Você está na página 1de 12

1

Tradição e paradoxo no viver criativo :


criação/destruição/encontro

Marlene Rozenberg

Alvará de demolição

O que precisa nascer

tem sua raiz em chão de casa velha.

À sua necessidade o piso cede,

Estalam rachaduras nas paredes,

Os caixões de janela se desprendem.

O que precisa nascer

aparece no sonho buscando frinchas no teto,

réstias de luz e ar.

Sei muito bem do que este sonho fala

E a quem pode me dar

Peço coragem.

(Adélia Prado, em A duração do dia; 2011)

Começarei citando Winnicott:

“A pessoa anti-social que entra em uma galeria e retalha um quadro de autoria de um


velho mestre não está acionada pelo amor à pintura e, na realidade, não está sendo tão
destrutiva quanto o amante da arte é quando preserva a pintura, usa-a plenamente e,
na fantasia inconsciente, a destrói repetidas vezes...Esse exemplo bastante grosseiro
pode servir para mostrar a existência de uma ampla diferença entre destrutividade que
é inerente ao relacionamento objetal e a destrutividade que se origina da imaturidade
do individuo.”
2

(Notas escritas no trem, Parte 2, abril de 1965 em


Explorações Psicanalíticas)

Sempre me inquietaram positivamente essas ideias pensadas por Winnicott. Refletir


sobre a questão da agressividade, destrutividade e criatividade envolve paradoxos, lugar
de desconforto e de movimento contínuo no processo do viver. A poética da vida implica
numa maneira de olhar ou ad-mirar, mirar à distancia, criar, destruir e recriar. Encontrar.
É uma conjunção de experiências emocionais que faz com que uma pessoa se sinta viva.

Winnicott se interessa principalmente sobre o processo do ser e seus paradoxos.


Roussilon(8) em seu texto “Atualidade de Winnicott” afirma: “...A questão do paradoxo
de uma identidade que, por se tratar da identidade de um vivente, não pode ser idêntica
a si mesma, é presa entre um modo de presença oriunda dos determinantes do passado
e um modo de advir, um potencial a cumprir, um ainda não vivido a tornar presente a
si. O vivente é caracterizado por esse potencial de relação com o desconhecido de si,
com o não advindo de si, com o imprevisto do advir”.

Na citação de Winnicott(9) com a qual inicio esse trabalho, podemos usar como modelo,
esta postura do indivíduo diante da obra de arte para pensar as experiências do
cotidiano da vida e como a tradição está inserida nesta. Em que consiste o amor criativo
pela vida? E a destrutividade inevitável no desenvolvimento da capacidade amorosa? E
qual a importância da capacidade de odiar? O que seria destrutividade inerente ao
relacionamento objetal e a destrutividade que se origina da imaturidade?

De acordo com a concepção de Winnicott, o bebê até chegar a encontrar o objeto já


passou por todo um processo relacionado à sua agressividade (vou destacar esse
aspecto, apesar de toda complexidade presente no desenvolvimento do ser humano).
O objeto encontrado como externo a si mesmo só será possível se ele foi destruído
subjetivamente, sendo expulso da área de onipotência, e se ele sobrevive (a
possibilidade de não sobrevivência do objeto deve ser considerada).

A agressividade, para Winnicott, é multifacetada:

1. Está presente já nos primeiros movimentos do bebê dentro do útero, é a sua


motilidade muscular, sua vitalidade e espontaneidade.
2. No início de vida, vive a experiência do amor impiedoso, o amor que ataca, que
agride, que esvazia, etc.. Se a mãe não está no lugar de receber e se ela distorcer
o significado de sua agressividade, sérias consequências ocorrerão. Não há ainda
aí a capacidade para sentir culpa e responsabilidade. Amor e agressividade estão
fundidos.
3. A raiva como reação á frustração ocorre quando já há uma unidade de self. O
ódio implica em alguma percepção de alteridade.
3

4. A destruição do objeto subjetivo a que Winnicott se refere, implica no uso do


objeto onde o outro passa a existir como alguém com sua própria subjetividade
e externalidade.

Toda essa concepção de Winnicott sobre agressividade implica na não utilização do


conceito de pulsão de morte como vinha ocorrendo na psicanálise. Mas, como pensar
os fatos observados da humanidade que alcançam situações de violência, assassinatos,
crimes, guerras, perversões, regimes totalitários, etc? E na clínica psicanalítica, com os
assim chamados pacientes difíceis como compreender as situações emocionais com
extremos sofrimentos? Penso que com esses pacientes, o analista tem questões de
manejo que requerem criatividade e liberdade para trabalhar, por isso difíceis.

