Você está na página 1de 13

ARNALDO ANTUNES

1
Podemos dizer que um poema sem título é como uma viagem
sem bússola rumo ao desconhecido. O poema selecionado está
em seu terceiro livro, TUDOS de 1990, não possui título, o que
já é suficiente para inseri-lo no paradigma da poesia moderna,
como afirma Mallarmé:

"Nomear um objeto é suprimir três quartos de fruição do poema


que consiste em pouco a pouco desvendar: sugeri-lo, eis o
sonho."

Pensamento vem de fora


e pensa que vem de dentro,
pensamento que expectora
o que no meu peito penso.
Pensamento a mil por hora,
tormento a todo momento.
Por que é que eu penso agora
sem o meu consentimento?
Se tudo que comemora
tem o seu impedimento,
se tudo aquilo que chora
cresce com o seu fermento;
pensamento, dê o fora,
saia do meu pensamento.
Pensamento, vá embora,
desapareça no vento.
E não jogarei sementes
em cima do seu cimento.

Arnaldo Antunes
Poema anteriormente publicado na revista 34Letras nº 1, setembro, 1988,
pag. 33.

2
As coisas
Arnaldo Antunes

As coisas têm peso,


massa,
volume,
tamanho,
tempo,
forma,
cor,
posição,
textura,
duração,
densidade,
cheiro,
valor,
consistência,
profundidade,
contorno,
temperatura,
função,
aprência,
preço,
destino,
idade,
sentido.
As coisas não têm paz.

3
Onde estavas, lugar?
Arnaldo Antunes

onde estavas, lugar?


em que chão, em que ar?
onde fostes depois de me abandonar?

onde estavas, manhã?


em que céu, em que mar?
onde fostes depois de me apaixonar?

por que veio se foi


para ir, por que foi
que você me deixou tão sozinho?

por que não demorou


mais um um pouco e deixou
que eu achasse de novo o caminho?

não devias partir


como podes partir?
por que não duraste a vida inteira?

se apenas em ti
alegria senti
ao mirar tua luz derradeira

4
Eu apresento a página branca.

Arnaldo Antunes

Contra:

Burocratas travestidos de poetas


Sem-graças travestidos de sérios
Anões travestidos de crianças
Complacentes travestidos de justos
Jingles travestidos de rock
Estórias travestidas de cinema
Chatos travestidos de coitados
Passivos travestidos de pacatos
Medo travestido de senso
Censores travestidos de sensores
Palavras travestidas de sentido
Palavras caladas travestidas de silêncio
Obscuros travestidos de complexos
Bois travestidos de touros
Fraquezas travestidas de virtudes
Bagaços travestidos de polpa
Bagos travestidos de cérebros
Celas travestidas de lares
Paisanas travestidos de drogados
Lobos travestidos de cordeiros
Pedantes travestidos de cultos
Egos travestidos de eros
Lerdos travestidos de zen
Burrice travestida de citações
água travestida de chuva

5
aquário travestido de tevê
água travestida de vinho
água solta apagando o afago do fogo
água mole sem pedra dura
água parada onde estagnam os impulsos
água que turva as lentes e enferruja as lâminas
água morna do bom gosto, do bom senso e das boas
intenções
insípida, amorfa, inodora, incolor
água que o comerciante esperto coloca na garrafa para diluir o
whisky
água onde não há seca
água onde não há sede
água em abundância
água em excesso
água em palavras.

Eu apresento a página branca.

A árvore sem sementes.

O vidro sem nada na frente.

Contra a água.

