raul antelo
Cultura e Barbárie
Florianópolis, 2016
A ruinologia Raúl Antelo
© Cultura e Barbárie e Raúl Antelo, 2016
Texto apresentado no seminário: Raul Antelo – Ficção crítica, arquivos, arqueologia, realizado no Museu
de Arte do Rio em 2014.
ISBN: 978-85-63003-48-5
6
continente. La riqueza del vocabulario de
Araripe Junior, el uso frecuente de términos
de slang y de criollismos brasileros, impri-
men à esas páginas un colorido local extra-
ordinario y hacen que su expresión se aguce
y traduzca con fidelidad los más variados
matices, los detalles más característicos. Su
teoría de la obnubilación, de que he hablado
à mis lectores al comienzo de esta obra, apa-
rece con todo su prestigio, y à través de ella
se ve el proceso de deslumbramiento que
como pródromo de su adaptación posterior
à aquel medio capitoso, sienten los prime-
ros aventureros europeos. La descripción
del erotismo enfermizo, de la sensualidad
mórbida en que caen los colonos enervados
y excitados sucesivamente por aquel medio
ardiente y afrodisíaco, posee una fuerza in-
discutible.4
10
Marthe Robert, é também origem da minha própria
fábula –, tendo trabalhado com as signaturas de Mário
de Andrade, Aníbal Machado ou Oliverio Girondo, o
paralelo faz sentido.
A ruinologia a que me aplico seria então uma teoria
dos objetos sociais que responde à regra característica
de que todo objeto simbólico é um ato inscrito, um
gesto que permanece enquanto inscrição. Ou seja, que
os objetos sociais são mera decorrência de atos sociais,
que pressupõem, ao menos, duas pessoas, mas, funda-
mentalmente, um registro, uma inscrição, um rastro.
Importante emenda ao esquema da formação e ao co-
nhecido tripé autor-obra-público. O rastro é a definição
de sua estrutura, porque, mesmo partindo de uma ori-
gem verificável, logo se separa dela e resta apenas como
rastro, na medida em que se separou do ato positivo
do rastreamento. E sabemos, como nos diz Derrida,
que onde há rastro começa um arquivo. Mas Agamben
esclarece, além do mais, que a nossa ruinologia não é
um simples anverso especular da teleologia. Antes, é um
terceiro analógico que abre uma alternativa bipolar aos
extremos da dialética e à sua resolução por via fenome-
nológica e racional8.
12
famoso ensaio de Foucault, “Nietzsche, a genealogia, a
história” (1971). Nele Foucault joga as cartas em favor
da genealogia e contra a história, isto é, contra a busca
imperiosa de uma origem. Ignorava eu obviamente, em
1971, quando estudava um texto de Leo Spitzer, “Lin-
guística e história literária”, na tradução da Gredos de
Madri9, que um ano antes Foucault traduzira o mesmo
texto, contemporaneamente à redação do ensaio sobre
Nietzsche, porém, com um título de per se chocante,
“Art du langage et linguistique”10, eliminando de cara
qualquer referência à história, o que redefinia os tentos,
uma vez que o parti pris genealógico de Foucault torna-
va-se assim uma contundente resposta ao positivismo
filológico em que eu mesmo me educara. E talvez fosse
mais oportuno dizer que a genealogia, mais do que à
história, opunha-se, nessa perspectiva, ao desenvolvi-
mento meta-histórico, não só de valores ideais, mas de
teleologias indefinidas. A Ursprung, objeto da genealo-
gia, diferenciava-se, assim, taxativamente, da procedên-
cia e da origem.
16
contrário, na noção de que o ser é um efeito de discur-
so e que, para determinar o sentido de um enunciado,
é preciso inverter a operação, não mais percorrendo o
caminho do ser ao dizer, mas, contrario sensu, indo do
dizer ao ser13. O mote era aquele que o próprio Oswald
de Andrade estipulava no prefácio (descartado) a Sera-
fim Ponte Grande, “a gente escreve o que ouve, nunca o
que houve”. Nesse esforço de timpanização da lingua-
gem, o amor (à letra) podia facilmente ser ouvido como
humor (à letra). A arqueologia ruinológica, funcionan-
do pois como autêntica filologia cratiliana, vinha assim
coincidir com a psicanálise lacaniana em três questões
fundamentais: a princípio, na existência da verdade;
mas a seguir, no seu descolamento com relação ao dis-
curso, que lhe garantiria um funcionamento próprio,
en retard e, por último, na inexistência de um critério
inequívoco de verdade pelo simples fato de que, longe
de ser um julgamento conclusivo, a verdade é uma ope-
ração que pode se tornar negativa, uma in-operação ou
desativação14.
Mas a história da arte já ensaiara variadas formas
para contornar o mesmo problema. Basta pensar em
Riegl e sua Kunstwollen, em Warburg e nos engramas
ou dinamogramas previstos por sua Nachleben e, mais
18
to, como o realismo borgeano, elusiva, o anverso pon-
tual do eterno retorno: ela não busca repetir o passado,
mas quer deixá-lo fluir para aquém ou além do próprio
passado, encontrando o que nunca existiu de fato.
