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21632015 2041
ARTIGO ARTICLE
tensões e desafios na transformação da realidade
Vilma Diuana 1
Miriam Ventura 2
Luciana Simas 2
Bernard Larouzé 3
Marilena Correa 4
Abstract This article seeks to identify and dis- Resumo Neste artigo buscou-se identificar e dis-
cuss violations and challenges to the fulfillment cutir violações e desafios à efetivação dos direitos
of women’s reproductive rights in situations of reprodutivos das mulheres em situação de priva-
deprivation of liberty, with an emphasis on sexual ção de liberdade, com ênfase na saúde sexual e re-
and reproductive health. Regulatory parameters produtiva. Foram considerados como referenciais
were considered as analytical frameworks that de análise os parâmetros normativos que susten-
support these rights identified by the literature, tam estes direitos, identificados por levantamento
and the discourses and practices linked to their ef- bibliográfico, e os discursos e práticas relativos à
fectiveness in the everyday life of prisons, collected sua efetivação no dia a dia das prisões, colhidos
in interviews with pregnant women and children em entrevistas com mulheres gestantes e com filhos
in prisons, and the professionals whose practices nas prisões e profissionais cujas práticas interfe-
interfere with the exercise of these rights. It was rem no exercício destes direitos. Verificou-se que as
discovered that violations of these rights find sup- violações destes direitos sustentam-se em discursos
1
Programa de Pós- port in speech that delegitimizes the motherhood que deslegitimam a maternidade destas mulheres.
Graduação em Bioética,
Ética Aplicada e Saúde
of these women. We consider the use of rights as Considera-se o recurso aos direitos como estraté-
Coletiva, Instituto strategic in the struggle for the transformation of gico nas lutas pela transformação desta situação.
de Medicina Social, this situation. Palavras-chave Direitos reprodutivos, Mulheres,
Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ). R.
Key words Reproductive rights, Women, Preg- Gestantes, Mães, Prisão
São Francisco Xavier 524/ nant women, Mothers, Prison
Pavilhão João Lyra Filho/7º
andar/blocos D e E, e 6º
andar / bloco E, Maracanã.
20550-013 Rio de Janeiro
RJ Brasil.
vilmadiuana@gmail.com
2
Instituto de Estudos em
Saúde Coletiva, UERJ. Rio
de Janeiro RJ Brasil.
3
Equipe de Recherche en
Epidémiologie Sociale,
Sorbonne Universités. Paris
França.
4
Instituto de Medicina
Social, UERJ. Rio de Janeiro
RJ Brasil.
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Diuana V et al.
[...] se ancoram no reconhecimento do direito lei, sem distinção de qualquer natureza; preven-
básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir do, no inciso L do referido artigo, a garantia de
livre e responsavelmente sobre o número, o espa- condições para que as presidiárias possam per-
çamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a manecer com seus filhos durante o período de
informação e os meios de assim o fazer, e o direito amamentação.
de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual A Lei de Execução Penal, Lei 7.210/1984,
e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar que visa disciplinar o cumprimento das penas
decisões sobre a reprodução livre de discriminação, no Brasil, reconhece à mulher presa o direito de
coerção ou violência, conforme expresso em docu- amamentar seus filhos e cuidar deles, no mínimo,
mentos sobre direitos humanos7. até 6 (seis) meses de idade (art.83, §2º). Acres-
No Brasil, o reconhecimento destes direitos centa ainda, em seu art. 89, que a penitenciária
encontra-se claramente expresso na Constituição de mulheres será dotada de seção para gestante
Federal Brasileira que, em seu art. 226, §7, dispõe e parturiente e de creche para abrigar crianças
que sobre o direito ao planejamento familiar, e na maiores de 6 (seis) meses e as desamparadas,
Lei Federal nº 9.263 de 1996, que garantiu direi- menores de 7 (sete) anos, cuja responsável esti-
tos iguais de constituição, limitação ou aumento ver presa. A LEP prevê também o benefício do
da prole à mulher, ao homem ou ao casal. Esta lei, regime aberto em residência particular para con-
dentro de uma visão de atendimento global e in- denada gestante, com filho menor ou com defici-
tegral à saúde, atribuiu às instâncias gestoras do ência, física ou mental (art. 117).
