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O GLOBO ● SEGUNDO CADERNO ● PÁGINA 2 - Edição: 4/02/2011 - Impresso: 3/02/2011 — 15: 09 h AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

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● SEGUNDO CADERNO O GLOBO Sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

HERMANO VIANNA
Imprecisões
Uma atriz entre a vanguarda
Em sua coluna de domingo passado, Caetano Ve-
loso transcreveu e-mail de Joyce Moreno, apoian-
do a decisão da ministra Ana de Hollanda de não
teatral e a tradição oriental
Após dez anos no Théâtre du Soleil, imersão na técnica das máscaras balinesas
mais publicar o conteúdo do site do MinC sob li-
Leonardo Aversa
cença Creative Commons (CC). O texto de Joyce
Karla Monteiro FABIANNA
contém imprecisões. Diz, por exemplo, que o Go-

N
em parecia que na MELLO
ogle patrocina o CC com “US$ 30 milhões!” Gos- véspera ela havia E SOUZA, que
taria de saber quem passou essa informação para chegado de Bali, na
Indonésia. Quase 40 além de atuar
Joyce, e se ela checou sua veracidade antes de horas de voo não foram sufi- prepara atores e
fazer seu texto circular pela internet. O que eu sei cientes para tirar a energia da
atriz Fabianna Mello e Souza. bailarinos desde
é que o Google doou US$ 30 mil para o CC em Ela é uma apaixonada, desvai- que voltou ao
2006 (bit.ly/7GczuR) e, na última década, doou rada, tarada pelo teatro. Tem
no currículo um feito: dez Brasil, vai trazer
uma média de US$ 100 mil por ano. A diferença anos de Théâtre du Soleil, a seu mestre
para os US$ 30 milhões é enorme. companhia parisiense que é
referência no mundo para o indonésio para
Em 2010, o Google fez doa- de Hollanda declarou para teatro de vanguarda. Fabiana dar oficinas no
ções num valor total de US$ matéria do caderno Prosa & fez parte da trupe da cultuada
145 milhões (bit.ly/gBad5O). Verso, aqui deste jornal Ariane Mnouchkine de 1997 a Teatro Poeira,
Entre as muitas organizações (glo.bo/fiwWtL), que “o MinC 2007. E desde que retornou ao em março
que receberam doações es- só retirou o selo das Creative Brasil dirigiu espetáculos co-
tão: a Bharti Foundation, que Commons do site, mas não o mo “Mangiare”, uma literal re-
cuida de escolarização de licenciamento”. Infelizmente feição no palco, em que as
crianças na Índia; a Global o MinC retirou o licencia- atrizes cozinhavam para o es-
Strategies for HIV Prevention, mento sim, ministra — e na- pectador, e tornou-se uma es-
que melhora o acesso a me- da havia de irregular nesse li- pécie de “psicanalista” dos
dicamentos na África; o Uni- cenciamento. Agora temos bastidores, encarregada de
cef; a Ashoka; a APC. Insinuar apenas uma frase vaga: “O arrancar dos atores sutilezas,
que, ao receber doações, to- conteúdo deste site, produzi- emoção e profundidade na
dos passam a trabalhar para do pelo Ministério da Cultu- atuação. Fabianna preparou
os interesses do Google não ra, pode ser reproduzido, Cauã Reymond para encarnar
me parece nada sensato. (E, desde que citada a fonte.” Es- Danilo, o viciado em crack da
mesmo sem doações, o Ecad sa é a “licença” que vale hoje. novela “Passione”; realiza
tem acordo comercial com o A licença CC-BR anterior ti- workshops rotineiros no Tea-
Google — ver bit.ly/f1FFbw.) nha outro texto, que inclusi- tro Poeira para nomes como
O CC, como a Wikipedia, ve diferenciava reprodução Marieta Severo e Andréa Bel-
é sustentado primordial- de publicação, como exige a trão; e está com Deborah Col-
mente por doações descen- Lei do Direito Autoral brasi- ker na preparação de seu no-
tralizadas de indivíduos do leira. Agora as pessoas po- vo espetáculo, “Tatiana”, ba-
mundo inteiro. Todo fim de dem reproduzir o conteúdo, seado na obra do escritor rus-
ano, faz uma campanha mas ao publicá-lo em seus so Alexander Pushkin, com
mundial para doações. Em blogs estão fazendo algo sem estreia prevista para maio. Se-
2010, a campanha arreca- autorização explícita -— isso gundo Deborah, o papel de
dou US$ 522.151,25, incluin- cria uma incerteza jurídica Fabianna é trabalhar o “ritmo
do os apoios de empresas. É desnecessária. Por isso digo dos sentimentos”. Fotos de arquivo pessoal
possível ver os dados da que as licenças CC levam o — A Fabianna trabalhou cem — lembra Fabianna. —
campanha neste link: direito autoral mais a sério. com a gente no “Cruel”, em Participei de três montagens.
