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A imaginação sociológica inaudita de C.

Lévi-Strauss
MARCOS LANNA

resumo O artigo oferece uma leitura de As Es- de que a enorme influência deste livro foi em
truturas Elementares do Parentesco, de C.Lévi-Strauss, boa medida exercida em seus próprios críticos.
baseado em críticas selecionadas de alguns de seus Isto é, mais do que pensá-lo como um rochedo
muitos comentadores (especialmente G. Homans indestrutível que resiste à maré, prefiro a idéia
e D. Schneider, L. Dumont e R. Needham). Para de serem as EEP uma forte maré que exerce em
além das descontinuidades, já demonstradas por muitos irresistível atração, geralmente para na-
comentadores recentes, entre estudos do parentesco dar contra. Este é um ensaio inicial que abarca
e estudos do mito de Lévi-Strauss, mostrarei haver número reduzido de leituras, com a pretensão
também continuidades entre eles. Será relevada a de ser brevemente expandido.
proposta de uma antropologia estrutural como uma Poucos, assim, além da já citada de Beau-
ciência englobante, uma semiologia, que não deixa voir, se posicionaram desde cedo a favor das
de atentar para questões, como a da hierarquia, cuja EEP; alguns inicialmente nadaram a favor (por
presença na obra lévi-straussiana e sua relação com exemplo, Dumont, [1957] 1983 e Needham,
temas básicos, como o da simetria, não tem sido até 1962) e posteriormente decidiram nadar con-
aqui devidamente qualificada. tra, ainda que diagonalmente, como veremos,
palavras-chave Lévi-strauss. Sociologia. Pa- a seguir, no caso destes últimos (e talvez de
rentesco. Louis Dumont. Beauvoir pudesse ser incluída aqui). Foi ainda
em menor número quem houvesse desde cedo
avaliado crítica e judiciosamente seus riscos e
As Estruturas Elementares do Parentesco possibilidades (dentre eles, cabe citar Homans;
(EEP) de C.Lévi-Strauss suscitaram muito mais Schneider, 1955 e E. Leach, 1961). Em parte
“incompreensão e hostilidade” (cf. Dumont, por seu trabalho sobre parentesco ser identi-
1971, p. 90) do que elogios (como os feitos ficado a Lévi-Strauss, no mundo anglo saxão,
por de Beauvoir, [1949] 2007) e resenhas (faz Dumont também recebeu sua quota de duras
parte da mitologia da antropologia, tão citada críticas. Tivemos de esperar algumas décadas
quanto desconhecida, aquela em que R. Lowie para o comentário de L. Dumont (1971) às
ambiguamente reconhece a grandiosidade da EEP repercutir na antropologia contemporâ-
obra). Deve-se reconhecer que dos inúmeros nea1.
comentários que recebeu, a maioria foi de teor Eduardo Viveiros de Castro (1990, 1993)
crítico. Talvez o mesmo pudesse ser dito da retoma em profundidade o comentário de
recepção inicial que teve cada um dos quatro Dumont e o faz frutificar de modo original, a
volumes das Mitológicas. Mas se esta série vem partir de uma interpretação da teoria da alian-
ultimamente recebendo seu devido reconheci- ça para explicar não tanto, ou não apenas, o
mento, o mesmo, a meu ver, não poderia ser parentesco amazônico em si mesmo, mas seu
dito das EEP. Tentarei aqui valorizá-las em re- lugar, englobado, em uma cosmologia mais
lação a algumas de suas leituras, não necessaria- ampla. A primeira versão da tese (Viveiros de
mente as mais críticas. Ficará implícita a idéia Castro, 1993), já consagrada e hoje reformula-

