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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 70 - Distribuição gratuita - www.suplementopernambuco.com.

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FOTOS: RICARDO MOURA | DESIGN: KARINA FREITAS

RAIMUNDO
ESPECIAL

AS PALAVRAS QUE
CARRERO
RETOMA SUA
OFICINA

FORMAMOS E QUE
LITERÁRIA E
INVESTIGA AS

NOS FORMAM
INVENÇÕES
DO MESTRE
FLAUBERT

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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2011

GALERIA

PR ISCI L L A BU H R
“Fotografar para o Instagram é a minha brincadeira favorita. É leve, é solto, é uma delícia.
Fotografo as coisas que meus olhos gostam de ver e sentir... Me sinto uma fotografa amadora,
amadorizo mesmo, no sentido de amor, com o iPhone na mão. Sair por ai clicando sem ser
percebida, sem ter escrito na minha testa ‘sou fotógrafa’, ser mais uma no meio da multidadão de
fotógrafos de celular é muito divertido. Essa liberdade me instiga!” @pribuhr

C A RTA DO E DI TOR SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO


Adriana Dória Matos

O ano termina com uma boa notícia para Curitiba? O silêncio, a distância, a solidão, a SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO
os leitores do Pernambuco: após enfrentar introspecção - ou seja, as ausências! Wilson Luiz Arrais
problemas de saúde devido a um AVC, em Bueno dizia que Curitiba é uma ‘cidade de GOVERNO DO ESTADO EDIÇÃO
outubro de 2010, Raimundo Carrero re- escritores’. Como ele, acredito que Curitiba DE PERNAMBUCO Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani
toma este mês sua coluna sobre a arte da tem um temperamento propício à literatura.
Governador REDAÇÃO
ficção. O retorno não poderia ser melhor: Sou um carioca apaixonado”.
Eduardo Campos Mariza Pontes e Marco Polo
ele analisa os diálogos de um romance a Para encerrar o ano trazemos para o leitor
partir do ponto de vista de Flaubert. E avi- uma matéria especial sobre o que “significa” ARTE, FOTOGRAFIA E REVISÃO
sa: as próximas colunas serão dedicadas a uma palavra, em todas as suas possibilida- Secretário da Casa Civil Gilson Oliveira, Janio Santos, Karina Freitas,
investigar as inovações que o francês trouxe des – religiosa, filosófica, literária, a palavra Francisco Tadeu Barbosa de Alencar Militão Marques e Sebastião Corrêa
para o moderno romance. “Vou analisar em de rua, a palavra que se perde com o tempo.
PRODUÇÃO GRÁFICA
janeiro Educação sentimental, que é uma das Para isso, contamos com uma equipe for- COMPANHIA EDITORA Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Roberto
minha obras favoritas”, adianta. mada pela repórter Isabelle Barros, pelo DE PERNAMBUCO – CEPE Bandeira e Sóstenes Fernandes
Carrero faz uma dobradinha este mês mestre em filosofia Eduardo César Maia, Presidente
e conversa com José Castello sobre o ro- pela parceria da designer Karina Freitas e MARKETING E PUBLICIDADE
Leda Alves Alexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvão
mance Ribamar, um dos mais premiados pelo fotógrafo Ricardo Moura, que saíram à Diretor de Produção e Edição
deste ano. Castello, inclusive, faz uma ob- procura da melhor forma de ilustrar o tema. Ricardo Melo COMERCIAL E CIRCULAÇÃO
servação curiosa sobre ser um carioca na Ainda nesta edição, o escritor e jornalista Gilberto Silva
Diretor Administrativo e Financeiro
fria e introspectiva Curitiba: “Sigo a lição Ronaldo Bressane perfila o retorno aos
Bráulio Meneses
de Cristóvão Tezza: vivo em Curitiba como quadrinhos de Luiz Gê, um dos mestres da
se não vivesse em Curitiba. Aliás: é assim HQ brasileira nos anos 1980, e Paulo César
que se vive em Curitiba! É uma cidade Souza explica o trabalho de traduzir Assim CONSELHO EDITORIAL
introvertida, fechada, desconfiada, uma falou Zaratustra em meio à tradução da obra Everardo Norões (presidente) PERNAMBUCO é uma publicação da
cidade - mesmo com mais de dois milhões completa de Freud, que tem realizado para Antônio Portela Companhia Editora de Pernambuco – CEPE
Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
de habitantes - cheia de solitários. a Cia. das Letras. Lourival Holanda CEP: 50100-140
Gosto muito de viver em Curitiba, aprendi Nelly Medeiros de Carvalho Contatos com a Redação
a amar essa cidade. Mas o que mais amo em É isso, boa leitura e boas festas. Pedro Américo de Farias 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br

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BASTIDORES

Um Zaratustra
JANIO SANTOS

em meio a um
Freud e outro
Organizador do lançamento
da obra do pai da psicanálise,
que a Companhia das Letras
tem realizado, fala do desafio
de traduzir um dos livros
mais famosos de Nietzsche

Paulo César de Souza pelo fato de que estava me dando conta da musica-
lidade das palavras impressas e de como produzi-la
– ou seja, estava me descobrindo como prosador.
“Dá pra você encaixar o Zaratustra entre um Freud e Embora já tivesse redigido uma tese de mestrado em
outro nos próximos anos?”, perguntou-me o editor da história que, segundo dizem, é bem escrita (sobre a
Companhia das Letras antes de saírem os primeiros revolta da Sabinada, ocorrida em Salvador em 1836),
volumes da coleção de Freud. Eu já havia traduzido eu ainda vivia em “estado de inocência estilística”
dez obras de Nietzsche, mas pensava em deixar Assim (na expressão do próprio Nietzsche).
falou Zaratustra para o final, por já existir em português Também foi menos trabalhosa no conjunto, porque
uma tradução – a de Mário da Silva, publicada nos o estilo de Zaratustra é bem diverso do das outras obras
anos 1970 – que me parecia recomendável. Ao iniciar de Nietzsche. Eu sou um trabalhador lento; uma pági-
a coleção de obras de Nietzsche, 20 anos atrás, meu na me toma algumas horas, porque acho que é preciso
CARTUNS objetivo era traduzir todos os textos que ele mesmo
publicou enquanto vivia — era e continua sendo (ou
tratar cada linha como se fosse um verso de poema.
Não faço uma primeira versão que depois é revista e
RAFAEL SICA
HTTP://RAFAELSICA.ZIP.NET/
seja, não pretendo incluir os chamados “fragmentos esmerilhada, como fazem outros (excelentes) tradu-
póstumos”). Além do Zaratustra, faltavam apenas O nas- tores. Leio a frase original, vejo como ela é vertida em
cimento da tragédia e as quatro Considerações extemporâneas, várias traduções do livro em outras línguas, consulto
quando ouvi a solicitação do editor. dicionários, fico cismando, matutando e jogando com
Ele argumentou que era um pedido dos leitores, a ordem dos termos na cabeça, e por fim digito a frase
que chegava tanto através do pessoal de vendas no teclado. Ela demora a aparecer na tela, mas quase
como, por e-mails, diretamente ao departamento não haverá alteração depois.
editorial. Nunca me preocupei muito com as vendas A prosa de Zaratustra é feita de períodos mais curtos
(talvez por elas serem boas...), mas é impossível que a dos outros livros do autor, com menos orações
não levar em conta os anseios dos leitores, ainda subordinadas e frequente repetição de termos. Os
mais porque eu próprio já os havia escutado, em parágrafos costumam ser breves, e são numerosos
encontros casuais e em palestras. os capítulos: 80 no total. Publicado em quatro partes,
Experimentei traduzir o prólogo de Zaratustra já em entre 1883 e 1885, o livro é uma peculiar mistura
2009, fiquei entusiasmado e concluí a primeira das de narrativa poética, reflexão filosófica e indagação
quatro partes no início de 2010. Depois de publicados religiosa, contendo os discursos e aventuras do
os três volumes inaugurais da obras completas de mítico profeta Zaratustra. Numerosas ideias encon-
Freud, retomei o Nietzsche e, excetuando os intervalos tradas em outros textos de Nietzsche reaparecem ali
para acompanhar a preparação de mais três volumes numa linguagem transfigurada, mas são claramente
de Freud, prossegui o trabalho até concluí-lo, em reconhecíveis. É uma prosa meio encantatória, que
agosto deste ano (a publicação de seis volumes de visa tanto seduzir quanto esclarecer.
Freud em pouco mais de um ano só foi possível porque Já o estilo das outras obras é sobretudo reflexivo, feito
eu já os vinha traduzindo há muito tempo; costumava de longos períodos em que se criam ondas ou arcos
alternar um ano com Nietzsche e outro com Freud, de tensão. Nos dois casos há um emprego abundante
sendo que guardava as traduções deste para quando de recursos que normalmente associamos à poesia,
os direitos caíssem em domínio público). como aliterações, metáforas, rimas, jogos de palavras,
Traduzir Zaratustra acabou por ser uma experiência emprego que é apenas mais explicitado no Zaratustra.
mais prazerosa – e menos trabalhosa – do que a que Oferecendo essa nova tradução aos leitores bra-
tive com a maioria dos outros volumes de Nietzsche. sileiros, tenho a esperança de que ela seja acolhida
A tradução que me deu o maior prazer foi a primeira com a mesma benevolência com que receberam
de todas, a de Ecce homo, seu ensaio autobiográfico (foi as anteriores.
também minha primeira tradução do alemão, tendo
aparecido no final de 1985). Lembro-me que às vezes, A nova edição de Assim falou Zaratustra é lançada
à noite, relia em voz o que havia feito durante o dia, na primeira quinzena de dezembro. Até o fechamento
comovido com a intensidade e a beleza das frases. da edição a editora ainda não tinha definido a arte
Nunca mais tive o mesmo prazer em traduzir, talvez da capa e o preço da obra.

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QUADRINHOS

Luiz Gê e seu KARINA FREITAS

particular
cartão postal
Autor retoma o HQ e
relança o seu clássico álbum
Avenida Paulista de 1991
Ronaldo Bressane

Cercado por aviões, navios, livros, discos e gatos, relançada pela Companhia das Letras – Gê rees-
Luiz Gê está feliz: desenha. Parece um meninão que creveu a maioria dos textos, incluiu duas páginas
se diverte entre seus brinquedos – bem, está dese- de desenhos e um prefácio. É seu primeiro grande
nhando um trenzinho. Não qualquer trenzinho: é lançamento em muitos anos. Por que demorou
um trem tarado, prestes a passar por cima de uma tanto para voltar ao ambiente em que, dizem, é
linda garota presa aos dormentes. É o quadrinho um dos mais geniais do país?
final de Eu quero ser uma locomotiva, história de 1984 Como poucos, Gê dominou todos os espaços da
sobre um maquinista obcecado por sexo. Feito comunicação visual. Fundou no começo dos anos
em dez minutos com a reles caneta do repórter, 1970 a revista de quadrinhos Balão, foi editor da
o desenho sugere que, aos 60 anos, Gê conserva masculina Status e da Circo, esta ao lado de Laerte
a mão segura – e safada. Revela: está de volta aos – dos grandes êxitos do cartum nacional, vendia
quadrinhos. E mais: de volta ao passado. Em um 40 mil exemplares mensais. Em seguida vieram os
momento suspenso, como o quadrinho em que o álbuns Macambúzios e sorumbáticos e Quadrinhos em fúria.
trem se encontra a um apito de triturar a mocinha. Ligou-se à vanguarda paulistana – movimento
Luiz Gê retorna à praça com um álbum lançado liderado por Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção
em dezembro de 1991, Avenida Paulista. A primeira – ao desenhar as HQs que inspiraram os melhores
versão foi publicada na extinta Revista Goodyear, uma álbuns de Arrigo: Clara Crocodilo e Tubarões voadores.
das melhores customizadas do país, celeiro de cra- Depois da Paulista publicou a antologia Território de
ques como Humberto Werneck e Ruy Castro. Para bravos (1993) e trabalhos que expandiram as qua-
a edição especial de dezembro, a editora Rosangela tro linhas: a concepção de O homem dos crocodilos
Petta teve a ideia: e se encomendassem a Luiz Gê e a direção de Até que se apaguem os avisos luminosos,
uma história sobre a Paulista, que completava óperas do parceiro Arrigo. Gê foi roteirista do TV
100 anos? Formado em arquitetura pela FAU/USP, Colosso, programa infantil da Globo, do longa Cidade
obcecado pela história de São Paulo, Gê topou e oculta, de Chico Botelho, desenhou a animação
mostrou uma gigantesca pesquisa sobre o tema. Santos-Dumont e adaptou o romance O Guarani à
Em uma aposta ousada, a redação decidiu que a HQ – uma obra plural que ganhou abordagem
HQ ocuparia quase todo o especial. semiótica em Análise textual da história em quadrinhos,
Gê alugou um estúdio para o job (“que, em época de Antonio Pietroforte.
de Plano Collor, foi muito bem pago e me sal- “Hal Foster, Winsor McCay, Hergé, Robert
vou”, lembra), contratou três assistentes e em Crumb e Moebius”, responde Gê sobre os cinco
três meses intensos produziu as 66 assombrosas grandes quadrinistas do século. São inspirações:
páginas intituladas Fragmentos completos. Um sucesso: de Foster (O Príncipe Valente), vem o apelo à ação;
“A revista recebeu 30 mil pedidos”, recorda. Há de McCay (Little Nemo), a fantasia lúdica; de Hergé
20 anos disputadíssima em sebos, a HQ é agora (Tintin), o aventuresco; de Crumb, a voz irônica

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REPRODUÇÃO

ção, brinquedo... Criei até uma batalha naval!”,


diz, chamando o repórter para conhecer sua bela
frota esculpida em madeira. Os navios ficam em
uma grande estante ao lado de uma espetacular
coleção de aviõezinhos da Segunda Guerra, que,
vigiados pelos três gatos (um deles, a manequim
Borba Gata) fornecem ao apartamento de 180
m² no edifício Copan uma atmosfera de loja de
brinquedos. “Estou sempre bolando coisas ma-
lucas. Com a Borba Gata, quis fazer quadrinho
tridimensional... O desenho te leva a cada coisa
louca! Só que sobreviver é difícil, daí não conseguir
me concentrar nas HQs”, se explica.
Ao lado da criatividade multifacetada, que o
convida à dispersão – sem falar na voracidade
com que se entrega à leitura de obras de filosofia,
história e arte –, nos últimos 20 anos Gê teve crises
pessoais. “Foi uma luta começar a fazer quadri-
nhos de novo... uma dificuldade foi se somando
a outra, minha vida teve umas coisas muito com-
plicadas...”, insinua, sem citar diretamente a falta
de um estúdio onde se concentrar, a tendência à
depressão, as separações amorosas e as atribula-
ções com a filha Flora, que culminaram com sua
morte em 2008. Sobre esses assuntos, o artista cala.
“Não me pinte como coitadinho, hein?”, orienta.
Gê prefere focar a energia na crítica à feiura de
São Paulo. “Falta de imaginação em conservar a
cidade? Mas a sociedade paulistana é conserva-
dora – no mau sentido (risos). Se deixa levar pela
força do dinheiro, e a especulação imobiliária toma
conta de tudo”, detona. “Na Paulista sobraram uns
casarões sem-gracíssima – como o que virou um
banco, onde as pessoas ficam tirando foto no Natal.

