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Scientiarum Historia – UFRJ / HCTE

O experimento de Fizeau de 1851 e o éter luminífero


Roberto A. Pimentel Jr.1(FM/PG)
1
Colégio de Aplicação (CAp-UFRJ) rua J. J. Seabra, s/nº Lagoa. E-mail: betopimentel@cap.ufrj.br

Palavras Chave: história da Física, éter, velocidade da luz, Hippolyte Fizeau.

Introdução Considerando a situação em que um corpo


transparente encontra-se em movimento (em
relação à fonte de luz), cada uma das hipóteses faz
Graças à descoberta do fenômeno da interferência
asserções distintas para a velocidade com que a luz
luminosa, o início do século XIX reviveu o debate
se propaga no interior do material.
sobre a natureza da luz, levando paulatinamente à
aceitação do modelo ondulatório em detrimento da
No primeiro caso, uma vez que o movimento do
teoria da emissão (modelo corpuscular). A
corpo é compartilhado com o éter em seu interior, a
necessidade de imaginar um meio material – o éter
luz se propagaria com uma velocidade igual à da
luminífero – no qual a onda luminosa se propaga e a
velocidade de propagação da luz no éter em
multiplicidade de fenômenos de que ele precisava
repouso mais ou menos a velocidade do corpo,
dar conta obrigou os cientistas da época a uma série
dependendo se a luz se propaga no corpo no
complexa de considerações sobre a natureza deste
mesmo sentido ou no sentido oposto ao do
meio e sua relação com a matéria ordinária. Neste
movimento do corpo no espaço.
processo diversos modelos de éter surgiram. O
trabalho de Fizeau de 1851 constitui uma tentativa
No segundo caso, não sendo afetado pelo
de responder experimentalmente a questão de qual
movimento do corpo, o éter propagaria a onda
modelo de éter está correto. Os resultados por ele
luminosa com uma velocidade inalterada, isto é,
obtidos e seus pressupostos epistemológicos são
com a mesma velocidade que a luz exibe naquele
aqui discutidos.
meio em repouso.

