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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 75 - Maio 2012 - Distribuição gratuita - www.suplementopernambuco.com.

br

FOTOS: THIAGO SOARES | DESIGN: HALLINA BELTRÃO


ARTISTA LANÇA
LIVRO DE POEMAS E
FALA DA SUA RELAÇÃO
COM A PALAVRA

SIBA | LEMBRANÇAS DE ANTONIO TABUCCHI | OS ÚLTIMOS MOMENTOS DE MARILYN MONROE

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PERNAMBUCO, MAIO 2012

GALERIA M A R I A NA C A L DA S
Tirei essa foto no carnaval de 2010, em Pouso da Cajaíba, uma viagem cheia de amor e aprendizado. No final do
ano, em outro momento pessoal — de dor, de repensar a vida e os valores — eu reencontrei essa frase do Nelson
Rodrigues e lembrei da foto. Era o casamento perfeito: o equilíbrio dinâmico do amor.
http://poeme-se.tumblr.com/

COL A BOR A DOR E S


José Luiz Passos, professor Luís Henrique Pellanda, Thiago Soares, jornalista
de literatura na Universi- jornalista e escritor. É autor e professor do Departa-
dade da Califórnia, em Los dos contos de O macaco or- mento de Pós-Graduação
Angeles. É autor do roman- namental e da coletânea de da UFPE. É autor do livro
ce Nosso grão mais fino. crônicas Nós passaremos de ensaios Videoclipe — O
em branco. elogio da desarmonia.

E M A IS
Anco Márcio Tenório Vieira, professor do Departamento de Letras da UFPE e autor do livro de ensaios Adultérios, biombos e demônios . Fernando Monteiro, autor de
A cabeça no fundo do entulho e O grau Graumann. Joca Reiners Terron, vencedor do Prêmio Machado de Assis de Romance 2010 da Fundação Biblioteca Nacional por
Do fundo do poço se vê a lua. Rafael Rodrigues, jornalista e escritor, autor de O escritor premiado e outros contos. Siba, cantor e compositor.

C A RTA DO E DI TOR SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO


Adriana Dória Matos

Paulo Bruscky é um dos nomes mais sin- Outro destaque desta edição é a crônica SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO
Luiz Arrais
gulares da arte brasileira contemporânea. que o cantor e compositor Siba escreveu, na
Ele não se satisfaz apenas em criar obras; qual ele passa em revista o universo poético GOVERNO DO ESTADO EDIÇÃO
sua preocupação maior parece ser insti- do seu álbum Avante. Vale conferir ainda a Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani
DE PERNAMBUCO
gar o público, fazê-lo pensar e questionar entrevista que a escritora Adriana Lunardi
Governador REDAÇÃO
suas certezas. Quando soubemos que ele concedeu a Luís Henrique Pellanda, cheia Mariza Pontes, Debóra Nascimento, Ingrid Melo,
Eduardo Campos
lançaria seu primeiro livro de poemas, foi de curiosas reflexões sobre o papel da es- Mariana Oliveira e Marco Polo
a chance de trazer para o Pernambuco seu crita: “Ao invés de pensar sobre o sentido de
universo bastante particular, repleto de tudo, sou obrigada a resolver um problema Secretário da Casa Civil ARTE, FOTOGRAFIA E REVISÃO
Francisco Tadeu Barbosa de Alencar Gilson Oliveira, Janio Santos, Karina Freitas,
ressignificações. Thiago Soares conversou de narrativa ou procurar a palavra exata, a e Sebastião Corrêa
com Bruscky e escreveu um texto em que o frase certa, o andamento para determinada
importante é justamente brincar e debater passagem. A arte é uma maneira de superar COMPANHIA EDITORA PRODUÇÃO GRÁFICA
Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves
convenções: é uma reportagem mais costu- o tempo e matar tempo.” DE PERNAMBUCO – CEPE e Sóstenes Fernandes
rada por lembranças do que por certezas.O Em 2012, o Pernambuco completa cinco Presidente
repórter foi “capturado” pelo jeito Bruscky anos. Para marcar a comemoração, lança- Leda Alves MARKETING E PUBLICIDADE
de enxergar o mundo! remos este mês uma reunião dos principais Alexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvão
Diretor de Produção e Edição
Também permeada por esse universo sui textos que a coluna Bastidores já publicou, Ricardo Melo COMERCIAL E CIRCULAÇÃO
generis é a arte que ilustra a matéria. Feita com o título Ficcionais. Na obra foram reuni- Diretor Administrativo e Financeiro Gilberto Silva
pela designer Hallina Beltrão, a partir das dos alguns dos principais autores brasileiros
Bráulio Meneses
fotos de Thiago, as imagens retomam a revelando seus processos de composição,
estética de xerografia, uma das marcas da expondo os problemas teóricos e pessoais que
obra de Bruscky. Como o primeiro livro atravessaram suas criações. Estão lá nomes CONSELHO EDITORIAL
de poemas do artista é lançado com uma como Ana Maria Machado, Bernardo Carvalho Everardo Norões (presidente) PERNAMBUCO é uma publicação da
tiragem limitada de 150 exemplares (todos e Ronaldo Correia de Brito. Foi a nossa forma Antônio Portela Companhia Editora de Pernambuco – CEPE
Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
assinados pelo artista), iremos disponi- de dividir com você, leitor, a efeméride. Lourival Holanda CEP: 50100-140
bilizar suas páginas no nosso site www. Nelly Medeiros de Carvalho Contatos com a Redação
suplementope.com.br. Boa leitura e até o próximo mês. Pedro Américo de Farias 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br

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PERNAMBUCO, MAIO 2012

BASTIDORES

Vivo, até que o


JANIO SANTOS

sangue pare de
escorrer de vez
Escritor comenta como o seu
novo romance o persegue há
20 anos. Guia de ruas sem
saída é sua estreia na Editora
Edith, que abriga nomes
como Marcelino Freire

os testes de Rorschach, e é um barato carregar no


Joca Reiners Terron próprio corpo manchas que se metamorfoseiam,
permitindo novas leituras a cada manhã.
1. Um livro em progresso é mais ou menos isso, uma
Ao final da noite do lançamento do Guia de ruas sem espécie de oráculo privado que se movimenta e nunca
saída, um amigo me deu carona até minha casa. está no mesmo lugar em que o deixamos na noite an-
Quando desci do carro, fechei a porta na própria terior. Joan Didion gosta de passar as noites no mesmo
mão. Ficou uma marca de sangue pisado na unha cômodo em que escreve, pois “de algum modo o livro
do dedo médio. Desconfio que só vou me livrar por não te abandona quando você dorme ao seu lado”. O
completo da sensação de ter escrito o livro depois problema é aplicar esse método a um livro que nos
que a mancha sumir. acompanha durante anos, e que começa e recomeça
Meu receio, evidententemente, é que a unha pare infinitas vezes. Se recomeça, é porque o perdemos de
de crescer e fique assim, estagnada, durante meses, vista. Fugiu; desapareceu — recomeçou.
anos e séculos, e eu nunca me livre por completo
desse livro. Tenho medo que não tenha saída, como 4.
seu título indica. Aprisionado a ele para sempre, eu A segunda vez que o Guia começou foi há cinco anos,
nunca mais escreveria outro. Pensando bem (e meus quando minha ex-mulher se mudou abruptamente
detratores talvez concordem), não seria má ideia. de São Paulo levando nossa filha com ela. Foram
morar a uns mil quilômetros de mim. De novo, essa
2. distância, a mesma quantia de metros, centímetros
Um mesmo livro pode ser começado inúmeras e milímetros. Deve significar algo, mas o quê?
vezes. É raro, na verdade, que um livro tenha so- Não sei.
CARTUNS mente um único e detectável início. Existem livros
JEAN GALVÃO que começam no meio e às vezes no final. Outros 5.
HTTP://JEANGALVAO.BLOGSPOT.COM.BR têm tantos começos, mas tantos, que acabam por se O leitor que tiver alguma informação sobre Guia de
cansar e morrem ali mesmo, no princípio. É muito ruas sem saída deve se perguntar o que esses fatos
comum de acontecer, e bastante triste também: são pessoais podem ter a ver com a “trama” do livro,
os livros natimortos. que relata a viagem de um homem acompanhado
A primeira vez que o Guia começou foi há uns da mulher para receber transplante de fígado, e a
vinte e tantos anos, num feriado na casa de meus busca de outro orgão por sua família, talvez ima-
pais. Eu estudava Arquitetura no Rio de Janeiro ginária. E eu respondo: não sei.
então, e não tinha muitas chances de visitá-los e A proverbial irritação dos escritores com a mania
aos meus irmãos (minha família vivia a uns mil de os leitores confundirem ficção com autobiografia
quilômetros de mim). Tenho dois irmãos, sendo faz sentido, pois toda ficção é autobiográfica. É
que o caçula, Paulo, tem 11 anos de diferença. Devia óbvio, pô. Nem sempre é possível estabelecer pa-
ser difícil para ele entender o motivo de seu irmão ralelos entre a vida do autor e o resultado do livro, e
mais velho ter ido embora de casa aos 17 anos. este último até pode surgir de uma ideia inventada
Naquele dia o Paulo me mostrou uns desenhos ou de um fato ouvido por aí, mas não pode ser
que fazia. Entre eles, estava o Homem-Escada, um preenchido, estofado, empalhado ou inflado com
super-herói que havia criado. Eram dois rabiscos outra matéria-prima que não vida.
verticais, daqueles de criança, atravessados por ra- Assim como não é possível, é claro, que o leitor leia
biscos horizontais que mostravam uma escada com o livro sem enfiar a sua porção pessoal de experiên-
cabeça, braços e pernas, além da capa esvoaçante. cia na história, pois, como me ensinou Gonçalo M.
Perguntei ao Paulo quais eram os superpoderes Tavares numa entrevista, “não saímos da vida para
daquele herói, e ele me explicou que se tratava ir ler, e depois voltamos”. Ambos, escritor e leitor,
de uma coisinha bem simples: o Homem-Escada insuflam autobiografia nos livros que escrevem/
ajudava as pessoas a chegarem a um outro lugar. leem. É a partir daí que os livros afinal começam
Em sua maluquice infantil, o Paulo talvez estivesse a existir, ficam em pé e saem caminhando por aí.
me dizendo de um jeito meio poético que gostaria
de receber minha visita mais vezes. 6.
Por um longo tempo eu observo a mancha de san-
3. gue na unha. Dia após dia, o labirinto se contorce, e
Faz três semanas, desde o lançamento, que não ela parece se conformar num ponto de interrogação,
consigo fazer nada a não ser olhar para a mancha de que aos poucos vai diminuindo, diminuindo, até
sangue na unha. Ela parece se movimentar, e adquire virar um ponto final.
estranhos formatos dia a dia. Hoje, por exemplo, Em alguns dias, os últimos traços de sangue pi-
lembra um labirinto. Ontem, parecia o Pato Donald. sado somem no fundo da lixeira do banheiro. Então
Não consigo estabelecer qualquer relação entre uma faço cálculos e concluo que a unha precisou crescer
forma e outra, mas gosto de ambas. Sempre apreciei uns mil quilômetros até a mancha desaparecer.

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FICÇÃO

Antonio Tabucchi, 1943-2012


1. O primeiro volátil chegou nesta minha dimensão também sabe perfeitamente que em certos casos
de treva com cartas que retratam damas vestidas de escrever aos mortos é apenas uma desculpa.
roxos túrgidos, como carnes secretas, um homem,
uma mulher, a noite que nestas latitudes cai de repente 3. Nesta região de serras em que não mais ando
e, nisto, José, passaram-se dez anos desde o dia em só, minha companhia de fantoches está indiferen-
que deveríamos ter nos conhecido na Califórnia, sua te aos rigores do tempo, ao desatino do comércio,
última carta me tocou profundamente, mas permita pois nenhuma relação existe entre o doce e a raça
que antes lhe diga uma coisa, não acredite muito e, como a mim, a dúvida também o apanhará em
no que afirmam os escritores, eles mentem, é uma casa, meu colega, e com ela virá o tédio da dúvida,
cerimônia símile ao striptease, talvez os escritores te- aliás, a propósito disto, lembro que o terceiro volátil
nhamos simplesmente medo, o resto são nuvens, por me veio na semelhança de um pequeno leão branco
exemplo, tenho um romance ausente com uma his- com o rosto de uma atriz havaiana, os seus mamilos
tória que quero contar, não fantasmas meus, apenas apontados e castanhos, e também um pênis discreto
presenças penadas, em cada esquina a companhia de conforme a delicadeza dos gatos, ela ou ele me fa-
fantoches, com eles virá um dia lindo, tenha certeza, lava como a Calipso que segue o vácuo do eterno e
ou melhor, diria até que já é verão, mesmo da treva vê seu marinheiro desmoronar buscando o avesso
é impossível não reconhecer o verão, acontece que do próprio eterno no colo de outra mulher, imite a
quem escreve não é confiável, já disse, e receio que paixão de D. Pedro por Inês de Castro, o volátil me
ainda esta noite tenhamos mau tempo. falou, na ampliação do ruído tu anulas o banal, era
a realidade fora da realidade, José, nossos olhares
2. Agora que o corpo é fonte de sentido e a alma devolvidos, enfim, naquela noite quente me vinha
fonte do mal, tudo o que disse ou disser já está dito o rancor da geladeira, que estancava apenas para
e redito pelos moralistas do mundo, por exemplo, a recomeçar sua sanha de conselhos, e dali o terceiro
pedra e o cão dão sinais de melancolia, e também volátil súbito chegou mais perto, como num sopro,
a frase viver entre dois mundos é uma vantagem, e disse que o espanto condensado no homem era
frase que é sua, talvez seja mentira, ainda não foi realmente o único gelado de Deus.
SOBRE O TEXTO provada, resta apenas saber como, em qualquer
A nosso convite, José
que seja esse mundo, dos olhos nascem mágoas 4. O professor Klopp, de Ohio, está certo, essas
Luiz Passos escreveu
e do cão o rabo ventila igualmente as moscas e vozes, outras vozes, como recuperá-las da garganta
esse necrológio ficcional
as queixas de seu dono, ora, na metade do céu o banal da história, dos jornais, dos televisores?, mas
para lembrar o italiano
segundo volátil me disse justamente isso, a dúvida também penso no oposto, o que será que o próprio
Antonio Tabucchi, o
te visitará de novo, Antonio, e lhe respondi que a professor Klopp vai dizer quando lhe aparecerem
mais internacional dos
verdade é que já gosto deste país, porém a vida, os seus voláteis?, provavelmente nada, disto tenha
escritores europeus.
José, eu lhe digo, é preciso saber levá-la, pois sei certeza, a maioria permanece em silêncio e assim
que não se deve escrever aos mortos, mas você chega a negar essa presença, por exemplo, José,