bit.ly/hrYBNP. Há uma lista Tudo o que li em defesa da 2008. Deu um workshop de Os espetáculos ficam em car-
de todos os doadores em atitude do MinC deixa claro “Coro e corifeu” (técnica gre- taz por três, quatro anos. O
bit.ly/aV3J9d e o que o problema ga de cópia e repetição no processo é intenso, de oito
relatório finan- não era a licença. processo de criação teatral). da manhã às dez da noite. E
ceiro de 2009 po- A própria minis- Ela nos ajudou a entender o todo mundo faz tudo, de la-
de ser consulta- Quem é contra tra acredita que o ritmo dos sentimentos, o que var o banheiro a cozinhar. No
do, na íntegra,
em bit.ly/hpHZki.
o pagamento licenciamento
continua o mes-
é, de verdade, fazer coro nu-
ma cena, reafirmando o cori-
Théâtre du Soleil, aprendi o
que é engajamento.
Antes de levantar
suspeitas sobre a
para autores? mo. O problema
era a sigla CC e o
feu, o protagonista — diz De-
borah. — Ano passado, fize- Lembranças de Paris
atuação do CC, O Creative desconhecimen- mos um workshop de másca- Formada pela CAL, em
todos deveriam to sobre o que é o ras balinesas. Com a másca- 1984, e ex-integrante do Gru-
estudar com Commons CC. Em seu blog, ra, você incorpora o perso- po Tapa, de 1986 a 1991, Fa-
atenção esses Joyce escreveu nagem no corpo, na respira- COM JULIANA CARNEIRO no Théâtre du Soleil: brasileiras na trupe bianna diz que nada, mas na-
documentos, que nunca disse (bit.ly/geKN1m): ção. Uma onda. O bailarino da mesmo, se compara à roti-
são de transpa-
rência exemplar. que criadores “Como ela (Ana
de Hollanda) reti-
tem a precisão física. Com a
Fabi, chegamos a outros pla-
na no Théâtre du Soleil. O dia
a dia na antiga fábrica de pól-
Outra impreci-
são no texto de
não devem rou do site do
MinC o logo do
nos de entendimento do cor-
po. Agora, ela está no “Tatia-
vora no Bois de Vincenne co-
meça cedo, às 8h. Em ponto.
