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A reforma sanitária e o SUS: preenda que as políticas públicas podem se cons-

DEBATEDORES
questões de sustentabilidade tituir em um meio poderoso para a efetiva defesa
da vida”.
Health care reform and the Brazilian Public Qualquer pessoa que defenda a saúde coleti-
Health Care System: sustainability issues va assinaria em baixo desta lista e ainda concor-
daria com a conclusão. No entanto, seria neces-
Sonia Fleury 1 sário aprofundar o debate em relação às propos-

DISCUSSANTS
tas enunciadas como meios necessários para via-
O artigo em debate, de autoria de Gastão Wagner bilizar o avanço do SUS.
de Sousa Campos, intitulado “Reforma Política e A primeira questão que se coloca é a ausência
Sanitária: a sustentabilidade do SUS em questão?”, de uma discussão mais aprofundada sobre a rela-
tem como objetivo apresentar sete estratégias ção entre o SUS e a Reforma Sanitária. Ao quali-
consideradas pelo autor relevantes para assegu- ficar o SUS como uma reforma social incomple-
rar o prosseguimento da reforma sanitária brasi- ta, em crise por ser incapaz de transformar a rea-
leira e facilitar a consolidação do SUS, partindo lidade social concreta e provocar o desencanto e
da constatação de que este tanto apresenta sinto- descrédito, o texto não problematiza a relação
mas de crescimento quanto de degradação. Apon- entre Reforma Sanitária e o SUS, proposta colo-
ta problemas objetivos no financiamento e ges- cada, no entanto, no resumo do artigo ao menci-
tão do sistema, na qualidade e eficiência dos ser- onar que as sete estratégias são consideradas re-
viços prestados, mas identifica o principal sinal levantes para assegurar o prosseguimento da re-
de crise no desencantamento com o SUS, um des- forma sanitária brasileira e facilitar a consolida-
crédito na capacidade de transformar em reali- ção do SUS.
dade a política racional e generosa projetada. Ora, em outro momento, o autor, em texto
Para garantir o movimento de mudança que polêmico intitulado “A Reforma Sanitária Neces-
permita o avanço do SUS em direção à superação sária”1, questionava o potencial inovador do pro-
dos obstáculos de gestão e de reorganização do jeto da reforma sanitária discutido na VIII Con-
modelo de atenção, assegurando a viabilidade da ferência Nacional de Saúde por julgá-lo “uma
universalidade e da integralidade da atenção à saú- continuidade, sobre novas base, de um mesmo
de, o autor lista alguns meios necessários. São eles: modelo de produção de saúde, servindo, cada
estimulação de um poderoso e multifacetado uma das alterações político-administrativas an-
movimento social e de opinião em defesa das po- tes que para radicalizar e consolidar o modelo
líticas de proteção social, melhor utilização e ge- assistencial do que para encerrá-lo”. Em sua aná-
renciamento dos recursos do SUS, adotando-se lise, os equívocos desta teoria oficial da reforma
um modelo misto de repasse dos recursos com sanitária derivavam da opção, feita pelo partido
base na capacidade instalada, população e encar- sanitário oficial, de impor reformas “por cima”,
gos sanitários e também transferências com base por intermédio do aparelho estatal, independen-
em contratos de gestão com responsabilidades temente de qual a composição de forças que o
definidas e metas a serem cumpridas pelos gesto- governo representasse.
res; mudança no modelo de atenção com base nas Concordando com Berlinguer2, que vê a re-
diretrizes já formuladas para assegurar um siste- forma sanitária como “a longa marcha através das
ma hierarquizado e regionalizado, coordenado instituições e do processo de transformação da
com ênfase na integralidade da atuação clínica e sociedade e do Estado”, a pergunta que se coloca
preventiva; ampliação da eficiência, eficácia e hu- é sobre a capacidade das medidas propostas no
manização do sistema; definição de responsabili- artigo de Gastão Campos de alterarem o curso de
dades macro-sanitárias e adoção de critérios de uma reforma que, segundo ele, está em crise. Por
risco para definição de prioridades em face de re- outro lado, seria necessário discutir a natureza
cursos escassos; definição de responsabilidades desta crise, se política, de gestão ou ambos.
micro-sanitárias a partir da reorganização do tra-
balho em saúde; ampliação da cobertura do Pro-
grama de Saúde da Família; desenvolvimento ci-
entífico e incorporação de tecnologia em saúde.
O autor sintetiza afirmando que “a defesa do
SUS e o sucesso do SUS dependem da força com 1
Escola Brasileira de Administração Pública e de
que a sociedade coloque a vida das pessoas acima Empresas-EBAPE, Fundação Getulio Vargas.
de todas as outras racionalidades, e ainda com- sfleury@fgv.br
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Fleury, S. et al.