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PERNAMBUCO, MAIO 2012

REPRODUÇÃO

se tivéssemos nos encontrado na Califórnia você de roupa, então fui para sala conversar, lembro que palhou e estavam lhe cobrindo o rosto por baixo do
talvez me dissesse, num café, bem aqui, Antonio, era uma conversa sem razões nem lamentos, apenas chapéu, pensava que sua memória de outros brutos,
Foucault costumava comer os seus sanduíches, a vontade de falar, verdade que não conseguíamos que precisam alcançar, por conta própria, a bruma
ora, esta frase é um volátil, e como não?, com seu dar início à prática, pois logo me fixei no sexto vo- do corpo, faria com que meu sexto volátil tivesse
rostinho aberto a direções contrárias, mascando látil, o seu companheiro de olhinhos escuros, penas alguma desconfiança de mim, mas não, cheguei
as oportunidades possíveis, convenhamos, meu pretas e chapéu de feltro lançando sombras variadas com a ponta dos dedos até o seu rosto e lhe clareei
colega, aquele nosso desencontro foi minha quarta no chão, às vezes um volátil é um pequeno coro, os olhinhos por trás das penas, lembro que na hora
criatura, você com o réquiem de Pessoa a postos fiquei contente, os meus tios também estavam ali, elas me pareceram grossas, cheias daquela trama
para uma aula, parecia um jovem professor Klopp, e outras pessoas vinham chegando, a casa agora delicada, como se fossem cabelos, e com isto deixei
espero que me desculpe a graça, agora brinco, é que parecia cheia, nossa conversa precisava esperar, de notar o calor, o vento, as pessoas, olhei em volta
morri, e Klopp confirmou o fato no New York Times então fomos dormir, creio que vocês foram para uma e decidi lhe contar uma coisa nova, diferente, sobre
de 4 de abril, com sua lisonja de sempre comentou árvore ou ficaram pela sala, não sei, fui para o meu mim, que não havia mencionado antes, achava que
o seguinte, Antonio é único, diferente dos seus quarto, deitei na cama e fiquei escutando as bombas seria uma surpresa, mas o volátil me disse que não,
conterrâneos, interessado que está na traição, no destroncando a minha cidade e os alemães, ouvi isto que ele já me conhecia muito bem, depois sorriu, e
remorso, no perdão, enfim, interessado que es- por vários anos, até conseguir pegar no sono. só então iniciamos a nossa longa conversa.
tou no pecado, ele disse, e nisto somos parecidos,
pena que eu, você e Klopp não possamos sair para 6. No dia seguinte só restava o volátil número seis, 7. Neste instante, em que aguardo a sétima e derra-
jantar juntos, pediria sardinhas com batatas, azeite tímido e com as suas muitas sombras, então saímos deira criatura, que talvez nem seja fêmea, digo que
e vinho verde, pois morri, José, morri e ainda me para tomar um táxi que virou um comboio, a pai- não basta estar vivo, pois pode-se estar vivo e ser
apetece o cardápio frugal de um verão português. sagem lá fora era estranha, não tinha bem certeza inocente, e um olhar inocente nada vê, ora, e entre
onde era, saltamos na estação à beira de uma ponte e o que mais quis ver está um país de barcas, autos e
5. Meu caro, se os voláteis lessem, eis o que escreveria começamos a andar entre uma multidão de pessoas cantigas, agora fechemos os olhos, José e meus vo-
a um deles em particular. Querido volátil número apressadas, cruzando por cima de um rio caudaloso láteis, quem quiser ver de Antonio uma excelência,
cinco, lembro que naquele dia acordei misturado às e de um verde profundo, logo que saímos da estação, onde sua fineza mais se apura, perpétuas saudades
noções que a noite fabrica, estava em casa, cedo ain- eu havia notado o clima mais quente e o dia claro, me tenham, que tudo muda uma áspera mudança,
da, na casinha onde morei quando não tinha deixado ventava bastante, a ponte era alta e levava os pas- e afinal falem de mim como sou e nada menos, nem
a família, em Pisa, onde meu pai comerciava cavalos santes até uma cidade ao pé de uma colina, no meio soado em qualquer malícia, digam de alguém que
e os alemães batiam os coturnos em meio às bombas da travessia paramos para apreciar a paisagem e me amou com palavras, porém nunca demais, alguém
aliadas, isto era no meu tempo de miúdo, de repente dei conta de onde estávamos, era Lisboa, mas uma sem zelo fácil, mas se alarmado perplexo ao extremo,
você chega voando, acompanhado, fiquei surpreso Lisboa diferente, menor, de bonecas, então olhei para alguém cujas mãos, como as do navegante, buscaram
com a visita, eram um casal?, pedi que entrassem o meu volátil, mas ele continuava calado, o vento fora uma terra mais rica que a de seus pais, alguém
e fui ao banheiro me olhar no espelho, estava de tinha assanhado suas penas escuras, estendi a mão que de olhos saudosos, embora estranhos ao humor
pijamas, com uma camiseta branca e calças azuis, em sua direção, tinha medo de que ele me desse as dissolvente, vigiou os homens e as suas histórias
meu rosto parecia o de alguém que acabava de ter costas ou levantasse voo, tudo me soava frágil, eu tanto quanto as figueiras que entornam uma pele
acordado, por algum motivo não conseguia trocar queria apenas afastar as sombras que o vento es- de goma alva e mendicante.

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ENTREVISTA
Adriana Lunardi

“Escrevo para fugir


do pensamento: o
que fazer dos dias?”
No seu novo romance, a escritora fala para todos aqueles
leitores que sobreviveram à infância e permaneceram
fascinados pelo universo de Hans Christian Andersen

FOTO: MÁRCIA FOLETTO/DIVULGAÇÃO

Aceitando como real a declaração


da narradora de A vendedora de
fósforos, quando ela diz que “contar
uma história sempre funciona se a
gente quer desviar de um assunto”, é
inevitável perguntar: de qual assunto
você gostaria de desviar ao escrever
esse romance, ao contar essa história?
Mais do que tudo, escrevo para fugir de
um pensamento absurdo e muito antigo:
o que fazer dos dias? A ideia de que a
vida é uma experiência única e breve
é aterrorizante. Sabendo disso, vêm as
perguntas: quais as coisas certas a serem
feitas? O que é realmente importante?
Onde usar o tempo? É fato que quando
escrevo nada disso me preocupa. Todos
os problemas e questionamentos de uma
vida se transferem para as personagens
que estou criando. Ao invés de pensar
sobre o sentido de tudo, sou obrigada
a resolver um problema de narrativa
ou procurar a palavra exata, a frase
certa, o andamento para determinada
passagem. A arte é uma maneira de
superar o tempo e matar tempo. Ao
menos é assim que eu me sinto quando
escrevo e também quando leio um livro.

Em seu livro, a oficina literária surge


como um ambiente de crueldade. Da
fãs da “menininha dos fósforos” formam uma parte do professor e dos alunos, há uma
Entrevista a Luís Henrique Pellanda verdadeira legião, numerosa e apaixonada. boa dose de sadismo; da parte dos alunos
E já que falamos — como sempre — em in- e da narradora, certo masoquismo. Às
Cada resposta de Adriana Lunardi é um fósforo fância, não custa citar, aqui, uma das falas vezes, tem-se até a impressão de que
que ela risca, uma chama que parece aquecê- mais marcantes da narradora deste romance as oficinas funcionariam como grandes
-la e iluminar o ambiente à sua volta. E, a cada de Lunardi: “A infância não é provisória”. Para grupos de análise. É uma interpretação
fósforo aceso, uma nova visão se descortina, a protagonista de A vendedora de fósforos — uma possível? E a literatura, o meio literário?
tanto para a autora quanto para os seus leitores. menina/mulher sensível e com pretensões li- Será que se alimentam essencialmente
É mais ou menos como na famosa narrativa terárias, presa a uma família complicada que, desses tipos complicados de relação
de Hans Christian Andersen, que ecoa até no por conta do trabalho do pai, não criava raízes entre as pessoas e o mundo?
título do mais recente romance de Adriana, A em lugar nenhum — a infância é a chave de sua Para começar, todo candidato a escritor
vendedora de fósforos (Rocco, 2011). O tal conto história. Na epígrafe do livro, Adriana (ou sua que procura uma oficina está querendo
“infantil” — sobre a morte de uma menina na personagem) anota: “Escreverei as lembranças fugir da angústia do papel em branco.
véspera de Natal — é o preferido dessa escritora de minha irmã para falar de mim com mais O papel em branco é o deserto e suas
catarinense, nascida em Xaxim, em 1964, e verdade”. E é assim que ela segue escrevendo, provações. Dá para entender que se
radicada no Rio de Janeiro desde o final da tanto seus livros quanto as respostas para uma busque companhia para atravessá-lo.
década de 1990. Aliás, na entrevista abaixo, ela entrevista: por vias indiretas, mas seguras, con- O que precisa ser dito, acho, é que dá
diz que, ao lançar este livro, descobriu que os tando histórias para “desviar de um assunto”. para aprender — e muito — nas oficinas.

