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Hoje, o real deixou de ser uma mera representação na minha mente. Impôs-se, existe. Vejo nisso
uma libertação. É estranho, mas só aos quarenta e cinco anos o entendi, quando aterrei em
Maputo e saiu tudo ao contrário do que esperava. Tolice minha, na gana de romper esqueci-me de
perguntar quanto ganhava um professor universitário em Moçambique. Quinze dias depois,
constatei: havia emigrado para ganhar um terço do que auferia em Portugal – sendo o nível de
vida aparentado ao de Lisboa. Você é um idiota! – ecoava na minha mente o Brecht.
Até então a vida correra-me com a facilidade que me dava o ”talento”: escorria. A vida diverte-se a
contradizer os nossos cálculos e vontades e Moçambique é um país onde o colectivismo e a
desconfiança imperam; nele, só existem oportunidades e vantagens para quem domestique o
“talento”, “colocando-o ao serviço”. Edificar, nestes lugares, o direito à independência e ao
reconhecimento que aflora com o “talento” equivale a cavar caboucos sem pás nem picaretas,
exige paciência.
Nessa dobra, o que fora sempre uma dádiva inconsciente ( Christian Bobin: “ligeireza de pássaro
que não tem necessidade, para cantar, de possuir a floresta, nem mesmo uma só árvore”) tornou-
se uma construção voluntária, com a medida de riso e do sentimento trágico próprios a estas
latitudes.
Reduzido a uma vida ascética, só me restava escrever e transformar em “destino” aquilo que fora
até então uma mera hipótese de trabalho, entre inúmeras possibilidades.
Virá daqui que na primeira década em Moçambique as minhas companhias fossem fotógrafos e
arquitectos (em Portugal só me dava com escritores): é gente que mente menos.
A maior parte dos escritores, como diz Bobin, são decoradores de interiores. Olhava-me ao
espelho e pela primeira vez via o real à minha frente, ao redor, não o meu rosto, mas o calor que o
empapava, uma cidade esclavrada, a excruciante beleza das acácias vermelhas, a poeira, os
canteiros com beijos-de-mulata que enxameavam os atalhos para a universidade, via a respiração
entrecortada dos corvos de colarinho branco na minha varanda, via o rosto dos meus alunos, liso e
crédulo, e as feridas infectadas nas pernas dos sem-abrigo; via a maldade e o cinismo dos que
chegados a uma posição apanham boleia da retória e evitam o atrito, ser inconvenientes, via a
cobardia.
Recomecei a escrever a partir desse nada, desse exterior que me penetrava como um comboio
num túnel. Abandonei a torrente das metáforas que então me caracterizavam e retomei pela
verdade rude que o real me devolvera: “(...) Em Moçambique,/ um turbilhão de abelhas
desgarrado de colmeia,/ vi o que convinha: pedras soltas, ariscas,/ onde a víbora pode plantar
raízes. / É lugar que mede a eficácia das palavras/ pelo corte do soldador na chapa. A luz/ de
Lisboa - for example – sendo/ mais brilhante, não é doméstica./ Esta ao fenecer, lembra um
jacente/ que habita connosco. Pode não ser/ bonito mas é algo que se compartilha. “
Deixei de ser um literato e recomecei com a urgência que urge numa cidade em ruínas. E se A
Paixão segundo João de Deus ou Fotografar Contra a Luz descolam absolutamente da realidade
em que vivo, a sua liberdade é uma consequência de ter aceitado que os paradoxos daquela
existem.