A primeira proposta do autor encaminha à peça contratual, onde são definidas expectativas,
necessidade de constituição ou reconstituição de metas a serem atingidas, recursos corresponden-
um movimento social que defenda as políticas tes, responsabilidades e punições. Trata-se de des-
sociais, especialmente face à predominância da locar a ênfase até então predominante em rela-
política restritiva imposta pela área econômica. ção à oferta dos serviços curativos, cuja lógica
Além disso, ao não aceitar a banalização da mi- segue sendo o motor do sistema único de saúde,
séria, propõe-se articular o SUS às reformas da para a demanda e a prevenção, na tentativa de
ordem social e política brasileira. alterar o modelo de atenção e a gestão das unida-
É certo que o insulamento da área de saúde des. Em outras palavras, o SUS privilegiou, até
tem sido uma medida de dupla face: por um lado, agora, a gestão do sistema, sem, no entanto, avan-
construiu-se um escudo que a protege das inves- çar, concomitantemente, na gestão das unidades
tidas dos governos mais liberais e privatistas, mas, de serviço e foi incapaz de alterar, significativa-
por outro lado, paradoxalmente, consegue con- mente, o modelo assistencial.
solidar uma política de Estado que não é assumi- É certo que a contratação entre Agente e Prin-
da pelos governantes. cipal tem sido proposta pela corrente do novo ge-
Neste sentido, a política de saúde, que já foi rencialismo – New Public Management , desde a
inspiração para o novo modelo constitucional de década de 90, como a solução para os problemas
políticas sociais, hoje se encontra isolada dos gerenciais, ao trazer os fundamentos da teoria da
movimentos da sociedade que se articulam em firma para o interior da administração pública3.
função da questão social. No entanto, o artigo em A idéia da separação de funções entre o Principal
análise não encaminha uma estratégia para rear- que demanda e paga e o agente, que executa, pres-
ticulação do movimento sanitário com as forças ta contas e recebe tem sido fonte de inspiração das
da sociedade civil. Ao não explicitar a defesa da reformas liberais da previdência e saúde na Amé-
Seguridade Social como o arcabouço legal e ins- rica Latina, reservando aos entes públicos a fun-
titucional que nos permitiria esta aproximação e ção de formulação da política e financiamento, e
a construção de uma estratégia comum (por aos entes privados ou públicos a prestação de ser-
exemplo, a convocação de uma Conferência Na- viços, em um ambiente competitivo4.
cional da Seguridade Social), o autor deixa sem Por ser fruto da corrente liberal que propug-
respostas o problema que ele coloca. Além disso, nava a redução do Estado a algumas funções e
seria necessário rever a pauta das lutas da refor- sua compatibilização com o mercado em outras,
ma sanitária para identificarmos o porquê deste esta proposta gerencial foi fortemente rechaçada
isolamento em relação à sociedade civil. Temas entre nós. Além disso, sua aplicação às reformas
como a legalização do aborto, a defesa de um uso dos sistemas de saúde privilegiou as práticas hos-
racional e sustentável dos recursos naturais, o pitalares e curativas, cuja possibilidade de men-
combate às discriminações no acesso e utilização suração e de isolamento institucional melhor se
dos serviços públicos, o abuso da repressão e a adaptam ao instrumento de contratualização. No
violência institucional, a falta de ética de profis- entanto, o instrumento de contrato de gestão
sionais e servidores públicos, a quebra de paten- pode e deve ser introduzido na gestão pública –
tes que permitisse a produção de medicamentos sem o viés privatista e liberal – aumentando a efi-
estratégicos, a reforma política e o controle do ciência no uso dos recursos públicos, a autono-
orçamento e tantos outros mais estão nas lutas mia e a responsabilidade dos prestadores, como
da sociedade civil organizada. No entanto, estão foi feito no setor público de saúde tanto na Costa
ausentes de nossa pauta da reforma sanitária e Rica como no Chile. Deveríamos nos debruçar
não nos permitem articular-nos com outros mo- sobre estas experiências para ver como foram
vimentos e gerar uma nova correlação de forças aplicadas.
que impulsione a reforma. No entanto, a contratação não pode ser to-
As propostas seguintes do autor encaminham mada como a panacéia para todos os problemas
medidas gerenciais, dentre as quais vale destacar do sistema de saúde, além de ser necessário me-
a sugestão de estabelecimento de contratos de lhor explorar suas possibilidades para assegurar
gestão como modalidade fundamental de repas- um modelo assistencial preventivo. Para ser efi-
se de recursos entre gestores públicos. Várias das caz, ela requer uma inteligência e capacidades do
propostas terminam por se dirigir a esta modali- Principal que devem ser introduzidas antes da
dade de gestão pública, que combina o repasse de adoção do instrumento. Para contratar é preciso
recursos financeiros com um sistema de planeja- se saber o que demandar, como avaliar o serviço
mento, controle e avaliação que se materializa na prestado, quais os sinalizadores a serem adota-
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Ciência & Saúde Coletiva, 12(2):307-317, 2007