Entramos aí num outro espectro que amplia mais e torna mais complexa a compreensão
e que diz respeito à vida cultural, social, poliítica que não é o objetivo deste trabalho.
Hanna Arendt escreveu muito sobre essas questões.

É na experiência de relações de intimidade com meus pacientes que tenho


oportunidade de conhecer mais sofisticadamente o ser humano no encontro com o
outro. O que se passa dentro do setting é também vivenciado fora, ou seja, faz parte da
vida. Esses dois espaços comportam uma transicionalidade entre si bem como o objeto
subjetivo com o objeto objetivamente percebido. Segundo Winnicott, esse espaço que
torna possível essa troca é um território e não uma linha definida. É assim,
primeiramente o espaço transicional, e depois o espaço potencial.

Os processos transicionais existem em função do paradoxo: encontro/criação e


destruição/encontro. É o caminho que vai da onipotência da criação onde eu e não-eu
estão em estado de indiferenciação (portanto não está presente o paradoxo) até o
objeto transicional que é e não é a mãe, e depois, à capacidade de usar o objeto
objetivamente percebido. O sentir-se real e o viver a vida implicam nessas jornadas que
não são lineares nem simples. Sem a presença do outro, o ser não se constitui.

É na relação interpessoal que uma situação traumática pode acontecer. A cada estágio
no processo de amadurecimento, consequências diferentes surgirão. Essas vivências
traumáticas ocorrem em função de falhas ambientais severas. A confiabilidade, que para
Winnicott é fundamental, pode ser abalada profundamente, e juntamente, a
temporalidade sofre rupturas que interferem na formação de sua unidade e de sua
integração.

Ao propor o conceito de destrutividade necessária e inerente ao viver criativo do ser


humano e sua capacidade amorosa, Winnicott propõe uma novidade na história e
tradição dos conceitos psicanalíticos. A sua frase “Quanto mais eu amo, mais eu
destruo” traz esta novidade paradoxal que implica em acolher novas maneiras de pensar
o ser humano, ampliando o campo analítico de observação.
4

Como surge a possibilidade de viver a alteridade e como a destrutividade participa nesta


experiência? Possivelmente, nos casos de pacientes muito regredidos, há falhas nesta
etapa da vida, como algo que não pode ser experimentado.

Na vida cotidiana, o novo, o não eu, está sempre rompendo com o estático e com o
subjetivo. Essas rupturas continuamente exigem de nós, seres humanos, formas
maleáveis de acolhimento e contato para que possamos incluir o novo sem
necessariamente cair num abismo e no desespero. Na clínica, compartilhamos algumas
dessas experiências abissais com pacientes. Podemos observar que se não houve
experiência suficiente de estabilidade e de previsibilidade, não haverá condição de se
abrir para o novo, pois pode implicar numa dispersão de si mesmo, já que a esperança
não se dá, o futuro não pode ser concebido; há um colapso na fé.

É da novidade que surge a surpresa sendo esta a essência do processo analítico e do


processo de vida. O inesperado na vida lança o indivíduo em experiências de
relacionamento eu/não eu. Rupturas? Encontro?

Na citação de Winnicott, temos um ato de violência, um gesto que não se fez criação,
sem ética, pelo contrário e diferente do artista que criou a obra e da pessoa que a
admira. A destruição implícita no amor amadurecido que cria a externalidade do objeto
corresponde a uma desconstrução contínua subjetiva. Podemos conjecturar que na
violência está a expressão da impossibilidade de destruir o objeto subjetivo. Ou porque
ele não chegou a se constituir, ou seja, não pode ser criado, ou porque, uma vez
constituído, não houve a experiência da agressividade. Sem esta criatividade primária
de onde surge o gesto espontâneo, impossível chegar à destrutividade. Criar é fazer
existir. Numa cultura onde a subjetividade vai sendo esgarçada, onde temos uma
confusão entre o que é público e privado podemos assistir atos de violência. A
desconstrução é que possibilitará o nascimento ao diálogo.

