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Cena 1

Tarde da noite de 12 de dezembro de 1963. Mendes na sala do prefeito:


MENDES: Todos saem e eu aqui até tarde (enquanto se ajeita no sofá e olha para
os quadros a sua frente). Acho que no tempo de vocês as coisas não eram tão
tensas. Essa maldita greve a ponto de criar um conflito. Esse pessoal está se
metendo com quem não deve (pega o whisky na mesa ao lado e se serve, gole vai
gole vem e já está bêbado). João Goulart está acabando com esse país.
CHICO VACARIANO: (cheio da razão) Já era de se esperar, presidente que se
mete com “esquerdinhas”. Inflação em alta, ninguém está se agradando. E os
militares... nem se fala.
ANACLETO CAMPOLARGO: (Tomando vida de uma vez). Lá vem esse
Vacariano querendo falar o que não sabe. Típico desse “pessoalzinho”
CHICO VACARIANO: Olha quem resolveu aparecer, Anacleto Campolargo, desde
que chegou a cidade querendo competir com os Vacarianos...
ANACLETO CAMPOLARGO: Culpa eu não tenho se sempre tivemos maior
influência.
CHICO VACARIANO: Cala a boca seu velho, influência passou longe de sua
família. Sempre cuidei melhor de Antares.
ANACLETO CAMPOLARGO: Ah claro! Falou o homem que não sabe cuidar nem
dos próprios filhos.
CHICO VACARIANO: Escuta aqui seu corno, meu filho morreu como homem na
guerra do Paraguai, defendendo Antares e o Brasil, tombou em solo estrangeiro
defendendo seu povo.
ANACLETO CAMPOLARGO: Os meus também, porém os dois voltaram vivos,
mostrando que minha descendência é mais forte.
CHICO VACARIANO: Parece que você esqueceu o que meu Xisto fez: imagina aí
a cena gloriosa: O pobre Terezio Campolargo amarrado em uma arvore de cabeça
para baixo de pernas “arreganhadas” enquanto os vacarianos empurraram azeite
fervendo pelo rabo dele.
MENDES: Isso é sério? Ouvi falar dessa história, mas confesso que não acreditei,
que crueldade... continuem...
CHICO VACARIANO: Seríssimo, vacarianos não brincam em serviço.
ANACLETO CAMPOLARGO: Não conte vitória antes da hora, não lembra o que
fizeram com Romualdo, seu descendente? Benjamim mandou seu capanga negro,
alto, socar seu cacete nele e o fazer de mocinha, ele deve ter adorado. Logo saiu
cambaleando para o rio e nunca mais foi visto.
MENDES: Era melhor eles o terem matado, isso não se faz com homens machos.
GETÚLIO: Até hoje isso rapazes, uma das minhas maiores feitas foi fazer vocês
apertarem a mão, mas vejo que foi só questão de tempo para tudo voltar.
CHICO VACARIANO: Grande Sr. Getúlio, me desculpe, mas me recuso a apertar
a mão de gente covarde.
ANACLETO CAMPOLARGO: Olha aqui, seu pústula, não ouse falar assim de
minha família de novo.
GETÚLIO: Era exatamente isso o que acontecia, vocês brigavam e os paulistas e
mineiros dominavam a política no país, não viam que devíamos nos unir para
acabar com essa história de “café com leite”?
MENDES: Confesso que a cidade está bem melhor assim, sem aquela guerra.
CHICO VACARIANO: Pena que esses “esquerdinhas” implicaram com o
progresso do seu governo, vossa excelência.
GETÚLIO: Mas logo voltei sendo eleito pelo povo.
ANACLETO CAMPOLARGO: Mas aquela armação novamente te tirou do poder. E
um fim trágico.
CHICO VACARIANO: E aí o país perdeu o rumo, 5 presidentes em menos de 10
anos é uma vergonha!
MENDES: O desemprego e a inflação estão absurdos, olha Antares como está.
CHICO VACARIANO: Como eu disse, esse João Goulart vai transformar o Brasil
em comunista. As forças maiores estão esperando acontecer para tomar
providências. Ainda bem que não estou mais vivo para ver uma coisa dessas.
MENDES: Tibério Vacariano também está a ponto de explodir com isso, esse
governo não lhe satisfaz e não é de hoje. Ainda mais quando os coveiros do nosso
cemitério decidiram aderir à greve.
Cena 2
Autoridades de Antares e povo antarense indo levar o caixão de Dona Quitéria
para o cemitério. Com clima fúnebre.
DELEGADA: Os grevistas continuam a bloquear o cemitério.
TIBÉRIO VACARIANO: Por mim furávamos esse bloqueio a bala.
DELEGADA: Só preciso de sinal verde.
PREFEITO VIVALDINO: Não. Agiremos depois da conversa dependendo das
circunstâncias. Você Inocência, me siga com seus homens e não façam nada.
TIBÉRIO VACARIANO: (Agora a frente da multidão). Olha só quem está à frente,
Geminiano. Era fácil acertar um tiro naquela pança.
GEMINIANO: (Indo ao encontro do grupo). Alto lá minha gente. Larguem o esquife
no chão que a conversa vai ser demorada.
PREFEITO VIVALDINO: Com ordem de quem...?
GEMINIANO: Pera lá major. Não venha com seus gritos. E não precisamos da
