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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 74 - Distribuição gratuita - www.suplementopernambuco.com.

br

RICARDO MOURA
A PASSAGEM POR PERNAMBUCO DO PENSADOR,
QUE SE VIU ENTRE CARRINHOS DE RASPA-RASPA
E ACUSAÇÕES DE DESRESPEITAR MARX

RICARDO LÍSIAS | ENTREVISTA COM MAURO VENTURA | JOSÉ LUÍS PEIXOTO

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PERNAMBUCO, ABRIL 2012

GALERIA

JA Í N E CI N T R A
“Quatro dias depois de estar no Porto (Portugal), num domingo, tive coragem de enfrentar os 8 graus
de uma frente fria que também havia acabado de chegar. Achar uma declaracão de amor com vista
para o Rio Douro, numa ponte interditada para reformas, me fez acreditar em tempos melhores. E eu
não estava errada.”

www.blogarte.multiply.com
jainecintra.com

C A RTA DO E DI TOR SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO


Adriana Dória Matos

A cena é forte e é descrita com todas as suas sentava. O trabalho de Fabiana só ressalta o SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO
Luiz Arrais
sensações térmicas e emocionais: “Michel compromisso do Pernambuco em recuperar
Foucault acabara de escrever A história da se- não apenas a nossa literatura, mas também GOVERNO DO ESTADO EDIÇÃO
xualidade (Vol. 1) - A vontade de saber quando, em parte da nossa história. Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani
DE PERNAMBUCO
um mês de novembro de 1976, colocou os Ainda nesta edição, publicamos uma do-
Governador REDAÇÃO
pés franceses na areia da praia do Pina. Na bradinha com o escritor paulistano Ricardo Mariza Pontes, Debóra Nascimento, Ingrid Melo,
Eduardo Campos
cabeça careca ainda circulavam palavras e Lísias, um dos nomes mais representativos Mariana Oliveira e Marco Polo
coisas como presbiófilos, mulheres disparêu- da nova safra da literatura brasileira. Lísias
nicas, ginecomastos, invertidos sexoestéticos, comenta detalhes do seu novíssimo romance, Secretário da Casa Civil ARTE, FOTOGRAFIA E REVISÃO
Francisco Tadeu Barbosa de Alencar Gilson Oliveira, Janio Santos, Karina Freitas,
automonossexualistas. Acrescentou à lista O céu dos suicidas, na seção bastidores, obra Militão Marques e Sebastião Corrêa
de problemas/perversões cuidadosamente movida por tensões ficcionais e biográficas.
normatizadas algumas importantes ima- Um trecho da obra é publicada em Inéditos. COMPANHIA EDITORA PRODUÇÃO GRÁFICA
Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves
gens. 1 - Homem vendendo algodão doce; Sua trama foi movida pelo suicídio de um DE PERNAMBUCO – CEPE e Sóstenes Fernandes
2 - Garota expondo a Grande Bunda aos céus; dos melhores amigos do escritor. “Com ex- Presidente
3 - Menino rolando na areia; 4 - Jovens bei- ceção da minha família, o André foi a única Leda Alves MARKETING E PUBLICIDADE
jando-se dentro d’água; 5 - Senhora fritando pessoa que esteve no lançamento dos meus Alexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvão
Diretor de Produção e Edição
peixe; 6 - Rapaz moreno forte de short baixo, três primeiros livros. A gente era amigo de Ricardo Melo COMERCIAL E CIRCULAÇÃO
de “physionomie agréable” (no português conversar até tarde, andar de bicicleta de noite Diretor Administrativo e Financeiro Gilberto Silva
atual simplifica-se para ‘gostoso’).” e falar das meninas. Outras coisas só tenho
Bráulio Meneses
É assim que tem início a matéria de capa coragem de contar na ficção”, revela o autor
da nossa edição de abril: a recuperação que em seu depoimento.
a jornalista Fabiana Moraes fez da passagem Ronaldo Bressane volta a colaborar com CONSELHO EDITORIAL
por Pernambuco de um dos maiores nomes o Pernambuco com um perfil revelador da Everardo Norões (presidente) PERNAMBUCO é uma publicação da
do pensamento francês do século passado. escritora e crítica Vilma Arêas, que fala sem Antônio Portela Companhia Editora de Pernambuco – CEPE
Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
Foucault esteve entre os cartões-postais do rodeios sobre política e Clarice Lispector. Lourival Holanda CEP: 50100-140
Recife e Olinda e vivenciou um misto de fas- Nelly Medeiros de Carvalho Contatos com a Redação
cínio e medo diante do que sua figura repre- Boa leitura e até o próximo mês. Pedro Américo de Farias 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br

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BASTIDORES

Por um paraíso
RICARDO MOURA

sem qualquer
condenação
Para bem longe do olhar
trágico das religiões sobre os
suicidas e sem se importar
com os limites da ficção,
escritor paulistano lança o
seu livro mais ambicioso

Prata, em Buenos Aires, uma camiseta linda que ele


Ricardo Lísias
tinha me dado. O André só comprava presente bom.
Ele dizia que era um cavaleiro templário. Minhas
Em 2008, quando eu estava me preparando para co- namoradas o adoravam. Quando conheceu a K.,
locar um ponto final em O livro dos mandarins, recebi um ajoelhou-se e entregou uma flor que carregava na
telefonema desgraçado: “Ricardo, o André se matou”. mochila. A S. o achava um charme. No começo, isso
Para fazer faculdade, fui morar no interior. Os me deixava intranquilo, já que o André era muito
amigos tornam-se a nossa família. O André era bonito. Os olhos dele, antes da tragédia toda, paravam
um dos meus irmãos. Depois, a gente se formou o trânsito, como se diz aqui em São Paulo.
CARTUNS e cada um foi para o seu lado. A piada no último Quando voltei a escrever, depois do descanso que
CARAMURÚ BAUMGARTNER mês de curso era a expressão “procurar a própria tiro entre cada livro, percebi que estava com um pro-
HTTP://CARGOCOLLECTIVE.COM/CARAMURU história”. Ele ficou em Campinas dando aula em blema: eu só conseguia falar do meu amigo. A pro-
um colégio importante. Voltei para São Paulo de- pósito, dois dos textos desse período saíram aqui no
cidido a investir tudo na ficção. Mesmo assim a Pernambuco mesmo. Tentei escrever um conto nar-
gente se encontrava no mínimo uma vez por mês. rado por um suicida, mas não deu certo. Fiz algumas
Eu o conheci há dez anos. pesquisas e descobri como as religiões, por exemplo,
Com exceção da minha família, o André foi a são violentíssimas com os suicidas. Acho que tenho
única pessoa que esteve no lançamento dos meus algo importante para dizer: a gente não sabe.
três primeiros livros. A gente era amigo de conversar O assunto começou a me dominar. Lembro que
até tarde, andar de bicicleta de noite e falar das me- eu não aceitava ninguém colocando qualquer pro-
ninas. Outras coisas só tenho coragem de contar na blema em um suicida. Comecei a ficar muito ner-
ficção. Com o passar dos anos, sinto cada vez mais voso e, como se não houvesse outra saída, planejei
dificuldade para encontrar proteção. Li Coetzee pela O céu dos suicidas. Primeiro, eu era um escritor, autor
primeira vez por indicação dele. Também retribuí, de Duas praças e O livro dos mandarins. Não deu certo
mas não deu tempo: André, você tem que ler Noturno de novo. Então, virei um especialista em coleções.
do Chile. Ele comprou, mas antes de abrir resolveu ir Já tive os meus selos, é verdade, e nesse momento
para um lugar que eu não conheço. estou concentrado ajuntando camisetas de corrida.
Não sei quanto tempo ele planejou essa via- Mas não vou dizer o que O céu dos suicidas tem de
gem. Sobre isso, nunca falamos. Quando fui para não ficção. É um segredo que quero ter com o meu
Budapeste, ele pediu um livro em húngaro. Da amigão. O nada seria a resposta mais cômoda, mas
Austrália, trouxe um marcador de livro com mo- eu tenho medo dessa palavra.
tivos aborígenes. Buenos Aires, apesar de nunca Escrevi o romance em meio a uma enorme crise
ter saído do Brasil, ele conhecia tão bem como eu. existencial, emocional e afetiva durante todo o ano
Tínhamos personalidades diferentes: fui conhecer de 2011. Se o André estivesse aqui, ele teria me aju-
o mundo; ele viajou para um outro. dado. Eu não soube o que fazer no pior momento da
Nos primeiros meses depois do telefonema, ra- vida dele. Ainda sinto alguma culpa, embora tenha
cionalizei. Não pensei muito no assunto. Terminei conseguido elaborar muita coisa. Os livros cercam
e publiquei o meu livro. Fui dar aula para arranjar todas as paredes do galpão onde moro porque eles
dinheiro e pagar as dívidas que a trabalhosa re- me protegem. Aqui atrás, ninguém me derruba.
dação de O livro dos mandarins me causou. Também
achei que um ato simbólico me separaria com mais Veja trechos do novo livro de Ricardo Lísias na seção
facilidade do meu grande amigo: joguei no Rio da de Inéditos

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RESENHA

Chef relutante
JANIO SANTOS

e uma escritora
bem persistente
Gabrielle Hamilton prova
que os caminhos, sabores e
palavras sabem se misturar
Renata do Amaral

Um prato de comida não é apenas um prato de “denúncia” e surpresa que fez a celebridade do
comida: traz em si ingredientes como cultura, afe- então chef do Les Halles.
to e memória. A chef Gabrielle Hamilton, autora Sim, Gabrielle teve várias namoradas, usou coca-
de Sangue, ossos & manteiga: a educação involuntária de ína e até passou fome, mas quem espera ver cenas
uma chef relutante, sabe bem disso. Seu livro auto- de sexo, drogas e rock’n’roll vai se decepcionar. É
biográfico entrou na lista dos mais vendidos nos o trabalho duro na cozinha que sobressai, em uma
Estados Unidos e vem sendo celebrado como um prosa ora crua, ora amorosa. Mesmo sem entender
dos melhores já escritos sobre cozinha. Exageros à muito bem como foi parar na frente do fogão, os
parte, a obra é mais um sinal de que a gastronomia sinais ficam claros para o leitor desde o início,
há muito deixou de ser assunto secundário para quando ela lembra o cheiro de carneiro assado
virar menu do dia, inclusive na literatura. nas festas da sua infância, na Pensilvânia. Ainda
Como indica o subtítulo, Gabrielle estava longe assim, ela se surpreende quando, aos 34 anos, abre
de ser uma criança que sonhava em usar uma as portas do seu próprio restaurante.
“toque blanche”, aquele chapéu branco de chef, e Bourdain não é o único chef embasbacado com
um dólmã, a roupa tradicional da profissão, quando a pena da moça. “Gabrielle aumentou o potencial
crescesse. Os bicos na cozinha não foram uma es- e elevou o nível dos livros sobre comer e cozinhar.
colha: simplesmente aconteceram. Atualmente no Vou ler este livro para meus filhos e queimar todos
comando do festejado restaurante Prune, em Nova os que escrevi por não serem nada sequer próximos
York, ela não passou por faculdade para aprender deste aqui. Depois vou tentar uma vaga como lavador
a cozinhar, mas fez isso à moda antiga, na prática, de pratos no Prune para aprender com a minha nova
lavando muita louça até chegar ao fogão. rainha”, derrama-se Mario Batali, do Babbo. “As
Já o contato com a literatura não foi nem tão in- histórias que Gabrielle conta aqui são tão adoráveis
voluntário, nem tão relutante: desde pequena ela quanto os pratos maravilhosos que ela prepara dia-
enchia caixas de cadernos com seus escritos, que riamente”, elogia o francês Daniel Boulud.
buscou burilar fazendo um mestrado em ficção pela
Universidade de Michigan, aos 30 anos. Gabrielle já SEM FASTIO
escreveu para revistas cultuadas como a New Yorker A relação complicada com a família é pano de fundo
e foi responsável pela Chef’s Column do jornal The New da história. Quando reencontra a mãe depois de
York Times por oito semanas. Suas colunas também 20 anos sem falar com ela, sequer se lembra ao
são presença constante na antologia anual Best Food certo do motivo do afastamento. O irmão Todd,
Writing, que reúne textos da área. que trabalha em Wall Street e com quem mal fala,
Para Anthony Bourdain, o livro de Gabrielle é é acionado para contratar um advogado quando
o melhor relato já escrito por um chef em todos os ela se envolve em um desvio de dinheiro em um
tempos. (O autor de Cozinha confidencial foi esperto ao restaurante onde era garçonete. A irmã Melissa, por
excluir dessa gama outras “food writers” que nunca outro lado, aparece como quase um anjo da guarda
foram chefs, mas sim ótimas cozinheiras, como M. que surge nos momentos mais difíceis.
F. K. Fisher e Elizabeth David.) No entanto, com- Aos 19 anos, Gabrielle faz um mochilão na Europa
parar os livros de Gabrielle e Bourdain, conhecido naquele que foi, na época, o inverno mais frio do
por mostrar a realidade nua das cozinhas, não leva continente nos últimos 50 anos. Passa por países
muito longe. A abordagem dela não tem o tom de como França e Grécia e lá aprende muito sobre co-

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sobre o artesanal, o local, o orgânico, o blá-blá-blá.


Simplesmente íamos à fazenda e comprávamos leite.”
Com o passar do tempo, o paraíso italiano se
transforma em inferno. E ela fica entediada toda
vez que alguém a conhece e se admira como se ela
tivesse tirado a sorte grande: “Oh! Marido italiano?
Férias na Itália todo ano?” Até a relação com Alda
estremece quando ela começa a perceber não mais
o frescor do molho fervendo nas panelas ou a es-
pessura quase transparente da massa feita à mão,
mas sim o bechamel frio instalado no armário
desde que foi preparado no dia anterior.