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PERNAMBUCO, MAIO 2012

Escrevo para um O papel em branco


leitor que se sente é o deserto e suas
pouco à vontade provações. Dá
no mundo e que para entender
encontra nos livros que se busque
um lugar possível companhia para
para ser quem é atravessá-lo
Técnicas narrativas, em passível de ser derrubado por completar o seu raciocínio lá bom leitor é caracterizado por viva mais um pouquinho. A
especial, que irão ajudar na um único leitor — poder frágil, de cima — mesmo explicando sua imaginação. Mas também genialidade do Andersen foi
hora da escrita. O que em portanto. Em meu romance, o seu gesto, o suicida sabe que “as editoras devem ter ter usado um cenário de neve
geral se vê são alunos em quis retratar essa capacidade que nunca será entendido. leitores qualificados em seus e árvores enfeitadas, comida
dúvida quanto ao seu talento, comum a todo ser humano quadros”. Há diferenças entre farta e presentes, enfim, todo
a sua capacidade de escrever. de adonar-se do mundo, Lemos, num trecho do seu um bom leitor “leigo”, e um o clichê da data para narrar
Pensam, erroneamente, que torná-lo de um tamanho livro: “A literatura sempre há bom leitor “profissional”? o sofrimento atroz daquela
deviam ter uma faculdade compreensível, adaptado ao de perder para a realidade, O leitor profissional é o que criança. E o que dizer de
de expressão pronta. Ora, a seu entendimento. Todo mundo não tenham dúvida; porém, seleciona entre centenas ou um conto infantil em que a
literatura não é só expressão; tem um mundinho. O artista quem escolhe a realidade milhares de originais aquele personagem morre? Desde
ela é invenção, sobretudo, talvez explore mundinhos acaba, cedo ou tarde, se que entrará no mercado. que lancei o meu romance,
ou melhor, a reinvenção com a coragem que tinha na sentindo um tolo”. Há como Sendo assim, é quem define descobri uma legião de
particular, pessoal, de um infância. Mas até as crianças optar entre realidade e o que o leitor comum irá devotos do conto. São as
idioma. E creio que você tem sabem quando estão brincando. literatura? Você já fez a sua ler. Ao contrário deste, que crianças de Andersen, eu digo,
razão: é de tipos complicados, Não fosse assim, entraria escolha? Numa entrevista define seu repertório pelo que sobreviveram à infância.
erráticos, queixosos, num universo onipotente, ao Rascunho, você disse que gosto, o leitor profissional
inoportunos, infelizes, que por definição se torna a arte tem em comum com deve antecipar-se e descobrir Literatura “não é para
vaidosos, traumatizados, incomunicável. O que já não é as drogas ou a religião um um tesouro — comercial ou resolver”. Para que seria?
que surgem os livros, brincadeira, nem pode ser arte. “desejo de evasão”. Mas a artístico — em textos que Para sentir coisas. Para brincar
que é feita a literatura. literatura também não poderia foram lidos até então apenas de outro. Para seguir a história
Sua narradora diz que não invadir a realidade e, de pelo próprio autor e por dois de alguém. Para continuar
A família retratada em A acredita em textos escritos algum modo, modificá-la? ou três de seus amigos — às estando onde a primeira voz
vendedora de fósforos tem para o próprio autor ler, e A literatura não serve a vezes, só pela mãe. É uma nos levou ao contar um conto.
o hábito de renomear tudo que “até um suicida entende causa nenhuma, e essa é responsabilidade, portanto, em Para ficar em silêncio. Para
o que vê, dar novo nome a importância de um bilhete precisamente a sua graça. Não esfera decisória, que pode ou descobrir palavras. Para falar
às coisas e pessoas que para quem fica”. Duas foi para modificar a realidade não coincidir com a literatura dos livros que lemos. Para
fazem parte de seu dia a dia, perguntas: você escreve para que ela nasceu; foi para torná- dita canônica, que é definida emprestá-los, para pedi-los
apelidos internos, irônicos, quem? E: você acha que livros la suportável. A realidade será por outro tipo de leitor: o emprestado. Para descobrir um
líricos, e sua narradora diz também são uma espécie sempre maior, mais relevante acadêmico. Assim, o leitor autor novo. Para descobrir um
que aquela prática “tinha a de bilhete aos que ficam? e muito mais improvável do comum é o único que lê só por novo livro de um autor amado.
função de encolher o tamanho A minha resposta na ponta que qualquer livro. Talvez prazer. Viva o leitor comum! Para nos identificarmos com
do mundo”. No Gênesis, da língua é: escrevo para um por falha humana — ou por personagens. Para achar que
Deus também concede ao leitor que se sente pouco à ser a nossa principal virtude A vendedora de fósforos alguém soube dizer o que a
homem a oportunidade vontade no mundo e que — a realidade não parece é seu conto favorito de gente já intuía. Para as horas
de dar nomes às aves e às encontra nos livros um lugar possuir todos os recursos de Andersen? Você o conhece de insônia. Para sublinhar
feras que dividem com ele possível para ser quem é que precisamos para chegar desde menina? O que, frases. Para ficarmos sós.
o Paraíso — e Adão acaba e para experimentar, ao ao final de cada dia mais ou nele, mais lhe tocou? Para saber o que comem os
dando nome até ao gênero mesmo tempo, como seria menos lúcidos, mais ou menos É o meu preferido entre todos beduínos e se eles usam facas.
feminino. Esse privilégio é se estivesse na pele de outra contentes, mais ou menos os contos lidos na infância. Ao Para entender como pensam
tido como uma espécie de pessoa. À parte o universo de vivos. E onde a realidade invés de uma história típica de os indianos. Para descobrir
transferência de poder. Ao conhecimento que produzem, falha, entra a imaginação Natal, narra a perambulação a África. Para, ao final, saber
criar um universo pessoal e os livros são também bilhetes — uma inevitabilidade de uma criança que acaba que todo mundo quer o
renomeá-lo, o escritor não curtos e longos, cartas de tão orgânica quanto a morrendo de frio e de fome mesmo da vida. Para resistir
estaria exercendo um pouco amor, jogos de linguagem, fome e o sono. E o que é a no meio da rua. O que mais ao tempo. Para matar tempo.
desse poder ilusório? confissões, relatos de viagem, literatura senão um exercício me fascinava era o fato de Para pensar sobre a literatura.
No máximo, ele estaria retratos, fantasias, sonhos, interessado de imaginação? que na chama de cada fósforo Para sentir todas as coisas.
exercendo o poder de sua escritos com todas e nenhuma aceso aparecia uma visão,
imaginação, eu acho. Um intenção, todas e nenhuma Naquela mesma entrevista ao um sonho da menina, e por Leia entrevista completa no site
poder legítimo, ainda que ambição, porque — só para Rascunho, você dizia que um isso ela conseguia manter-se www.suplementope.com.br

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PERNAMBUCO, MAIO 2012

JANIO SANTOS

Flaubert já se preocupava muito com os lugares-


-comuns e as frases feitas dos escritores. Chegou
a escrever um dicionário enumerando as frases
repetidas à exaustão pelos franceses. Entre nós,
Fernando Sabino fez o mesmo. Ainda assim, sob a
alegação de que escrever é um dom, mas um dom
que não precisa ser aperfeiçoado, continuamos a
escrever frases que, em outras circunstâncias, se-
riam completamente abandonadas. Senão vejamos:

1 - TENHO UMA IDEIA NA CABEÇA


Nada mais bobo. Ideias só existem na cabeça. Basta
escrever “Tenho uma ideia”. Não será nos ombros
nem nos braços, todos entendem claramente.

2 - O CRAQUE JOGOU MUITO BEM ENQUANTO


ESTEVE EM CAMPO
Claro. “Enquanto esteve em campo” é abuso. Fora
do campo ele não joga. Substituído, não participa
da partida, é obvio, portanto, não merece análise.

Raimundo
3 - DEPOIS DA SOLENIDADE FOI SERVIDO CO-
QUETEL AOS PRESENTES

CARRERO
E os ausentes não puderam beber nem comer.
Que tal cortar?

4 - ATIROU NO AMIGO
Amigo não atira no outro. Nunca escreva isso.
Jamais.

5 - ESTÁ CORRENDO ATRÁS DO PREJUÍZO


Imagina se encontra. Bobagem ilimitada.

6 - A CHUVA QUE CAIU ONTEM


Chuva não sobe nunca. Por favor, esqueça.

Uma verdadeira 7 - MULHER, VIA DE REGRA, É ROMÂNTICA


Via de regra? Que barbaridade é esta? Nunca es-
creva esta bobagem. Refaça agora, urgentemente.

tempestade de
8 - NUMA MANHÃ ENSOLARADA
Lugar-comum horrível. Pare agora.

9 - A MULHER CAIU NOS BRAÇOS DO MARIDO

lugares-comuns
Nunca, jamais. Se você quer ser escritor com
frases assim, esqueça.

10 - ASTRO REI... LÁBIOS VERMELHOS... LUA esse tipo de inspiração. Com certeza, não é ins-
DE PRATA piração, mas cópia do muito medíocre que vai se
Nem pense. Mude de atividade. repetindo, repetindo, e formando a má literatura
que contamina muitos escritores, sobretudo os
Alguns escritores têm mania 11 - PREMIDO PELAS CIRCUNSTÂNCIAS
Esqueça, esqueça... isso não se faz... Apague e
iniciantes. Expressões como essas não passam
numa oficina de criação literária, porque o pro-

de repetir frases feitas e de desista... fessor estará sempre atento. O trabalho não acaba
aí. Muita coisa ainda precisa ser dita...

apelar até para o absurdo


Este é apenas um exemplo muito rápido daquilo
que encontramos em alguns livros, em alguns 12 - O PROFETA FOI ACOMPANHADO POR UMA
textos que causam surpresa. É preciso estar atento, GRANDE MULTIDÃO
todo cuidado é pouco para que você não aceite No Novo testamento esta frase aparece com frequência.
CLARA GRIVICICH /DIVULGAÇÃO

DEUS EX MACHINA
Marco Um dos fundadores da Confraria dos Ventos, o
Polo carioca Victor Paes lança seu segundo livro de contos
O carioca Victor Paes (foto) ideário de excelência que desde
é um dos fundadores do site o início norteou o jovem grupo.
Confraria dos Ventos, que desde Agora, Victor Paes lança Deus
a primeira edição revelou um ex machina, seu segundo livro
alto nível nos projetos gráfico e de contos. Neles, o milagre da
editorial. Pouco tempo depois infância torna paradoxalmente
foi lançada a revista física da mais nítido o cotidiano, a
Confraria que, por fim, tornou- surpresa é a dobradiça que

MERCADO se uma pequena editora, tendo,


inclusive, assimilado a Caliban,
mantém a porta que se abre
para um ambiente inusitado,

EDITORIAL e mantido o catálogo desta sob


forma de coleção. As edições da
a precisão da linguagem
reafirma um narrador maduro.
Confraria permanecem fiéis ao Enfim, um excelente livro.

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A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
CONSELHO EDITORIAL
I Os originais de livros submetidos à Cepe,
exceto aqueles que a Diretoria considera
projetos da própria Editora, são analisados
pelo Conselho Editorial, que delibera a partir
dos seguintes critérios:

1. Contribuição relevante à cultura.

2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,


que privilegia:

a) A edição de obras inéditas, escritas ou


traduzidas em português, com
relevância cultural nos vários campos
do conhecimento, suscetíveis de serem
apreciadas pelo leitor e que preencham
os seguintes requisitos: originalidade,
correção, coerência e criatividade;

b) A reedição de obras de qualquer gênero


da criação artística ou área do
conhecimento científico,
consideradas fundamentais para o
patrimônio cultural;

3. O Conselho não acolhe teses ou


dissertações sem as modificações
necessárias à edição e que contemple a
ampliação do universo de leitores, visando a
democratização do conhecimento.

II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá


parecer sobre o projeto analisado, que será
comunicado ao proponente, cabendo à
diretoria da Cepe decidir sobre a publicação.

III Os textos devem ser entregues em duas vias,


em papel A4, conforme a nova ortografia, em
fonte Times New Roman, tamanho 12, com
Deve ser erro dos tradutores. Multidão é o coletivo é de descrença...Tudo bem. Um autor, porém, não espaço de uma linha e meia, sem rasuras e
de muita gente. Por que jornalistas e escritores publica depois que morre. Os espíritas acreditam contendo, quando for o caso, índices e
gostam tanto dessa redundância? que sim. Mas é algo espírita... bibliografias apresentados conforme as
normas técnicas em vigor.
13 - AONDE VOCÊ ESTÁ? É assim que as oficinas procuram desenvolver o
Aonde é para movimento e onde para lugares fixos. processo criativo, ao lado dos estudos de técnicas
Imagine uma pessoa explicando aonde está... dos autores mais sofisticados e imprescindíveis. Por IV Serão rejeitados originais que atentem contra
isso é fundamental a presença de um professor com a Declaração dos Direitos Humanos e
14 - EM VIDA, O ESCRITOR PUBLICOU APENAS grande experiência na arte de escrever romances, fomentem a violência e as diversas formas de
UM LIVRO... novelas e contos, isto é, com experiência de fazer,
preconceito.
É claro, ninguém publica depois de morto. Há de montar e remontar histórias, desde as mais
livros póstumos. Respeito. Minha posição, porém, simples às mais complexas.
V Os originais devem ser encaminhados à
Presidência da Cepe, para o endereço
indicado a seguir, sob registro de correio ou
protocolo, acompanhados de
correspondência do autor, na qual
informará seu currículo resumido e
endereço para contato.

VI Os originais apresentados para análise não


serão devolvidos.
CORDEL O VALOR DO AMANHÃ

Poetisa Mariane Bigio cria Economista escreve sobre as relações que a noção dos juros
versos infantis e lúdicos pode ter com vários aspectos do comportamento humano
Companhia Editora de Pernambuco
Contemplada com o Prêmio Eduardo Giannetti é um que “é uma obra espetacular, que
Cultura de Literatura de Cordel economista que costuma mexeu muito com a minha forma Presidência (originais para análise)
– Edição Patativa do Assaré, incursionar por áreas que, de programar a vida”. O livro, Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
acaba de ser lançada a coletânea aparentemente, não têm entretanto, tem como subtítulo CEP 50100-140
O que sou eu?, com três cordéis nenhuma relação com a matéria Ensaio sobre a natureza dos juros. Para Recife - Pernambuco
infantis, para ler e colorir, da na qual é especialista. Os títulos Giannetti, a questão dos juros
poetisa recifense Mariane Bigio, de alguns de seus livros revelam transcende a economia, pode
que pertence ao grupo Vozes bem isso: Auto-engano, Felicidade, ser aplicada no planejamento
Femininas. Ilustrados por Max O livro das citações, A ilusão da da vida, “está inscrita no
Motta, os versos abordam as alma. Agora ele publica, pela metabolismo dos seres vivos
frutas, os bichos e as cores, Companhia das Letras, O valor do e permeia boa parte do seu
desafiando a garotada a interagir, amanhã, livro do qual a cantora- repertório comportamental”.
completando as estrofes. compositora Marina Lima diz É para conferir.

