e todo tipo de declarações que deixam supor um Outro
que a supervaloriza. Essa superestimação era a posição que Freud situava como a que
mantinham os pais ternos com seus filhos.
Como terão notado, a linguagem infantil faz-lhe um lugar ao Outro que desaparece
com certa facilidade na linguagem adulta. Correlativamente com o afiançamento da
organização do Eu, a idéia de "sujeito" vai ciñendo sobre a de "pessoa". Lacan é claro a
esse respeito: não há sujeito sem Outro, não há assunto sem Outro e, atreveria-me a afirmar,
não há psicanálise sem Outro. Para que advenha a condição particular é necessário
estabelecer a posição desse falante nesse assunto que exige um Outro. Caso contrário,
estamos na psicologia, em que a posição de alguém é dissolvida em uma concepção da
pessoa criada a partir de uma série de juízos indutivos por analogia (por exemplo: se uma
anoréxica é filha de uma mãe demandante, e outra anoréxica é filha de uma mãe
demandante e várias anoréxicas são filhas de mães demandantes... então, todas as
anoréxicas o são).
Gostaria de acrescentar outra diferença que, segundo meu entendimento, também é
determinada pelos diversos usos das linguagens sobre as quais estamos trabalhando.
O falante que estrutura sua posição a partir da linguagem adulta leva em conta, faz
balanço e avalia tudo o que ocorre em sua análise. Se por acaso falou em muitas sessões
seguidas sobre o mesmo assunto, pede desculpa e é capaz, inclusive, de evocar o cansaço e
o tédio de seu analista ("eu sei que você deve estar cansado de me escutar falar de minha
mãe, mas você não sabe o que ela me fez essa semana..."). Além disso, pode começar cada
sessão realizando uma pequena avaliação de seu dia, de sua semana e, inclusive, do
desenvolvimento de sua análise. Alguns levam um diário e preparam suas sessões, burlando
a regra fundamental da associação livre.
Obviamente, nada disso ocorre com as crianças, as quais com freqüência ignoram
por que estão em tratamento ou que papel desempenhamos ante delas. Elas comumente
decorrem a experiência e associam livremente, tanto em suas palavras quanto em suas
brincadeiras. É muito freqüente que o pior erro que possamos cometer ante a tal estado de
coisas seja o de perguntar a uma criança como vai seu sintoma ou por que foi levada à
análise - isso nos deixa incluídos na série de seus pais e professores, lugar da avaliação, do
qual, logo, será muito difícil sair. A posição daqueles que falam a linguagem infantil
demonstra bem o que Lacan (1957/1998) chamava, em A instância da letra no inconsciente
ou a razão desde Freud, "coextensividade do desenvolvimento do sintoma e de sua
resolução curativa" (p.524). Desenvolver o sintoma é algo como tencioná-lo entre os
significantes que constituem um sujeito, um assunto - algo que nos encontros com uma
criança desloca-se, muito rapidamente e com grande dinâmica, do diálogo ao jogo e ao
desenho, para quicar entre uns e outros com pequenos saltos. Mesmo que isso lhes possa
parecer curioso, a análise com crianças não produz conhecimento. Explico-me: a análise de
um adulto pode conduzir-nos a uma situação em que, por exemplo, o analisante diga algo
como "muito bem, já entendi tal ou qual coisa, o que faço com isso agora?". Há muita
gente que diz fazer análise para se conhecer melhor, mas se avalizamos essa posição, se a
fortalecemos de alguma maneira, sempre chegamos ao mesmo ponto: o que se faz com isso
que se conhece de si mesmo? Não há aí outra coisa que sentido, identidade e Eu. A idéia de
Lacan é muito mais interessante, posto que estabelece que, enquanto o sintoma se
desenvolve, cura-se e, nesse processo, não faz falta que o analisante em questão faça nada
além de analisar-se. Nos casos em que trabalhamos com crianças, podemos inclusive dizer
que a ausência desse Eu que "se conhece a si mesmo" favorece a análise e que sua ausência
é um dos principais fatores para que os sintomas das crianças se movam tão rapidamente -
inclusive, às vezes, sem saber por quê.