dos para averiguar, durante e não ao término do Os impasses do SUS
contrato, além do estabelecimento de parâmetros
de qualidade e eficácia do serviço a ser prestado. Deadlocks in the Brazilian National Health
Talvez a questão esteja sendo posta no momento Care System
em que o SUS já tenha desenvolvido estas capaci-
dades e inteligência necessárias, possibilitando Ivan Batista Coelho 2
maior autonomia dos entes contratados.
Mas, a introdução deste instrumento deve se Por que o SUS tem encontrado dificuldades em
dar no interior da lógica publicista que preside o avançar? Financiamento insuficiente; formato de
SUS, sem introduzir um viés de privatização. Isto organização de serviços e produção de cuidados
quer dizer, por exemplo, que os mecanismos atu- ainda inadequados e, para completar, descrédito
ais de participação, controle social, negociação e quanto a nossa capacidade para mudar esta situa-
pactuação devem ser, ao mesmo tempo, aprofun- ção, responde Gastão Wagner. A partir daí, pro-
dados e levados também para o interior das uni- põe-se uma série de movimentos e medidas que
dades contratadas. A responsabilização pela pres- poderiam colocar o SUS em melhor patamar. O
tação do serviço é, hoje, imprescindível para ga- meu intuito neste comentário é trabalhar estas
rantir a eficácia na prestação do serviço. Porém, a questões, no mesmo sentido, porém abordando
centralidade do usuário cidadão não será garan- alguns outros aspectos. A primeira questão a ser
tida por sua transformação em um consumidor colocada é: quais são mesmo os grandes impas-
ou pela garantia da autonomia do Agente, o que ses? Na verdade, não é o sistema como um todo
o remete a interesses particulares, como pensa a que apresenta dificuldades. Em seus aspectos de
teoria Agente-Principal; nem na sua substituição vigilância à saúde – epidemiológica, sanitária,
pelo “consumidor inteligente”, representado pelo ambiental, controle de agravos, etc. – não se pode
setor público na competição gerenciada. É preci- concluir, que o sistema seja ruim. Obviamente
so entender que o modelo do SUS combinou ins- existem dificuldades, mas, ao contrário, a impres-
trumentos de gestão descentralizada com meca- são geral é de que o sistema é satisfatório. Alguns
nismos políticos de participação e negociação aspectos preventivos são altamente eficientes. Os
entre as partes. Só assim se constrói um sistema brasileiros têm um dos melhores sistemas de va-
democrático e necessitamos radicalizar esta pro- cinação infantil do mundo e esta tecnologia é tão
posta introduzindo-a no interior dos serviços. bem dominada que poderia ser colocada a servi-
Em síntese, creio ser possível e necessário ço de outros países, seja em caráter comercial, seja
aprofundar o modelo de gestão e ampliar a de- em caráter humanitário. No que tange a alguns
mocratização da gestão pública, no interior do serviços que se tem convencionado chamar alta
setor saúde e no conjunto do Estado. Para tanto, complexidade, o SUS é também eficiente. O siste-
será necessário mais que uma gestão eficiente; tra- ma de transplantes, alguns procedimentos cirúr-
ta-se de reconstruir um arco de alianças com as gicos, determinadas propedêuticas complexas, tra-
forças democráticas, que permita avançar a Re- tamento do câncer, problemas renais, etc., embo-
forma Sanitária, para além dos limites estreitos ra devam ser permanentemente aperfeiçoados, são
dos SUS. Enfim, trata-se da longa trajetória .... de fazer inveja a maioria dos países do primeiro
mundo. Na realidade, o que vulnerabiliza o SUS
frente à opinião pública é o acesso a medicamen-
tos, procedimentos médicos de baixa e moderada
Referências complexidade, exames complementares, consul-
tas especializadas e internações hospitalares.
1. Campos GWS. A reforma sanitária necessária. In: Ber- Quanto ao financiamento, o SUS, responsável
linguer G, Teixeira SF e Campos GWS. Reforma Sanitá- pela assistência a 140 milhões de habitantes, con-
ria: Itália e Brasil. São Paulo: HUCITEC-CEBES; 1988.
2. Berlinguer G. Medicina e política. São Paulo: HUCI-
TEC- CEBES; 1983.
3. Fleury S. Reforma del Estado. Instituciones y Desarrollo
2003; 14-15: 81-122.
4. Londoño JL e Frenk J. Pluralismo estructurado: hacia
un modelo innovador para la reforma de los sistemas
de salud en América Latina. In: Frenk J, organizador.
Observatorio de la salud. México: Fundación Mexicana
para la Salud; 1997. 1
Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva, UFMG.
ivan@medicina.ufmg.br

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