A graphic novel
é relançada pela
Companhia das
Letras. Ao lado,
imagem da
edição original do
clássico de Gê
e o olhar urbano; de Moebius, a exploração da O último casarão interessante é da década de 1910,

Os responsáveis arquitetura ao estruturar narrativas fantásticas.


Luiz Gê criou uma obra sem personagens fáceis,
só que os herdeiros não o conservam, querem que
o telhado desabe pra vender o terreno. Por que não
menos pop e mais cerebral que seus parceiros fazer o Museu da Avenida Paulista ali?”, sugere,
Se o Brasil vive um boom de quadrinistas jo- de geração, dos quais se distanciou (só encontra elogiando o caráter simbólico da via. “A cidade
vens, isso se deve à geração anterior, hoje esta- Angeli na Folha de S.Paulo, não via Glauco há tempos tem outros centros de negócios na Faria Lima e
belecida em jornais e livros. Além de Luiz Gê, quando soube que morreu, e a última vez que fa- na Berrini, mas as manifestações políticas nascem
nomes como Laerte, Angeli e Glauco foram os lou com Laerte já faz uns dois anos). Com ênfase mesmo é na Paulista”, lembra. Gê, que acaba de
responsáveis por movimentar o mercado edi- na espacialidade, suas histórias vagam da crítica voltar de um giro por EUA e Portugal, é duro com o
torial, começando em meados dos anos 1970 social à investigação psicanalítica, em situações empobrecimento da arquitetura brasileira. “Nossas
e provocando uma verdadeira revolução nas nonsense que tangenciam o surrealismo, a ficção cidades são descuidadas, estamos ficando para
publicações de quadrinhos na década seguinte. científica e um antirrealismo violento, em tom trás de todas as metrópoles do mundo. Até Lisboa,
Todos eram amigos. A primeira parceria foi sempre mordaz. cidade muito mais velha que São Paulo, tem edi-
a de Laerte com Luiz Gê, responsáveis pela Além das aventuras pelo audiovisual, Gê se deu fícios mais modernos! Aqui temos a arquitetura de
Balão, revista de duração curta. Os quatro se bem na carreira acadêmica: hoje é doutor em co- padaria desses neoclássicos, como aquela porcaria
encontraram mesmo na Circo Editorial, que, municações e artes pela USP e dá aulas diárias de do Villa Europa, na Marginal. Bem que um avião
durante os anos 1980, mesclou trabalhos de desenho industrial e quadrinhos no Mackenzie. Os podia se chocar ali!”, brinca.
nomes como Robert Crumb com autores brasi- alunos o veneram – mas também o temem, pelo Avenida Paulista, que traça a história da via mais
leiros, atingindo grandes tiragens para o padrão rigor e jeitão carrancudo. De fato, uma das faces de importante da quarta maior cidade do mundo,
das HQs alternativas. A revista coletiva Circo Gê é reservada. Sorridente, impõe respeito quando retrata também a construção da memória des-
vendia em média 35 mil exemplares por mês, fecha a cara. Diz que o contrato com a Companhia sa cidade – e, ainda, de sua fragmentação. Para
número que a Chiclete com Banana, de Angeli, das Letras prevê, além do Avenida Paulista, um álbum combater o estilhaçamento da própria obra, Luiz
ultrapassou nos anos posteriores. inédito – e não diz mais do que isso. “O livro segue Gê planeja criar um site onde exporá todas as suas
Mesmo que as publicações tenham se en- uma HQ que saiu no último número da Chiclete com publicações visuais. E sonha editar uma revista
cerrado, os autores se fincaram na cena de banana, a Viagem ao centro do universo. Vai ser uma mensal, que teria 100 páginas. O número zero é
quadrinhos nacional. Angeli, Laerte e Glauco ficção científica de 100 páginas. Fico angustiado segredo. “Falta uma publicação de HQs que falem
foram progressivamente chamados para fazer com esse projeto, pra falar a verdade... Desenho do Brasil. Quero muito fazer essa revista. Qua-
tiras diárias em grandes jornais, como a Folha menos do que deveria”, confessa. drinhos loucos... Não, não mostrei pra ninguém,
de S. Paulo. Apesar da morte trágica de Glauco, É provável que a multiplicação de Gês em va- nem vou te mostrar. Não vou ficar dando ideia
os quatro se tornaram referência para as novas riados formatos lhe tenha nublado o foco na HQ. pros outros!”, ri, antes de acolher outro pedido do
gerações, tanto em qualidade do trabalho como Além da academia, culpa o ecletismo pelo fato repórter e fazer o que o mais deixa feliz: desenhar.
na disposição de tentar criar um mercado de de ter a obra mal divulgada. “Acham que parei
quadrinhos próprio. (Diogo Guedes) de desenhar, mas nesses anos eu fiz TV, cinema, Ronaldo Bressane, escritor, jornalista e autor do blog
teatro, ópera, show, animação, charge, ilustra- impostor.wordpress.com

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ENTREVISTA
José Castello

“Toda nossa vida


pessoal é povoada
por fantasmas”
Um dos principais repórteres e críticos de literatura do
Brasil conhece a consagração no terreno da ficção com
Ribamar, um dos romances mais elogiados deste ano
JOAQUIM DE CARVALHO

Na ficção, você parece que gosta de escrever


sobre fantasmas. No seu primeiro livro, havia
aquela presença do Paulo Leminski em todo
canto. Agora, Ribamar tem essa assombração
paterna. Por que os fantasmas?
É, talvez, um efeito de minha visão de mundo.
Não creio que a ficção se guarde apenas nos
romances, contos, narrativas. A ficção é um
elemento essencial da existência humana.
Ela se espalha pelo cotidiano, pelas relações
amorosas, pela fé, pela ciência, e por todo o
mundo dito “objetivo”. E toda ficção é turva,
incerta, incompleta. Ao contrário do que em
geral se pensa, a ficção não se define pela
mentira. Não é qualquer coisa, não é o reino
do vale tudo. A ficção se define, ao contrário,
pela imprecisão - algo em que só se esbarra
quando se busca a precisão impossível. Nunca
temos tudo desse mundo: ele está sempre a
nos escapar, está sempre cravado de buracos,
de falhas, de vazios. Pense em Diadorim,
em GH, em Alberto Caeiro, em Brás Cubas.
Os grandes personagens de ficção são
turvos, incompletos, esquivos, imperfeitos
– parecem-se, muito, com fantasmas. Toda
a nossa vida pessoal está, também, povoada
de fantasmas: lembranças vagas, memórias
imperfeitas, vultos inacessíveis.

Você mora em Curitiba, uma cidade gelada,


que, se não tem fantasmas, tem um vampiro.
sombra do escritor tcheco se infiltrou na Como um carioca lida com esse cenário?
Entrevista a Raimundo Carrero narração de Castello, nas relações familia- Sigo uma fórmula criada por meu amigo
res e literárias de Castello. É compreensí- Cristóvão Tezza: vivo em Curitiba como
Um dos livros que mais me empolgaram vel: no fundo, todos nós somos devedores se não vivesse em Curitiba. Aliás: é assim
este ano foi Ribamar, mistura inusitada de de Kafka. Ribamar, vencedor do Jabuti na que se vive em Curitiba! É uma cidade
crítica literária com suposta biografia, dentro categoria melhor romance, foi o tema da introvertida, fechada, desconfiada, uma
do emaranhado de gêneros que a literatura minha conversa com esse carioca radicado cidade - mesmo com mais de 2 milhões de
contemporânea exige. A felicidade da minha na gelada Curitiba, uma cidade que parece habitantes - cheia de solitários. Gosto muito
leitura não foi de causar espanto: trata-se do ter sido formatada para abrigar escritores. O de viver em Curitiba, aprendi a amar essa
segundo romance de José Castello, um dos próprio autor fez questão de dar a fórmula cidade. Mas o que mais amo em Curitiba? O
nossos melhores críticos e figura eterna- para conviver bem com o jeito curitibano silêncio, a distância, a solidão, a introspecção
mente preocupada com o que a ficção pode de ser: “Sigo uma fórmula criada por meu – ou seja, as ausências! Wilson Bueno dizia
nos causar. Um homem que investiga livros amigo Cristóvão Tezza: vivo em Curitiba que Curitiba é uma “cidade de escritores”.
que completam pessoas, como próteses; que como se não vivesse em Curitiba. Aliás: é Como ele, acredito que Curitiba tem um
investiga personagens que nos perseguem assim que se vive em Curitiba! É uma cidade temperamento propício à literatura.
como se fôssemos suspeitos de algum cri- introvertida, fechada, desconfiada, uma
me. Mas de qual crime mesmo? Isso está cidade — mesmo com mais de dois milhões Você esteve várias vezes no Parnaíba,
parecendo até uma história de Kafka... E a de habitantes — cheia de solitários.” onde seu pai nasceu e cresceu. Que

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Nunca temos tudo Um amigo carioca


