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História da filosofia da Renascença III

Venícius Dias da Costa

Filosofia 8º termo – Noturno

Docente: Sérgio Xavier


O caminho para o centro pela liberdade

Para começarmos a elaborar nossa argumentação vamos a uma breve


passagem que nos servirá como base em toda a extensão do texto. Sabemos que
existe uma distinção entre a teoria e a prática no mundo helênico, a teoria é
formulada com bases no mundo preciso e inteligível um mundo perfeito e imutável,
porém aplicar teorias de um mundo ordenado em um mundo desorganizado é
inconcebível, as teorias são tão precisas e tão perfeitas que se tentássemos aplicar
essa teoria que foi formada plano inteligível no mundo sensível — no mundo em que
vivemos — não teríamos êxito, pois algo tão perfeito e imutável não pode ser
praticado em um mundo imperfeito e mutável. Podemos usar o exemplo de Platão
que se aborreceu com Arquitas e Eudôxio, que pretenderam dar resolução a
problemas essencialmente geométricos, como o da duplicação do cubo, com o
auxílio de aparelhos mecânicos, pois essa atitude corrompia e deteriorava a
dignidade de tudo que existia de excelente na geometria, fazendo-a descer ao nível
mais baixo que se pode enxergar, o plano sensível, visível, mutável das coisas
mundanas e corpóreas1. Aristóteles também expressa essa contraposição no
começo da Metafísica, fazendo uma contraposição entre os empíricos e aqueles que
têm a arte, dizendo que aqueles possuidores da arte, que atingiram a teoria não tem
motivos para voltar a prática, pois ao contrário do empírico que domina apenas o
singular, o que possui a arte tem conhecimento do universal e, uma vez atingido o
universal não há necessidades para aplicar as teorias universais em práticas
singulares. Vejamos o trecho aristotélico que nos mostra isso:

“(...) vemos, até, os empíricos acertarem melhor do que os que possuem a noção, mas não a
experiência, isto porque a experiência é o conhecimento dos singulares, e a arte, dos
universais(...). Julgamos que há mais saber no conhecimento da arte do que na experiência e
consideramos os homens de arte mais sábios que os empíricos, visto a sabedoria acompanhar
em todos, de preferência, o saber. Isto porque uns conhecem a causa, e os outros não. Com
efeito os empíricos sabem o “que”, mas não o “porque”; ao passo que os outros sabem o
“porque” e a causa.”2

1
Koyré, Os filósofos e a máquina, pg, 253 - 254.
2

Os pensadores, Metafísica (Livro I e Livro II), Aristóteles. 1984. pg. 12


Com essa citação temos em vista lembrar a contraposição entre vida ativa e
vida contemplativa, ou seja, a vida da atividade pratica e a vida da atividade teórica.
Para Aristóteles a vida contemplativa é infinitamente superior as mais elevadas
atividades práticas. O mesmo se dá em Plotino, que considerava a atividade prática
apenas uma sombra, um acessório, um enfraquecimento da contemplação3.
É evidente que não é apenas essa distinção entre vida ativa e vida
contemplativa que nos importa, isso serve com introdução ao nosso tema principal
que é de como o homem renascentista, principalmente aquele pertencente ao
humanismo, parte para uma vida mais ativa do que uma vida contemplativa e como
dá princípio a certa centralização4 de si mesmo, a partir de um ideal de liberdade,
um exemplo disso é Salutati, — que no meio de nosso recorte, será nesse trabalho o
exemplo mais utilizado — que mostra a nós esse ideal quando diz que existe grande
importância para os que querem estudar as escrituras sagradas, de conhecer bem a
gramática, pois de outra forma, como poderiam ter acesso aos textos sagrados? Ele
com esta passagem está mostrando que estudos com caráter práticos, que estão
em um mundo empírico, estudos mais livres, estudos que nos colocam ao centro,
são estudos que conseguem construir um caminho inverso, ou seja, que ao invés de
sermos contemplados, poderemos contemplar. Para exaltar melhor essa idéia de
estudo que preconiza a atividade prática, observemos uma citação presente na
inventiva de Salutati contra Antonio Loschi de Vicenza:

“Todavia, conjectura e afirma o que quiseres dos homens, mas quem te revelou o segredo da
justiça divina? Quem, além de ti, ferocíssima besta, poderia afirmar que a justiça divina não
pode mais nos suportar? (...) Se, Como tu dizes, a ira de Deus combate contra nós, como
podemos resistir uma hora apenas? Se tem sede de nosso sangue, por que não o bebe, por
que não nos abate? Se deseja nossa ruína, o que pode se opor à potência divina, quando está
escrito: ‘Quem jamais resistirá à vontade do senhor.’ “

O que acabamos de ver é exatamente a utilização da retórica para constituir


uma argumentação em prol de algo de caráter contemplativo, para chegar a uma
divindade seria necessário não utilizar ferramentas de baixo escalão, como a
retórica, e não é isso que vimos na citação, a retórica foi utilizada como ferramenta

Esta idéia está presente em: Koyré, Os filósofos e a máquina, pg., 253.
4
Centralização aqui está no sentido de constituir uma vida de ação mais ativa, colocando o homem no centro
das atividades e não mais como um “receptor” ou mesmo contemplador apenas.
para “revelar” a vontade de deus5, podemos mais uma ver o homem no centro, na
Inventiva esse ideal será sempre bem explorado. Em certos momentos o
humanismo parece contraditório, mas esse é o movimento que caracteriza o
humanismo, um período de transição cheio de contradições, mas que constituíram
um movimento, o próprio Salutati constrói uma imagem de contradição, ele está
buscando um ideal de vida ativa, mas os preceitos cristãos estão presentes, Salutati
escrevia tratados sobre temas medievais e tentava entender como conciliar sua fé
com os ensinamentos dos mestres da Antiguidade.
Não podemos dizer de fato que o movimento humanista presente no
renascimento é o único responsável pela criação dessa centralização do homem,
pois tendo em mente que o período renascentista é um período constituído por
outros movimentos, não podemos considerar que o apenas o humanismo é
responsável por isso, mas podemos dizer que foi um dos movimentos principais que
deram início a essa centralização, bastamos ver abaixo o que significa
genericamente o termo “humanismo”, que é:

“Genericamente, o termo humanismo diz respeito a todas as filosofias centradas no homem, ou


que tem por base uma condição privilegiada da posição humana no mundo. Em outras
palavras, trata-se de uma tomada de posição em favor do homem e, não necessariamente,
uma reflexão sobre ele”6

Como vimos mais acima, a vida contemplativa era muito mais importante que a
vida ativa, esta última sendo negada veementemente, a contemplação seria um
nível de extrema elevação para os gregos, porém isso dentro de uma visão
humanista já não tem esse caráter. Para um humanista os estudos clássicos, a
filosofia moral clássica compunha uma importante base na estrutura do pensamento
mas acrescido de outra disciplina, a retórica, uma disciplina que agencia os saberes
teóricos para uma finalidade prática. Salutati em sua Inventiva mostra que esse
agenciar os saberes pode remontar através de costumes até mesmo a história, já
que Florença ao menos até o momento atual da época não tinha fontes suficientes
para ser considerada filha de Roma, mas ele difundiu ativamente essa idéia com a
retórica, criou a imagem que Florença era uma filha de Roma. Eu exemplo disso na
5
Revelar, não é bem como a revelação da divindade, mas sim como um habilidade retórica, pois Salutati em sua
inventiva está dizendo a Antonio Loschi de Vicenza que é impossível saber a opinião de Deus, é claro que fica
um ar de que Salutati sabe o que a divindiade pensa, mas fica encoberto pela utilização da retórica no argumento.
6
Bignoto, Origens do republicanismo moderno, pg., 17.
Inventiva é quando Salutati utiliza argumentos sobre as continuidades arquiteturais
de uma e de outra para corroborar esta idéia:

“Está viva uma tradição, obscurecida pelo passar do tempo, que prova ser a cidade de Florença
obra dos romanos: na cidade há um Campodolio e vizinho a ele um Foro; há o Parlasco ou
Circo; há um lugar chamado de Termas; existe um bairro do Patrione e um outro dito Capacia;
há um templo que já foi famoso chamado Marte; que os gentis acreditavam ser o criador da
estirpe romana; e tal templo não é em estilo grego ou toscano, mas inteiramente romano. E
acrescentarei ainda um outro sinal de nossa origem que não sobreviveu, mas que ainda existia
até a terceira parte do século quatorze depois da encarnação do mediador entre Deus e os
homens, Jesus cristo: ao lado da Ponte Vechio aparecia uma estátua eqüestre de Marte, que o
povo conservava em homenagem à origem romana da cidade(...) Restam os arcos e os
vestígios do aqueduto construído segundo os padrões de nosso antepassado(...) Havendo
todos esses vestígios romanos, sendo romanos os nomes e imitações dos usos romanos, quem
ousará dizer, tendo sobrevivido um documento tão sólido dessa célebre tradição, que os
autores de tudo isso não foram os romanos?”

