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a ruinologia

raul antelo

Cultura e Barbárie
Florianópolis, 2016
A ruinologia Raúl Antelo
© Cultura e Barbárie e Raúl Antelo, 2016
Texto apresentado no seminário: Raul Antelo – Ficção crítica, arquivos, arqueologia, realizado no Museu
de Arte do Rio em 2014.

revisão Fernando Scheibe

capa e projeto gráfico Marina Moros

imagens Hercules Seghers

A627a Antelo, Raul, [1950-]


A ruinologia / Raúl Antelo - Desterro [Florianópolis] : Cultura e Barbárie, 2016.
40p.

ISBN: 978-85-63003-48-5

1. Literatura - História e crítica. I. Título. II. Autor.


CDU: 869.0(81).09

Cultura e Barbárie Editora


conselho editorial Alexandre Nodari, Fernando Scheibe, Flávia Cera, Leonardo D’Ávila,
Marina Moros e Rodrigo Lopes de Barros
www.culturaebarbarie.org - editora@culturaebarbarie.org
www.armazem.org
Florianópolis/SC
Como falar? Lord Chandos, a personagem da céle-
bre Carta de Hugo von Hofmannsthal, teve a experiên-
cia de não poder falar por causa do excesso das coisas
mudas, na medida em que cada objeto é capaz, a qual-
quer momento, de assumir um caráter tão sublime e
comovente que as palavras parecem pobres demais para
exprimir o que quer que seja; e isso porque até mesmo
a imagem precisa de um objeto ausente, imagem que
pode ser preenchida até o limite, até o impossível, em
função desse jato silencioso de pathos de outro mundo
que repentinamente nela irrompe. Prefiro pensar que
esta reunião não celebra o que fiz, mas o que me recusei
a fazer, o caminho que deliberadamente não quis per-
correr de novo. Porém, mesmo assim, como agradecer?
Deveria antes de mais nada agradecer à contingência.
É o acaso que regula muitas das conexões aqui abri-
gadas. É o acaso que faz com que o colóquio coincida
com o aniversário de Drummond. Foi em um exemplar
da Antologia poética da Editora do autor, lido aos quin-
ze anos, em Buenos Aires, que tudo começou. Muitos
anos depois, o poeta signaria o volume longamente ma-

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nipulado, “A Raul Antelo: deixo neste velho livro meu
abraço cordial”. Abraço que deveria estender, meio a
contragosto, a Miguel Cané. Deste, o romance memo-
rialista Juvenilia, a ficção da hegemonia liberal, tão bem
analisada por Josefina Ludmer, foi o primeiro que li, aos
12 anos, com lápis e tesoura, decorando frases inteiras,
não por gosto mas por precisão. Porém, mais à vontade
do que com Cané, me sentiria, anos depois, com um
amigo de adolescência e íntimo colega dele em vários
destinos diplomáticos, como Caracas ou Bogotá: Mar-
tín García Mérou.
Com efeito, em 1900, Mérou, escritor extremamen-
te apreciado por Dom Pedro II, escrevia uma das mais
ambiciosas histórias literárias do país, El Brasil intelec-
tual, avantajadas 500 páginas onde, entre outras coisas,
apropriava-se da categoria de obnubilação forjada por
Araripe Jr. e dizia, por exemplo, que, além da obnubi-
lação,

La influencia de nuevas gentes, la facili-


dad del contacto con los pueblos del viejo
mundo, las corrientes inmigratorias, que se
difunden en todos los ámbitos del país, y
que luchan sin tregua por el sometimiento
de la naturaleza, son otras tantas causas que
en el Brasil concurren para que la acción del
medio se debilite, en detrimento de la ori-
ginalidad individual. Consecuencia de estos
hechos es el espíritu de imitación que estra-
ga la cultura intelectual de aquella nación,
como la de la república del Norte.1

1 E assim prossegue: “ ‘En gran parte, escribe un crítico à este res-


pecto, la literatura de la última no es sino una prolongación o conti-
nuación de la de Europa. Artistas nativos han perseguido su ilustra-
4
Garcia Mérou tomava como guia para esse diagnós-
tico a um discípulo de Brunnetière que, partindo da
premissa de que “o cosmopolitismo se tornou um dos
traços de todo espírito vigoroso no fim do século XIX”,
pautava-se pela máxima de um entre-lugar crítico, “per-
manecer si mesmo e, no entanto, unir-se aos outros”.
Apoiado então nas ideias de Joseph Texte, figura cuja
imagem paródica retornaria, com Paul Valéry, como
um Monstro, um Hipogrifo, uma Quimera,2 dizia en-
tão Garcia Mérou:

Como las especies animales – dice Joseph


Texte – las razas no son inmutables e impe-
netrables, sino por el contrario, como esas

ción en el exterior, buscando las fuentes, las reglas y las sanciones de


su arte en el viejo mundo. Sus temas frecuentemente son europeos,
el modo de tratarlos todavía más; y su más alta ambición, como la
de todos los colonos, ha sido la de recibir un fallo favorable, no de
la tierra de su nacimiento, sino de la de sus antepasados. Entre sus
primeros escritores de nota, Franklin fue un discípulo práctico de
Locke; Jefferson, de la revolución francesa. Más tarde los americanos
han seguido à los franceses en el traje, en el paseo, en la cocina y la
arquitectura, y à [sic] los ingleses y alemanes en el pensamiento:
Their bonnets are Gallican, but their books are Teutonic.’ También en
el Brasil, la inmensa mayoría de los libros, delatan una especie de
infiltración del espíritu de los maestros extranjeros. Los que aspiran
à poseer una literatura aborigen y un arte indígena, se sublevan con-
tra este sometimiento del espíritu y claman por ‘una independencia
moral’, como complemento de la independencia política. ¿Pueden
aspirar à ella nuestros vecinos y jactarse de poseer un ‘espíritu bra-
silero’, cuando no tienen todavía una nacionalidad formada y ho-
mogénea, y una verdadera etnografía moral?...” MÉROU, Martín
García. El Brasil intelectual. Impresiones y notas literarias. Buenos
Aires, Félix Lajouane, 1900, p.7
2 VALÉRY, Paul. “Monsieur Teste” in Œuvres II. Paris, Gallimard,
1960, p.14.

