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Marlene Rozenberg
Alvará de demolição
Peço coragem.
Na citação de Winnicott(9) com a qual inicio esse trabalho, podemos usar como modelo,
esta postura do indivíduo diante da obra de arte para pensar as experiências do
cotidiano da vida e como a tradição está inserida nesta. Em que consiste o amor criativo
pela vida? E a destrutividade inevitável no desenvolvimento da capacidade amorosa? E
qual a importância da capacidade de odiar? O que seria destrutividade inerente ao
relacionamento objetal e a destrutividade que se origina da imaturidade?
Entramos aí num outro espectro que amplia mais e torna mais complexa a compreensão
e que diz respeito à vida cultural, social, poliítica que não é o objetivo deste trabalho.
Hanna Arendt escreveu muito sobre essas questões.
É na relação interpessoal que uma situação traumática pode acontecer. A cada estágio
no processo de amadurecimento, consequências diferentes surgirão. Essas vivências
traumáticas ocorrem em função de falhas ambientais severas. A confiabilidade, que para
Winnicott é fundamental, pode ser abalada profundamente, e juntamente, a
temporalidade sofre rupturas que interferem na formação de sua unidade e de sua
integração.
Na vida cotidiana, o novo, o não eu, está sempre rompendo com o estático e com o
subjetivo. Essas rupturas continuamente exigem de nós, seres humanos, formas
maleáveis de acolhimento e contato para que possamos incluir o novo sem
necessariamente cair num abismo e no desespero. Na clínica, compartilhamos algumas
dessas experiências abissais com pacientes. Podemos observar que se não houve
experiência suficiente de estabilidade e de previsibilidade, não haverá condição de se
abrir para o novo, pois pode implicar numa dispersão de si mesmo, já que a esperança
não se dá, o futuro não pode ser concebido; há um colapso na fé.
Na citação de Winnicott, temos um ato de violência, um gesto que não se fez criação,
sem ética, pelo contrário e diferente do artista que criou a obra e da pessoa que a
admira. A destruição implícita no amor amadurecido que cria a externalidade do objeto
corresponde a uma desconstrução contínua subjetiva. Podemos conjecturar que na
violência está a expressão da impossibilidade de destruir o objeto subjetivo. Ou porque
ele não chegou a se constituir, ou seja, não pode ser criado, ou porque, uma vez
constituído, não houve a experiência da agressividade. Sem esta criatividade primária
de onde surge o gesto espontâneo, impossível chegar à destrutividade. Criar é fazer
existir. Numa cultura onde a subjetividade vai sendo esgarçada, onde temos uma
confusão entre o que é público e privado podemos assistir atos de violência. A
desconstrução é que possibilitará o nascimento ao diálogo.
Se não é o bebê quem cria, se não pode amar o objeto primário impiedosamente, sua
agressividade deixa de ser gesto constituinte e não ocorre uma apropriação de sua
subjetividade. E o impacto do encontro com o outro torna impossível o uso da
hospitalidade. No encontro com o outro pode surgir a agressividade como reação e não
como gesto genuíno. Ter a experiência de um impulso é diferente de ter a reação ao
ataque, e viver a agressividade mais na reação do que no impulso acaba por impedir que
a agressividade seja vivida como sua. Pode-se pensar que o masoquismo entra aí como
possibilidade de tornar suportável o ataque e a invasão do outro.
Precisamos também considerar que “toda mobilidade agressiva espontânea terá que
fundir-se no erótico dando-lhe a força. Privado da violência, o amor se violenta em seu
esgotamento. Isso mesmo é pensável à luz do conceito de depressão psicótica: perda de
si, perda de “substância psíquica”, se se produz uma precoce disjunção que desloca a
violência espontânea dos movimentos amorosos, com efeitos devastadores quanto à
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futura capacidade de amar.” (Rodulfo, R.; 2009) E acrescentando a isso, o que vai dar o
sentimento de realidade na experiência erótica fundida com a agressividade é a
presença do outro que marca uma oposição e mantém a possibilidade de fé.