Giorgio Agamben, além do mais, é da opinião que a
emergência dessa problemática, em Foucault, situa-se,
logo no início da carreira, na introdução a um livro de
Ludwig Binswanger, o terapeuta, entre outros, de Ni-
jinski e Warburg. Nijinski, cujos pulos, segundo Muri-
lo Mendes, congelavam-no em pleno palco; Warburg,
cujo salto consistia, num grand jeté, em ir de Atenas
a Oraibi, para encontrar o eterno retorno da mesma
figura. Com efeito, no prólogo a Le rêve et l´existence
(1954), Foucault explica que a arché assim procurada
por ele não é um dado situável numa cronologia, mas é
uma força operativa na história, tal como a psicanálise
ou o big bang, que se supõe ter dado origem ao univer-
so. Porém, à diferença do big bang, a arché não é um
dado ou matéria, mas um campo de correntes históricas
bipolares, cindidas entre a antropogênese e a história,
entre a emergência e o devir, entre um arquipassado e
o presente. Essa, de fato, é por sua vez a matriz do pen-
samento da máquina teológico-política de Agamben,
máquina que, ao praticar a exceção, separa a vida nua do
poder, a anarquia da lei, a multidão do povo17.
20
e um uso anômico e extra-jurídico (a auctoritas)19. Na
adolescência, Cané impunha-me a potestas; Garcia Mé-
rou descortinava, porém, a auctoritas de Araripe, admi-
rador irrestrito de meu xará Pompeia, avesso especular
de Cané.
Em obras posteriores de Agamben, como O reino
e a glória, descobriria que este último conceito visava
denominar, justamente, o fenômeno nunca conceituado
a contento pela cultura ocidental: a imagem como força
destituinte, como força de desativação20. Há pouco,
22
O primeiro livro de Agamben, O homem sem con-
teúdo, é dedicado precisamente ao arqueólogo Urbani,
que bem poderia ilustrar esse homem contemporâneo,
esvaziado e disponível, tão artista-crítico quanto cons-
ciência medusina e petrificada, conforme a hipótese de
Mercedes Rovituso23. Toni Negri vai além e chega até a
afirmar que essa arqueologia da ontologia proposta por
Agamben é um esforço por liberar o pensamento da
operatividade e do mando, ou, em outras palavras, por
pensar uma ética e uma política para além dos conceitos
de dever e vontade24.
Mas essa questão da lacuna, do não-Todo, que
seria indispensável para qualquer conhecimento, nos
coloca, em cheio, no mundo da técnica e da imagem,
porque se toda imagem é uma dialética suspensa, o
tempo passa a ser atravessado pelo espaço, tal como na
evocação do eterno em Proust ou no memorialismo
boitempo de Drummond. Sabemos que os gregos re-
servavam para o conceito de imagem dois termos, o de
eidolon e o de eikon. Eidolon era a imagem de um so-
nho, a aparição de um deus ou um fantasma ancestral.
24
Não interessa, no eidolon, o que a imagem faz, aquilo
de que ela é capaz, mas aquilo que ela é; porém, quando
a língua grega cunha o termo eikon, mais ou menos na
mesma época em que começa a circular o conceito de
mimesis, o novo significante, eikon, logo desvalorizou o
eidolon, que a partir de então adotou uma significação
meramente negativa, como cópia ou imitação inerte,
enquanto eikon passou a exigir definições ontológicas
relevantes, tais como a distinção filosófica entre aparên-
cia e essência, que se tornava assim necessária para as
imagens existirem. Já no caso da latina imago, a imagem
por ausência ou esvaziamento, o corpo e o meio estão
uniformemente implicados nela, na medida em que é
no lugar do corpo ausente do morto que se instalam
as imagens. Mas elas permaneceriam como simples re-
curso artificial, ao virem ocupar o lugar vago do de-
funto, ora chamado de imago, ora de caput mortuum
(Michel Leiris) ou mesmo de objeto a (Lacan). O corpo
perdido é efetivamente substituído pelo corpo virtual
da imagem e, nesse ponto, atingimos, enfim, o para-
doxo etimológico da imagem: a imagem torna visível
uma ausência ao transformá-la em uma nova forma de
presença. Porém, essa presença icônica do morto admi-
te, todavia, e até mesmo encena, decididamente, a fina-
lidade desta ausência. Portanto, toda imagem repousa
numa analogia com o corpo físico e no fato de os corpos
também funcionarem como meios, a tal ponto que as
imagens simplesmente acontecem entre nós. Elas são, a
rigor, o único acontecimento.