Se não é o bebê quem cria, se não pode amar o objeto primário impiedosamente, sua
agressividade deixa de ser gesto constituinte e não ocorre uma apropriação de sua
subjetividade. E o impacto do encontro com o outro torna impossível o uso da
hospitalidade. No encontro com o outro pode surgir a agressividade como reação e não
como gesto genuíno. Ter a experiência de um impulso é diferente de ter a reação ao
ataque, e viver a agressividade mais na reação do que no impulso acaba por impedir que
a agressividade seja vivida como sua. Pode-se pensar que o masoquismo entra aí como
possibilidade de tornar suportável o ataque e a invasão do outro.

Precisamos também considerar que “toda mobilidade agressiva espontânea terá que
fundir-se no erótico dando-lhe a força. Privado da violência, o amor se violenta em seu
esgotamento. Isso mesmo é pensável à luz do conceito de depressão psicótica: perda de
si, perda de “substância psíquica”, se se produz uma precoce disjunção que desloca a
violência espontânea dos movimentos amorosos, com efeitos devastadores quanto à
5

futura capacidade de amar.” (Rodulfo, R.; 2009) E acrescentando a isso, o que vai dar o
sentimento de realidade na experiência erótica fundida com a agressividade é a
presença do outro que marca uma oposição e mantém a possibilidade de fé.

Alguns filósofos também se dedicam a pensar esses fenômenos. Aprecio as ideias de


Edgar Morin(3) que em seu livro “Os sete saberes necessários à educação do futuro”
afirma que o inesperado nos surpreende e, nós, instalados na segurança de nossas
teorias e ideias experimentamos o novo que nos desestabiliza, e esse brota sem parar.
E a nossa atitude de abertura para tal nos faz rever essas teorias e ideias provocando
contínuas transformações e desconstruções. A história não constitui uma evolução
linear, ou seja, inclui turbulências, desvios, bifurcações, imobilidade, êxtases, latências,
virulências, etc. As progressões e regressões, evoluções e involuções provocam rupturas
contínuas. “O gênio brota na brecha do incontrolável, justamente onde a loucura
ronda.” Assim, também, é a história de um processo analítico e de um processo de vida.
O gênio diz respeito à capacidade criativa/destrutiva de cada um de nós. E a loucura diz
respeito à impossibilidade de viver essas experiências que se tornam aterrorizantes.

A história, que está implícita no processo de amadurecimento do individuo é um


complexo de criação e destruição, gênese e morte, civilização e barbárie. A questão da
tradição também precisa ser aqui considerada, algo fundamental para Winnicott e para
a própria evolução da psicanálise. É um dos elementos que permitem transformações.
Tradição não é recepção passiva e transmissão mecânica, mas uma recriação do
sentido. Esta recriação se dá pela renovação da palavra e das idéias. E a renovação é,
também, um exercício de liberação, pois tira o ser do sempre o mesmo. Assim podemos
conceber a evolução do individuo, das teorias psicanalíticas, da arte, da ciência, da
clinica. A tradição está diretamente implicada na transicionalidade. Sem esta
(transicionalidade), a capacidade criativa fica comprometida, fazendo com que a pessoa
recorra a defesas que podem impedi-la de viver.

A vivência paradoxal é a que inclui abertura, é viver na negatividade, é aceitar que as


coisas não são como supúnhamos, a presença do outro muda nosso saber, a nossa
tradição, e nos abre para uma possível liberdade para criar e recriar o sentido das
experiências vividas. O sentido da vida é criado (ou não) continuamente. Portanto o que
chamamos de objeto subjetivo é (ou não) continuamente destruído.

A liberdade é um elemento fundamental, incluído na questão da tradição. Liberdade


para criar, para ser o que se é, não no sentido estático, sentir-se real, alcançar uma
maturidade onde a responsabilidade ganha um lugar para que se introduza um sentido,
poder sofrer mudanças na cadeia de causalidade e deixar entrar algo novo e real. O bebê
é a concretização disto na vida de um casal, o novo, o estrangeiro que chega. Fragilidade
e vulnerabilidade, vetor para o futuro. Criar é existir, simbolizar.
6

Estou falando de novas teorias e de novas experiências de vida, de uma visão mais
macroscópica da historia do ser humano, mas como falei antes, preciso da microscopia
da clinica para buscar uma compreensão dos paradoxos do criar/encontrar e do
destruir/conhecer o outro no processo do viver. No processo analítico a compreensão
comporta um sujeito conhecendo outro sujeito, sujeitos esses que tem suas historias
pessoais, e no encontro destas duas subjetividades vivenciarão esses fenômenos
paradoxais. É possível conhecer o outro? Em que consiste esse conhecer? O mistério se
instala.