Gostaria, para prosseguir e finalizar, comentar um pouco a sequência de um caso


que atendi recentemente. Não farei um ateneu, gostaria somente de oferecer-lhes um breve
recorte que nos permita situar algumas das idéias que trabalhamos previamente.
A criança em questão tem oito anos: um episódio que pôs em xeque a saúde de sua
mãe disparou um estado de angústia associado a um ritual de lavar as mãos várias vezes ao
dia e também um estranho temor de alimentar-se - tinha medo de que a comida estivesse
"suja" e que isso pudesse fazer-lhe algum dano. A análise da situação familiar produziu um
resultado muito particular: mesmo estando separados há quatro anos, seus pais não viviam a
situação de igual modo. Seu pai havia começado relações ocasionais com outras mulheres;
sua mãe havia ficado "colada" (uso esse significante sem nenhuma inocência) a seu ex-
marido. Tratava-o com a mesma linguagem amorosa de quando estavam juntos - ele se
irritava visivelmente com isso -, convidava-o com freqüência para comer em sua casa,
inventava programas para passar o fim de semana com ele e com seu filho... O ex-marido
queixava-se da situação e a recusava constantemente, mas ela não lograva registrar
totalmente o que estava acontecendo. Na noite em que passou mal, estava sozinha com o
filho. Esse, sem saber muito bem o que fazer, ligou para o pai e foi ele quem resolveu a
emergência médica - a coisa foi grave e ela esteve realmente mal (segundo consta, ela sabia
sobre sua doença, mas não havia dito nada ao filho). Ao que parece, o estado do menino foi
uma reação à cena que teve que viver.
Não vamos aprofundar muito a história - insisto que não se trata de um ateneu. Uma
vez iniciado o trabalho com Luis (nome que daremos ao menino), surgiu o assunto de sua
família. Como costumo fazer, disse-lhe que eu não os conhecia muito bem e pedi que os
desenhasse. Ele começou um desenho como faria qualquer criança, mas, na terceira figura
humana, começou a ficar inquieto. A quarta ficou pela metade. A partir daí, substituiu as
figuras seguintes por nomes, muitos nomes... Incluiu seus tios, primos e demais parentes. A
folha ficou repleta de nomes e com o desenho incompleto. Quando lhe perguntei o que
significava isso, respondeu que todos os nomes que havia escrito na folha eram os membros
de sua família. Não pareceu notar a passagem do grafismo à escrita: para ele, nada estranho
havia ocorrido em seu desenho. Eu não o assinalei, mas supus que isso queria dizer algo...
Considerei que havia em jogo ali um assunto e que esse assunto - conste que poderia
substituir o termo "assunto" por "sujeito" - apresentava-se dividido, a princípio, entre o
desenho e a escrita. Decidi que deveria ter paciência frente a isso. Se confiamos no
inconsciente, temos que saber, ao menos por um tempo, esperar e suportar a incompreensão
de suas manifestações.
Na entrevista seguinte, Luis trouxe alguns Gogos (uns bonequinhos pequenos,
supostamente extraterrestres, com os quais se brinca como se fossem bolinhas - sua forma
pequena e redonda facilita a tarefa). Distribuiu-os em forma de círculo sobre a mesa do
consultório. "Estão fazendo uma ronda" - disse-me. Perguntei-lhe:
- São todos do esmo planeta?
- São uma família - disse-me.
Pedi que os apresentasse a mim. Selecionou dois e disse que formavam um casal
(não há como atribuir-lhes gênero algum): um pai e uma mãe. Em seguida, separou três, os
quais seriam os filhos. Continuou: outro era o avô, outro a avó... Depois vieram os primos,
os tios, os namorados, as namoradas, os animais de estimação... Evidentemente, a idéia de
família que Luis ponha em jogo coincidia com uma família estendida. Depois de um tempo
todos os Gogos faziam parte da mesma família. Evidentemente, tratava-se do mesmo
assunto, mas apresentado de maneira distinta. Observem aqui certo matiz da repetição que
se coloca em jogo, pois o que Luis repete é o mesmo que não é o mesmo.
Duas sessões depois, o assunto família retorna com outro desenho: o da família
monstro - assim os chama, apesar de os grafismos levarem a pensar numa família de robôs.
A figura que seria a mãe é uma espécie de Frankenstein (apresenta, inclusive, costuras no
rosto). A do pai é uma figura composta: o corpo é da filha pequena, mas a cabeça é de um
adulto masculino. Todos têm nomes estranhos, os quais soam como onomatopéias. Temos
aqui uma terceira tentativa de fazer algo com o assunto família, mesmo que não saibamos
muito bem o quê.
Um pouco mais tarde, e com uma técnica gráfica aparentemente aprendida na
escola, Luis desenha outra família: nesse caso, um casal de serpentes com uma cria
pequena. Evitando qualquer significação acerca da escolha do ofídio em questão, é
curiosamente a família mais normal. São todos da mesma espécie e não há figuras
fusionadas. Algo do que tentava elaborar, ou dizer, sobre o assunto familiar está mais claro,
mesmo que para desenhá-lo Luis tenha necessitado afastar-se muito das figuras humanas.
Como último passo desse seqüência e provavelmente influenciado pela proximidade
do Natal, Luis desenhou um presépio rodeado de animais e, em seu interior, colocou a
Sagrada Família: Maria, José e o menino Jesus. Esse grafismo foi o último da série - Luis
nunca mais solicitou material para desenhar - e, a partir daí, voltou-se mais ao jogo com
regra, o que lhe permitiu começar a trabalhar a diferença entre o lugar do Outro e o que, em
psicanálise, assinalamos com a letra A maiúscula (que, em dito jogo, é ocupado pelo
sistema de regras que o organiza). Destaco aqui o significante que ele mesmo utilizou para
nomear o que havia desenhado: "Sagrada Família", o qual claramente diz muito mais do
que qualquer leitura projetiva que pudéssemos fazer de sua produção gráfica.

Gostaria aqui de assinalar algo: com freqüência, escutamo-nos dizer a algum


paciente que tem que trabalhar este ou aquele assunto, mas em que consiste exatamente
isso? O que significa para nós, analistas, trabalhar um tema? Provavelmente seria algo
como darle vueltas , abordá-lo por distintos caminhos, associá-lo com outros assuntos. É
exatamente isso o que o breve recorte que lhes apresentei deixa manifesto: uma criança
"trabalhando" o tema da família, buscándole una vuelta, tentando oferecer em análise uma
versão acerca do irredutível da transmissão familiar - Lacan afirmava que a família
transmite algo que é impossível de eliminar e, por isso, apresenta-o como irredutível -
mediante uma série de permutas significantes que não se reduzem a uma questão projetiva.
Considero desse modo aberta a porta para nos introduzirmos em nosso tema
pontual: a lógica das intervenções analíticas na clínica com crianças, algo que só é
abordável após um trabalho preliminar como o que aqui fizemos.

LACAN, J. (1953-1954) O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.

______. (1957) A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN, J.
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.496- 533.

______. (1964) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

______. (1969) O aturdito. In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003, p.448-497.

A identificação

livro Pablo

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