deste mundo, ele me telefona para
está sempre a nos me perguntar se,
faltar. Estamos no dia dos pais
sempre cravados de 1976, dei um
de buracos, de exemplar de Carta
falhas e de vazios ao pai, de Kafka
ajuda essas viagens podem experiência com a música? Perguntei, por falta absoluta de livro, passei a nela encaixar Minha dívida com Franz Kafka
ter lhe dado? Muitas vezes Ribamar é um livro feito de assunto, que música era aquela. meus escritos. A partitura tem, vem de muito antes. Aos 12 ou
pensei que você fosse fazer acasos. Dizendo melhor: de Ela se espantou que eu não a ao todo, 98 notas musicais 13 anos li pela primeira vez,
um romance naturalista ou uma escuta atenta do acaso. conhecesse. Era a música que – logo, o livro deveria ter 98 completamente atordoado, A
realista. Mas não foi nada O romance me surgiu de um meu pai cantava para que eu capítulos, concluí. Cada capítulo metamorfose. Reli o livro várias
disso. O livro driblou todas as evento verdadeiro e inesperado. dormisse, ela me disse. A música corresponde a uma nota musical. vezes e quanto mais o lia,
expectativas e é ainda maior. Um amigo carioca me telefona que meu avô, Lívio, cantava para A cada nota, corresponde um menos o entendia. A leitura
Na verdade, só estive em um dia para me perguntar se, que meu pai, Ribamar, dormisse. tema: Parnaíba, Kafka, sonhos, de Kafka criou um rombo em
Parnaíba duas vezes. A primeira, no dia dos pais do ano de 1976, A música que meu bisavô, aves etc. Quem conhece um minha imaginação, fratura essa
no ano de 1955, com meus pais, dei um exemplar da Carta ao pai, Manuel Thomas, cantava para mínimo de música sabe que que tentei preencher com novas
quando eu tinha quatro anos de Franz Kafka, de presente a que meu avô, Lívio, dormisse. as notas musicais, quando e novas leituras. Logo: ela me
de idade. Uma viagem de que, meu pai, José Ribamar. Mas Uma canção de ninar, que liga os dispostas em uma partitura, transformou em um leitor! Sou
é claro, não guardo lembrança como ele podia saber disso?! homens da família! Pedi então ganham intensidades. Existem um leitor apaixonado de Kafka,
alguma. Enquanto trabalhava Ele estava em um sebo do a meu irmão, Marcos, que toca as mínimas, as semínimas (que, não só de suas geniais narrativas
em Ribamar, decidi fazer uma centro do Rio, reencontrou esse violão, que fizesse uma partitura como diz o nome, correspondem curtas, mas em especial de O
nova (a rigor, a primeira) velho exemplar, leu o autógrafo da canção. Eu a deixei, durante à metade das mínimas), as fusas processo. E é claro, quando li a
visita a Parnaíba. Passei uma assinado por um certo José e semanas, pregada na parede (metade das semínimas) etc. Carta ao pai, identifiquei-me
semana, não precisei mais do nele reconheceu minha letra. de meu escritório, sem saber o Na partitura da Cala a boca só imediatamente. Como em Franz
que isso. Meu pai não nasceu Era o livro que, cerca de 40 anos que fazer com ela. Sabia que, de existem mínimas, semínimas e seu pai Hermann, minha
em Parnaíba, mas em um sítio depois, me retornava! Meu amigo alguma forma, ela devia entrar e fusas. Decidi então que, para relação com meu pai também
no centro do Piauí. Mas foi o comprou e me enviou pelo em meu livro, Ribamar, mas não reproduzir essas intensidades, foi muito difícil. Lutamos, todo o
levado para lá por seu pai, meu correio. Eu o folheei avidamente, sabia como. Até que um dia eu precisaria estabelecer uma tempo, para nos aproximar. Mas
avô Lívio, quando ainda usava em busca de alguma indicação me veio a resposta: a partitura regra quanto ao tamanho dos havia um deserto, um abismo.
fraldas. Meu pai nasceu em de que meu pai, de fato, o lera. deveria ser a estrutura do livro. capítulos. A cada mínima, decidi, Era exatamente o que eu sentia
1906. Visitei Parnaíba em 2008 Nada encontrei. Mas achei a Sua alma! A rede em que eu corresponderia um capítulo – e tenho certeza de que ele
– portanto, 102 anos depois! história espantosa demais para ligaria minhas anotações, até de seis mil caracteres. A cada sentia algo parecido também.
Meu pai viveu em Parnaíba só que ficasse perdida. Era uma ali dispersas, incongruentes, semínima, de três mil caracteres.
até a maturidade. Desceu para o história inverossímil, improvável soltas. Só quando fiz essa E a cada fusa, de 1.500 caracteres. Ribamar também conta
Rio, em definitivo, em meados – fantasmagórica! – , que descoberta, cheguei de fato a O problema é que eu tinha com crítica literária. Crítica
dos anos 1920. Portanto, eu guardava a estrutura de uma Ribamar.Antes, eu escrevia às capítulos longuíssimos, muitos literária, sob certo sentido, é
sabia, todo o tempo, que não ficção. Resolvi escolher, então, cegas, sem saber o que escrevia. oscilavam entre os 20 e os 30 também ficção?
encontraria vestígio algum de um pequeno trecho do livro, só Para ver, precisei não ver, mas mil caracteres. Logo, seguindo Não tenho dúvida de que é
sua passagem pela cidade. Mas algumas linhas, e o sublinhei, ouvir uma canção de ninar. as sábias lições de João Cabral ficção também! Com a chegada
então, por que fui a Parnaíba? como se meu pai o tivesse – sim, um poeta, você está certo da literatura à universidade, em
Meus primos Alcenor e Carlos escolhido e sublinhado. A partir Você escreveu e reescreveu – dediquei-me a cortar e cortar meados do século 20, surgiu
José, que vivem na cidade e dessa hipótese – dessa fantasia várias vezes esse romance. e cortar cada um dos capítulos, a ideia de que a literatura é
nela me guiaram com todo o de algumas palavras sublinhadas Após esse processo tão até chegar aos tamanhos que assunto para especialistas.
carinho, fizeram um esforço –, comecei a escrever um livro trabalhoso, você retornaria ao lhes correspondiam. Passei três E, o mais grave, de que esses
imenso para me mostrar alguns que, eu sabia desde o início, não romance ou devemos esperar anos escrevendo, ou pelo menos especialistas praticam algo que
vestígios de meu pai. Creio que seria uma biografia, ou um livro um livro de poemas? rascunhando. E cerca de um se assemelha a uma “ciência
acreditaram, a maior parte do de memórias, mas uma ficção. Nunca pensei em escrever ano praticamente só cortando. da literatura”. Não existe nada
tempo, que eu escrevia uma Também a música, que batizei poesia. Mas muitas pessoas já Trabalhei, nesse período, como mais fatal para a literatura, eu
biografia! Não fui em busca da de Cala a boca, me chegou por comentaram que Ribamar tem um escultor que luta para penso, do que o distanciamento
verdade, mas da invenção. acaso. Minha mãe está muito uma escrita poética. Uma das arrancar da pedra bruta, a que a ciência lhe impõe.
doente, tem Parkinson. Está explicações talvez esteja no facadas, sua figura. Literatura não é ciência, não
Se olharmos de perto, o livro com a memória muito fraca, fica rigoroso processo de cortes a é filosofia, não é religião.
tem algo de música, a partir da longos tempos em silêncio. Um que submeti meu texto. Quando Com este livro, você se É uma forma de saber tão
canção do seu pai na infância. dia em que a visitei, ela começou decidi que a partitura seria a sente um devedor de potente quanto elas três, mas
Deu muito trabalho essa a cantarolar uma canção. estrutura – a alma – de meu Kafka, em certo sentido? absolutamente independente.

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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2011

É natural que o bom leitor, ou leitor sistemático, A partir desses exemplos você pode criar seus pró-
queira ser escritor. Nada mais normal. No entanto, prios caminhos, sem a necessidade de imitar. Isso tudo
quem quer escrever precisa aprender primeiro a não deve significar um caminho único; tente variações
pensar. Precisa definir o que quer com a obra. Es- que você vai estabelecer seu projeto de criação.
quecer toda vaidade. Será julgado pela crítica sempre Nunca esqueça que Aristóteles viu no persona-
de acordo com os resultados estéticos e o resultado gem a metáfora em ação. Você criará até se decidir
estético depende de sua maneira de ver o mundo. pelo melhor, observando, ainda, que uma página
Não existe forma/estética sem conteúdo, ponto de deve ter de quatro a cinco parágrafos de cinco li-
vista ou visão do mundo. Tudo isso responde a al- nhas, para deixar o leitor mais à vontade; uma
gumas simples perguntas: o que é que vou escrever? página com um só ou dois parágrafos de 10 linhas,
Como escrever sem saber o que vou dizer? Eu só sei cada, pode causar ansiedade no leitor. Desde que
o que vou dizer, se tiver um ponto de vista. Isso não não seja por motivo técnico.
significa que você vai escrever discursos ideológicos, Quanto ao diálogo, optará pelo diálogo interno ou
político, sermões religiosos, teses econômicas, ou até pelo discurso indireto livre . Se se tratar de uma
coisas parecidas. Aliás, tudo isso será transformado narrativa aberta, observe que o diálogo tradicional
em forma. Quem, por fim, realiza a sua obra é a – marcado por um travessão de acordo com a fala
técnica – os elementos internos da obra, que você ou com mudanças de fala – será mais aconselhável
vai escolher ou definir. até pela distribuição das palavras na página, com
Mas lembre-se, seja qual for o seu ponto de vista, espaço aberto entre as falas.
é preciso começar uma obra ficcional – romance, O que é um diálogo interno? É quando o autor não
conto ou novela – sempre com um cena em ângulo usa travessões, nem aspas, nem verbos dicendi. Este

Raimundo
aberto, o que transformará sua ideia em técnica. A tipo de diálogo aparece dentro da narrativa, e deve ser
cena significa movimento, o que, em geral, provoca o usado, por exemplo, no caso dos textos intimistas.

CARRERO
interesse do leitor. Lembre-se, por exemplo, da cena Você estava lá? Não devia ter ido, não devia ter saído. Não
de abertura de Madame Bovary. Quando o romance podia ir embora. A surpresa ficou na boca. Assim, suspensa.
começa,os alunos estão sentados, sonolentos, abrin- Toda surpresa é suspensa? Nem devia haver, uma surpresa. O
do a boca, silenciosos. Aí entra o tutor conduzindo olho aceso ali, espiando. Coisa incrível a surpresa. E os olhos
uma carteira e, ao lado, um rapaz, que chama a mirando, mirando muito bem. (Trecho do meu livro Seria
atenção até pelo boné exótico. O professor decide uma sombria noite secreta).
perguntar seu nome e ele, supertímido, solta um gru- Qualquer leitor mediano percebe que existe aí
nhido que nada quer dizer: - charlesbovarrrrrrrrrrrr- um diálogo. Basta verificar o ritmo. E o ritmo é
ry, e repete: Carlesbovarrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrry. O fundamental em qualquer narrativa, sobretudo,
professor pede então que ele se levante. Na verdade, por causa das perguntas e das respostas. Aí não há
ele se levanta, e o chapéu exótico, ridículo, cai no a poluição das aspas nem os espaços abertos por
chão e é chutado pelos colegas. Depois de todo esse causa dos travessões. A narrativa continua íntegra,

Não se acanhe:
embaraço volta a se sentar. intima, interior. Por esta razão é que funciona me-
Neste momento, Flaubert apresenta o personagem, lhor numa narrativa intimista.
mostra como ele se comporta e deixa claro que tipo No texto aberto, solto, para narrativas sociais,
de personagem tratará no transcorrer do romance. políticas, históricas, documentais, jornalísticas,
Ou seja, é Charles Bovary, o futuro marido de Ema como já se disse, é aconselhável o diálogo aberto:

ficção é lugar
Bovary. E mostrará, ao invés de dizer, que se trata - Você estava lá?
de um homem fraco, sem reações, que se deixa - Não devia ter ido, não devia ter saído. Não podia ir embora.
levar pelos outros. Basta pensar nisso para entender - A surpresa ficou na boca. Assim, suspensa. Toda surpresa
a diferença entre técnica e conteúdo. é suspensa?

para conversa
Na época de Madame Bovary era comum se escrever - Nem devia haver, uma surpresa.
assim: “Na cidade de Ruen vivia um médico tímido, - O olho aceso ali, espiando.
fraco e trapalhão, tímido e incompetente chamado - Coisa incrível, a surpresa.
Charles Bovary. Ele estudou na escola X, onde era E os olhos mirando, mirando muito bem. (Trecho do meu
motivo de brincadeiras. Foi criado somente pela mãe, romance Seria uma sombria noite secreta).
porque o pai morreu cedo.” E as aspas? Como ficam as aspas nesta história?
O leitor perceberá, mais tarde, que o primeiro en- É preciso ressaltar, todavia, que o escritor, desde
Aprenda, este mês, as contro dele com Emma se dá em meio a uma pequena
confusão – que quase repete a primeira apresentação,
o princípio, deve entregar seu ponto de vista a um
narrador em terceira pessoa, em primeira pessoa,

diferenças entre o diálogo mas se estabelece a diferença de caráteres, a que


Flaubert chamou de “personagens em oposição”.
ou na falsa primeira ou falsa terceira pessoa. O
autor não deve entrar na história. De forma alguma.

interno e o diálogo livre


Ao contrário de Charles, Emma é apresentada como Mesmo se for um romance, uma novela ou um
alguém capaz de tomar iniciativas, pronta para estar conto autobiográfico, o autor deve usar sempre a
sempre à frente. É nesse sentido que os romances de simulação . Escolhe um personagem e faz dele seu
Flaubert provocam renovações. alter ego. E o que é falsa primeira ou falsa terceira
DIVULGAÇÃO/ESPAÇO LLANSOL,SINTRA, PORTUGAL

LANÇAMENTO
Marco Maria Gabriela Llansol tem suas obras lançadas pela
Polo editora Autêntica, pela primeira vez no Brasil
A editora Autêntica inicia o juntos numa caixa. Os livros
lançamento da obra de Maria vêm apresentados por Arnaldo
Gabriela Llansol (foto), uma Antunes, Lucia Castello Branco
estranha (e desconhecida no e Alice Ruiz, que ressaltam o
Brasil) escritora portuguesa, para caráter labiríntico e fragmentário
quem “tudo é simultâneo e tem da escrita de Llansol, bem como
as mesmas raízes, escrever é o sua originalidade. Fazer da
duplo de viver”. As primeiras vida a palavra, fazer da palavra

MERCADO obras são três diários: Um


falcão no punho, Finita e Inquérito
a vida, sem que isso resulte
em intensidade menor para

EDITORIAL às quatro confidências, seguidos


de um pequeno volume com
uma ou outra, pelo contrário:
o que se irradia dos livros da
entrevistas dadas pela autora, escritora é, sobretudo, fulgor.

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A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
JANIO SANTOS
CONSELHO EDITORIAL
I Os originais de livros submetidos à Cepe,
exceto aqueles que a Diretoria considera
projetos da própria Editora, são analisados
pelo Conselho Editorial, que delibera a partir
dos seguintes critérios:

1. Contribuição relevante à cultura.

2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,


que privilegia:

a) A edição de obras inéditas, escritas ou


traduzidas em português, com
relevância cultural nos vários campos
do conhecimento, suscetíveis de serem
apreciadas pelo leitor e que preencham
os seguintes requisitos: originalidade,
correção, coerência e criatividade;

b) A reedição de obras de qualquer gênero


da criação artística ou área do
conhecimento científico,
consideradas fundamentais para o
patrimônio cultural;

3. O Conselho não acolhe teses ou


dissertações sem as modificações
necessárias à edição e que contemple a
ampliação do universo de leitores, visando a
democratização do conhecimento.

II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá


parecer sobre o projeto analisado, que será
comunicado ao proponente, cabendo à
diretoria da Cepe decidir sobre a publicação.

