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SUBJETIVIDADE EM DEVIR: UM OLHAR GESTÁLTICO 1

Fabio Henrique Medeiros Bogo 2

Introdução

A presente argüição se propõe a apontar caminhos para elucidar a constituição


da subjetividade como processo contínuo, sua natureza de coparticipação em uma
comunidade de sentidos e afetos, sua tradução concreta no corpo e sua obstrução na
neurose, a partir do referencial teórico da gestalt-terapia – em diálogo com a clínica
esquizoanalítica – e sob o ponto de vista da base fenomenológica que a sustenta, em
particular pelos olhos de Maurice Merleau-Ponty. Por fim, são apresentados alguns
caminhos para a intervenção clínica a partir deste paradigma de subjetividade
transitória.

Palavras-chave: Gestalt-terapia, fenomenologia, self, esquizoanálise, subjetividade.

1
Artigo originalmente escrito como trabalho de conclusão do curso de Especialização em
Gestalt-terapia no Instituto Granzotto de Florianópolis, em agosto de 2014.
2
Psicólogo mestrando em Filosofia pela UFSC;
Awareness e Personalidade

Assim inicia a história de Tereza, uma das quatro protagonistas da obra mais
conhecida de Milan Kundera:

“Depois que o homem aprendeu a dar nome a todas as partes de seu corpo,
esse corpo o inquieta menos. Atualmente, cada um de nós sabe que a alma
nada mais é que a atividade da matéria cinzenta do cérebro. A dualidade da
alma e do corpo estava dissimulada por termos científicos; hoje, isso é um
preconceito fora de moda que só nos faz rir.
Mas basta amar loucamente e ouvir o ruído dos intestinos para que a unidade
da alma e do corpo, ilusão lírica da era científica, imediatamente se desfaça.”

(Milan Kundera, em “A Insustentável Leveza do Ser”)

Tereza, diante do espelho, tentava aflitiva e sistematicamente ver a si própria e


frustrava-se ao ver apenas mais um corpo indiferenciado, sem nada que a concedesse
singularidade, e isso quando não sofria revés pior e enxergava inadvertidamente traços
da mãe no rosto. Foi preciso viajar através da Checoslováquia para encontrar uma
fagulha de esperança identitária nos braços de Tomás, eterno libertino que quebrou a
própria promessa de fidelidade à solteirice e com ela casou-se – mas nem mesmo ele
pôde concedê-la tal dádiva, já que logo fraquejava e procurava com certa culpa as várias
amantes. A relação de Tereza com seu próprio corpo pode não ser a mais pacífica, mas
seu caso está longe de ser o único; de fato, esta personagem é tão poderosa porque seu
dilema encontra uma reverberação pungente na biografia personalística de tantos de
seus leitores. Há em cada um de nós algo de Tereza, e a proposta deste artigo é apontar
caminhos para elucidar que “algo” é esse, a partir do referencial teórico da gestalt-
terapia – em diálogo com demais contribuições – e sob o ponto de vista da base
fenomenológica que a sustenta.

O estar-no-mundo ganha novas cores na lente da fenomenologia. Sua grande


contribuição foi a sensibilidade em mostrar, como Merleau-Ponty (1999) nos mostrou,
que não limitamos nossa percepção do Lebenswelt ao que os sentidos captam
empiricamente: “cada objeto é o espelho de todos os outros” (p.105), isto é, a
apropriação sensorial de uma figura qualquer evidencia algo das demais figuras
coexistentes que o circundam no momento presente, ao mesmo tempo em que remete a
todo um fundo de vividos, interações pregressas com aquele objeto e eventos dos quais
ele participasse. Seu reconhecimento, deste modo, vem imediatamente atrelado à
memória de dados associados. Olhar repentinamente para uma cadeira incita em mim
uma vontade de nela sentar, ainda antes que eu consiga tecer uma elucubração
conceitual: “esta é uma cadeira antiga, de madeira envernizada, serve para sentar e está
em boas condições”.