SUS, em todos os seus níveis, a responsabilidade Em sua Resolução nº 3, 15/07/ 2009, o Conse-
pela assistência ao planejamento familiar e pelas lho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
ações preventivas e educativas, reconhecendo o (CNPCP) preocupou-se em regulamentar a es-
dever do estado em promover condições e recur- tada, permanência e posterior encaminhamento
sos informativos, educacionais e científicos que dos filhos das mulheres encarceradas à família
assegurem o livre exercício desse direito. ou instituição, de modo a garantir os direitos de
Verifica-se assim que, no Brasil, os direitos convivência com a mãe, proteção e melhor inte-
reprodutivos também se sustentam em legislação resse da criança.
nacional, que garante o exercício individual, livre Em 2011, o Código de Processo Penal passou
e responsável da reprodução e determina o dever a prever possibilidade de substituição da prisão
do Estado na promoção de condições e recursos preventiva pela domiciliar quando o agente for
para seu exercício, em articulação com os direitos “imprescindível aos cuidados especiais de pessoa
sociais, educacionais e de saúde. menor de 6 (seis) anos de idade ou com defici-
No que concerne aos direitos reprodutivos das ência”; bem como para “gestante a partir do 7º
mulheres em situação de prisão, verifica-se que, (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto
no âmbito da proteção dos direitos humanos, des- risco” (art. 318).
tacam-se as Regras de Bangkok (ONU) que, reco- Recentemente, a Política Nacional de Atenção
nhecendo os problemas específicos das mulheres às Mulheres em Situação de Privação de Liberda-
presas e a necessidade de se propiciar meios para de e Egressas do Sistema Prisional - Portaria In-
sua solução, estabelecem regras que contemplam: terministerial do Ministro da Justiça e da Sec. de
a assistência, prevenção e educação em saúde das Políticas para as Mulheres nº 210, de 16/01/2014
mulheres presas, em especial a atenção a mulheres - elenca entre suas metas (Art. 4º, inciso II, item
grávidas, com filhos e lactantes na prisão, além de b) o incentivo aos órgãos estaduais de adminis-
regulamentar a permanência e encaminhamento tração prisional para que promovam o acesso à
das crianças no cárcere. Com relação às penas, dis- saúde em consonância com as políticas nacionais
põe que “penas não privativas de liberdade serão de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas
preferíveis às mulheres grávidas e com filhos de- de Liberdade no Sistema Prisional, de Atenção
pendentes” (Regra 64) e que, nos casos de prisão Integral à Saúde da Mulher e de Atenção à Saúde
preventiva, deverão ser desenvolvidas opções de da Criança, observados os princípios e as diretri-
medidas alternativas à prisão. Verifica-se assim a zes do Sistema Único de Saúde.
relevância, atribuída na legislação internacional, Quanto ao exercício da sexualidade, dimen-
aos direitos reprodutivos das mulheres presas e são integrante dos direitos reprodutivos, a Reso-
a preocupação com sua garantia, em articulação lução nº 04, 29/06/2011, do CNPCP, considera a
com a defesa do interesse de seus filhos. visita íntima de homens e mulheres presas com
A Constituição Federal brasileira, em seu seus parceiros, independente de orientação sexu-
art. 5º, assegura a igualdade de todos perante a al, como um direito constitucionalmente assegu-
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reitos reprodutivos e uma prática penitenciária dos outros filhos de quem estavam separadas em
autoritária onde não há espaço para a escuta das decorrência da prisão. De outro lado, angustias e
mulheres nem um trabalho que favoreça o auto- preocupações, pois sabiam que sua condição de
cuidado e a reflexão sobre a reprodução no pro- gestante não as protegeria em caso de conflitos
jeto de vida pessoal, social e afetivo-sexual destas com a segurança, com outras mulheres ou em re-
mulheres, como sustentado por Diniz10. beliões. Neste ambiente hostil e violento, preocu-
De acordo com os profissionais entrevistados, par-se com sua integridade era também proteger
as informações sobre planejamento familiar bem seus filhos.
como a oferta de métodos contraceptivos ocorria É, na hora que você imagina que uma pessoa é
durante as consultas individuais com as gestantes ruim, você vê uma pior [...], então, quer dizer, isso
e mulheres com filhos na prisão. Houve relatos abala muito a gente. Igual quando tem rebelião!
de trabalhos dirigidos ao conjunto das mulheres Você com a criança... você se apavora com tudo...