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FOTOS: THIAGO SOARES | DESIGN: HALLINA BELTRÃO

O lugar incerto que


Paulo Bruscky habita
Entre aspas e novas “Tás rindo de quê?”, a voz ao longe de Paulo Bruscky
me interpela, no momento em que rompi o silêncio
É do jogo entre imagens e palavras que reside parte
do lastro da poética de Paulo Bruscky, artista pernam-

definições, artista lança seu


do nosso encontro com um sorriso espontâneo. Ele, bucano, parcela de pioneirismo na arte conceitual no
em meio a estantes repletas de livros, à procura de um Brasil, interessado pelos jogos de linguagens. Acho
exemplar de Arquivo impresso: Poesia inédita (2012), ouviu que, no momento em que irrompi o silêncio com
primeiro livro de poemas o tilintar do meu riso. “É essa tua obra aqui, Quadro
a óleo. E essa lata de óleo de cozinha Lisa no meio da
um sorriso diante de uma de suas obras, murmurou
o saudável atrito dos sentidos. Artista, obra e espec-
moldura...”, digo. “Achei!”, a voz de Paulo Bruscky tador. Um enunciado. O motivo do nosso encontro
Thiago Soares ainda ao longe. Ele caminha em minha direção – estou é falar sobre Arquivo impresso: Poesia inédita, o primeiro
no corredor de seu ateliê observando algumas de suas livro, digamos, “livro” de Paulo Bruscky. Como tudo
obras dispostas na parede que dá acesso aos fundos, que cerca sua obra, não há meio de expressão que ele
uma espécie de cozinha e um quintal. “Os artistas na não tenha experienciado, recriado, questionado. Fax,
época ficaram arretados com essa minha brincadeira”, carta, fotocopiadora, livro. Livro sem aspas para Paulo
diz Bruscky, reconhecendo que fui capturado pelo Bruscky (em função da recorrência na sua produção) é
seu jogo. A obra Quadro a óleo é composta por uma livro de artista. Já são mais de 200. O livro que a gente
moldura, uma lata de óleo de cozinha da marca Lisa está acostumado a folhear, encontrar nas bibliotecas,
ao centro e o título, uma provocação formada por livrarias, estantes, tem aspas: é “livro” — objeto até en-
moldura, imagem e palavras. tão pouco presente de forma tão, digamos, denotativa

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em meio a seus questionamentos. Arquivo impresso reúne


dez poemas de Paulo Bruscky e sai pela Coleção Elixir,
de Belo Horizonte (MG), dos editores Ricardo Aleixo
O livro Arquivo Foi dessas pesquisas sobre mineração para apre-
ender a complexidade da palavra que Paulo Bruscky
chegou a um outro código lúdico: a “palarva”. Lar-
e Flávio Vignoli. Terá lançamento em maio na Feira
do Livro de Belo Horizonte e, em seguida, no Recife.
Chegando mais perto de Arquivo impresso, nota-se
impresso terá uma va, a forma animal que ainda não chegou à matu-
ração. “Palarva”, codificação embrionária, essa que
ainda ambiciona ser, quem sabe, um dia, palavra.
que, mais uma vez, Bruscky segue colocando as-
pas nas coisas. Embora seja um “livro”, reunião de edição de apenas “Escrevi essa ideia de ‘palarva’ em 1971, tentando
achar uma metáfora para a própria noção de pa-

160 exemplares,
poemas escritos de forma dispersa, desde a década lavra. Todo mundo queria corrigir achando que
de 1960, há algo de livro — sim, livro de artista. Não estava trocado o ‘rv’ e querendo escrever ‘palavra’
de forma tão explícita como no tijolo de vidro que e não ‘palarva’”, ri. No poema “Noturno”, de 1986,

todos assinados, e
é a obra Livro de Ar tista, mas pelos questionamentos presente em Arquivo impresso, Bruscky desconstrói a
que há, na própria configuração do meio: Arquivo “palarva”: “Limbo da palavra/ vereda pela larva/
impresso tem tiragem de apenas 160 exemplares. lavra/ só sons, ruídos, sirenes”.
Todos assinados. O design do livro é sanfonado
em papel cartão marrom e as páginas vêm presas
como molduras. Para cada poema, uma tipografia
traz textos de várias Ao comentar sobre a “palarva”, ele lança algumas
questões sobre o seu interesse pela escritura do po-
ema. “Poesia é fome de ver”, define. E explica como
diferente – todas elas criadas na Tipografia Matias,
também de Belo Horizonte. O papel das páginas-
-telas também muda. De cor. De textura. Algumas
fases do autor nascem alguns de seus escritos. “Caleidoscópio”, de
1976, também em Arquivo impresso, teve sua gênese na
observação do cotidiano. A chuva caindo, os pingos
folhas, de gramatura finíssima, nos reportam ao — do sentido. “Sempre tive interesse pela litera- se pendurando na marquise. Aquilo que poderia
guardanapo de bares. Outras, mais encorpadas, são tura, pela música. Li Cabral, Baudelaire, Joaquim resultar numa obra visual ou mesmo num poema
quase cartões de visitas. Daquela textura que facilita Cardoso, todo o pessoal da Geração de 65”, elenca. de natureza mais concreta, virou, através de Paulo
guardar na carteira. O próprio livro vem envolto num “A palavra, de alguma forma, faz transbordar a Bruscky, um texto que tem quase a simplicidade e
elástico branco típico das pastas de arquivos. Lem- visualidade”, define. Nos anos 1980, quando se a forma elíptica de um haicai: “Vejo os pingos da
brando toda carga política que há na obra de Paulo debruçou mais detidamente sobre a produção chuva/ que se penduram e caem/ como os mais
Bruscky, não é difícil remetermos aos arquivos da de poesia — talvez se interessando também em perfeitos trapezistas/ No chão/ e em compassos/
ditadura, coisas do gênero. São esses signos estéticos produzir poemas de maneira mais tradicional, fragmentos de paisagem”.
em aberto que nos fazem isso... estes a que estamos acostumados a ler nos “livros” A elipse, talvez a mais oblíqua herança do “artista
Voltando às aspas. Arquivo impresso é entre aspas — Bruscky foi tentar entender de mineração. Pro- visual que escreve”, logo some ao nos depararmos
porque conjuga o “livro” com o livro. O próprio cessos de mineração. Nas minas, há os chamados com “AR- RECIFES DE POESIA DE PBY (O RECIFE
Paulo Bruscky chama seus textos de poemas. Mas processos de lavra, que consistem em perfuração, EM PROVA E PROSA) ROTEIRO I”, mais longo poema
“sou um artista visual que escreve”, situa. Obser- desmonte e remoção de minerais. Lavra: coloque de Arquivo impresso, que, na verdade, foi feito em agos-
vando seu lugar na produção artística brasileira, um “pa” na frente e temos a “palavra”. E o poeta to de 2008, sob encomenda da TV Cultura, que iria
emergem zonas de contato: o artista produziu obras como aquele que perfura a língua, desmonta os fazer um documentário e queria uma visão de Paulo
no esteio do poema/processo, na década de 1970; códigos, remove os sentidos. “Sempre gostei de Bruscky sobre o Recife. O texto já tem início com um
o concretismo legou para Bruscky o interesse pela escrever, fiz jornalismo na Unicap, gosto de burilar, tom provocador: “O Recife da poesia sonora dos sapos
palavra como lugar de ancoragem — ou debandada retrabalhar a palavra”, diz. franceses: ui, ui, ui, ui...”. E traz, numa lembrança de

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“Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, a pas-


sagem: “O Recife do buraco de Otília, com de tudo
um pouco e outros bares e lupanares:/ Venda do Seu
“McLuhan estava publicar uma página manuscrita num jornal era
mais uma das subversões dos meios que Bruscky
constituía como uma construção de seu discurso.
João, Leiteria, Gregório, Tita, Bragantino, Espanhol,/
Samburá, Tepan, Don Pedro, Talude, Saci, Gambrinus,
Mangueirão,/ Chantecler, entre outros Eus”. Os “eus”
tratando da Ali residia, possivelmente, também o amálgama
da sua arte postal.
Um assunto passa a ser recorrente na nossa con-
de Bruscky dispersos nos bares da cidade. “O bar é um
lugar de criação para mim. Muitas vezes, pego meu vida em rede, versa: o meio. De comunicação, de expressão, o veí-
culo, o suporte. Aquilo que leva. Ou traz. O entre, esse

da produção à
caderno de ideias, vou para uma mesa dos fundos de lugar pouco confortável — porque é de deslocamento
um bar e anoto muitas coisas”, explica. –, mas que alguns, como Bruscky, Homi K. Bha-
Inevitavelmente, a questão da palavra ou da bha, Marc Augé, Pierre Verger, Marshall McLuhan,

distância e isso já
“palarva” volta à tona na nossa conversa. Como entre tantos outros arriscaram ficar. E pensar sobre.
se autodenomina “um artista visual que escreve”, Chegamos a McLuhan, talvez, o “pai” dos estudos
pergunto se a página, para ele, é o equivalente a sobre meios de comunicação. Bruscky não gostaria
uma tela. Ele me responde lembrando que, mesmo
para “escritores-escritores”, como João Cabral de
Melo Neto, a página nunca foi somente uma pági-
fazíamos desde os muito desse lugar estático em que eu pareço colocar
McLuhan — o autor de máximas como “os meios de
comunicação são extensões do homem”, “os meios
na. Também era uma espécie de tela. “João Cabral
conhecia muito de artes gráficas, de design. Joa-
quim Cardozo também”, enumera. “Pernambuco
anos 1980”, diz são as mensagens” e de palavras-logomarcas como
“aldeia global”. “Muito do que McLuhan tratou, eu li
em ‘História das Invenções’, de Hendrik Van Loon, até
sempre foi vanguarda nas artes gráficas, na forma estamos perdendo o sentido do manuscrito? “Eu de forma mais aprofundada”, pontua. McLuhan,
de apresentação das obras”, lembra. Percebo que ainda anoto muito. Tenho cadernos de ideias”, diz. ao tratar da ideia de “aldeia global”, estaria falando
o interesse de Paulo Bruscky é mesmo pelas in- “Olha aí, uso ainda bilhetes para me lembrar das sobre uma espécie de supressão simbólica da noção
terfaces, pelos deslocamentos. Daí a sua poética coisas” e aponta para um pequeno papel disposto de espaço. O mundo é uma aldeia. Aviões nos levam
de reconfigurar os meios. Ao mesmo tempo, não em cima da mesa de uma espécie de cozinha onde em uma hora a destinos distantes. A transmissão via
se furta a me dizer que também gosta da página estamos conversando, que tem indicativos do que satélite traz a imagem ao vivo de um jogo de futebol
dos textos em prosa. Aquela repleta de palavras, fazer no dia. Não à toa, olho para uma geladeira ao na Espanha para a minha TV no Recife, Brasil. Acesso
cheia, ocupada, sem muitos brancos. Os “brancos” lado e vejo um ímã disposto na porta branca com os a internet e converso com alguém na Austrália. O
da página de um romance, me parece dizer, estão dizeres “Gentileza gera gentileza”, aquele mesmo tempo comprime. O espaço nos invade. Ecoamos
nas entrelinhas de uma história bem escrita. “Gosto do poeta-andarilho Gentileza, que escrevia nos aquela ideia de Foucault de que habitamos um tem-
muito da literatura russa”, define. muros dos viadutos do Rio de Janeiro. “Em 1978, po. “McLuhan estava tratando da vida em rede, da
Literatura russa, lembro de alguns romances no Jornal da Cidade, eu fiz uma página inteira de jor- produção a distância e isso já fazíamos desde os
longos, muitas palavras, Dostoiévski de páginas nal manuscrita. Era uma turma boa que editava, anos 1980, com a arte a distância”, aponta Bruscky.
abarrotadas de letras. E, talvez, sabendo do gosto Ivan Maurício, Nagib Jorge Neto, eles deixaram. De fato, o tempo real sempre apareceu como
de Bruscky pelos deslocamentos, questiono sobre Eu tinha um espaço sobre cultura, de conteúdo matéria-prima na obra de Paulo Bruscky, sobre-
um oposto: sim, vivemos numa época em que tudo informativo, mas também falava de filosofia, co- tudo porque ao produzir arte através do fax, tinha-
é digitado, muitos teclados, telas de touch screen, locava uns contos”, lembra. A permissividade de -se o processo de desmaterialização na origem e

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rematerialização no destino. Partida e chegada.