CHECKLIST: TER BEBÊ


Dois filhos entram nessa equação e Gabrielle nem
pensa em parar, apesar de perceber que tem limites:
“Embora eu nunca quisesse ou esperasse ser o tipo de
grávida que repousa languidamente à tarde enquanto
coloca fitas de Mozart para tocar perto do útero, ficar
agachada no tapete da cozinha com uma esponja
verde cheia de sabão, chacoalhando meu feto com
uma sequência de xingamentos de fazer enrubescer
um caminhoneiro... Bom, com certeza, também não
era essa a mulher que eu queria ser.”
Quando dois funcionários pedem demissão às
vésperas do seu parto, a chef explode. “Ter bebê” é
literalmente mais uma tarefa na sua lista, que inclui
ainda “resolver calda de romã” e “trocar filtros nos
exaustores”. “Em vinte anos de crônica e compulsiva
produção de listas de coisas a fazer, eu havia composto
algumas com sequência francamente beckettiana.
E é exatamente a anomalia dessa sequência – o non
sequitur – que faz algumas daquelas listas merecerem
um lugar em minha caixa de lembranças”, conta.
As jornadas de infindáveis horas em pé na cozi-
nha, no entanto, foram uma boa preparação para a
maternidade, segundo a chef, já acostumada a noites
sem dormir. Tanto que ela prefere ver o copo meio
cheio e não meio vazio: “Em algum momento entre
o filho número um e o filho número dois, chef e pro-
prietária, amamentar e preparar e cozinhar, seguro
contra acidente de trabalho e refrigeração comercial,
aprendi a reavaliar a quantidade de tempo que tenho
para dormir como uma excelente soneca em vez de
uma miserável noite de sono.”
Trocar uma fralda parece amarrar um frango, con-
clui. Rotular alimentos para a escola é o que ela já faz
desde sempre nas câmaras frigoríficas, acredita. “Como
a mulher que está acostumada com sua integridade
mer e cozinhar, além de experimentar o não comer COMIDA DE VERDADE física e pessoal suporta o sentimento de canibalização
pela primeira vez, com os US$ 1,2 mil em traveler’s A inspiração para o Prune vem da simplicidade dos que constantemente pode tomar conta da sua mente
checks rapidamente esgotados. Considera que a sanduíches com manteiga e açúcar comidos no lan- quando você amamenta, como se estivesse sendo
fome foi tão importante no processo de se tornar che na infância e do tutano de vitela preparado pela devorada viva, não em pedaços monstruosamente
uma cozinheira como saber lidar com facas – e ser mãe. “Nada de espuma, nem comida ‘conceitual’ ou nojentos, mas como uma legião de delicadas e benig-
alimentada por estranhos passou a ser inspiração ‘intelectual’: apenas as coisas doces, salgadas, amido- nas lagartas fabricando renda a partir de uma folha?”
para o acolhimento dos clientes no Prune. adas, sumarentas, frescas que se deseja comer quando Gabrielle ironiza as pautas das revistas de cozinha,
“Passar tanta fome naquela viagem me levou a se está com fome de verdade. Nada se erguendo do que trazem temas “relevantes” como “o que vestir
passar um tempo tão enorme sonhando com comida, prato, porções generosas, nada de emulsões, nada de em seu restaurante caro favorito” ou “os utensílios
que cada ânsia se tornou fanaticamente peculiar. coquetéis de camarão servidos em copos de martíni de cozinha favoritos do chef”. “É difícil trabalhar
A fome nunca era geral, de apenas algo, qualquer com a pata pendurada para fora da borda.” numa área em que as manchetes são essas. Ou pelo
coisa, para comer. Minha fome se tornou tão espe- Aberto em 1999 “para cozinhar para meus vi- menos eu achava meio desmoralizante pensar que
cífica que eu podia nomear cada um de seus cantos zinhos”, como disse Gabrielle ao New York Times na todo dia minha contribuição mais significativa para
e dobras. Salgado, quente, sumarento, gorduroso, época, o Prune faz sucesso com um cardápio mi- o mundo era fazer ragu de alcachofra em quantidade
doce, seco e crocante, fresco e úmido, e assim por nimalista que em nada remete às experiências da suficiente para o jantar de um ensaio de casamento,
diante.” Antes de aprender a lidar com medidor de cozinha molecular espanhola hoje em voga. É comida naquela noite.” Como se ser mãe e chef não fosse
água ou remoção de lixo, Gabrielle sabia que queria de verdade – com pratos como omelete de parmesão, suficiente, resolveu ser escritora.
dar de comer às pessoas e saciar sua fome. tripa à milanesa e coelho ao molho de vinagre – que Acostumada a servir desde sempre, ela sequer
A experiência da chef relutante se deu nos am- faz parte do menu. A banda Velvet Underground ro- compreende como os cozinheiros podem ser con-
bientes mais variados, como em uma colônia de lando no som completa o cenário. Com essa receita, siderados estrelas pela mídia. “O novo status de chef
férias em Massachusetts, onde ela se encanta com ela foi escolhida a melhor chef de Nova York em 2011 como celebridade me confunde ainda mais. Eu cos-
Emma, uma garota que gosta de vinagre balsâmico, pela James Beard Foundation. tumava ser uma ‘empregada’, chegando pelo elevador
queijo parmesão e pimenta-do-reino. Tudo se Com tantas horas no batente do restaurante, é lá de serviço, respeitando seu pedido de um bife bem
explica quando ela conhece o pai da menina e a que ela conhece Michele, cliente da casa, médico e 11 passado, molho à parte, só um cubo de gelo em seu
ficha cai. “Tem um jeito, um jeito particular, que anos mais velho do que ela. A relação com o marido copo de Smirnoff.” Sem firulas, direta, simples, mas
pessoas que trabalham na área usam para conver- – do encanto inicial às rusgas posteriores – e com a sempre bem cuidada: tanto a comida quanto a prosa
sar umas com as outras sobre comida, e dá para família dele ocupa boa parte do final do livro, com de Gabrielle procuram seguir esse caminho. Não é
dizer, depois de minutos, que eles fazem parte de ênfase ao contato com a sogra Alda. Como Gabrielle uma receita complicada, mas funciona.
sua grande família.” Era Mark Bittman, autor de não fala italiano e Alda não fala inglês, é pela lingua-
livros de receitas. gem da cozinha que as duas se entendem – e como Renata do Amaral é doutoranda em Comunicação Social
Há também passagens por bufês de embrulhar o se entendem! A chef passa a esperar ansiosamente
estômago e fazer o leitor pensar duas vezes antes de pelas férias anuais na vila à beira-mar.
se arriscar a levar a mão ao canapé na próxima festa. No Sul da Itália, mais encantamento, dessa vez por O LIVRO
Não demora para ela se dar conta de que trabalhava um velho feirante. “Claro, estou apaixonada pelo cara Sangue, ossos & manteiga: A educação
há 20 anos na cozinha quase sem querer, desde que banguela com as calças escancaradas. Ele é tudo com involuntária de uma chef relutante
começou a lavar pratos, e lembrar do que ouviu da o que cresci, ele é o fim de uma era, ele é o último Editora Rocco
escritora Jo Carson na faculdade: “Cuidado com o exemplo do que era saber comer e saber plantar. Uma Páginas 352
que você aprende a fazer bem, porque é o que vai época em que simplesmente plantávamos e comíamos, Preço R$ 39,50
fazer pelo resto da vida.” E, pelo menos até agora, e não falávamos tanto sobre o assunto. Quando não
a profecia se concretizou na vida de Gabrielle. ficávamos andando pela cidade toda nos vangloriando

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ENTREVISTA
Mauro Ventura

“Espero que esse


livro nos ajude a
morrer menos”
Misto de reportagem e romance de não ficção, a estreia de
Mauro Ventura, repórter especial de O Globo, reconstrói
uma tragédia comovente da recente história brasileira
FOTO: DIVULGAÇÃO

Como você conseguiu lidar com um


material tão denso durante dois anos?
Ele invadiu a sua vida pessoal? Como
separar as coisas, dormir à noite,
desligar-se de histórias tão tristes e
impressionantes? Cabe ao jornalista,
nesses casos, assumir uma postura
profissional de distanciamento
emocional, semelhante à dos médicos?
Isso é possível, ou mesmo desejável?
Não foi fácil. Ainda mais porque o livro
coincidiu com o nascimento de minha
filha, Alice. Quando comecei o projeto,
minha mulher estava grávida. Então,
passei dois anos e meio ouvindo histórias
trágicas sobre crianças, ao mesmo tempo
em que via minha filha crescer. Ela
funcionava como um contraponto aos
dramas que escutava, mas igualmente
acentuava minha tristeza por aquelas
pessoas que haviam perdido o que de
mais precioso tinham. E olha que o que
está publicado é um pequeno resumo
do que apurei. De qualquer forma, a
experiência de 26 anos em jornalismo,
escutando todo tipo de história,
ajudou a manter o distanciamento.

Lendo o seu livro, eu às vezes percebia


nele certos recursos narrativos
do chamado cinema catástrofe. A
madas ou pisoteadas até a morte — o número, construção afetiva dos personagens, a
Entrevista a Luís Henrique Pellanda claro, é apenas uma estimativa, impossível de reconstituição de suas últimas horas,
confirmar —, e outras centenas, talvez milhares, as coincidências que os levaram à cena
Se você perguntar por aí sobre o incêndio que, saíram feridas ou mutiladas, inclusive — ou da tragédia, o heroísmo moldado pela
há meio século, destruiu o Gran Circo Norte- principalmente — crianças. força das circunstâncias, a superação
-americano em Niterói, é possível que não en- É essa história, prestes a se apagar, que o nascida da necessidade. Como você
contre quem saiba exatamente do que se trata. jornalista Mauro Ventura, repórter especial de chegou a essa forma de contar uma
Pouca gente com menos de 50 anos ouviu falar O Globo, reacendeu em O espetáculo mais triste da história tão dramática e complexa?
do caso e, mesmo entre os mais velhos, qua- Terra, seu primeiro livro. Quem foram as ví- Que opções você descartou? E como
se ninguém se lembra dele a ponto de poder timas? Quem foram os mortos, os feridos, os fez para fugir ao apelo emocional que
reconstruí-lo numa conversa. Aos que não se culpados? Aliás, foi crime ou desleixo? Quais emana de tantas mortes infantis?
envolveram diretamente com a tragédia ou com as implicações políticas do incidente? Como a A estrutura do livro mudou muito.
suas consequências, o incêndio, hoje, é no má- imprensa lidou com a emoção envolvida nos Inicialmente, ele era muito calcado nos
ximo uma recordação remota, um vago registro acontecimentos? Qual foi a real participação do personagens, que iam e voltavam várias
de tristeza. E mesmo a cidade que serviu de palco cirurgião plástico Ivo Pitanguy no atendimento vezes ao longo da história. Mas ficou muito
à catástrofe, na época capital do Estado do Rio aos queimados? E qual a origem do famoso fragmentado, porque na terceira vez que
de Janeiro, traumatizada, parece ter preferido Profeta Gentileza — personagem que via no in- um determinado personagem aparecia
esquecer. No entanto, 503 pessoas foram quei- cêndio do circo uma metáfora do fim do mundo? o leitor provavelmente já não lembrava

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Passei dois anos Nossos jornais têm


e meio ouvindo consciência de que
histórias trágicas a reportagem é o
sobre crianças, diferencial, junto
ao mesmo tempo com a análise
em que via minha mais aprofundada
filha crescer dos fatos
mais quem ele era. Na segunda jornal o que falaram em voz grande quanto a que ficou para ter ateado fogo ao circo, num episódio desse tipo de jornalismo?
versão, isso mudou. Eu alta. Imagine num livro. a história. Pitanguy preferiu duvidoso) com problemas Concordo com o termo, e é
agrupei as histórias o máximo Mas esse retorno tem sido minimizar a polêmica, dizendo mentais. Ninguém falou nada exatamente o que tentei fazer,
possível. Mas ainda assim o o melhor possível. Alguns que era muita gente ajudando, comigo sobre o livro servir de um romance de não ficção,
livro continuou fragmentado exemplos de frases que tenho em sistema de mutirão. base para alguma ação judicial. ou seja, dar uma estrutura
por causa de outro problema: ouvido: “Tô maravilhada com de romance à reconstituição
os personagens serviam de tantas verdades”; “Não senti A impressão que se tem ao ler Dequinha morreu de um episódio real. Não sei
introdução aos temas. Assim, em momento algum que o livro é a de que nenhuma assassinado. E sobre Pardal se consegui, mas me sentiria
para falar do tratamento de você estava aumentando”; das vítimas, na época, e Bigode (condenados como honrado de pertencer a esse
queimados eu começava “É uma verdade radical a pensou em se organizar para cúmplices), não há mesmo gênero. A grande reportagem
usando um exemplo, para que você contou”; “É uma buscar indenizações junto nenhum registro? Não se sabe brasileira já viveu melhores
depois partir para a explicação. dívida que se tinha e que aos proprietários do circo o que aconteceu com eles? dias. É bem verdade que
Também mudei isso. Passei a você está ajudando a pagar”; ou ao município, mesmo não O que o Estado tem a dizer você tem a Piauí e mais
iniciar com as explicações para “O livro vai ajudar a gente acreditando na versão oficial a um jornalista a respeito alguns espaços nobres, mas é
depois partir para os exemplos. a morrer um pouco menos, de que o incêndio teria sido de uma lacuna tão grande? pouco se considerarmos que
Com relação ao texto, como o porque o esquecimento é criminoso. Durante o período Não há nenhum registro dos antigamente havia revistas
tema era muito denso eu tentei uma segunda morte”. de pesquisa, essa ideia não dois. E sobre Dequinha só há como Realidade e O Cruzeiro,
ao máximo não exacerbar ocorreu a nenhum de seus porque os jornais noticiaram e mais espaço nos jornais.
esse peso. E, sempre que Quando o livro trata da entrevistados? O desejo suas tentativas de liberdade Em termos investigativos,
carregava no drama, tentava participação de Ivo Pitanguy geral ainda é o de “esquecer” condicional, sua fuga, admiro Chico Otávio, Antonio
logo em seguida emendar no episódio, e das acusações legalmente o que houve? sua morte. E consegui um Werneck e Vera Araújo,
com algo mais leve, para de que ele teria aproveitado Ninguém depositou sobre entrevistado que se lembrava meus colegas do Globo.
dar um alívio para o leitor. para se promover a partir do você novas expectativas de sua passagem pela prisão. Gosto também da Eliane
trabalho com os pacientes de justiça ou reparação? Eu passei dois anos tentando Brum e do Geneton Moraes
Você diz no próprio livro de Niterói, entramos num Nenhuma das vítimas com encontrar a peça básica dessa Neto. Mas acho que nossos
que, pelo menos de início, terreno bastante espinhoso, quem conversei pensou história, o processo judicial, jornais têm consciência de
enfrentou dificuldades difícil de percorrer. Como em recorrer à justiça — e com todos os depoimentos e que a reportagem é o grande
para conversar com os foi abordar esse assunto nenhuma delas sabe de a investigação, sem sucesso. diferencial, junto com a análise
sobreviventes da tragédia. com a comunidade médica? alguém que tenha pensado E olha que tive o apoio do mais aprofundada dos fatos.
Poucos queriam falar sobre E o próprio Pitanguy, falou nisso. Imagino que por vários Tribunal de Justiça nessa Porque a informação bruta
o assunto. E depois de com você sobre isso? motivos. Primeiro, porque na empreitada. Eles vasculharam você encontra em qualquer
publicada a obra? Você já Essa questão perpassou o época não havia essa cultura. tudo, mas ele simplesmente lugar. E acho que tem havido
teve alguma resposta desses livro desde o início. Teve um Segundo, porque não foi criada desapareceu. E se tratava do uma preocupação de alterar
leitores-personagens? Eles o médico que inicialmente se nenhuma associação que caso mais rumoroso do país esse quadro. Como dizia
procuraram, relataram como recusou a participar achando reunisse e lutasse pelos direitos no período. Acredito que, Tomás Eloy Martínez, temos
foi a experiência da leitura? que o livro reproduziria a das vítimas. Terceiro, porque quando houve a fusão do que encontrar formas atraentes
Sim, tenho tido muito retorno, mesma coisa que vinha tinha gente que acreditava Estado do Rio com o Estado da de dar a notícia, é preciso
não só de vítimas como de sendo dita há 50 anos. Eu que o circo era de origem Guanabara, alguém olhou para que os jornalistas “contem
médicos. Eu tinha muito achei importante tratar disso americana, e não ia conseguir aquela pilha de papéis velhos e as histórias de vida real com
medo, porque invadi demais na obra porque vi que era ganhar o processo. Quarto, resolveu jogar tudo no lixo. assombro e plena entrega
a privacidade das pessoas, e um incômodo grande para porque achava que dinheiro de ser, com a obsessão pelo
não sabia como reagiriam ao muitos médicos. Mas era um nenhum pagaria o que se Você concorda com o termo dado preciso e a paciência de
ver exposta uma história que tema delicado, já que vários perdeu. Quinto, porque não “jornalismo literário”? Seu investigadores que caracteriza
elas nunca haviam contado, profissionais só falaram sob a acreditava na versão oficial, livro pertence ao gênero? E os melhores novelistas”.
muitas vezes nem para os condição do anonimato. Tive achava que tinha sido uma como vai a grande reportagem
parentes. Como jornalista, que tomar cuidado para não fatalidade. Ou, se acreditava, brasileira? Você lê (e Luís Henrique Pellanda é jornalis-
estou acostumado a ver os ser injusto, já que Pitanguy achava que não daria em nada admira) quais dos nossos ta e autor de Nós passaremos em
entrevistados se assustarem teve uma participação muito porque se tratava de alguém repórteres? E nossos jornais, branco. Leia entrevista completa
quando sai impresso em importante — embora não tão (Dequinha, condenado após confessar têm incentivado a prática no site: www.suplementope.com.br