A retórica que na antiguidade clássica não era vista como um conhecimento de


grau elevado, no humanismo se transforma em algo essencial para a elevação do
homem e, as duas disciplinas unidas, retórica e filosofia, constituem e devem ser
consideradas com as principais bases culturais para atingir um alto nível de
excelência. Cícero é extremamente importante para os humanistas, já que podemos
ver que a visão dos humanistas está baseada no conceito ciceroniano de virtus. Um
ponto interessante antes de darmos continuidade em isso tudo é que a visão dos
humanistas para com o mundo grego e romano é resgatá-lo em sua verdadeira
realidade, vimos acima como Aristóteles distinguia teoria de prática e, mesmo sendo
evidente que a vida contemplativa é infinitamente superior a ativa, se observarmos
temas de suas obras como o tema política, irá soar como uma série de atividades
praticas para uma certa virtuosidade na vida, uma série de atividades para bem
conduzir-se politicamente na sociedade. Quando falamos em buscar a verdadeira
realidade do mundo antigo é alterar essa dualidade do contemplativo e do ativo, pois
dentro de uma interpretação humanista a verdade da realidade antiga 7 é ser ativo,
não basta mais viver do ócio e se dedicar ao movimento dos corpos inteligíveis e sim
transformar toda essa visão em sua verdadeira forma que estava “escondida”, em
um conjunto de atividades ativas, iniciando o processo de homem como alguém
7
Tanto grega quanto romana, porém o humanismo irá buscar em maior escala o período romano
mais elevado do que fora no passado. Podemos usar um belo exemplo desse
retorno, ou seja, dessa interpretação humanista, que são os combates travados por
humanistas em defesa dos valores de suas cidades ou do ponto de vista de seus
senhores, basta vermos o que Salutati expressa nas primeiras linhas da Inventiva:

“Quem poderia suportar com paciência, tratando-se de algo de tanto interesse, que a pátria, a
quem tudo devemos, seja difamada vergonhosamente por uma pessoa a quem nada importa?
(...) Sendo cada cidadão um membro de sua cidade e de seu povo e não um estrangeiro,
assumo a causa de minha pátria, aquela que cada um tem a obrigação de defender(...).

Esse deve ser um dos motivos que o ideal ciceroniano foi extremamente
aclamado pelos humanistas, a inclusão da retórica, o discurso persuasivo capaz de
alterar o mundo foi colocado como algo extremamente importante, Salutati nos
mostra isso em sua inventiva, pois esta nos mostra claramente que a retórica se
tornou um instrumento de mudança das concepções políticas, já que ela se
incorporou no cotidiano da vida pública das cidades. Petrarca também partilha desse
ideal, pois colocava que ler Aristóteles por si só não é suficiente para se aprender o
que é a virtude. A visão aristotélica pode incluir uma boa percepção, porém suas
idéias não possuem as palavras que proporcionam aguilhoamento e não incendeiam
e isto nos mostra uma grande falha, pois mostra-se incapaz de instigar seus leitores
e levá-los a amar a virtude e a odiar o vício e também se revela falta de forças para
com que suas teorias cheguem efetivamente em contato com a vida prática. O
próprio Salutati, em suas correspondências ou mesmo em sua inventiva está
trabalhando corroborando a idéia de superação, as antigas formas estão
ultrapassadas é necessário potencializar as faculdades humanas. A oratória garante
domínio sobre assuntos domésticos assim como nas atividades públicas. Este ideal
do ser virtuoso é um ponto chave para o nosso texto, já que é ele próprio que
garante a nossa idéia de liberdade. Vamos a uma breve citação para entendermos
qual é o poder dessa liberdade.