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especies mismas ellas se cruzan y se trans-
forman por medio de cruzamientos. Hace
ocho o diez siglos que se efectúa, de un
extremo de Europa a otro, un comercio y
un cambio de ideas, y que la Alemania vive
del pensamiento francés, la Inglaterra del
pensamiento alemán, la España del pensa-
miento italiano, y cada una de esas naciones
sucesivamente del pensamiento de todas
las otras. El estudio de un ser viviente se
compone, en gran parte, del estudio de las
relaciones que lo unen a los seres vecinos.
Del mismo modo, no hay literatura cuya
historia se encierre en los límites de su país
de origen.3

Desse modo, a questão central para o crítico Mérou,


assim como para seu contemporâneo Nabuco, não era
tanto a origem mas o começo e, em função desse argu-
mento pró-miscigenação, Mérou ponderava:

La biografía de Gregorio de Mattos [de Ara-


ripe Jr.] es el trabajo literario más comple-
to que haya sido escrito en Sud-América, à
propósito de un poeta de la vida colonial. Se
conoce que ese estudio ha sido hecho con
amor. Los detalles en que abunda arrojan
una luz vivísima sobre la vida de aquellos
tiempos y constituyen un cuadro histórico
lleno de novedad e interés. El análisis de las
deformaciones producidas en el carácter de
los pobladores europeos por los ardores y el
resplandor de la naturaleza tropical, llega à
una altura de verdad y de franqueza à que
raras veces alcanzan los escritores de nuestro

3 MÉROU, Martín García. El Brasil intelectual, p. 8-9.

6
continente. La riqueza del vocabulario de
Araripe Junior, el uso frecuente de términos
de slang y de criollismos brasileros, impri-
men à esas páginas un colorido local extra-
ordinario y hacen que su expresión se aguce
y traduzca con fidelidad los más variados
matices, los detalles más característicos. Su
teoría de la obnubilación, de que he hablado
à mis lectores al comienzo de esta obra, apa-
rece con todo su prestigio, y à través de ella
se ve el proceso de deslumbramiento que
como pródromo de su adaptación posterior
à aquel medio capitoso, sienten los prime-
ros aventureros europeos. La descripción
del erotismo enfermizo, de la sensualidad
mórbida en que caen los colonos enervados
y excitados sucesivamente por aquel medio
ardiente y afrodisíaco, posee una fuerza in-
discutible.4

Ora, lembro que boa parte desse erotismo doentio e


dessa sensualidade mórbida ou afrodisíaca me chegava,
na mesma época, 15-16 anos, nas aulas de dicção para
as quais o professor Bassets utilizava as aliterações de
“Violões que choram”, o soneto de Cruz e Souza:

Vozes veladas, veludosas vozes,


Volúpias dos violões, vozes veladas
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. 

4 El Brasil intelectual, p. 230-231.

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Mas, ao tentar reconstruir uma trajetória e respon-
der, até ou principalmente, para mim mesmo, por que
estamos aqui, devo dizer que, mais do que a origem,
busco a obnubilada cena da procura de um absoluto
contingente. E essa busca não está nunca atrás, senão
sempre na frente. De fato, houve, nesta última década,
muitos momentos que parecem retomar e reencarnar
outros tantos espectros do que foi para mim a cena ini-
cial de ruptura, a stasis ou guerra civil que me levou a
deixar a cidade natal e me instalar em São Paulo. Mas
essa aventura nada tem de individual: a guerra civil, sem
nunca coincidir nem com o espaço público nem com
o doméstico, constitui um entre-lugar indiferente e
equidistante entre o espaço impolítico do clã e o espaço
político da arena pública. Transgredindo esse limiar, o
doméstico se politiza e, inversamente, a polis, por assim
dizer, se economiza, reduzida a uma mera aplicação de
técnicas econômicas. A guerra civil seria assim o ambi-
valente entre-lugar de politização e despolitização dos
sujeitos, através do qual o próprio excede no público e
este último se introjeta como foro íntimo.
Isso posto, é óbvio que uma situação como essa
acarretou enormes consequências: as noções tradicionais
de cidadania, representação, arte ou política vão por água
abaixo e, nesse sentido, o filósofo Giorgio Agamben,
cujo trabalho há anos muito me inspira, colaborou
para esclarecer o problema teórico através do conceito
de arqueologia. Com efeito, já em um texto de 2004,

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“Arqueologia de uma arqueologia”5, Agamben nos dizia
que o objetivo da arqueologia filosófica é uma arché que,
mesmo sem constituir um princípio transcendental,
só pode adquirir uma consciência empírica de cunho
negativo como ruinologia (rovinologia). A observação
nos obriga a considerar que o nosso próprio objeto
de trabalho, o texto literário, não passa, portanto,
de um ato inscrito. Outro autor italiano, Maurizio
Ferraris, argumenta também, em Documentalidade:
por que é necessário deixar rastros6, que é ainda possível
traçar uma epistemologia pensada como retomada da
filosofia do espírito, porém, agora, cifrada, em chave
material, apenas como “ciência da letra”, uma instância
da letra, como diria Jean-Luc Nancy, e isso em função
da relevância concedida às inscrições, às signaturas, na
construção de realidades sociais. Não é fortuito que
a primeira vez em que Giorgio Agamben utiliza esse
termo, signatura, em Categorias italianas7, refira-se à
marginalia de Elsa Morante num exemplar da Ética de
Spinoza; e, em meu caso, para além da própria signatura
de Drummond na fábula das origens – que, como em

5 AGAMBEN, Giorgio. “Archeologia di un’archeologia” in ME-


LANDRI, Enzo - La linea e il circolo. Macerata, Quoblibet, 2004,
p. IX-XXV.
6 FERRARIS, Maurizio. Documentalità: perché è necessario lasciar
tracce. Bari, Laterza, 2009.
7 AGAMBEN, Giorgio. Categorie italiane. Venezia, Marsilio, 1996,
p.105. Não é de somenos importância destacar que essas signaturas
nem sempre são semânticas (opiniões articuladas ou fundamenta-
das) e, não raro, esboçam apenas gestos (“na forma de asteriscos,
linhas, pontos de interrogação e de exclamação alternados”).

10
Marthe Robert, é também origem da minha própria
fábula –, tendo trabalhado com as signaturas de Mário
de Andrade, Aníbal Machado ou Oliverio Girondo, o
paralelo faz sentido.
A ruinologia a que me aplico seria então uma teoria
dos objetos sociais que responde à regra característica
de que todo objeto simbólico é um ato inscrito, um
gesto que permanece enquanto inscrição. Ou seja, que
os objetos sociais são mera decorrência de atos sociais,
que pressupõem, ao menos, duas pessoas, mas, funda-
mentalmente, um registro, uma inscrição, um rastro.
Importante emenda ao esquema da formação e ao co-
nhecido tripé autor-obra-público. O rastro é a definição
de sua estrutura, porque, mesmo partindo de uma ori-
gem verificável, logo se separa dela e resta apenas como
rastro, na medida em que se separou do ato positivo
do rastreamento. E sabemos, como nos diz Derrida,
que onde há rastro começa um arquivo. Mas Agamben
esclarece, além do mais, que a nossa ruinologia não é
um simples anverso especular da teleologia. Antes, é um
terceiro analógico que abre uma alternativa bipolar aos
extremos da dialética e à sua resolução por via fenome-
nológica e racional8.