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PERNAMBUCO, ABRIL 2012

REPRODUÇÃO

Raimundo
CARRERO

Capitu só existe
na cabeça louca
de Bentinho?
Se Flaubert deu passos expressivos para reformar a a confundir o leitor para a compreensão do caráter
Machado de Assis ajudou a técnica do romance, Machado de Assis não deixou
por menos. O brasileiro lutou para descaracterizar
de Capitu, que surge como uma personagem de
criação indireta. Ou seja, personagem cuja vida

erguer a nossa ideia do que o narrador convencional usando dois narradores


em Dom Casmurro, assim como foi demonstrado por
pertence, em princípio, apenas ao narrador — ou
narradores — sem passar pelo julgamento dos ou-

precisa ser um narrador


Fernando Sabino em O amor de Capitu. Bentinho seria tros personagens —, nem sequer o do autor.
responsável pela narrativa linear, enquanto Dom Assim, Bentinho domina a história, domina as
Casmurro usaria as digressões, as crônicas do Rio de personagens e somente ele pode defini-la. Capitu
Janeiro antigo e as mudanças narrativas, de forma não pode ser defendida por outros personagens
PAULO CARVALHO/DIVULGAÇÃO

GOTAS
Marco Em Haikaiando,Wilson Freire exercita seu minimalismo
Polo em poemas e contos humorísticos, poéticos e trágicos
Médico, poeta, cineasta, escritor, preenche 107 páginas com
compositor, Wilson Freire minipoemas e microcontos em
(foto) nos brinda com mais que, através de jogos de palavras
uma de suas criações. Desta e trocadilhos, faz o leitor sorrir,
vez o divertido Haikaiando, um embora em alguns momentos
livrinho de 12 centímetros de tangencie uma suave poesia,
largura por seis de altura, editado como em “o tempo bicou/ a
pela Candieiro Produções. casca da noite/ e um novo dia

MERCADO Visualmente muito charmoso,


graças às artes de Thiago Cervan,
piou”; ou, de modo mais acre,
em Abusada: “o primeiro foi seu

EDITORIAL e utilizando uma tipologia que


lembra as antigas máquinas
pai/ o segundo seu irmão/ o
terceiro foi aquele...”, pode nos
de escrever manuais, Freire deixar um pouco travados.

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A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
CONSELHO EDITORIAL
e nem mesmo por ela própria, cujas palavras e
revelações também pertencem ao narrador. Mes-
mo no raro diálogo entre os dois, no capítulo 138,
“As pazes fizeram- I Os originais de livros submetidos à Cepe,
exceto aqueles que a Diretoria considera
procura, estrategicamente, falar com o leitor, sem
dar uma verdadeira resposta a ela, distorcendo,
me como a guerra, projetos da própria Editora, são analisados
pelo Conselho Editorial, que delibera a partir
assim, a informação. Se o leitor estiver lembrado, depressa. Buscasse eu dos seguintes critérios:
o diálogo acontece naquele instante em que Capitu
surpreende um possível Dom Casmurro dizendo neste livro a minha
ao menino que não é o pai dele. Aliás, Bentinho 1. Contribuição relevante à cultura.
só se torna Dom Casmurro muito bem depois da glória, e diria que as
morte de Capitu.
O leitor ou o crítico pode muito bem verificar, negociações partiram 2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,
que privilegia:
portanto, que Capitu só existe na mente do narra-
dor. É a Capitu que todos nós conhecemos, miste-
de mim; mas não, foi ela
riosa, frívola e sedutora. Ninguém discute isso em
todo o romance. Só temos algumas informações
que as iniciou. Alguns a) A edição de obras inéditas, escritas ou
traduzidas em português, com
no começo da história, e já na perspectiva de Ben-
tinho. Ele informa e julga. No citado capítulo 138,
instantes depois, como relevância cultural nos vários campos
do conhecimento, suscetíveis de serem
ela pede a Bentinho que prove a traição. Apesar do eu estivesse cabisbaixo, apreciadas pelo leitor e que preencham
travessão — que distingue a mudança de voz —, ele
faz um comentário a respeito de testemunhas na ela abaixou também a os seguintes requisitos: originalidade,
justiça, mas não responde diretamente. Mesmo correção, coerência e criatividade;
assim, o leitor fica convencido da resposta. Uma cabeça, mas voltando
estratégia narrativa sutil e muito criativa. Algo
genial. Creio mesmo que esta é a razão pela qual os olhos para cima a b) A reedição de obras de qualquer gênero
da criação artística ou área do
a personagem não se entrega completamente e
cria o mistério narrativo de Machado, sutilíssimo
fim de ver os meus. Fiz- conhecimento científico,
na arte de seduzir o leitor, sem se expor muito.
Dizendo e escondendo de uma forma muito clara,
me de rogado; depois consideradas fundamentais para o
patrimônio cultural;
mas de alguma maneira obscura, de forma que cria
mistério com os elementos internos da narrativa.
quis levantar-me para
E com imensa facilidade. Neste caso, basta colocar ir embora, mas nem 3. O Conselho não acolhe teses ou
dissertações sem as modificações
um travessão, naquilo que pode ser apenas um
comentário do narrador na voz do personagem. me levantei; nem sei necessárias à edição e que contemple a
Em Madame Bovary, Emma está sempre exposta ampliação do universo de leitores, visando a
aos comentários: as ações são reais e os amantes se iria. Capitu fixou-me democratização do conhecimento.
existem de verdade. Não é o caso de Capitu. Ela
existe mas o seu caso não é tratado por ninguém: uns olhos tão ternos,
II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá
fora Bentinho ninguém sabe nada, e Bentinho deixa
tudo na sombra, em silêncio e, naquele momento
e a posição os fazia parecer sobre o projeto analisado, que será
grave do diálogo, o autor faz uma modificação
gráfica que satisfaz o leitor, mas não a própria
tão súplices, que me comunicado ao proponente, cabendo à
diretoria da Cepe decidir sobre a publicação.
personagem. É importante ler, criticamente, todo o
capítulo que, por assim dizer, começa no capítulo
deixei ficar, passei-lhe
anterior onde Bentinho vive o drama de matar ou o braço pela cintura, III Os textos devem ser entregues em duas vias,
em papel A4, conforme a nova ortografia, em
não o menino.
Na verdade, ele comprou veneno de rato e está ela pegou-me na fonte Times New Roman, tamanho 12, com
em dúvida se coloca ou não no café da criança que espaço de uma linha e meia, sem rasuras e
corre para ele chamando-o de pai. Ele responde ponta dos dedos, e...” contendo, quando for o caso, índices e
não sou seu pai e é ai que Capitu parece estranha bibliografias apresentados conforme as
e pergunta o que está havendo, Bentinho explica
normas técnicas em vigor.
e é aí que tem início o diálogo. personagem expressa na técnica que Machado de
Isso tudo reforça a ideia da personagem de cria- Assis criou para contar a história. Algo genial, sem
ção indireta. Ninguém comenta, ninguém analisa, dúvida. Machado recorreu à criação de uma nova IV Serão rejeitados originais que atentem contra
ninguém diz nada. Só ele, e é através dele que a e surpreendente técnica para intrigar o leitor, com a Declaração dos Direitos Humanos e
história chega ao leitor. enorme simplicidade, e uma tal simplicidade que fomentem a violência e as diversas formas de
Depois disso podemos responder afirmativa- ainda gera dúvidas nos nossos dias, muito mais de
preconceito.
mente à pergunta “Capitu traiu ou não traiu Ben- um século depois. Está aí a grandeza da técnica na
tinho?”, até porque esta é a vontade do próprio prosa de ficção.
V Os originais devem ser encaminhados à
Presidência da Cepe, para o endereço
indicado a seguir, sob registro de correio ou
protocolo, acompanhados de
correspondência do autor, na qual
informará seu currículo resumido e
endereço para contato.

VI Os originais apresentados para análise não


serão devolvidos.
POESIA NOVIDADES

Daniel Lima terá novo livro Escrituras Editora lança coletânea de 21 jovens poetas
de poemas lançado pela Cepe baianos, revelando qualidade e originalidade
Companhia Editora de Pernambuco
Um novo livro de Daniel Lima A Escrituras Editora, dirigida em bienais e festivais literários.
deverá ser lançado ainda este ano por Raimundo Gadelha, vem A seleção mantém um nível de Presidência (originais para análise)
pela Cepe Editora. Trata-se de mantendo uma atividade qualidade regular, mas alguns Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
um volume todo de sonetos, nos intensa, desde que foi fundada poetas se destacam: Alexandre CEP 50100-140
quais o poeta retoma seus temas em 1994. Um de seus recentes Coutinho, com suas imagens Recife - Pernambuco
existenciais e metafísicos com a lançamentos é Sangue novo, insólitas; Daniel Farias, com
mestria intelectual e sensível de uma coletânea com 21 poetas uma surpreendente maturidade
sempre, acrescida de um rigor baianos nascidos na década de poética; Edson Oliveira, uma grata
formal e uma elegância que 1980, organizada pelo também surpresa por sua originalidade
a forma fixa propicia. O livro atuante José Inácio Vieira de e frescor; e Érica Azevedo, pela
terá prefácio da escritora Luzilá Melo. A maioria dos poetas são contenção e contundência. Uma
Gonçalves Ferreira, que trouxe inéditos em livro, mas possui boa iniciativa da editora, que
o relutante Daniel a público. blogs ou atuam como recitadores poderia contemplar outros estados.

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CAPA

Na “gaiola de ouro”
da nossa consciência
Nos anos 1970, Foucault viu
de perto Recife e Olinda e
certo receio à sua presença
Fabiana Moraes

Michel Foucault acabara de escrever a História da da Pós-Graduação em Sociologia da Universidade


sexualidade (Vol. 1) - A vontade de saber quando, em um Federal de Pernambuco (UFPE), uma das anfitriãs do
mês de novembro de 1976, colocou os pés franceses francês no Recife. Silke conheceu Foucault em Paris,
na areia da praia do Pina. Na cabeça careca ainda onde, ao lado do filósofo Roberto Machado, jantaram
circulavam palavras e coisas como presbiófilos, juntos. “Era um homem agradável.”
mulheres disparêunicas, ginecomastos, invertidos A “gaiola de ouro” a qual o filósofo se referia era o
sexoestéticos, automonossexualistas. Acrescentou Hotel do Sol, onde era comum a presença de franceses
à lista de problemas/perversões cuidadosamente em visita a cidade. Apesar de não ser um local de luxo,
normatizadas algumas importantes imagens. 1 - Ho- o ambiente pareceu talvez asséptico demais, pouco
mem vendendo algodão doce; 2 - Garota expondo a popular demais, Zona Sul demais para um homem
Grande Bunda aos céus; 3 - Menino rolando na areia; que já tinha boa noção do País no qual estava: aquela
4 - Jovens beijando-se dentro d’água; 5 - Senhora era sua quinta e última visita ao Brasil, onde pisou em
fritando peixe; 6 - Rapaz moreno forte de short bai- 1965, 1973, 1974, 1975 e, como citado, em 1976. Foi o
xo, de “physionomie agréable” (no português atual suficiente para entender que não éramos exatamente
simplifica-se para “gostoso”). assépticos, pouco populares e muito menos uma na-
Para um homem que nutria um imenso interesse ção Zona Sul. O Nordeste (Foucault visitou também
pelo mundo que o rodeava, tratava-se de um pequeno Salvador) era, segundo ele escreveu ao companheiro
espetáculo onde o corpo protagonizava a maioria das Daniel Defert, o “verdadeiro Brasil”.
cenas – quando não, tornava-se destino maior do que Foucault estava acostumado a conciliar suas
era vendido em forma de doce, fritura, álcool. Fou- conferências a programas mais mundanos: não
cault ali na Avenida Boa Viagem, tão longe do Collège é segredo que o filósofo apreciava uma boa farra,
de France, tão perto dos carrinhos de raspa-raspa, o que gostava dos centros das grandes cidades, da
olho ávido catalogando aquela novidade em signo mistura, dos bares, dos lugares onde podia final-
plural que o cercava. O que se anunciava como mais mente não ter que responder se era estuturalista,
uma exuberante visita ao país tropical, no entanto, ou pós, ou um salvador, ou um traidor. É verdade
não se confirmou: a praia ensolarada não era apenas o que, se tivesse de responder, o faria: a paixão que
que Foucault esperava. “Ele disse que o colocamos em demonstrava sob tiradas brilhantes ou grandes
uma cage d’or. Acho que esperava um pouco mais de foras em suas conferências não o deixava quando
badalação”, lembra Silke Weber, professora emérita sentava-se à mesa dos botecos.