E, logicamente, o meio. No bojo deste aparecer e
desaparecer, estava o tempo real. É possivelmente
Bruscky mora captar. Fui anotando tópicos, flashes, suas falas.
Muito ficou no dito que a escrita não pôde captar.
Ficou nesta zona deslizante que Bruscky tanto ha-
deste debate mais conceitual sobre a arte em tem-
pos de internet que Bruscky sente falta. “Não estão
sabendo explorar a internet, vejo exposições que
numa casa próxima bita: o entre. A fala do artista, o intervalo, a minha
escrita. Numa era da profusão de formas digitais
de registro da entrevista, adotei a manual. Para
são ‘showrooms’ de artistas que dominam o meio”,
critica. E com sua voz calma, mas não menos po- ao Mercado da tratarmos de contradições, acho que Bruscky me
falou sobre como ele não usa redes sociais numa era

Boa Vista, que ele


lítica, ele atesta: “a função da arte é subverter o de imersão da internet. Eu usando caneta e papel
meio, falta ousadia. A ansiedade da velocidade de numa era digital, ele negando as conectividades.
reconhecimento assassina muitos artistas”. Talvez tenha a ver. Acho que foi isso.

gosta de chamar de
Bruscky continua a fazer sua produção a distân- Já no corredor de saída de seu ateliê, observo
cia. Para a Bienal de Arte da Polônia, que acontece em um cartaz disposto junto à porta: “vacina contra o
outubro, em Poznan, vai enviar todo seu material tédio”. E chego a pensar se estar em deslocamento,
pela internet. O homem da arte postal não se refuta
a se adequar ao momento em que trocamos a carta
pelo e-mail. “Dá para fazer e-mail arte também”,
Nova Olinda, pelo à deriva, questionando os meios, os suportes não
seria a própria tentativa de negação do tédio. Algo
me diz que Paulo Bruscky é, ele mesmo, um tipo de
assegura. E como quem não quer colocar um porto
muito seguro para nada — nem mesmo para suas
assertivas — atesta: “apesar de tudo isso, ainda ando
seu ar bucólico antídoto. Veneno antimonotonia, diria o cantor. Mas
aí, sem que eu verbalize essa coisa de “ser contra o
tédio”, Bruscky me diz que comprou aquela casa
com caneta e papel, rabiscando, anotando”. E assim “Sinto que as pessoas têm dificuldade de leitura, o em que está seu ateliê, no bairro da Boa Vista, “que
como leu sobre mineração para descobrir sobre a signo não é para ser algo erudito”, atesta. E ques- eu chamo de Nova Olinda”, porque tem um clima
palavra, Bruscky investigou também a datiloscopia, tiono, lembrando o filósofo tcheco Vilém Flusser meio rural, com casas de porta e janela, parecendo
o processo de identificação humana por meio das no seu livro A escrita, a máxima presente na obra: a Olinda da Cidade Alta, pessoas com cadeiras nas
impressões digitais. “Conheci um perito em datilos- ainda há futuro para a escrita? calçadas, ruas de paralelepípedo. É aquela região
copia”, lembra. Suponho que Paulo Bruscky esteja Não sei se por um lapso do manuscrito ou mesmo nos arredores do Mercado da Boa Vista, perto do
me dizendo que o manuscrito é uma das formas da minha memória, não achei nas minhas anota- Pátio de Santa Cruz. Recanto de silêncio perto do
mais poéticas de identificação do ser humano. E ções a resposta de Bruscky sobre o futuro da escrita. rush do centro da cidade. “Olha o silêncio daqui”,
que, embora estejamos imersos num mundo de Procurei no meu bloco de notas e nada, nenhum me diz Bruscky, “nem parece que estamos na Boa
teclados, é ainda sob a égide do toque — extensão registro. Possivelmente fui traído pela minha ideia Vista”. E mesmo sendo, ele mesmo, um antídoto ao
do dedo e da mão — que vivemos. um tanto quanto ultrapassada de fazer uma entre- tédio, Paulo Bruscky também não parece negar este
Lembro aquele texto de Mikhail Bakhtin que vista longa com o artista sem recorrer ao gravador tédio que há no silêncio. E que, de alguma forma,
ele nos fala: é nas mãos que reside a nossa huma- de áudio. Talvez, imbuído pelo espírito subversor é uma subversão daquilo que passamos a manhã
nidade. Com elas, que gesticulamos, apontamos, de Bruscky, quis questionar a precisão do registro inteira a discutir sobre: a palavra.
pintamos, escrevemos, levamos alimento à boca, jornalístico. Todo esse texto foi escrito a partir de
tocamos com delicadeza. A mão nos humaniza. E anotações do que o artista falou. Ele falou muito, Conheça o livro de poemas de Paulo Bruscky no www.
é a mão que toca o teclado que também escreve. mais rápido que a minha escrita manual poderia suplementopernambuco.com.br

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PERNAMBUCO, MAIO 2012

ENSAIO

Não foi só no
JANIO SANTOS

Um dos capítulos mais instigantes das Confissões, de


santo Agostinho (354-430), é, para mim, o que se
intitula O encontro de Deus, particularmente os tópicos

princípio, ainda
que falam sobre a “tríplice tentação”: das concupis-
cências da carne e dos olhos (o desejo libidinoso e os
“movimentos lascivos” que o atormentavam durante
o sono), e da “ambição do mundo” (as tentações do
“louvor”, da “vanglória” e do “amor-próprio”). Neste

hoje é o verbo
capítulo, o teólogo expõe as suas “feridas” e pede a
Deus que tenha compaixão pelas enfermidades da
sua alma; afinal, “não é a vida humana sobre a terra
uma tentação contínua?”.
Mas além dessa “tríplice tentação”, Agostinho
Para Santo Agostinho a declina sobre aquelas tentações que envolvem
os sentidos: a “gula”, a “sedução do perfume”, a

palavra carrega uma força “sedução dos olhos” e o “prazer do ouvido”. Po-
rém, é nestes dois últimos tópicos que Agostinho

maior que todas as músicas


se volta para os gêneros artísticos. Aqui, o Bispo
de Hipona reafirma o que já dissera em outros
textos: o alimento da arte é a mentira. Neoplatô-
nico, Agostinho cultivava uma séria desconfiança
Anco Márcio Tenório Vieira em relação à arte e àqueles que a produziam; em
particular, os poetas, que não se furtavam, com
as suas allegoria in verbis (também conhecida como
a alegoria dos poetas), em faltar com a “verdade”
e propagar falsidades. Em A cidade de Deus, Agosti-
nho denomina os poetas de criadores de “fábu-
las mentirosas”, “falsas”, “torpes” e “indignas”.
Ainda nesta obra ele se volta contra os poetas,
os dramaturgos e os atores. Discorrendo sobre
os dois conceitos de teologia correntes em seu
tempo — o dos filósofos gregos e o dos teólogos da
Igreja —, ele evoca Marco Terêncio Varrão (116-27
a.C.). Este classificava a teologia em três gêneros:
o mítico (“fabuloso”), cultivado pelos poetas; o
físico (“natural”), exercido pelos filósofos; e o civil
(“político”), matéria dos sacerdotes e moradores
das urbes. Para Agostinho, as teologias mítica e
civil comungavam dos mesmos princípios. Ambas
se voltavam para os deuses pagãos e, como tais,
não podiam oferecer ao cristão “a vida eterna”, a
vida “em que a felicidade não tem fim”. Afirma
ainda que a teologia mítica “semeia as torpezas dos
deuses com ficções, (a civil) colhe-as com aplauso.
Aquela espalha mentiras, esta recolhe-as.” Em A
doutrina cristã, Agostinho assinala que, “certamente,
há no homem mentiroso a intenção deliberada de
dizer falsidades”. Logo, “todo mentiroso atenta
contra a fé, porque quer obtê-la daquele a quem
engana — no momento mesmo em que está a violá-
-la. Todo violador da fé é injusto”. confessa que continua a encontrar “algum des-
Se a teologia física é própria ao mundo (criação de canso nos cânticos que as Vossas palavras vivifi-
Deus), a mítica e a civil são próprias ao teatro e às cam, quando são entoadas com suavidade e arte”.
cidades (invenções humanas). “A teologia fabulosa, Mesmo não se sentindo preso à música, quando
teatral, cênica, pejada de indignidades e torpezas, a escuta sente dificuldades em abandoná-la. As-
reduz-se à teologia civil. E esta, que se julga, e sim, o único meio que encontrou de preservar a
com razão, merecedora de censura e desprezo, é sua interioridade espiritual foi se voltando para
parte da outra, considerada merecedora de culto e as composições em que a palavra de Deus vive,
prática”, afirma. Em suma, a teologia mítica é uma pois “Quando ouço cantar essas Vossas santas
“imundícia da teologia fabulosa”. Com ela, os poe- palavras com mais piedade e ardor, sinto que o
tas, teólogos e os sacerdotes pagãos que a acatam. meu espírito também vibra com devoção mais
Assim, quando trata da “sedução dos olhos” religiosa e ardente do que se fossem cantadas de
nas suas Confissões, Agostinho acusa os artistas de outro modo”.
criarem obras que seduzem exteriormente a vista Mas, mesmo fazendo concessão aos cânticos,
dos homens em detrimento da sua interioridade. Agostinho defende que entre a melodia e os ver-
No caso, “Aquele que os criou e destroem o que por sos de louvor, os compositores devem dar ênfase
meio d’Ele fizeram”. Em tom de profunda reprova- aos versos. Assim, tomando o exemplo de Santo
ção, ele afirma que “os artistas e amadores destas Atanásio, defende que o leitor dos Salmos deve
belezas externas tiram desta suma Beleza apenas recitá-los com tão diminuta inflexão de voz que
o critério para as apreciarem. Só não aprendem mais pareça um leitor do que um cantor. Ou seja,
a regra para as usar bem! Contudo, esta também a melodia deve se submeter às palavras, como se
lá está. Porém, não a veem, porque do contrário fosse uma espécie de mantra, elevando o espírito
não iriam tão longe, mas reservariam para Vós em direção a Deus, pois quando a palavra rivaliza
toda a sua força, e não a dissipariam em fatigantes com a música o espírito se perde no prazer da
delícias”. Em resumo, a arte pagã é uma fôrma melodia e não frui o Verbo de Deus. Porém, sem
sem alma, pois a verdadeira arte é aquela que se querer “proferir uma sentença irrevogável”, ele
reconhece como criação de Deus, que não busca afirma que se vê inclinado “a aprovar o costume de
como único propósito a sedução dos olhos, mas cantar na igreja, para que, pelos deleites do ouvido,
se deixa possuir “por aquele Deus que criou estas o espírito, demasiado fraco, se eleve até aos afetos
coisas tão belas”. No caso, “a beleza e a variedade de piedade”. Mas quando a música termina por lhe
das formas, o brilho e a amenidade das cores”. sensibilizar mais do que as letras que se cantam,
É perseguindo este raciocínio (a defesa de uma admite, com dor, que caiu em pecado. “Neste caso
arte que oblitere o seu caráter de diversão e que preferiria não ouvir cantar. Eis em que estado me
encerre a palavra divina como o seu único alimen- encontro”, confessa.
to) que Agostinho aborda “o prazer do ouvido”; Estas torturantes reflexões poderiam ser mais
particularmente, a música, gênero que “com mais uma entre tantas outras de um cristão dos sécu-
tenacidade” o prende e o subjuga, apesar de Deus los 4 e 5 (vivendo entre dois mundos: o pagão e
o ter libertado desta tentação. Mas como “a vida o cristão) se elas não tivessem como autor Santo
humana sobre a terra (é) uma tentação contínua”, Agostinho, um dos mais influentes teólogos da

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PERNAMBUCO, MAIO 2012

Igreja. Afinal, escrevera quase 100 livros, cerca de


300 cartas e dos oito mil sermões que proferiu, mais
de 400 chegaram até nós. Pode-se mesmo dizer
E não sendo um rebus) e os sinais (de signis); ou seja, para ele só se
conhece as coisas por meio dos sinais. No entanto,
em De Magistro ele defende que apesar da palavra
que o cristianismo só abandonou a sua condição
de seita judaica depois que ele lhe calçou com
um sistema teológico e filosófico que tinha como
signo propriamente (Verbo) ser um sinal que significa coisas, há coisas
que nada significam e coisas que significam outros
sinais. Ele também defende em A doutrina cristã que
princípio o método tipológico entre o Velho e o Novo
Testamento; método onde um Testamento prefigura o dito, a música existem determinados signos, a exemplo das pa-
lavras, que são criados e empregados unicamente

não seria uma


outro, sendo o Velho a “figura” da qual o Novo é o para significar algo. Sendo assim, tanto em um caso
“espírito”. A importância da sua obra sobre a Igreja (coisas que são signos) como no outro (signos que
só seria ameaçada no século 13 com Tomás de existem para significar algo, denotar), o termo signo é

linguagem, mas um
Aquino, que tentará harmonizar, não raras vezes empregado “(...) para significar alguma coisa além de
de maneira infeliz, o pensamento platônico e o si mesmo”. Ora, a música, em um caminho inverso
aristotélico. Desse modo, sendo o mais importante a esta tese, não significa nada além de si mesma,
pensador do cristianismo ao longo de sete séculos,
a defesa de Agostinho de que, na música, a oração
deve sobressair mais do que a melodia contribuiu,
fenômeno aquém pois ela é um significante (som, nota musical) sem
significado. Logo, ela não seria um signo? E não sendo
um signo, a música não seria uma linguagem, mas
certamente, para que um século depois da sua
morte, em 430, o papa Gregório Magno oficializasse
determinados cantos da tradição judaica como o
da linguagem? um fenômeno além ou aquém da linguagem? Como
lhe dar um significado? A resposta dada por Agosti-
nho passava por dar ao significante um significado
gênero musical a ser adotado e cantado nas cele- Das sete disciplinas que, na Idade Média, com- e, por extensão, transformá-lo em signo. No caso,
brações da Igreja. Estes cantos, denominados de punham as artes liberais a música ocupava, na hie- submetendo a música à palavra (o Verbo). Assim, a
cantos gregorianos, se caracterizam por ser uma rarquia, o quinto lugar. Observe-se que a arte era, música deixaria de seduzir pelos seus aspectos ex-
música de uma só melodia (monódica), de con- na Idade Média, uma forma de conhecimento que ternos (melodia, ritmo e harmonia) e sedimentaria a
ceito modal, de ritmo livre e não medido. Baseado se aprendia por meios de regras. Assim, arte não sua alma na palavra que louva a Deus. Ao submeter
na acentuação e nas divisões do fraseado, o canto era um conceito restrito à “obra artística”, como o canto aos salmos e versículos, a música excluiria
gregoriano tem um vocal monofônico que pode a entendemos hoje, mas também uma habilidade da sua alma (o referente) as “fábulas mentirosas”,
ou não ser acompanhado pela repetição de uma ou conhecimento técnico adquiridos pelo estudo “falsas”, “torpes” e “indignas”.
voz principal com o organum (a chamada segunda ou pela prática. A música, no caso, como uma arte Se durante séculos a tese agostiniana foi vito-
voz), que segue o cantochão ou canto plano. Sen- reduzida a regras, era constituída pelas artes do canto riosa, a polifonia, que começou a ser praticada por
do assim, esta segunda voz, também chamada de e da poética. Porém, resta uma pergunta: por que volta do século 10, terminou por submeter cada
voz acompanhante, harmoniza a melodia tanto só a música integrava as artes liberais? Tenho duas vez mais a palavra à melodia e, por extensão, foi
no seu início quanto no seu término. Ao longo do hipóteses. Primeira: a música, por sua estrutura minando o canto gregoriano como a forma cristã
seu desenvolvimento, as notas vão pouco a pouco precisa, era, e é, frequentemente comparada com a por excelência. No entanto, a ideia de que, em uma
se separando até atingirem intervalos de quarta, matemática (matéria da aritmética, da geometria e composição, a palavra é mais importante do que a
quinta e oitava paralelas. A partir daí, o canto se- da astronomia). Segunda: a música é o único gênero música tem reflexos até os dias que correm. Afinal,
gue lado a lado na mesma direção até as vozes se artístico que prescinde de um referente. Ou seja, a mutatis mutandis, o rapper não é uma música que
aproximarem no final do cantochão e chegarem música refere-se a si própria. Como estudioso dos calça o seu referente em palavras em detrimento
ao término da música juntas. signos, Agostinho buscava conhecer as coisas (de da própria melodia em si?