presas, em comum com instituições de saúde ex- ter uma outra reeducanda, que não gosta de você,
tramuros, baseados em informação, orientação e querer prejudicar você ou um filho seu... então
acesso a métodos anticoncepcionais de escolha isso preocupa muito a gente... (GRUPO FOCAL/
da mulher. No entanto, apesar de bem aceitos MÃES)
por elas, estas experiências não tiveram continui- Afastadas de seus outros filhos e de suas refe-
dade. Os motivos alegados foram problemas de rências socioafetivas, muitas sem nenhuma visi-
segurança e de infraestrutura envolvendo falta ta11 durante a gestação, com muitas restrições à
de local e de agentes penitenciários para escolta possibilidade de decidir quanto ao cuidado deles
e segurança, revelando o pouco interesse da ad- e de si próprias, viviam experiências de intensa
ministração penitenciária na continuidade desta vulnerabilidade durante a gestação, o parto e de-
ação importante para e efetivação dos direitos pois.
reprodutivos. Essa é minha quarta gravidez... Ai aqui dentro
Neste contexto, é preciso refletir sobre a ins- é complicado pra gente, pra gestante... Porque aqui
trumentalização do discurso preventivo de saú- a gente não tá perto da família, perto dos outros
de, tanto no que concerne à gravidez “irrespon- filhos, que acaba não entendendo tudo isso. A tris-
sável” como à prevenção de doenças sexualmente teza é dessa parte, mais em questão a gestação eu
transmissíveis, para que não fundamentem regu- to feliz. [...] eu sempre quis os meus filhos, sempre
lamentações e práticas restritivas ao estabeleci- fui muito feliz na gravidez, muito alegre. Não [es]
mento de laços afetivos e sexuais, desconsideran- tive, assim, no estado que eu estou agora, né? Emo-
do as mulheres como sujeitos capazes de decidir cional assim eu nunca tinha sentido não. Muito
sobre sua sexualidade e sua vida reprodutiva, e triste, nervosa, abalada, as vezes meio depressiva
estruturando ações de saúde onde não há espaço também, incomoda um pouco, né? (GRUPO FO-
para a escuta das mulheres nem para um trabalho CAL/MÃES)
que favoreça tomadas de decisões mais livres de Grande parte das mulheres gestantes e com
constrangimentos, tanto para engravidar como filhos na prisão ainda aguarda julgamento. Não
para não fazê-lo. sabem sequer se serão absolvidas ou condenadas
Diante destas limitações não é de estranhar ou de quanto tempo será sua pena. Quando se re-
que a maioria das mulheres que têm filhos du- feriam a esta situação, as mulheres entrevistadas
rante o encarceramento sejam mulheres que já expressavam expectativas de não serem condena-
foram presas grávidas. De acordo com Leal11, das, de obterem algum benefício ou que a pena
quase 90% delas já estavam grávidas quando fo- fosse curta e elas pudessem sair junto com seus
ram presas, embora 8,3% ainda não soubessem filhos, mas também sentiam medo de que isto
disto. A maternidade não tinha sido planejada não acontecesse e elas tivessem que entregar o fi-
em 63,1% dos casos e tinha sido desejada para lho para alguém cuidar. A indefinição na situação
36,9% das mulheres. penal, com a consequente indefinição quanto à
gestação, ao parto e à vida com seu bebê é fonte
Da gravidez não planejada de insegurança e sofrimento moral e psicológico
às inseguranças da gestação atrás das grades evitável por meio de assistência à saúde, social e
Entre as mulheres entrevistadas, a gravidez jurídica consistentes.
durante o encarceramento deu lugar a diferentes O fato de terem sido presas enquanto geravam
sentimentos. De um lado, a alegria por não es- seus bebês ocasiona muitas culpas. Me senti um
tarem mais sozinhas e, para muitas, um conso- monstro, porque eu caí presa e não sabia que estava
lo para a saudade e o sofrimento pela separação grávida. Aí eu vim pra cá e trouxe meu filho junto,
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Em sua estada no hospital, sozinhas com seus necessidades especificas de cada caso, inclusive
filhos, sob a vigilância de agentes penitenciárias, de suporte psicossocial. Evidencia, sobretudo, a
as mulheres entrevistadas relataram vivências de iniquidade que resulta do predomínio de ideia de
grande vulnerabilidade. segurança pública, vista como antagônica à pre-
Era o meu primeiro filho. A agente [penitenci- servação da dignidade da pessoa infratora, sobre
ária] ao lado, dormindo. Tentei me acalmar porque a dignidade e as necessidades de saúde das mu-
vi que não tinha jeito, não tinha ninguém para me lheres presas.
ajudar (MF).