III Os textos devem ser entregues em quatro


vias, em papel A4, conforme a nova
ortografia, em fonte Times New Roman,
pessoas? A falsa primeira pessoa, por exemplo, é pareça mais correto. É claro que os caminhos são tamanho 12, com espaço de uma linha e meia,
uma técnica em que a narrativa é escrita na pri- muitos, inclusive no uso dos cenários nem sempre sem rasuras e contendo, quando for o caso,
meira pessoa, mas com movimentos de terceira. bem recomendados. A liberdade é o caminho da índices e bibliografias apresentados conforme
Lembrando, ainda, que a primeira pessoa é uma criação. As técnicas servem para indicar, iluminar
as normas técnicas em vigor.
narrativa em close, quando a narrativa está centrada os caminhos criadores. Mas sem servir de amarras
no personagem central, que conta, que explica, fortes e definitivas. Cada escritor deve saber o que
que expõe. Na terceira pessoa, a narrativa está fazer na hora certa, no momento adequado, sem IV Serão rejeitados originais que atentem contra
sempre aberta, vista de muitos ângulos, de muitas jamais perder a própria identidade. Nunca ceda a Declaração dos Direitos Humanos e
maneiras, não se fecha em si mesma. ao desejo de criar sozinho. Conheça as cenas, os fomentem a violência e as diversas formas de
É preciso ressaltar, ainda, que esta não é uma cenários, os diálogos e use-os conforme a sua
preconceito.
regra. Nem muito menos infalível. O estudioso deve necessidade sem renunciar à sua vontade, deter-
procurar outras variantes e seguir aquela que lhe minação e liberdade.
V Os originais devem ser encaminhados à
Presidência da Cepe, para o endereço
indicado a seguir, sob registro de correio ou
protocolo, acompanhados de
correspondência do autor, na qual
informará seu currículo resumido e
endereço para contato.

VI Os originais apresentados para análise não


serão devolvidos.
CONCURSO NOVIDADE

Fundação inscreve para Romance de estreia de pernambucano retrata com sarcasmo


prêmio a infantil e juvenil personagem viciada em sexo virtual, vodca e miojo
Companhia Editora de Pernambuco
Estão abertas até o próximo dia 30 Nestes tempos de navegação on miojo, ML é surpreendente e
de dezembro as inscrições para o line, tuitar é preciso; já, viver??? escapa do patético pelo seu Presidência (originais para análise)
38º Prêmio da Fundação Nacional Para Maria Lúcia, a personagem senso de humor que não poupa Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ do romance Todo dia me atiro nada nem ninguém. Ninguém CEP 50100-140
2012. Poderão ser inscritos livros dos do térreo (Editora Bookess), mesmo, nem ela própria. Com Recife - Pernambuco
dois gêneros publicados durante o do jornalista pernambucano capítulos entrecortados de posts,
ano de 2011, devendo ser enviados radicado em São Paulo Lula a maioria com um pouco mais
cinco exemplares de cada para Falcão, viver não é nada se a de 140 caracteres, ela narra
a FNLIJ (Rua da Imprensa, 16. gente não relata o que faz no seu dia a dia, saltando de um
Salas 1212 a 1215. Centro. Rio de twitter ou no blog ou no facebook comentário sarcástico para uma
Janeiro. RJ. CEP 20030-120). Mais ou no orkut ou no msn ou no “dispirocância geral”, de um
informações pelo fone (21) 2262- you tube ou no skype. Viciada acontecimento non sense para
9130 e pelo e-mail fnlij@fnlij.org.br em sexo virtual, vodca e um porre com elegance. Hilário.

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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2011

CAPA

A que falta, a que


avisa e a que já foi
As definições possíveis a “No princípio era o Verbo, e o Verbo era Deus, e o
Verbo estava com Deus”. O primeiro versículo do
c, a, o têm múltiplas possibilidades além de seu
significado. Para quem não sabe ler o português,

determinar o que venha a


livro de João, no Novo testamento, prega que o início são letras; para crianças, são desenhos; para quem
de tudo está intimamente relacionado à palavra. não está alfabetizado, são traços. Quando lemos,
Apesar de evocar, teologicamente, Jesus Cristo - olhamos para uma figura, mas interpretamos aquilo
ser uma simples palavra o Verbo feito carne –, esse trecho faz referência
direta ao primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, no qual
como real. A leitura se faz justamente quando dei-
xo de dar atenção às letras e passo a evocar uma
o Deus dos cristãos dizia: “Faça-se a luz: e a luz imagem. É quase como um pensamento mágico”.
Isabelle Barros se fez”. Essas frases, no entanto, são mais do que
profissões de fé de homens ávidos por espalhar A PALAVRA E O SAGRADO
a Palavra. Elas denotam o papel fundador que a Nos ramos pentecostais e neopentecostais do cris-
palavra, ou o verbo – como linguagem - exerce no tianismo presentes no Brasil, a ênfase da experi-
pensamento ocidental. ência entre os participantes dos cultos é colocada
Segundo a herança greco-judaica na qual estamos nos resultados concretos da fé, no testemunho. O
imersos, o verbo (assim mesmo, em minúsculas) Verbo, para não se tornar “letra morta”, precisa
espalhou-se pelas criaturas e passou a mediar a atuar no mundo. É a isso que se dedica o ajudante
experiência do homem perante o mundo. Esse é o de carpinteiro Emi Francisco do Santos, 38 anos. O
exemplo mais próximo, mas não é o único. Os mitos operário da construção civil é frequentador assíduo
fundadores das mais variadas culturas têm a palavra de uma Assembleia de Deus próxima à sua casa,
em alta conta, como potência criadora que serve na comunidade do Bode, no bairro recifense do
para ordenar a vida. Vale lembrar também que as Pina. Sua rotina inclui idas diárias à igreja, mas é
três maiores religiões monoteístas – Judaísmo, Cris- às segundas-feiras, das 19h às 21h, que ele espa-
tianismo e Islamismo - têm como atributo central lha a Palavra de forma literal. Munido de caixa de
uma Palavra de caráter sagrado, revelada por Deus. som e microfone, o fiel se fixa em um ponto da
De acordo com as religiões, a palavra tem origem comunidade e dá início ao “dia de evangelização”.
sagrada, mas ela se tornou poderosa por ser um Enquanto Emi faz sua pregação, a família e outros
triunfo da abstração humana. Suas várias dimensões ajudantes – entre 20 e 25 por noite – distribuem até
passam pelo mágico, plástico, lógico, poético. Mes- 500 panfletos com passagens da Bíblia, chamados
mo os analfabetos, incapacitados de compreender e de “literatura”. “Quando a gente prega, acontece
utilizar os sinais gráficos de um determinado idio- algo diferente, não dá nem para definir. A gente
ma, estão mergulhados no ato do discurso. Precisam sente a presença de Deus”.
usar outras expressões de linguagem verbal, que A conversão de Emi, casado e com três filhos
não a escrita, para se relacionar com o outro e com ativamente engajados na Assembleia de Deus,
a sociedade na qual vivem. É a palavra que faz dos aconteceu há 13 anos, quando uma prima de sua
seres humanos “homens”. esposa convidou o casal a abraçar sua religião.
Mas ainda há algo de essencialmente primitivo “Eu e minha esposa frequentávamos um salão de
na junção arbitrária de partículas de traço e som, umbanda, mas aquela noite no culto me transfor-
embora elas sejam decompostas e represadas em mou”. Ele também chegou a organizar, junto com
dicionário. “Por que uma pedra se chama pedra? dois colegas, um culto evangélico no canteiro de
Ninguém sabe. A palavra é uma forma de ação. Até obras onde trabalhava. As reuniões começaram com
nos contos de fadas, a trama se desenrola por meio três membros e chegaram a atrair dez trabalhado-
de alguma evocação verbal, quando alguém fala, por res. O trabalho era interrompido pontualmente às
exemplo, ‘abre-te, sésamo’”, lembra a professora 12h25, até ele ser transferido e deixar de participar
de Letras da UFPE Nelly Carvalho. dos encontros. “Chegamos a converter um colega
Ela assinala que, em todos os idiomas, há uma durante o culto. Outro colega disse que a oração
categoria básica de vocábulos, que engloba os do nosso grupo foi tão forte que conseguiu curar o
substantivos, adjetivos e advérbios. Por dizerem filho dele, que estava em casa, doente”.
respeito às partes mais essenciais da vida humana, Gonçalo M. Tavares defende que as palavras di-
se tornaria impossível categorizar o mundo se elas tas sagradas, embora sejam passíveis de fornecer
não existissem. As outras classes dizem respeito às rico material conceitual à literatura, operam em
palavras de relação, que dependem de cada cultura. um campo diverso. “A frase ‘mudar com Cristo’,
O que não muda, segundo a professora, é o poder por exemplo, não tem qualidade literária se for
que a palavra ainda exerce na sociedade contem- apreendida fora da religião. No entanto, ela resistiu
porânea, onde a tecnologia e a superexposição a ao tempo, e é justamente isso o que todo escritor
imagens fazem parte cada vez maior da experiência almeja”. Em uma de suas obras Aprender a rezar na era
cotidiana. “Entre no Google e perceba que é com a da técnica (2007), o escritor lusitano diz ter partido
palavra que tudo começa. Sem ela, é impossível do seguinte questionamento: “Será que, no século
achar o que se procura, mesmo que o resultado 21, temos que inventar uma nova oração para um
procurado seja uma imagem”. mundo onde a técnica solapou a natureza ou as
A potência infinita do alfabeto como expressão rezas antigas mantêm sua força?”.
do engenho e da arte foi lembrada pelo escritor Em alguns sistemas de crença, a palavra é tão
português Gonçalo M. Tavares em sua passagem por poderosa que ela não precisa nem ser compreen-
Olinda, durante a última Festa Literária de Pernambuco dida, apenas vista e mentalizada, para surtir efeito
(Fliporto). “Vejamos a frase ‘cão não morde’. O ex- real. É a proposta da Cabala, sabedoria hebraica
traordinário, em termos de escrita, é que as partes antiga que se tornou pop por abrigar legiões de ce-

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FOTOS: RICARDO MOURA | DESIGN: KARINA FREITAS

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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2011

CAPA

lebridades e não exigir que seus seguidores abram


mão de suas religiões de origem. Nela, Deus teria
72 “nomes”. As aspas são necessárias, pois seus
seguidores postulam que esses “nomes” não são
denominações da forma como nós conhecemos,
mas sequências de três letras, atuando como um
disparador de energias espirituais específicas. “Ao
simplesmente olhar as letras, bem como fechar
os olhos e visualizá-las, podemos conectar com
essas frequências e com isso acender a chama do
criador adormecida dentro de nós”, diz o site do
Kabbalah Centre no Brasil.
O porta-voz da instituição, Yonatan Shani, afirma
que tais letras, antes acessíveis somente a iniciados,
“têm o poder de criar e controlar a realidade. Isso
não tem nada a ver com religião organizada, são fer-
ramentas que podem ser utilizadas na vida diária”.
Porém, isso não significaria que as pessoas podem
transcender os problemas cotidianos por meio da
Cabala simplesmente recitando essas letras divinas.
“A maioria dos seres humanos, quando não têm
suas preces atendidas, acha que Deus não os ouviu.
Não é que a pessoa tenha falado algo de errado, mas
faltou conhecimento para fazer a palavra funcionar
a seu favor. Há pessoas que tatuaram letras hebrai-
cas no seu corpo e, por causa disso, acham que a
vida vai mudar instantaneamente. Muitos também
procuram a Cabala em busca de alguma espécie
de magia, mas as palavras são meios, e não fins”.

Para a Cabala,
Deus teria 72
“nomes”, que
são sequências
de três letras,
liberando energias
espirituais
A relação entre religião e palavra desce a mi-
núcias delicadas quando se chega ao Islamismo.
Os muçulmanos acreditam que o idioma árabe foi
revelado ao profeta Maomé, ao longo de 23 anos,
no livro sagrado da religião, o Alcorão. “A oração é
feita apenas para Deus, sem intermediários. Então,
no mundo inteiro, o seguidor do Islã é obrigado a
ler e escrever o árabe para praticar a religião como
se deve. Uma oração recitada em outro idioma não
tem valor”, explica o sheik Mabrouk El Sawy Said,
do Centro Islâmico do Recife.
Para os seguidores do Islamismo, o Alcorão é uma
instituição, pois tem uma ação sobre espectros am-
plos de sua vida, com ensinamentos sobre dogma,
moral e leis. Foi feito para ser recitado e memorizado.
“É por isso que não há comparação possível entre o
Alcorão e a Bíblia”, lembra Said. Mas, por terem um
patriarca comum – Abraão – e por apresentarem es-
crituras sagradas, os cristãos, assim como os judeus,
são conhecidos pelos muçulmanos como “Povos do
Livro”. Para os islâmicos, o Alcorão é tão importante os aspectos não existe. Por que exigir a perfeição mesmo tempo, usa o verbo como instrumento de
que a tradução dele para outros idiomas é entendida só dos tradutores? Toda prática humana é falha, concórdia”, aponta Jarouche.
como uma pálida representação do sentido do livro embora sempre almeje a perfeição. A tradução não Gonçalo M. Tavares diz que a maior riqueza da
original. “Há oito versões do Alcorão para o portu- é melhor nem pior que as outras”. linguagem é inventar mundos paralelos por meio
guês, mas nenhuma delas é sagrada. Como foram A palavra, de acordo com Jarouche, também é da ficção. “Quando eu digo ‘ontem vi um elefante
feitas por mãos humanas, não são a tradução exata capaz de criar outros tipos de ponte, não apenas voar por cima da igreja’, eu crio um universo ima-
da palavra de Allah”, diz o sheik Said. entre um idioma e outro, mas entre a humanidade ginário, impossível fisicamente, e isso mostra que é
e a barbárie. “Nas grandes cidades, quase sempre os possível se abrir a um mundo que não vemos. Falar
PALAVRA HUMANA, DEMASIADO HUMANA ladrões dizem ‘não fale’, pois a palavra cria vínculos essa frase, a princípio, é um absurdo, mas é o que
É antigo o uso do adágio “tradutor, traidor” para entre as pessoas. Se torna complicado você tentar nos diferencia dos animais. Quem não gosta da
designar o ofício de dar sentido em uma língua às manter uma conversação com um bandido, porque ficção, do imaginário, limita sua cabeça ao mundo
palavras originadas em outra. A tradução, assim, se o modus operandi dele é a violência”. visível, e isso é empobrecedor”.
torna metáfora da imperfeição humana. O professor Transcender a realidade através da literatura, da Na família de Emi, há outro caso de transfor-
e tradutor Mamede Jarouche, premiado por verter narrativa, é outra forma de manter a essência do mação pela palavra, mas por uma via diferente
o Livro das mil e uma noites do árabe para o português, ser humano. “A estratégia da personagem Shera- do sagrado. Para Ricardo “Kcal” Gomes, 37 anos,
defende a tradução como obra do instinto e do sen- zade, das ‘Mil e Uma Noites’, é o uso apropriado da cunhado do operário e pregador, foi com a literatura
timento. Posição semelhante tem o poeta e tradutor palavra para a sobrevivência. Ao contar histórias que ele conseguiu chegar à abstração, em um local
Paulo Henriques Britto. “Resumindo drasticamente por noites a fio a um rei traumatizado pela traição onde as necessidades mais básicas de sobrevivência
minha posição: uma tradução perfeita sob todos de uma antiga esposa, ela evita sua morte e, ao estão sempre na ordem do dia. Também morador