26
Platão definiu o tempo (chronos) como a imagem
(eikon) móvel do aión. Chronos, portanto, não é bem
resíduo e abandono, uma vez que não é um mero eído-
lon ou simulacro, mas a imagem autêntica da duração
e da memória. A esse respeito, cabe relembrar que, no
primeiro canto de Maldoror, Ducasse escreveu:
LAS COSAS
El bastón, las monedas, el llavero,
La dócil cerradura, las tardías
Notas que no leerán los pocos días
Que me quedan, los naipes y el tablero,
Un libro y en sus páginas la ajada
Violeta, monumento de una tarde
Sin duda inolvidable y ya olvidada,
El rojo espejo occidental en que arde
Una ilusoria aurora. ¡Cuántas cosas,
Limas, umbrales, atlas, copas, clavos,
Nos sirven como tácitos esclavos,
Ciegas y extrañamente sigilosas!
Durarán más allá de nuestro olvido;
No sabrán nunca que nos hemos ido27.
28
É a mesma equação drummondiana da máquina do
mundo. O sujeito passa, a Coisa fica. A nação é essa
Coisa que, enquanto enigma, permanece incólume. É
um toque, uma dicção. Como a dicção de Carriego,
uma ruína, que intuímos sob o soneto de Borges.
Distanciando-se da melancolia do moderno, a resposta
elaborada pela ruinologia é a de postular um entre-lugar
que funcione como soleira para sair de uma posição dual
ou dilemática, tanto formal quanto identitária, daquilo
que conhecemos como primeiro modernismo. Ora, em
mais de um ponto, a ruinologia é a continuação do que,
na ficção, procuravam autores como Lúcio Cardoso,
Clarice Lispector e mesmo Guimarães Rosa, porém,
em chave não apenas supra-regionalista, territorial, mas
num registro pautado por um pas au-delà do tempo,
uma refutação do tempo evolutivo e uma postulação
do tempo para além do tempo, não um Chronos mas
um Aion.
É justamente na eterna hesitação entre análise gené-
tica ou estrutural, explicação ou compreensão, semióti-
co ou semântico, que Foucault aborda a existência, para
a crítica, de duas espécies de modelos: o dos concei-
tos vindos de outro domínio do conhecimento e que,
desprovidos de eficácia operatória, desempenham tão
somente um papel de imagem (por exemplo, as metá-
foras organicistas no cosmopolitismo de Joseph Texte)
e, junto a eles, os modelos constituintes tomados de
empréstimo da biologia, da economia e do estudo da
linguagem, como os de Araripe Jr. ou Garcia Mérou,
30
que não são simples técnicas de formalização, mas au-
tênticos fatores ativos para a criação de objetos de um
saber possível, que desempenham o papel de categorias
na prática singular da crítica. Gostaria de me deter em
um deles: o vórtice.
Ignorando, obviamente, a ladainha de Cruz e Sousa
– assim como eu mesmo ignorava, ao decorar aqueles
melodiosos versos simbolistas, que iria morar na ilha
onde o poeta nascera –, sem mencionar o vórtice cuba-
no de Severo Sarduy, que, para se contrapor à busca das
Orígenes de Lezama Lima, lança um outro movimento,
Ciclón, e nem mesmo relembrar as potentes observações
de Caillois, Agamben nos diz que
34
esfera de plenitude e fastio. A palavra latina gorgo vem
do grego gorgôn que, por sua vez, deriva de gorgós, um
adjetivo que equivale a terrível, feroz, turvo, espantoso;
mas por isso mesmo gorgúne é o calabouço, a prisão,
a masmorra. Em “Indicação”, outro poema de Parábo-
la, Murilo Mendes define o mundo contemporâneo, o
mundo da “gentilíssima dama eternidade”, como um
campo de concentração onde se dança, e, em O que res-
ta de Auschwitz, Agamben define a população do cam-
po de concentração como “um imenso redemoinho que
obsessivamente roda em volta de um centro sem rosto.
Mas esse vórtice anônimo, como a mística roda do pa-
raíso dantesco, era ‘pinta della nostra effige’, portava im-
pressa a verdadeira imagem do homem”30. Com efeito,
a terrível e assustadora Gorgona não tem rosto, não tem
prósopon. É “uma imagem absoluta, como alguma coisa
que só pode ser se vista e apresentada. O gorgoneion,
que a impossibilidade da visão representa, é aquilo que
não se pode não ver”31, curiosa definição que coincide,
ipsis litteris, com a definição do Real lacaniano, “ce que
ne cesse pas de ne pas s’écrire”. É uma cifra, uma após-
trofe, uma demanda ineludível, “goziferando / amente
/no não notado nato”32. O prisioneiro vê a Gorgona
quando toca o fundo sem fundo, o fundo fofo, ao al-
cançar a visão do que é impossível de ver, a ausência de
36
se concentra sobre si, gira e vai fundo em si
mesmo. Há seres-gota e seres-vórtice, cria-
turas que com toda força tentam se separar
num fora e outras que obstinadamente se
enrodilham em si mesmas, entranham-se
cada vez mais. Mas é curioso que mesmo a
gota, ao voltar a cair na água, produza ainda
um vórtice, faça-se remoinho e voluta.34
38
Impresso em gráfica própria
(usando o sistema de cera sólida)
e costurado manualmente.