Tal lógica pode ser generalizada ao limite da compreensão do estar-no-mundo,


de tal modo que chegamos a uma ideia do que é ser em fenomenologia: nem a soma dos
juízos positivos que empreendemos no ideal romântico, nem a soma dos juízos
negativos, e nem tampouco uma coexistência oximórica de ambos a priori, mas
simplesmente o primado da experiência, “antes de toda opinião, de habitar o mundo por
3
nosso corpo, de habitar a verdade por nós mesmos integralmente” (MERLEAU-
PONTY, 1968).

O objeto-figura destaca-se do fundo e assim consigo dedicar a ele minha


atenção, mas para tanto é indispensável a existência de ambos em harmoniosa sincronia,
o que equivale a dizer que não há a emergência de uma figura sem o fundo que a
sustente. A natureza kairótica do fundo garante à figura uma certa eternidade no espaço
e no tempo, ao menos pela duração daquele “agora”, quase como o infinito subsumido
num instante. E é a partir deste preceito epistemológico sobre a natureza das coisas que
se constrói a gestalt-terapia como emprego estratégico da fenomenologia no exercício
psicológico; remete-se aqui, em suma, a uma psicologia do awareness.

PHG atribuem não apenas à gestalt-terapia, mas à própria psicologia a função de


operação da fronteira de contato no campo organismo/ambiente. Sejam os conceitos e
terminologias abandonados e fiquem os fenômenos aos quais eles se referem: de fato a
psicologia se encarrega da relação dos sujeitos uns com os outros, e com o mundo
natural. De todo modo, à diferença das perspectivas estruturalistas, a gestalt-terapia não
funda sua ontologia sobre a fixação identitária de um ego circunscrito em si próprio. O
“eu reconhecível” – personalidade – da gestalt-terapia não é uma instância estática que,
tendo atingido a maturação, cessa de transformar-se, quando muito expande aqui e ali, e
que atua como mera depositária das experiências que se vive e assimila. Ao contrário,
trata-se de uma instância intermitente em constante atualização de modo a ser jamais a
mesma. A personalidade é aqui, portanto, tomada como função.

3
Tradução do autor a partir do inglês.
Esta função de individuação ontológica, ou função Personalidade, é movida
pelas águas do rio de Heráclito, aquelas que seguem dia após dia um curso semelhante –
permitindo a um observador constatar que ainda se trata do mesmo rio – sem jamais
permanecer exatamente idêntico em dois momentos seguidos; ela opera dinamicamente
pela coadunação de um sem-número de objetos de realidade com os quais o sujeito se
identifica: um emprego, a preferência por praia ou montanha, a apreciação por um
artista, uma nacionalidade, um hobby...

Embora a noção tradicional de uma estrutura personalística venha a ser


ressignificada sob a forma de um projeto de individuação fluida e em constante
atividade, este novo construto está longe de contemplar a integridade do estar-no-mundo
de um organismo. Falar de um eu-mesmo – ou self – na constelação da gestalt-terapia é
falar de um sistema de funções de contato do presente transiente concreto, um fluxo de
awareness (por vezes traduzida como “dar-se conta”). A função Personalidade não é
senão o parágrafo final de uma declaração ontológica extensa: é a dimensão mais
facilmente acessível e comunicável do sistema self, não só para outrem como para o
próprio organismo, simplesmente porque se fundamenta na awareness reflexiva da
dinâmica excitamento – função de ato. Self é uma agência de crescimento por meio do
contato; portanto, se é de fato necessário atribuir-lhe uma localização tópica para
compreensibilizá-lo, não localizar-se-á este sistema no interior intimista do sujeito mas
na sua fronteira de contato com o mundo externo, pertencendo a ambos, ambiente e
organismo (PHG, p.179). E não poderia ser diferente, sabendo-se que o que fazemos
durante todo o percurso da vida é experimentar eventos no ambiente externo e participar
deles doando-lhes o efeito em nosso próprio corpo.