Estou falando de novas teorias e de novas experiências de vida, de uma visão mais
macroscópica da historia do ser humano, mas como falei antes, preciso da microscopia
da clinica para buscar uma compreensão dos paradoxos do criar/encontrar e do
destruir/conhecer o outro no processo do viver. No processo analítico a compreensão
comporta um sujeito conhecendo outro sujeito, sujeitos esses que tem suas historias
pessoais, e no encontro destas duas subjetividades vivenciarão esses fenômenos
paradoxais. É possível conhecer o outro? Em que consiste esse conhecer? O mistério se
instala.
A experiência do já tão falado -- O bebê cria o objeto e ele deve estar lá e se deixar criar-
- é a primeira experiência criativa, assim chamada criatividade primária. A somatória
destas vivências permitirá a entrada no processo de desilusão e da destrutividade
madura, relacionada ao amor que será diferente da violência atuada, não incomum em
nosso cotidiano.
Outro filósofo que penso ter afinidades com o pensamento de Winnicott é Emanuel
Lévinas(2). Ele usa o termo carícia para se referir ao fenômeno da alteridade. Citado por
Ouaknin(4), num livro intitulado “O elogio da caricia”, afirma: “A caricia é um modo de
ser do sujeito, no qual o sujeito, ao contato com o outro, vai mais além desse contato.”
O que é acariciado não é tocado... A essência da caricia é a busca já que a caricia não
sabe o que busca. É a sabedoria da incerteza, da não posse do outro. O essencial é esse
não saber, essa falta de ordem fundamental.” Conceito que reclama pela relatividade
da verdade e não lhe cabe a ideia de que alguém tenha a razão.
A caricia é algo sempre por vir que abre novas perspectivas para o inatingível. É onde
o viver criativo se apoia. Sem abertura não há criatividade e sim o tédio. Desenvolver a
capacidade de hospitalidade do ser para com outro ser, para tudo que for não-eu implica
na construção da temporalidade já que a caricia é espera sem conteúdo. Esta
experiência funda o ser em sua subjetividade e respeito, a si mesmo e ao outro. Traz
sempre o risco do que é o viver na primeira pessoa (eu). Como dizia Winnicott, a
afirmação mais perigosa de se fazer é EU SOU. E o que inclui o não-eu demanda criação,
destruição e recriação contínuas. Penso que esta palavra “carícia” nos remete à questão
da sexualidade e do erotismo onde a experiência de parceria criativa e mistério está
potencialmente presente. A pessoa que destrói concretamente a obra de arte não pode
ter esse gesto-carícia , não pode abrir sua mão, a não ser para esta destruição concreta
do objeto.
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Se eu destruo e encontro o objeto objetivo ( isso implica numa integração do ego), posso
usá-lo, descobri-lo e incluí-lo em minha vida de forma criativa e livre. Abre-se a
possibilidade para uma criatividade e destrutividade maduras, vivências edipianas,
novas conquistas e expansão emocional, com paradoxos continuamente presentes. As
frustrações podem ser experimentadas já que existe uma diferenciação eu/não eu e a
capacidade de ódio também.
Vou fazer um pequeno exercício de combinações dentro dos paradoxos, falando assim
das possíveis dissociações e patologias que podem ocorrer. Elas não se esgotam e nem
são tão separadas e facilmente discriminadas. É apenas uma forma para podermos
pensar nelas.
Possíveis obstáculos:
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Se eu crio e o objeto não esta lá, há uma queda no vazio. Portanto, não encontro
o outro nem a mim mesmo. Sem o objeto subjetivo, não sou. Agressividade sem
oposição não faz criar alteridade.
Se eu crio e o objeto me invade com sua externalidade, posso criar um falso self
para me adaptar e mantê-lo presente. Minha vida fica fútil, vazia, sem sentido.
A reação passa a ser a única forma de usar minha agressividade para sobreviver
a um assassinato de meu self.
Se eu crio e não destruo, e isso pode ocorrer em função de o objeto não tolerar
minha agressividade, a relação fusional se petrifica e vou desenvolver defesas
psicóticas para sobreviver e não romper essa fusionalidade. A depressão
psicótica pode evoluir já que a agressividade se dissocia do amor.
Se eu destruo e não dou alguma abertura para que o objeto sobreviva, se instala
a violência psicopática.