Resultados e Discussão Finalmente, no terceiro caso, se uma parte do éter é


arrastada pelo movimento do corpo, a velocidade da
A par dos trabalhos de Fresnel, e, mais luz será aumentada (ou diminuída, dependendo do
proximamente a ele, Stokes, Doppler e Challis, entre sentido de propagação) de uma fração da
outros, Fizeau percebeu que as hipóteses sobre as velocidade do corpo no espaço.
propriedades do éter luminífero até então propostas
podiam ser agrupadas em três tipos, segundo a Utilizando métodos interferométricos, Fizeau foi
relação do éter com a matéria ordinária no interior capaz de propor um experimento para determinar a
de corpos transparentes. Nestas hipóteses ou bem variação do índice de refração, e, por conseguinte,
(1) o éter estaria como que fixo às moléculas dos da velocidade da luz, de um meio transparente,
corpos, e partilharia com eles de seu movimento; ou inicialmente em repouso e a seguir em movimento
bem (2) o éter é livre e independente, não sendo em relação ao observador.
afetado pelo movimento das moléculas dos corpos;
ou, finalmente, (3) uma parte do éter é livre e uma Muito embora reconheça que em geral os
parte como que fixa às moléculas dos corpos, esta a movimentos dos corpos se dão a velocidades muito
hipótese avançada por Fresnel em sua análise do pequenas em comparação com a velocidade com
problema da aberração estelar e de um experimento que a luz se propaga mesmo no interior de materiais
devido a Arago, e que deu origem ao coeficiente de densos, Fizeau afirma ser possível “submeter a uma
arrasto de Fresnel. prova decisiva” dois meios – o ar e a água – que,
“pela mobilidade de suas partes”, podem ser
Para Fizeau as hipóteses surgem necessariamente facilmente colocados em velocidades relativamente
da “ausência de noções certas” sobre as grandes.
propriedades do éter luminífero e de sua relação
com a matéria ponderável. Embora esteja inclinado O projeto de Fizeau para concretizar esta promessa
a admitir que uma ou outra hipótese seja mais ou se baseia num método interferométrico elaborado
menos provável, Fizeau admite que não há por Arago e Fresnel, a quem ele dá o crédito, e que
“nenhuma que possa ser considerada é suficientemente preciso para discernir diferenças
demonstrada”. sutis de índices de refração (por exemplo entre o ar
seco e o ar úmido).
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Fizeau realiza experimentos tanto com o ar quanto de múltiplos ímpares de meio comprimento de onda
com a água. No caso do ar os resultados são – interferência destrutiva (figura II).
inconclusivos, devido à pequena diferença entre os
índices de refração do ar e do vácuo, mas no caso Como as posições das franjas dependem
da água os resultados de Fizeau são bastante fundamentalmente da defasagem entre uma frente
conclusivos. de onda e outra ao se encontrarem naquela posição
específica, é fácil compreender como a velocidade
Na montagem com a água, Fizeau faz a luz do éter no interior da água afetará a posição das
percorrer dois tubos paralelos preenchidos franjas.
completamente com água. Os tubos estão
conectados de tal forma que a mesma água circula Caso de fato o éter seja arrastado junto com a água
em ambos, porém em sentidos opostos (figura I). em seu movimento, as franjas devem se deslocar
Repare que os feixes oriundos de A e B perfazem o (em relação à sua posição quando a água está em
mesmo percurso, porém em sentidos contrários: o repouso) em virtude do fato de que agora o feixe
feixe vindo da fenda A atravessa o tubo superior e a que percorre o trajeto no interior da água no mesmo
lente L2, sendo refletido pelo espelho M2 no foco de sentido do movimento da água (e, neste caso, do
L2. Ao reatravessar L2 o feixe é então introduzido no éter) leva menos tempo para alcançar a saída S’ do
tubo inferior, atravessando-o novamente contra o que a frente de onda que saiu ao mesmo tempo
fluxo de água. O contrário se dá com o feixe oriundo pela outra fenda e percorreu o trajeto no sentido
da fenda B, que ao longo de todo seu trajeto está a contrário ao do fluxo de água (e éter). Mais
favor do fluxo de água. importante, é possível calcular este deslocamento a
partir da medição da velocidade da água nos tubos.
Com este dispositivo engenhoso, Fizeau evita que
diferenças de pressão ou temperatura entre os dois Caso o éter não seja afetado pelo movimento da
tubos afetem a formação das franjas, uma vez que água, não deverá haver qualquer deslocamento na
agora elas agem igualmente em ambas as frentes posição das franjas.
de onda.
Finalmente, caso o éter seja parcialmente arrastado,
A lente L1 recombina os feixes em S’, ampliando a o deslocamento das franjas deverá acontecer, mas
intensidade das franjas, que são observadas através não será tão grande quanto no primeiro caso. Mais
de uma ocular que dispõe de uma retícula graduada importante, a lei do arrasto parcial de Fresnel
para permitir a medição de eventuais também permite calcular de quanto seria este
deslocamentos das franjas. deslocamento.