A própria construção do conhecimento de si implica necessariamente a


participação em uma comunidade de sentido, e ao fazê-lo esbarra na fronteira de contato
de outrem. Por meio do escambo de signos e da valoração que cada um atribui às coisas,
a comunicação se faz intersubjetivante, ou seja, produtora mútua de subjetividade na
assimilação do ato linguajeiro de um como fundo do outro. Para Merleau-Ponty (1999),
existe uma “retomada do pensamento do outro através da fala, uma reflexão no outro,
um poder de pensar segundo o outro que enriquece nossos pensamentos próprios”
(p.243) e em última instância liquefaz a fronteira do ego tornando o outro uma extensão
de mim mesmo.
Tão conciliados estão o “interno” e o “externo” no entrelaçar do sistema self que
a própria dicotomia entre sujeito e ambiente é repudiada por PHG, bem como outras
polaridades equívocas que, em última instância, compartilham a mesma raiz do
mentalismo de Descartes e outros da primeira geração de pensadores modernos. Em
meio a tantos avanços nas ciências biológicas e sociais cujas contribuições apontam no
sentido de uma trama complexa de interações entre corpos afetando-se mutuamente, há
algum tempo já não é mais necessária a noção de um corpo físico como oposto à mente,
ou mesmo uma visão de mundo simplista de natureza versus cultura.
Subjetividade Maquínica e Ritornelo

O delinear do sistema self de PHG nesse sentido se aproxima de outras


abordagens contraestruturalistas originárias da escola de Frankfurt, ainda que talvez sem
assumir uma rejeição tão absoluta da identidade singular como faz a esquizoanálise, por
exemplo. Na perspectiva caosmótica de Félix Guatarri (1992), a subjetividade é
construída e atravessada por interpolações de intensidades não-discursivas em uma
trama hipercomplexa; nem mesmo se trata de um sistema self, mas de um processo de
singularização e acesso a “Universos de referência” políticos, culturais, religiosos etc.,
desfocando o olhar centralizado na subjetividade do indivíduo e passando a considerar
em escopo processos supra-humanos de subjetivação.

Nesse sentido, fala-se em uma produção maquínica de subjetividade, não sem


antes ampliar o conceito usual de máquina para o de um dispositivo abstrato capaz de
engendrar a criação de novas significações e denotações a significantes quaisquer.
Embora este usualmente associado a um sentido completamente distinto, o termo
“máquina” aqui se aproxima das perspectivas vitalistas, paralelizando-a com as
máquinas biológicas – ou organismos – e podendo desta feita atribuir a elas o caráter de
autopoiese: mantendo constantemente a si mesmas sem jamais manterem-se as mesmas.
Ao mesmo tempo, são máquinas desejante, produtoras de desejo – e, consequentemente,
de subjetividade – transversalmente reconhecível nas diferentes dimensões da
existência. O agenciamento maquínico de subjetivação põe estas dimensões em relação
entre si; faz deles dispositivos de autoafirmação ontológica (GUATARRI, ibidem).

Tais dispositivos são Equipamentos Coletivos de diversas ordens, semiologias


culturais mass-mediática da arte, da educação, dos costumes, das famílias, e em especial
da religião; a ação destes e de outros artifícios de preenchimento de sentido pode tanto
seguir uma tendência homogeneizante – o embrutecimento do “somos todos diferentes”,
que não faz senão tornar todos iguais em sua peculiaridade de estimação – quanto outra
tendência heterogenética, de reforço da singularização de seus componentes. Sem se
desterritorializar por inteiro do Universo de referência da Gestalt-terapia, ambos os
esforços alcançam à primeira vista um resultado semelhante: a produção de objetos de
identificação com os quais a função Personalidade irá operar. A diferença é que no
primeiro caso este objeto é de fato um introjeto esvaziado de sentido que prescreve uma
personalidade inflexível e oca: o texto de uma “fala falada”, e não da fala como
dimensão imediatamente concreta do pensamento, “existência exterior do sentido”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p.247).

Salvaguardadas as diferenças, há alguns pontos comuns a serem identificados


em ambos os discursos acima confrontados, a começar por ambos terem como porta-
vozes psicanalistas dissidentes que a tomam como ponto de partida da crítica que tecem
– mas até aí, não estão tão distintos de um Reich, Jung, Adler, Maslow ou tantos outros
cuja apropriação da psicanálise serviu para desmontá-la. Boa parte deles, no entanto,
mostrou-se incapaz de (ou mesmo pouco propenso a) livrar-se da rusga estruturalista da
tradição psicanalítica, onde a subjetividade se constrói topicamente e permite como
dinâmica apenas uma sorte de interação entre seus componentes. Perls teve trabalho em
dobro ao assumir este fardo, rejeitando-o em favor da assunção de uma teoria
eminentemente funcional, como se sabe, e somá-lo ainda a outro: o de distinguir-se da
psicologia da Gestalt de Wertheimer, Köhler e Koffka do início do século, já que a
herança encontrada na gestalt-terapia – ao menos do livro homônimo em diante – é,
com efeito, uma apropriação indireta, muito mais fundamentada nas derivações de
Goldstein e Kurt Lewin.