6
O Buraco do Espelho
Arnaldo Antunes

o buraco do espelho está fechado

agora eu tenho que ficar aqui

com um olho aberto, outro acordado

no lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acesso

mesmo que me chamem pelo nome

mesmo que admitam meu regresso

toda vez que eu vou a porta some

a janela some na parede

a palavra de água se dissolve

na palavra sede, a boca cede

antes de falar, e não se ouve

já tentei dormir a noite inteira

quatro, cinco, seis da madrugada

vou ficar ali nessa cadeira

uma orelha alerta, outra ligada

7
o buraco do espelho está fechado

agora eu tenho que ficar agora

fui pelo abandono abandonado

aqui dentro do lado de fora

Os Peitos
Arnaldo Antunes

Mulheres

têm dois

peitos. Os

homens têm

um peito só.

as coisas
Arnaldo Antunes

O que

(se) foi

é (s)ido.

(Arnaldo Antunes in "as coisas" Ed. Iluminuras 1993)

8
Agora
Arnaldo Antunes

Debaixo d'água tudo era mais bonito


Mais azul, mais colorido
Só faltava respirar
Mas tinha que respirar

Debaixo d'água se formando como um feto


Sereno, confortável, amado, completo
Sem chão, sem teto, sem contato com o ar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Todo dia, todo dia

Debaixo d'água por encanto sem sorriso e sem pranto


Sem lamento e sem saber o quanto
Esse momento poderia durar
Mas tinha que respirar

Debaixo d'água ficaria para sempre, ficaria contente


Longe de toda gente, para sempre no fundo do mar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
todo dia
Todo dia, todo dia

9
Debaixo d'água, protegido, salvo, fora de perigo
Aliviado, sem perdão e sem pecado
Sem fome, sem frio, sem medo, sem vontade de voltar
Mas tinha que respirar

Debaixo d'água tudo era mais bonito


Mais azul, mais colorido
Só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Todo dia

Agora que agora é nunca


Agora posso recuar
Agora sinto minha tumba
Agora o peito a retumbar
Agora a última resposta
Agora quartos de hospitais
Agora abrem uma porta
Agora não se chora mais
Agora a chuva evapora
Agora ainda não choveu
Agora tenho mais memória
Agora tenho o que foi meu
Agora passa a paisagem
Agora não me despedi
Agora compro uma passagem
Agora ainda estou aqui
Agora sinto muita sede
Agora já é madrugada
Agora diante da parede
Agora falta uma palavra

10
Agora o vento no cabelo
Agora toda minha roupa
Agora volta pro novelo
Agora a língua em minha boca
Agora meu avô já vive
Agora meu filho nasceu
Agora o filho que não tive
Agora a criança sou eu
Agora sinto um gosto doce
Agora vejo a cor azul
Agora a mão de quem me trouxe
Agora é só meu corpo nu
Agora eu nasco lá de fora
Agora minha mãe é o ar
Agora eu vivo na barriga
Agora eu brigo pra voltar
Agora
Agora
Agora

Cultura
Arnaldo Antunes

O girino é o peixinho do sapo.

O silêncio é o começo do papo.

O bigode é a antena do gato.

O cavalo é o pasto do carrapato.

O cabrito é o cordeiro da cabra.

11
O pescoço é a barriga da cobra.

O leitão é um porquinho mais novo.

A galinha é um pouquinho do ovo.

O desejo é o começo do corpo.

Engordar é tarefa do porco.

A cegonha é a girafa do ganso.

O cachorro é um lobo mais manso.

O escuro é a metade da zebra.

As raízes são as veias da seiva.

O camelo é um cavalo sem sede.

Tartaruga por dentro é parede.

O potrinho é o bezerro da égua.

A batalha é o começo da trégua.

Papagaio é um dragão miniatura.

Bactéria num meio é cultura.

Estamos Sob o Mesmo Teto


Arnaldo Antunes

estamos sob o mesmo teto

secreto

onde o sol indesejável é barrado

eu e você

12
sob o mesmo nós

dois, sóis

sob o mesmo pôr

(o enigma do amor)

do sol

onde todo contorno finda

estamos

sob a mesma pálpebra

agora

já e ainda

intactos de aurora.

Protegido pela Lei do Direito Autoral


LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja
alterado, modificado e que as
informações sejam mantidas.

13

Você também pode gostar