licença de ninguém para parar na frente do cemitério.
PREFEITO VIVALDINO: E onde estão os coveiros?
GEMINIANO: Aderiram à greve, eles tem famílias para sustentar.
PREFEITO VIVALDINO: Eles são funcionários da prefeitura. Que abram esse
cemitério agora. Ordem do prefeito.
PADRE PEDRO PAULO: Eles também querem um aumento. Vivem com o mesmo
salário miserável há anos.
PREFEITO VIVALDINO: E isso é da sua conta?!
TIBÉRIO VACARIANO: Esse padre filho da puta, maldito comunista. Tinha que
estar metido nisso.
DRA. LAZARÍNA: Se acalme Sr. Tibério. Não pode se enfurecer de mais.
PREFEITO VIVALDINO: E o que vocês industriários tem a ver com os coveiros?
GEMINIANO: Eles aderiram a nossa greve e nós protegeremos eles até o fim.
TIBÉRIO VACARIANO: Blasfêmia! Eles estão sendo forçados, nem sabem o
sentido dessa palavra.
GEMINIANO: Sabem mais que você.
Tibério Vacariano soltou-se de sua médica e foi em para cima de Geminiano com
seu revolver em mãos. Mas logo foi desarmado e jogado ao chão pelo líder
grevista.
GEMINIANO: (Removendo as balas do revolver). Guarde essa porcaria velho
bobo! E se convença que os tempos mudaram, Antares não é mais propriedade
sua. E se quiserem vamos conversar como gente grande.
DELEGADA: (Entre a multidão). Dê ordens e abriremos caminho a bala!
GEMINIANO: Duvido muito. Somos maioria e bem armados.
PREFEITO VIVALDINO: Isso é uma vergonha.
PADRE PEDRO PAULO: Vergonha são pessoas passando fome enquanto vocês
os exploram.
TIBÉRIO VACARIANO: Um sacerdote de Deus metido com comunistas!
PADRE PEDRO PAULO: Eles não são comunistas, coronel, são grevistas.
LUANA FAIA: Senhores! Amigos! Temos que usar o bom-senso em uma situação
como essa. O importante é evitar o sangue e a violência. Assim proponho que
deixemos o caixão de Dona Quitéria aqui sob a custódia dos grevistas e quem
sabe hoje ou até amanhã já teremos respostas favoráveis da Matriz do frigorifico e
da Franco-brasileira.
TIBÉRIO VACARIANO: Por mim derrubávamos um a um.
LUANA FAIA: Geminiano, (se dirigindo ao líder do grupo) você me conhece há
muitos anos. Meu jornal não tem sido desfavorável as suas causas. Você me
garante sob palavra de honra, que este esquife não será violado essa noite?
GEMINIANO: Ora mulher, deixe de besteiras, não existe entre nos necrófilos ou
vampiros.
PREFEITO: Como estamos em minoria acho a proposta do Luana aceitável.
TIBÉRIO VACARIANO: E assim ficamos desmoralizados pelo resto da vida...
PREFEITO VIVALDINO: Coronel, perdemos a batalha, mas ganharemos a guerra.
Não seja assim tão pessimista.
GEMINIANO: Podem colocar o caixão ao lado daqueles. Não tenham medo,
pobreza não é doença.
Assim que colocam saem, alguns se lamentando, outros gesticulando, outros
enfurecidos.
Cena 3
Gatuno indo roubar o caixão de Sra. Quitéria.
LADRÃO: (Se revelando das sombras e demonstrando nervosismo, enquanto
ilumina o caminho com sua lanterna. Passa então despercebido por um estranho
objeto cinza metálico que está jogado ao lado do muro do cemitério. Se assusta
com um estranho barulho vindo do objeto). Puta que pariu. (Levanta a tampa do
caixão sem nem perceber o leve “BIP” que faz o objeto novamente)
DONA QUITÉRIA: Senhor, em vossas mãos entrego minha alma (enquanto
levanta do caixão olhando para o céu).
LADRÃO 1: (Solta um grito seco e abafado totalmente assustado com o que
acaba de ver e dispara a correr sem rumo)
DONA QUITÉRIA: (Levanta de seu esquife e começa admirar a esplanada e tudo
ao seu redor. Também percebe a lanterna acessa aos seus pés. Vê ao seu lado
mais seis caixões e então bate no da sua esquerda com três toques).
DR. CÍCERO BRANCO: (Observa também o que está ao seu redor e foca em
Quitéria) Dona Quitéria Campolargo! Que honra! Que prazer!
DONA QUITÉRIA: Quem é o senhor?
DR. CÍCERO BRANCO: Vamos ver se lembra de mim (volta o feixe de luz da
lanterna para a sua cara).
DONA QUITÉRIA: Não me é estranho...
DR. CÍCERO BRANCO: Dr. Cícero Branco!
DONA QUITÉRIA: Mas sua cara está diferente, uma mancha roxa no lado direito
de seu rosto.
DR. CÍCERO BRANCO: É! Pelo visto a morte não nos fez bem.
DONA QUITÉRIA: Mas quando foi que faleceu?
DR. CÍCERO BRANCO: Ontem se não me engano. Tive uma hemorragia cerebral
enquanto atravessava a praça.
DONA QUITÉRIA: (Olhando para o céu). Pela posição do Cruzeiro do Sul acho
que são três horas da madrugada. Por que ainda estamos aqui abandonados?
DR. CÍCERO BRANCO: Isso me intriga. Mas também estou curioso para saber
como a senhora saiu de seu esquife.