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da e ampliada pelo seu próprio autor (cf. Vivei- pela chefia, da qual depende toda a vida, toda a
ros de Castro, 2001, 2008), poderia ser assim produção (cf. Guerreiro Jr., 2008).
resumida: na Amazônia indígena, Mas o que dizia o comentário de Dumont
a)em um nível local e parental, a consangüi- sobre as EEP? Por um lado, Dumont repete as
nidade engloba a afinidade; aqui nos críticas dos “adversários da teoria” que “não se
cansam de nela reprovar” a visão, “um pouco
afastamos um pouco da letra d’As Estruturas... como em Rivers antes dele”, do casamento
dizendo que a proibição do incesto testemunha “como um deus ex machina do parentesco e
uma incompatibilidade, logo uma complemen- causa eficiente de todos os outros fenômenos”;
taridade entre consangüinidade e afinidade, Lévi-Strauss chegaria a “estabelecer a distinção
sempre presente em algum grau, e que as socie- primogênito/caçula, tão difundida, como um
dades que praticam o casamento entre primos caso particular do casamento” dos Wikmunkan
cruzados apresentam esta oposição em sua for- australianos (Dumont, 1971, p. 118). Aqui o
ma mais lógica e completa (Dumont, 1971, p. contraste entre Lévi-Strauss e F. Héritier é no-
93), tável: se o primeiro reduziria a distinção primo-
gênito/caçula à troca, a segunda reduz a troca
mas que não se pode “concluir do casamento à mesma distinção, aliada à valência diferen-
entre primos cruzados a existência de uma fór- cial entre os sexos3. Por outro lado, Dumont
mula holista” (Dumont, 1971, p.100) do tipo também fez sua própria crítica original às EEP,
exemplificado por algumas seções australianas, sendo dos primeiros a fazê-lo a partir de uma
“fórmulas globais da sociedade inteira” (ib.)2; perspectiva estruturalista, se não exatamente
b) Viveiros de Castro (1993) demonstra a lévistraussiana, que frutifica em Viveiros de
inexistência de “uma primazia sociológica ou Castro e será comentada em detalhes a partir
política” da afinidade em relação à cosmologia; de agora, pois o contraste entre Dumont e Lé-
porém, tal como o leio, uma transformação da vi-Strauss, a meu ver, merece ser aprofundado.
afinidade ressurge em um nível mais geral ou Para Dumont, as EEP seriam um livro “pré-
global, na categoria de afins potenciais, “que estruturalista” (Dumont, 1971, p. 132) por pro-
recolhe em si os valores” de uma troca não con- por uma teoria “meio-empírica da troca” (id.,
tratual e não substancialista, que não é nem p. 134). “Lévi-Strauss viu no inter-casamento
pode ser de mulheres; com os afins potenciais uma forma privilegiada de relação”, mas
se troca tudo menos mulheres. A afinidade
amazônica se liga ao “problema da mortali- generaliza ao extremo a noção de ‘troca’ e a apóia
dade”, à organização de uma “economia sim- naquela de reciprocidade ‘concebida como a for-
bólica da morte”, da “elaborada maquinária ma mais imediata sobre a qual possa ser integra-
ritual”, da “ideologia paleolítica” da predação, da a oposição entre o eu e o outro’ e dada como
da caça, da guerra. Mas a meu ver, também se uma das ‘estruturas fundamentais do espírito’
liga à chefia e a uma vida sem guerra nem do- (Dumont, 1971, p. 131; entre aspas simples (‘ ’)
enças; por exemplo, os chefes alto-xinguanos estão citações das EEP; itálico original).
se classificam como primos cruzados. Esta afi-
nidade xinguana não seria apenas potencial; Dumont (ib.) chega a propor haver “mais
ao mesmo tempo em que pode ser vista como mutualidade do que reciprocidade” nos mo-
movimento da “preensão relacional”, ela opera delos nativos em que
não pela guerra mas por uma troca centralizada

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várias unidades dão filhas e recebem esposas, manifesta em várias esferas onde não há questão
isto é, o mesmo tipo de coisas, enquanto na de transferência ou troca. É assim a noção de
reciprocidade duas unidades trocam coisas que oposição que requer agora nossa atenção (citado
podem ser diferentes (Littré, s.vv.) (ib., itálicos por Dumont, 1971, p. 132).
originais, minhas ênfases).
Ora, esta é uma tese bastante discutível.
Ora, se tal é o caso, pode-se afirmar, em de- Não tenho espaço para aprofundar esta
fesa de Lévi-Strauss, a possibilidade de a reci- questão polêmica (para uma defesa da noção de
procidade englobar a mutualidade e dever ser reciprocidade que de certo modo relativizaria,
mantida como noção geral. quase descartaria a de troca, cf. Lanna, 2005)4.
Curiosamente, Dumont faz um raciocínio O que importa aqui é que indiquei as bases
que é formalmente deste tipo, mas contra Lévi- em que Dumont propõe um estudo estrutu-
Strauss, apoiando-se em Needham, para quem ralista do parentesco que pretende prolongar e
a noção de oposição englobaria a de recipro- expandir criticamente a teoria – que ele supõe
cidade: “pré-estruturalista” – das EEP, transforman-
do-a em um estudo do “universo conceptual
neste ponto a proibição do incesto aparece como do parentesco”, e ser complementado “ao nível
uma exigência de integração social quando se da terminologia em particular, e do ponto de
pode tomá-la também como a marca indelével vista do método ao nível da oposição distin-
de uma oposição distintiva entre consangüini- tiva” (Dumont, 1971, p. 133). Ou melhor, o
dade e casamento ou afinidade. Como Needham estruturalismo de Dumont seria um estudo
notou, passa-se sem transição, nas Estruturas, da das oposições distintivas, como aquela entre
relação no sentido conceptual – oposição distin- consangüinidade e afinidade, já mencionada,
tiva, etc. – à relação no empírico – a reciproci- e exploraria domínios pouco explorados por
dade (ib., minhas ênfases). Lévi-Strauss, como o das terminologias. O sur-
preendente é que Dumont acaba defendendo
A proposta é a de que a noção de oposição um certo estrutural-funcionalismo conceptual
englobaria a de reciprocidade; mais importan- como antídoto a um estrutural-funcionalismo
te, se explicita que elas estariam em níveis di- sociológico que para ele caracterizaria as EEP.
ferentes com o argumento de que a noção de Para Dumont importaria “o nível de integração
oposição estaria no modelo e a reciprocidade, das idéias no espírito” mais do que aquele “dos
supostamente, na empiria e derivada de uma grupos na sociedade”, chegando a falar em “in-
“exigência de integração social”. Logo, advogar tegração mental” (seja lá o que isto signifique) e
a presença de reciprocidade seria uma postura não na “integração social”, que mostrei caracte-
funcionalista (o que nos traz ecos da primeira rizar o paradigma funcionalista, tanto em suas
crítica vigorosa às EEP, de Homans; Schneider, análises do parentesco em si como em relação a
1955, a de nelas haver uma razão finalista). A outras esferas sociais (cf. Lanna, 1995, 2007).
crítica de Dumont às EEP seria então, antes de Eu não teria nada contra a proposta de um
mais nada, um endosso à crítica de Needham, estudo do “universo conceptual do parentesco”
para quem que privilegiasse lacunas das EEP, como o fato
de “a terminologia não ser jamais considerada
a reciprocidade ela mesma, se não me engano, nela mesma” (Dumont, 1971, p. 117); aliás,
é uma modalidade de oposição; e a oposição se independentemente da crítica de Dumont