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RICARDO MOURA

Esteve em vários, principalmente no Rio de Ja- de 1970. Tudo começou em 1975, quando o professor do foi indicado por XXXX, chefe do Departamento de
neiro, onde foi pela primeira vez em 1973, convi- Collège de France esteve em São Paulo, dez anos depois Filosofia da FFCHUSP como professor visitante, para
dado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/ da primeira visita à cidade, onde havia, na faculdade proferir uma série de palestras e apresentar trabalhos
RJ). Já na primeira visita dirigiu-se à Lapa, para de Filosofia da USP, um “bom departamento francês de naquela faculdade. Na assembleia universitária de 3
ele o bairro mais interessante da cidade. Tinha um ultramar”, segundo as jocosas palavras do próprio filó- de outubro de 75, PMF pronunciou discurso sobre
amigo que morava por ali, Hamilton, em cujo apar- sofo. Ele realizava, naquele mês de outubro, uma série possíveis torturas sofridas por estudantes e professores
tamento, localizado em um prédio pobre, esteve de conferências sobre psiquiatria e antipsiquiatria no da USP, ressaltando que a liberdade de expressão e
algumas vezes. No Rio, esteve acompanhado por momento em que estudantes, professores e jornalistas de pesquisa são sinais da garantia da liberdade dos
nomes importantes da intelectualidade brasileira: o começaram a ser presos em série. Foucault interrom- povos, além de prestar homenagens à USP por sua
filósofo Roberto Machado e o psicanalista Jurandir peu seu curso na USP e, dois dias depois, o jornalista luta pela justiça. O nominado é considerado um dos
Freire Costa foram alguns deles. Com o compa- Vladimir Herzog era morto. O filósofo participou de maiores filósofos da atualidade e pertence à corrente
nheiro Daniel Defert, aproveitou os dias aqui para protestos de estudantes (onde fez discurso) e foi, no antimarxista conhecida na França como Democrata
conhecer, em par, a Amazônia e Belo Horizonte, dia 31, ao culto ecumênico na Praça da Sé, realizado Socialista. Foi manobrado a tomar posição contrária ao
onde ministrou conferências em 1973. Na ocasião, em memória a Herzog e com forte presença dos mi- governo na assembleia de 23 de outubro na FAU por
compareceu a uma recepção oferecida por Consuelo litares, que tentavam impedir o acesso à catedral. A XXXXX e XXXX, conhecidas pela ação esquerdista
Albergaria, que o apresentou ao mundo acadêmico professora Heliana Conde (Universidade Estadual do na Faculdade” (o XXXXX funciona para manter em
local. “Foi algo semelhante a uma provação, em que Rio de Janeiro), que está desenvolvendo a pesquisa segredo o nome de pessoas ainda vivas).
deveria ser polido com ‘mulheres em longos trajes Michel Foucault no Brasil: presença, efeitos e ressonâncias, afirma Apesar de acessar livremente o País, a clara postura
de noite’”, escreveu um de seus biógrafos, David que Foucault acreditava que sua próxima vinda ao País do francês contra o Regime Militar teve seus reflexos
Macey. Naquela noite, um caladão Foucault, que seria barrada. Não foi, mas, em todo caso, o filósofo – aqui, sob forma de uma reunião que jamais aconte-
tinha adquirido o gosto pela caipirinha, deve ter se preferiu palestrar em cidades aparentemente menos ceu. Um jantar organizado por um casal local para dar
entediado profundamente com brasileiros da elite visadas pelos militares. Decidiu por Belém, Salvador e as boas-vindas ao pensador-celebridade é o maior
esforçando-se para adquirir um toque francês – as Recife — talvez só tenha sabido depois que a capital de exemplo: a hora do encontro ia se aproximando e os
bandejas de vol-au-vent nas mãos dos garçons não Pernambuco era sede do Comando Militar do Nordeste. convidados começaram a ligar informando, cada um
estavam ali por acaso, naturalmente. O livre acesso ao Brasil, no entanto, era vigiado, como com sua desculpa, que não poderiam comparecer. A
Mas deixemos rapapés e abusos foucaultianos de confirma recente descoberta da pesquisadora Maria anfitriã ligou para Silke Weber para compartilhar o
lado e voltemos a nos hospedar no finado Hotel do Izabel Pitanga que, no Arquivo Nacional, encontrou um constrangimento e informar que estava cancelando
Sol. A estada de Foucault no Recife deve-se em parte documento do Serviço Nacional de Informação (SNI) o jantar. O fato é que vários daqueles que bradavam
à competente ação dos militares brasileiros da década com o seguinte texto: “PMF [Paul-Michel Foucault] o nome de Marx aos quatro ventos tiveram medo de

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CAPA

RICARDO MOURA

se ver associados ao filósofo. Mais difícil admitir: a minha própria periodicidade.” Ganhou mais fãs e Distanciamentos intelectuais à parte, Gadiel Perrusi
clara homossexualidade de Foucault também pa- mais opositores. Ao contrário da maioria daqueles foi um cavalheiro e levou o filósofo para uma série de
recia causar certos melindres. Sobre tal questão — o que tentavam chegar perto da magnífica cabeça do locais, procurando entretê-lo, tarefa que compartilhou
preconceito que burramente eclipsou em alguns o senhor Michel, o professor não era um tributário da com Silke Weber e Maud Fragoso, autora do livro
fato de o senhor Michel ser um consistente pensador graça foucaultiana. “Ele era muito vaidoso e suscetível Mulheres encarceradas. A pesquisadora ficou preocupada
—, vale destacar uma matéria publicada na Folha de a qualquer crítica. Era palavroso demais.” quando todos começaram a se afastar do autor de Vigiar
S. Paulo no momento em que o filósofo estava no Heliana Conde pontua que o filósofo nunca se dis- e punir com medo de levar um beliscão da ditadura. “O
Nordeste, cujo título é Foucault na Bahia, atrás de Eros: se antimarxista, embora, em um momento de raiva, que diabos íamos fazer com Foucault aqui?” Foi uma
“Envolto num proposital anonimato, o ‘maitre à faire’ cansado das mesmas perguntas repetitivas ouvidas espécie de Amazing Race intelectual, onde não faltou
Michel Foucault desembarcou dias atrás em Salvador atração turística para dar conta do tempo livre do
(...). E por lá continua, despreocupado, sem explicar
os motivos reais (se é que existem) desta sua nova
incursão ao Brasil. (...) As mais recentes escavações
A pergunta que respeitado senhor: Perrusi o acompanhou a Igarassu,
onde visitaram a Igreja de São Cosme e Damião, e ao
Convento de Santo Antônio e ao Engenho São João,
do ‘arqueólogo do saber’ estão agora voltadas para
outra de suas curiosas teorias, a da diferenciação
entre a arte erótica (tipicamente oriental) e a prá-
não parava de em Itamaracá. Segundo Perrusi, o intelectual, depois
de várias explicações sobre o funcionamento do en-
genho, não disse uma única palavra no fim da visita.
tica erótica (tipicamente ocidental). (....) Na Bahia,
sabe-se, as coisas se passam de modo único e dife- ecoar pelo circuito “Eu não tive qualquer importância nessa passagem
dele por aqui, fui apenas seu chofer.” Com Silke, ainda

intelectual era “o
rente. Iconoclasta nato, o francês Foucault não está acompanhou Foucault a antiga Casa de Detenção do
deixando por menos em seu périplo baiano: a única Recife, atual Casa da Cultura. O espaço era de especial
companhia por ele julgada conveniente em seus interesse, já que, como conta o professor aposentado,

que diabos íamos


momentos de relax tem sido um guapo rapaz, culto o projeto arquitetônico é de origem francesa, quase
e belo, conhecido naquelas plagas como Paulete. cópia das antigas prisões gaulesas. Mais: o projeto de
Elementar, diria, para quem costuma afirmar ter um Mamede Ferreira (1850) segue o modelo extensamente
prazer quase erótico em sua ‘artesania’”. Foucault
era, sem surpresas, uma persona non grata.
Ao mesmo tempo em que era rechaçado por co-
fazer com Michel estudado por Foucault e seus tantos seguidores, o
panóptico de Jeremy Bentham em 1785, onde vários
indivíduos em cárcere podiam ser observados por
mentários maldosos e fãs acovardados, Foucault
era extremamente assediado por estudantes que
queriam chegar mais perto para ouvir o integran-
Foucault por aqui?” uma única pessoa instalada em uma torre. Havia
um prédio com a mesma ideia em Paris, o Hospital
Lariboisière, de 1839, que o filósofo já conhecia bem.
te do Collège de France. Ele mesmo afirmou que em solo brasileiro, tenha exclamado: “Não conheço “Ele ficou muito interessado na construção, fez várias
nunca havia encontrado, na vida, tantos estudantes esse senhor!” (referia-se, claro, a Marx). “Os focos perguntas”, lembra Silke.
“ávidos em saber” como no Brasil (mesma opinião das criticas de Foucault eram a ‘comunistologia’ — Foucault ainda foi visto em Olinda, passeou pelo
foi dita sobre a Tunísia). Havia, no entanto, uma não obediência dos intelectuais aos ditames dos partidos Alto da Sé, onde viu os músicos, os vendedores de
muito agradável questão: Marx era constantemente comunistas — e o ‘marxismo acadêmico’ — para o artesanato, as tapioqueiras que décadas depois foram
trazido à baila pelos intelectuais e estudantes que o qual só poderia dizer-se marxista aquele que citasse convidadas a sair do local. Dali ele também viu as
procuravam, o que teria aborrecido profundamente infinitamente Marx, enquanto o próprio Foucault, duas cidades irmãs mais uma vez, novamente, como
o visitante. Um daqueles que cutucou o filósofo com que o utilizava, fosse visto como não marxista ou sempre, ensolaradas — e mais uma vez, novamente,
o “Barbudo” durante o minicurso realizado no prédio antimarxista. Embora Foucault sempre tenha dito como sempre, povoadas pelas frituras e pelo álcool,
do Centro de Filosofia e Ciências Humanas foi Gadiel que era impossível, no presente, “ser historiador sem pela roupa curta ou quase inexistente, pelo suor e a
Perrusi, hoje professor aposentado do Programa de ser marxista.” Havia, no entanto, vácuos considerá- pele exposta. Nunca mais voltou ao Nordeste, nem
Pós-Graduação em Sociologia. “Foucault disse que a veis entre os pensamentos dos dois hits acadêmicos, ao Brasil. Morreu oito anos depois, sem conhecer,
trajetória cultural do mundo ocidental havia começa- diz a pesquisadora. “Foucault rejeitava que se me- no Recife, os bares de beira de calçada do Centro,
do na Idade Média, no momento em que se instituiu tesse dialética em tudo, acolhendo outras formas cheios no final de expediente, os turistas que pas-
a confissão católica. Eu pensei ‘ai meu Deus do céu’... de transformação que não a negação; contestava o seavam pela feirinha de Boa Viagem em busca de
e perguntei, com muito cuidado, se nossa trajetória determinismo em última instância pelo econômico, sexo e juventude, os tatuadores que sentavam-se —
não havia começado com a acumulação primitiva do embora não rejeitasse a correlação do econômico tentadores para uns, ameaçadores para outros — ao
capital”, conta. Foucault, que gostava de ter a última com outras instâncias; abominava o ‘marxismo longo da Rua da Aurora. Morreu no dia 25 de junho
palavra, foi enfático. “Eu tenho o direito de criar a humanista’, a seu ver nada marxista, aliás.” de 1984, sabendo que Recife e seu entorno não eram

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PERNAMBUCO, ABRIL 2012

“Quando Foucault volta, já é outro”


o nome “Foucault” não teve problemas com a
Entrevista com Heliana Conde Ditadura em 1965, mas o curso que ministrava
na USP à época foi interrompido devido às
Quando iniciou sua pesquisa a respeito do ações dos militares — estes vigiavam a USP,
filósofo e especificamente quando começou bastante combativa, e ainda situada então na
seu interesse pelas viagens do mesmo? Rua Maria Antônia. Com 1968 e o AI-5, de
Sou psicóloga e leio Foucault desde o início certo aumentou a vigilância sobre professores
dos anos 1980, quando comecei a participar estrangeiros no Brasil. Paralelamente, sob o
de grupos e organizações bastante críticos dos efeito do “ano das barricadas”, também os
percursos históricos dos saberes e práticas caminhos de Foucault se transformaram. Em
psi – Psicologia, Psicossociologia, Psicanálise 1969, ele dirigiu o Departamento de Filosofia
-, inclusive (ou especialmente...) no Brasil. da Universidade Experimental de Vincennes,
Depois disso, jamais abandonei os textos do permanentemente em luta com o governo
filósofo e, embora não o tenha conhecido francês. E desde seu ingresso, em 1970, no
“em corpo”, suas intervenções no campo prestigiado Collège de France, passou a ter fortes
político-cultural atraíram minha atenção vínculos com os movimentos sociais de defesa
mediante a leitura das biografias escritas por dos imigrantes, dos prisioneiros etc, dentre
Didier Eribon e David Macey. Através delas, os quais se pode destacar a fundação, em
“descobri” as cinco visitas feitas ao Brasil, 1971, do GIP (Grupo de Informação sobre as
abordadas por esses biógrafos, como era de se Prisões), que se tornou fonte de inspiração para
esperar, de modo extremamente sucinto. Na as lutas contra as prisões em todo o mundo.
década de 1990, passei a me dedicar à História Sabendo-se que a segunda vinda de Foucault
da Psicologia no Brasil, sempre investigando ao Brasil ocorreu a convite do Departamento
os “contradiscursos” e “contrapoderes” que de Literatura da PUC-RJ, na figura de Affonso
propiciaram/propiciam alguma “respiração” no Romano de Sant’Anna, pode-se supor que
âmbito psi, que é hegemonicamente regulador, houvesse relação entre a distância temporal
normalizador, controlador, invalidador das e o endurecimento do regime. Cabe dizer, no
camadas populares etc. Depois de defender entanto, que depois do Rio de Janeiro, onde
minha tese de Doutorado (USP) sobre a ministrou o curso “A verdade e as formas
História da análise institucional no Brasil, comecei a jurídicas”, que causou grande impacto ao
me perguntar por que não me voltava para a relacionar as ciências humanas aos poderes
presença de Foucault em nosso país, visto que disciplinares característicos das sociedades
ele era, a essa altura, a principal ferramenta modernas, Foucault foi a Belo Horizonte,
de que eu lançava mão para minha forma de a convite de Célio Garcia, pois a UFMG
“escrita da História”, meus cursos na UERJ mantinha um convênio com a Embaixada da
REPRODUÇÃO