Ao refletirem sobre as desigualdades de tra- A extensão da pena aos filhos: obstáculos
tamento pelo pessoal da saúde no hospital, as à assistência à saúde infantil
mulheres entrevistadas relataram experiências Para além de todas estas violências, muitas
de violência que, ora acreditavam ser tratamen- vezes naturalizadas por profissionais de saúde,
to igual ao de outras mulheres, ora viam como funcionários do cárcere e mesmo pelas mulhe-
castigos por sua identificação como “criminosas”. res presas, observou-se que a atenção à saúde das
E embora fossem muitos os relatos de vivências crianças constitui uma das maiores fontes de in-
de humilhação durante a permanência no hos- satisfação das mães e de tensionamento com as
pital, para a maioria, a presença da escolta, que administrações penitenciárias.
expunha sua condição de prisioneira; o impedi- Como, de maneira geral, não há, diariamen-
mento de que a família estivesse presente; e a im- te, assistência pediátrica intramuros nem tam-
posição do uso de algemas (Leal encontrou que pouco durante a noite, as emergências de saúde
35,7% das mulheres referiram o uso de algemas das crianças requerem a ida a serviços de saúde
em algum momento da internação para o parto) extramuros. Diante desta situação, o pessoal da
foram referências marcantes na percepção de de- segurança tenta “avaliar” a “real necessidade” do
sigualdades de tratamento entre elas e as outras atendimento, o que não é aceito pelas mães. Te-
mulheres durante a permanência no hospital. merosas de que a demora no acesso ao serviço de
O uso de correntes e algemas, justificado pelo saúde possa acarretar o agravamento da situação
pessoal da segurança por se tratar de mulheres de saúde de seus filhos pressionam os funcioná-
sob custódia, não se sustenta legalmente, veja-se rios, o que dá lugar a conflitos e, em muitos casos,
a Súmula Vinculante Nº 11 do STF, que preconi- a procedimentos disciplinares contra elas.
za o “fundado receio de fuga” e a Resolução Nº 3, Em alguns casos, quando consegue levar
de 1º de junho de 2012, do CNPCP, que proíbe seu filho ao serviço de saúde extramuros, a mãe
o uso de algemas antes, durante e em seguida ao vai escoltada e algemada, ainda que isto signifi-
parto. Não se sustenta, menos ainda, do ponto de que risco de quedas para o bebê e humilhação
vista de uma prestação de saúde humanizada. O para ela. Em outros, as crianças são levadas por
uso de algemas, nestas situações, ignora a condi- agentes penitenciárias, enquanto as mães espe-
ção física, a fragilidade psíquica e emocional que, ram na prisão o retorno de seus filhos. Nos ca-
além da dor e do desconforto físico13, marcam, sos em que há necessidade de hospitalização das
de maneira geral, este momento da vida das mu- crianças, elas não podem permanecer no hospi-
lheres e o tornam muito pouco propício à fuga tal. São levadas uma ou duas vezes por dia para
ou à violência. A existência de estados onde não amamentar, quando os bebês ainda mamam. Na
foi referido uso de algemas ou os casos onde este avaliação das mães, de maneira geral, o tempo de
uso dependia da decisão da equipe de segurança permanência no hospital é insuficiente e implica
de plantão mostram claramente que, mais do que em constrangimentos para elas. Sentem que sua
um procedimento de segurança, trata-se de roti- preocupação com a saúde do filho e seu direito
na que garante interações com base no poder e na de cuidar e protegê-lo não é legitimado. Muitas
reiteração de identidades estigmatizadas. relatam ironias por parte da escolta quanto a seu
Esta situação deve ser alvo da reflexão dos interesse pela saúde do filho. Em outros casos, as
profissionais de saúde e dos gestores de políti- mães não conseguem ser levadas em momento
cas de saúde voltadas para esta população, pois algum e permanecem sem notícias de seus filhos
viola a dignidade destas mulheres e seus direitos ou dependem do pessoal da segurança, do ser-
à igualdade de tratamento e atenção humaniza- viço social ou da saúde para saberem sobre seu
da. Aponta ainda a importância de se garantir estado de saúde.
transporte seguro, presença de acompanhante Esta situação evidencia que nem todos os
e outras ações de humanização da atenção, sem hospitais exigem a presença da mãe ou de fami-
discriminações e preconceitos, reconhecendo as liar para acompanhamento da criança que fica
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