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SALTOS NA FÉ

A anedota é curta: um homem cai num poço e mergulha 30 metros antes de conseguir
agarrar-se a uma magra raiz que detém a sua queda. A sua mão vai perdendo a força e,
desesperado, grita: Há alguém aí em cima? Olha para o alto e vê um círculo de céu. De
repente, as nuvens abrem-se, um raio brilha sobre ele, e uma voz profunda ecoa: Sou Eu, o
Senhor, estou aqui. Solta-te da raiz e eu salvo-te. O homem pensa mais um minuto e grita:
Tem mais alguém aí em cima?
Quando se está pendurado por um coto, um magro filamento de raiz, a tendência é de fazer
a balança pesar para o lado da razão. Que se alimenta da dúvida: O Gajo existe ou a minha
necessidade acabou de inventá-lo? Daí que René Descartes tenha preferido cultivar a razão
em vez da fonte divina de conhecimento.
E a que fé se podia agarrar Kafka quando escreveu numa carta a Milena: «os beijos por
escrito não chegam ao seu destino; são bebidos no caminho pelos fantasmas», afastando
com isso qualquer possibilidade, a mínima fímbria (o beijo) de contacto?
O salto na fé, como lhe chamava Kierkegaard, é um dos grandes desafios do homem, sendo
isto indepentente de acreditar-se em Deus ou não. Como fazer convergir a si a energia que
só uma convicção indubitável engendra? O amor só se consolida e expande se houver um
salto na fé, de contrário fenece como uma flor de época, narcísica.
Escrevi um prefácio para um livro do Christian Bobin e tive de reler La Lumière do
Monde, um magnífico livro de entrevistas onde, como na Alice atrás do espelho, tudo
parece estar invertido. E aí encontro um exemplo de como a ilogicidade aparente pode ser
uma prova viva do mais verdadeiro: «O que me convence na cena do túmulo vazio, na
manhã da Ressurreição, é que ninguém aí se detém: os evangelistas não lhe dedicaram
mais do que duas linhas. Os falsificadores teriam escrito volumes e volumes sobre a
Ressurreição. Eu acredito porque existem apenas duas linhas. É estranho que a coisa mais
importante quase nunca esteja nos Evangelhos. É a mesma estranheza que me convence no
caso de Maria: ela teve essa Graça de lhe ter sido anunciado a natureza divina de seu
filho, e trinta anos depois ela esqueceu. É exatamente como a vida».
Bobin tem razão. Mesmo para um ateu, crer implica iluminar o que a vida omitiu por
demora e esquecimento e encontrar aí novas texturas, trânsitos, inteligibilidades e uma
sintaxe
intersticial - outro foco, na narração da memória - que, ao modo das sinapses, active uma
re-organimação do real e a festa do nosso reencontro com ele; visto que somos
intermitentes, no contacto que lhe devemos.
É o nexo que encontro numa história espantosa de John Cage, que só agora julgo
compreender. Escreveu o músico sobre a sua mãe, nos seus diários: «A minha mãe casou-se
duas vezes antes de desposar o meu pai, mas nunca se referiu a isso, a não ser já próximo
da morte. Ela não conseguia lembrar-se do nome do primeiro marido».
Esta passagem final mergulhava-me em tinhosas reflexões sobre os alçapões e os labirintos
da memória. Psicanaliticamente, é um cliché dizer que só recordamos o que queremos e
censuramos o que nos desagrada.
O facto é que as histórias felizes não imprimem enquanto o sulco das mágoas é muito mais
duradouro. Não interessa quanto tempo durou esse primeiro casamento, é mais pertinente
interrogar se há intensidades sem um nome que as transporte. Se tivesse sido uma relação
traumática, das que deixaria uma cicatriz vertical na psique da mãe de Cage, os anos trariam
aos seus lábios o nome do agressor, porque embora o tempo aja como uma momentanea
amnésia paliativa e cauterize a dor, deslocando-a, levando-nos a perdoar, não nos faz
esquecê-la  —  e ao mal, até por defesa, nós designamo-lo. Nós nomeamos a figura do mal
como uma prova de superação, mas nenhum judeu de Auschewitz esqueceu o nome dos seus
carrascos.
Porém, como falar da felicidade? A felicidade é como o tempo: podemos experimentá-la
mas falar dela é um contra-senso e uma felicidade demasiado consciente, meta-relacional,
seria o primeiro sinal de um défice.
O que me deixa desconcertado nesta curiosa amnésia da mãe do músico é a hipótese da
senhora ter sido tão tremendamente feliz no seu casamento que, face ao que se sucedeu, lhe
fosse insuportável atribuir um nome ao que, por qualquer motivo, perdera para sempre.
É uma hipótese nada descartável ainda que pareça pouco lógica — contudo, o que o escritor
persegue não é a lógica mas as anfractuosidades do sentido, o seu esplendor indiciário; a
lógica está para o escritor como o pé chato para o maratonista: é um empecilho. O escritor
vive dos saltos na fé.
Por isso, na mesma lógica invertida, escreve Bobin:
«Cioran é um benfeitor, não pelo facto, como dizem os seus falsos discípulos, de ser um
desencantado com o mundo, mas porque não deixa nenhum falso encantamento. É alguém
que limpa o deserto. Com uma vassourinha, ele retira toda a porcaria das consolações
fáceis, e é para mim, depois deste trabalho, que ele começa a ter uma palavra verdadeira.
É preciso o trabalho de inverno: de retirar por fim os ramos mortos: a isto se chama
preparar a primavera». Absolutamente.
Um salto na fé, igualmente, o que foi dado pelo museu de cera Madame Tussaud de Berlim,
ao ter colocado a sua estátua de Donald Trump num contentor do lixo, nesta sexta-feira.
Gente que não está só arreigada ao comércio.

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