O processo do amadurecimento do individuo implica num processo vivo e continuo e a


relação de alteridade vai sendo conquistada e ampliada. O que pode haver de mais
complexo na vida é se relacionar com o diferente, abrir-se para o outro; é também um
anseio que atende necessidades e desejos humanos. Para isso, o si mesmo precisa estar
constantemente se constituindo, eixo que possibilitará a vida de relações. Tradição é
movimento.

A experiência do já tão falado -- O bebê cria o objeto e ele deve estar lá e se deixar criar-
- é a primeira experiência criativa, assim chamada criatividade primária. A somatória
destas vivências permitirá a entrada no processo de desilusão e da destrutividade
madura, relacionada ao amor que será diferente da violência atuada, não incomum em
nosso cotidiano.

Outro filósofo que penso ter afinidades com o pensamento de Winnicott é Emanuel
Lévinas(2). Ele usa o termo carícia para se referir ao fenômeno da alteridade. Citado por
Ouaknin(4), num livro intitulado “O elogio da caricia”, afirma: “A caricia é um modo de
ser do sujeito, no qual o sujeito, ao contato com o outro, vai mais além desse contato.”
O que é acariciado não é tocado... A essência da caricia é a busca já que a caricia não
sabe o que busca. É a sabedoria da incerteza, da não posse do outro. O essencial é esse
não saber, essa falta de ordem fundamental.” Conceito que reclama pela relatividade
da verdade e não lhe cabe a ideia de que alguém tenha a razão.

A caricia é algo sempre por vir que abre novas perspectivas para o inatingível. É onde
o viver criativo se apoia. Sem abertura não há criatividade e sim o tédio. Desenvolver a
capacidade de hospitalidade do ser para com outro ser, para tudo que for não-eu implica
na construção da temporalidade já que a caricia é espera sem conteúdo. Esta
experiência funda o ser em sua subjetividade e respeito, a si mesmo e ao outro. Traz
sempre o risco do que é o viver na primeira pessoa (eu). Como dizia Winnicott, a
afirmação mais perigosa de se fazer é EU SOU. E o que inclui o não-eu demanda criação,
destruição e recriação contínuas. Penso que esta palavra “carícia” nos remete à questão
da sexualidade e do erotismo onde a experiência de parceria criativa e mistério está
potencialmente presente. A pessoa que destrói concretamente a obra de arte não pode
ter esse gesto-carícia , não pode abrir sua mão, a não ser para esta destruição concreta
do objeto.
7

No texto de Winnicott(10) “Observação de bebês numa situação estabelecida” temos


um momento na atividade do bebê com a espátula em que, depois da hesitação, ele
pega, exercendo sua hospitalidade para com o objeto, coloca na boca e, então, abre a
mão para soltar o objeto (espátula) e deixa-lo cair. É a separação. Palavras de Ouaknin:
“A mão se abre, estende os dedos para fora. Transcendência para o mundo. Mas quando
alcançar o mundo, seus dedos não prendem, impõem. Os dedos ficam tensionados,
oferecidos e a mão se faz caricia diante da relatividade da verdade, da incerteza.”

Inevitavelmente a questão da ética, bastante complexa, se apresenta neste fenômeno.


Não só como conceito, mas como vivencia de ruptura. Nascer e ser uma criatura são
dois conceitos essenciais para a ética. Há ética quando se considera a relatividade de
cada ser. Sem ética, a interrupção do fluxo de vida pode levar a paralisações e à
violência. A ação ética é uma espécie de nascimento. E aqui eu penso que o paradoxo
destruir/criar se impõe. Se não posso desenvolver a carícia, o gesto de chegar perto e
apalpar o novo, esticar a mão sem possuir, recorro à violência atuada e estou impedido
de amar. E a vida se torna mecânica, achatada.

Sem paradoxos não temos profundidade, perspectivas. Perspectivas acontecem em


níveis espaciais e temporais.

Criar o objeto é uma questão de iniciar um processo de sobrevivência, destruí-lo é uma


questão de poder se inserir e pertencer ao mundo.

A destruição é uma desconstrução com vivencias de desidentificação que remete à


fenda da diferença.

A impossibilidade de viver esse processo paradoxal de criação/destruição pode levar às


angustias impensáveis. Várias são as experiências vividas ou não vividas que podem
impedir essa evolução.