Joyce: o CC não é ser pagos Creative Com - na”. Centralizei os bailarinos Ariane não admite atrasos. A
uma “licença nor- mons, houve a em quatro personagens de reunião matinal acontece na
te-americana pri- celeuma, recla- Pushkin. Como quatro baila- cozinha, o “coração da com-
vada”. É, sim, uma organiza- mando que ela estaria ‘se ali- rinos podem ser uma pes- panhia”. Ali, organiza-se o dia
ção não governamental que nhando ao Ecad’ e se aliando soa? É como ter que dançar o de trabalho e se dividem as
criou um sistema de licenças ‘ao que há de mais conserva- tempo inteiro com a máscara tarefas: cozinha, limpeza, cos-
que podem ser usadas por dor’. Mas peraí, pessoal: se balinesa. tura, trabalho de escritório,
criadores, organizações e eu entro num restaurante, fa- ensaios... Fabianna conta que
empresas. A Al Jazeera aca- ço meu prato, almoço e vou Duas peças este mês aprendeu a cozinhar na mar-
ba de licenciar as imagens embora, não vão chamar a Cauã também se impressio- ra. E preparar as grandes re-
das manifestações do Cairo polícia para me cobrar o ca- nou com os tratos de Fabian- feições, sempre com pratos tí-
em CC, autorizando sua exi- lote? Então, por que a criação na no seu personagem em picos de algum canto do
bição em todas as TVs. Nin- alheia (alimento da alma) po- “Passione”, Danilo. NA INDONÉSIA, um mergulho no universo das máscaras balinesas Oriente, tornou-se sua tarefa
guém é obrigado a usar as li- de ser usada à vontade, sem — No começo da novela, preferida. Mas nos dias em
cenças se não quiser. que os autores recebam???” eu não estava gostando nada que precisava de um pouco
Voluntários de 70 países Aldir Blanc também declarou do meu trabalho. Fui procu- vo do gênero, I Made Djimat. mulheres para pedir bom de solidão, optava pela limpe-
se inspiraram no trabalho do (glo.bo/fiwWtL): “Não há re- rar ajuda. Quando caí nas A relação foi tão intensa que o tempo. za. Lavar banheiros virou te-
CC norte-americano e desen- trocesso algum em querer mãos da Fabianna, tomei um senhor das máscaras baline- O verão na carreira de Fa- rapia. O trabalho é pesado.
volveram sistemas de licen- pagar com justiça o direito susto. Nunca tinha visto sas vai deixar seu ninho para bianna começou em 1993: na- De quarta a domingo, o Théâ-
ciamentos semelhantes a autoral dos criadores.” Não aquela forma de abordagem vir ao Brasil no dia 22 de mar- quele ano, Ariane Mnouchki- tre du Soleil recebe todas as
partir de legislações locais. entendi o raciocínio. Quem é da interpretação — diz Cauã. ço. É a primeira vez que um ne veio ao Brasil ministrar noites cerca de 600 pessoas
Assim foram criadas entida- contra o pagamento para au- — Mudei totalmente a lingua- mestre da técnica desembar- um workshop. Fabianna con- que assistem a espetáculos
des independentes e separa- tores? O CC nunca disse que gem corporal do Danilo. Ela ca aqui. Ele vai dar oficinas no ta que era vidrada no Théâ- que duram de três a sete ho-
das do CC norte-americano, criadores não devem ser pa- trabalhou comigo técnicas Teatro Poeira. Fabianna está a tre du Soleil e acordou às ras. Segundo Fabianna, o reló-
que por sua vez redigiram li- gos. E o que o licenciamento do Théâtre du Soleil e técni- mil por hora. Ao mesmo tem- quatro da manhã para às 6h gio que marca as horas no
cenças também diferentes do conteúdo do site do MinC cas balinesas. Preparamos po em que prepara a vinda do já estar na fila de inscrições. Bois de Vincennes é o “reló-
das norte-americanas. As li- tem a ver com o pagamento juntos cada cena. Tenho um mestre Djimat, estreia este Eram cem vagas, disputadas gio da criação”.