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e antes dela, nos anos 1960, esta proposta já Oleira ciumenta, Lévi-Strauss não tinha ainda
vinha sendo desenvolvida pela maioria dos acesso a uma etnografia que só posteriormen-
estudiosos do parentesco. Também endosso a te veio oferecer mais detalhes sobre a constru-
proposta adicional de se privilegiar a “comple- ção da paternidade em ambientes amazônicos
mentaridade dos opostos” (ib.), isto é, o uso como o jívaro, em que, diferentemente da nos-
da noção de hierarquia, aliás, simultaneamen- sa, ela não é dada de antemão (cf., entre ou-
te presente e ausente na obra de Lévi-Strauss, tros, Viveiros de Castro, 2008). Ou por outra,
como tratarei no parágrafo seguinte. Foi graças não é por ser englobada que a consangüinidade
à noção de hierarquia que Viveiros de Castro deixaria de se fazer estruturalmente relevante
pôde falar em englobamento da afinidade pela no pensamento mítico jívaro. Esta aparente
consangüinidade ao nível local em certos sis- tergiversação tem como objetivo apontar para
temas amazônicos e no englobamento inverso continuidades entre as EEP e as Mitológicas,
em um nível exterior, no qual o valor é inverti- dado o modismo atual que insiste em salientar
do e a afinidade engloba o parentesco. as descontinuidades entre estas etapas da obra
Graças à noção de hierarquia ainda pôde de Lévi-Strauss.
Dumont, tratando de outra realidade empírica, Em resumo, parece-me simplesmente er-
apontar para um englobamento que seria logi- rônea a conclusão de Dumont de que em
camente do mesmo tipo (apesar de substancial- Lévi-Strauss a reciprocidade não é estrutural-
mente tão diferente): ora, no sistema cognático conceptual e sim, realidade empírica institu-
europeu contemporâneo, a “afinidade é qual- cional. Esta seria uma leitura equivocada de
quer coisa de efêmera” (Dumont, 1971, p. Lévi-Strauss, que retoma o esclarecimento des-
134), algo fundamental em nossa civilização. te ponto em vários momentos posteriores (cf.,
Do mesmo modo e complementarmente, a por ex., Lévi-Strauss 1998). Quanto à hierar-
consangüinidade assume papel oposto; a fra- quia, parece-me que, ainda que haja momentos
ternidade e a relação com o pai são entre nós em que não esteja explicitamente presente, não
verdadeiro mito fundador, como demonstra deixa de ser tema fundamental da obra de Lévi-
Lévi-Strauss em seus comentários sobre Freud. Strauss. Ora, há em Lévi-Strauss “o primado
Faço notar que estes comentários perpassam da diferença sobre a identidade” (Maniglier,
sua obra, entre outros momentos, da crítica ao 2002, p. 37) e isto fundamentalmente de duas
Totem e tabu nas EEP às reflexões de Tristes tró- maneiras. Em primeiro lugar, a diferença não é
picos e mais recentemente na Oleira ciumenta. uma aparência, por trás da qual haveria alguma
Não é acidental o contraste de obras da psica- essência humana comum. Citando a Antro-
nálise com o pensamento jívaro neste último pologia Estrutural, Maniglier indica que, para
livro de 1985, em que Lévi-Strauss aponta para seu autor, cabe à antropologia desvendar “as
semelhanças substantivas sobre o lugar da con- maneiras constantes segundo as quais os ho-
sangüinidade neste pensamento ameríndio e mens diferem-se uns dos outros”. Em segundo
no nosso. Ao apontar para o fato de os jívaro lugar, Lévi-Strauss adota a definição do signo
já terem o seu “totem e tabu”, a tese de Lévi- de Saussure não como uma “coisa positiva” e
Strauss não necessariamente difere da demons- sim pelos seus traços distintivos, que são “os
tração de Viveiros de Castro do englobamento afastamentos diferenciais por meio dos quais as
da consangüinidade amazônica. Inclusive por sociedades se opõem” (id., p. 38)5. Disto de-
retomar materiais analisados desde o início dos corre que
anos 1960 finalmente publicados em 1985, na