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PERNAMBUCO, MAIO 2012

RESENHA

Um século de Nascido e criado em Belo Horizonte, o jornalista


e escritor Humberto Werneck é o que ele mesmo
chama de “mineiro não praticante”, afinal, não

mineiros “bem
mora em Minas Gerais há mais de 40 anos. Des-
de a década de 1970, adotou São Paulo como seu
lar, depois de perceber que as oportunidades de
trabalho em sua cidade não eram as melhores.
Na capital paulista ele se estabeleceu como um

praticantes”
dos mais talentosos jornalistas de sua geração,
tendo trabalhado em algumas das maiores reda-
ções do país, como IstoÉ, Veja e Playboy, além de ter
publicado livros elogiadíssimos como O desatino
da rapaziada, O santo sujo – A vida de Jayme Ovalle, O
Humberto Werneck pensa espalhador de passarinhos, O Pai dos burros, Esse inferno
vai acabar, entre outros. Esses mais de quarenta

literatura brasileira a anos morando em outro estado não impediram


que o autor mantivesse algumas “características

partir de Minas Gerais


mineiras”, como um senso de humor particular,
adquirido não apenas durante os anos em que viveu
em Belo Horizonte, também ao longo das décadas
de convivência com alguns dos maiores escritores
Rafael Rodrigues mineiros do século passado, como Murilo Rubião,
Otto Lara Resende e Fernando Sabino.
Observador e narrador como poucos, Humberto
Werneck se valeu de pesquisas e de suas próprias
experiências para escrever O desatino da rapaziada,
um delicioso passeio pela história literária de Minas
Gerais entre as décadas de 1920 e 1970. Publicado
originalmente em 1992 pela editora Companhia
das Letras, no próximo mês o livro ganhará uma
providencial e oportuna edição comemorando os
20 anos de seu lançamento. Providencial e opor-
tuna porque ela vem muito bem a calhar num
ano em que começaram a ser reeditadas, também
pela Companhia das Letras, as obras de dois dos
maiores escritores mineiros: Pedro Nava e Carlos
Drummond de Andrade.
Ao longo de 2012 ganharão novas edições, pela
mesma editora, as obras dos também mineiros
Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino. Isso
sem contar com o prosseguimento da reedição
dos livros de Otto Lara Resende, iniciada no fim
de 2011 com a publicação de O Rio é tão longe – Cartas
a Fernando Sabino e da edição revista e ampliada de
Bom dia para nascer, projeto coordenado, a propósito,
pelo próprio Humberto Werneck.
“A história que aqui se vai contar”, diz Werne-
ck no início de O desatino da rapaziada, “começa no
ano de 1921, no instante em que a mais famosa de
suas personagens, um adolescente magrinho, de
óculos, entra numa redação de jornal, na rua da da capital, 33 anos antes”. Se forem contabilizadas
Bahia, em Belo Horizonte. E termina, meio século as revistas e jornais criados em outras cidades do
depois, com alguns rapazes abandonando outra estado, os números são ainda maiores.
redação, não longe dali, na avenida Augusto de Uma das publicações mais importantes desse
Lima”. “Entre esses dois momentos”, prossegue período foi criada em 1927 e teve apenas seis nú-
o autor, “o fio de nossa história vai e volta, ser- meros. Chamava-se Verde, tinha um viés moder-
penteia, percorre outros pontos do mapa de Minas nista e, entre seus editores, estava o jovem Rosário
Gerais — embora quase toda ela se passe no centro Fusco, então com 17 anos, mineiro de Cataquases.
de Belo Horizonte”. Um dos casos que Werneck conta sobre Fusco, a
O “adolescente magrinho” a quem Humberto quem define como “audacioso e petulante, além
Werneck se refere não é outro se não Carlos Drum- de muito talentoso”, é o do bilhete que ele enviara
mond de Andrade, que naquela época contava 18 a ninguém menos que Mário de Andrade, pedindo
anos e fora entregar, na redação do Diário de Minas, que este enviasse “uma bosta qualquer” para ser
sua primeira colaboração para o jornal. publicada na revista.
Drummond foi até o Diário de Minas porque recebia Outro fato marcante sobre Verde é que ela con-
muito pouco do jornal que publicava seus textos seguiu não apenas ter sua relevância reconhecida
até então, e no qual havia estreado na “grande fora dos limites de Cataguases, mas contou com a
imprensa” mineira, o Jornal de Minas. Originalmente colaboração de autores de diversos lugares do Bra-
oposicionista — ao ser criado, no início do ano de sil, como o já citado Mário de Andrade — em poema
1899 —, o Diário seria, em novembro do mesmo ano, redigido a quatro mãos com Oswald de Andrade —,
vendido ao PRM (Partido Republicano Mineiro), Sérgio Milliet, Marques Rebelo, Murilo Mendes e
“do qual passou a ser órgão oficial”. “Como o PRM até mesmo Carlos Drummond de Andrade.
se eternizava no poder, o jornal se tornou, também, Mas talvez a publicação mais importante criada
um órgão oficioso do Palácio da Liberdade — que, entre 1920 e 1970 em Minas Gerais seja o Suplemento
discretamente, lhe estendia algum dinheiro”. Literário de Minas Gerais, fundado em 1966 e idealizado
É a partir deste pequeno acontecimento que por Murilo Rubião, mestre do fantástico brasileiro.
o jornalista traça não apenas um panorama dos Inicialmente semanal, o Suplemento continua de pé
destinos de várias gerações de literatos mineiros, ainda nos dias de hoje, porém em edições mensais.
mas de inúmeros jornais e revistas que surgiram Por lá passaram, seja em suas páginas ou em sua
— e, no caso da grande maioria, acabaram — no redação, nomes como Ildeu Brandão, Duílio Go-
estado entre os anos 1920 e 1970. mes e Wander Piroli, autores mineiros de grande
O trecho a seguir dá uma ideia da efemeridade talento que não têm o devido reconhecimento, e
dessas empreitadas: “Em seus primeiros 25 anos de o próprio Humberto Werneck.
vida, a cidade (o autor se refere a Belo Horizonte, Apesar de ter sua relevância diminuída durante
fundada em 1897) viu brotarem nada menos de 160 alguns anos, como destaca Werneck em um dos
publicações, sem contar aquelas, numerosas, que capítulos do livro, o Suplemento é certamente uma
nasceram e se extinguiram sem deixar traço nos ar- das maiores referências literárias do país. Além
quivos e bibliotecas. Em 1930, passava de duzentos de ter revelado diversos talentos — e não apenas
o número de jornais surgidos desde a inauguração mineiros, diga-se —, o Suplemento não se limita a

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PERNAMBUCO, MAIO 2012

KARINA FREITAS

publicar contos, trechos de romances e poesias,


mas também reflexões, na forma de artigos e crí-
ticas, sobre a literatura brasileira. Atualmente o
Conta Werneck: “Identificado, no trem de volta
para Belo Horizonte, como o autor do texto, Rubem
por pouco não foi obrigado a engolir, literalmente,
O desatino
Suplemento é dirigido por Jaime Prado Gouvêa, autor
do belíssimo romance O altar das montanhas de Minas,
entre outros livros, que já havia trabalhado no
o que havia escrito. Correu o risco, também, de ser
atirado pela janela. Salvou-o Gustavo Capanema,
secretário do Interior, que providencialmente em-
da rapaziada
veículo em outras oportunidades. barcou em Sabará”.
As gerações de autores das Minas Gerais influen- comemora 20
MINAS ESTÁ EM TODO LUGAR
anos e ganha nova
ciaram e continuam influenciando muita gente. Tanto
O personagem mais famoso de O desatino da rapaziada pelo fato de algumas obras publicadas naquelas dé-
está presente em todas as décadas percorridas cadas terem se tornado clássicas — O encontro marcado,

edição, em junho,
pela obra. Carlos Drummond de Andrade é uma de Fernando Sabino, e O amanuense Belmiro, de Cyro dos
referência não apenas para as gerações que o co- Anjos, para ficar em apenas dois exemplos — quanto
nheceram quando era um dos maiores poetas do pelo fato de alguns jornalistas e escritores retratados
país, mas até mesmo para a sua própria geração,
que já o tinha em alta conta.
O mesmo acontece se a relação é feita com os
no livro — e também o seu autor — ainda estarem na
ativa e servirem de referência para as novas gerações.
Essa influência pode ser indireta, com jovens — ou
pela Companhia
autores mineiros retratados por Werneck e os mo-
mentos históricos pelos quais eles passam: utili-
zando uma expressão informal, pode-se dizer que
não tão jovens — escritores e jornalistas de diversos
cantos do Brasil tendo alguns mineiros do passado
e do presente como “mestres”, quanto direta, e um
das Letras
os mineiros “estavam em todas”. Até mesmo nas dos maiores exemplos disso reside no auxílio que Além dos fatos históricos importantes, Humberto
intrincadas relações entre imprensa e política, que Fernando Sabino deu à escritora Clarice Lispector. Werneck coloca à baila casos hilariantes que pare-
geraram uma série de episódios, dos quais um dos A história não consta em O desatino da rapaziada, mas cem pequenas cenas de pura ficção, como quan-
mais impressionantes envolve o cronista Rubem ilustra bem essa influência: às voltas com a finaliza- do cita o árbitro de futebol Alcebíades Magalhães
Braga — que, apesar de natural do Espírito Santo e, ção de um novo romance, Clarice envia o original a Dias, posteriormente convidado a escrever sobre
posteriormente, ter adotado o Rio de Janeiro como Sabino, que o devolve repleto de sugestões. Apesar o assunto que lhe cabia na Folha de Minas, nos anos
lar, foi mineiro durante algum tempo. de mais velha que Fernando, Clarice aceita boa parte 1960. Alcebíades era “conhecido como Cidinho
O ocorrido se deu em 1933, quando Braga foi a dos conselhos, inclusive um que afeta o título da Bola Nossa desde o dia em que, no calor de um
Ouro Preto “cobrir uma visita do ministro da Ma- obra.Em vez de A veia no pulso, Clarice escolhe um clássico, atuando como bandeirinha, pôs à mos-
rinha, almirante Protógenes Guimarães” à cidade. dos títulos sugeridos por Sabino: A maçã no escuro. tra sua paixão pelo Clube Atlético Mineiro. ‘Bola
Por ser desafeto de um dos patrões do cronista, A essa altura, não apenas os quatro mineiros do nossa!’, deixou escapar Cidinho, em seguida a um
um assessor da comitiva do ministro, Augusto de apocalipse já haviam abandonado Belo Horizonte. chute que saíra pela lateral do campo”.
Lima Júnior, tentou de tudo para sabotar a cober- Assim como eles, vários outros autores das Minas Essa mistura de História, histórias, casos e “cau-
tura. Porém, de nada adiantou: Rubem Braga “não Gerais deixaram a terra natal e se espalharam em sos” (ou seja: a ficção invadindo a realidade sem
apenas furou o cerco armado pelo assessor como terras cariocas ou paulistas. Alguns voltaram para pedir licença), aliada à prosa exemplar de Hum-
arrancou do ministro uma declaração desastrada”, de lá não mais sair, como Luiz Vilela, Jaime Prado berto Werneck, faz de O desatino da rapaziada uma
e, além disso, “recheou uma reportagem com Gouvêa e Roberto Drummond. Mas Sabino, Otto leitura leve, divertida, além de obra fundamental
detalhes constrangedores para alguns integrantes Lara e Carlos Drummond de Andrade, entre outros, para entender um pouco da cena literária mineira,
da comitiva”. só retornaram a Minas em visitas de ocasião. e mesmo brasileira, de boa parte do século 20.