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FOTOS: RICARDO MOURA | DESIGN: KARINA FREITAS

uma reviravolta. Atualmente, a livroteca está em


estado de hibernação, pois os convênios oficiais
que a mantinham funcionando expiraram. O acervo
compilado em 15 anos de militância literária está
distribuído entre a casa de Kcal e a antiga sede da
Livroteca Brincante, onde atualmente funciona um
mercadinho. Frustrado com quem antes o papari-
cava, Kcal se queixa de que promessas têm validade
curta, principalmente quando se trata de dinheiro
público. “Acho que a palavra é forte quando usada
com atitude. Sem atitude, ela fica ao vento”.

A PALAVRA COMO FIGURA


A noção de que a palavra vai além da união entre o
som e o significado e apresenta uma dimensão plás-
tica é contemplada de forma mais atenciosa tanto
na civilização árabe quanto no Extremo Oriente,
onde a caligrafia foi elevada ao status de arte. Os
ideogramas chineses e japoneses expressavam
conceitos, em vez de fonemas a serem reunidos de
forma arbitrária ao longo do tempo. O orientalista
Ernest Fenollosa (1853 – 1908) aponta que a no-
tação chinesa, por exemplo, ia além de símbolos
arbitrários; estava baseada num entendimento
das operações da natureza. O “método chinês” se
faz entender por meio de uma sugestão natural: a
palavra “homem”, por exemplo, era representada
por três traços – um “tronco” e duas “pernas”. A
evolução da escrita oriental no tempo servia para

“Um quadrado
pode nos
emocionar tanto
quanto uma
palavra”, avisa o
escritor Gonçalo
M. Tavares
estilizar os caracteres; a ideia central, no entanto,
seguia preservada.
O designer, tipógrafo e professor universitário
Leonardo “Buggy” lembra que é possível explorar
novas possibilidades para a representação gráfica
da escrita, ainda que seja utilizado o alfabeto foné-
tico ocidental ao qual estamos acostumados. “As
fontes alteram, sim, o significado do que é lido.
Quando ainda era estudante de design da UFPE,
fiz um trabalho na qual escrevi em uma belíssima
letra cursiva as palavras ‘puta’, ‘corno’ e ‘viado’.
Ou seja, a forma da palavra pode até contradizer
seu significado”.
Em um mundo no qual a saturação de imagens
virou tema recorrente, Buggy lembra das transfor-
mações da forma das palavras a partir do uso social
da tecnologia. “Novos códigos emergem continu-
amente: hoje, se você entrar na internet e escrever
com o Caps Lock ativado, parece que você está
gritando. O jeito com o qual a palavra é escrita pode
da comunidade do Bode, ele tornou-se conheci- história, pouco a pouco, se espalhou e chamou a remeter a um tom de voz”.
do por abrir uma biblioteca comunitária e por se atenção de jornalistas e autoridades, que passaram É pela imagem, pelas figuras, segundo Gonçalo
apresentar como “traficante de livros”, em um a cortejá-lo, oferecendo apoio a suas atividades. M. Tavares, que se pode promover uma reconci-
lugar onde o verbo traficar era sinônimo apenas Daí veio a mudança para um espaço maior, bati- liação entre a palavra escrita e sua representação
de conflito com a lei. zado de Livroteca Brincante do Pina, reconhecida primitiva, o traço. Esse último elemento, que existe
Kcal diz ter conhecido literatura aos 16 anos, ao pelo Ministério da Cultura e inaugurada em 2009 antes da palavra, está presente de forma central
encontrar uma caixa cheia de livros às margens do como primeiro Ponto de Leitura do país. A vida do em duas das obras do escritor português: O senhor
Rio Capibaribe, enquanto jogava bola. Dentro dela, autodenominado agitador cultural ganhou até uma Swedenborg e as investigações geométricas e O senhor Valéry
havia títulos como A rosa do povo, de Carlos Drum- cinebiografia, chamada A mão e a luva – A história de e a lógica. “Há todo um mundo infantil que se perde,
mond de Andrade, e A mão e a luva, de Machado de um traficante de livros, rodada por um cineasta italiano quando começamos a ler e a abandonar o desenho
Assis. “Me apaixonei de cara. Virei fã de poesia, chamado Roberto Orazi. “Ser alternativo, diferente em favor da linguagem escrita. O desenho é ou-
tanto que hoje escrevo meus versos e componho do meu meio, era um defeito. Hoje tenho repercus- tra forma de pensamento, e há uma grande falha
algumas músicas”. Aqueles eram os primeiros li- são, visibilidade, amigos. As pessoas me respeitam, do conhecimento humano quando eles saem do
vros de um conjunto que hoje reúne 20 mil obras, acreditam em mim. A livroteca é uma forma de mundo natural para se tornarem, muitas vezes,
adquiridas por meio de compra ou doações. libertação para a comunidade”. Para Kcal, a acei- algo técnico. Um quadrado pode nos emocionar
A primeira sede da biblioteca comunitária do tação de seu trabalho se mede por passar imune a tanto quanto uma palavra”.
Bode, batizada de Guardiões, foi improvisada na um constrangimento que atinge outros moradores.
casa de Kcal, localizada em uma das palafitas que “Não sou revistado pela polícia há anos”. Isabelle Barros é jornalista e mestranda em teoria da
ainda hoje existem no local. O inusitado de sua Mas, mesmo depois de tanta exposição, houve comunicação.

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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2011

CAPA

Delas “vivem”
poetas, filósofos
e a nossa razão
Entenda como os pensadores
ergueram a “realidade” das
palavras que nós usamos
Eduardo Cesar Maia

Uma maneira interessante e elucidativa de abordar a filosofia como ontologia, quer dizer, como busca de
história da filosofia no Ocidente é tentar compreender uma totalidade – um pensamento orientado à reflexão
as diferenças fundamentais entre escolas e tradições sobre o ser de tudo o que há e suas causas últimas.
filosóficas distintas a partir do problema da palavra ou Pode-se dizer que, na Modernidade, os métodos
de como cada uma das várias correntes teóricas en- foram modificados, mas os fins não se distanciaram
tendia o funcionamento da linguagem e seu papel no tanto da visão racionalista clássica. O emblema filo-
ato de conhecer. Desde suas origens na antiguidade, sófico de um dos principais pensadores modernos,
o projeto maior da filosofia, seu fim último – pelo Baruch Espinosa, não deixa dúvidas: o conhecimento
menos em seu viés racionalista –, relacionava-se com deve ser buscado sub specie aeternitats (sob a perspec-
a ideia de que a natureza essencial de tudo que existe tiva da eternidade). O foco da filosofia se volta para
podia ser apreendida intelectualmente pela razão e a mente e o conhecimento racionalista do mundo,
pela linguagem humanas. O termo logos, que entre os baseado na noção cartesiana de que a razão é nossa
muitos significados, abarcava, no pensamento grego, única e exclusiva via de acesso a um mundo que, de
as concepções de palavra e razão ao mesmo tempo, outro modo, seria inacessível, e que a realidade não
transmitia a ideia de que, de alguma forma, a lei e a é senão aquilo que nossas ideias podem representar
lógica que regiam o universo estavam em harmonia desse mundo em nosso pensamento. “Não há outra
com a razão humana e podiam ser captadas por esta. realidade que a de nosso pensamento”, declarou
Era meta do filósofo, pois, ultrapassar o uso cotidiano Berkeley; ou, em outras palavras, esse est percipi (ser é
e pragmático das palavras e chegar a uma espécie ser percebido). O filósofo, nessa concepção moderna,
de idioma transcendental (ou uma linguagem ideal, passa a ser definido como alguém que conhece o
como diriam os positivistas lógicos do século passado) mundo porque domina as ideias.
que apresentasse a verdadeira natureza das coisas, Hegel localizava em Descartes a origem do pensa-
da realidade, independentemente de pontos de vista mento moderno porque o francês assumia que toda a
individuais e subjetivos. As famosas críticas de Platão filosofia do Renascimento – o pensamento humanista
– representante maior dessa tradição racionalista – aos – era somente uma forma de especulação “sensorial e
poetas e, também, aos retóricos sofistas, fundamen- figurativa”, um jogo retórico e filológico que não atingia
tavam-se justamente nesse projeto de atingir uma uma claridade conceitual e que não se podia classificar
forma de conhecimento superior, universal, através como racional. Mais uma vez – recordemos a disputa
do emprego “exato” das palavras. Para chegar a esse entre Platão e os sofistas – a retórica, o senso comum,
grau de conhecimento (episteme) de uma totalidade a poesia e o uso cotidiano e pragmático das palavras
inteligível e coerentemente organizada, era necessário eram considerados impróprios para a verdadeira filosofia.
abandonar a esfera do meramente sensível, do transi- A hegemonia da perspectiva racionalista levou a uma
tório e contingente. As palavras do verdadeiro filósofo concepção de critério científico como rigor formal,
deveriam, portanto, abandonar o âmbito da simples quer dizer, o valor de verdade das proposições está
opinião (doxa). Platão, seguindo as indicações de ante- na adequação lógica em relação com as premissas
cessores como Parmênides e Heráclito, assume como estabelecidas: as palavras, para serem verdadeiras,
empreendimento autêntico da filosofia a fundação de tinham que obedecer a uma dedução lógico-racional,
uma linguagem abstrata e formal, independente de e nenhuma forma de linguagem comum, cotidiana,
fatores temporais e históricos. Tal tradição entende pragmática ou artística, que se servisse de imagens,

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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2011

FOTOS: RICARDO MOURA | DESIGN: KARINA FREITAS

A característica que não existe nenhuma expressão real e nenhum


conhecimento independente da metáfora, da analogia.
As metáforas mais correntes, as mais usuais, são as
“Entender uma palavra é entender seu uso”; quer dizer,
compreender um conceito é ter conhecimento das
complexas e variadas significações que ele assume na

comum a todas que temos por verdades e as que usamos como critério
para considerar aquelas não tão comuns. Para ele, pois,
conhecer é trabalhar com metáforas favoritas, uma
linguagem normal, no uso comum das pessoas, num
sistema vivo e amplo de relações; a linguagem, dirá o
segundo Wittgenstein, é uma forma de vida.