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a oposição não se define pelos termos opostos, ção binária que inicialmente nos é dada, assim
mas como princípio original de distinção, afas- como conhecer melhor os vários eixos que a
tamento, distância: assim, não adianta dizer que organizam em correlações; são estes eixos que
o amargo é um termo e o doce outro e que deste a vão tornar (minimamente) significativa. Isto
simples fato resultaria uma diferença entre eles, deixa claro que não se pode, como tantos fize-
mas sim que se pode introduzir na experiência ram, reduzir a obra de Lévi-Strauss a um mero
sensível uma polaridade que permite hierarqui- “jogo” de oposições binárias, especialmente
zar em graus diferentes nesta linha nuances di- quando tomadas como termos substantivos. A
versas. A noção de oposição é assim em certo ambição de Lévi-Strauss seria entender a assi-
sentido mais próxima da noção de intensidade metria profunda das complexas gramáticas (e
do que da de contradição, mais estética do que não mero “jogo”) de diferenças;
lógica, mais sensível do que intelectual. As opo-
sições são traços distintivos, critérios de diferen- é por que os homens se distinguem uns dos ou-
ciação: a partição masculino/feminino precede tros que eles “significam”, isto é, utilizam rea-
e determina as representações do homem e da lidades que valem por aquilo que elas excluem
mulher. As diferenças são dadas antes que elas (Maniglier, 2002, p. 44).
diferenciem. É por isto que Lévi-Strauss não
cessa de repetir que ‘a apreensão da relação, ato Sua conclusão é a de que o signo é aquilo
lógico, antecipa o conhecimento individual dos através do qual os grupos se opõem e se com-
objetos’ (Le regard eloigné, p.164) (ib., itálicos preendem. Tudo isto aponta para o fato de que
originais, minhas ênfases). a experiência da 2a Grande Guerra, que segun-
do o próprio Lévi-Strauss (Simonnot, 1987; cf.
Isto é, os traços distintivos não se identifi- tb. Lanna, 2005, p. 444, nota 2) o levou a se
cam às diferenças empíricas afastar do tema da política, levou-o também a
um maior rigor; ao tratar de tema tão próximo,
mas a natureza mesma de uma oposição depen- ele buscou o maior afastamento diferencial,
de do sistema de oposições dentro do qual ela um distanciamento do olhar, para voltar a ele
se acha: uma diferença não é nunca única, mas mais explicitamente apenas no final da década
sempre em correlação com outras diferenças no de 1970, quando então retoma seus estudos
seio de um sistema. ‘O número, a natureza e a de parentesco a partir da sua noção seminal de
qualidade destes eixos lógicos não são os mes- “sociedades a casas”.
mos segundos as culturas’ (La pensée sauvage, Aqui chegamos ao problema da simetria
p.82) (ib., itálico original). em Lévi-Strauss. Este deixou a alguns a ima-
gem de uma ingenuidade em relação à hierar-
Minha conclusão é a de que o que parece quia – e quiçá possamos incluir aqui o próprio
uma falta de hierarquização em Lévi-Strauss é Dumont, que tanto se dedicou à questão. Mas
muito mais uma cautela para não congelar o isto está longe de ser verdadeiro; afinal, para
sentido de uma diferença em seus termos, em Lévi-Strauss,
sua substância. Por exemplo, quando nos de-
frontamos com duas metades de um grupo do ‘aos seres que une, sempre ao opô-los, a simetria
Brasil central que se classificam mutuamente não oferece o meio mais elegante e mais simples
como “os fortes” e “os fracos”, há que se conhe- de se aparecerem semelhantes e diferentes...?’
cer melhor as relações por trás desta classifica- (Anthropologie structurale 2, p. 300). É por isto

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que Lévi-Strauss definiu o pensamento simbó- do parentesco” se as colocarmos em relação a


lico pelo fato de instaurar sistemas de simetria outros eixos; ou por outra, a noção de EEP fica
entre grupos (Maniglier, 2002, p. 44-45). cada vez mais rica se colocada em relação com
o maior número de eixos possíveis; mas, exata-
Ainda mais importante, é neste sentido que mente como nas Mitológicas, tudo depende da
ele vê na “reciprocidade de perspectivas [...] o etnografia. Esses eixos não devem se restringir
caráter próprio do pensamento mítico” (Lévi- àqueles da esfera do parentesco (como o da fi-
Strauss, 1985, p. 268). Ora, por trás das sime- liação, por exemplo, que deve ser necessaria-
trias que o pensamento mítico estabelece estaria mente incluído); daí o interesse de eixos como
a assimetria da reciprocidade de perspectivas. o da residência, salientado no estudo das socie-
Em resumo, a simetria aparece em Lévi-Strauss dades a casas.
como uma ideologia, no sentido marxista do Isto nos deixa a ambição de estudos futu-
termo, e não como um signo; sou tentado a ros conjugando as análises de mito e parentes-
dizer que, ao contrário da assimetria e da hie- co, estudos que o mestre não teve tempo para
rarquia, para ele a simetria é super-estrutural. fazer. A contribuição de Dumont ao estudo
Estamos aqui em condições de começar estrutural do parentesco que relevei aqui foi
a vislumbrar continuidades na obra de Lévi- a de incluir ao menos um eixo que não havia
Strauss do parentesco ao mito (e de volta ao sido concebido por Lévi-Strauss, ao qual nos
parentesco, pelo estudo das “sociedades a ca- conduzem as séries de englobamentos da con-
sas”). Voltemos ao fato de a natureza de uma sangüinidade pela afinidade e/ou vice-versa. A
oposição depender do sistema de oposições contribuição de Viveiros de Castro que escolhi
dentro do qual ela se acha, da correlação entre relevar amplia a de Dumont, ao mostrar que
diferenças segundo “eixos lógicos”. No estudo estes englobamentos transcendem a esfera do
dos mitos, estes eixos podem ser geográficos, parentesco. Viveiros de Castro o faz justamente
ecológicos, astrológicos, cosmológicos, zoo- através da noção de aliança; se a aliança matri-
lógicos, sexuais, relativos à posição social, à monial é englobada no parentesco amazônico,
incontinência ou retenção oral e anal, à tecno- é ainda uma aliança mais ampla que permite a
logia, etc... Já no estudo do parentesco, eles são passagem à cosmologia (a análise do processo
relativos à residência, filiação (daí a relevância do parentesco, de seu englobamento em uma
dos conceitos das EEP de harmonia – de uma cosmologia, ou uma passagem da cosmologia ao
sociedade patrilocal e patrilinear ou matrilo- parentesco é ressaltada em Viveiros de Castro,
cal e matrilinear – e desarmonia – patrilocal/ 2002). É ainda a noção de aliança que permite
matrilinear ou matrilocal/patrilinear), laterali- a Lévi-Strauss passar das estruturas elementares
dade da preferência matrimonial, etc... Nesse à noção de casa, entendida como estrutura, que
sentido, a noção de “estruturas elementares veio a substituir a noção de semi-complexida-
do parentesco”, tal como a usei até aqui para de; em artigo próximo sobre várias “leituras
me referir às sociedades com casamentos com das estruturas” mostrarei como esta passagem
primos cruzados matri, patri ou bilineares (e é uma expansão do estudo do parentesco de
mesmo avunculares – cf. Dal Poz, 2004) é de Lévi-Strauss que se dá através do seu estudo do
certo modo vazia se tomada em si mesma, pois mito (mas também das máscaras).
nos remete a apenas um dos muitos eixos pos- Seja como for, como Lévi-Strauss, Dumont
síveis, a lateralidade da preferência. Assim, só também busca conhecer o nível mais profun-
faria sentido falar em “estruturas elementares do, estrutural, dos arranjos empíricos e para

