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Argumentos para uma sociologia política das ciências

Alfredo Nava Sánchez

Contra todo senso comum sobre o lugar da ciência no mundo moderno,


particularmente daquele que reivindica uma autoridade científica que, de tão obvia, não
precisa de explicações, pois ela se justifica e se explica por si mesma, Isabelle Stengers
introduz no primeiro capítulo do seu livro A invenção das ciências modernas (2002) os
argumentos para associar uma “razão científica” a “uma razão política”. Sendo ela
mesma filósofa da ciência, entende que o argumento pode gerar escândalos no meio no
qual ela atua e serve, de alguma forma, como fonte de reflexão para desenvolver a tese
proposta.
Mas, pensando que o livro em francês foi publicado em 1993, quando ainda as
certezas científicas não tinham sido atingidas pelo que hoje se (re)conhece como “fake
news” – a palavra em inglês diz bastante sobre a geopolítica que sustenta o termo –,
poderíamos concluir que Stengers não exagerava ao colocar como abertura de seu
argumento o termo que, segundo o dicionário Michaelis, se define como “Ato ou
acontecimento que ofende as convenções morais, sociais ou religiosas”. O escândalo era
o único cenário previsível naquela época para a hipótese de uma ciência permeada pela
política.
No entanto, Stengers, num gesto claramente irônico (e brincalhão?), não
pretendia apenas escandalizar os cientistas, também buscava revolucionar ou, melhor,
inquietar o campo da filosofia da ciência. Se não de que outra forma poderíamos
interpretar a semelhança que tem a frase que vem depois do “escândalo” – “um rumor
inquietante se espalha pelo mundo dos cientistas” (Stengers, 2002, p.11) – com aquela
que abre o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels: “Anda um espectro pela
Europa — o espectro do Comunismo”.
Neste caso, a filósofa belga não refere tanto a um espectro, mas sim a um rumor
que diz respeito a um grupo de especialistas que, para aumentar a desordem, não são
cientistas “puros” – ou seja, humanistas – e proclamam críticas contra o ideal de uma
“ciência pura”. E, aliás, vão além disso para reivindicar que a ciência pode ser estudada
como um “projeto social”, quebrando com isso o que o saber científico tinha de mais
sagrado: a produção de um conhecimento sem tempo e sem espaço, válido para
qualquer momento e qualquer lugar. Esse grupo de sacrílegos pode ser reconhecido –

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diz Stengers – atuando num campo marcado com diferentes etiquetas: antropologia das
ciências, estudos sociais das ciências (sociologia das ciências). A partir deste tipo de
análise, a ciência pode ser identificada como uma atividade para nada alheia as
condições sociais que a circundam, assim como as disputas internas que a determinam.
Numa forma de atenuar as pretensões de “uma revolução” – pelo menos
individual, Stengers assume a herança de suas pretensões argumentativas nos trabalhos
de duas referências que, se bem não foram tão longe com seus estudos para
escandalizar, abriram sim uma dimensão de análise que permitia questionar o lugar sem
lugar da ciência. Num primeiro momento, o trabalho de Thomas Kuhn permitiu
entender os cientistas não apenas como indivíduos “racionais e lúcidos”, mas fazendo
parte de uma comunidade que, por sua vez, se reproduzia historicamente a partir da
hegemonia de certos paradigmas. No entanto, contra essa tese, Stengers sublinha a
preservação da autonomia científica como única condição de possibilidade da
autoridade social do discurso científico. Num segundo momento, Michael Polanyi, com
a ênfase numa observação fenomenológica dos cientistas, possibilitou um estudo
voltado mais para as práticas que para os discursos “paradigmáticos” de reprodução das
comunidades científicas.
Partindo desse estado da arte, e de seus próprios limites no que diz respeito a
uma análise política da ciência, a filósofa belga propõe uma visão a partir de outra
perspectiva, não tão nova no campo de “uma antropologia da ciência”, representada por
Bruno Latour. Nesse primeiro capítulo, essa influência está representada a partir da
reivindicação de uma perspectiva simétrica e uma análise embasada no “princípio de
irredutibilidade” pelo qual a ciência e o político jogam em um mesmo campo e não em
dimensões onde uma e outra se excluem mutuamente.

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