e, inclusive, minhas ações eventuais fora da França. Na capital mineira, falou em hospitais
Academia. Elaborei então um projeto voltado psiquiátricos, questionando vigorosamente a
tanto à presença do filósofo em nosso país — “indústria da loucura” então vigente. Sofreu
as cinco visitas, pouco exploradas também sérias críticas então, até mesmo....nas colunas
por autores brasileiros — quanto aos efeitos e sociais da grande imprensa. Sem responder
ressonâncias de seu pensamento em diferentes taxativamente a sua pergunta — as fontes que
disciplinas — psicologia, história, sociologia etc. poderiam contribuir para isso seriam, talvez,
— e práticas — movimentos sociais, imprensa os Serviços de Informação.... —, eu diria que
alternativa, educação etc. Intitulado Michel “quando Foucault volta, já é outro”, e um
Foucault no Brasil: presença, efeitos e ressonâncias, ele “outro” que seria bem mais suspeito que o de
está em andamento, tendo começado em 2009. 1965. Em 1973, a repressão já se afrouxa um
Trabalho com fontes escritas — bibliográficas, pouco — os movimentos de guerrilha estão
artigos na grande imprensa e imprensa nanica, quase dizimados — , mas os combates no
atas de reuniões universitárias, livros e teses Araguaia estão ativos e logo começará a caça
brasileiros sobre Foucault etc. — e entrevistas aos integrantes dos partidos comunistas.
sob o paradigma da história oral — com
pessoas que tiveram contato com Foucault Na sua pesquisa, o que há sobre o
no Brasil e/ou usam a “caixa de ferramentas” Recife? Sobre o que ele falou na cidade?
foucaultiana na academia ou fora dela. E o periplo nordestino foi registrado em
algum documento/texto do filósofo?
Depois de 1965, Foucault veio mais quatro vezes Mediante as entrevistas de Sillke Weber,
seguidas ao Brasil nos anos 1970. Sua não vinda Gadiel Perrusi e Maud Fragoso, ele falou
nos 60, além de 65, tem relação com um período do dispositivo da sexualidade - tema de A
mais intenso de ditadura militar (68, AI-5 etc)? vontade de saber, que seria publicado no mesmo
É um pouco difícil responder a essa questão, ano. A mesma problematização o ocupou
mas as características da primeira visita e a em Salvador (na Faculdade de Filosofia da
própria trajetória de Foucault podem fornecer UBA, em São Lázaro) e na UFPA, em Belém,
algumas luzes. Em 1965, veio a convite de a convite de Benedito Nunes, que Foucault
Gerard Lebrun, professor francês que estava na conhecera quando em férias naquela cidade,
FFCL-USP como parte da “missão francesa” já em 1973. Nunca encontrei referência ao
LEMBRANÇAS que vigorava desde a fundação da Universidade périplo nordestino nos textos de Foucault,
Casa da Cultura, localizada no Centro — época, os anos 1930, em que vieram, por embora nas cartas que escrevia a Defert
do Recife, segue o modelo do panóptico; exemplo, Fernand Braudel e Claude Lévi- ele fale que, ao conhecer o Nordeste, está
recorte do Diario de Pernambuco, Strauss, antes de se tornarem famosos. Em finalmente conhecendo o verdadeiro Brasil,
noticiando a visita do intelectual 1965, Foucault dificilmente seria “suspeito” como lhe diziam os amigos brasileiros da
aos olhos dos militares. Estava terminando de medicina social. Em consulta a Dits et Écrits, as
apenas aquele sol, os engenhos, a Casa de Deten- escrever seu livro As palavras e as coisas e muitos referências de Foucault ao Brasil remetem ao
ção, a Grande Bunda, o peixe frito, o jantar que não o identificavam com o Estruturalismo, que, entusiasmo por transformações políticas que
aconteceu. Sabia que a cidade também era viva no embora tivesse seus praticantes marxistas, viu entre os estudantes — que ele compara
escuro — que era viva, exuberante, complexa e suada era predominantemente visto como quase ao dos estudantes da Tunísia —, bem como
no escuro. Agora está ali, noite e dia, enterrado na o oposto desse último. Foucault já escrevera ao fato de a psiquiatria brasileira contar
região de Ródano-Alpes (Cemitério do Vendeuvre). História da loucura, é claro, mas o livro, de tanto com torturadores (provavelmente se
Agora é ele a atração turística. 1961, não teve impacto político até que fosse refere a Amílcar Lobo, que acompanhou o
descoberto, exatamente a partir desses suplício do deputado Rubens Paiva) quanto
Fabiana Moraes é jornalista e doutora em sociologia. meados dos anos 1960, pelos antipsiquiatras com defensores das liberdades, inclusive
Informações de artigos também realizados ao lado de ingleses (Laing, Cooper etc.) e pela psiquiatria pondo-se à frente das manifestações de 1968
Heliana Conde, pelas professoras Luzia Margareth democrática italiana (Basaglia). Sendo assim, (provavelmente em elogio a Helio Pellegrino).
Rago (Universidade Estadual de Campinas/Unicamp)
e Adriana Maria Brandão Penzim (PUC/MG)

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PERNAMBUCO, ABRIL 2012

PERFIL

Vilma Arêas Vilma Arêas é um azougue. Aos 75 anos, a professora


de literatura brasileira na Unicamp, fluminense de
Campos de Goytacazes, parece ter bem uns 20 a me-
de Vilma. Que refuta qualquer comprometimento
feminista de sua escrita. “A questão de gêneros na
literatura é uma tolice”, exalta-se. “Sou mulher, mas

não esquece
nos, tal o entusiasmo que sustenta suas frases rápidas, para escrever é preciso independência sob todos os
chispadas por leve sotaque carioca. Miúda, lépida, a pontos de vista, sexual e econômica. Mulher tem de
autora de seis livros não para quieta; no sofá em que trabalhar, escolher maridos ou amantes, optar por
se posta para a conversa, joga o corpo para a frente, filhos ou abortos, beber, comer bifes sangrentos… e
depois empertiga-se, então senta-se sobre uma perna, escrever. Aliás, como os homens, os gays, as lésbicas,

nunca, jamais
daí muda para a outra. Tinha acabado de chegar de os transexuais em todas variações. Não será insensa-
um ciclo de palestras em Bruxelas quando recebeu o tez falar em sexo dos textos, quando a noção de sexo
Pernambuco para uma tarde agradável, pontuada por sofre tamanha revolução?”, questiona.
café forte e alfajores no ponto, em seu apartamento no Sobre Clarice, Vilma Arêas, autora do livro de en-
bairro de Higienópolis, São Paulo. Ali, vive sozinha. Ou saios Clarice Lispector com a ponta dos dedos critica a fes-
Escritora revela seu esforço quase: uns cinco mil volumes lhe fazem companhia
– livros em quase todas as paredes, algumas ocupadas
tejada biografia escrita pelo texano Benjamin Moser,
publicada pela editora Cosac Naify. “Não gosto nada.

diante do tempo e fala do por quadros de Sérgio Sister e Paulo Pasta; outras, por
fotos dos três filhos e do segundo e último marido, o
O único dado novo que ele trouxe foi a história da
mãe. Ele chupou muita coisa da Nádia (Battella Gotlib,

seu novo livro de contos


jornalista Fausto Cupertino, morto em 1984 — depois, autora da biografia Clarice, uma vida que se conta). Moser é
Vilma jamais se casou novamente. sedutor, jovem, interessante, mora na Holanda, deve
Ainda hoje fala com enlevo de namorada do ex- ter um ótimo agente. O livro é bem escrito. Mas tudo
-editor do Jornal do Brasil — que, pela militância comu- o que ele interpretou da Clarice está errado. E ele não
Ronaldo Bressane nista, foi preso e torturado pela ditadura em 1975. O conhece o Brasil. Ora, essa história do judaísmo...
terceiro filho, Francisco — as duas primeiras filhas são Clarice não se considerava judia. Era pernambucana,
do casamento anterior, com o promotor Ferdinando carioca, bruxa, jornalista, socialite, diva, artista, dona
Peixoto —, foi “produzido” em pleno cárcere. “Quan- de casa, era uma mistura, uma brasileira. Lembro de
do liberaram a visita íntima, Fausto disse: ‘bora?’”, uma blague que ela soltou quando lhe perguntaram:
ri. “Mas não bote que eu fui comunista, porque não ‘Você acha que os judeus são o povo escolhido?’.
era: tinha pavor daquelas reuniões intermináveis do Foi ferina: ‘Não, o povo escolhido são os alemães.
Partidão”, diz, lembrando a época em que deu aula Afinal, fizeram o que fizeram!’. Frase incrível, não?”,
de Literatura na PUC/Rio. “Hoje me assumo como delicia-se. A admiração pela autora de A hora da estrela
anarcoburguesa”, sorri, enquanto aponta uma foto não permite que a santifique. Na Unicamp, sugeriu
enquadradinha para elogiar a elegância do finado proibir por dez anos que os alunos escrevessem teses
esposo. “Ele estava sempre lendo, como nessa foto... sobre a Clarice. “Só escrevem platitudes. Clarice é
Foi o último homem que amei de verdade”, confessa, pouco conhecida. Virou santa como foi Fernando
para já emendar uma história. “Quando me separei Pessoa, só se aproximam dela para adorar… daí, o
do pai dos meus filhos, minha avó perguntou o mo- texto escapa. É preciso ler sua escrita, abandonar o
tivo. Disse que não o amava mais. ‘Mas então o amor mito”, pede Vilma Arêas.
é necessário?’, me devolveu ela”, conta, citando Entre as memórias de Campos sempre sopra o
uma frase de seu conto Thereza. “A vó tinha frases vento sul. Um tema constante em todos os seus livros.
assim. Fui guardando. Outra que usei também reflete
essa descrença no casamento: ‘Quem é cativo não
ama’. Ela tinha grandes aforismos. Foi uma cativa,
certamente”, conta Vilma.
A autora não tem
Várias dessas histórias pairam em Vento sul, seu
livro de contos recém-lançado pela Companhia das
Letras (110 págs.), o primeiro após dez anos de silên-
a menor pressa
cio narrativo. Mulheres cativas e fêmeas cativantes
são protagonistas de seus violentíssimos relatos. No de escrever seus
finíssimos livros,
terrível República Velha, por exemplo, a prisioneira é
a mulher de um coronel-fazendeiro da região de
Campos, pega no flagra com um funcionário deste,

sua literatura não


um pistoleiro negro. O coronel passa fogo nele e dá
um passa fora nela, tratada como puta. De vingança,
ele passa a transar com toda garota negra que en-
contra. Até que... A história lhe havia sido relatada
por alguém, há muitos anos. “Nunca me esqueci
daquele homem poderoso e do modo como resolveu
é pontuada por
o problema”, diz a professora. “Eu tinha o adultério,
a naturalidade do assassinato do amante, a esquisita
expulsão da mulher, que ele poupou. Daí pus a história
modismos
no tempo da República Velha, pesquisei jornais de “É minha madeleine: o vento me traz as histórias de me-
Campos, observei o jogo das classes e a politicagem nina. Era terrível, soprava forte, estragava a plantação,
da terra, criei a guarnição da anedota, o caráter do trazia aquela chuvarada...”, recorda. A violência da
fazendeiro. Acabei achando um lugar razoável para natureza é sub-reptícia nos confrontos de suas breves
a dramaticidade de seu conservadorismo. Mas foi o narrativas — o patrão contra o empregado, a mulher
personagem, que é bem inteligente, quem arrastou contra o homem, o homem contra o próprio instinto.
a escrita”, descreve Vilma. O processo de criação Alguns desfechos, de tão brutais, tiram o fôlego do
revela: Vilma não tem a menor pressa de escrever leitor. Contudo, a estratégia da escrita de Vilma é
seus finíssimos livros — sua literatura não é pontuada lacunar: opta pela elipse, pela síntese, pelo não-dito.
pelo zeitgeist da moda. Seu livro de estreia, Partidas, foi Nisso, sua linguagem se aparenta à de um amigo a
publicado em 1976, quando já tinha 40 anos. “Vou quem dedica o livro: o poeta mineiro Francisco Alvim.
juntando as ideias, tem coisas muito antigas, retomo Falamos sobre um dos poemas de Alvim de que este
com calma. O último texto desse livro (o enigmático O repórter mais é devoto: o radical Mas, que contém um
vivo o morto), levei cinco anos pra fechar, quase desisti, único verso — “é limpinha”. A professora Vilma faz
e tudo pra escrever duas páginas. Aí li o prefácio de questão de situar o verso naqueles usuais conselhos
um livro do José Antonio Pasta e achei o fio”, relata. do baixo coronelato da classe média, quando trata
Escritora mulher, mas não escritora feminista. Seu de recomendar uma empregada doméstica: “Ela é
texto tem uma poesia áspera, mas nunca panfletária, negra, mas é limpinha”. O preconceito racial — e em
e menos ainda daquilo que negativamente se diz de Vilma o estigma é tratado como enigma, por falar
“poesia feminina” — algo que a má crítica definiria pelo interdito — é território que ela relaciona ao jogo
por rarefeito, fluido, macio. Tributária da prosa seca e de poder ainda colonialista no Brasil do século 21.
aguda da italiana Natalia Ginzburg, Vilma tomou um Como em seu conto Acervo, do livro Trouxa frouxa, em
susto quando leu Clarice Lispector. “A primeira coisa que certo senador maranhense ensina como tratar
que li, A legião estrangeira, me deu um susto com a quali- com presos políticos. O relato finaliza com sentença
dade dos contos. Tive, sim, uma fase de aprender com tirada de antiga legislação do Brasil-Colônia: “Que a
ela, em especial o ritmo. O ritmo é fundamental na prata, a seda e o pão não sejam tocados pelos negros”.
vida: sem ritmo, nada feito. Mas não me influenciou”, Ou como numa narrativa deste Vento Sul, a melancólica
diz — e, de fato, nada menos parecido com a escrita Linhas e trilhos, sobre uma memória de um romance em
sugestiva de Clarice do que as imagens lapidares um trem de subúrbio carioca entre uma professora

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PERNAMBUCO, ABRIL 2012

DIVULGAÇÃO

“Mas Deus não quis. Vicenzo


morreu e ela tentava imaginar
inutilmente o que estava
fazendo enquanto ele escrevia
aquela última carta.
Dias depois o atestado de óbito
dizia “morte por diabetes-
anthiax da nuca-acidose”.
Não dava para entender
quase nada. Aquelas palavras
queriam dizer exatamente
o quê? Ninguém explicou.
Passou a olhar muito uma
foto no cemitério, vestindo
luto fechado, a cabeça coberta
por um véu, colocando flores
no túmulo. Achava que tanto
desespero não ia passar jamais.
Mas passou, levado pelo
tempo. Então ela tocou a vida,
plantando, cuidando dos bichos.
Quebrou o silêncio um
dia, quando uma jovem
da família se separou do
marido. E perguntou.
Mas por quê? Um homem
tão bonito, tão preparado.
A moça atalhou. A gente
não se amava mais.
A surpresa acendeu,
violenta, os olhos castanhos.
Não se conteve.
Então o amor é necessário?
Houve um longo silêncio.
Talvez Thereza tivesse pensado
em dizer à moça um dos ditados
que mais gostava de repetir:
quem é cativo não ama.
Mas não disse.”
Trecho do conto Thereza,
presente em Vento Sul

branca e um negro “azul de tão retinto”, que a ensina interior de Minas. Arrumou, e ficou uma maravi- por tratarem de um tema que lhe é caro. O qual, para
com galanteria como descer do vagão às seis da tarde. lha. Resolveu depois mandar avaliar. E descobriu si, refuta com fúria. “Todo mundo está preocupado
Vilma Arêas cruza o jogo sadomasoquista dos que tinha pago bem menos do que o relógio valia. com a velhice. É porque nunca houve tantos velhos.
escravocratas colonialistas à tradicional cultura Sabe o que fez? Viajou de volta até a cidadezinha do Já pensou que chatura a velhice acabar, se todo
“cordial” brasileira, que trata na manha e na maciota barbeiro para dar o resto do valor do relógio ao cara mundo ficar jovem pra sempre, e não nascer mais
o preconceito racial, transformado em preconceito — que quase morreu, não acreditou. Isso não existe gente? Freud dizia que as duas experiências básicas
sexual, de classe, econômico — e político. “Lembro hoje, meu pai seria considerado idiota. Graciliano da vida, nascimento e morte, estão fora de alcance.
quando a empregada doméstica ganhou o domingo, devolvia o dinheiro que não usava à prefeitura. Fora Tenho muita curiosidade em relação à morte.” Sobre
não faz muito tempo, foi nos anos 60. Uma vez que sabia escrever seus orçamentos com classe e a Danada, Vilma não duvida: se atrapalhar seu ca-
escutei a amiga da minha mãe se referindo à empre- exatidão”, elogia Vilma. minho, pula fora antes. “Hoje nado, faço ginástica,
gada: ‘Ela está no quarto dela, me vê trabalhando, Sua paixão é a concisão. Por isso refuta escrever caminho, leio, faço tudo. Você me dá 75 anos? Mas
e não vem ajudar! Essa gente não tem amizade’. Que romances. “Os editores me pedem um livro com já combinei com uma médica amiga: se entrar em
tal? Vou colocar isso num conto. Fora que os caras enredo, grande, a sedução do melodrama, do folhe- um túnel sem saída, me dê uma injeção de ar, por
passavam a empregada na cara, né, coisa normal...” tim... Mas teria de achar outro fôlego, outra maneira favor. Não dói nada — e você morre. Claro! Outro
Vilma Arêas não esquece. de respirar. Acho a concisão melhor, não embroma café?”, convida. Claro. Quem não quer mais um
Ela tem terror de esquecer. “Alzheimer é meu o leitor. Não gosto de enrolação. Eu sou uma con- café com Vilma Arêas?
pavor. E tudo conspira a favor do esquecimento. A tista”, afirma-se. Critica o culto ao romance. “Li o
civilização hoje é contra a memória. As máquinas Philip Roth, O animal agonizante, não conhecia. Tem Ronaldo Bressane é escritor, jornalista e autor do
estão tomando lugar, as pessoas confiam tudo ao passagens que não são tão boas... Mas ele tem força. blog impostor.wordpress.com
Google”, critica a elétrica senhora — que ainda Só que não confunda dança com ginástica, por favor:
escreve suas histórias na máquina de escrever, o Roth é um ginasta. Tudo o que faz é construído
para depois revisá-las no computador. Se não se para atingir o leitor, para causar efeito. Dos mo- O LIVRO
olvida de velhos traumas, Vilma Arêas também é dernos, o Elizabeth Costello, do Coetzee, aquele sim é Vento sul
fiel depositária de antigas tradições — que incluem um grande livro, muito melhor que Desonra”, diz a Editora Companhia das Letras
a ética. Daí seu texto apontar para outra escrita tão escritora, que entre os contemporâneos brasileiros Páginas 112
seca esteticamente quanto reta na moral: Graciliano prefere Cadão Volpato e Nuno Ramos. Preço R$ 30,00
Ramos. “Um homem como não se faz mais hoje. Autora de páginas como A paixão de Lia, uma ex-
Vou lhe contar uma história. Está vendo esse relógio cruciante descrição dos últimos dias de uma pobre
de parede? Meu pai comprou numa barbearia no anciã de 90 anos, Vilma diz relevar Roth e Coeetze