as formas de imitação que já não se experimenta como tal – co-


nhecer, poderíamos inferir, é estabelecer convenções
Em muitas correntes do pensamento contem-
porâneo, sobretudo a partir do giro linguístico e da

racionalismo é
sobre as palavras que usamos. O ceticismo linguístico hermenêutica, o enfoque da filosofia recai no estudo
de Nietzsche surge da constatação de que as palavras específico da linguagem, no uso filosófico das pa-
não podem captar as coisas em sua essência e verdade. lavras. Antes se tratava de conhecer algo que estava

a ambição de
“Não são as coisas – escreve o jovem Nietzsche no seu fora do sujeito – uma concepção de conhecimento
Curso de retórica – que penetram na consciência, mas a objetivo como espelho da natureza, na expressão crítica
maneira em que nós estamos ante elas (...). Nunca se de Richard Rorty; ou como olho de Deus (a suposição

chegar à palavra capta a essência plena das coisas. Nossas expressões


verbais nunca esperam que nossa percepção e nossa
experiência tenham procurado um conhecimento
de que somos capazes de abandonar nossa pers-
pectiva humana individual e contemplar o mundo
como realmente é, como se adotássemos o ponto

definitiva exaustivo, e de qualquer modo respeitável, sobre a


coisa”. A proposta de Nietzsche é tão radical e anta-
gônica à tradição racionalista que, até hoje, muitos
de vista de um ser onisciente), na formulação de
Hillary Putnam, ambos representantes de uma
nova forma de pensar. O ponto de partida hoje,
analogias e metáforas, poderia ter pretensões de co- ainda o consideram não como filósofo, mas como para filósofos como esses, é a atenção que devemos
nhecimento autêntico. A característica comum a todos uma espécie de escritor ou poeta. De fato, os poetas colocar a tudo que dizemos – e como o dizemos –
essas formas de racionalismo é a ambição de chegar se deram conta antes dos filósofos da impossibilidade sobre a realidade. A partir desse ponto de inflexão,
à palavra definitiva: substituir a opinião pelo conheci- de uma mímeses absoluta. o filósofo já não conduz suas reflexões com base
mento e acabar com essa conversação interminável Outra concepção alternativa ao racionalismo me- em uma suposta certeza que lhe dá a Natureza ou
sobre os mesmos temas – que é o que caracteriza a tafísico pode ser encontrada no pensamento maduro a Razão: a investigação agora se centra na análise
história da filosofia. do espanhol Ortega y Gasset. Para ele, o verdadeiro crítica da linguagem e na hermenêutica (inter-
A crítica ao uso exclusivamente racionalista das sentido de uma palavra não é o que encontramos pretação de textos) como forma de entendimento
palavras aparece em filósofos diversos, de épocas e estático e imutável nos dicionários, mas aquele que da complexidade inesgotável do mundo. Grandes
correntes as mais variadas. Entre eles, Friedrich Niet- ela tem no momento e nas circunstâncias em que é teorias explicativas do real e os complexos sistemas
zsche merece destaque pela demolição das concepções proferida: “após vinte e cinco séculos de adestrar a filosóficos passam a ser vistos com desconfiança;
ontológica e metafísica da filosofia e da linguagem. mente para contemplar a realidade sub specie aeterni- fica sob suspeita ainda a possibilidade de acesso a
Filólogo de formação, Nietzsche demonstrou a im- tats, temos que começar de novo e forjar uma técnica uma verdade universal, ou ao mundo em si, pois
possibilidade de delimitar uma fronteira clara entre intelectual que nos permita vê-la sub specie instantis!”, todo o conhecimento das coisas está mediado pelo
o uso literal e metafórico das palavras: “falar é uma escreveu. De forma muito semelhante, o vienense necessariamente cambiante e contingente uso da
bela loucura: falando, baila o homem sobre todas as Ludwig Wittgenstein, superando sua própria con- linguagem, das palavras.
coisas”. Dado que nenhum tipo de linguagem pode cepção inicial de linguagem como sistema lógico e
abarcar a realidade que nomeia, conclui que qualquer o entendimento da atividade filosófica como busca Eduardo Cesar Maia é mestre em Filosofia pela Univer-
linguagem é essencialmente metafórica, e mais: afirma dessa linguagem adequada e ideal, vai propor que sidade de Salamanca e doutorando em Letras pela UFPE.

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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2011

ENSAIO

Corte, costure e
JANIO SANTOS

deprede o autor
à sua vontade
Entenda a “biblioteca de
babel” que é o mercado de
resumo de obras literárias
Luís Fernando Moura

Bem-vindo ao lead, o exuberante pedaço de um O professor aponta, na prática, o que conceitua


texto jornalístico em que apresentamos a que ele exímia peça de resumo multimídia que encontra-
veio. Teóricos fundamentalistas da arte da infor- mos vacilando na Google: um arquivo de PowerPoint
mação diriam que neste espaço deveríamos res- universitário para o qual, no contexto neoliberal, o
ponder a questões fundamentais – o quê, quem, resumo literário seria fruto da instrumentalização
onde, como, quando e por quê – para capturar a da literatura, coadunada à lógica capitalista. Em
atenção do leitor médio e deixar que decida se outras palavras, resumos são peças de alto valor
quer prosseguir, ou não, com desdobramentos. porque, como diz Alves, “o colégio e o curso são
Um exemplar seminal de resumo. empresas, e existe uma questão mercadológica
Em terra de escrevinhanças completas, resumos para se atender. Disputa-se aluno a tapa, em meio
são personagens fundamentais para os que se queixam a rankings muitas vezes imprecisos”.
de uma surrada era da não leitura, em geral atribuída Na opinião do professor, o acesso a obras comple-
ao preço dos livros, ao sucateamento de bibliotecas tas é prejudicado ainda pela infusão geométrica de
públicas, aos socos e pontapés da cultura de massa e, títulos nas listas de indicação, somada ao costume
enfim, à ascensão de um mercado fast reading, composto comum de tomar a leitura como obrigação curricular.
pelo jornalismo online e seus primos bastardos – blogs, “Existe uma dissintonia entre as universidades. Em
microblogs e, pior ainda, as calhordas redes sociais –, Pernambuco, por exemplo, as universidades federais
uma homenagem gorda à leitura descompromissada. e estadual exigem a leitura de livros diferentes. No
Certos números apontam outra tendência. A pesqui- 3º ano do ensino médio, os alunos chegam a ter 16
sa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Ibope para o livros para ler, o que é impraticável”. O modelo de
Instituto Pró-Leitura, braço do Ministério da Educação, vestibular seriado, realizado ao longo dos últimos
registrou 95 milhões de leitores no País, há três anos, três anos escolares e oferecido em instituições como a
montante mais gracioso que os 26 milhões conta- Universidade de Pernambuco (UPE), seria alternativa
bilizados no ano 2000. Enquanto, antes, brasileiros para desafogar o sacrifício literário.
liam em média 1,8 livro anual, as páginas saltitaram
para 3,7 livros lidos per capita. Mas, diz o relatório, de MELHOR QUE A ENCOMENDA
cada 4,7 livros lidos por um brasileiro no ano, 3,4 são Passei Web, Mundo Vestibular, Curso do Fulano e outros jargões
indicados pela escola. E aí brota a lista de exigências de marketing feroz tentam capturar vestibulandos
literárias cumpridas com jeitinho especial. em incontáveis sites por onde resumos transbordam.
Machado de Assis, Jorge Amado, José de Alencar e Gra-
DISPUTAS DE MERCADO ciliano Ramos são cânones recorrentes nas relações,
A profusão de resumos de obras de literatura brasileira que incluem um ou outro estrangeiro.
na internet indica que as listas escolares, bombardea- Vários textos circulam anônimos, mas às vezes são
das pelos programas de vestibular, fundaram um nicho assinados por professores de literatura e comumente
de consumo literário instantâneo. “Os alunos sempre são excertos compostos de trabalhos acadêmicos.
pedem resumos. É um consenso de que eles devem Nos portais mais arrojados, mestres dissertam sobre
ler os livros, mas isto não é possível. Ou melhor, não as obras em vídeos-drops. Páginas rabugentas de
acontece”, pondera Jorge Alves, professor de literatura anúncios online, por sua vez, oferecem coletâneas de
e sócio de um dos colégios mais vestibuleiros do Recife. obras resumidas – para todos os vestibulares do Brasil,

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PERNAMBUCO,DEZEMBRO 2011

auxiliou com sugestões metodológicas para o bom


resumidor, se não com modestos conselhos. Primeiro,
pensou consigo, é bom dispensar Frederick Wilfrid
Lancaster, estrela bibliográfica da ciência da infor-
mação. “São muitas normas, mas para a literatura é
mais difícil”. Coerência, coesão e consistência, assim
como em textos científicos, são requisitos razoáveis. A
contextualização histórica é imprescindível, citações
são fundamentais e frases atraentes para apaixonar
secundaristas, desejáveis.
Cartilha suficiente para sintetizadores seria Como
fazer um resumo, da filóloga portuguesa Maria Almira
Soares: resumir bem seria “atingir o equilíbrio entre
o mínimo de palavras e o máximo da informação
relevante”, escreve a autora. Entre as artimanhas
do menos é mais, o linguista holandês Teun Adria-
nus van Dijk já teria sistematizado métodos de en-
colhimento: apagamento, quando se jogam fora
ornamentos de estilo ou narração; generalização,
quando se dispensam detalhes a partir de critério
semântico; e construção, quando uma sucessão de
eventos se resolve em um, simplesmente.
Tal lapidação, digna de parnasianismo cartesiano,
seria obra de autor, observa Anco Márcio Vieira, pro-
fessor de Literatura e Teoria Literária na Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). Mas, mais uma vez,
feita à imagem e dessemelhança do original. O caso
do tradutor, exemplo típico de disputas por assina-
tura literária, seria mais nobre. “Um bom tradutor
é aquele que deixa marcas. Muitas vezes, a solução
que ele dá sai melhor do que o original. Já o resumo
parte do princípio de que você tem um leitor que não
tem nenhum interesse em ter a experiência estética
da leitura, mas apenas saber do ‘assunto do livro’”.

HOMENAGEM À NÃO LEITURA


Talvez até haja algo irresumível. “Mas acho que todo
escritor é interpretável”, relativiza Ronaldo Correia de
Brito. Alguns resultados, no entanto, seriam dignos
de fruição mais cuidadosa que a média das sínteses.
“Algumas adaptações literárias tornaram-se obras de
muita qualidade. A Ilíada e a Odisseia de Gustav Schwab
transforma os epítetos, os versos alexandrinos, as
inversões, numa leitura extremamente agradável.
As mil e uma noites, de Antoine Galland, são talvez as
mais clássicas”.
Como todo resumo meticuloso tem fartas cita-
ções, lembramos o caso radical de adaptação fictícia,
esmiuçado no conto Pierre Menard, autor do Quixote, de
Jorge Luís Borges. O narrador traça defesa indefectível
garantem – a R$ 20, em meio a ofertas de CD-ROM
de idiomas e cópias de livros didáticos. Enviamos um
e-mail, e o serviço funciona.
Talvez até haja do colega Menard, que teria penado para reescrever
a obra de Miguel de Cervantes, 300 anos depois.
Reescrevê-la, ipsis litteris, palavra por palavra, o que se
O variado menu poupa o trabalho de docentes como
Jorge Alves, que lembra ter trocado empenho de síntese
por “sofisticadíssimos” resumos de Vestido de noiva ou de
algo irresumível. tornou um imbróglio metafísico para o empreiteiro.
“Ser, no século 20, um romancista popular do século
17 pareceu-lhe uma diminuição”, escreve Borges,
O santo e a porca, “que não têm a superficialidade de um
resumo para ensino médio e nem tantos academicis- “Mas acho que “menos árduo que continuar sendo Pierre Menard
e chegar ao Quixote mediante às experiências de

todo autor é
mos”. Por outro, descredita os próprios originais, vistos Pierre Menard”. O autor, por um lado, vinha sugerir
como blá-blá-blá diletantista perto de um resumo que um texto literário somente o é em determinadas
eficaz. “Um olhar atento sobre as provas mostra que circunstâncias de tempo e espaço, relativizando mé-

interpretável”,
elas dão um recado implícito aos alunos: recorram ritos de autoria inclusive para a cópia – não estariam
aos resumos”, polemizou, certa vez, o professor João sendo, os resumidores, diminuídos? Por outro, como
Amálio Ribas, sobre os processos de seleção parana- sugere Anco Márcio, ele viria propor o exato oposto
enses junto ao portal Vida Universitária.
Professora da Faculdade de Educação da Universida-
de Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do
relativiza Ronaldo da verve denotativa do resumo. “O conto é a metáfora
da experiência com a obra. Como toda experiência,
ela é individual, única e histórica”.
Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da instituição,
Maria Zélia Versiani rechaça a supervalorização do re-
sumo entre os mais pragmáticos, e prefere percebê-los
Correia de Brito Tanto é pessoal que Pierre Bayard, psicanalista
e professor de literatura francesa, nuançou ainda
mais o flerte entre obras e seus consumidores. A
como treinamento didático e convite à leitura apro- questionável. É muito difícil alguém dizer, através de despeito de uma hierarquização entre bons leitores
fundada. Num momento em que o Exame Nacional um resumo, o que é um livro, se não do que se trata”. – de livros – e maus leitores, afeitos a enunciados
do Ensino Médio (Enem), que não prescreve títulos de Ronaldo Correia de Brito, que teve seu Livro dos fragmentados, apressados ou abjetos, Bayard tentou
literatura, tem sido adotado progressivamente como homens resumido para o vestibular da Universidade esboçar atrevida teoria da leitura, dissecando modos
prova de ingresso nas universidades, a pesquisadora Federal de Goiás (UFG), é assertivo – “resumos não de ler e de, que bom, não ler.
prevê horizonte de leituras menos instrumentalizadas. são bons”, ainda que cumpram seu papel com algu- Em sua obra Como falar dos livros que não lemos?, o
“Se por um lado preocupa o fato de o exame não ma generosidade em certos casos mais narrativos, professor pareia casos em que obras lidas da primeira
indicar obras literárias, por outro, e com boa dose de avalia. “Não acredito que Guimarães Rosa pudesse à última página são facilmente esquecidas, enquan-
otimismo, podemos vislumbrar experiências de leitura fazer um bom resumo da obra de Guimarães Rosa. to outras que nem ao menos folheamos – sejam
mais significativas, sem a pressão do vestibular, e que, No caso dele, o deleite é a linguagem, e não acho shakespearianas, bíblicas ou adjacentes diversas
portanto, não sejam substituídas por resumos”, sugere. que qualquer resumo teria sucesso”. – são capazes de volta e meia ressoar em nossas
A notícia de inclusão de Os rios turvos na lista de in- vidas, tal como se as conhecêssemos de cor. Tais
COMO FAZER UM BOM RESUMO dicações para o exame da UPE chegou contente para questões – o que é ler?, o que é ter lido? – dariam,
Maria Auxiliadora Carvalho é professora de bibliote- Luzilá Gonçalves. “Mas logo me contaram que, diante enfim, humilde crédito aos imodestos resumos. Ou,
conomia na Universidade Federal de Pernambuco e de um aluno que queria lê-la, uma professora acon- como escreve Bayard, “é até desejável, para falar
já lecionou em ementas para resumidores cientistas, selhou: ‘Não compre. Eu faço o resumo para vocês’”. com precisão de um livro, não tê-lo lido inteiro,
mas o passo a passo falha quando aterrissa na lite- Aos poucos, a autora foi conhecendo o produto das eventualmente sequer tê-lo aberto”.
ratura. A professora, que acha mais difícil resumir sínteses. “Foi um desastre. Interpretaram, concluíram,
filmes que livros, diz que “resumo de ficção é algo até disseram coisas que não falei.” Maria Auxiliadora nos Luís Fernando Moura é jornalista