DONA QUITÉRIA: Estava tranquilamente no sono da morte quando ouvi um
barulho estranho e logo vi uma forte luz, imaginei que fosse Deus me chamando.
Mas ouvi um grito e quando olhei vi um vulto de um homem que saía disparado...
DR. CÍCERO BRANCO: Eu também ouvi esse barulho, atrapalhou meu sono.
Provavelmente um desses profanadores de cemitérios...
DONA QUITÉRIA: Possivelmente (enquanto sente a falta de suas joias) fui
roubada doutor! Joias antigas da minha família!
DR. CÍCERO BRANCO: Desculpe-me Dona Quitéria, mas lhe asseguro que não
foi roubada. A senhora foi enterrada sem nenhuma joia.
DONA QUITÉRIA: Como que o senhor sabe?
DR. CÍCERO BRANCO: Fui ao seu velório prestar-lhe uma homenagem.
DONA QUITÉRIA: Mas deixei esse pedido escrito para minhas filhas e genros.
Tratantes, gananciosos, já não basta o que deixei para eles?
DR. CÍCERO BRANCO: A cobiça humana não tem limites.
DONA QUITÉRIA: Enfim, e esses quem são? (Tomando a lanterna da mão do
advogado e iluminando os caixões).
DR. CÍCERO BRANCO: Gentinha sem classe, com exceção de dois.
DONA QUITÉRIA: Besteira, morto não tem classe. Vamos chamá-los, quero ver
as caras dos cidadãos.
DR CÍCERO BRANCO: (Abre o primeiro caixão).
DONA QUITÉRIA: Este é Barcelona. O sapateiro comunista.
BARCELONA: Alto lá, minha senhora! Não confunda anarco-sindicalismo com
comunismo. Considero isso um insulto.
DONA QUITÉRIA: De que morreu?
BARCELONA: Não sei e nem quero saber.
DR. CÍCERO BRANCO: Posso dizer, de uma ruptura no aneurisma.
BARCELONA: Isso tinha que acontecer mais cedo ou mais tarde (diz enquanto ri
baixinho).
DR. CÍCERO BRANCO: Vamos para o próximo (Abre o caixão)
DONA QUITÉRIA: O Maestro Menandro Olinda.
DR. CÍCERO BRANCO: Ele mesmo! Suicidou-se cortando as veias do pulso.
DONA QUITÉRIA: Isso é coisa que um cristão faça? É um pecado contra as leis
de Deus.
MENANDRO OLINDA: Mas quando o fracasso chega à sua porta as coisas
mudam... (enquanto virar a cabeça para o céu em sinal de reflexão).
DONA QUITÉRIA: Por que fez isso homem? Isso lá é atitude de cristão.
MENANDRO OLINDA: Tentei tocar a grande Passionata de Beethoven, mas
falhei.
DONA QUITÉRIA: Você sabe que os suicidas não entram no reino dos céus?
MENANDRO OLINDA: Já tive uma amostra de inferno em Antares.
DONA QUITÉRIA: Você está sendo injusto com sua cidade. E sabe que suicidas
não podem ser enterrados em campo santo. (Com um olhar severo).
MENANDRO OLINDA: (abaixa a cabeça e começa a cantarolar uma música de
Beethoven).
DONA QUITÉRIA: Vamos para o próximo.
DR. CÍCERO BRANCO: A próxima na verdade, é do sexo feminino.
DONA QUITÉRIA: Cruzes! O que é isso?
DR. CÍCERO BRANCO: Essa é Erotides, entre 1925 e 1945 foi uma das
prostitutas mais famosas em Antares. Mas com o tempo a carne perdeu a
qualidade...vendia-se por cinco mil réis.
EROTILDES: Até dois (murmura ela baixando a cabeça). Não queria morrer de
fome Doutor.
DONA QUITÉRIA: De que essa mulher morreu? (Com cara de estranheza).
EROTILDES: Tuberculose.
DONA QUITÉRIA: Mas hoje em dia ninguém morre disso, com todos esses
antibióticos.
DR. CÍCERO BRANCO: Ela estava na ala dos indigentes no hospital, pelo visto
esqueceram de lhe dar a medicação. Dra. Lazarina a deixou de lado.
DONA QUITÉRIA: Logo a Dra. Lazarina.... Enfim, vamos ao próximo.
DR. CÍCERO BRANCO: Este é João Paz. Bom moço, de família...
DONA QUITÉRIA: De que morreu?
DR. CÍCERO BRANCO: De embolia pulmonar.
JOÃO PAZ: Mentira! Fui torturado e assassinado na cadeia municipal pela
Delegada e seus capangas.
DR. CÍCERO BRANCO: Tenha paciência, isso é apenas uma apresentação.
JOÂO PAZ: Paciência? Você sabia o tempo todo. E nada fez, e agora estou aqui.
DR. CÍCERO BRANCO: Não tenho dom da onisciência nem onipresença. A
Delegada queria saber sobre o grupo de rebeldes e usou “seus métodos”
JOÃO PAZ: Por que não fala tortura? E como que vou falar de uma coisa que nem
conheço? Se é que existe.
DONA QUITÉRIA: Vamos ao próximo...Santo Deus! (abre o caixão). Que é isso !?
Esse homem vai explodir...
DR. CÍCERO BRANCO: O maior bêbado de Antares. O nosso famoso pudim de
cachaça.
PUDIM DE CACHAÇA: Boa noite dona! (Enquanto se incomoda com a luz). Dr. do
que morri?
DONA QUITÉRIA: Só pode ter sido cirrose no fígado, morte natural.
DR. CÍCERO BRANCO: Não foi natural, foi assassinado.
PUDIM DE CACHAÇA: Eu assassinado? Nunca tive inimigo na vida.
DR. CÍCERO BRANCO: A tua mulher.
PUDIM DE CACHAÇA: A Natalina? Acho que não, minha mulher não é capaz de
matar nem uma mosca.
DR. CÍCERO BRANCO: Talvez, mas botou em sua comida veneno para matar um