Na saúde e na realização criativa:

Se eu destruo e encontro o objeto objetivo ( isso implica numa integração do ego), posso
usá-lo, descobri-lo e incluí-lo em minha vida de forma criativa e livre. Abre-se a
possibilidade para uma criatividade e destrutividade maduras, vivências edipianas,
novas conquistas e expansão emocional, com paradoxos continuamente presentes. As
frustrações podem ser experimentadas já que existe uma diferenciação eu/não eu e a
capacidade de ódio também.

Vou fazer um pequeno exercício de combinações dentro dos paradoxos, falando assim
das possíveis dissociações e patologias que podem ocorrer. Elas não se esgotam e nem
são tão separadas e facilmente discriminadas. É apenas uma forma para podermos
pensar nelas.

Possíveis obstáculos:
8

Se eu crio e o objeto não esta lá, há uma queda no vazio. Portanto, não encontro
o outro nem a mim mesmo. Sem o objeto subjetivo, não sou. Agressividade sem
oposição não faz criar alteridade.

Se eu crio e o objeto me invade com sua externalidade, posso criar um falso self
para me adaptar e mantê-lo presente. Minha vida fica fútil, vazia, sem sentido.
A reação passa a ser a única forma de usar minha agressividade para sobreviver
a um assassinato de meu self.

Se eu crio e não destruo, e isso pode ocorrer em função de o objeto não tolerar
minha agressividade, a relação fusional se petrifica e vou desenvolver defesas
psicóticas para sobreviver e não romper essa fusionalidade. A depressão
psicótica pode evoluir já que a agressividade se dissocia do amor.

Se eu destruo e o objeto não sobrevive, sofro angustias persecutórias ferozes e


confundo o externo com o interno. Posso recorrer à violência, usar crueldade e
encontrar (ou não) um objeto que a suporte.

Se eu destruo e não dou alguma abertura para que o objeto sobreviva, se instala
a violência psicopática.

A violência é a impossibilidade de experimentar a maturação deste processo


onde o eu está em queda no vazio infinito. A violência, nesses casos pode
exercer, paradoxalmente, uma função de holding.

Roussillon(7), mais uma vez expressa bem a tarefa do analista: “A tarefa do analista é
manter ou restabelecer a situação “analisante”, aquela na qual o paciente se torna capaz
ou reencontra sua capacidade de dar vida e sentido a seu mundo interno, de “criar” o
que ele acha ou achou, de “achar” o que ele foi ou está em condição de criar: o analista
mantém ou restabelece as potencialidades transicionais da situação analítica. Mas como
agir para isso?”

É da apropriação da subjetividade que o ser humano pode viver criativamente, e sem a


destrutividade e o encontro com o outro essa realização não se dá.

Conversa entre uma criança e um sábio mestre:

“A criança olhava o velho que dançava como se fosse continuar dançando eternamente:

-- Vovô, por que danças assim?


9

-- Olhe meu filho, o homem é como um peão. Só no movimento alcança sua dignidade,
sua nobreza e seu equilíbrio. O homem se faz desfazendo-se, continuamente. Nunca se
esqueça disso.

Fragmento clínico

Recebo um telefonema de uma mulher para marcar hora, mostrando-se bastante


ansiosa e pedindo o mais breve possível o horário. Marcamos e Erínia comparece num
estado de palidez e sofrimento. Chora muito e conta fatos de sua vida que a colocaram
num lugar de vítima de traições. Conta tantos fatos desta natureza que se configuraram
em delírios persecutórios. Tanto de sua mãe como de seu marido. Expressa muito ódio,
fúria, inclusive ódio de si mesma. Procura justiça, sentindo-se vítima de injustiças e tem
desejo de vingança. Quando me conta tudo isso, sinto um misto de sentimentos, mas
não tenho espaço durante sua fala ininterrupta. A única forma em que me inclui na
conversa é através de uma pergunta: “Antes de combinarmos qualquer coisa eu quero
saber o seguinte: se eu não puder te pagar em algum momento, você continua me
atendendo?“. Com essa pergunta Erínia, de imediato, me imobiliza e sinto que preciso
ser rápida para que na resposta eu possa lhe dar esperanças de não abandoná-la e ao
mesmo tempo nada lhe prometer em termos sacrificiais. De imediato, assim, cria uma
situação onde posso me tornar um objeto que trai e a coloca mais uma vez como vítima
de alguma injustiça. E preciso me manter firme diante de sua comunicação agressiva.
Seu medo de ser traída se reaviva a cada aproximação que faz.