8 “Nesse ponto pode surgir a suspeita de que a arqueologia


seja o oposto especular da teleologia, idênticas porém no pos-
tular um estado feliz, isento de repressão e privado de con-
flitos: a primeira, antecipando-o pré-historicamente numa
mítica idade do ouro; a segunda, procrastinando-o milena-
risticamente para uma utópica idade além de toda história
[...]. De maneira tópica – ainda não explicativa e menos do
que nunca construtiva – basta observar como toda dialética,

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Nessa linha de análise, lembremos que, em Signa-
tura rerum, depois de dizer que a ideia de arqueologia
filosófica pertence a Kant, Agamben esclarece a muito
maior relevância que o conceito tem, no entanto, em
Nietzsche, e isso mostra uma deriva específica, quan-
to aos conceitos de signatura e arqueologia, no próprio
pensamento de Agamben, que passa de uma dimensão
ainda material e marginal (a escritura, as marcas em um
texto) para uma dimensão imaterial, porém, central
(uma imagem subliminal mas paradigmática, que nos
desvendaria uma combinatória de forças, não exata-
mente do arquipassado, mas do mais imediato presen-
te). A signatura deixa de ser assim um signo, um sinal
estanque, e passa a ser uma relação. A melhor prova é o

compreendida a partir do princípio de analogia, equivale a


estabelecer em geral um essencial ‘princípio de indetermina-
ção’: e precisamente um princípio capaz de prevenir qualquer
tentação de uma maneira ou de outra racionalizadora. Como
é óbvio, nosso modo de representar o ‘antes’ de uma cisão
é prescrito pela própria cisão – nesse caso, isso se expressa
na tendência a representar o aquém ou o além da dicotomia
cônscio/incônscio como um estado arcaico ou por vir, mas
sempre ‘feliz, isento de repressão e privado de conflitos’, uma
espécie de miscelânea naturalística de consciência e incons-
ciência, razão e irracionalidade. Para voltar à problemática
foucaultiana, trata-se de compreender não tanto os conteúdos
substanciais da oposição ‘segundo o jogo do significante e
do significado’ quanto o puro fato do produzir-se da cisão.
A exclusão que resulta dela não configura um terceiro ter-
mo homogêneo aos anteriores, que caberia agora individuar
por sua vez segundo uma lógica identitária; antes, o terceiro
termo analógico emerge subliminarmente na cisão como sua
transgressão bipolar, que abre uma via de saída entre os extre-
mos.” AGAMBEN, Giorgio. “Archeologia di un’archeologia”
in MELANDRI, Enzo. La linea e il circolo, p. XXIII.

12
famoso ensaio de Foucault, “Nietzsche, a genealogia, a
história” (1971). Nele Foucault joga as cartas em favor
da genealogia e contra a história, isto é, contra a busca
imperiosa de uma origem. Ignorava eu obviamente, em
1971, quando estudava um texto de Leo Spitzer, “Lin-
guística e história literária”, na tradução da Gredos de
Madri9, que um ano antes Foucault traduzira o mesmo
texto, contemporaneamente à redação do ensaio sobre
Nietzsche, porém, com um título de per se chocante,
“Art du langage et linguistique”10, eliminando de cara
qualquer referência à história, o que redefinia os tentos,
uma vez que o parti pris genealógico de Foucault torna-
va-se assim uma contundente resposta ao positivismo
filológico em que eu mesmo me educara. E talvez fosse
mais oportuno dizer que a genealogia, mais do que à
história, opunha-se, nessa perspectiva, ao desenvolvi-
mento meta-histórico, não só de valores ideais, mas de
teleologias indefinidas. A Ursprung, objeto da genealo-
gia, diferenciava-se, assim, taxativamente, da procedên-
cia e da origem.

9 SPITZER, Leo. Linguística e historia literaria. Trad. José


Pérez Riesgo. Madrid: Gredos, 1955.
10 SPITZER, Leo. “Art du langage et linguistique”. Trad.
Michel Foucault. Études de style. Paris, Gallimard, 1970.

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14
Essa arqueologia a que chamamos ruinologia é uma
prática desinteressada pela origem; porém, sequiosa da
emergência de um determinado fenômeno, para cuja
correta avaliação deve tornar a se confrontar com as
fontes e a tradição11. Como sabemos, essa questão da
origem também estava no centro das especulações de
Walter Benjamin, autor que, exceção feita dos Ensayos
escogidos traduzidos por Murena em 1967, comecei
a ler, mais sistematicamente, nos cursos de Antonio
Candido e Walnice Nogueira Galvão, em 1973. Neste
último, passei ainda (admito que sem muito aprovei-
tamento) por Mito e epopeia III (1973) de Georges Du-
mézil, em cuja introdução o autor também se definia
como historiador da ultra-história (ultra-histoire). Mas
seria no prefácio a Les Mots et les choses onde a arque-
ologia se apresentaria, mais decididamente, como um
a priori histórico, em que os saberes e os conhecimen-
tos se encontram em virtual condição de possibilidade,
fruto de bizarra parataxe. Não se tratava, portanto, de
empreender uma história das ideias, mas uma história

11 “No puede medirse con la tradición sin deconstruir los


paradigmas, las técnicas y las prácticas a través de las cuales
regula las formas de la transmisión, condiciona el acceso a las
fuentes y determina, en último análisis, el estatuto mismo
del sujeto cognoscente. La emergencia es aquí, pues, a la vez
objetiva y subjetiva y se sitúa, más bien, en un umbral de
indecidibilidad entre el objeto y el sujeto. Ésta nunca es el
emerger del hecho sin ser, a la vez, el emerger del propio
sujeto cognoscente: la operación sobre el origen es, al mismo
tiempo, una operación sobre el sujeto”. AGAMBEN,
Giorgio. Signatura rerum. Sobre el método. Trad. Flavia Costa
e Mercedes Rovituso. Barcelona, Anagrama, 2010, p.121.