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PERNAMBUCO, ABRIL 2012

ARTIGO

Somos todos
JANIO SANTOS

Borges dizia que quando era um rapaz andava sempre


à busca de novas metáforas. Depois descobriu que as
metáforas realmente boas eram sempre as mesmas.

atravessados
O tempo é uma estrada. A morte é o sono. A vida é o
sonho. Novas comparações podiam até causar uma
surpresa inicial, mas nenhuma emoção profunda.
Borges gostava de se referir à ligação entre o tempo
e o espaço com uma metáfora, o labirinto. O tempo-

pelo êxodo
-espaço do labirinto borgeano eram regidos pela
lógica (aiônica) de William James: é impossível que
se transcorra 14 minutos, porque antes é necessário
que tenham se passado sete, e antes de sete, três
minutos e meio, e antes de três e meio, um minuto
José Luís Peixoto e três quartos, “e assim até o fim, até o invisível fim,
por tênues labirintos de tempo”.

ficcionaliza um período Livro (Companhia das Letras), último romance do


escritor José Luís Peixoto lançado no Brasil, é um ro-

crítico da vida portuguesa


mance de metáforas essenciais, um romance sobre
tênues labirintos de tempo. Também deste labirinto
é impossível fugir porque todos os caminhos, ainda
que finjam ir ao norte ou ao sul, levam a Portugal.
Paulo Carvalho Trata-se do primeiro romance sobre a diáspora
portuguesa dos anos 1960 e 1970. Nele sobressai-
-se a ideia (novamente de Borges) de que bastam
dois espelhos opostos para construir um labirinto.
Livro é uma saga de muitas idas e muitas vindas.
Décadas da imigração portuguesa para a França.
Livro circular em muitos aspectos. Labiríntico em
muitos aspectos. Um livro sobre como o desejo e a
falta, também em muitos aspectos, desempenham
um acordo discordante para resultar justamente em
uma história, em uma narrativa, em um romance,
em suma – dobrado e redobrado sobre si, mise en
abyme tão desnorteante quanto admirável.
“O tempo é parte da matéria que constitui a
natureza mais fundamental de qualquer narrati-
va”, comenta o autor português em entrevista ao
Pernambuco. Para Peixoto, ainda que o tempo seja
a respiração — e também aquilo que se aprendeu
com o passado e a perspectiva implícita do futuro -
dele não se exige apenas uma dimensão. “O tempo
depende de mecanismos que são altamente não
lineares, como a memória. Neste livro, o espaço
e o tempo são marcas importantes. O romance é
constituído por uma deslocação tanto no espaço
como no tempo. Há divisões do romance que são
de ambas as ordens, as marcas cronológicas mas,
também, algumas partes que são divididas justa-
mente pelo espaço em que tiveram lugar, como a
fonte ou o quarto”.
Então, Livro é uma cadeia? Um enredamento. No
romance, o desejo de um menino abandonado pela partiu. A dos que ficaram. E, no interior de cada
mãe encontra o destino de uma garota. Persona- uma delas, a falta de quem não viveu diretamente
gens jovens que temem o que desejam, criados por a separação, mas se sente excluído do discurso da
personagens velhos que temeram o que desejaram. diáspora. O romance se movimenta aí, tradutor
A narrativa desenha-se em contorno dessa falta-a- de ecos que só podem ser ouvidos, traumas que
-ser, estendida para além de existências diminutas só podem emergir na fala de gerações seguintes.
(na incapacidade de simbolizar o abandono, Ilídio, “O fato de fazer parte de uma geração que não
esse é o nome do garoto, diz: “a vez em que a D. viveu a emigração em massa, a ditadura ou a guerra
Milú não pagou ao pedreiro”). colonial, por exemplo, foi uma vantagem ao escre-
“A falta está muito presente em tudo o que ver porque não tinha a grande quantidade de cons-
escrevi até o momento. A ausência é o negativo trangimentos que, ainda hoje, impede as pessoas de
da presença, é um elemento bastante concreto falarem abertamente nesses temas e que são parte
daquilo que há. No caso deste romance, no que da explicação porque só com estas páginas surge o
toca à minha intenção, essa ausência tem muito primeiro romance português a narrar diretamente
diretamente que ver com uma marca importante este enorme êxodo dos anos 1960. No qual, entre
da minha geração. Tendo nascido em 1974, no ano 1960 e 1974, só para França, emigraram mais de um
do final da ditadura, faço parte de uma geração que milhão e meio de portugueses, o que significou 15%
se caracteriza bastante por aquilo que não viveu”, de toda a população”, ressalta o autor.
explica Peixoto, ganhador do Prêmio José Saramago 15% da população longe de Portugal e só agora
pelo romance Nenhum olhar (2000). um romance a tratar diretamente dessa saudade
A política surge igualmente de maneira fantas- que turvou o tempo, mas antes de qualquer coi-
mática em Livro. Salazar é um vulto desse Portugal sa, enterrou-se em corações treinados em saudade.
quase medieval, miserável e, no entanto, Salazar “Concordo que a terra seja um elemento funda-
está sem qualquer descontinuidade no ar des- mental neste romance, a ligação ao lugar a que
sa vila distante. Peixoto aproxima-se com muita se pertence, mas parece-me que a terra é algo
delicadeza dessa ausência física de poder que, no que depende diretamente do tempo. A terra é a
entanto, não deixa de ser eficaz porque sufocante. eternidade. A terra é o antes e o depois de nós”.
“Essa é a expressão da visão que tenho desse tem- Livro é rural e sua diáspora não é estranha a um
po histórico que não vivi. Salazar e o seu regime, leitor brasileiro e nordestino, sequer na manei-
parece-me, era como uma espécie de cor que tingia ra como os portugueses migraram para a França:
o ar. Principalmente, quando considerado pelos na caçamba de carros, sob lonas, empoleirados,
olhos de personagens como as deste romance, que como em um pau de arara. O sertão é em todo
não lidavam diretamente com a política, como o lugar? “Creio que as ligações que possam existir
próprio regime esperava do seu povo, mas que, entre aquilo que descrevi e a experiência do Nor-
claro, eram vítimas dessa situação.” deste tem essencialmente que ver com o carácter
Não por acaso Livro sugere que não é possível falar transnacional da ruralidade. Ao longo do tempo,
de exílio, de emigração, sem que ao menos três tenho-me apercebido de que existem aspectos
ausências sejam atravessadas. A ausência de quem importantes da ruralidade que existem com for-

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PERNAMBUCO, ABRIL 2012

mas semelhantes em pontos muito distintos do


globo. De modo idêntico, em grande medida, a
experiência das migrações envolve elementos que
O romance é rural, Não se deve falar daquilo que não conhece pelo risco
de se faltar o testemunho. Lembra, à certa altura, Livro
que, mesmo Flaubert que tanto insistiu no afastamento
se repetem em lugares que, muitas vezes, não têm
contato direto entre si”.
Rural, sim. Mas não um romance puxado a ca-
ainda que não entre a obra e o autor, ao sentar-se no banco do tribunal
não teve pudor de admitir que se chamava Emma.
Livro certamente é um testemunho, o primeiro a
valos. Livro é contemporâneo, especialmente na
maneira como a linguagem irrompe em sua se- “puxado a cavalos”, encarar sem rodeios a diáspora portuguesa, e certa-
mente é privilegiado, pelo domínio da narrativa, por

e sua diáspora não


gunda parte: autorreferente, abismática, repleta sua circularidade, pela consciência de que as coisas
de conexões literárias. Mas é Livro quem se auto- não podem entrar em devir, acontecer, sem que
descreve melhor: “A segunda parte consiste num estejam no espaço e no tempo — sem que o espaço

é estranha a um
desequilíbrio estrutural injustificado, experimenta- e o tempo possam, elásticos, ao gosto do desejo,
lismo fora do tempo. É nesse ponto que o romance ampliar-se e reduzir-se em tênues labirintos.
atinge níveis intoleráveis de arrogância. Para lá das A narrativa de Peixoto avança rapidamente em
constantes referências a autores que ele, nitida-
mente, desconhece num exercício fútil de name-
-drop, esperteza de Google, o clímax de insensatez é
leitor brasileiro seu fim e surge lentamente em seu início. Nes-
se exercício, tempo e espaço compartilham uma
mesma natureza, a do intervalo, ainda que seja
alcançado numa espécie de autocrítica que, fazendo
parte do romance, se refere ao próprio romance. A
autorreferencialidade e o pós-modernismo têm as
ou nordestino a do intervalo vazio, a mossa, a falta sentida por
quem deixou a terra ou por quem nela permaneceu:
abandono que só o amor é capaz de infligir.
costas largas”. O jogo de espelhos é vertiginoso e o (2002) ou Morreste-me (2000). “Livro toca diversas O senso de integração agita-se, mas não se frag-
domínio que Peixoto demonstra sobre as relações preocupações que já tratei em outros romances, menta. Não se esvai em tripas porque a questão da
especulares que cria impressiona, mesmo que levando-as a novos patamares de exigência e pro- identidade insiste. O que é ser português? Note: nas
o artifício, como sugere, em seguida, o próprio pondo reflexões diferentes. Ao mesmo tempo, creio aldeias, o acontecimento determinado pela distân-
texto possa parecer uma “tentativa descarada de que também apresenta algumas temáticas que são cia temporal é possível porque tudo na comunidade
controlar as críticas que o romance possa sugerir. completamente novas naquilo que já escrevi e, permanece sempre o mesmo. Por outras sendas, o
Como se quisesse antecipar-se aos comentários dos no que diz respeito ao estilo, penso que torna um estrangeiro é aquele que dará ao aldeão a noção do
outros e, assim, os esvaziasse de sentido”. pouco mais nítida uma boa quantidade de elemen- acontecimento através da distância espacial, vivida
“Essa ruptura fez parte logo da ambição inicial do tos da narrativa. Sinto-me muito satisfeito com a dentro de um mesmo intervalo de tempo. “As dis-
romance. Sempre a considerei como um aspecto fun- voz deste romance. No que toca ao momento da tâncias temporal e espacial se sobrepõem, por fim,
damental de toda a estrutura e daquilo que pretendia sociedade portuguesa, há muitos pontos em que na figura do viajante. Ulisses, se pensarmos em um
atingir. Para além dos múltiplos objetivos internos este romance ganha atualidade. Não apenas pelo indivíduo. O Êxodo, se pensarmos na viagem coletiva
que pretende alcançar, essa ruptura é a expressão da facto de a emigração voltar a ser uma realidade, canônica. Em Livro, as três distâncias se reversam para
vontade de fazer um romance que não seja a repetição com muitos portugueses a irem viver para outros que os acontecimentos criem seus muitos labirintos.
de nenhum outro”, comenta Peixoto. países, nomeadamente para o Brasil, mas também
Livro, seu nono romance, agencia-se diretamente porque me parece que é muito importante que, Paulo Carvalho é mestre em comunicação social. Leia
com títulos anteriores como é o caso notadamente hoje, se faça uma reflexão sobre o Portugal recente trecho do romance de José Luís Peixoto no site do
de Cemitério de pianos (2006), Uma casa na escuridão e a sua identidade”. Pernambuco: www.suplementope.com.br

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HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS

O CONTO DO GAROTO QUE ANJO DE RUA A CABRA SONHADORA


NÃO É ESPECIAL Manoel Constantino Luzilá Gonçalves Ferreira
Lucas Mariz

Primeiro colocado da categoria Infantil Primeiro colocado da categoria Juvenil A cabrinha Cordulina, que sonha
no I Concurso Cepe de Literatura Infantil no I Concurso Cepe de Literatura com o amor de um lindo bode chamado
e Juvenil, realizado em 2010. Conta a Infantil e Juvenil. Inspirado na história Matias, vive uma série de aventuras,
história de um menino comum, igual a real de um menino que viveu nas ruas que incluem voar e tomar banho de
de outros de sua idade, mostrando que do Recife, mostra como uma amizade cachoeira, até que seu sonho se torna
ninguém precisa de superpoderes para pode perdurar, mesmo na adversidade. realidade. Ilustrações do artista plástico
ser feliz. Ilustrações de Igor Colares. Ilustrações de Roberto Ploeg. Luciano Pinheiro.

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O FOTÓGRAFO CLÁUDIO PONTES E IDEIAS AMARO QUINTAS:


DUBEUX Claudia Poncioni O HISTORIADOR DA LIBERDADE
Amaro Quintas
Álbum que reúne fotografias tiradas O livro mostra o lado humanista O volume reúne as obras A Revolução de
pelo empresário, industrial do açúcar e do engenheiro francês que projetou 1817, O sentido social da Revolução Praieira e
fotógrafo amador. Possui um rico acervo obras modernizadoras no Recife O padre Lopes Gama político, que espelham
documental da expansão da malha do século 19, a exemplo do um trabalho em boa parte voltado para os
ferroviária do Nordeste e do cotidiano Teatro de Santa Isabel e do Mercado movimentos libertários brasileiros, fazendo
das famílias recifenses do século 19. de São José. de Amaro Quintas pleno merecedor do título
de O Historiador da Liberdade.
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PANO RÁPIDO TAPACURÁ POEMAS


Joca Souza Leão Homero Fonseca Daniel Lima

A obra é uma compilação de breves e Segunda edição da obra Viagem Há meio século, o Padre Daniel produz
bem-humoradas histórias de escritores, ao planeta dos boatos. O leitor uma poesia de qualidade singular,
jornalistas, artistas, poetas, políticos, acompanha o rumor de que a barragem mas que zelosamente subtrai ao olhar
populares e boêmios pernambucanos, de Tapacurá havia estourado a partir do grande público. Agora, os amigos
anteriormente publicadas na coluna do de relatos, incluindo, no caso mais venceram sua resistência em publicar os
autor na revista Algomais. recente, a repercussão do mesmo em versos e juntaram quatro de seus livros
redes sociais. inéditos neste magnífico volume.
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TAP: SUA CENA & SUA O OBSERVATÓRIO


SOMBRA NO TELHADO
Antonio Edson Cadengue Oscar T. Matsuura

Antonio Cadengue, que Resultado de anos de


estudou o Teatro de estudo sobre a vida e obra
Amadores de Pernambuco de Jorge Marcgrave, o livro
por 10 anos, mostra faz parte da comemoração
seus momentos mais do 4ª centenário de
significativos, assim como as nascimento do principal
excursões feitas em diversas responsável por grandes
cidades e capitais brasileiras estudos astronômicos
e as suas principais e cartográficos em
montagens. Pernambuco.

