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A demonstração (incorreta) de Kempe para o problema

das quatro cores

1 Introdução
O problema que originou a teoria dos grafos, conhecido como problema das sete pontes de
Königsberg consistia no questionamento da possibilidade de se realizar um trajeto na cidade
de Königsberg, Prússia (atualmente Kaliningrado, Rússia), passando exatamente uma vez
por cada uma das sete pontes ligavam as quatro partes da cidade. A solução negativa,
escrita por Leonard Euler em 1735 e publicada em 1741 no artigo “Solutio problematis ad
geometriam situs pertinentis” (Solução de um problema pertinente à Geometria de posição,
em tradução livre para o português) é considerado o primeiro resultado de teoria dos grafos.
Outros trabalhos que sucederam o supracitado problema incluem as descobertas de te-
oremas e conceitos por Kirchhoff e Cayley a respeito de árvores em grafos quando eles
investigavam, respectivamente redes elétricas (1847) e isômeros quı́micos (1857); e o jogo
desenvolvido por Hamilton em 1859, cujo objetivo era encontrar um ciclo em um dodecae-
dro que passava por todos os vértices. Nenhum desses trabalhos, no entanto, ganhou tanta
proeminência quanto o problema das quatro cores, que parece ter sido mencionado pela pri-
meira vez em 1852 em correspondência enviada a Hamilton por De Morgan. O problema
foi proposto por Francis Guthrie, irmão de Frederick Guthrie, que, por sua vez, era aluno
de De Morgan. Eles acreditavam (corretamente, conforme demonstrado em 1976 por Appel
e Haken) que se uma figura pode ser dividida de qualquer maneira e seus compartimentos
coloridos de modo que regiões que façam fronteira recebam cores diferentes, então quatro
cores são suficientes.

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O problema das quatro cores, cujo enunciado é bastante simples de ser formulado, só foi
solucionado em 1976 por Appel e Haken, com auxı́lio de um computador. Uma das razões
da importância histórica do teorema deve-se ao fato de ter sido um problema precursor na
área de coloração de grafos, que consiste na atribuição de rótulos (cores) aos elementos de
um grafo (vértices, arestas, faces) satisfazendo certas condições.
Para nós, um grafo é um par ordenado G = (V, E) composto por um conjunto finito e
não vazio de vértices V e um conjunto de arestas E. Cada aresta é um par não ordenado de
vértices distintos, de modo que, dados dois vértices, há, no máximo, uma aresta entre eles.
Graficamente, os vértices são representados por pontos e as arestas por linhas ligando alguns
destes pontos. Se u, v ∈ V e e ∈ E de modo que as duas extremidades de e são u e v, então
temos e = uv e dizemos que e e u, bem como e e v são incidentes. Dizemos também que
u e v são adjacentes. Se duas arestas e e f possuem uma extremidade em comum, dizemos
que elas são adjacentes. Uma k-coloração de vértices de um grafo G consiste na aplicação
de k cores aos vértices de G de modo que vértices adjacentes recebam cores distintas. Se
um grafo puder ser representado no plano de modo que arestas não se cruzem, dizemos que
o grafo em questão é planar.
Embora a demonstração de Kempe que apresentaremos aqui esteja errada, a ideia dela
foi usada na demonstração correta do Teorema das Quatro Cores. Para apresentarmos a
demonstração de Kempe precisamos de algumas definições e resultados, que explicamos a
seguir.
Segundo a fórmula de Euler, todo grafo G planar conexo (isto é, há um caminho entre
quaisquer dois vértices de G) com V vértices, A arestas e A faces satisfaz V + F − A = 2.
A demonstração desse fato pode ser encontrada no livro Graph Theory de Bondy e Murty
(2008). Essa fórmula é importante para a demonstração da seguinte afirmação, que será
usada na demonstração de Kempe.
Seja G um grafo planar. Então G tem um vértice com grau no máximo 5.
Suponha, por contradição, que todos os vértices de G tem grau no mı́nimo 6, ou seja,
d(v) ≥ 6 ∀v ∈ V . Temos

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X
d(v) ≥ 6V.
v∈V

Também temos

X
d(v) = 2A.
v∈V

pois, como cada aresta e = uv tem duas extremidades, elas são contadas duas vezes (uma
no grau de cada uma de suas extremidades). Desses resultados temos que A ≥ 3V .
Seja F o conjunto das faces de G e seja d(f ) o grau da face f , ou seja, a quantidade de
arestas que limitam a região da face f . Como cada aresta pertence a no máximo duas faces
e, cada face é limitada por pelo menos três arestas (se V ≥ 3), temos que
X
2A ≥ d(f ) ≥ 3F.
f ∈F

Pela fórmula de Euler aplicada à inequação acima obtemos que 2A ≥ 3(2 + A − V ) =⇒


A ≤ 3V − 6, o que contradiz a conclusão acima de que A ≥ 3V .

2 Demonstração errônea de Kempe


Teorema 2.1. (Kempe, 1879) Todo grafo planar é 4-colorı́vel.