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tanto realiza um movimento do sociológico ao identificar consangüinidade e parentesco, im-


conceptual. Entretanto, surge aqui uma dife- pondo a noção, implícita em nossos próprios
rença entre estes autores: a ambição das EEP é sistemas de parentesco, segundo a qual a afini-
justo a de entender a dimensão sociológica (ou dade é exterior ao parentesco propriamente dito
código sociológico, como diz em seus estudos (Dumont, 1971, p. 93)6.
sobre mitos) como uma dimensão conceptual
(e nas obras posteriores à EEP, uma entre ou- O mérito desta proposta foi reconhecido
tras dimensões) a partir da troca; já Dumont por Viveiros de Castro, sem adotar o “ponto de
aproxima a troca (ou a reciprocidade) à morfo- vista conceptual” dumontiano que eu mesmo
logia durkheimiana, opondo-a ao que imagina critiquei acima por ser um cognitivismo funcio-
ser a dimensão conceptual da “aliança de casa- nalista. Há mais: Viveiros de Castro entendeu
mento”. Avança que o que Dumont chama de “implicações estrutu-
rais infinitamente maiores do que a do arranjo
as regras de casamento têm implicações estrutu- dos grupos” sem supor que estas estariam nas
rais infinitamente maiores do que as do arranjo “regras de casamento” ameríndias em si mes-
dos grupos. Por oposição às expressões fundadas mas. Se há algo de universal na afinidade, está
na troca, etc., a expressão de aliança de casamen- ainda mais além do que imaginava Dumont;
to pode cobrir ao mesmo tempo o aspecto geral no caso ameríndio, este universal se revela além
das implicações mentais e o aspecto particular tanto das “alianças de casamento” como da
das implicações de morfologia social (Dumont, esfera do parentesco. A afinidade ameríndia,
1971, p. 134). mesmo se entendida nos termos de Dumont,
não conduz necessariamente a uma “integração
Restaria discutir até que ponto haveria esta mental”; já o caráter sintético do dom ou a no-
“oposição” entre troca e aliança (e não só a de ção de reciprocidade lévistraussiana permanece,
casamento), o que tentei fazer em outros tra- a meu ver, como tentei mostrar em outros tra-
balhos (por exemplo, Lanna, 2005). O que balhos, estrutural e conceitualmente relevante
interessa aqui é salientar qual a crítica de Du- em qualquer contexto etnográfico, entendidos
mont ao chamado aspecto sociológico das EEP, como algum tipo de “integração mental” (para
à suposta ênfase deste livro na morfologia, na usar a não tão boa expressão de Dumont, criti-
formação dos grupos sociais. Não é que Du- cada acima) entre eu e o outro.
mont descarte a importância das “implicações Tive aqui a intenção de relativizar e especi-
sociológicas”, dado inclusive que saúda a “ima- ficar a crítica de Dumont às EEP como algum
ginação sociológica pródiga ao longo de toda tipo de sociologia pré-estruturalista7. Vimos
obra [as EEP]” (Dumont, 1971, p. 118); mas que esta crítica não estaria exatamente em li-
para ele estas implicações deveriam se ligar a nha com um vaticínio que começamos a ouvir
um “ponto de vista conceptual” diferente do repetidamente de serem as EEP um livro neo-
de Lévi-Strauss. durkheimiano (cf. Keck, 2008, entre outros).
Para Dumont, o desenvolvimento do estru- Afinal, Dumont saúda tanto a “imaginação
turalismo passaria, como indiquei, por análises sociológica inaudita de Lévi-Strauss” como o
das diferentes institucionalizações da relação estudo da formação dos grupos, da morfolo-
hierárquica entre consangüinidade e afinidade, gia. E o que dizem as EEP, afinal? Será que elas
algo difícil para os anglo-saxões, dado que “a “renovam Durkheim pela cibernética” (Keck,
língua inglesa conspira” ao 2006, p. 20)? Ou será que elas também, como