cavalo. E ainda confessou.
PUDIM DE CACHAÇA: Mas por quê?
DR. CÍCERO BRANCO: Declarou ao delegado que não aguentava mais,
trabalhava para sustentar a casa e ainda tinha que suportar suas agressões
quando chegava bêbado em casa.
DONA QUITÉRIA: É verdade?
PUDIM DE CACHAÇA: Coitada. Eu sempre fui um peste, espero que não seja
condenada.
DR. CÍCERO BRANCO: E aqui temos conosco Dona Quitéria Campolargo, umas
das mais ilustres, se não a mais ilustre dama da sociedade de Antares.
BARCELONA: Dona Quita! Muita meia sola e salto botei em sapatos seus e de
sua família.
EROTILDES: (enquanto ela e os cinco defuntos se inclinam em cima de Dona
Quita) A senhora não imagina a honra que é para mim estar aqui ao seu lado.
DONA QUITÉRIA: Não fale com a boca em cima da minha cara, mulher!
BARCELONA: Não me diga que a senhora está com medo dos bacilos da
tuberculose... (dando uma risada).
EROTILDES: (tocando de leve e tímida o ombro de Cícero) posso fazer uma
pergunta doutor?
DR. CÍCERO BRANCO: Ora essa, pode!
EROTILDES: Estamos no céu ou no inferno?
DR. CÍCERO BRANCO: Nem num lugar nem noutro. Estamos do lado de fora do
cemitério de Antares, ainda insepultos.
PUDIM DE CACHAÇA: Não se vê nenhuma luzinha em Antares. Sabe o que eu
acho? Fomos abandonados aqui porque uma peste liquidou a cidade. Ou então os
Argentinos invadiram o Brasil e mataram nossa gente.
BARCELONA: Ah! Já sei! A greve continua...
DONA QUITÉRIA: E o que temos a ver com essa greve?
BARCELONA: Na véspera da minha morte, fui na assembleia dos industriários e
discutimos os meios de questionar os patrões e as autoridades para conseguirmos
nossos objetivos. E sugeri que incluíssem os coveiros para que nenhum
sepultamento acontecesse.
DONA QUITÉRIA: Pois agora o feitiço virou contra o feiticeiro.
PUDIM DE CACHAÇA: (apalpando o estomago). Me costuraram mal e
porcamente.
BARCELONA: Será que estamos mesmo mortos?
DR. CÍCERO BRANCO: Ponha a mão em seu coração e veja se bate.
BARCELONA: Não bate (segura o pulso) e também estou sem pulso.
JOÃO PAZ: Eu não respiro.
DR. CÍCERO BRANCO: Sinto que os parasitas já estão em minhas entranhas
(enquanto pega na barriga).
DONA QUITÉRIA: Se estamos mortos o que explica estar aqui conversando
pensando e com memória?
DR. CÍCERO BRANCO: Confesso que não sou versado em ocultismo, só sei o
que um advogado sabe. Mas antes de acordar ouvi um barulho estranho.
DONA QUITÉRIA: Também ouvi, e fiquei esperando achando que estava sendo
recebida no céu.
BARCELONA: Também ouvi, mas fiquei imóvel no caixão sem fazer nada.
JOÃO PAZ: Sim, todos nós ouvimos (todos os mortos confirmam).
DR. CÍCERO BRANCO: Acho que veio daquele objeto ali (após observar ao seu
redor e apontar para a máquina no canto do muro).
PUDIM DE CACHAÇA: E desde quando aquilo está ali?
BARCELONA: Já há alguns meses, homem, como não viu?
DONA QUITÉRIA: Ninguém sabe quem a deixou aí, ou quem a encomendou.
EROTILDES: E para que serve?
DR. CÍCERO BRANCO: Até hoje parecia não servir para nada, as crianças
brincavam com ela, muitos vinham admirá-la, virou um monumento na cidade...
JOÃO PAZ: O ser humano sempre atraído pelo desconhecido...
BARCELONA: Será que ela foi responsável por voltarmos à consciência? Mas não
faz sentido...
MENANDRO OLINDA: Nessa vida, meu caro, quase nada faz sentido...
DR. CÍCERO BRANCO: A vida é um vício.
MENANDRO OLINDA: No meu caso um vício solitário e triste.
BARCELONA: Estamos filosofando demais (enquanto anda de um lado para o
outro observando).
DONA QUITÉRIA: Vamos ficar aqui, insepultos até quando?
BARCELONA: É nosso direito sermos enterrados.
CÍCERO BRANCO: Tive uma ideia, como o povo de Antares está dormindo, nós
voltamos aos nossos caixões e amanhã cedo nos dirigiremos à cidade. Cada um
terá até o meio dia para cuidar de seus interesses. Ao meio dia em ponto, nos
encontramos no coreto da praça para exigir nosso direito de ser enterrados.
DONA QUITÉRIA: Uma greve contra os grevistas?
BARCELONA: Se a finalidade for essa... Não contem com esse defunto.
DR. CÍCERO BRANCO: Espere! Vamos usar todas as nossas armas, vamos
impor a população de Antares nossa presença macabra, ameaçando de que se
não nos sepultarem no nosso prazo vamos ficar lá apodrecendo o ar da cidade
com nosso cheiro.
EROTILDES: Que coisa horrorosa.
DR. CÍCERO BRANCO: Preciso de suas aprovações para ser o advogado do
grupo (todos concordam). Todos entenderam? (Gestos positivos). Ótimo! Agora só
nos resta esperar o nascer do sol. (Todos voltam para seus esquifes à espera do
amanhecer).