Há, não obstante, aproximações mais substanciais entre as clínicas gestáltica e


esquizoanalítica, em especial nos aspectos de transitoriedade ontológica de existências
em eterno vir-a-ser. Gestalten fechadas são gestalten destruídas, que não fazem senão
tornar-se fundo e abrir espaço para que novas situações inacabadas tornem-se figura,
qual gestalten abertas visando fechamento. Assim se dá a dinâmica do fluxo de
contatos, a dinâmica do sistema self quando opera com fluidez: o trânsito entre a
emergência de fundo dos vividos do passado – e o que já foi vivido é tudo o que há de
concreto, e mesmo assim, de uma concretude apenas idiossincrática, doando-se em ato
presente no vislumbre de possibilidades futuras.

E há ainda um outro grande ponto em torno do qual ambos os discursos


dialogam em semelhança, que é a questão dos ritornelos – e este será de especial valia
para o raciocínio aqui desvelado. Tradicionalmente uma marcação musical que assinala
o refrão de uma música e que se repete sequencialmente durante a partitura, o ritornelo
recebe na esquizoanálise o sentido de uma busca – em repetida alternância – por
segurança e por novidade no mundo (DELEUZE, 1997). É a criação de um centro no
caos, construção de um território reconhecível que sirva de abrigo seguro e que possa
então ser temporariamente abandonado num lançar-se de novo ao caos, em improviso.

Os agenciamentos maquínicos de enunciação infligem na composição


transversal da subjetividade diversas cadeias de sentido com semblante de ritornelo, de
alternância repetida de polaridades entre territórios existenciais, entre significantes
identificáveis. Uma vez que se conheça o curso do ritornelo, torna-se mais clara a
premissa dos territórios existenciais jamais serem dados como objetos, mas sempre
como repetição intensiva de um lugar ocupado, como afirmação existencial posta em
função de um presente dado, comunicando algo em um instante e para este instante.

A ação de vida sobre um eixo “territorialização organizadora –


desterritorialização criadora” forma uma lógica da existência como aventurar-se sem
retorno: mesmo o regresso ao território de sentido conhecido implica encontrá-lo
ligeiramente modificado, e ao mesmo tempo remete à dinâmica do fluxo de contato na
gestalt-terapia, onde o corpo de necessidades, fisiologia, excitamentos, inicia no pré-
contato como fundo e visa a emergência criativa de figuras, traduzidas em
possibilidades de satisfação. A transformação do organismo acontece com vistas à sua
conservação, ou, no sentido inverso, sua conservação se dá no tornar-se, no descobrir a
novidade no ambiente e inventar a novidade de si próprio. Portanto:

durante todo o processo [de contato], ao ser excitado por uma novidade,
o self dissolve o que está dado (tanto no ambiente quanto no corpo e em
seus hábitos), transformando-os em possibilidades e, a partir destes, cria
uma realidade. A realidade é uma passagem do passado para o futuro:
isto é o que existe, e é disso que o self tem consciência, é isso que
descobre e inventa. (PHG, 1997, p. 191)

Se é que é possível construir uma definição de subjetividade em meio ao caos de


transitoriedades aqui retratado, esta não será então uma instância, mas um “conjunto de
condições” que possibilitem aos indivíduos emergirem como território existencial
autorreferencial, ou seja, como perspectiva de autoria do ato, em “adjacência ou relação
de delimitação com uma alteridade” (GUATARRI, 1992, p.19). Deste modo, algumas
vezes a subjetividade faz diferenciar o indivíduo pondo-o de frente ao espelho de
outrem, nesse jogo da qual ambos o “eu” e o “tu” – Tereza e Tomás? – participam;
outras vezes, contudo, ela se coletiviza não chegando ao âmbito social, mas na
multiplicidade do além-indivíduo, derivando mais de uma lógica dos afetos que de uma
lógica de conjuntos bem circunscritos.