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HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
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O CONTO DO GAROTO QUE ANJO DE RUA A CABRA SONHADORA


NÃO É ESPECIAL Manoel Constantino Luzilá Gonçalves Ferreira
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no I Concurso Cepe de Literatura Infantil no I Concurso Cepe de Literatura com o amor de um lindo bode chamado
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história de um menino comum, igual a real de um menino que viveu nas ruas que incluem voar e tomar banho de
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Álbum que reúne fotografias tiradas O livro mostra o lado humanista O volume reúne as obras A Revolução de
pelo empresário, industrial do açúcar e do engenheiro francês que projetou 1817, O sentido social da Revolução Praieira e
fotógrafo amador. Possui um rico acervo obras modernizadoras no Recife O padre Lopes Gama político, que espelham
documental da expansão da malha do século 19, a exemplo do um trabalho em boa parte voltado para os
ferroviária do Nordeste e do cotidiano Teatro de Santa Isabel e do Mercado movimentos libertários brasileiros, fazendo
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bem-humoradas histórias de escritores, ao planeta dos boatos. O leitor uma poesia de qualidade singular,
jornalistas, artistas, poetas, políticos, acompanha o rumor de que a barragem mas que zelosamente subtrai ao olhar
populares e boêmios pernambucanos, de Tapacurá havia estourado a partir do grande público. Agora, os amigos
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KARINA FREITAS

INÉDITOS Cristhiano Aguiar

BALZAC, O AMOR
E OUTROS DEMÔNIOS
Para Cybelle, que salvou a noite amores míopes no peito; as mesmas ambições isso o admiro), conclui: “a verdade é que dois
e pretensões; as mesmas ilusões de relevância. amantes muitas vezes se separam em menos
Sempre pensei que o amor e a literatura ti- A cena que gostaria de lembrar do romance tempo do que precisaram para se unir”.
nham algo em comum: ambos são um ato balzaquiano é uma das mais conhecidas, na Dois amantes podem ser também um es-
de leitura. Gosto muito da sabedoria das di- qual Lucien e o até então grande amor de sua critor e seu leitor. Em algum lugar de A dupla
ferentes religiões, porque elas personificam vida, Mme. de Bargeton, recém-chegados a chama, Octavio Paz sustenta que no amor pre-
certos estados, experiências e sentimentos Paris, assistem a um espetáculo teatral e são cisamos convencer a vontade do outro. Não é,
que constituem parte fundamental da nossa submetidos ao escrutínio da nobreza pari- afinal de contas, um bom resumo para o nosso
existência. Muitas vezes penso no mal, na siense. A aristocracia, claro, não perdoa os trabalho? Cada texto literário é um pedido de
morte e no amor em termos de personagens, ares provincianos dos dois personagens e lhes hipoteca de um pedaço do tempo e do amor
tais como o Diabo, ou Afrodite. Embora neles impõe um doloroso rito de humilhação. dos seus possíveis leitores. É fascinante que
não acredite, estes personagens possuem uma Em Angouleme, pequena cidade onde os as roupas e o próprio corpo de Bargeton e
existência concreta na minha vida: o meu dois personagens viviam, antes da mudança Rubempré não tenham mudado; mudaram
pacto com o mundo sempre foi o da ficção. à capital, tudo parecia fazer sentido. Nun- as condições de leitura que cada um impôs
Já xinguei muito o amor e nisto não estou ca houve amantes mais arrebatados: diante ao outro. É por isso, talvez, que o lado pouco
sozinho. Uma das minhas poetas preferidas, dos olhos de Rubempré, que “queriam achar indagado, porém real, do amor seja um reino
Safo, ou o que sobrou de sua voz, em certo tudo bom”, Mme. de Bargeton parecia uma composto pelo medo, posse e paranoia: quem
momento cantou: “Imortal Afrodite do trono aristocrata belíssima, com forte caráter e pre- sabe quando as regras do jogo vão mudar e
de flores/Filha de Zeus, tu que teces enganos”. sença de espírito, marcada ainda por uma nascerá uma necessidade dilacerante, aquela
É a respeito disto que gostaria de conversar aguda sensibilidade literária e inteligência. À que pede favores à distância e ao silêncio?
com vocês. sua amante, Lucien era nada menos do que Estamos atados a tantos corpos e textos; a
Tenho acompanhado nas últimas semanas – um Gênio e a encarnação da Beleza (mai- palavras que mudam ao sabor dos ventos de
o doutorado no Mackenzie tem me devolvido úsculas inclusas no pacote). No entanto... cada época; enredados em ardis criados pelas
ao século 19 – as desventuras de Lucien de Subitamente, tudo se modifica. Aquilo que deusas de rostos terríveis, vincados, cujos
Rubempré, protagonista do romance Ilusões parecia pleno de significado se transforma olhares inescrutáveis se mantêm fixos diante
perdidas, de Balzac. Nosso amigo Lucien é um em desconforto, distância, desilusão. Agora, de nós; nomes que se movem de modo nem
SOBRE O AUTOR jovem poeta, ambicioso e ingênuo, que se “apesar da extrema beleza”, Bargeton perce- sempre compreensível, vontades escondidas
muda de uma pequena cidade provinciana bia, ao observá-lo no teatro, que nosso poeta na nosso própria sombra.
Cristhiano Aguiar para a luminosa e enlameada Paris, em busca “não tinha boa apresentação”. Na verdade, Desta forma, no amor sou sempre vítima,
é escritor, doutorando em de amor e glórias literárias. Já fui Rubempré “achava-o lastimável”. A avaliação do seu algoz, credor, juiz, tirano, devedor e suplican-
literatura e assina o blog duas vezes. Primeiro, aos 18, quando saí de amante não seria mais amena: comparando-a te. Como os romances e os sonetos, preciso
outroscriticos.blogspot.com Campina Grande e me mudei para Recife; com as mulheres parisienses, concluía que ser habitado para conseguir sobreviver; e
agora, aos 30, quando saio de Pernambuco e sua amada era “seca, pretensiosa, malvestida haverá em mim a falta, a fratura, através da
chego até São Paulo. Em comum, os mesmos sobretudo!”. Balzac, sempre implacável (por qual sou regido pela deusa.

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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2011

INÉDITOS
Cigarros na cama
(Fragmentos iniciais)

1. 5.

Sua pressa me legou um maço Não sei, querida vaca


de cigarros, com o qual agora companheira de pasto
economizo, por vinte e quatro e capim pisoteado
horas, o preço do próximo. por machos, estes bois
com limiar de atenção
retardada e deficitária,
2. qual a imagem mais apta,
que analogia eu teceria
Ricardo Domeneck

É compreensível e até agradeço, para esta tristeza


pois um ADEUS longo banalíssima, talvez
demais, que porventura dure a única seja
mais que um segundo, acaba a confissão do fato
arrastando-se pela vida toda, de por dias não mais
melhor seria não chegar poder masturbar-me
sequer à segunda vogal, com a imaginação,
mas que você mas tão-somente
desaparecesse com a memória
com aquela consoante do que já não pode
linguodental, sim, aquele d, nem há-de repetir-se.
já que minha língua
de agora em diante (...)
há-de tocar somente
meus próprios dentes.
6.
3.
Fumo na banheira
Comecei a fumar porque você fuma mas, com o cinzeiro
e eu certamente não queria viver esquecido no quarto,
mais que você. Agora já sem bato as cinzas na água
o seu hálito, suas bitucas e cinzas mesmo, pensando
na mesma cama, começo o dia que é simples
com um cigarro, exatamente e é apropriado,
e ainda pelo mesmo motivo. como se eu estivesse
me banhando nas águas
4.

Uma amiga impertinente


me pede, já que eu agora
estou passando pelo vale
da sombra onde a morte
vai bege pela passarela,
com ombreiras e calças
de cintura alta, que eu
diga o que é a tristeza,
que eu a poetize para uso
comunitário, que eu, ora,
entretenha,
feito um mico-leão bege,
a ela e a meus outros cinco
leitores com malabarismos
de vocabulário qualquer.

SOBRE O AUTOR

Ricardo Domeneck é
poeta brasileiro residente
em Berlim. Esses
poemas fazem parte do
livro Cigarros na cama
(Berinjela/Modo de Usar
& Co.)

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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2011

KARINA FREITAS
no intervalo
entre o quarto e o quinto.

12.

Fumando na chuva,
curvado e ainda mais corcunda,
preferindo proteger o cigarro,
não a nuca.
15.

Você mora na Berlim Ocidental,


eu na Oriental, mas o Muro
caiu já há duas décadas. O que antes
era o motivo único
para minhas visitas a seu hemisfério
torna-se agora
um novo Muro
do Ganges imaginário,
e os restos queimados de um lado o seu território,
de mortos passassem, do outro o meu habitat,
descendo a correnteza e, como sempre, acabo
deste rio que confesso do lado onde mais uma vez tudo
mal saber onde é oferto e gratuito mas indesejado,
desemboca. onde o que a população quer
é fugir para o outro lado,
9. onde a sua população preza
a liberdade individual das carreiras
Esperei por você no café solo e acumula
português para nossa última para si o que poderia, talvez,
conversa, queria estar lendo quiçá num mundo apaixonado,
e fumando ser compartilhado,
quando você chegasse, comum.
com tranquilidade fingida
e estudada. Seu atraso
custou-me quatro cigarros 17.
consecutivos, o que, segundo
as estatísticas, Passo a fumar à francesa
significa 44 minutos menos segundo a sua descrição
de expectativa e nomenclatura: com o cigarro
de vida. Unidos aos seus quinze na mão direita
minutos de atraso, digamos levo-o ao canto esquerdo da boca,
uma hora a menos no mundo. deixo os dedos levemente abertos
Perda nenhuma. O vento com o cigarro nos lábios
me descabelava entre o indicador e o dedo médio,
e eu lutava bravamente fazendo côncavas as bochechas
contra mais esta desordem. com a inspiração do fumo,
Você mas talvez eu esteja apenas
chegou, obviamente, imitando-o agora à distância.

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RESENHAS
RERRODUÇÃO

Diante da paleta Você ainda vai ouvir


muito que Asterios Polyp é
o melhor lançamento em
o fizeram acabar o
seu relacionamento
com a artista Hana.
mais impressionantes
das HQs ao brincar com
recursos próprios da
e pensar quando, em
certo momento, brigam.
É nessa deslumbrante

de cores perfeita
quadrinhos do ano, mas Responsável por linguagem, mas sem alegoria que vemos como
ele é provavelmente mais algumas das obras mais nunca transformar a obra o mundo cartesiano,
do que isso. Vencedora importantes dos anos em um mero laboratório racional e arrogante do

de Mazzucchelli
do maior prêmio das 1980, junto com Frank de experimentalismos. arquiteto pode se juntar
HQs, o Eisner, a obra Miller, Mazzucchelli Para a fala de cada um à beleza, à organicidade
tem colecionado críticas parece ter feito Asterios dos personagens, o autor e à fragilidade da artista
elogiosas e até mesmo Polyp ciente que construía reserva uma caligrafia plástica. É como se,
O quadrinho cult Asterios atenção acadêmica desde
que saiu nos Estados
sua obra-prima. É um
livro, como conta André
diferente, que se casa em
alguma medida com a
para Macchuzzelli, se
apaixonar fosse eliminar
Polyp ganha edição nacional Unidos, em 2009. Conti, da Companhia própria personalidade ou as fronteiras, passar a
Agora, ela sai no Brasil, das Letras, responsável função deles na narrativa. carregar em apenas um
caprichada pela Cia. das Letras traduzida pelo escritor pela edição nacional, Em outro momento, corpo duas pessoas.
Daniel Pellizzari, em pensado nos detalhes – trabalhando com a
Diogo Guedes uma cuidadosa edição do cada aspecto da narrativa hipótese de que cada
selo Quadrinhos na Cia. original se relaciona pessoa vê o mundo de
O livro contra a história harmonicamente com uma forma diferente, a
de Asterios, um o formato da página, partir da extensão de sua
renomado arquiteto, a paleta de cores e a própria personalidade,
famosos por construções tipografia, por exemplo. Mazzucchelli constrói
que nunca saíram do Tudo que soa como uma metáfora visual
papel. Autocentrado pretensão, quando poderosa. Usando a
e convencido, ele descrito é harmônico, versatilidade de seu
começa o livro em uma singelo e profundo traço, ele desenha
crise, agravada por um dentro do quadrinho: Asterios como um
incêndio que destrói não é à toa que o leitor conjunto de forma
seu apartamento e todos não sabe, em certos geométricas puras, em
os seus bens. Tomando momentos, se deve azul, enquanto Hana
o acidente como uma acompanhar a narrativa é feita de rabiscos QUADRINHOS
espécie de sinal, ele vai ou simplesmente instáveis, em rosa, e os
para a pacata cidade obversar as invenções dois se contaminam, se Asterios Polyp
de Apogee, disposto cuidadosas do autor. misturam, à medida em Autor - David Mazzucchelli
esquecer e entender Mazzucchelli consegue que vão se conhecendo Editora - Quadrinhos da Cia
seus erros no passado, criar algumas das - assim como se isolam Preço - R$ 63,00
principalmente os que páginas e sequências na sua forma de ver Páginas - 334
DIVULGAÇÃO/FOTOFREE

BAILE
Mariza Obra mais conhecida do escritor Ronaldo
Pontes Correia de Brito celebra 28 anos este mês
O baile do menino Deus - Uma porta, convidando a todos para
brincadeira de Natal, obra mais comemorar o nascimento de
conhecida de Ronaldo Correia Jesus. A estreia foi em disco,
de Brito, em parceria com Assis pelo selo Eldorado, e no
Lima e Antônio Madureira, Teatro Valdemar de Oliveira,
comemora 28 anos de criação. encenada pela Cia. Práxis
Inovadora, trouxe elementos Dramática. De lá pra cá teve
da cultura nordestina para o inúmeras apresentações no

NOTAS Natal, em oposição à difusão do


imaginário europeu, com Papai
Brasil. O megaespetáculo volta
a ser encenado, de 23 a 25 de

DE RODAPÉ Noel e renas. No enredo, dois


Mateus juntam-se a um grupo
dezembro (foto), às 20h, na
praça do Marco Zero, onde
de crianças e vão de porta em atrai cerca de 60 mil pessoas.