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que, remontando a contracorrente a história das forma-
ções discursivas, descobrisse que segmentações práticas,
que exercícios efetivos de poder se tornaram possíveis
graças a elas, ou seja, a partir de que a priori histórico
foi possível pensar o mundo tal como ele foi pensado
até o presente. Foucault utiliza a esse respeito a expres-
são “remontar a história a contracorrente”, paralela ao
“escovar a contrapelo” de Benjamin, que destacava o
valor que, para essa ruinologia, adquire o conceito de
regressão, ou reconstrução retrospectiva, anverso exato
da racionalização. Há aqui uma evidente conexão com
a psicanálise, cujo trabalho muito me auxiliou na época
das teses, e para a qual o não-passado que ainda age
apresenta-se agora sob a forma do sintoma, ao passo
que, na arqueologia, troca-se a busca da origem pela
captação da emergência. Considere-se, além do mais,
que, nessa mesma época, coerente com o downcast eyes
que se verificava na filosofia francesa, Jacques Lacan, ao
reorientar sua clínica em direção ao sintoma, reivindi-
cava o ruinólogo como um aturdito, alguém capaz de
ouvir o que se diz e que permanece esquecido, atrás do
que foi dito, naquilo que se ouve12. Se a ontologia que
servia de base à filologia historicista em que me iniciei
sustentava-se na convicção, além de simplista, dualista,
de que o ser é e o não-ser não é, a logologia das ruí-
nas discursivas para a qual me dirigia baseava-se, pelo

12 Na tradução de Vera Ribeiro: “Que se diga fica esquecido por


trás do que se diz em o que se ouve”. LACAN, Jacques. “O aturdito”
in Outros escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 449.

16
contrário, na noção de que o ser é um efeito de discur-
so e que, para determinar o sentido de um enunciado,
é preciso inverter a operação, não mais percorrendo o
caminho do ser ao dizer, mas, contrario sensu, indo do
dizer ao ser13. O mote era aquele que o próprio Oswald
de Andrade estipulava no prefácio (descartado) a Sera-
fim Ponte Grande, “a gente escreve o que ouve, nunca o
que houve”. Nesse esforço de timpanização da lingua-
gem, o amor (à letra) podia facilmente ser ouvido como
humor (à letra). A arqueologia ruinológica, funcionan-
do pois como autêntica filologia cratiliana, vinha assim
coincidir com a psicanálise lacaniana em três questões
fundamentais: a princípio, na existência da verdade;
mas a seguir, no seu descolamento com relação ao dis-
curso, que lhe garantiria um funcionamento próprio,
en retard e, por último, na inexistência de um critério
inequívoco de verdade pelo simples fato de que, longe
de ser um julgamento conclusivo, a verdade é uma ope-
ração que pode se tornar negativa, uma in-operação ou
desativação14.
Mas a história da arte já ensaiara variadas formas
para contornar o mesmo problema. Basta pensar em
Riegl e sua Kunstwollen, em Warburg e nos engramas
ou dinamogramas previstos por sua Nachleben e, mais

13 ANTELO, Raul. “Ser, dever ser e dizer”. Revista do Ins-


tituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, Universidade de São
Paulo, no 36, 1994, p.109-119.
14 BADIOU, Alain. “Lacan y Platón: ¿es el matema una idea? VA-
RIOS AUTORES. Lacan con los filósofos. Mexico, Siglo XXI, 1997,
p.125-145.

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afinado ainda com os modernos, em Carl Einstein, que,
por exemplo, detectava, em Cézanne, uma tensão de
estilo duplo, uma linguagem feita de estrutura simples
e sensibilidade complexa15. Michel Foucault, herdeiro
dessa tradição – que ele ativa, nessa mesma época, entre
1967 e 1971, ao ler a pintura de Manet16 –, nos diz que
a regressão arqueológica remonta aquém do divortium
acquarum entre consciente e inconsciente, e prepara o
terreno para aquilo que, na posterior interpretação de
Agamben, será a linha de fratura em que lembrança e
esquecimento se comunicam e se separam, ao mesmo
tempo e no mesmo gesto. Aparece então a questão po-
lítica do hiato, a lacuna. Em outras palavras, retorna a
obnubilação.
Até hoje a obnubilação tem para mim uma imagem
precisa: a adaptação que Visconti fez de O Estrangeiro de
Camus, talvez seu pior filme, que eu devo ter assistido
com 18 anos. O início do relato, “Aujourd’hui, maman
est morte”, mas, fundamentalmente, a luz, que é mais
uma personagem na ruinológica busca do estrangeiro,
sob o inclemente sol argelino, é a mais viva materiali-
zação da obnubilação. Aqui, como tantas outras vezes
depois, trata-se de evocar e encenar o fantasma, mas,
ao analisá-lo e desconstruí-lo, retirar-lhe sua pungente
condição originária. A regressão arqueológica é, portan-

15 EINSTEIN, Carl. Die Kunst des 20. Jahrhunderts, Berlin, Pro-


pyläen, 1926.
16 FOUCAULT, Michel. La peinture de Manet. Paris, Editions du
Seuil, 2004.

18
to, como o realismo borgeano, elusiva, o anverso pon-
tual do eterno retorno: ela não busca repetir o passado,
mas quer deixá-lo fluir para aquém ou além do próprio
passado, encontrando o que nunca existiu de fato.
Giorgio Agamben, além do mais, é da opinião que a
emergência dessa problemática, em Foucault, situa-se,
logo no início da carreira, na introdução a um livro de
Ludwig Binswanger, o terapeuta, entre outros, de Ni-
jinski e Warburg. Nijinski, cujos pulos, segundo Muri-
lo Mendes, congelavam-no em pleno palco; Warburg,
cujo salto consistia, num grand jeté, em ir de Atenas
a Oraibi, para encontrar o eterno retorno da mesma
figura. Com efeito, no prólogo a Le rêve et l´existence
(1954), Foucault explica que a arché assim procurada
por ele não é um dado situável numa cronologia, mas é
uma força operativa na história, tal como a psicanálise
ou o big bang, que se supõe ter dado origem ao univer-
so. Porém, à diferença do big bang, a arché não é um
dado ou matéria, mas um campo de correntes históricas
bipolares, cindidas entre a antropogênese e a história,
entre a emergência e o devir, entre um arquipassado e
o presente. Essa, de fato, é por sua vez a matriz do pen-
samento da máquina teológico-política de Agamben,
máquina que, ao praticar a exceção, separa a vida nua do
poder, a anarquia da lei, a multidão do povo17.

