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OPINIÃO
Isabel Rebelo Roque*
Girafas, mariposas e
anacronismos didáticos
Ao tratar da evolução das espécies, naturalista e evolucionista que, segundo Lamarck, os ances-
– ou deixa de divulgar
* A autora, graduada em letras e medicina veterinária,
– seus estudos e conclusões. é editora de livros didáticos (Editora Ática)
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OPINIÃO
Tentando achar
o fio da meada
O estranho caminho seguido pe- A velha história do pescoço esticado [das girafas]
lo exemplo do pescoço da girafa,
de mero parágrafo a ‘carro-chefe’ perpetuou-se talvez porque adoremos
da teoria lamarckiana, foi deta-
lhado pelo paleontólogo e divul- uma linda história, ainda que falsa, e talvez
gador da ciência Stephen Jay
Gould (1941-2002) no ensaio ‘The porque não estejamos habituados a questionar
tallest tale’ (alusão à expressão
tall tale, história cujos detalhes
são difíceis de engolir), publica-
pretensas autoridades – no caso, a dos livros
do originalmente na Natural
History Magazine (p. 18, maio de
1996). Nele, Gould tenta retomar ‘torre de observação’, para vigiar vado para baixo. Tudo isso, afir-
o fio da meada. Observa que, na a aproximação de predadores, por mam, sugere que o tamanho do
Philosophie zoologique, o pará- exemplo. Esses dois usos já repre- pescoço não teria evoluído espe-
grafo sobre as girafas aparece em sentam, segundo os cientistas, fa- cificamente devido à busca de ali-
um capítulo onde estão muitos tores relevantes para a importân- mento em pontos mais elevados.
outros exemplos a que Lamarck cia do comprimento do pescoço. Para refutar a objeção de que a
possivelmente atribuiu maior im- Darwin, aliás, os cita no capítulo competição entre machos não
portância. citado, ao afirmar que “a preser- explicaria por que as fêmeas têm
Quanto a Darwin, a primeira vação de cada espécie raramente pescoços longos, Simmons e
edição do seu A origem das espé- é determinada por apenas uma Scheepers argumentam que isso
cies (1859) não faz qualquer men- vantagem, mas pela associação de resultaria da correlação genética
ção ao pescoço da girafa, mas à todas elas, grandes e pequenas”. entre os sexos, e que outras espé-
sua cauda! Gould especula que o Gould fecha seu ensaio explican- cies exibem correlações simila-
pescoço da girafa teria assumido do que a velha história do pesco- res. Ou seja, o pescoço longo das
importância graças ao naturalis- ço esticado perpetuou-se talvez fêmeas teria vindo como uma es-
ta inglês Saint George Mivart porque adoremos uma linda his- pécie de ‘brinde’.
(1827-1900), que, em crítica ao tória, ainda que falsa, e talvez
darwinismo publicada em 1871 porque não estejamos habituados Muito barulho por nada? As teorias
(The genesis of species), usou esse a questionar pretensas autorida- Afinal, qual é a importância de sobre a
exemplo em sua argumentação. des – no caso, a dos livros. tudo isso? O lamarckismo já não evolução
Em reação ao ataque de Mivart, Ainda em 1996, os zoólogos foi derrubado? Sim, é um fato. do pescoço
das girafas
Darwin acrescentou à sexta e úl- Robert Simmons e Lue Scheepers Acontece que não se trata apenas ganharam
tima edição de A origem das es- publicaram o artigo ‘Winning by de preservar a memória de um um destaque
pécies (1872) um capítulo em que a neck: sexual selection in the cientista. exagerado
discorre sobre o assunto. Assim a evolution of giraffe’ (‘Vencendo
história ganhou os livros escola- por um pescoço: seleção sexual
res – e em muitos deles ainda é na evolução da girafa’) na Ameri-
mantida. can Naturalist (148, p. 771). Se-
Outros dados, resultantes da gundo eles, as girafas, na estação
observação de girafas em seu seca, alimentam-se dos arbustos.
hábitat (as savanas africanas), aju- É na estação das chuvas, quando
dam a derrubar o ‘conto’ das fo- não se espera competição, que se
lhinhas mais altas em tempos de voltam para o alto das acácias. Ob-
escassez. Na verdade, a importân- servaram ainda que as fêmeas
cia do tamanho e da robustez do passam metade de seu tempo ali-
pescoço desses animais reside em mentando-se com o pescoço em
outras áreas. Entre os machos, o posição horizontal (comporta-
pescoço é uma ‘arma’ de domina- mento tão típico que permite
ção e uma garantia da preferên- identificar o sexo do animal a dis-
cia das fêmeas, sendo usado em tância). Além disso, ambos os se-
duelos às vezes fatais. As girafas xos alimentam-se com maior fre-
também usam o pescoço como qüência mantendo o pescoço cur-
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OPINIÃO
tamente como foram descritos.