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DIVULGAÇÃO DIVULGAÇÃO

PRATELEIRA
EM CASA – UMA BREVE HISTÓRIA
DA VIDA DOMÉSTICA
Tudo que se queira saber sobre a evolução da
moradia está nesta obra. O autor reúne dados
históricos, sociológicos e científicos, além de
curiosidades sobre os hábitos de morar, e os
apresenta de forma divertida e interessante.
Detalhadamente, ele analisa como cada cômodo
de uma habitação moderna, do hall de entrada
ao banheiro e ao porão, passou a fazer parte
da arquitetura residencial e a determinar os
vários aspectos da vida privada, em diversas
épocas e culturas.

Organizador::Bill Bryson
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 536
Preço: R$ 49,00

JORNAL MOVIMENTO, UMA REPORTAGEM

Um mestre da crônica De volta para o passado A trajetória do semanário Movimento, que


circulou de 1975 a 1981, é relatada por um
dos seus principais colaboradores, Carlos
A Arquipélago Editorial você ama quem você O inglês Simon grandes sucessos dos Azevedo. O jornal foi um ícone da resistência
tem feito um trabalho ama. Há intervalos, Reynolds é um dos dinossauros que jamais democrática contra a ditadura, ao se colocar
sensacional em reunir pausas, preguiças. Às nomes chaves da se aposentam. Quem não ao lado dos interesses do povo, da democracia,
os melhores cronistas vezes passa um tempo crítica pop das últimas gostou do argumento do do nacionalismo e do anti-imperialismo. Os
brasileiros (tanto sem amar quem você décadas. Jornalista autor, o está acusando de 28 capítulos reproduzem o resultado de um
figuras emergentes, ama. Mas basta um com experiência nos preguiça de pesquisar o ano e meio de trabalho de pesquisa sobre
como o curitibano Luis perigo, uma doença, iconoclastas semanários cenário atual e que a obra os arquivos da época,
Henrique Pellanda, um cochilo, para você ingleses, como o finado seria fruto do tédio de mais de 60 entrevistas e
quanto as já canônicas, despertar para o seu Melody Maker, suas um “tiozão” rabugento. documentos inéditos.
como Humberto amor, como de uma análises são marcadas Ainda assim, vale muito
Werneck) em belíssimas cochilada”. (Schneider por instigar o leitor a pena conferir o olhar
edições. Agora é a vez Carpeggiani) com questões que agudo de Reynolds.
do espanhol radicado ultrapassam o cenário (Schneider Carpeggiani) Autor: Carlos Azevedo
mineiro Ivan Angelo, musical. Reynolds Editora: Manifesto
nome que transita sabe que as músicas Páginas: 362
com desenvoltura pelo mais tocadas dizem Preço: R$ 59,00
jornalismo e a ficção. muito sobre como
Em Certos homens, o autor anda a sociedade. Seu CRÍTICA E COLEÇÃO
se mostra certeiro ao novo livro, Retromania, A obra reúne ensaios sobre a pesquisa de acervos
esquadrinhar questões tem causado polêmica literários, sob diversas óticas, desde a crítica
do cotidiano, muitas por sua posição genética, passando pela crítica biográfica, até a
delas de caráter afetivo. extremista: ele defende crítica textual. Os ensaios foram apresentados
É o caso da belíssima que a música pop inicialmente em congressos internacionais,
crônica Nem sempre você vive um momento de como parte da programação do Centro de Estudos
ama quem você ama, que estagnação criativa, Literários e Culturais da Faculdade de Letras
poderia figurar em em que a reciclagem da UFMG, que mantém o projeto Acervo de
meio ao melhor de de um passado recente Escritores Mineiros, responsável pela guarda dos
cânones como Carlos estaria fora de controle. arquivos desses autores
Drummond de Andrade CRÔNICA Irônico, com aquela ENSAIO
e Paulo Mendes Campos acidez elevada dos
(mestres do gênero). Certos homens ingleses, ele dá como Retromania
Acompanhe um trecho Autor - Ivan Angelo exemplo os inúmeros Autor - Simon Reynolds
e sinta a “pegada” do Editora - Arquipélago Editorial relançamentos de discos Editora - Faber and Faber Inc. Autor: Eneida Maria de Souza e
texto de Ivan: “Não é Preço - R$ 39,00 antigos em edições Preço - US$ 12,24 (importado) Wander Melo Miranda (org.)
o tempo inteiro que Páginas -215 luxuosas e as turnês de pelo site da www.amazon.com Editora: UFMG
Páginas: 377
Preço: R$ 47,00

ÍON
Um dos primeiros diálogos escritos pelo filósofo
Platão ganha edição bilíngue grego–português,
LABORATÓRIO COLOMBO ENQUETE assinada por Cláudio Oliveira, e encadernação
de luxo. O primoroso posfácio de Alberto
Sistema aprovou revista Programa de rádio é Pela lei, quem deve ser Pucheau mostra que a importância da obra
da primeira temporada alternativa domingueira considerado escritor? reside em nos mostrar a filosofia no momento
do seu nascimento. Nessa época, o filósofo
Duas boas notícias para os fãs Café Colombo – o seu programa de livros O resultado da enquete da representava um novo saber e, para se afirmar,
do projeto Laboratório: cultura e e ideias é alternativa radiofônica UBE nacional para definir tinha de fazer frente ao poeta, representante de
crítica: 1) A revista da primeira aos programas televisivos do os aspectos que identificam um saber mais antigo e
temporada foi aprovada domingo. Transmitido das 14h às a profissão de escritor, consolidado, a poesia.
pelo Sistema de Incentivo à 14h30, pela Rádio Universitária discutido no Congresso dos
Cultura da Cidade do Recife. FM (99.9 Mhz), o programa Escritores em novembro, será
Será editada por Wellington permite que o público sugira levado ao Senado Federal,
de Melo e Cristhiano Aguiar, livros, CDs ou DVDs a serem visando contribuir com a
trazendo artigos e entrevistas comentados, indique assuntos antiquíssima polêmica da
dos curadores Cristiano Ramos, para debate e apresente contos regulamentação. A lei vai Autor: Platão
Bruno Piffardini, Johnny Martins e crônicas que serão lidos. Nas estabelecer, por exemplo, se Editora: Autêntica
e convidados; 2) A temporada de segundas-feiras, das 20h às publicações na internet podem Páginas: 88
2012 será dedicada à literatura. 20h30, há reapresentação. definir quem é escritor. Preço: R$ 31,00

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CRÔNICA
Mariana Nepomuceno

POLÊMICA Sonha que se esconde e some to que a vida ainda não possui muito pra fazer. Minha vida seria
dentro dela. Que a bolha de sabão, meios de lhe explicar ou fazer longa e intensa. Não inventaria
Dona Lygia, a senhora me des- toda faceira, desaparecerá em se- entender. Volte a ser pessoa, será de ser alegria. Isso todo mundo
culpe. Mas é que a senhora acer- gundos, muitíssimo contente. A mais inteligente. já deveria ser.
tou mesmo. A estrutura da bolha mocinha, diante de tanto fascínio Concordo com a insistência da Longa e intensa. Com briga,
de sabão só pode, de fato, ser e alumbramento pela tal bolha garota e acho que a gente bem com discussão, com organização
o amor. Não sei se é por que a de sabão que deve ser mesmo que poderia ser coisa que voa, para desorganizar não sei que lá.
gente fica olhando, vidrado, na o amor, resolve decidir que vai que tem milhares de cores e que E eu achava que ser bolha de
tentativa de adivinhar para onde ser bolha de sabão dali pela vida. desaparece. Se não é assim, a sabão era complicado porque
a danada da bolha vai. Não sei se Acha que não soube ser amor e gente poderia ser sentimento. era o amor e amor é um negócio
é pela coisinha delicada que é. que já é bem grandinha, dona do Não fazer sentido, não ter linha meio esquisito. Bom de sentir, é
Toda a gente sabe que se tocar próprio nariz e da decisão do que pra andar, conta pra pagar, risco verdade. Dá medo querer ser um
na bolha, ela estoura. A gente quer ser depois de grande. pra correr. Era e pronto. Sem dar sentimento que pode durar anos
pode chegar perto, acompanhar A vida, esta danada, proverá satisfação. mas também pode morrer em
com os olhos e ir atrás, feliz, pra a mocinha de alfinetadas, pra Eu seria rebeldia e ficaria mu- segundos. Deixa lá pros afoitos.
ver se guarda no coração todas mostrar que ela não tem como dando de país umas três vezes Acho que vou querer conti-
as cores que tem ali. O menino sumir de uma hora pra outra, no ano. Depois, tirava férias, nuar gente mesmo. Pra sair cor-
pode querer ver o mundo por que isso tudo não é assim nem passava uns tempos escondida rendo atrás da bolha de sabão,
dentro da bolha. assado, deve ser de outro jei- e ressurgia de novo, com bem enquanto escolho rebeldia.

PEDRO Neste mesmo ano, me apaixo- da dele. Época de quadrilha. As tinha olhos verdes e era bonito.
nei pela primeira vez. O primeiro professoras ordenavam os pares João Paulo me defendeu numa
Era 1992. Jovens brasileiros saíam amor. Talvez, meu determinan- pelo tamanho e eu tinha grande briga. Mário me levou na coorde-
às ruas e se tornavam caras-pin- te no amor. Pedro foi o primeiro chance de dançar com aque- nação quando rachei meu dente
tadas. Meu pai olhava, com orgu- menino a segurar na minha mão. le menino que me dava frio na no chão. Mas, nenhum era Pedro.
lho, pra bandeira do PT, guardada A me deixar nervosa, implicante, barriga todos os dias de manhã. Os namoros que duraram fo-
no canto das coisas antigas da apaixonada. Mas, Pedro, questionador Pedro, ram sempre com meninos com
casa. Havia votado no analfabe- Ele era novato. Entrou na mi- não quis fazer parte do São João algo de Pedro. Adolescente, meu
to nordestino e não no playboy. nha turma depois do começo das do colégio. primeiro beijo foi um magrelo,
Naquele ano, meu aniversário aulas, inclusive. Foi brigando comigo, no fim alto, repetente e de cabelo es-
não teve festa (minha mãe tra- Pedro não era bonito. Mas era do segundo semestre, querendo quisito. Um que namorei por
quinou com a lente de contato magro, alto. Não chegava a ser roubar minha lapiseira lilás de três anos era magrelo, alto, meio
e usava tampão no olho), mas loiro. Era mais velho, já tinha passarinho, que Pedro pegou na revoltado com o mundo. O que
na foto do bolo “pra não passar reprovado duas vezes. Pra mim, minha mão. Ele numa banca e eu eu queria pra marido era líder de
em branco” me achei menos feia ele era um rebelde. Eu nunca na do lado. Nossas mãos ficaram movimento estudantil, 1,93m.
que de costume. Primeira vez na quis um príncipe. Sempre quis entrelaçadas que nem às dos ca- Hoje, é sindicalista.
vida achava isso. Queria que ele um revolucionário. Ele era um sais dos papéis de cartas que eu Encontro meu amor por Pe-
estivesse lá pra ver. Queria dar menino que parecia ter opinião. não colecionava (afinal, eu queria dro sempre por aí. Indo e vindo,
aquela foto pra ele. Na segunda série, qualquer coi- ser diferente das outras meninas). o tempo todo.
Eu estava com oito anos e sa é uma opinião. Cabelo grande E Pedro saiu do colégio antes do (Na verdade, reencontrei Pedro,
alguma coisa do meu futuro se mesmo, feito o que ele tinha, era fim do ano para morar em Portu- em 2001, ano do vestibular. Em
rascunhava ali. Em 1992, ano bis- discurso inteiro. gal com a família. outro colégio. Escrevi cartas anô-
sexto, pensei em estudar Jorna- Ele sentava nas últimas ca- A lapiseira lilás deve estar guar- nimas – coisa que aprendi quando
SOBRE A AUTORA lismo ou Direito. Queria alguma deiras. Eu também, por causa da dada até hoje em algum lugar do me apaixonei pela segunda vez-,
Mariana Nepomuceno coisa que “botasse corrupto na altura. Esperei com o coração na meu guarda- roupa. Morou por e passei um recreio conversando
é jornalista e cronista cadeia”. O mundo era mais fácil mão junho chegar, seria minha anos na minha mochila. No bolso com ele. Mas, era 2001. Pedro já
nessa época. chance de ficar mais perto ain- da frente, fácil de achar. Rafael não era tão Pedro assim).

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