17 “Como a tradição da metafísica sempre pensou o humano


na forma de uma articulação entre dois elementos (natureza
e logos, corpo e alma, animalidade e humanidade), assim a
filosofia política ocidental sempre pensou o político sob o ân-
gulo da relação entre duas figuras que era preciso combinar:

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E para se livrar, tanto quanto possível, dessa compulsão
à repetição, o filósofo italiano, baseando-se em Giorgio
Colli, advoga por uma força destituinte que seria a úni-
ca forma de se alcançar uma relativa autonomia18. Essa
força marca, portanto, a não coincidência, o falho, en-
tre um uso normativo e jurídico do discurso (a potestas)

a vida nua e o poder, a casa e a cidade, a violência e a ordem


instituída, a anomia (a anarquia) e a lei, a multidão e o povo.
Na perspectiva de nossa pesquisa, devemos em vez disso ten-
tar pensar o humano e o político como aquilo que resulta
da desconexão desses elementos e investigar não o mistério
metafísico da conjunção, mas o mistério prático e político
de sua disjunção. (...) nos pares vivente/linguagem, poder
constituinte/poder constituído, vida nua/direito, é evidente
que os dois elementos se definem e se constituem sempre re-
ciprocamente através de sua relação opositiva e, sendo assim,
não podem preexistir a esta; e, todavia, a relação que os une
os pressupõe como irrelatos. Aquilo que no decorrer da pes-
quisa definimos como bando é o vínculo, ao mesmo tempo
atrativo e repulsivo, que conecta os dois polos da exceção so-
berana. AGAMBEN, Giorgio. L´uso dei corpi.Vicenza, Neri
Pozza, 2014, p. 344.
18 “Chamamos destituinte uma potência sempre capaz de
depor as relações ontológico-políticas para fazer surgir entre
seus elementos um contato (...) O contato não é um ponto
de tangência nem um quid ou uma substância em que os dois
elementos entram em comunicação: ele se define tão somente
por uma ausência de representação, por uma cesura. Lá onde
uma relação é destituída e interrompida, seus elementos esta-
rão nesse sentido em contato, porque fica exposta entre eles a
ausência de qualquer relação. Assim, no ponto em que uma
potência destituinte expõe a nulidade do vínculo que pre-
tendia mantê-los juntos, vida nua e poder soberano, anomia
e nomos, poder constituinte e poder constituído mostram-
se em contato sem nenhuma relação; mas, por isso mesmo,
aquilo que tinha sido separado de si mesmo e capturado na
exceção – a vida, a anomia, a potência anárquica – surge ago-
ra em sua forma livre e ilibada.” L´uso dei corpi, p. 344-5.

20
e um uso anômico e extra-jurídico (a auctoritas)19. Na
adolescência, Cané impunha-me a potestas; Garcia Mé-
rou descortinava, porém, a auctoritas de Araripe, admi-
rador irrestrito de meu xará Pompeia, avesso especular
de Cané.
Em obras posteriores de Agamben, como O reino
e a glória, descobriria que este último conceito visava
denominar, justamente, o fenômeno nunca conceituado
a contento pela cultura ocidental: a imagem como força
destituinte, como força de desativação20. Há pouco,

19 “O elemento jurídico-normativo, em que parece residir o


poder na sua forma eficaz, tem, porém, para uma teoria da
potência destituinte, necessidade do elemento anômico para
poder se aplicar à vida; por outro lado, a auctoritas só pode
se afirmar e ter sentido em relação à potestas. O estado de
exceção é o dispositivo que deve, em última análise, articular
e manter juntos os dois aspectos da máquina jurídico-políti-
ca, instituindo um limiar de indecidibilidade entre anomia
e nomos, entre vida e direito, entre auctoritas e potestas. En-
quanto os dois elementos permanecem correlatos, mas con-
ceitual, temporal e pessoalmente distintos – como na Roma
republicana, na contraposição entre senado e povo, ou, na
Europa medieval, na contraposição entre poder espiritual e
temporal – sua dialética pode de algum modo funcionar. Mas
quando tendem a coincidir numa só pessoa, quando o estado
de exceção, em que eles se indeterminam, vira regra, então o
sistema jurídico-político se transforma numa máquina letal.”
L´uso dei corpi, p. 334.
20 “Em O Reino e a Glória, uma estrutura análoga foi trazida
à luz na relação entre reino e governo e entre inoperância
e glória. A glória surgia ali como um dispositivo destinado
a capturar no interior da máquina econômico-governamen-
tal aquela inoperância da vida humana e divina que a nossa
cultura não parece capaz de pensar e que, todavia, não cessa
de ser invocada como o mistério último da divindade e do
poder. Essa inoperância é, para a máquina, tão essencial, que

a ruinologia . raúl antelo.


em 2012, Agamben prefaciou um volume, Per una
archeologia del presente. Scritti sull’arte contemporanea,
do crítico Giovanni Urbani (1926-1994), um discípulo
de Cesare Brandi, em que a arte é definida como
o passado da humanidade e, por tabela, o presente
passa a ser uma espécie de estrato arqueológico do
qual extraímos os vestígios do que somos. Mas, ao
mesmo tempo, esse passado que conserva prefigurado
o presente transforma a arte em julgamento artístico
e, vice-versa, a intervenção artística radical, um
ready-made, por exemplo, torna-se um ato existencial
semelhante à própria poiesis primigênia21. Em todos
esses casos, segundo Agamben, nos confrontamos com
a arché como a priori histórico22, que nos persuade, de
resto, que o problema ontológico-político da atualidade
já não é a obra mas a inoperosidade; não é a busca de
uma fundamentação mas a exibição da ausência de
fundamento que a máquina do mundo guarda em seu
cerne.

deve ser capturada e mantida a todo custo em seu centro sob


a forma da glória e das aclamações que, através da mídia con-
tinuam a desempenhar ainda hoje sua função doxológica.”
L´uso dei corpi, p. 335.
21 URBANI, Giovanni. Per una archeologia del presente. Scri-
tti sul arte contemporanea. Milão, Skira, p. 218.
22 “Assim, a cidade se funda sobre a cisão da vida em vida nua
e vida politicamente qualificada, o humano se define através
da exclusão-inclusão do animal, a lei através da exceptio da
anomia, o governo através da exclusão da inoperância e da
captura desta sob a forma da glória.” L´uso dei corpi, p. 336.