Demonstração. Suponha, por contradição, que o resultado é falso e seja G um grafo que
precisa de pelo menos 5 cores para ter uma coloração de vértices de modo que G seja o
menor desses grafos, no sentido de que G tem o menor número de vértices. Seja v um vértice
com grau no máximo 5. Pelo provado acima, sabemso que tal vértice existe. O grafo G\v
pode ser colorido com 4 cores. Obtendo tal coloração, vamos inserir v novamente ao grafo e
provar que, em qualquer caso, G pode ser colorido com 4 cores.
1o caso: d(v) ≤ 3. Neste caso há pelo menos uma cor que não foi usada nos vértices
adjacentes a v. Daı́, podemos colorir o vértice com uma das cores não utilizada.
2o caso: d(v) = 4. Neste caso há duas possibilidades. Uma delas é que alguma das
cores não é usada nos vértices adjacentes a v e, portanto, pode ser usada em v. A outra

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possibilidade é que cada um dos vértices adjacentes a v receba uma cor diferente, conforme
exibimos na Figura 1.

Figura 1:

Considere o subgrafo Gac composto apenas por todos vértices coloridos com as cores dos
vértices a (vermelha) e c (azul) e também pelas arestas que ligam um vértice que tem a cor
de a a outro com a cor de c. Ou há um caminho em Gac ligando a e c ou não há. Se não
houver, troque as cores vermelha e azul no componente conectado de Gac que contém a.
Agora a passou a receber com azul e v pode receber cor vermelha. Como as mudanças de
cores foram feitas dentro de um componente conectado e como uma aresta que anteriormente
tinha como extremidades vértices de cores vermelha e azul continuou tendo as mesmas cores
(apenas trocando a extremidade em que cada cor passou a estar representada) foram trocadas
não criou-se uma coloração imprópria.
Se isso não acontece, considere o subgrafo Gbd . Não há um caminho entre b e d, pois,
para que houvesse, seria necessário que o caminho cruzasse o caminho que liga os vértices a e
c, contradizendo a suposição de que o grafo é planar. Observe a Figura 2. Como não há um
caminho entre a e c podemos trocar as cores verde e amarela do componente conectado que
contém o vértice b. Assim, b passa a ser colorido com amarelo e, por isso, podemos aplicar
cor verde em v.

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Figura 2:

3o caso: d(v) = 5. Assumimos que todas as cores são representadas nos vizinhos de v,
pois, se não fossem, poderı́amos colorir v com alguma das cores não representadas. Podemos
assumir também que há um ciclo entre os vértices vizinhos de v, conforme a Figura 3 pois
a adição de arestas impõe mais restrições à coloração, tornando-a mais difı́cil. Como vamos
ver, mesmo nesse caso, em que a coloração seria mais difı́cil, é possı́vel fazer trocas de cores
para obter uma 4-coloração de G.

Figura 3:

Considere o subgrafo Gbd . Ou b e d estão conectados por um caminho ou não. Se não


estiverem, basta trocar as cores verde e azul no componente conectado que contém o vértice
b, que passaria a ser colorido com cor azul e, assim, v poderia ser colorido com cor verde.
Assuma, então, que b e d estão conectados por um caminho em Gbd . Considere, agora o
subgrafo Gbe . Podemos aplicar o mesmo raciocı́nio aplicado ao subgrafo Gbd . Então, vamos
assumir que b e e estão conectados em Gbe , conforme mostra a Figura 4. Observe, então, os
subgrafos Gad e Gce . Não há um caminho em Gad que conecte os vértices a e d pois, para
isso, seria necessário que esse caminho cruzasse o caminho que liga os vértices b e e. Com

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raciocı́nio análogo concluı́mos o mesmo em relação ao subgrafo Gce . Assim, os componentes
conectados que contém a e c em Gad e em Gce , respectivamente, podem ter suas cores
trocadas. Assim, a passa a ser colorido com azul, enquanto c passa a ser colorido com cor
amarela. Assim, a cor vermelha fica disponı́vel para ser aplicada no vértice v.

Figura 4:

O erro de Kempe foi não considerar que o caminho que liga b e e pode interceptar o
caminho que liga b e e. A Figura 5 mostra alguns contraexemplos para a demonstração de
Kempe. O primeiro contraexemplo a ser descoberto para a falsa prova foi o de Heawood.

Figura 5:

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3 Os grafos K3,3 e K5 não são planares
Teorema 3.1. K3,3 e K5 não são planares.

Demonstração. Pelo provado no final da Introdução, todo grafo planar com 3 ou mais vértices
satisfaz A ≤ 3V − 6. Em K5 , A = 10 e V = 5, não satisfazendo a inequação. Logo K5 não
é planar.
Vamos mostrar, por construção, que K3,3 não pode ser planar. Sejam a, b, c os vértices de
uma parte da partição do conjunto de vértices e d, e, f os vértices da outra parte da partição.
O grafo K3,3 contém o ciclo aecf bda. Com isso, faltaria representar apenas 3 vértices, que
são af , cd e be. Claramente só podemos representar um desses vértices passando no interior
do ciclo. Representamos af passando pelo interior do ciclo. Mesmo representando o vértice
cd por fora do ciclo, faltaria representar a aresta be e não é possı́vel fazer isso sem cruzar a
aresta af ou a aresta cd, conforme mostra a Figura 6.

Figura 6:

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