CENA 4
Os mortos levantam um a um devagar e fazendo reconhecimento do território.
PUDIM DE CACHAÇA: O sino da igreja começou a badalar.
DONA QUITÉRIA: É a missa das sete...
DR. CÍCERO BRANCO: Vamos caminhando, quando estiver dentro da cidade nos
separamos.
Os mortos começam a dar uma volta no na cidade (auditório) e assustando as
pessoas que reagem com desespero a cena. Até chegarem ao coreto (palco). E
ficarem aguardando a chegada dos demais para começar a conversa. (Tocam
doze badaladas)
CENA 5

Autoridades antarenses indo em direção ao centro da praça para uma conversa


com os mortos. Sol forte, cheiro podre e uma multidão acompanhando o
acontecimento.

DRA. LAZARÍNA: O senhor está com taquicardia, coronel! Pelo amor de Deus,
volta para casa.

TIBÉRIO VACARIANO: Que se lasque a taquicardia! Que se lasque a medicina!

MENDES: Veja prefeito (ao observar pessoas de Antares se achegando a praça).


Não estamos sozinhos nessa. A cidade em peso está aqui.

TIBÉRIO VACARIANO: Fale! (Se dirigindo ao Dr. Cícero Branco que está à frente
dos outros mortos). Seja breve, pois não aguento esse fedor.

PREFEITO VIVALDINO: Excelentíssima Dona Quitéria Campolargo! Dr. Cícero


Branco! Demais defuntos, digo pessoas...mortas. Como prefeito dessa cidade
recebi mais cedo o requerimento do vosso advogado. Como todos sabem os
grevistas insistem em fechar o cemitério para vos manter insepultos. Até que a
greve seja satisfatoriamente resolvida para eles. Porém os patrões não estão
dispostos a fazer isso por agora. Então que vocês voltem para seus esquifes e lá
esperem até serem enterrados. (É interrompido por vaias e ofensa dos jovens das
arvores).

PREFEITO VIVALDINO: Filhos da mãe! Pensei que estivessem do nosso lado.

DR. CÍCERO BRANCO: Senhor prefeito! Povo de Antares! recusamos esse


pedido absurdo. Exigimos o sepultamento imediato. Se não ficaremos aqui
apodrecendo o ar da cidade. (Seguido de aplausos dos jovens das arvore).

DR. MIRABEAU: (Sobe em um banco, mas começa a ser vaiado “Viado, Viado,
Viado”) Delegado, se essas ofensas não acabarem contra minha pessoa mande
evacuar as galerias.

DELEGADA: Não sabem o que falam. São todos teleguiados de Moscou!

DR. MIRABEAU: Digníssimas autoridades civis e eclesiásticas, excelentíssimo juiz


de direito, povo de Antares! Dona Quitéria, Dr. Cícero Branco e.... demais mortos!
(É interrompido com “Fala logo bicha’’ “A maquiagem vai derreter”). A presença de
vocês ofende nossos olhos, nosso senso olfativo, estético (Aponta
dramaticamente para o céu). Contemplem os urubus sobre nossas cabeças,
atraído pela vossa carniça. (Gargalhadas das arvores). Por isso peço que em
nome de Antares e dos mais nobres sentimentos, aceitem sua morte e fiquem nos
vossos esquifes esperando.

DR. CÍCERO BRANCO: O meu caro colega terminou? Pois então desça do banco,
pois sua postura está tão ridícula quanto seus argumentos. A julgar pelas palavras
do nosso prefeito e do promotor, nossa presença é indesejável. Por outro lado,
nosso desaparecimento foi plenamente aceito por todos. Vossa repulsa e má
vontade com nossos corpos nos dá liberdade para dizer o que realmente
pensamos de você.