22
O primeiro livro de Agamben, O homem sem con-
teúdo, é dedicado precisamente ao arqueólogo Urbani,
que bem poderia ilustrar esse homem contemporâneo,
esvaziado e disponível, tão artista-crítico quanto cons-
ciência medusina e petrificada, conforme a hipótese de
Mercedes Rovituso23. Toni Negri vai além e chega até a
afirmar que essa arqueologia da ontologia proposta por
Agamben é um esforço por liberar o pensamento da
operatividade e do mando, ou, em outras palavras, por
pensar uma ética e uma política para além dos conceitos
de dever e vontade24.
Mas essa questão da lacuna, do não-Todo, que
seria indispensável para qualquer conhecimento, nos
coloca, em cheio, no mundo da técnica e da imagem,
porque se toda imagem é uma dialética suspensa, o
tempo passa a ser atravessado pelo espaço, tal como na
evocação do eterno em Proust ou no memorialismo
boitempo de Drummond. Sabemos que os gregos re-
servavam para o conceito de imagem dois termos, o de
eidolon e o de eikon. Eidolon era a imagem de um so-
nho, a aparição de um deus ou um fantasma ancestral.

23 ROVITUSO, Maria. Mercedes. La teoria de la imagen en


la obra de Giorgio Agamben. Entre Estética y Política. Univer-
sidad Nacional de San Martín / Università del Salento, 2013,
p. 25-6.
24 NEGRI, Toni. “Il sacro dilemma dell’inoperoso”. Il Manifesto,
Roma, 24 fev. 2012, p.1. Negri recrimina-lhe que, em seu percurso,
o ser é tão obscuro e tênue, a imanência tão indistinta, o ateísmo tão
pouco materialista e, por último, o niilismo tão triste, que Agam-
ben e sua potência estão, de fato, muito longe da vitalidade de um
Spinoza.  

24
Não interessa, no eidolon, o que a imagem faz, aquilo
de que ela é capaz, mas aquilo que ela é; porém, quando
a língua grega cunha o termo eikon, mais ou menos na
mesma época em que começa a circular o conceito de
mimesis, o novo significante, eikon, logo desvalorizou o
eidolon, que a partir de então adotou uma significação
meramente negativa, como cópia ou imitação inerte,
enquanto eikon passou a exigir definições ontológicas
relevantes, tais como a distinção filosófica entre aparên-
cia e essência, que se tornava assim necessária para as
imagens existirem. Já no caso da latina imago, a imagem
por ausência ou esvaziamento, o corpo e o meio estão
uniformemente implicados nela, na medida em que é
no lugar do corpo ausente do morto que se instalam
as imagens. Mas elas permaneceriam como simples re-
curso artificial, ao virem ocupar o lugar vago do de-
funto, ora chamado de imago, ora de caput mortuum
(Michel Leiris) ou mesmo de objeto a (Lacan). O corpo
perdido é efetivamente substituído pelo corpo virtual
da imagem e, nesse ponto, atingimos, enfim, o para-
doxo etimológico da imagem: a imagem torna visível
uma ausência ao transformá-la em uma nova forma de
presença. Porém, essa presença icônica do morto admi-
te, todavia, e até mesmo encena, decididamente, a fina-
lidade desta ausência. Portanto, toda imagem repousa
numa analogia com o corpo físico e no fato de os corpos
também funcionarem como meios, a tal ponto que as
imagens simplesmente acontecem entre nós. Elas são, a
rigor, o único acontecimento.

26
Platão definiu o tempo (chronos) como a imagem
(eikon) móvel do aión. Chronos, portanto, não é bem
resíduo e abandono, uma vez que não é um mero eído-
lon ou simulacro, mas a imagem autêntica da duração
e da memória. A esse respeito, cabe relembrar que, no
primeiro canto de Maldoror, Ducasse escreveu:

E, quando rondo as habitações dos homens,


durante as noites tempestuosas, os olhos
ardentes, os cabelos flagelados pelos ven-
tos dos temporais, isolado como uma pe-
dra no meio do caminho, cubro meu rosto
murcho, com um pedaço de veludo, negro
como a fuligem que enche o interior das
chaminés; é melhor que os olhos não sejam
testemunhas da fealdade que o Ser supre-
mo, com um sorriso de ódio potente, pôs
em mim.25

Herdeiro desse desarranjo, o modernismo alimentou


uma saudade infinita com relação à ordem, a totêmica
muiraquitã, ordem essa que entretanto tentou também
desativar pelo jorro anárquico. Enfrentou-se frequente-
mente com empecilhos. Havia, indesejada, uma pedra
no meio do caminho, e os pósteros conceberam o entre
-lugar como uma forma de lidar com a nação quando
se descobre que ela é apenas uma Coisa. Tratava-se, no
fundo, de conceber o estético não só em termos de au-
tonomia, mas como uma dimensão contingente, onde

25 DUCASSE, Isidore. Os cantos de Maldoror. Tradução de Joa-


quim Brasil Fontes Junior. Campinas, Editora da Unicamp, 2015.

a ruinologia . raúl antelo.


agem, em fusão, tanto o estético quanto o estésico26.
Daí que o modernismo sempre imagine que as coisas
sobrevivam à experiência, vista como, além de fugaz,
delusiva. “Coisas, e a morte que existe nelas”, diz logo
no início um dos poemas de Parábola (1952) de Murilo
Mendes; e Borges, já adulto também, em Elogio da som-
bra, que é como dizer elogio da imagem técnica, elogio
da fotografia, diz que não podemos ter certeza da vida,
mas apenas da pós-vida.

LAS COSAS
El bastón, las monedas, el llavero,
La dócil cerradura, las tardías
Notas que no leerán los pocos días
Que me quedan, los naipes y el tablero,
Un libro y en sus páginas la ajada
Violeta, monumento de una tarde
Sin duda inolvidable y ya olvidada,
El rojo espejo occidental en que arde
Una ilusoria aurora. ¡Cuántas cosas,
Limas, umbrales, atlas, copas, clavos,
Nos sirven como tácitos esclavos,
Ciegas y extrañamente sigilosas!
Durarán más allá de nuestro olvido;
No sabrán nunca que nos hemos ido27.

26 VALERY, Paul. “Discours sur l´Esthétique” in Œuvres. Ed. Jean


Hytier. Paris, Gallimard, 1957, p.1311.
27 BORGES, Jorge Luis. Obra Completa. Buenos Aires, Emecé,
1974, p. 992.