Digo-lhe que entendo seu medo de ser abandonada e pouco valorizada, medo de confiar
e ser traída novamente, mas tudo que acontecesse durante nosso trabalho conjunto
poderíamos conversar e eu me dispunha a isso. Demora a aceitar essa resposta e repete:
vai ou não vai me atender? Entendo que precisa de um mínimo de segurança em ser
valorizada por si mesma e não pelo dinheiro. Precisa de confiança de que estaria com
uma analista com alma e de que não seria surpeendida pelo inesperado. Erínia, então,
conta como já tinha passado por situações desta ordem em outra terapia, e com sua
mãe que não ficou com ela nas situações mais difíceis de sua vida em desespero e que
não foram poucas. Seu pai abandonou a família, sua mãe nunca pensou na filha.
Conforme fala de sua mãe e de seu marido, seu ódio se intensifica. Testa-me na sua
forma de falar, para ver se acredito nela. Tomada por esse sentimento entra em choro
compulsivo e grita dizendo que não agüenta mais viver assim. Quer se separar de seu
marido, mas não consegue. Sua forma de estar e de se comunicar parece tão invasiva e
penetrativa, mas penso que é uma maneira desesperada da paciente tentar criar um
objeto que permaneça vivo apesar de seus ataques destrutivos.
10

Combinamos nossos encontros, Erínia foi estabelecendo alguma confiança no nosso


trabalho e em mim. Até certo ponto. Quando conversávamos e eu lhe dizia algo que
parecia fazer algum sentido a ela, rapidamente respondia: “era exatamente isso que eu
estava pensando vindo para cá”, ou “já pensei nisso”, ou “isso não é novidade para
mim”, ou “de que adianta eu me analisar?”. Numa sessão chegou e me perguntou: “você
pode me explicar como funciona esse negócio aqui? Eu não entendo. Eu me sinto
melhor, um pouco menos ansiosa, menos desesperada, mas não entendo como que
conversando, pode acontecer isso”. O susto com a presença do outro que a transforma.
Com todas essas indagações e respostas, fui percebendo que Erínia havia levantado uma
fortaleza defensiva para não ser vítima de um objeto odioso, traidor que a deixasse na
solidão depois de ter confiado em mim. Se surpreendia com um vínculo que podia lhe
oferecer algo que não decepção. Sua tradição era a decepção. Supus que já havia vivido
esta experiência de terror de criar seu objeto e esse não estar lá, desaparecer. No lugar
de uma ausência aniquiladora ou de uma presença decepcionante e abandonadora, se
apossa de tudo que vem do outro e diz que é seu, como se assim nada tivesse a perder,
principalmente a si mesma. Como um bebê que cria a si mesmo, se alimentando de
alucinação para que o gesto não a conduza para o abismo. Ela não sabia, mas já estava
nele. O outro é o seu abismo. A reação é a sua salvação pois ocupa o lugar da ruptura
de sua continuidade de ser. “Quando a confiabilidade não foi instaurada e não há esse
“acreditar” que é fundamento, o indivíduo não pode entregar-se aos acontecimentos da
vida e fica todo o tempo tomando conta do ambiente, à espreita de alguma invasão ou
tomando conta de si, enredado em si mesmo, na sua própria performance, que é, em
geral, considerada inadequada já que sem nenhuma espontaneidade.” (Elza de Oliveira
Dias, em separata A etiologia das psicoses esquizofrênicas)

Nesse início de análise, não falei nada disso a ela. Escutava e me deixava possuir. Meu e
seu não cabiam já que não havia diferenciação eu/não eu; acolhi sua necessidade de nos
misturarmos ou de ficar no lugar de objeto inexistente. Acredito que assim, Erinia pôde
permanecer em análise durante um tempo. Como se daria a separação sem que fosse
jogada num abismo? Um dia, ela chegou e me disse que precisava fazer uma experiência
de se separar de mim por um tempo para ver como se sentia. Não interpretei e nem
discordei ou concordei. Só apontei que parecia ser uma necessidade dela de viver uma
separação e se certificar que continuava viva e sendo alguém e que havia uma
importância no fato de ser ela quem decidia e não eu. E ela respondeu: pode ser sim.
Pode ser que em breve eu volte, mas isso precisa vir de mim. Ação ou atuação? Erínia
acreditava que para apropriar-se de sua individualidade dependia da separação física,
do ato direto, assim mostrando sua não capacidade de ficar só na presença do outro,
sua não capacidade de destruir o objeto subjetivo para que o outro pudesse ganhar um
lugar. Não tinha ainda o seu próprio lugar, não podendo ser agente de sua própria vida.
A presença do outro ainda parecia ser uma invasão, uma ameaça ao seu próprio existir.
11