TIBÉRIO VACARIANO: Não estamos interessados na sua opinião. (“Cala a boca


coronelete” grita alguém das arvores, outra vaia acompanha “Velho podre...”).
(Enquanto puxa seu revolver, mas a delegada o desarma com a ajuda do prefeito).

DRA. LAZARÍNA: O remédio, coronel, o remédio.

DR. CÍCERO BRANCO: Hipócritas! Impostores! Eis o que sois.... Olhando daqui
de cima a vida parece um baile de máscaras. Ninguém usa sua face natural. A
Dra. Lazarina representa o papel de médica humanitária. O nosso Vivaldino
Brazão, ah! Esse faz vista grossa às violências de sua polícia e às próprias
patifarias.

TIBÉRIO VACARIANO: Façam esse louco calar boca! Onde está a polícia! (Caí
em um banco resfolegante).

DR. CÍCERO BRANCO: E quem mais vejo na festa? Ah! A delegada Inocência
Pigarço, essa esconde um uniforme negro de Capitã de Hitler por baixo de sua
roupa de Anjo da Guarda que zela pela ordem do baile! E que baile! Será que a
verdade fede? (Seguido de bravos e aplausos).

A medida que tudo isso vai acontecendo pessoas vão tendo ataques e passando
mal por causa do cheiro ou do sol forte.

PROF LIBINDO: Mas que é a verdade?

DR. CÍCERO BRANCO: Não me venha com essa paródia de Jesus e Pilatos.
Você não sabe o que é a verdade porque vive num mundo de falsidade. (Seguido
de gritos das arvores de “Mentiroso, Mentiroso, Mentiroso”). Mas basta de
metáforas, vamos ao ponto. Eu acuso o Cor. Tibério Vacariano e o Prefeito
Vivaldino Brazão de enriquecimento ilícito.

PREFEITO VIVALDINO: Cícero! Você está louco!

TIBÉRIO VACARIANO: Morte ao bandido! O meu revolver. Quem ficou com meu
revolver!?

DR. CÍCERO BRANCO: E como eu sei disso? Fazia parte, era um ladrão.

DR. MIRABEAU: O senhor está incriminando a si mesmo em público?


DR. CÍCERO BRANCO: Ora meu caro magistrado, a morte me deu todas as
imunidades, as leis dos homens não se aplicam a mim. Quanto a Deus, o velho
está cansado de saber todos os meus pecados. A minha sentença já está
assinada no livro divino, não há nada que possa fazer. Quando vivos, senhoras e
senhores, lesamos incontáveis viúvas, órfãos.... Protegíamos assassinos
contrabandistas quando nos favorecia política e economicamente.

TIBÉRIO VACARIANO: Mentira! Mentira! (Ergue-se levando a Dr. Lazarína


consigo). Você não tem autoridade para falar isso porque está morto e podre.

DR. MIRABEAU: Ninguém tem o direito de fazer acusações de tamanha gravidade


sem ter provas!

DR. CÍCERO BRANCO: Provas? Eu tenho e as melhores. Na última licitação para


fornecimento de automóveis para Antares houve uma concorrência entre três
empresas. E advinha, ganhou a que nos deu uma bonificação de trinta por cento
do superfaturamento.

TIBÉRIO: Delegada! Prenda esse homem mentiroso!

DR. MIRABEAU: Como pode um homem que morreu dia 11 depor dia 13?
Nenhum tribunal no mundo aceita esse depoimento.

DR. CÍCERO BRANCO: Prefeito o senhor não deve ter notado um vaso na sua
mesa; dentro dele tinha um pequeno microfone que gravou nossa conversa. Até
mesmo o mais esperto Tibério que nunca assina documentos caiu nessa ratoeira.

Tibério Vacariano arranca o estetoscópio da mão de sua médica e arremessa em


Cícero

DR. CÍCERO BRANCO: Que serventia tem isso para um cadáver? (Joga o no
chão).

DR. MIRABEAU: Tudo isso é uma invencionice para desmoralizar essas


autoridades!

DR. CÍCERO BRANCO: Vou fazer mais uma denúncia, o dinheiro que vinha para
eles era escondido da receita, muitas vezes recebia valores para depositar. Como
não tenho filhos, tudo meu foi diretamente para minha esposa Hoje voltando do
cemitério peguei minha digníssima na cama com um mocinho. E vocês rapazes se
também quiserem o endereço é Rua do Carmo, 124. A faixa de idade de
preferência vai dos 16 aos 24. Mas enfim, tenho aqui os documentos que
comprovam tudo o que falei. (Joga o no chão).

TIBÉRIO VACARIANO: A lei é clara né? Ninguém pode depor depois de morto.
(Enquanto toma os documentos do promotor e rasga em vários pedaços).

DR. CÍCERO BRANCO: Esse gesto do senhor Vacariano só veio confirmar o que
sabemos. Um velho corrupto, ditador e egocêntrico. (Gritos e aplausos).

TIBÉRIO VACARIANO: Delegada onde estão seus homens que não dispersam
esses lacaios de Moscou? (Uma voz sai da plateia “Como vai a Cléo coronel? ”).
O meu revolver! Quero matar esses maconheiros!