A personalidade assume então uma perspectiva de apreensão fenomênica na qual


o “eu sou” se dá numa instância à parte, afastando-se impreterivelmente de seus
construtos personalísticos, de seus personagens, justamente por ser tão anterior a eles.
Ao mesmo tempo, agarro-me a este mundo que sabidamente não sou eu – mas sim meu
corpo, meus pensamentos, meus atos – de maneira tão próxima quanto ao meu “eu
mesmo”. De certa forma eles são apenas o prolongamento de meu corpo e o “ser” já não
é mais estar em identidade, mas carregar comigo o identificável. (MERLEAU-PONTY,
1968).
Corpo e evitação

Em última instância, a função Personalidade num sistema self que opera com
fluidez não é muito expressiva. Pelo contrário: é substituível, e pode ser alternada
instrumentalmente com relativa facilidade por um sujeito que visita este ou aquele papel
conforme a conveniência, ou mesmo eventualmente descartada. O organismo abdica de
suas âncoras identitárias em favor da navegação à deriva nas correntes de sua
autorregulação organísmica; ele se dá conta da sua necessidade dominante a cada
momento e vê suas funções de contato organizadas e investidas no intento de saná-las. É
o estado subjetivo descrito por Merleau-Ponty (1968) como o semelhante ao nada, onde
“nada me separa de mim mesmo, mas também nada chama minha atenção para mim
mesmo” (p.57), como uma peça de um só ator que não traz personagens criados, mas
atua por improviso ou cria-os em cena.

Em nível fisiológico, o funcionamento do corpo está em plena atividade: respira,


digere, metaboliza, excreta, ativa a sensorialidade e repousa sem obstruções. Em nível
deliberativo, decisões são tomadas com a sensatez que for possível ao sujeito a partir da
contemplação das possibilidades: se ocorrerem conforme o previsto, não são sucedidas
de autocongratulação presunçosa; da mesma forma, caso ao invés disso se revelem
equivocadas, não acarretam em crises de autocomiseração, e qualquer que seja o
problema gerado, ele não é muito mais do que uma nova necessidade com a qual o
organismo precisará lidar. Projetos a longo prazo são feitos, e quiçá cumpridos, mas o
sujeito não se agarra a eles na ansiosa esperança de completude, e nem deposita neles a
responsabilidade pela própria satisfação.

Calar a voz da própria autorregulação organísmica na tentativa de assumir uma


personalidade muito bem demarcada provavelmente significa ter muitas situações
inacabadas – as mesmas que deverão ser doravante evitadas – como fundo, agarrar-se às
próprias identificações com demasiado apego e não permitir que se movimentem; um
sistema self que evita a desterritorialização ontológica cumprindo apenas a primeira
parte do movimento de ritornelo permanece estagnado e não fomenta o próprio
crescimento. Com a identidade neurótica, o ritornelo se encarna em uma representação
“endurecida” como um ritual obcessivo. O sintoma funciona como ritornelo existencial
pervertido pela própria repetitividade – esta sim, totalmente reterritorializada na zona de
conforto, monótona em sua segurança, e já não mais a repetitividade autopoiética da
abertura sustentável de possibilidades.

Em vista desta urgência evitativa, o organismo interrompe a si próprio no


concernente ao contato que faz com o mundo e, como consequência, sua fisiologia
original se vê estorvada por uma fisiologia secundária que dê conta da represa do
excitamento e da evasiva do contato. A contragosto, o organismo sofreu uma ruptura e
encontra-se dividido, pois no mesmo corpo habita a inibição reprimida.