cenças CC-BR, criadas pelo para autores? Parece que a orgulho imenso de ter me en- mês no Espaço Sesc, em Co- por atrizes do quilate de Ma- — Tudo lá gira em torno da
Creative Commons Brasil sigla CC no site do MinC era tregado a ela. Virou minha pacabana, dois espetáculos: rieta Severo. Não foi selecio- criação, obviamente. As tare-
(bit.ly/O8RVo), são totalmen- entendida como um manifes- parceira. Não a largo mais. “Na lona” (hoje), sobre palha- nada, mas não desistiu. No fas são distribuídas de acor-
te brasileiras e só podem ser to em prol do calote aos au- Você percebeu que a Fabian- çaria e bufonaria, com o gru- primeiro dia de aulas, insta- do com os ensaios de cada
aplicadas no Brasil. tores. Isso é um absurdo. Re- na tem olhos de fogo? po As Comediantes; e “Instan- lou-se na porta. Quando Aria- um. A limpeza e a comida são
O conteúdo do site do pito mais uma vez: a licença No dia seguinte à chegada tâneos” (dia 20), um espetá- ne passou, Fabianna se ajoe- trabalhos muito importan-
MinC era publicado com uma CC defendia muito mais rigi- da Indonésia, com os “olhos culo inteiramente balinês. lhou e pediu: “Please, please, tes. O teatro precisa estar
dessas licenças totalmente damente os direitos de autor de fogo” brilhando, Fabianna — Em Bali, fizemos másca- please.” Venceu pelo cansa- sempre lindo, e a comida,
brasileiras (mesmo com a do que a frase que está no si- desempacotou na sala de sua ras, aulas de canto e de game- ço. E terminou o workshop sempre especial. O cardápio
inspiração norte-americana te agora. casa, no Humaitá, dezenas de lão, um instrumento típico. com uma máscara batizada varia de acordo com o tema
— e não entendo por que A história da batalha pelo máscaras, instrumentos mu- Vimos apresentações nos por Ariane de “Fabian”. Em do espetáculo, assim como
não podemos nos inspirar direito do autor começa sicais estranhos, quilômetros templos. Foi um mergulho na- 97, a dama do Théâtre du So- toda a ambientação. Para ca-
em boas ideias norte-ameri- bem antes do início do sé- de tecidos, toneladas de biju- quele universo — conta Fa- leil retornou. E levou Fabian- da peça mudávamos a cor da
canas, afinal somos ou não o culo XX. É uma bela e com- terias. Ela passou um mês em bianna, que viajou com uma na, o marido e os dois filhos parede e a ambientação do
país da antropofagia cultu- plexa história. O Creative Bali, aprofundando-se na téc- atriz que trabalha com ela. — para Paris. bar, dos espaços livres e do
ral?), produzida por uma en- Commons é parte dessa his- nica das máscaras balinesas, O mestre recebe gente do — Colocamos uma placa espaço cênico — conta Fa-
tidade brasileira, o CC Brasil, tória, em defesa dos auto- uma tradição milenar do tea- mundo inteiro. Estava sentin- na porta da nossa casa: “Fa- bianna. — Meu Deus, estrear
independente do CC norte- res, da criatividade e do tro oriental. Já tinha viajado à do necessidade de voltar lá. mília se mudando.” E vende- pela primeira vez no Soleil,
americano. A ministra Ana acesso ao conhecimento. Indonésia nos tempos do Trata-se de um trabalho de mos tudo. Chegamos à Fran- no meio daquilo tudo, onde
Théâtre du Soleil, e retornou muita exigência para o corpo. ça e alugamos um aparta- existe tanto cuidado, tanta
SEGUNDA-FEIRA TERÇA-FEIRA QUARTA-FEIRA QUINTA-FEIRA SEXTA-FEIRA SÁBADO DOMINGO para beber mais na fonte. Via- O código corporal é diferente mento de 40 metros quadra- celebração do teatro, foi
Felipe PELO MUNDO
Francisco PELO MUNDO
Hermano José Miguel Caetano jou com uma bolsa do Minis- do ocidental. As máscaras dos. Comecei a trabalhar inesquecível. A hora mais im-
Hirsch Rodrigo Pinto, Bosco Eduardo Graça, Vianna Wisnik Veloso
de Londres de Nova York tério da Cultura e ficou num são um veículo para trazer o sem falar francês. Na época, portante, porém, era o almo-
Cristina Ruiz, Eduardo Levy, vilarejo perdido na ilha, onde sentido épico do ator. Todas o Théâtre du Soleil tinha 40 ço: sentar, comer, rir e cele-
de Berlim de Los Angeles
mora o mais antigo mestre vi- as noites, eu dançava com as atores. Hoje são cerca de brar. Ai, que delícia! ■

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