DR. CÍCERO BRANCO: Todos sabem que o Coronel é líder do grupo dos
legionários da cruz, cujo lema é Deus, Pátria, Família e Propriedade. Mas o velho
Vacariano não reza há muito tempo, nem vai à missa. E ainda transgride os
mandamentos. Furta dinheiro público e mantém uma mulher ilegítima em outra
casa na cidade.

TIBÉRIO VACARIANO: Canalha! Pústula! Crápula! (Olha para Dona Quitéria).


Quita! Quita! Não te lembras mais do teu velho amigo? Estás sendo explorada por
esse patife sem escrúpulos. Ele está usando sua imagem. Fala Quita! Conte ao
povo quem ele é de verdade!

QUITÉRIA CAMPOLARGO: Tibé, está muito enganado. Não tenho mais nada a
ver com vocês, hoje de manhã quando passei em minha casa tive a maior
desilusão da minha vida. Encontrei minhas filhas e genros discutindo pela partilha
de minhas joias...das joias que pedi que fossem enterradas comigo, joias de muito
valor emocional. E compreendi que por tudo eles iriam brigar, até pelo menor
pedaço de terra. Vi que dão mais valor aos objetos do que a vida. (Seguida de
aplausos e apoios de “Quita! Quita! Quita é a maior...”)

TIBÉRIO VACARIANO: Dona Quita! Mal-educados (Olhando para os jovens).

DONA QUITÉRIA: Ora! Deixa os meninos em paz.

BARCELONA: Não me apresento, pois todos nessa cidade já me conhecem, o


que vou dizer é pouco mas vale a pena ser ouvido. No meu tempo de vivo ficava
furioso quando a cretina da delegada Inocência Pigarça me confundia com os
comunistas, esses piolhos de Karl Marx.

TIBÉRIO VACARIANO: Cala a boca!

BARCELONA: Não sou nenhum moralista, cada um deve fazer o quer com seu
sexo e seu corpo. Mas se tem uma coisa que não aguento são os fariseus, os
falsos moralistas, que mentem e enganam. E essa cidade está cheia disso. Quem
não sabe que a dona do puteiro, a Venusta fornece as franguinhas para o nosso
honrado Vacariano? (Os jovens começam a gritar).
DR. CÍCERO BRANCO: Basta! Tenho algo sério a tratar.

BARCELONA: Está bem, mas permita que a testemunha mais importante fale.
Tem a palavra a nossa companheira Erotildes.

DR. MIRABEAU: Ninguém está interessado no que está decaída vai dizer.

DR. CÍCERO BRANCO: Queira ou não, você vai ouvir. Venha até aqui, menina!

BARCELONA: Os habitantes mais antigos da cidade devem lembrar da época em


que ela era uma das putas mais bonitas de Antares, uma das mais concorridas.
Fale Erotildes.

EROTILDES: Quando cheguei aqui sem nada fui para a cama com o primeiro
homem que me ofereceu dinheiro. E logo já tinha clientes.

BARCELONA: E se lembra de alguém?

EROTILDES: Fui por cinco anos amante do Coronel Vacariano. Ele montou uma
casa para mim, mas quando fiquei velha ele logo me largou e nunca mais me deu
sequer um vintém.

TIBÉRIO VACARIANO: Não devo prestar contas a ninguém, ninguém cuida do


meu sexo. Cuido de todas as minhas partes. (Saem gargalhadas das arvores).

EROTILDES: Logo depois houve uma queda, fazia meu serviço por cinco mil-réis.
Em uma noite fria arrumei uma tísica. Depois só fui para o hospital... não me
lembro o nome.

DR.CÍCERO BRANCO: Para o Salvador Mundi, ala dos indigentes

BARCELONA: Poderia estar viva se a Dra. Lázarina não tivesse esquecido de


mandar buscar um remédio. Mas afinal, quem é Erotildes? Se fosse uma pessoa
importante, um pagante...

DRA. LÁZARA: Eu explico! Pelo amor de Deus, me escutem! Sou uma mulher
honrada. Essa criatura já entrou mais morta do que viva no hospital. Coronel
Vacariano o senhor sabe que faço caridade, não faço acepção de classes.
(“Mentira, Mentira, Mentira!” berram os jovens).

DR. CÍCERO BRANCO: Volte para o seu lugar. Pudim, quer falar?

PUDIM DE CACHAÇA: Não vou acusar ninguém. Só quero pedir ao juiz de direito
e ao promotor que não condenem minha mulher, se ela me envenenou é porque
eu que nunca prestei para ela. Chegava em casa tarde e bêbado e ainda batia na
pobre Natalina. (Acompanhado de palmas dos jovens com “Pudim, Pudim”).
DR. CÍCERO BRANCO: Atenção! Chegou a hora de João Paz. (João vem para a
frente dos mortos). Povo de Antares, vejam a operação plástica que a Delegada
Inocência Pigarça e seus carrascos fizeram com Joãozinho.

DELEGADA: Mentira! Calúnia! (Seguido da multidão “Bandida! Bandida! ”).

DR. CÍCERO BRANCO: Me digam se alguém reconhece nesse monte de carne


batida o nosso Joãozinho Paz! Dra. Lázarina! Médicos de Antares! Fica assim
quem morre de embolia pulmonar?