Houve um ‘empurrãozinho’, pois
as mariposas não estavam vivas: A ciência não tem de ser ensinada como a arte
foram coladas aos troncos. O se-
gundo é que o comportamento das do ‘jeitinho’, mas como um campo
mariposas Biston na natureza não
se encaixa tão perfeitamente no do conhecimento sujeito a falhas,
modelo descrito. O terceiro é que
a relação predomínio de uma cor/ aperfeiçoamentos e inesperadas complexidades
grau de poluição do ar não se
manteve como o esperado.
O livro de Hooper não é o pri-
diante do que parecia simples e ‘didático’
meiro a ‘devassar’ o caso Kettle-
well. Há cinco anos, por exem-
plo, Michael Majerus fez o mes-
mo em Melanism: evolution in mento e depois a redução de ma- exemplo das mariposas para fins
action (Melanismo: evolução em riposas escuras também ocor- didáticos está longe de uma solu-
ação). Em resenha sobre esse li- reram em áreas industriais dos ção fácil. O biólogo evolucionário
vro, publicada na revista Nature Estados Unidos, onde, porém, não David Rudge, da Universidade
(396, p. 35, 1998), Jerry Coyne, houve alteração na incidência Western Michigan, escreveu que
do Departamento de Ecologia e de líquens – é o que relativiza manter a história no espaço esco-
Evolução da Universidade de Chi- bastante o papel destes na histó- lar teria inúmeras vantagens. En-
cago, compara a decepção diante ria toda. quanto Coyne diz que suas con-
da verdade sobre os experimen- Em resenha sobre o livro de tradições inviabilizam o uso pe-
tos de Kettlewell ao que sentiu Hooper no The New York Times dagógico, Rudge acredita que ela
quando criança ao saber que Pa- (18 de junho de 2002), o editor de constitui excelente veículo para
pai Noel não existia. ciência Nicholas Wade compara apresentar a estudantes o concei-
Segundo Coyne, o livro de o ‘empurrão’ de Kettlewell a uma to de seleção natural. Para ele,
Majerus é o primeiro a reunir os ‘piada’ do grupo inglês Monty expor as discrepâncias envol-
pontos criticáveis no trabalho de Python: as mariposas, mortas, não vidas no assunto permitiria mos-
Kettlewell. O mais grave é que as passavam de ex-mariposas. trar a natureza da ciência como
mariposas Biston, em condições processo.
naturais, provavelmente não re- E agora: descartar Novamente, trata-se de uma
pousam sobre troncos – em mais ou não o exemplo? questão delicada, na qual estão
de 40 anos de estudos sobre seus Majerus, em seu livro, admite as em jogo aspectos como corpo-
hábitos, apenas duas foram vistas inúmeras falhas do modelo, mas rativismo da comunidade cientí-
fazendo isso. O local preferido ainda assim o considera didati- fica, necessidade de controle, ma-
continua um mistério, mas acre- camente útil. Jerry Coyne, entre- nipulação, de um lado, e desin-
dita-se que seja o alto das copas tanto, pondera que esse não é o formação, de outro. Como no
das árvores. Só isso, afirma Coyne, melhor exemplo a ser usado em exemplo da girafa – perfeito, di-
invalidaria os experimentos, já que sala de aula, devido a seus pontos dático, mas falso –, recorrer às
colocar as mariposas sobre os tron- fracos. Essa posição fez de Coyne, mariposas de Manchester é ten-
cos as tornaria altamente visíveis, à sua revelia, uma ‘arma’ dos cria- tador: permite trabalhar, de mo-
o que aumentaria artificialmente cionistas contra a teoria da evolu- do simples, conceitos complexos
a predação. Além disso, Kettlewell ção. Ele sugere como mais apro- como evolução e seleção natural.
expôs as mariposas durante o dia, priado o trabalho mais recente dos Mas insistir neles é falsear infor-
quando em geral elas escolhem lo- ecólogos Peter e Rosemary Grant mações e, de quebra, passar a alu-
cais de repouso à noite. sobre a evolução do bico dos nos e professores uma idéia dog-
Mas outro fator compromete a tentilhões das ilhas Galápagos – mática e nem um pouco ética da
história: na verdade, o novo au- tema de um livro de leitura fácil ciência. A ciência não tem de ser
mento na proporção da varieda- e agradável, já traduzido para o ensinada como a arte do ‘jeitinho’,
de clara ocorreu bem antes da português: O bico do tentilhão: mas como um campo do conheci-
recolonização dos troncos pelos uma história da evolução no nos- mento sujeito a falhas, aperfei-
líquens (que supostamente fa- so tempo (Rocco, 1995), do jorna- çoamentos e inesperadas comple-
voreceriam a camuflagem das lista Jonathan Weiner. xidades diante do que parecia
mariposas claras). E mais: o au- O debate sobre usar ou não o simples e ‘didático’. ■