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Anais do IV Encontro Nacional de História dos EUA

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2017 – São Paulo (SP)

Homeland e a representação da Guerra ao Terror na televisão

Rodolpho Hockmuller Menezes


Graduando em História
Universidade de São Paulo (USP)
Bolsista FAPESP
hockmuller.rodolpho@gmail.com

Palavras-chave: História dos Estados Unidos. Guerra ao Terror. Televisão.

Esta comunicação é parte de um projeto de iniciação científica em andamento, o qual busca


fazer uma análise da primeira temporada do seriado Homeland à luz da forma como a “Guerra ao
Terror” é retratada, relacionando-se aos limites de vigilância e ações governamentais, muitas delas
contrárias aos Direitos Humanos, dentro e fora do território norte-americano, legitimadas em nome
de uma “Segurança Nacional”. A construção de uma imagem do mundo muçulmano e de
organizações terroristas e seus integrantes (suas motivações, objetivos e a forma que buscam alcançá-
los) será outra importante questão. O marco cronológico da pesquisa está circunscrito ao ano de 2011,
quando a primeira temporada estreou nos Estados Unidos.
A pesquisa também busca levantar uma discussão a respeito dos dois personagens centrais e
o que eles representam: a protagonista e agente da CIA, Carrie Mathison, sofre de doença mental
bipolar, por sua vez, Nicholas Brody, fuzileiro que esteve por oito anos no Iraque (mesmo período de
atuação dos Estados Unidos naquele país), é um desajustado, com personalidade fragmentada e
cindida. O estudo não poderá prescindir da forma com a qual os muçulmanos são retratados e a
“Guerra ao Terror” legitimada.
Baseando-se no estudo metodológico e bibliográfico particular às fontes audiovisuais, esta
pesquisa tem como intuito problematizar o enredo de Homeland em relação à "Guerra ao Terror”, à
imagem construída do mundo muçulmano, à forma como as personagens são apresentadas em relação
a ideais norte-americanos preestabelecidos, e às incursões ao Afeganistão e ao Iraque na primeira
década do século XXI. Este trabalho tenta inserir, a partir desta análise, o seriado no contexto do
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debate político atual sobre a legitimidade de práticas coercitivas, invasivas do domínio privado e, no
limite, que justificam, além de assassinatos, a prática da tortura.
O seriado estreou em 2 de outubro de 2011, e atualmente está na quinta temporada. Nesse
percurso atingiu elevada audiência dentro e fora dos Estados Unidos, e acumulou diversos prêmios.
Entre estes podemos destacar as trinta e três nomeações ao Emmy tendo ganhando oito, em 2012 e
2013 nas categorias de Outstanding Writing for a Drama Series, e em 2012 como Outstanding Drama
Series. Entre os anos de 2012 e 2015, a série obteve oito nomeações para o Globo de Ouro, tendo
ganhando cinco, entre eles o Golden Globe Award for Best Television Series Drama. Ainda se
destacam os prêmios e nomeações do Critics Choice Awards (2012, 2013 e 2015), do People's Choice
Awards (2013, 2014 e 2015) e do American Film Institute (2011, 2012 e 2015). A série é produzida
pela ShowTime que é subsidiária da Columbia Broadcasting System Corporation (CBS), de acordo
com o próprio site da emissora.1
Homeland também chamou atenção no campo internacional com telespectadores aprovando
ou criticando a série. Por exemplo, de acordo com o jornal New York Post, em 2014 militares
paquistaneses criticaram fortemente o modo ao qual o país foi retratado na quarta temporada da série.
Segundo o jornal: “Os oficias paquistaneses estão furiosos com o Showtime após assistirem à quarta
da temporada de seu hit, a série Homeland, a qual eles dizem mostra o seu país como horroroso,
ignorante, com o terror como uma praga epidêmica”.2 Ao mesmo tempo Barack Obama disse em
entrevista em 2012 que um dos seus seriados favoritos era Homeland.3
Poucos estudos acadêmicos no Brasil exploram a temática das representações da Guerra ao
Terror. É importante destacar que a própria intervenção no Iraque é um evento muito recente e
frequentemente reverbera nos discursos políticos norte-americanos. Esse trabalho embora não trate
da problemática do terrorismo, busca abordar a Guerra ao Terror, cujo desdobramento já é
responsável por uma produção cultural importante nos Estados Unidos, entre romances, filmes,
seriados e jogos de vídeo-game.
A periodização para pesquisa delimita-se ao ano de 2011. À época, os Estados Unidos estavam
sob governo do democrata de Barack Obama. Muitos depositaram esperanças em ter o primeiro