JOÃO PAZ: Há alguns dias atrás fui preso sobre a falsa acusação de liderar um
grupo de guerrilheiros esquerdistas. Fui levado ao porão da delegacia e
questionado sobre o grupo, por não ter respostas que não existem, fui
violentamente torturado.

TIBÉRIO VACARIANO: Isso é verdade? (Pergunta ao prefeito).

PREFEITO VIVALDINO: Eu não sei...não sei de nada.

BARCELONA: Mentira, todos sabemos que você sempre deu carta branca a sua
delegada.

JOÃO PAZ: “Quem são os outros dez?”, quando eu respondia que não sabia era
brutalmente espancado por vários homens.

TIBÉRIO VACARIANO: Basta de infâmias!

DR. CÍCERO BRANCO: Não Terminamos ainda. Esse olho foi quase arrancado
por um golpe de soqueira. De quem João?

JOÃO PAZ: Da própria delegada. Agora senhoras e senhores, usem a


imaginação. Eu desmaiei duas vezes e fui revivido com água gelada. Na fase
seguinte levei pauladas que quebraram meu braço em três lugares. Mas não
acabou, enfiaram-me um fio de cobre em meu ânus e aplicaram-me choques
elétricos, enfiaram minha cabeça em um balde de água até quase me afogarem.
Um dos torturadores aumentou a dose do choque e meu coração parou.

MENANDRO OLINDA: Cheguem disso! Estou cansado desse lado nojento do ser
humano. Só quero entrar no sono da morte.

DONA QUITÉRIA: Mal sabes que aqui será melhor que tua eternidade.

MENANDRO OLINDA: Será que existe mesmo essa eternidade?

DR CÍCERO BRANCO: Aguardem! Logo terão suas respostas. Povo de Antares,


não temos mais nada a dizer. (E voltam para os seus lugares e ficam imóveis.
Todos se revoltam contra os mortos e começam a jogar coisas neles que se
incomodam).

CÍCERO BRANCO: Parem! Parem!

REBELDE: Cessar fogo! Cessar fogo!

CÍCERO BRANCO: Me deem cinco minutos de trégua para consultar meus


constituintes!

(Cícero vai até Dona Quita)

CÍCERO BRANCO: Dona Quitéria, agora, mais do que nunca estou convencido de
que somos considerados indesejáveis em Antares. Nossa presença na realidade
só tem trazido desavenças e desuniões.

DONA QUITÉRIA: É muito triste a gente descobrir depois de morta que não é
querida nem respeitada na sua terra natal.

BARCELONA: Mas que é que você propõe?

DONA QUITÉRIA: Proponho que voltemos todos imediatamente para os nossos


caixões.

BARCELONA: Mas... e a greve?

DONA QUITÉRIA: Ora, que os vivos cuidem dos vivos. E enterrem os mortos
quando puderem. Está em votação a proposta de abandonar incondicionalmente
nossas posições sem mais delongas. Quem estiver de acordo levante a mão.
(Todos levantam as mãos).

CÍCERO BRANCO: Entendemos a situação. Informo que vamos voltar para os


nossos esquifes.

(Os mortos caminham um pouco e Menandro se pronuncia)

MENANDRO OLINDA: Cidade sem alma! Cidade cruel! Cidade sem amor! O que
falta é a música! Falta a leitura! Vocês são uma sociedade vazia sem compaixão
que não sabem apreciar a arte! Aprendam a preencher esse vazio sujo dentro de
vocês! São uns porcos que só querem saber de prazeres carnais! São uns
imundos! Eu sinto nojo de todos vocês!

(Os mortos vão andando em direção ao cemitério)

CENA 7
(Na manhã seguinte após os mortos voltarem para seus devidos caixões, aparece
a repórter para cobrir o incidente e acaba indo entrevistar Mendes)

REPÓRTER: Boa tarde, sou repórter do jornal correio da manhã, de Porto Alegre.
Você pode me responder uma pergunta? Afinal, onde estão os mortos?

MENDES: Ora, no cemitério. Vocês caíram mesmo no nosso conto, hem?

REPÓRTER: Como assim? Um conto?

MENDES: Minha filha, então você, uma moça inteligente e instruída, engoliu essa
potoca de que sete defuntos se levantaram de seus caixões e vieram caminhando
até à praça para conversar com os vivos?

REPÓRTER: Bom, acreditar mesmo nós não acreditamos. Viemos aqui averiguar
o que houve. Porque algo houve, não me diga que não. Foi a senhora quem
telefonou ao nosso diretor, contando o fato...

MENDES: É que no outono do ano que vem pretendemos organizar aqui em


Antares uma feira agropastoril e precisamos chamar a atenção de todo o Brasil
para a nossa cidade...

REPÓRTER: Então tudo isso não passa de uma mentira apenas para promover a
cidade?

MENDES: Sim. Eu sei que fiz você vir aqui a toa mas fique tranquila, eu irei
bancar tudo. Já almoçou? Não? Pois tem um restaurante aqui perto que faz um
churrasco delicioso.

REPÓRTER: Tudo bem, vai indo na frente que eu chego até você daqui a pouco,
irei só resolver um problema. Alo. Sim, o pessoal dessa cidade é louco, perda de
tempo. Mais tarde eu volto aí pra civilização.

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