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PERNAMBUCO, ABRIL 2012

JANIO SANTOS

INÉDITOS

O céu dos suicidas


Sou um especialista em coleções, mas doei os meus a chorar, minha mãe pegou outra colher de arroz, fa-
selos há mais de dez anos. Tenho apenas um relógio, zendo um gesto de reprovação com o braço esquerdo,
e dos meus avós herdei uma pequena quantidade de e meu tio, sempre competindo com a irmã caçula,
dinheiro e mais nada. Não guardo moedas estrangeiras, disse cheio de desdém que em algum ponto entre o
não tenho caixas de sapato cheias de cartões-postais e sul da Rússia, a Mongólia e o Cazaquistão.
não catalogo canecas, maços de cigarro ou chaveiros. Ela passa o tempo vagando com um grupo liderado
Tenho um aviãozinho da Pan Am, mas uma coleção por um monge que se diz a reencarnação do espírito
exigiria, no mínimo, uma pequena frota. que controla o lado afetivo dos seres vivos. Não apenas
A decisão de deixar as coleções de lado para ser os humanos. Nesse momento, minha irmã quase cus-
um especialista não foi consciente. Quando entrei na piu o que estava mastigando, engasgada com a piada.
faculdade, já tinha me desfeito das tampinhas de gar- Eu tinha acabado de estragar o almoço de Páscoa.
rafa e da maior parte dos selos que juntara por alguns Não acho a história engraçada. Não acredito no tal
anos. Passei o curso de graduação inteiro sem pensar monge, claro, mas sempre gostei da minha tia. O ir-
em coleções. De vez em quando, um professor dizia mão dela, o engraçadinho, incomoda-me um pouco.
que os historiadores adoram o pó dos documentos e Quando ela voltou pela primeira vez, creio que em
Ricardo Lísias

que ele mesmo já tinha passado muitas horas da vida 1990 (não posso dizer a data exata, pois, desde que
debruçado sobre coleções de todo tipo. Nos cursos de comecei a sentir saudades de tudo, perdi um pouco a
história da arte, alguns colecionadores sempre eram noção do tempo), fiquei marcado pelo jeito com que
citados. Mas, além disso, as coleções naquela época me entregou as tampinhas que tinha trazido.
não me interessavam. Para a sua coleção, Ricardo. Eu não consigo esquecer
Nem sempre foi assim: durante a infância e a ado- essa frase: para a sua coleção, Ricardo. Ela me passou
lescência, cheguei a ter quase duas mil tampinhas de o pacotinho com o olhar distante. Estávamos todos
garrafa. Quanto aos selos, obrigatórios para quase todo esperando no aeroporto. Quando a porta se abriu, logo
mundo que sofre com a obsessão pelo colecionismo, nos avistou, acenou e veio caminhando bem devagar.
cheguei a organizar belos conjuntos. Também reuni Minha avó começou a chorar. Ela abraçou um por um.
tudo o que encontrei sobre o time de futebol que me Depois, se eu estiver certo, fui o primeiro a ganhar um
encantava aos doze anos. Mas, nesse caso, havia ape- presente. Para a sua coleção, Ricardo.
nas paixão, o que jamais pode ser o elemento central Para quem adorava andar de bicicleta, e sempre
da atividade de um colecionador sério. tivera os afetos muito intensos, os gestos dela pareciam
Hoje, sequer assisto aos jogos do Brasil na Copa vagarosos demais. Fiquei olhando as tampinhas no
do Mundo. caminho do aeroporto até a casa do meu avô, onde
Quando era adolescente, adorava mexer nas minhas iríamos comemorar a visita.
tampinhas de garrafa. Todas estavam separadas segun- Se eu estiver certo, minha tia desiludida voltou ao
do o país de origem e, depois, em grupos menores, a Brasil depois de oito anos. Já estávamos no finalzinho
partir da bebida de onde tinham saído. Basicamente, do século. Não conseguimos nos ver: a visita coincidiu
distinguia entre os refrigerantes, mais numerosos, as com uma prova bastante importante dos exames para
bebidas alcoólicas e água. a pós-graduação. Eu estava concentrado e, quando fi-
Meu orgulho era uma série de tampinhas com ca- nalmente voltei para São Paulo, ela já tinha ido embora.
racteres árabes que tinha arranjado com um parente Jamais esqueci o olhar de desolação da minha
distante. Tentei entender o que estava escrito em al- mãe ao me contar que a irmã, naquele momento
gumas, mas, como não consegui, fui obrigado a abrir ela própria uma monja, tinha avisado que o mundo
uma exceção no catálogo e não pude sequer separá- sofreria uma grande catástrofe, e talvez acabasse na
-las por país. No caso de três tampinhas japonesas, entrada do século XXI.
também, até hoje não sei dizer se eram de água ou Ela nunca mais voltou ao Brasil. Afetuosa, dei-
de refrigerante. Nunca achei que fossem de cerveja: xou-me nessa segunda visita três outras tampinhas.
ganhei o conjunto de um abstêmio. Mas eu já estava começando os estudos para me
Chamavam atenção, ainda, vinte e três tampinhas tornar um especialista e, com a soberba que herdei
da Índia. Elas tinham sido presente de uma tia que, do meu tio, joguei-as fora. Estudar a origem delas,
apesar de mal ter saído dos vinte anos, não suportara como faria todo bom colecionador, sequer passou
uma desilusão amorosa e, depois de passar algumas pela minha cabeça.
semanas chorando e gritando palavras sem sentido, Desde que tudo isso começou, tenho percebido
resolvera procurar a própria história em uma pequena que sentir saudades significa, em alguma parcela,
cidade a três horas de Nova Déli. arrepender-se. Fico tentando relembrar uma série
Eu devia ter por volta de quatorze anos quando ela de coisas. Se não tivesse jogado as tampinhas fora,
viajou pela primeira vez. Meu avô tentou manter uma por exemplo, a frase da minha tia talvez hoje fizesse
espécie de compostura compreensiva e só conseguia algum sentido para mim. Para a sua coleção, Ricardo.
repetir que ela se arrependeria e logo voltaria para Não tenho mais nenhuma coleção.
concluir a faculdade de Direito. O fato de ele ter pago Semana passada voltei à lata de lixo onde joguei uma
as passagens da filha desiludida é um ponto de conflito parte das tampinhas fora, justamente os exemplares
entre o velho e minha avó até hoje. Fazendo as contas mais nobres. A outra parte, deixei para o lixeiro na
agora, acho que a última vez que minha tia esteve no manhã seguinte. Eu não tinha esperança de encontrá-
Brasil foi há uns dez anos. Até onde sei, atualmente -las: afinal já se passaram quase vinte anos. Acho que
ela mal telefona no Natal. é isso mesmo: vinte anos. Apenas olhei as pessoas, a
Há uns dois anos, tive coragem de perguntar por estação de metrô e os arredores. E infelizmente não
onde minha tia desiludida andava. Minha avó começou encontrei nada que me dissesse respeito.

SOBRE O AUTOR
Ricardo Lísias lança este
mês seu novo romance
Céu dos suicidas. O
trecho que publicamos
é o início da obra.

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PERNAMBUCO, ABRIL 2012

INÉDITOS
a mulher vai
a mulher vai ao cinema
a mulher vai aprontar
a mulher vai ovular
a mulher vai sentir prazer
a mulher vai implorar por mais
a mulher vai ficar louca por você
a mulher vai dormir
a mulher vai ao médico e se queixa
a mulher vai notando o crescimento do seu ventre
a mulher vai passar nove meses com uma criança na barriga
a mulher vai realizar o primeiro ultrassom
a mulher vai para a sala de cirurgia e recebe a anestesia
a mulher vai se casar, ter filhos, cuidar do marido e das crianças
a mulher vai a um curandeiro, com um grave problema de hemorroidas
a mulher vai sentindo-se abandonada
a mulher vai gastando seus folículos primários
a mulher vai se arrepender até a última lágrima
a mulher vai ao canil disposta a comprar um cachorro
a mulher vai para o fundo da camioneta e senta-se, choramingando
a mulher vai colocar ordem na casa
a mulher vai ao supermercado comprar o que é necessário
a mulher vai para dentro de casa para preparar a mesa
a mulher vai desistir de tentar mudar um homem
a mulher vai mais cedo para a agência
a mulher vai pro trabalho e deixa o homem na cozinha
a mulher vai embora e deixa uma penca de filhos
a mulher vai no fim sair com outro
Angélica Freitas

a mulher vai ganhar um lugar ao sol


a mulher vai poder dirigir no afeganistão

a mulher pensa
a mulher pensa com o coração
a mulher pensa de outra maneira
a mulher pensa em nada ou em algo muito semelhante
a mulher pensa será em compras talvez
a mulher pensa por metáforas
a mulher pensa sobre sexo
a mulher pensa mais em sexo
a mulher pensa: se fizer isso com ele, vai achar que faço com todos
a mulher pensa muito antes de fazer besteira
a mulher pensa em engravidar
a mulher pensa que pode se dedicar integralmente à carreira
a mulher pensa nisto, antes de engravidar
a mulher pensa imediatamente que pode estar grávida
a mulher pensa mais rápido, porém o homem não acredita
a mulher pensa que sabe sobre homens
a mulher pensa que deve ser uma “supermãe” perfeita
a mulher pensa primeiro nos outros
a mulher pensa em roupas, crianças, viagens, passeios
a mulher pensa não só na roupa, mas no cabelo, na maquiagem
a mulher pensa no que poderia ter acontecido
a mulher pensa que a culpa foi dela
a mulher pensa em tudo isso
a mulher pensa emocionalmente

SOBRE O AUTOR

Angélica Freitas é autora


de Rilke Shake e assina o
blog http://loop.blogspot.
com

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PERNAMBUCO, ABRIL 2012

a mulher quer
a mulher quer ser amada
a mulher quer um cara rico
a mulher quer conquistar um homem
a mulher quer um homem
a mulher quer sexo
a mulher quer tanto sexo quanto o homem
a mulher quer que a preparação para o sexo aconteça lentamente
a mulher quer ser possuída
a mulher quer um macho que a lidere
a mulher quer casar
a mulher quer que o marido seja seu companheiro
a mulher quer um cavalheiro que cuide dela
a mulher quer amar os filhos, o homem e o lar
a mulher quer conversar pra discutir a relação
a mulher quer conversa e o botafogo quer ganhar do flamengo
a mulher quer apenas que você escute
a mulher quer algo mais do que isso, quer amor, carinho
a mulher quer segurança
a mulher quer mexer no seu e-mail
a mulher quer ter estabilidade
a mulher quer nextel
a mulher quer ter um cartão de crédito
a mulher quer tudo
a mulher quer ser valorizada e respeitada
a mulher quer se separar
a mulher quer ganhar, decidir e consumir mais
a mulher quer se suicidar

JANIO SANTOS

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PERNAMBUCO, ABRIL 2012

RESENHAS
JANIO SANTOS SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO

Cartões-postais Lendo uma biografia de


Anne Sexton, dei de cara
com uma das melhores
que fui ter contato com
sua assinatura pessoal
como poeta. Foi um grato
em algum,/ alguém está
pensando a mesma coisa/
que você estava prestes
dia,/ e quanto ao amanhã,
o que vier é lucro.”
Formas do nada é o

que o poeta envia


declarações que um poeta caminho sem volta. Sua a dizer./ Pois é. Esta testemunho de um
pode receber (ou, ao obra mais recente, Formas não é a primeira vez./ autor que acredita no
menos, o nervo sensível do nada, só ressaltou Originalidade não tem endereçamento da palavra

para o seu nada


que na minha cabeça minha impressão inicial: vez/ neste mundo, nem exata, sem excessos (não
move o verdadeiro leitor sim, acredito em Paulo tempo, nem lugar./ O que digo de palavras, mas de
de poesia): “Não sou leitora Henriques Britto. E muito. você fizer não muda coisa/ sentimentos e índices),
de poesia, mas leio Anne O livro magro e conciso alguma. Perda de tempo que o leitor (o leitor de
Nova coleção de poemas Sexton”. Acredito mais em
poetas do que na palavra
(como devem ser os
volumes de poemas que
dizer./ Mesmo parecendo
que desta vez/ algo de
Paulo Henriques Britto,
o leitor que acredita
demonstra a força da literatura “poemas”. Acredito na não querem se perder importante vai ter lugar,/ no “nome” de um
faca só lâmina de João no excesso de palavras, não caia nessa: é sempre a poeta) não pode jamais
de Paulo Henriques Britto Cabral. Na sensualidade que não podem exceder mesma coisa.”. Em outro deixar de escutar.
nostálgica de Manuel o espaço mínimo com trecho, mais à frente, é
Schneider Carpeggiani Bandeira. Nos falsos que o verso precisa nos direto ao nos sentenciar:
diários de Ana Cristina colocar em nocaute) “Todas as soluções são
César. Nas imagens de narra, conta e contamina boas/ menos a que você
horror doméstico de as tais formas do nada escolher./ Escolha, sim,
Sylvia Plath. E em Paulo de que fala o título. E (Mesmo que doa,/ dá uma
Henriques Britto. por “nadas”, é claro, espécie de prazer.)”
Meu primeiro contato pensamos justamente em Em Horácio de baixo, o
com sua obra foi a partir acontecimentos centrais poeta se diz independente
das traduções de Elizabeth para compreendermos o de mandalas, horóscopos
Bishop (tradução de poesia que é necessário para que e oráculos: “Tentar prever
é poesia, uma “outra” o mundo faça sentido, o que o futuro te reserva/
poesia). Suas versões ou esvazie de sentido, não leva a nada. Mãe de
souberam transmitir tão ações que só um grande santo, mapa astral/ e livro
fortemente o impacto de autor pode nos fazer de autoajuda é tudo a
que perder é mais fácil do enxergar. Paisagens mesma merda./ O melhor POEMAS
que se pensa e a solidão internas, cartões- é aceitar o que de bom ou
de um Crusoé, ilhado, na postais que fotografam mau/ acontecer. O verão FORMAS DO NADA
contemplação obsessiva e enviam aquilo que que agora inicia/ pode ser Autor - Paulo Henriques Britto
do seu isolamento (talvez carregamos lá dentro. só mais um, pode ser o Editora - Companhia das Letras
deliberado, talvez não...). É o caso de Circular: último -/ vá saber. Toma Preço - R$ 32,00
Só depois, bem depois, “Neste mesmo instante, o teu chope, aproveita o Páginas - 80
REPRODUÇÃO

MANUEL BANDEIRA
Mariza Espaço Pasárgada homenageia o poeta
Pontes com mês dedicado à recriação de sua obra
Abril é o mês de Manuel promove todos os anos uma
Bandeira (foto), um dos ícones semana de homenagens ao
da literatura brasileira, que poeta. Haverá palestras, mostra
teve o poema Os sapos como de fotografias, exibição do
um dos mais polêmicos e documentário O Poeta do Castelo
emblemáticos da Semana de (1959), de Joaquim Pedro de
Arte Moderna de 22. Apesar de Andrade, contação de histórias,
ter vivido no Rio de Janeiro plantão literário, recital

NOTAS depois de adulto, Bandeira


é um dos representantes da
poético e visitas de alunos
de escolas públicas, que vão

DE RODAPÉ literatura pernambucana. O


Espaço Pasárgada, casarão da
recriar livremente o universo
bandeiriano, relacionando-o
sua infância na Rua da União, com outras linguagens.