É o próprio corpo a primeira grande vítima do regime evitativo, e também a via


possível de manifestação do excitamento “pura forma”, despido de seu conteúdo. O
sentido escapa, mas permanece a palpitação, a falta de apetite, o aumento da
temperatura, a dificuldade de respiração, a tontura, o “frio na barriga”, a sonolência, os
indícios de fibromialgia, um significante pré-verbal sem significado: estes são sintomas
e também formação reativa da inibição reprimida quando está sob ameaça. Em outras
palavras, o que resta é o awareness pela metade, sensório-motor apenas, proveniente do
conflito interno de um organismo devotado ao paradoxo de abafar e comunicar a si
mesmo.

Usualmente integrado à consciência organísmica de um self em ato, o corpo


concretiza a unidade do eu, tal como “um objeto que não me deixa” (MERLEAU-
PONTY, 1999). Ele torna-se objeto de fato quando é visado por uma consciência que
foi artificialmente externada a ponto do corpo ter a possibilidade de, no limite,
desaparecer de meu campo visual, como observa Merleau-Ponty (ibidem) a respeito da
natureza dos objetos cuja presença não ocorre sem uma ausência possível. Segundo ele,
“a permanência do corpo próprio é de um gênero inteiramente diverso: ele não está no
limite de uma exploração indefinida, ele se recusa à exploração e sempre se apresenta a
mim sob o mesmo ângulo” (p.133, grifo do autor). A peculiaridade do ajustamento
neurótico é precisamente afastar a identidade corporal do self por uma cortina de
alteridade através da qual o corpo é visto com olhos de estranhamento, sempre sob um
ângulo diferente, percebendo algo que instantes antes não estava – e que tampouco
deveria agora estar – ali. Nesse sentido, o sintoma é tão insuportavelmente doloroso
exatamente porque atenta contra o anseio de fixidez personalística do sujeito na
neurose: ele escapa ao controle e aponta, atrevido, que o rei está desfilando pelado.
Conclusão

Resta à categoria dos psicoterapeutas, não somente os analistas da forma mas


quem quer que opte por aliar seu fazer à empresa ontológica da existência emergente,
descobrir como tal retrato da inscrição dos sujeitos em um Multiverso de
atravessamentos significantes pode se traduzir em termos de intervenção prática no
setting clínico. Um consulente assombrado pela premente falência de seus ajustamentos
evitativos carrega seu corpo fendido até o consultório em busca de um outro que lhe
restaure a integralidade: vêm, todos, como Tereza chegando a Praga, esperando de
Tomás um teto, um colo para sarar sua febre e um par de olhos que a enxerguem em
destaque de todas as outras. E do outro lado, que mais pode o clínico fazer senão
assumir a persona de Tomás? O clínico nada prometera, nem a Tereza nem a ninguém, e
até dá conta de oferecer a morada – na figura de um acolhimento ético – e o par de
olhos – na figura da hora dedicada semanalmente ao encontro íntimo daquelas
alteridades – mas inevitável e habilidosamente frustra a amada ao fazer com que sua
“fala falada” já não mais ressoe.

O que de fato ressoa, isto é, o que surge como interlocução possível, é o


encontro espontâneo entre singularidades que compartilham suas existências no mesmo
caos. A vocalização de um juízo socialmente reprovável, a expressão de um desejo
íntimo como segredo ao pé-do-ouvido, o resgate de um antigo sonho já abandonado, são
pequenos passos de desterritorialização a se incentivar. Uma postura neutra de não-
intervenção do terapeuta aqui se torna negativa, tão danosa quanto o não-mostrar-se do
consulente, especialmente considerando o quão rico é o acontecimento para a abertura
de novas possibilidades de ser.

Quando o ajustamento evitativo se rompe, eventualmente à custa de lancinantes


formações reativas, emerge a branda aflição do “eu não sei”. Eis uma afirmação que se
poderia ouvir outrora como o “poupe-me o esforço e saiba por mim” da confluência,
mas que aqui assume uma roupagem quase de sofrimento ético-político-antropológico,
o desprendimento identitário do “eu não sei o que até agora estava certo que sabia”. Em
vista deste vazio fértil, o trabalho do terapeuta passa a ser o de confronto com novos
Universos de referência fora de sua realidade usual, num trabalho conjunto de criação
que confere ao processo terapêutico um clima de autenticidade existencial e ao mesmo
tempo de simulacro, de jogo de experimentação espontânea onde só há vencedores.
Referências Bibliográficas

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