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o Pensamento Selvagem, não mostram que pre- seriam circuitos de reciprocidade (e não exata-
cisamos nos “situar ao nível do espírito huma- mente de trocas) que dariam origem aos gru-
no se desejamos comparar as sociedades entre pos – sejam, A, B, C, n. Estas três estruturas
elas” (ib.)? Será que a concepção de espírito seriam
humano mobilizada por Lévi-Strauss nas EEP
está mesmo “depassée” por alguma “antropo- 1) a troca restrita do casamento bilateral, na
logia cognitiva” (ib.)? Afinal, para o bem e/ou qual a reciprocidade é mais imediata:
para o mal, Dumont não preconizava também na Geração 0: A → B
a sua versão de alguma antropologia essencial- na mesma “G 0”: A ← B
mente cognitiva? Não estaríamos nós, como
Dumont, aliás, perdendo um pouco do rigor, 2) a troca generalizada do casamento patri-
tentando criar limites rígidos entre escolas fun- lateral, na qual a reciprocidade surge na gera-
cionalistas e estruturalistas, sem perceber que ção seguinte à de ego (meu filho casa-se como
elementos de ambas estão um pouco por toda meu avô; a mulher que foi para meu pai será
a parte8? Para muitos, como os já citados Ho- retribuída por mim e a que foi para mim será
mans e Schneider (1955), tal é tipicamente o retribuída pelo meu filho):
caso das EEP, que teriam herdado do funcio- em “G 0”: A → B → C
nalismo uma “teoria da causa eficiente”, uma em “G 1”: A ← B ← C
posição “finalista”. em “G 2”: A → B → C
Ora, a meu ver a demonstração principal
das EEP é a de que o parentesco pode vir a se 3) a troca generalizada do casamento matri-
“estruturar como linguagem”; isto é, trata-se lateral, mais radicalmente assimétrica:
de uma contribuição à semiologia saussureana em “G 0, 1, 2, n”: A → B → C
(para uma rigorosa compreensão desta, cf. Ma-
niglier, 2006, entre outros). Justo o parentesco, Não me parece assim que as EEP pressupo-
antes pensado como da ordem da “morfologia”, nham a priori grupos ou regras de filiação ou
na expressão de Durkheim, ou da infra-estru- descendência, pois elas “funcionam” ou (me-
tura, na expressão marxista, se estrutura como lhor, muito melhor) existem não independen-
linguagem! Isto, aliás, também não é mais novi- temente delas, mas arranjadas simultaneamente
dade; foi o que levou Roman Jakobson (1970) a a regras de descendência patri ou matrilineares
advogar a antropologia lévistraussiana como “a” e práticas de residência patri ou matrilineares
grande semiologia, da qual a lingüística estru- (daí as noções de harmonia e desarmonia, etc.).
tural seria apenas um ramo. A meu ver, não há A idéia seria explicar por estas três (ou se seguir-
que se desvincular esta demonstração das EEP mos Dal Poz, quatro) diferentes institucionali-
daquela, posterior, do mesmo autor, de que zações da reciprocidade a existência dos grupos
(sejam eles patri ou matrilineares, patri ou ma-
as infra-estruturas são constituídas não apenas trilocais, hipo ou hipergâmicos, em combina-
por homens produtivos mas também por plan- ções entre estas variáveis ou funções, que não
tas, animais e entidades híbridas em relação de seriam aleatórias) e não seu funcionamento a
interação (Keck, 2006, p. 20). partir de uma existência anterior e teleologica-
mente suposta, dada pela regra de filiação ou
Lévi-Strauss mostra que existem três “estru- descendência. Desenvolverei este ponto no já
turas elementares do parentesco”9; elas mesmas mencionado artigo que preparo sobre leituras

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das estruturas. A pretensão das EEP é dupla: uma semiologia (Lévi-Strauss). Ambas não são
por um lado, mostrar que o casamento, tido distantes das propostas de Mauss, ou tomam o
até então como fato infra-estrutural, se organi- caminho, ou melhor, o desvio que Mauss to-
za como linguagem matrimonial e ao mesmo mou em relação a Durkheim. Mais: está cla-
tempo mostrar como a troca está por trás da ro que as EEP seriam anti-durkheimianas por
formação e inter-relação entre grupos. estarem em linha com as críticas a Durkheim
Neste sentido, os grupos deixam de ser gru- explicitadas no final de Totemismo hoje, críticas
pos e passam a ser “linguagem”, entre outros dirigidas à resposta oferecida por Durkheim
motivos por obedecer a alguma sintaxe. Ao à questão “o que é sociedade”. Lévi-Strauss
mesmo tempo em que, já nas EEP, então, se (1962) mostra que a resposta de Durkheim é
consegue uma importante superação da socio- em última análise uma teoria ritualística e psi-
logia na direção de um estudo da semiologia, cológica.
esta superação não exclui a pergunta funda- A meu ver, esta superação de Durkheim que
mental que Durkheim, entre outros, chama- Lévi-Strauss vem propondo desde pelo menos
riam de morfológica: “como se formam e o que 1949 ainda é atual na medida em que o mun-
são os grupos sociais?”. As EEP trazem ainda do anglo-saxônico se influenciou muito mais
sua resposta à pergunta tipicamente maussiana pelo primeiro do que por Mauss ou mesmo
(cf. Lefort, 1979) “o que é a sociedade?”. Esta por Lévi-Strauss; credito isto em parte à ênfa-
resposta já apresenta, por sua vez, alguma mo- se de Durkheim no rito em relação ao mito.
dificação em relação ao pensamento durkhei- As críticas do Totemismo hoje à teoria da socia-
miano na direção de uma teoria “simbólica” bilidade de Durkheim se justificam por esta,
(ou do signo) muito mais sofisticada: a socie- muito mais do que a de Mauss, buscar uma
dade é comunicação de signos e estes signos são origem social do simbólico e não a origem sim-
bens, palavras e mulheres, do ponto de vista bólica do social (para usar a boutade consagrada
dos homens (ou os homens do ponto de vista do texto de 1950 em que Lévi-Strauss critica
das mulheres). É neste sentido que as EEP são, Mauss). Isto pelo fato de a teoria de Durkheim:
na feliz expressão de E.Viveiros de Castro, “al- a) cair uma petição de princípio e b) fundar-se
goritmos da aliança”. Fica implícito nas EEP no rito e na psicologia (o que é paradoxal para
que dependeríamos de mais estudos etnográfi- um dos grandes fundadores da sociologia). Se
cos, como vêm sendo feitos desde então, para não, vejamos.
responder qual linguagem e/ou algoritmo. A Lévi-Strauss (1962, p. 136-7) elogia Berg-
meu ver, respostas para este tipo de questão se- son por
riam dadas caso a caso. A espera de Lévi-Strauss
por estes estudos etnográficos em boa medida encontrar a solução do problema totêmico no
foi correspondida. terreno das oposições e das noções; por uma
As críticas de Dumont às EEP não podem conduta inversa, Durkheim, tão disposto a
ser tomadas como radicais se lembrarmos que chegar sempre às categorias e mesmo às an-
ambas propõem a necessidade de se estudar a tinomias, procurou esta solução no plano da
formação dos grupos sociais. Há ainda em am- indistinção...O clã [pressuposto a priori, o que
bas a convicção de que o estudo do parentesco notei não ser o caso das EEP] se dá desde o iní-
é inescapável justamente para superarmos a so- cio, ‘instintivamente’, um emblema
ciologia durkheimiana, seja no sentido de uma
antropologia simbólica (Dumont), seja no de e