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PERNAMBUCO, ABRIL 2012

REPRODUÇÃO DIVULGAÇÃO

PRATELEIRA
O HOMEM É BOM?
A Editora Nemo (Grupo Editorial Autêntica)
é responsável no Brasil pela obra de Moebius,
desde julho de 2011, quando iniciou uma coleção
dedicada ao artista, um gênio da luz e do espaço
que mudou definitivamente a história dos
quadrinhos e das artes visuais na segunda metade
do século 20. Moebius morreu em março, quando
já estava previsto o lançamento de dois novos
títulos, um dos quais O homem é bom? O autor foi um
dos primeiros a adotar o gênero ficção científica
nas HQ, influenciando de
mangás japoneses a filmes
de Hollywood.

Autor::Moebius
Editora: Nemo
Páginas: 56
Preço: R$ 49,00

TODO DIA ME ATIRO DO TÉRREO - TUITEIRA


O fenômeno das redes sociais inspirou o

Múltiplas escolhas Sempre em reinvenção jornalista Lula Falcão a criar a personagem


Maria Lúcia, típica das grandes cidades,
uma produtora cultural fracassada, que
A nova edição de bolso a lançar este ano, Joca Reiners Terron é dois protagonistas e chega aos 30 anos viciada em sexo virtual,
de Sentimento do mundo, comemorando os seus um dos personagens duas linguagens. Terron vodca, miojo e literatura de 140 caracteres.
talvez o livro mais 110 anos de nascimento. (sim, personagens) compartilha o seu Ela circula pelos bares e tem obsessão pelo
conhecido de Carlos A “drummondmania”, mais fortes da espaço narrativo com os twitter, a ponto de afastar a ideia de morte
Drummond de Andrade, no entanto, chegará literatura brasileira belíssimos desenhos do apenas para não decepcionar seus seguidores
chega envolta com o ao seu auge em julho, contemporânea. Esse quadrinista curitibano ao ficar off-line. O livro esmiúça seu diário.
lembrete de que ele é quando ele será o homem alto, careca André Ducci. O livro
indispensável para a homenageado da Festa e com uma barba se passa numa cidade
bibliografia de certo Literária Internacional messiânica, a cada utópica, a Nãorizonte,
vestibular. Fico sempre de Paraty (Flip), espécie novo livro, parece uma metrópole suja,
preocupado quando de Fashion Week das se transformar num que se ergue como
grandes obras literárias nossas letras. (S.C.) outro escritor. Flertou um retrato exagerado
são submetidas ao com a literatura beat de São Paulo. (S.C.) Autor: Lula Falcão
certo e ao errado, ou e com o artificial Editora: Bookess
à exatidão de provas. das relações, no seu Páginas: 144
Como prescrever alguma romance Do fundo do Preço: R$ 31,00
certeza diante de um poço se vê a lua, que
poema tão poderoso fez parte da coleção O COLETOR DE ALMAS
como Os ombros suportam Amores Expressos História de terror, com personagens inspirados
o mundo e seu realismo, da Companhia das nas mitologias nórdica e etrusca: a menina
que parece abrigar a Letras. A metamorfose Lisa, que descobre um segredo e passa a ser
profundidade de um ambulante do seu caçada; Larval, o coletor de almas, eternamente
buraco negro? Ou texto continua pelo preso no núcleo central de Yggdrasil, a
mesmo a confusão de novíssimo Guia de ruas árvore-mãe que fornece o sustento do mundo;
sentimentos, entre a sem saída (seu primeiro e o Ceifador, um assassino, figura triste e
penúria social e o sol livro pela Editora atormentada. O livro é o primeiro volume da
acolhedor da praia, de Edith, que já conta série As viagens da peregrina do tempo e da terra.
Os inocentes do Leblon? POESIA em seu elenco com
Complicado, para nomes como Marcelino ROMANCE
dizermos o mínimo. Sentimento do mundo Freire). Aqui temos
Sentimento do mundo faz Autor - Carlos Drummond um autor lidando Guia de ruas sem saída
parte da reedição das de Andrade com as matizes do Autor - Joca Reiners Terron
obras completas do Editora - Companhia das Letras duplo. Literalmente. Editora - Edith
autor, que a Companhia Preço - R$ 15,00 A obra é permeada Preço - 35,00 Autor: Douglas MCT
das Letras começa Páginas - 96 por duas histórias, Páginas - 256 Editora: Gutemberg
Páginas: 144
Preço: R$ 29,00

ANTOLOGIA DO CORDEL BRASILEIRO


Reúne cordéis de várias gerações de autores,
desde aqueles inspirados em contos fantásticos,
CLISERTÃO MOSTRAPE ALMOÇO CULTURAL passando por histórias de animais, até obras
críticas ou humorísticas. O organizador, que é
Congresso Internacional do Projeto Nós Pós MostraPE Alternativa é adotar cinema poeta popular, folclorista e editor, quis mostrar
Livro, Leitura e Literatura tem recitais até novembro com palestra ao meio-dia que os estudiosos costumam deixar de lado os
cordéis contemporâneos, mas sua produção
Será realizado em Petrolina, em Toda segunda quinzena do mês, Cada vez mais pessoas usam o continua a crescer, não só na região Nordeste.
14 e 15 de maio, o Congresso nas quintas-feiras, até novembro, horário do almoço para assistir
Internacional do Livro, Leitura e acontecem recitais, performances, a sessões de cinema com bate-
Literatura no Sertão – Clisertão, pocket show e outras manifestações, papo, no Centro Cultural Correios,
promovido pela Fundarpe, Sec. de dentro da programação do no Bairro do Recife. A entrada
Ciência e Tecnologia e UPE, com Projeto Nós Pós MostraPE, em quatro é gratuita. O projeto Curta Doze e
apoio da prefeitura local. Haverá espaços: Casa Mecane (Av. Meia tem patrocínio dos Correios,
recitais, leitura e manifestações Visconde de Suassuna, 338, apoio do Coletivo NegoBom, da
da cultura sertaneja, além de Santo Amaro); sede da UBE Regional Nordeste do Ministério Organizador: Marco
palestras na Tenda da Palavra e (Rua de Santana, Casa Forte); da Cultura e da Sambada Haurélio
discussões acadêmicas na Praça Livraria Cultura (Recife Antigo) Comunicação e Cultura. As sessões Editora: Global
Ciência, focalizando a produção e e Biblioteca Pública do Estado ocorrem toda quinta-feira, no Páginas: 257
as políticas públicas para o livro. (Parque 13 de Maio). Acesso grátis. auditório do CCC, às 12h30. Preço: R$ 37,00

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CRÔNICA
Ronaldo Wrobel

Preciso de águas sujas e revoltas


para chegar ao meu ponto final
Várias pessoas me perguntam por que não Não estou ditando regras, claro. Arte não botequim falaria em transcrições espíritas, vi-
tenho escrito contos. Eu mesmo me pergunto é ciência exata e cada artista tem seus crité- das passadas, Clarice Lispector. Mas não peco
isso, sem encontrar resposta. Adoro ler e rios, ritos, lampejos inventivos. O fato é que, pelo misticismo. Sou cafetão e conheço as ar-
escrever contos. Entre minhas obras predi- quando escrevo um romance, não me sinto timanhas de minhas putas. Relendo o trecho
letas estão contos de Josué Montello, Clarice um nadador altivo e resoluto em sua jorna- luminoso, senti um déja vu meio malandro. O
Lispector e Isaac Bashevis Singer. Em 2001 da heroica. Estou mais para o náufrago que que estava acontecendo? Mexe daqui, mexe
lancei um livro de contos, A raiz quadrada, do braceja ao relento e vai se agarrando a tudo, dali e a verdade se delata com o rabo entre as
qual me orgulho. Contos são (ou tendem a de tronco de árvore a barbatana de tubarão. pernas. Não é que eu tinha repetido, literal-
ser) sintéticos e coerentes, o que enaltece a Preciso de águas sujas e revoltas para chegar mente, todo um parágrafo de meu romance
literatura. Não me faltam enredos para bons ao ponto final. Traduzindo Hannah, lançado em 2010? O cérebro
contos. Semana passada, por exemplo, pifou Metáforas à parte, escritores costumam havia me pregado uma peça engenhosa, expe-
o aparelho para surdez da mulher à minha ter um acervo de ideias à disposição. Ideias dindo a ideia pronta, já temperada, desossada
frente na fila do supermercado. Foi engra- avulsas, aleatórias, versáteis, como um baú e embalada feito presunto natalino. Era uma
çado porque ela fazia a linha “consumidora de relíquias. Nem sempre — ou quase nunca iguaria imprestável porque o texto novo pedia
eloquente”, dessas que mandam chamar o — são peças completas, prontas para usar, prêt- outra coisa: situações diferentes, demandas di-
gerente para discutir geleia de mocotó. O -à-porter. Há pedaços sem encaixe nem função ferentes, potenciais diferentes. E eu ali, prestes
que fiz? Tranquei a ideia numa gaveta e não prática, algo parecido com os guardados de mi- a morder a isca, recaído em vícios preguiçosos,
escrevi conto algum. Por quê? nha finada avó, cujas gavetas tinham canetas num autoplágio por obra e graça desse esper-
Fazer contos tem vantagens e desvantagens, sem tinta, isqueiros enferrujados, nota fiscal de tinho que me habita o crânio.
como quase tudo. A vantagem está em se tra- peruca, algum botão perolado ou um souvenir Por essas e outras que gosto de ter à mão
balhar um texto enxuto e original, sem passado da Iugoslávia. Gosto de ter esse arsenal à mão: ideias não concatenadas, desafiadoras, para
nem futuro. Diferente é o romance, um vasto virginal, intocado, impoluto. Se gastá-lo num usá-las em prol do texto e não delas mesmas.
mundo cheio de regras e premissas. Criar um conto ou ensaio, perderá o ineditismo. Serão Sou um artesão, um relojoeiro dos ventos.
romance é como administrar uma empresa e ideias usadas, como um fósforo queimado. A consumidora surda, por exemplo, tan-
enfrentar acionistas em assembleias acalo- Há quem me aconselhe a escrever os tais to pode estrelar algum capítulo quanto ser
radas. Ninguém está ali só para o cafezinho. contos e a mantê-los guardados, trancafiados figurante de subtrama, a despeito de suas
Todos opinam, divergem, ressalvam. “Não gosto num cofre, frescos e imaculados. Em teoria é esplêndidas capacidades, de seu passado
dessa cena”, reclama um personagem. Outro um bom conselho, não fosse o porém: ideias glorioso, de suas contas a pagar. Não pro-
quer mais destaque ou repudia sua última fala. escritas, refinadas e contextualizadas, nunca curo histórias nem personagens sob medida
“Você já me usou três vezes”, alerta o verbo voltam ao estado original, à abstração genuí- para enxertos instantâneos. Quero pedaços,
borboletear, exigindo moderação. E por aí vai. na. Em seu ótimo A louca da casa, a espanhola fragmentos, matéria-prima, argila. Chega
Em contraste com tamanha disciplina, o con- Rosa Montero discorre sobre a arte da escrita a ser comovente ver aquele diamante re-
to pode ser um grito de liberdade: novinho, e se declara às vezes paralisada diante do legado a paetê, mas faz parte do processo
zerado, sem passado nem futuro. Perfeito para teclado. Não paralisada pela preguiça, por criativo. Experiências mórbidas acontecem
testagens, ousadias, maluquices, com a vanta- falta de inspiração ou coisa que o valha, mas aos montes: cientista louco não sente pena
gem adicional de ser unitário e compacto. Co- pelo medo. Sim, pelo medo. É que a palavra de grilo perneta. Nenhum regente dá conta
meço, meio e fim estão todos ali, no seu quintal grafada, aposta no papel, adquire consistên- de um coral harmônico com trinta divas em
criativo, ao alcance dos olhos. Já o romance é cia, forma, textura. Os caminhos da invenção disputa no palco.
um continente, um planeta, uma galáxia que dificilmente têm volta: a ideia se solidifica, O mais curioso é que a coisa não termina
nem a luneta mais potente consegue abranger vira pedra, vira montanha. É virtualmente quando acaba. Mal ponho o ponto final num
numa só espiada. O austríaco Stefan Zweig impossível devolvê-la ao ventre criativo, ao dado texto e recebo flores de figuras despre-
dizia ter problemas para escrever tramas que seu primórdio amorfo. Imagine-se uma gota zadas ou mutiladas: quem sabe na próxima
sua memória não pudesse abarcar num re- de nanquim pingada num lençol branco. É obra? Não raro são pedaços despedaçados: o
lance, panoramicamente. Muitos romancistas assim que a ideia se entranha na memória. elo de uma corrente, geleias sem mocotó, um
enfrentam a aflição do navegador sem bússola Não há removedor que restitua a alvura ao anão caolho, corujas depenadas, dentaduras
em alto mar. William Faulkner afirma que o lençol, nem milagre que remeta o nanquim banguelas. Alguns estão ociosos há vinte anos,
artista é uma criatura arrastada por demônios, de volta ao frasco. abanando leque na sala de espera, saudosos de
verdade bastante aplicável ao romance. Num Vou citar um caso prático. Outro dia eu des- suas metades já publicadas.
SOBRE O AUTOR dado momento você já não sabe para onde vai, crevia, num trecho de meu próximo romance, Às vezes acho que essa legião de esquecidos
de onde vem nem onde está. Ante a imensidão a relação entre uma personagem e seu pai. merecia uns bons contos ao invés de agonizar
Ronaldo Wrobel é autor, do romance, o conto parece um lago — não As frases me vinham cristalinas, caudalosas. no meu limbo criativo. Quem sabe não estão
entre outros, do romance necessariamente manso ou cristalino, mas de Os dedos saltitavam no computador, quase ocupando o lugar de outras figuras, outros vul-
Traduzindo Hannah. cujas águas sempre se enxergam (ou se pres- à minha revelia. Eu vivia um surto criativo, tos, ávidos candidatos ao esquecimento? Quem
sentem) as margens. extasiante, luminoso. Qualquer médium de sabe não sou um deles?

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