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PERNAMBUCO, MAIO 2012

CRÔNICA
Siba
KARINA FREITAS SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO

Para seguir avante


Adiei tanto começar um diário do meu experimentos feitos dentro desses limites mas com bastante exagero, ainda bem.
álbum Avante que ele nunca foi feito... estéticos delimitados. Na relação entre a letra e suas metamor-
Dito isso, algum ponto de partida? Também vem do universo da cantoria foses musicais, uma aplicação prática do
Eu, que repetidamente apontei a poesia uma referência fundamental para o lado que pude aprender na convivência com
como ponto de partida e linha de chegada, musical do projeto. Tomando como pon- o poeta Zé Galdino de Ferreiros, que se
matéria-prima e força motriz de meu pro- to de partida estilístico as “canções” dos apropria a cada momento da música que
cesso criativo, sinto grandes dificuldades cantadores(subgênero dentro da cantoria melhor se preste ao contexto, da cantoria
em me referir às letras de Avante sem levar de viola, não confundir com o sentido para a ciranda, depois para o maracatu,
em consideração a música que lhe serve comum que se dá a esse termo na música sempre a serviço de seus versos...como
de veículo, além da relação entre o som, o popular), fui encontrando ou forjando não aproveitar a lição?
texto e os motivos pessoais que de alguma conexões com matéria musical diversa,
forma motivaram e justificam a conexão que de alguma forma esteve presente ao Canoa furada: Quase-ex-mas-ainda-sen-
das partes em um. longo de minha formação como músico. do-frevo autobiográfico.Rir de si como
Está tudo tão ligado: os fatos da vida Fui construindo e atravessando a ponte estratégia de sobrevivência. Punk rock
íntima e profissional me levaram aos imaginária que em mim liga as canções com notas de rumba congolesa. Psicodelia
questionamentos e me forçaram à busca dos cantadores com o brega do Recife, em algum ponto da degustação.
de respostas, que me foram dadas em que por um caminho mais torto também
muitos momentos mais pela música do conecta-se com o rock por ser filho bas- Mute: Hendrix e Etiópia. Silêncio, a voz
que pelas palavras e seu jogo. Foi a des- tardo da Jovem Guarda. Também a viola, que se foi ...
construção da autoimagem que me forcei que me levou de volta à guitarra, que tive
a executar ao preço de um longo bloqueio que reaprender sob intensa influência de Um verso preso: Uma estrofe antecede a voz
criativo que só se desfez lentamente em música pop africana e ... era pra ser um que ensaia o retorno. Na forma, uma dé-
palavras quando a música já parecia me texto sobre a poesia, então... cima tradicional e mais nada. Viola de
mostrar minimamente que caminho se- cantoria, elétrica. Baião.
guir... O caminho da construção de cada Preparando o salto: Se você olhar e não se ver,
“canção” acumula relações múltiplas, quebre o espelho. Juntando os pedaços, Avante: A retomada, o reencontro com a
embora eu admita ao mesmo tempo não a liberdade de se recompor como quiser. força propulsora,o empurrão e o movi-
ter tanta clareza sobre o processo que me Canção devedora de Voltando à minha terra, mento.Sextilha, musicalmente devedora
possibilite oferecer um mergulho mais de Severino Feitosa, na irregularidade rít- de um desafio entre Ivanildo Vila Nova e
cristalino nisso tudo. mica do compasso subjugado à incons- Manoel Chudu em 1977, gravado em fita
Nas letras, Avante é como um disco de tância na métrica do verso. cassete que escutei até a exaustão anos
cantador de viola, cirandeiro, mestre de a fio. Rock que queria ser baque solto.
maracatu de baque solto, onde tudo o que Brisa: A descoberta da relação íntima e Kinshasa ao longe.
é cantado está sujeito a um conjunto de secreta que a verdade e a contradição
regras que determinam de que forma se mantêm entre si. Ciranda em quadras e Qasida: Nada está onde estivera, o que se
tecem os versos, de que modo são abor- refrão, com uma primeira linha em quatro procura está em canto algum, mas existe...
dados rima, métrica e sentido ( que os sílabas bem característica do estilo. Um Título levianamente apropriado de um
cantadores chamam de “oração”).Esse tanto de hard rock e um dos pontos altos estilo de poesia oral árabe pré-islâmica
conjunto de regras caracteriza uma es- da tuba de Lêo Gervázio no disco. que tem ou tinha como tema inicial a
tética poética particular, extremamente chegada do poeta a um acampamento
desenvolvida no Nordeste brasileiro, à Ariana: Mais uma “canção”, ao mesmo recém- abandonado. Martelo agalopado
qual me sinto filiado a ponto de me consi- tempo um martelo com refrão estendido, em ritmo ternário emprestado de musica
derar não apenas um “compositor”, como bem à maneira dos cocos mais extensos elétrica Tuareg.
se definiria um autor de música popular, de Zé de Teté, cantador de Limoeiro.
SOBRE O TEXTO mas também um “poeta”, como qualquer Bravura e brilho: Descrição, com pouca fan-
artista que se exercite num dos estilos Cantando ciranda na beira do mar: Galope à tasia, da primeira infância de meu filho,
A nosso convite, de poesia oral citados no começo desse beira mar da cantoria de viola, travestido com andamento do texto construído com
Siba aceitou fazer um parágrafo. Em Avante, os poemas que não de “ciranda-rock” e revelando os efeitos apropriações de recursos melódicos e rít-
passeio pela poesia e têm algum formato já usado tradicional- de alguma leitura de poesia épica. micos da música congolesa.
o imaginário do seu mente (sextilha, décima,martelo, beira-
elogiado álbum Avante. -mar) constituem exercícios de distensão, A bagaceira: Ex-frevo travestido de brega, Dito isso, algum ponto de chegada? O
colagem ou expansão destes modelos, abolerado de alta rotação. Auto-biográfico diário agora iniciado segue Avante.

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PERNAMBUCO, MAIO 2012

INÉDITOS Fernando Monteiro

Pelo telefone
– Alô (com indisfarçável má vontade)... Te disse pra – Pera aí. Vou dar outro número.
não telefonar. Nunca. – Pra ligar?
– Sei disso. Só que... – Anota, engraçadinho: 33-07-66-02.
– “Só que” nada, pô. Vou desligar. – DF?
– Ouve, primeiro. É sobre a loura. – Claro, né? Saigon é que não é.
– Pior ainda. Esse assunto é outro Vietnam, aqui den-
tro. (Curto intervalo)
– Vietnam que vai piorar. Nas próximas horas.
– Cara, cê tá onde? – Alô.
– Que pergunta é essa? Brentwood. Em frente da casa – Pronto. Vai, fala.
da vagabunda, onde montamos a... – O que foi aquilo?
– Não sei de nada. Não sei com quem tô falando, nem – Menor ideia. Isso aqui é vizinho do Oval, pô. Todo
conheço loura nenhuma. mundo grampeia todo mundo...
– Frescura. Ouve, que é melhor. Ela pirou. – Eu sei. Trabalhei aí quase a vida toda, lembra-se?
– Novidade nenhuma. Frank me disse. – Pois é. E a loura? Por que você acha que ela pirou
– O quê? mais ainda?
– Que ela pirou. Aliás, sempre foi pirada... – Hein? A outra linha tava melhor.
– Aquele cantorzinho sabe de merda nenhuma. – Esta é mais segura.
– Você não diz que ela “pirou”? Então, ele sabe. – Fala mais alto.
– Pirou m-e-s-m-o, eu quis dizer. Não é só uma frase. – Uma ova. Tenta escutar mais, tira a cera do...
– Que fase? – Não tô escutando quase nada, agora.
– Frase. Não é só conversa fiada, isso dela pirar. Tô – Merda. Não posso GRITAR.
falando de loucura mesmo... Ela tá lá na casa, deitada, – Agora tô ouvindo.
sem tomar banho... – A loura. Por que ela parou?
– Grande novidade. – Parou de quê?
– Pera aí. E menstruada sem tampão... – Você num disse que ela pirou? Ela parou de ser
– Pô. razoável. Com o Jack.
– Isso num é nada. Espera pra ouvir o resto. – É pior do que pensam. A gente gravou ela dizendo
– Devia tá dopadinha, quetinha, isso sim. A gente paga que vai falar. Tudo.
a porra de um médico... – Tudo o quê?
– A mulher ficou fora de controle, Bob. Agora, ela ficou. – Tudo.
– Como assim? Conheço a doida bem demais. – ...
– Conhece nada... – Alô?
– Sobre o quê?
(Silêncio, logo depois que surgem uns ruídos de telefonia) – Sobre a ligação com vocês.
– Pera aí... Que ligação?
– Que é isso? Tá escutando?... – Dela. Contigo e com teu irmão.
– Sei lá. Te disse pra não ligar. – Com o Presidente?
– Desligo? – É. Com o Procurador e com o Chefão.

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KARINA FREITAS

– Não tem “chefão” aqui. – Mas assim mesmo ela não quer mais merreca de – Manda não. Tu tem razão. Agora, tem é que parar
– Tem. grana, santo deus. Entende isso, cara. Nem tudo é essa desgraçada.
– Você tá falando do Presidente dos Estados Unidos, dinheiro. – Bom, isso aí já é falar como homem. Nembutal?
idiota. – Ô “São Franciscuzinho”, desembucha de uma vez. (Silêncio, por um momento)
– Teu irmão sempre armou. É doente pela coisa. O que é que a porra da mulher tá querendo? – Bob? Alô?...
– Cala a boca. – O que ela quer? Ela quer ferrar. – Tô aqui.
– Vi Jack de cueiro. Você nem era nascido ainda. Vão – Alô? – Nembutal?
pra merda, os dois. – FERRAR. Ela quer isso! Chamar todo mundo, dizer: – É. Nembutal. Mas, SL. Serviço limpo.
– ... “sabe quem me come? Eles, os dois...” – Autópsia, tudo garantido?
– Alô. – Isso é loucura. Fica calmo. – Cem por cento. Altamente profissonal, nem preciso
– Escuta. Tás falando o que não dev... – Foda-se. Tô calmíssimo. E vendo ela aqui, na minha dizer.
– Entende, Procurador, vou soletrar: num-dá-mais- frente, pelo monitor. Tá possuída, a doida... – Sim, mas olha que é a MM, hein? Num é uma qual-
-tempo. Só isso. – Desliga... quer, como aquelas que...
– Pra quê? – Desliga o quê? Meu monitor? – Escuta, eu vou desligar. Tá ficando perigoso. E Jack
– Cê num tava querendo “conversar” com ela de novo? – O telefone! VOCÊ tá gritando, cacete. chegou lá no Salão. Acendeu a luzinha aqui.
Não dá mais. – É ela que vai gritar. Pra todo mundo ouvir. Jornal, – E o irmãozinho vai falar claro com ele?
– Claro que dá. Nem que tenha que bater na suja. rádio, TV, o escambau... – Vou. Mas ele mesmo já tinha pensado em se livrar
– Já falei: ela pirou. MM pirou. Diz até que abortou. – ... agora, bem antes da campanha.
– Como é?! – Vai gritar que quer casar com o Jack Grandão. – Ok. E eu fico esperando autorizar “despirar” a loura
– Tô falando: ela pirou. – ... forever?
– Para de falar “ela pirou”. Que negócio é esse de – “Happy birthday Mr. President”... (canta em falsete, – Fica. Mas isso não vai ser pelo telefone.
aborto? irônico) Um click, desligando.
– Ela está disposta a jogar merda toda no ventilador, – ...
Robert. Sério. E basta ela fazer uns telefonemas, con- – Parece até que eu posso ver o casalzinho, e Bob, o NB:
vocar os putos da imprensa... mister Procurador... de padrinho. A atriz Marilyn Monroe, de 36 anos, foi encontrada morta em
– Pô. A merda cobre. – CALA A B-O-C-A. menos de 24 horas depois dessa conversa por mim transcrita
– Então. E enche o Oval (e o país inteiro): de sujeira, – Eu to avisando: essa mulher é pior que um ataque na manhã de 10 de agosto de 1962.
de esperma, de droga, de Sam Giancana... de míssel russo. Os jornais informaram mais ou menos assim: “MM faleceu
– Esse tá ferrado, o sacana. – Deixa eu falar com o Jack. enquanto dormia em sua casa de Brentwood, na Califórnia, apa-
– Tá nada. O Sam tá é muito puto com vocês dois... – Agora? rentemente por efeito de um dose letal de barbitúricos ingeridos pela
– Me respeita, cara. E respeita o Presidente. – Agora. Ele tá vindo pro Oval. E já tá encarando... atriz com a intenção de acabar com a própria vida...”
– Cacete que eu respeito. Dois fudedores comendo – O quê? E hoje está até na geleia geral da Wikipédia: “Ninguém sabe
todo mundo... – A solução. de fato o que aconteceu naquela noite. Ouviu-se o barulho de um
– Cala essa boca. – Final? helicóptero. Uma ambulância foi vista esperando fora da casa
– VOCÊ me escuta, garoto. Os dois armam, e sobra – Hum-hum. dela antes que a empregada desse o alarme. As gravações de seus
pra quem? Pra mim. Pro “tio” velho. – Aquela? telefonemas e outras evidências desapareceram. O relatório da
– O que é que ela quer? Dinheiro? – Você próprio acaba de dizer que ela agora ficou doida autópsia foi perdido. Toda a documentação do FBI sobre sua morte
– Ela tem. pra ferrar todo mundo. foi suprimida e os amigos de Marilyn que tentaram investigar o
– Uma merreca. – Tá gravado aqui. Posso mandar a fita. que aconteceu receberam ameaças de morte”.