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esta figuração é sacralizada, por confusão senti- se de considerações metafísicas [...] estranhas ao
mental entre clã e emblema. seu temperamento, Radcliffe-Brown seguia a
mesma via, quando re-estabelecia o totemismo
Para Lévi-Strauss (1962, p. 138), o caráter como uma forma particular de uma tentativa
sagrado é contagioso e origina as classificações universal para conciliar oposição e integração (id.,
primitivas10; o “melhor Durkheim” admite que p. 141, itálicos originais).

toda vida social, mesmo elementar, pressupõe Parentesco e mito se aproximam, então,
uma atividade intelectual cujas propriedades como modos de pensamento associativo.
formais não podem ser um reflexo da organiza-
ção concreta da sociedade.
Lévi-Strauss’s sociological imagination
Mas a “perspectiva inversa” é
abstract This article offers a reading of C.Lévi-
muito freqüentemente adotada por Durkheim Strauss´ The elementary structures of kinship, based
quando afirma o primado do social sobre o in- on some criticism made by some of many com-
telecto. É justamente quando Bergson se quer o mentators (especially G. Homans e D. Schneider,
oposto de um sociólogo, no sentido durkheimia- L. Dumont e R. Needham). Beyond the disconti-
no do termo, que ele pode fazer das categorias nuities already indicated by recent commentators
de gênero e da noção de oposição dados ime- between Lévi-Strauss´s study of kinship and that of
diatos do entendimento, utilizados pela ordem myth, I will show that there are also continuities
social para se constituir. E é quando Durkheim between them. It will be highlighted the proposal
pretende derivar da ordem social as categorias of a structural anthropology as an encompassing
e as idéias abstratas que, para dar conta desta science, a semiology, which focuses on matters such
ordem, ele não acha mais à sua disposição nada as hierarchy. The presence of such matter, as well as
além de sentimentos, valores afetivos ou idéias its relation to basic themes, such as symmetry, in
vagas como as de contágio e contaminação. Lévi-Strauss´s work, has not up to now been ade-
quately qualified.
Apesar do psicologismo de Durkheim e de keywords Lévi-Strauss. Sociology. Kinship.
Bergson, este estaria “em melhor posição para Louis Dumont.
estabelecer os fundamentos de uma verdadei-
ra lógica sociológica” (id., p. 139). A seguir,
Lévi-Strauss formula algo pouco reconhecido: Notas
não é que o parentesco seja ele mesmo sempre
e em toda parte, aprioristicamente, “fórmula 1. Algumas destas críticas foram justo em relação a algo
global” ou “algoritmo social”, mas sim que, que, mais recentemente, Viveiros de Castro (1993)
como o mito e outras formas de pensamento percebeu ser uma das virtudes do trabalho de Du-
mont, sua capacidade para colocar o material indiano
selvagem,
em termos que poderiam servir a posteriores com-
parações. Escrevendo depois das EEP, a perspectiva
resulta de um desejo de apreensão global des- comparativa já estava enfronhada em Dumont, mas
tes dois aspectos do real que o filósofo designa ao mesmo tempo havia nele ambição a rigor etnográ-
como contínuo e descontínuo; e de uma mesma fico ainda maior do que o daquele livro. Meyer Fortes
recusa de escolher entre ambos...Resguardando- (1962, p. 1-2), entretanto, de modo (aparentemente)