“Entender que os homens possam alcançar a excelência máxima significa também considerá-
los capazes de vencer quaisquer obstáculos com que se defrontem em seu caminho. Os
humanistas facilmente reconhecem que sua concepção de natureza humana acarreta uma
análise otimista da liberdade e dos poderes do homem,e por isso procedem a uma leitura
bastante positiva do vir virtutis enquanto força social criativa, apta a moldar seu próprio destino
e a refazer o mundo social para adequá-lo a seus desejos”8

Esse ideal pode ser visto em Petrarca, Salutati e entre outros humanistas, para
defenderem a liberdade utilizaram todos os argumentos colocados acima mais
acima no texto em nome da liberdade, ou seja, do único valor que para os
humanistas torna a vida digna. Salutati como chanceler em suas cartas sempre
defendeu os seus interesses em busca de liberdade, justiça, pela verdade e pela
pátria o que nos mostra essa busca pela centralidade e é o que podemos ver em
toda sua Inventiva. Outro momento importante é também como a liberdade altera a
idéia dos medievais que colocavam que tudo demanda da força inexorável da
providencia, os acontecimentos do mundo são realizados pelos interesses da
providência. Santo Agostinho mesmo coloca que o poder dos acontecimentos do
mundo não podem ser transferidos ao homem, já que, a verdade é que se os
homens podem alcançar a verdade, é porque Deus assim o quis e não porque o
homem quis que assim seja.
Usarei uma extensa citação, porém de extrema importância para a conclusão
de nosso texto, presente na inventiva:

“Que cidade, não somente na Itália, mas em todo mundo, é mais segura no interior de seus
muros, tem palácios mais soberbos, tem os templos mais adornados e um conjunto mais belo
de edifícios, pórticos tão esplendidos, praças tão ricas, ruas tão claras e alegres, um grande
povo e gloriosos cidadãos, uma riqueza inexaurível e os campos tão fecundos? Qual outra
situa-se num sítio tão belo e tem um céu tão puro? Qual é mais linda, mais rica de poços, tem
as águas mais doces, as artes mais operosas e é mais admirável em tudo? Qual é mais rica em
vilas, possui burgos mais potentes, maior número de municípios e é tão bem dotada de
agricultores? Que outra cidade, que não possui um porto, tem tráfico tão intenso? Onde o
comércio é maior e mais rico pela variedade de trocas e pelas sutis previsões? Onde se
encontram homens mais ilustres, para não falar de tantos, pois seria fastidioso recordar(...).
Onde se encontraria um Dante, um Petrarca, um Boccaccio?(...)Quisesse Deus que,
permanecendo à glória da República Florentina intacta no tocante à sua liberdade e sua
potência, o resto da Itália pudesse ser tal que os florentinos comparados aos outros poderiam
dizer-se de fato a escória da Itália”.

O que essa citação nos mostra é uma exaltação, utilizando de tudo o que
havíamos falado, o homem muito mais próximo ao centro. Salutati exalta todos os
8
Skinner, “As fundamentações do pensamento político moderno” pg., 115.
poderes humanos nessa citação, coloca o homem como grande produtor de coisas
ao contrário de grande ovelha que segue as ordens de um mundo inteligível ou de
uma providência divina. E Deus, nessa citação não perde sua importância como um
ato de fé, mas está no renascimento como nos mostra a citação, longe de ser aquele
Deus presente no medievalismo, existe uma certa idéia de que chegamos a Deus
pelo nosso esforço, ativamente. É evidente que Deus não vai querer o mal das
pessoas, mas se nossa potência faz com que chegamos a ele, se nossa elaboração
ativa e constituinte do mundo faz com conseguimos realizar um ato de fé com ele,
ele considerará que nós somos pessoas de bem e assim será. Para concluirmos
vemos que a idéia do principio do centro pela liberdade foi constituída, porém como
o próprio nome diz, é o principio, já que olhando a linha do tempo teremos outros
autores que irão corroborar esta idéia.
Bibliografia.

ARISTÓTELES. Metafísica: (Livro I e Livro II): Tradução de Vicenzo cocao: Os

pensadores. 1984.

KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento filosófico. Rio de Janeiro:

Florence Universitária, 1997.

SKINNER, Quentin. As fundamentações do pensamento político moderno.

Tradução Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta: Companhia Das

Letras.

GARIN, Eugênio. Ciência e vida civil no renascimento italiano. Tradução Cecília

Prada: Editora UNESP.

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