Roussillon(7), mais uma vez expressa bem a tarefa do analista: “A tarefa do analista é
manter ou restabelecer a situação “analisante”, aquela na qual o paciente se torna capaz
ou reencontra sua capacidade de dar vida e sentido a seu mundo interno, de “criar” o
que ele acha ou achou, de “achar” o que ele foi ou está em condição de criar: o analista
mantém ou restabelece as potencialidades transicionais da situação analítica. Mas como
agir para isso?”
“A criança olhava o velho que dançava como se fosse continuar dançando eternamente:
-- Olhe meu filho, o homem é como um peão. Só no movimento alcança sua dignidade,
sua nobreza e seu equilíbrio. O homem se faz desfazendo-se, continuamente. Nunca se
esqueça disso.
Fragmento clínico
Digo-lhe que entendo seu medo de ser abandonada e pouco valorizada, medo de confiar
e ser traída novamente, mas tudo que acontecesse durante nosso trabalho conjunto
poderíamos conversar e eu me dispunha a isso. Demora a aceitar essa resposta e repete:
vai ou não vai me atender? Entendo que precisa de um mínimo de segurança em ser
valorizada por si mesma e não pelo dinheiro. Precisa de confiança de que estaria com
uma analista com alma e de que não seria surpeendida pelo inesperado. Erínia, então,
conta como já tinha passado por situações desta ordem em outra terapia, e com sua
mãe que não ficou com ela nas situações mais difíceis de sua vida em desespero e que
não foram poucas. Seu pai abandonou a família, sua mãe nunca pensou na filha.
Conforme fala de sua mãe e de seu marido, seu ódio se intensifica. Testa-me na sua
forma de falar, para ver se acredito nela. Tomada por esse sentimento entra em choro
compulsivo e grita dizendo que não agüenta mais viver assim. Quer se separar de seu
marido, mas não consegue. Sua forma de estar e de se comunicar parece tão invasiva e
penetrativa, mas penso que é uma maneira desesperada da paciente tentar criar um
objeto que permaneça vivo apesar de seus ataques destrutivos.
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Nesse início de análise, não falei nada disso a ela. Escutava e me deixava possuir. Meu e
seu não cabiam já que não havia diferenciação eu/não eu; acolhi sua necessidade de nos
misturarmos ou de ficar no lugar de objeto inexistente. Acredito que assim, Erinia pôde
permanecer em análise durante um tempo. Como se daria a separação sem que fosse
jogada num abismo? Um dia, ela chegou e me disse que precisava fazer uma experiência
de se separar de mim por um tempo para ver como se sentia. Não interpretei e nem
discordei ou concordei. Só apontei que parecia ser uma necessidade dela de viver uma
separação e se certificar que continuava viva e sendo alguém e que havia uma
importância no fato de ser ela quem decidia e não eu. E ela respondeu: pode ser sim.
Pode ser que em breve eu volte, mas isso precisa vir de mim. Ação ou atuação? Erínia
acreditava que para apropriar-se de sua individualidade dependia da separação física,
do ato direto, assim mostrando sua não capacidade de ficar só na presença do outro,
sua não capacidade de destruir o objeto subjetivo para que o outro pudesse ganhar um
lugar. Não tinha ainda o seu próprio lugar, não podendo ser agente de sua própria vida.
A presença do outro ainda parecia ser uma invasão, uma ameaça ao seu próprio existir.
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“Uma das situações mais graves e devastadoras a que um bebê está exposto é o da mãe
que, deprimida ou não, é inconsciente do ódio que sente pelo bebê. Embora os pais de
modo natural amem e também odeiem os bebês, uma coisa é o ódio do qual a mãe tem
consciência e que aparece nas relações e outra coisa é o ódio reprimido e inconsciente.
Este, em geral, produz formações na linha do sentimentalismo. A criança não tem como
haver-se com esse tipo de falha materna e o risco é a esquizofrenia infantil ou autismo.”
(Elza de Oliveira Dias)
Lembrei-me do tema do livro de Konrad Stein “As erínias de uma mãe” onde este autor
faz uma análise profunda a respeito do ódio da mãe.
Na mitologia:
Imagens: As Erínias
Bibliografia