28
É a mesma equação drummondiana da máquina do
mundo. O sujeito passa, a Coisa fica. A nação é essa
Coisa que, enquanto enigma, permanece incólume. É
um toque, uma dicção. Como a dicção de Carriego,
uma ruína, que intuímos sob o soneto de Borges.
Distanciando-se da melancolia do moderno, a resposta
elaborada pela ruinologia é a de postular um entre-lugar
que funcione como soleira para sair de uma posição dual
ou dilemática, tanto formal quanto identitária, daquilo
que conhecemos como primeiro modernismo. Ora, em
mais de um ponto, a ruinologia é a continuação do que,
na ficção, procuravam autores como Lúcio Cardoso,
Clarice Lispector e mesmo Guimarães Rosa, porém,
em chave não apenas supra-regionalista, territorial, mas
num registro pautado por um pas au-delà do tempo,
uma refutação do tempo evolutivo e uma postulação
do tempo para além do tempo, não um Chronos mas
um Aion.
É justamente na eterna hesitação entre análise gené-
tica ou estrutural, explicação ou compreensão, semióti-
co ou semântico, que Foucault aborda a existência, para
a crítica, de duas espécies de modelos: o dos concei-
tos vindos de outro domínio do conhecimento e que,
desprovidos de eficácia operatória, desempenham tão
somente um papel de imagem (por exemplo, as metá-
foras organicistas no cosmopolitismo de Joseph Texte)
e, junto a eles, os modelos constituintes tomados de
empréstimo da biologia, da economia e do estudo da
linguagem, como os de Araripe Jr. ou Garcia Mérou,

30
que não são simples técnicas de formalização, mas au-
tênticos fatores ativos para a criação de objetos de um
saber possível, que desempenham o papel de categorias
na prática singular da crítica. Gostaria de me deter em
um deles: o vórtice.
Ignorando, obviamente, a ladainha de Cruz e Sousa
– assim como eu mesmo ignorava, ao decorar aqueles
melodiosos versos simbolistas, que iria morar na ilha
onde o poeta nascera –, sem mencionar o vórtice cuba-
no de Severo Sarduy, que, para se contrapor à busca das
Orígenes de Lezama Lima, lança um outro movimento,
Ciclón, e nem mesmo relembrar as potentes observações
de Caillois, Agamben nos diz que

O vórtice tem sua própria rítmica, que foi


paragonada ao movimento dos planetas ao
redor do sol. O seu interior se move a uma
velocidade maior que sua margem exterior,
assim como os planetas rodam mais ou me-
nos rapidamente de acordo com sua distân-
cia do sol. Em seu enrodilhar-se em espiral,
ele se alonga para baixo e depois se lança
para cima numa espécie de íntima pulsação.
Além disso, se deixamos cair no redemoi-
nho um objeto – por exemplo um pedaci-
nho de madeira em forma de ponteiro – ele
manterá em seu constante rodopiar a mes-
ma direção, indicando um ponto que é, por
assim dizer, o norte do vórtice. O centro ao
redor do qual e rumo ao qual o vórtice não
para de turbilhonar é, no entanto, um sol
negro, em que age uma força de sorção ou
de sucção infinita. Segundo os cientistas,
isso se expressa dizendo que, no ponto do
vórtice onde o raio é igual a zero, a pressão
é igual a “menos infinito”.

a ruinologia . raúl antelo.


Vale refletir sobre o especial estatuto de sin-
gularidade que define o vórtice: ele é uma
forma que se separou do fluxo da água de
que fazia e faz ainda de algum modo parte,
uma razão autônoma e fechada em si mes-
ma que obedece a leis que lhe são próprias;
e, no entanto, está extremamente conectada
ao todo em que está imersa, feita da mes-
ma matéria que troca continuamente com
a massa líquida que a circunda. É um ser
para si e, contudo, não tem uma gota que
lhe pertença propriamente, sua identidade é
absolutamente imaterial.28

Para ilustrar o funcionamento do vórtice, Agamben


usa o significante legno, que provém de lignum, madei-
ra. E, ainda por cima, essa madeira é um utensílio, uma
pequena faca, “el cuchillito”, que funciona como téssera
em um conto célebre de Borges, “El cautivo”. Mas repa-
remos que aquilo que os romanos chamavam de lignum
era, para os gregos, hylè, que significa, como o wood
inglês, tanto a matéria, quanto o local, essa hiléia que
apreciei em Os sertões, num exemplar que ganhei ao me
formar em 1972, mas que logo reencontraria nessa par-
ticular hileia metafísica de Grande sertão: veredas, onde
também girava o redemoinho no meio do caminho,
imagem que a ruinologia ora detecta em uma signatura
esparsa de Rosa, na Alemanha de 1940, ao encontrar os
animais do zoológico de Hamburgo mortos pelos bom-
bardeios, sem conseguirem sair de suas gaiolas. Mas

28 AGAMBEN, Giorgio. “Vortici”. Il fuoco e il racconto. Roma, No-


ttetempo, 2014, p. 61-62.

a ruinologia . raúl antelo.


voltando ao pau, os latinos ainda tinham uma outra pa-
lavra para madeira, porém, para a madeira superficial, a
casca da árvore, liber, algo não-material, palavra da qual
ganhamos a nossa livro, a vertiginosa máquina imate-
rial de Mallarmé. Ora, é o mesmo Agamben quem nos
alerta que

A compreensão de um fenômeno ganha


se não separamos sua origem num ponto
remoto do tempo. A arché, a origem vorti-
cosa que a investigação arqueológica tenta
alcançar, é um a priori histórico, que resta
imanente ao devir e continua a agir nes-
te. E, mesmo no decorrer de nossa vida, o
vórtice da origem permanece presente até
o fim, acompanha a todo instante silencio-
samente a nossa existência. Às vezes se faz
mais próximo, outras se afasta tanto que já
não conseguimos vislumbrá-lo nem mes-
mo perceber seu bulício abafado. Mas, nos
momentos decisivos, aferra-se e se arrasta
dentro de nós, e então nos damos conta de
que também nós não passamos de um frag-
mento do início que continua a remoinhar
no vórtice de que provém nossa vida, a ro-
dopiar ali dentro até que – a menos que o
acaso o cuspa para fora – alcance o ponto
de pressão negativa infinita e desapareça.29

Mas ao lançar algo no gorgo, Agamben ali mesmo


detecta o movimento da história. Em latim, gurges é
o torvelinho, o abismo, o mar alto, e o verbo gurgito
significa fartar-se, ou seja, que nos introduzimos numa

29 “Vortici”. Il fuoco e il racconto, p. 63-64.