“Uma das situações mais graves e devastadoras a que um bebê está exposto é o da mãe
que, deprimida ou não, é inconsciente do ódio que sente pelo bebê. Embora os pais de
modo natural amem e também odeiem os bebês, uma coisa é o ódio do qual a mãe tem
consciência e que aparece nas relações e outra coisa é o ódio reprimido e inconsciente.
Este, em geral, produz formações na linha do sentimentalismo. A criança não tem como
haver-se com esse tipo de falha materna e o risco é a esquizofrenia infantil ou autismo.”
(Elza de Oliveira Dias)

Por que Erínia:

Lembrei-me do tema do livro de Konrad Stein “As erínias de uma mãe” onde este autor
faz uma análise profunda a respeito do ódio da mãe.

Na mitologia:

Também conhecidas como Fúrias, eram as três divindades


que administravam a vingança divina, sendo elas: Tisífona (a
vingança contra os assassinos), Megera (o ciúme) e Alecto (a
raiva contínua). Em muitas versões sobre as Erínias, diz-se
que elas são as filhas de Géia e Urano; às vezes eles são
chamada de "as filhas da Noite". Viviam no mundo
subterrâneo, do qual ascendiam para a terra e perseguir o
mau. Eram justas, mas sem piedade e jamais analisavam as
circunstâncias que levaram a pessoa à cometer o erro. Puniam
todas as ofensas contra a sociedade humana tal como o
perjúrio, a infração dos rituais de hospitalidade e, acima de
tudo, o assassinato de parentes de sangue. Estas deusas terrível eram horríveis para serem
contempladas; tinham cobras se retorcendo no lugar dos cabelos e olhos injetados de sangue.
Atormentavam os malfeitores perseguindo-os de lugar à lugar através da terra, enlouquecendo-
os. Uma das lendas mais famosas sobre as Erínias consiste em sua perseguição sem
descanso pelo príncipe tebano Orestes, pelo assassinato de sua mãe, a rainha Clitemnestra.
Orestes havia sido guiado por Apolo para se vingar da morte de seu pai, o rei Agamenon, a
quem Clitemnestra havia assassinado. Entretanto, as Erínias, indiferentes a seus motivos,
perseguiam-no e o atormentavam. Orestes finalmente apelou à deusa Atena, que convenceu
as deusas vingadoras a aceitar o apelo de Orestes de que ele era livre de culpa. Quando eram
capazes de mostrar misericórdia, elas também se transformavam. Das Fúrias de aparência
assustadora, transformavam-se nas Eumênides, protetoras dos suplicantes.

Imagens: As Erínias

Bibliografia

1. Jornal de Psicanálise. Criatividade, Transferência paradoxal, fenômenos


transicionais. Vol. 43, n. 78 – junho 2010
2. Lévinas, E. El tempo y el outro. Paidós Ibérica, Barcelona, 1993
3. Morin, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. Ed. Cortez
,S.P., 2002
12

4. Ouaknin, Marc Alain. Elogio de la caricia. Ed. Trotta, Madrid, 2006


5. Prado, Adélia. A duração do dia; Ed. Record, S.P., 2011
6. Rodulfo, R. Trabajos de La lectura, lecturas de La violência: lo creativo-lo
destructivo em El pensamiento de Winnicott. Ed. Paidós,B.A., 2009
7. Roussillon, René. Paradoxos e situações limite da psicanalise. Ed. Unisinos; R.S.,
2006
8. Roussillon, René. Atualidade de Winnicott. Revista Trieb (9): 55, 71; 2000
(trabalho originalmente publicado como introdução do livro Le paradoxe de
Winnicott, de Anne Clancier e Jeannine Kalmanovitch (In Press Éditions, 1999)
9. Winnicott, Donald W. Explorações psicanalíticas. Ed. Artes Médicas, P.A., 1994
10. Winnicott, Donald W. Da pediatria à Psicanálise. Obras Escolhidas. Ed. Imago,
R.J.; 2000

Você também pode gostar