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surpreendente para um representante de uma escola 5. Lembro, entretanto, que há, na própria Antropologia
que conscientemente advoga a perspectiva mais etno- estrutural (cf. Lévi-Strauss, 1958, p.101-110), “reser-
gráfica, depois de saudar a autoridade de Malinowski, vas” ao “princípio saussureano da arbitrariedade do
Lowie e Radcliffe-Brown como os grandes mestres signo” (Lévi-Strauss, 1985, p. 197).
da “sociologia comparada do casamento” e reco- 6. Vimos que J.Goody (1969 [1959], p. 47) “ao lidar com
nhecer as EEP como “massive investigations”, a elas estas sociedades” – a saber, dravidianas indianas, me-
associa Dumont e endossa a crítica feita por Goody lanésias e australianas -, não viu “necessidade [‘need’]
([1959]1969) da análise dumontiana do dravidianato em tomar os conceitos de afinidade e parentesco como
do sul da Índia que mostrava que em determinadas necessariamente exclusivos”; isto é, se a afinidade é ex-
províncias “a relação de afinidade gera o casamento”. terior na civilização européia, segundo a interpretação
Invertendo o que imaginam ser uma proposta de uma e vivência britânicas, para Goody, naquelas outras pro-
teoria geral (teoria esta que, posteriormente, Dumont víncias ela se interiorizaria no sistema de parentesco,
deixa claro não imaginar ser possível (cf., por ex., sempre entendido a partir da consangüinidade.
Dumont, 1971, p. 8), Goody e Fortes postulam que,
7. É interessante ver que esta crítica é simétrica ao elogio
universalmente, “é o casamento que gera a relação de
de Dumont, em seu prefácio à edição francesa de Os
afinidade” (Fortes, 1962, p. 2). Goody (1969[1959],
Nuer, a este livro como obra estruturalista.
p. 47) já afirmara, com Radcliffe-Brown, que se “sis-
temas dravidianos, como os australianos e alguns me- 8. Para uma sugestão de como tantas obras contempo-
lanésios, não têm termos distintos para afins” é por râneas –, como as de Foucault, que tomam o poder
que “a afinidade é construída dentro do sistema de como fundamento da vida social –, estão prenhes de
parentesco”. Voltaremos a isto. funcionalismo, cf. Sahlins, 2004.

2. Uma outra maneira de se colocar esta crítica é supor 9. Indiquei acima que Dal Poz (2004) explicita ser o ca-
que Lévi-Strauss confundiria os pontos de vistas local samento avuncular uma quarta estrutura elementar.
e global, p. ex., “não há sujeito circulante” e não se 10. Aqui Lévi-Strauss associa indevidamente, a meu ver,
pode “sacar uma fórmula holista de uma regra local” Mauss e Durkheim: embora ambos assinem o clássico
(Dumont, 1971, p. 124). De minha parte, prefiro artigo sobre as classificações primitivas de 1903, para
não colocar a crítica deste modo, pois a meu ver nem Mauss delas decorrem o social, o oposto se dando
sempre Lévi-Strauss faz esta confusão entre perspec- para Durkheim, ambas as teses, porém, indiscrimina-
tivas local e global, nem sempre inexiste “sujeito cir- damente ali presentes.
culante”; além disso, existiriam situações, mesmo fora
do parentesco, em que a etnografia nos permitiria
sacar certas (outras) fórmulas holistas de (algumas)
regras locais. Referências Bibliográficas
3. Aliás, nos textos desta autora, ambas as distinções, en-
Dal POZ, João. Dádivas e dívidas na Amazônia; parentes-
tre sexos e idade, nos remetem a lógicas de substância
co, economia e ritual nos Cinta-Larga. 2004. 358f. Tese
(como aquela presente no que ela denomina “incesto
(Doutorado), - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
de segundo tipo” dos sistemas não elementares – por
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.
ex., um homem não pode ter relações sexuais com a
DE BEAUVOIR, Simone. As Estruturas elementares do
irmã de sua esposa por não poder misturar, por meio
parentesco de Claude Lévi-Strauss. Campos, Curitiba,
dela, suas substâncias com as de seu irmão), estas sim
v. 8, n. 1, p. 183-190, [1949] 2007.
sendo decisivas e englobantes, como já mostrara Vi-
DUMONT, Louis. Introduction à deux theories d´anthropologie
veiros de Castro (1990).
sociale. Paris/La Haye:Mouton, 1971. 140p.
4. Talvez seja suficiente dizer que se Dumont descarta
_____. Hierarchy and marriage alliance in South Indian
“reciprocidade” e recupera “oposição”, descarto “tro-
Kinship. In: _____. Affinity as a value. Chicago: The
ca” e recupero “reciprocidade”. Do mesmo modo
Univ. of Chicago Press, [1957] 1983. p. 36-104.
como uso noções que estão no fulcro da obra de
FORTES, Meyer. Introduction. In: _____. (ed.). Marria-
Dumont, como a de englobamento, naquele artigo
ge in tribal societies - Cambridge Papers in Social An-
(Lanna, 2005) como neste, oponho-me a Dumont
thropology no.3. Cambridge: Cambridge University
sem deixar de nele me apoiar.
Press, 1962. p. 1-13.

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sance dustructuralisme. Paris:Ed.Léo Scheer, 2006. Agradeço aos comentários de Antonio Guer-
520 p. reiro Jr. a uma versão inicial deste trabalho.

autor Marcos Lanna


Professor do Departamento de Ciências Sociais / UFSCAR
Doutor em Antropologia/Pós-Doutorado

Recebido em 28/09/2008
Aceito para publicação em 28/09/2008

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