34
esfera de plenitude e fastio. A palavra latina gorgo vem
do grego gorgôn que, por sua vez, deriva de gorgós, um
adjetivo que equivale a terrível, feroz, turvo, espantoso;
mas por isso mesmo gorgúne é o calabouço, a prisão,
a masmorra. Em “Indicação”, outro poema de Parábo-
la, Murilo Mendes define o mundo contemporâneo, o
mundo da “gentilíssima dama eternidade”, como um
campo de concentração onde se dança, e, em O que res-
ta de Auschwitz, Agamben define a população do cam-
po de concentração como “um imenso redemoinho que
obsessivamente roda em volta de um centro sem rosto.
Mas esse vórtice anônimo, como a mística roda do pa-
raíso dantesco, era ‘pinta della nostra effige’, portava im-
pressa a verdadeira imagem do homem”30. Com efeito,
a terrível e assustadora Gorgona não tem rosto, não tem
prósopon. É “uma imagem absoluta, como alguma coisa
que só pode ser se vista e apresentada. O gorgoneion,
que a impossibilidade da visão representa, é aquilo que
não se pode não ver”31, curiosa definição que coincide,
ipsis litteris, com a definição do Real lacaniano, “ce que
ne cesse pas de ne pas s’écrire”. É uma cifra, uma após-
trofe, uma demanda ineludível, “goziferando / amente
/no não notado nato”32. O prisioneiro vê a Gorgona
quando toca o fundo sem fundo, o fundo fofo, ao al-
cançar a visão do que é impossível de ver, a ausência de

30 AGAMBEN, Giorgio. Quel che resta di Auschwitz: L’archivio e il


testimone (Homo sacer III). Turim, Bollati Boringhieri, 1998, p.47.
31 IDEM - ibidem, p. 48
32 GIRONDO, Oliverio. “Gravitar rodando” in A pupila do zero.
Trad. Régis Bonvicino. São Paulo, Iluminuras, 1995, p. 27-9.

a ruinologia . raúl antelo.


fundamento da autoridade, o não-humano do homem.
Em Anémic Cinéma, Marcel Duchamp colocara uma
série de palavras, aparentemente desconexas, a rodar:
esquivemos, equimoses, esquimós, palavras esquisitas, e o
que era incompreensível e ameaçava devorar-nos, goela
abaixo, organiza-se, a partir de sua queda, do seu sinto-
ma, como um apelo incontornável: evitemos as manchas
desse povo nativo do gelo feitas de estranhas palavras.
Devolvamos vida à vida. Por isso podemos pensar que,
por mais paradoxal que possa parecer, a vida procede
da Gorgona, da Medusa, da Água Viva. “Estou tendo
agora uma vertigem. Tenho um pouco de medo. A que
me levará minha liberdade? O que é isto que estou te
escrevendo? Isso me deixa solitária. Mas vou e rezo e
minha liberdade é regida pela Ordem – já estou sem
medo. O que me guia é apenas um senso de descoberta.
Atrás do atrás do pensamento”33.

Mas Agamben, sem por isso cair numa fenomenologia


da percepção, à maneira de Bachelard, sustenta, enfim,
nesse ensaio mais recente, que há dois modos extremos
de fluidez:

Os dois estados extremos dos líquidos – do


ser – são a gota e o vórtice. A gota é o pon-
to em que o líquido se separa de si mesmo,
entra em êxtase (a água, caindo ou esgui-
chando, se separa em gotas na extremida-
de). O vórtice é o ponto em que o líquido

33 LISPECTOR, Clarice. Água viva. 4ª ed. Rio de Janeiro, Nova


Fronteira, 1980, p. 67.

36
se concentra sobre si, gira e vai fundo em si
mesmo. Há seres-gota e seres-vórtice, cria-
turas que com toda força tentam se separar
num fora e outras que obstinadamente se
enrodilham em si mesmas, entranham-se
cada vez mais. Mas é curioso que mesmo a
gota, ao voltar a cair na água, produza ainda
um vórtice, faça-se remoinho e voluta.34

Clarice Lispector compôs A paixão segundo GH con-


forme a lógica do vórtice. Quando entramos no texto,
ele já está girando, em reticências, essas signaturas que
Elsa Morante disseminou na Ética de Spinoza; e cada
frase com que se abandona um fragmento é retomada
no início do próximo bloco, mas já não é mais a mesma
frase. A origem abandona-se atrás, atrás do pensamen-
to, e o que conta agora é o começo, o passo, a dança.
É pra lá que eu vou. São as mesmas volutas, aliás, com
que Walter Benjamin imaginou um atlas portátil para
decifrar a modernidade, seu Livro das passagens. E esse
livro, que não é hylé, não é matéria, mas a pura vertigem
cercando a Gorgona, contorna a infinita operação da
linguagem.

Os nomes – e todo nome é um nome pró-


prio ou um nome divino – são vórtices no
devir histórico das línguas, turbilhões nos
quais a tensão semântica e comunicativa da
linguagem se remoinha em si mesma até se
tornar igual a zero. No nome, já não dize-
mos – ou ainda não dizemos – nada, tão so-
mente chamamos. No vórtice da nomeação,

34 “Vortici”. Il fuoco e il racconto, p. 64-65.

a ruinologia . raúl antelo.


o signo linguístico, girando e afundando em
si mesmo, se intensifica e se exaspera até o
extremo, para depois se deixar sorver no
ponto de pressão infinita onde desaparece
como signo para reaparecer do outro lado
como puro nome. E o poeta é aquele que
imerge nesse vórtice, onde tudo volta a ser
para ele nome. Ele deve repescar uma a uma
as palavras significantes do fluxo do discur-
so e lançá-las no redemoinho, para reencon-
trá-las na língua vulgar ilustre do poema
como nomes. Estes são algo que alcançamos
– se é que alcançamos – somente ao final da
descida no vórtice da origem.35

“O mundo não acabou, pois que entre as ruín-


as / outros homens surgem” proclama, eufórica, a
“Carta a Stalingrado” de Drummond, de tal sorte
que a origem, enquanto assume essa sua ruína, o
abandono, insiste e persiste na pergunta pelo ori-
ginário. Desse modo permanece simultaneamente
fiel a duas coisas, tanto a uma necessidade (não re-
nunciar) quanto a uma filia (a filosofia, mas, acima
de tudo, a filologia). A ruinologia seria assim um
saber das signaturas, e como estas, segundo Agam-
ben, são um signo no signo, caberia à ruinologia,
enfim, captar, no objeto, aquilo que, a partir do
signo, vai além dele mesmo, seu excesso, o exce-
dente, a exceção. Creio que, se dissesse mais algu-
ma coisa, seria excessivo.

35 “Vortici”. Il fuoco e il racconto, p. 65-66.

38
Impresso em gráfica própria
(usando o sistema de cera sólida)
e costurado manualmente.

Desterro, outono de 2016.

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