Você está na página 1de 3

INTOLERÂNCIA E MENTIRA

Eis-me ainda de férias mas apreensivo porque no mês transacto houve sinais de que
teremos um fim de ano de acossamento político, de Moçambique aos EUA, numa época
que loucamente desenha gestos de enorme intolerância.
Com meridiana clareza escreveu o escritor argentino Alberto Menguel:
«A intolerância gera intolerância. Depois de ser rebaixado de bibliotecário municipal a
inspector de pássaros pelo presidente Perón, Jorge Luis Borges disse o seguinte: “As
ditaduras promovem a opressão, as ditaduras promovem o servilismo, as ditaduras
promovem a crueldade; mais abominável é o fato de promoverem a opressão e a idiotice “.
A intolerância é uma forma de idiotice, pois é cega para a riqueza do indivíduo e só é capaz
de lidar com estereótipos. Pertence à mesma categoria dos preconceitos, onde o raciocínio é
suplantado pelo clichê, pelo preconceito.
E, no entanto, a intolerância desta época vem de pessoas que não sabem mais o que fazer.
Podemos não nos sentir culpados pelos pecados de nossos pais, ou mesmo de nossos
contemporâneos, mas como a regra estabelecida é identificar as pessoas pelos traços de um
determinado grupo - o método do racismo - essas pessoas por sua vez identificam-nos
exatamente da mesma maneira. Esses estereótipos são sempre filhos da ignorância. E a
ignorância, como disse Montesquieu, é a mãe da tradição. (...) Como durante séculos os
negros foram vistos como gado pelos membros da sociedade branca, os membros da
sociedade branca são vistos pelos negros (conforme foi descrito por Louis Farrakhan) como
"uma matilha de lobos" , e qualquer acto que afecte os negros é visto como parte de uma
atitude racista geral. A nossa sociedade fez da generalização a norma, e agora as
generalizações são a norma. Ora, como previne o romancista aborígine australiano
Mudrooroo: "A norma nunca é normal."»
E está tudo magníficamente dito. Podem encaixar aqui os acontecimentos que quiserem, em
qualquer latitude.
Entretanto, no Brasil, leio esta declaração de um membro do governo, e a propósito do
plano que a sua equipa de finanças apresentou e foi chumbado pelo presidente:
“O que eu acho que tem problema é ficar discutindo e avançando em ideias que ainda não estão
consolidadas e autorizadas pelo presidente da República”.
Leio e espanto-me por não haver ninguém que se espante. Há, portanto todo um naipe de ideias que
só podem aflorar e ser desenvolvidas depois de devidamente autorizadas pelo timoneiro da nação.
Pode o povo brasileiro sentir-se sentado numa piroga que se aproxima perigosamente da catarata,
cujo fragor já se ouve, é proibido ter a ideia de remar em sentido contrário porque Sua Santa
Autoridade não autorizou . O que me lembra uma história deliciosa contada pelo treinador Carlos
Carvalhas, depois de ter treinado uma equipa nacional africana com fracos resultados. Explicou ele
sobre as fracas prestações da sua equipa: «Não consegui implantar nenhum sistema de jogo porque
a resposta dos jogadores era invariável: passavam a bola e preferencialmente ao mais velho da
equipa». O respeitinho é muito bonito e as hierarquias são para se cumprir.
Num mundo normal – o que permitiu as democracis liberais, de 1945 a 2000 – um político que
dissesse: “O que eu acho que tem problema é ficar discutindo e avançando em ideias que ainda não
estão consolidadas e autorizadas pelo presidente da República”, seria profundamente ridicularizado
e mais não o seria porque naturalmente teria noção do ridículo e não pronunciaria sequer a
barbaridade.
É evidente que qualquer presidente da República terá prioridades e alguma ideia firmada sobre as
soluções que pretende em relação aos problemas sociais e políticos que a sua época apresenta,
contudo que o staff se julgue no direito de arrogar que há ideias autorizadas e outras que não é sinal
de apodrecimento da democracia – assoma um unto medieval em tão “inocente” declaração.
Na Idade Média só os hierarcas religiosos e os nobres estavam autorizados a sonhar. É
evidentemente impossível impedir os homens de sonhar, não podiam era narrar os seus sonhos. A
explicação era simples: na Bíblia os sonhos são o veículo através do qual Deus falava com ou
instruia os homens e a igreja não podia permitir que homens comuns recebessem recadinhos de
Deus – esse estava privilégio estava devotado aos grandes senhores da igreja ou da nobreza.
É a esta dimensão que estes nossos tempos nos aproximam, seja na fantasia heróica e fascista do
Estado Islâmico, seja nos arautos da democracia iliberal que alastram, seja nos esbirros que
incendiam jornais da oposição – 3 faces da mesma moeda.
Paralelamente, o que não é motivo para nos alegrarmos, uma equipa de investigadores espanhóis
fez um estudo sobre a mentira na política, a partir de uma amostra de 816 autarcas e políticos de
Espanha. A honestidade já foi uma das mais valorizadas características nos políticos – agora não. A
mentira tornou-se um vício?
Refere o relatório da investigação: «”O resultado de que os políticos desonestos têm maior
probabilidade de serem releitos pode fornecer um microfundamento para a conhecida conclusão de
que a corrupção descoberta geralmente não é, ou apenas é moderadamente, punida eleitoralmente”,
notam as cientostas que concluem que os dados do seu trabalho “sugerem que a mentira não
descoberta promove o sucesso eleitoral”». Daí que da Bielorússia a Moçambique haja sempre gente
mais papista que o papa que se entretenha a incendiar livros e jornais.

Você também pode gostar