Figura I. Esquema simplificado da montagem


experimental de Fizeau.
Figura II. Padrão de franjas de interferência geradas
A montagem inclui ainda diversos detalhes por duas fendas retangulares. O deslocamento se
experimentais que concorrem para maximizar o dá para a esquerda ou para a direita dependendo do
efeito, descritos minuciosamente por Fizeau. fluxo de água se dar do tubo superior para o inferior
ou o contrário.
Com a água em repouso, a luz atravessa as duas
fendas de forma a produzir na recombinação da Realizando o experimento com o fluxo de água a
saída uma figura de interferência típica, em que as uma velocidade de 7,059 m/s, estimada pela vazão
franjas claras correspondem às posições nas quais do tubo, Fizeau encontrou um deslocamento das
as diferenças de percurso entre as frentes de onda franjas igual a 0,23016 da largura da franja, em
que percorreram os tubos num e noutro sentido são relação à água em repouso. Para maximizar o
de números inteiros de comprimentos de onda – efeito, Fizeau comparou os deslocamentos das
interferência construtiva –, e as franjas escuras franjas quando a água fluiu num e noutro sentido, o
correspondem às regiões onde estas diferenças são que evidentemente dobra o efeito: entre uma e outra
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situação o deslocamento foi, portanto, de 0,46 da considerar como a velocidade da luz na água em
largura de uma franja, isto é, praticamente metade, movimento a composição de velocidades da luz em
um valor perfeitamente mensurável. relação ao éter e do éter em relação ao observador.
Isto resultará em dois intervalos de tempo distintos
Os detalhes da análise de Fizeau sobre a incerteza para cada feixe.
de medição e os procedimentos experimentais são
uma leitura adorável. Em última instância a incerteza No caso do feixe que parte da fenda A e se move
é determinada, segundo Fizeau, pelo sistema de contrariamente ao fluxo de água, o intervalo de
injeção de ar no reservatório de água, que empurra tempo será
a mesma através dos tubos com uma velocidade
E
aproximadamente constante durante um período ∆ t'A =
muito curto, durante o qual o observador precisa v'− u
fazer a medição do deslocamento das franjas. Ele
admite que a montagem poderia ser modificada de enquanto no caso do feixe que parte da fenda B e
forma a comportar um sistema de fluxo contínuo de se move no mesmo sentido do fluxo de água o
água, mas tal modificação retardaria o trabalho intervalo de tempo será dado por
experimental, estendendo-o “até uma época do ano
onde as experiências que exigem o emprego da luz E
∆ t'A =
solar tornam-se quase inexeqüíveis”. Ainda assim, v'+ u
os desvios em relação à média dos valores medidos
por Fizeau são bastante pequenos em relação ao
valor medido, “o maior deles não passando de um A diferença de percurso Δ entre um e outro feixe
treze avos de franja”. pode ser calculada, portanto, a partir do percurso
equivalente no vácuo e das diferenças nos intervalos
O deslocamente (não-nulo) encontrado por Fizeau de tempo devidas ao movimento da água:
exclui automaticamente a hipótese de um éter
estacionário. Para compreender como o valor  v v 
∆ = v.∆ t ' A − v.∆ t 'B = E  − 
encontrado decide entre as duas outras hipóteses  v'− u v '+ u 
(arrasto parcial e movimento solidário), Fizeau
calcula o valor do deslocamento esperado em cada ou
caso.
u  v2 
∆ = 2 E  2 2 
Primeiramente ele mostra o que deveria se passar v  v' − u 
caso o movimento do éter fosse solidário ao da
água. Suponhamos que a luz percorra uma distância Como a velocidade u do fluxo da água é muito
total E dentro da água. Caso esta distância fosse menor do que a velocidade v da luz no vácuo (na
percorrida no vácuo (ou no ar, onde, para todos os razão 1:33.000.000), Fizeau desprezou o termo em
efeitos, a luz se propaga com aproximadamente a segunda ordem em (u/v), aproximando a diferença
mesma velocidade v que no vácuo), ela poderia ser de percurso para
expressa por
u v2 u
∆ = 2E 2
= 2E m2
E = v.∆ t v v' v
onde Δt representa o intervalo de tempo gasto pela m sendo o índice de refração da água (m = 1,33).
luz para percorrer a distância E.
Cada feixe atravessa uma distância E igual a duas
Na água em repouso, no entanto, o intervalo de vezes o comprimento dos tubos (L = 1,4875 m),
tempo gasto no mesmo percurso E é dilatado em portanto, ao fazer o cálculo Fizeau obtém
função da velocidade v’ na água ser menor do que
v: Δ = 0,0002418 mm
E
E = v '.∆ t ' ⇔ ∆ t ' = Dividindo este número pelo comprimento de onda da
v' luz utilizada (raia E do espectro solar → λ =
0,000526 mm), Fizeau encontra o deslocamento
Se fazemos agora a água se mover com uma esperado das franjas na hipótese do éter se
velocidade u e consideramos que o éter participa deslocar solidário à água:
deste movimento, os tempos de percurso serão
diferentes no caso em que a luz percorre a água no ∆
mesmo sentido do movimento da água e no caso = 0,4597
λ
em que a luz percorre a água no sentido contrário
ao do movimento da água, pois agora é preciso
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Ora, mas os resultados encontrados Procedendo a simplificações semelhantes às feitas
experimentalmente (0,23) equivalem a apenas nos cálculos anteriores, temos
metade deste valor. Logo, a hipótese do éter
solidário à matéria ordinária também está em  
 
desacordo com os resultados experimentais.
u v 2 − v' 2 
∆ = 2E  
Resta comparar os resultados experimentais com as v  2 2  v 2 − v' 2 2
 
 v' − u  
previsões feitas pela hipótese do arrasto parcial de
2 
Fresnel, o que Fizeau também faz didaticamente.
  v  
Para esta hipótese, admite-se, de acordo com Novamente desprezando os termos em u2 ficamos
Fresnel, que a mudança de velocidade da luz ao
passar de um meio transparente a outro se dá u  v 2 − v' 2  u  v2 
porque o éter apresenta uma densidade diferente ∆ = 2 E   = 2 E  2 − 1
em cada um dos meios, sendo mais denso nos v  v' 2  v  v' 
corpos materiais que no vácuo. Para dois meios de
mesma elasticidade e que não diferem senão por apenas com
suas densidades, Fresnel supõe que os quadrados
das velocidades de propagação da luz estão na
razão inversa de suas densidades:

D' v 2
=
D v' 2
∆ = 2E
v
(
u 2
m −1 )
Mais que isso, a hipótese de Fresnel admite que a
parte do éter que é arrastada junto à matéria onde m é o índice de refração absoluto do meio e
ordinária quando esta é posta em movimento (m2 – 1) é o chamado coeficiente de arrasto de
corresponde precisamente ao “excesso” de Fresnel.
densidade de éter em relação à densidade do éter
no vácuo, isto é, a Fazendo as contas para a mesma iluminação,
calcula-se
v 2 − v' 2
D '− D = D.
v' 2 Δ = 0,00010634 mm
e
Coloca-se agora um problema: como determinar a ∆
velocidade de propagação das ondas luminosas em = 0,2022
um meio constituído de uma parte em movimento e λ
uma parte imóvel? Supondo que o movimento se dá
no mesmo sentido da propagação da onda, Fresnel Comparando com o resultado experimental de 0,23,
considera a velocidade que adquire o centro de Fizeau conclui que os resultados estão, portanto,
gravidade do sistema. Sendo u a velocidade da consistentes com a terceira hipótese, corroborando
matéria ordinária, a velocidade do centro de a lei do arrasto parcial de Fresnel. Mesmo a
gravidade do éter em seu interior será pequena diferença pode ser atribuída a um efeito de
viscosidade da água, bem compreendido por
D '− D v 2 − v' 2 Fizeau.
u. = u.
D' v' 2 Retornando ao experimento com o ar e realizando
Isto corresponde, portanto, ao quanto a velocidade uma análise semelhante à desenvolvida no caso da
de propagação das ondas na água em movimento água, Fizeau mostra matematicamente que na
deve ser aumentada ou diminuída. Isto é, a hipótese do éter mover-se solidário ao ar, o efeito
diferença de percurso no caso específico do deveria ser suficientemente grande para causar um
experimento de Fizeau é dada por deslocamento de franjas mensurável pela
montagem, enquanto que na hipótese do arrasto
  parcial de Fresnel este deslocamento seria da
 
ordem de dois décimos de milésimos da largura da
 v v 
∆ = E −  franja, portanto muito pequeno para ser medido pelo
 v '− u  v − v '   v 2 − v' 2 
2 2
 sistema.
 v2  v '+ u  
 2 
    v   Apesar da maestria experimental de Fizeau e dos
resultados inquestionáveis, ele não é capaz de
defender inequivocamente o modelo de Fresnel para
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o éter, talvez em virtude da permanência de uma admitir (como verdadeira) que seria forçoso exigir
imagem mecânica de éter cujo funcionamento – outras provas ainda e um exame aprofundado da
“mecanismo” – fosse mais claro. Tal dificuldade parte dos geômetras, antes de adotá-la como uma
conceitual se verá presente mesmo nos trabalhos expressão da realidade das coisas”. Será
de cientistas muito posteriores, até a primeira necessária a reformulação conceitual da Teoria da
metade do século XX. Apesar dos esforços de Relatividade para livrar o pensamento científico da
Fresnel e outros pesquisadores para elaborar uma necessidade de um éter luminífero e contextualizar o
explicação de por que apenas uma parte do éter é coeficiente de arrasto de Fresnel como uma
arrastada, de acordo com o coeficiente de arrasto, implicação da adição de velocidades relativística,
não foi possível resolver todos os problemas que nele já estava implícita.
decorrentes das conjecturas necessárias.
____________________

Conclusões 1
Fizeau, H. Sur les Hypothèses Relatives à l'Éther
Lumineux, Annalles de Chimie et de Physique, 3e
Fizeau propõe originalmente seu experimento como
série, t. LVII, p. 385-403. Paris: Académie des
um experimentum crucis, destinado a decidir qual Sciences. 1859.
hipótese a respeito da natureza do éter e de sua 2
Newburgh, R. Fresnel Drag and the Principle of
relação com a matéria ordinária está de acordo com Relativity, Isis, nº , p.379-386, Notes &
a forma como a luz se propaga em meios materiais Correspondence, 1974.
transparentes em movimento relativo. O resultado é 3
Camel, T. de O. Entre o Discreto e o Contínuo: os
inequivocamente favorável à hipótese do arrasto Átomos de Éter. Tese – Universidade Federal do Rio
parcial de Fresnel, porém Fizeau admite achá-la “tão de Janeiro, COPPE. Rio de Janeiro: 2000.
extraordinária e sob qualquer aspecto tão difícil a

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