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RESENHAS
KARINA FREITAS

Cuidado com seu Há pouco uma amiga


chegou afobada contando
da consulta que fez ao pai
pacote, não são os itens
mais preciosos dessa
instituição que prezamos
subvertendo o receituário
do aconselhamento
sentimental ao questionar
vítimas e criminosos de
uma equação maluca de
falta de cuidado e pouca

coração: o Destino
de santo plantonista num e tememos com igual o que ficou combinado comunicação eficiente.
mercado público do centro. intensidade chamada como certo para homens Talvez saibamos disso
Por R$ 20 e 20 minutos, Destino (com maiúscula). e mulheres, seja lá de desde o princípio dos

vai lhe dar susto


o oráculo de aluguel lhe Destino é final feliz por que orientação sexual tempos. Mas é preciso
prescreveu a receita ideal um triz e frio na barriga. eles forem. Se o Destino alguém que nos puxe pela
para apaziguar as dores Ninguém merece tirar é imprevisível, que assim memória vez por outra.
do seu crônico tédio: em férias para fazer raio-x você também se comporte, Apesar da cronista
Livro reúne as principais menos de um mês um
homem apareceria na sua
ou exame de sangue.
Vivemos na expectativa de
parece ser sua maior lição.
No final do mês, Flávia
jamais condenar seus
leitores à sala bege do
crônicas da coluna Sexo @ vida de forma repentina. um encontro sobrenatural lança o livro Sexo @ Cidade, Destino, como faria um
O envolvimento seria e, por isso, muitas vezes catalogando os melhores pai de santo de mercado
Cidade de Flávia de Gusmão efêmero, mas duraria o tomamos todo o entorno textos da sua coluna. público, ela prefere
suficiente para colocar da nossa existência por Quando lidas de uma lembrar que, melhor
Schneider Carpeggiani de cabeça para baixo sua uma grande sala de só vez, essas crônicas que o tal do Destino,
vida amorosa por um bom espera bege. Em nome do colocam uma lupa de existe uma instituição
tempo. Apesar de assustada Destino, esquecemos que aumento no papel sui chamada Tempo, capaz
com a possibilidade o “nada” pode ser alguma generis que Flávia ocupa em de apaziguar as dores e
da montanha-russa coisa e vamos a oráculos meio à história literária do renovar o espírito, talvez
emocional, ela não via a fajutos, lemos horóscopos, Recife: os cronistas locais, não com o salto brusco
hora da profecia se realizar. Balzac, passamos horas no em geral, se dispuseram de um novo amor, que
Mas o Nostradamus mimimi com os amigos... mais a pensar a cidade irá pular na sua cara
recifense lhe fez uma É preciso o mínimo de e suas contradições do como um ladrão numa
pergunta que não caberia conhecimento de causa que a enfrentar o difícil rua escura. O Tempo irá
naquele momento de para quando o imprevisto das relações emocionais agir “devagarzinho, nos
tamanha excitação: “Não chegar ou se atrasar. debaixo desse sol que nos cheiros estranhos, nos
quer saber de outras áreas É diante de tamanhas (des)protege. Flávia não homens estranhos, com
da vida, nada de família, expectativas que é Casa-grande e senzala; é nomes difíceis de gravar,
nada de saúde?”. “E eu compreendemos o Apartamento e Barzinho. a gente vai se achando de
lá queria saber de disso. sucesso da coluna Sexo Pela leitura dos textos novo. Ah, se vai”.
Quero saber de amor”, me @ Cidade que a jornalista de Flávia podemos
contou, indignada. Sua Flávia de Gusmão publica perceber ainda o quanto CRÔNICAS
sinceridade não poderia ser desde 2006 no Jornal do os problemas amorosos
mais certeira. Commercio. Aos risos, ou humanos mudaram pouco Sexo @ Cidade
Família + saúde, apesar melhor, às gargalhadas, desde a invenção do Autora - Flávia de Gusmão
de fazerem parte do a cronista vem fogo. Somos, todos nós, Preço - Não definido
REPRODUÇÃO

POESIA
Mariza Recife entra no circuito internacional de grandes
Pontes festivais poéticos com evento no próximo mês
O Recife dá o primeiro passo na Nomes importantes já estão
direção do circuito internacional confirmados, como Aurelia
dos grandes festivais poéticos Lassaque, da França, que
— como acontece em Havana, escreve em occitano, a língua
Medellin e Granada —, dos trovadores medievais;
promovendo, de 7 a 10 de junho, Ricardo Domeneck (foto); Ron
o I Festival Internacional de Whitehead, poeta performático
Poesia do Recife, com recitais, da storm generation, que sucedeu

NOTAS performances e bate-papo


na Torre Malakoff, Biblioteca
a beat generation; Ernesto de Melo
e Castro, português radicado

DE RODAPÉ Pública do Parque 13 de Maio,


mercados da Madalena e
em São Paulo, que faz poesia
experimental; o poeta popular
Boa Vista, entre outros locais. Oliveira de Panelas e outros.

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REPRODUÇÃO DIVULGAÇÃO

PRATELEIRA
RETRATOS ANTIGOS
(ESBOÇOS A SEREM AMPLIADOS)
Autobiografia que detalha a vida da família
Lispector. Descreve pessoas e costumes, rituais
religiosos e pratos típicos servidos nas datas
especiais, em tempos de fartura na Ucrânia, a fuga,
devido à perseguição aos judeus, e a adaptação ao
Brasil, onde passaram dias de miséria. O talento
de Elisa Lispector, irmã mais velha de Clarice, é
reafirmado nesse livro de memórias, que só foi
descoberto após sua morte, em 1989.

Autora::Elisa Lispector
Editora: UFMG
Páginas: 144
Preço: R$ 85,00

MÍMICA NO AQUÁRIO PREDILETO


Misturando memória e ficção, lembrança e

Uma “mártir” revelada Ocupe-se nas ruas fantasia, autobiografia e literatura, o ex-aluno
de ciências biológicas na Universidade Federal
São Carlos, escritor Lincoln Amaral, descreve
O suicídio de Sylvia Plath figura de Sylvia, através O movimento Occupy,que a Boitempo a vida no campus, no período de 1981 a 1985,
colocou em primeiro das entrevistas, leitura #ocupeEstelita, ocorrido Editorial acaba de lançar. quando os estudantes estavam tomados pela
plano a imagem de uma de diários e biografias no Recife, mês passado, Há escritos de nomes efervescência do ideal do combate à ditadura
mártir para o feminismo sensacionalistas. Ano causou uma série de comoTarik Ali, David militar, e para isso empregavam como armas
e escanteou a força de passado a Companhia polêmicas nas redes Harvey e Slavoj Zizek, que a participação política e a expressão artística.
uma das obras poéticas das Letras trouxe de sociais. Houve quem sempre agudo e certeiro
mais impactantes do volta às livrarias O reclamasse até do nos pontua: “o tabu foi
século passado. Sylvia jornalista e o assassino,obra- direito de pessoas de rompido, não vivemos no
será sempre lembrada prima da autora que classe média ocuparem melhor mundo possível,
como a vítima de um descortina a tensa (e as ruas para reclamar, temos a permissão, a
marido desatento e infiel, sempre ambígua) relação como se a condição obrigação até, de pensar
o também poeta Ted entre um repórter e econômica de alguém em alternativas”. (S.C.)
Hughes,que igualmente sua fonte. (S.C.) fosse determinante Autor: Lincoln Amaral
teve sua importância para a legitimação Editora: UFSCar
como escritor ofuscada da sua cidadania. O Páginas: 367
pelo impacto da #ocupeEstelita foi uma Preço: R$ 31,20
tragédia. Que ficção versão tardia dos
pode concorrer com a recifenses para as MRS. DALLOWAY
vida como ela é (ou não ocupações ocorridas Nova tradução de um dos livros mais
deveria ser)? A jornalista em locais públicos em importantes de Virgínia Woolf, escrito em 1925,
norte-americana Janet boa parte do mundo que rompe com as convenções do romance
Malcolm (foto) buscou durante 2011. Foram tradicional e estabelece as bases de uma nova
investigar o estardalhaço ocupadas lugares estética ficcional, que posteriormente seria
que cercou a morte simbólicos como o definida como modernismo literário. O tradutor
da poeta em A mulher coração econômico introduz notas sobre a vida e obra da autora e
calada, relançado agora do mundo, a Wall um índice onomástico sobre ruas, monumentos
no Brasil em edição de Street. É claro que e personalidades que aparecem no romance.
bolso. Como é um traço tamanha mobilização ENSAIO
da sua obra, Janet não se REPORTAGEM popular não escapou
restringe a um só gênero do olhar agudo dos Occupy — Movimentos de protestos
no seu texto: mescla A mulher calada intelectuais. Uma que tomaram as ruas
psicanálise, reportagem Autora - Janet Malcolm seleção de textos sobre Autores - Vários
e arroubos literários Editora - Companhia das Letras essa movimentação, Editora - Boitempo e Carta Maior
para investigar nosso Preço - R$ 23,00 escritos no calor da Preço - 10,00 Autora: Virginia Woolf
fascínio em relação à Páginas - 240 hora, é o que traz Páginas - 88 Editora: Autêntica
Páginas: 272
Preço: R$ 95,00

COMO SHAKESPEARE SE TORNOU SHAKESPEARE


Numa interpretação inovadora, Stephen
Greenblatt especula sobre os processos de
SEMINÁRIO CAPIBARIBE MULHERES criação de Shakespeare, preenchendo lacunas
da sua biografia. Ele estabelece vínculos entre
Encontro visa formação Um museu virtual Grupo Vozes Femininas cenas das peças teatrais e fatos reais, como
crítica do público-leitor para multiartistas fará recitais em Olinda o enforcamento de um médico judeu em
Londres e O mercador de Veneza; o catolicismo
O Núcleo de Educação e Qualquer obra que tenha o O grupo Vozes Femininas camuflado da família e o fantasma que
Linguagem da Universidade rio Capibaribe como tema, (formado por Cida Pedrosa, assombra Hamlet; ou entre a morte do filho do
de Pernambuco promove no seja em vídeos, fotografias, Mariane Bigio, Suzana Moraes dramaturgo e a cena do enterro de Cordélia.
campus de Nazaré da Mata, músicas, textos literários etc., é e Silvana Almeida), criado em
nos dias 22 e 23, um Seminário importante para a formação do 2009, que dá visibilidade à
aberto à população, com acervo do Museu Capibaribe, produção poética de mulheres,
oficinas, minicursos, mesas- que busca contribuir para tem agenda de recitais em
redondas e conferências. Os conscientizar as pessoas da Olinda, este mês. Nos dias
temas são leitura, formação importância da preservação do 19 e 26, será promovido o Autor: Stephen Greenblatt
crítica do leitor, biblioteca na rio através do registro de sua Cardápio Itinerante de Poesia, e no Editora: Companhia
escola e literatura infantojuvenil. beleza. Para compor o acervo dia 25 haverá o Sarau Artístico das Letras
A coordenação é do professor do museu é só postar no site Literário na Biblioteca Municipal Páginas: 456
Alexandre Furtado. www.museucapibaribe.com. de Olinda, no Carmo. Preço: R$ 59,00

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KARINA FREITAS
O PERNAMBUCO COMPLETA
5 ANOS E, PARA COMEMORAR,
ARRANCOU DE UM TIME DE
ESCRITORES AS VERDADES
SOBRE AS SUAS FICÇÕES

Bernardo Carvalho
Daniel Galera
Alberto Mussa
Michel Laub
Ana Maria Machado
Antonio Carlos Viana
Rubens Figueiredo
Santiago Nazarian
Eric Nepomuceno
Salim Miguel
Luís Henrique Pellanda
Carlos de Brito e Mello
Elvira Vigna
Leonardo Brasiliense
Carola Saavedra
Marcelino Freire
Ronaldo Wrobel
Salim Miguel
Micheliny Verunschk
Raimundo de Moraes
Ficcionais
Marcelo Ferroni
Andrea del Fuego
Ana Paula Maia
Julian Fúks
Sidney Rocha
Antonio Xerxenesky
Eliane Brum
Eucanaã Ferraz
Luiz Ruffato
Ronaldo Correia de Brito
Ricardo Lísias
Tatiana Salem Levy

O livro Ficcionais faz um


apanhado dos principais textos que
participaram da coluna Bastidores, do
PERNAMBUCO, na qual escritores e
tradutores descortinam o processo de
composição das suas obras

Ficcionais a partir de 22/05/2012 nas livrarias.

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