1
Acesso em 21/08/16, em: http://www.sho.com/about
2
Tradução livre. “Pakistani officials are furious with Showtime after watching the fourth season of its hit show
“Homeland”, which they say portrays their country as an ugly, ignorant, terror-plagued “hellhole.” New York Post,
27/12/14. Acesso em 08/12/16, em:, http://nypost.com/2014/12/27/pakistani-officials-furious-over-countrys-portrayal-
in-homeland/.
3
Washington Times, Inside Politics, 23/07/2012. Acesso em 08/12/16, em:
http://www.washingtontimes.com/blog/inside-politics/2012/jul/23/homeland-obamas-favorite-show/.
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presidente negro no país. Entretanto, foi o presidente que apesar de um discurso de retirada das tropas
do Iraque, manteve muitas operações da Guerra ao Terror no Oriente. Em 2011, as últimas tropas de
combate norte-americanas se retiram do Iraque. Em maio, Obama apoiou a operação “Saturno Spear”,
no Paquistão, que teve como meta o assassinato de Osama Bin Laden, após quase 10 anos dos ataques
de 11 de setembro. A operação foi televisionada com o presidente Obama assistindo dos Estados
Unidos à morte do saudita. Imagens como a do presidente assistindo a partir da Casa Branca o
assassinato do inimigo número um dos Estados Unidos já são hoje canônicas. A própria entrada da
tropa de elite na casa do saudita, lembra efeitos do video-game e raios de luz verde em meio à
escuridão. Em 02 de outubro de 2011, o seriado Homeland já começava a bater recordes de audiência
no país.
O seriado tem como principais roteiristas Howard Gordon e Alex Gansa que também
escreveram roteiros do seriado 24 horas. Segundo os próprios roteiristas de Homeland, o seriado tem
inspiração em Prisioners of War, uma série Israelense.
A primeira temporada do seriado tem dois personagens principais, Carrie Mathison
interpretada por Claire Danes, uma agente da CIA, e Nicolas Brody interpretado por Damian Lewis,
um fuzileiro norte-americano. Brody, que havia desaparecido logo nas primeiras operações no Iraque
em 2003, é encontrado e resgatado de um cativeiro por um grupo de operações especiais quase oito
anos depois. Seu retorno aos Estados Unidos é utilizado publicamente pelo governo, mas é visto com
desconfiança pela agente Carrie, já que esta ficara sabendo por meio de um informante que um
soldado americano havia sido convertido e que agora fazia parte de um grupo terrorista ligado a Al-
Qaeda.
Motivada por essa desconfiança, e embora não tivesse conseguido autorização, Carrie instala
ilegalmente equipamentos de vigilância na casa de Brody, passando a assistir o dia a dia do sargento
e de sua família. Os primeiros episódios se desenvolvem a partir do conflito criado pela desconfiança
da personagem, ora retratada como plausível, ora como paranóica.
Enquanto o fuzileiro Brody é inicialmente retratado como estando inserido dentro daquilo que
poderia ser considerado como uma típica família, esposa, dois filhos e casa no subúrbio, também são
apresentados indícios de conflitos: após oito anos, todos mudaram e passaram por experiências
diferentes, sua família tentou seguir com suas vidas pois já haviam perdido as esperanças de que ele
estivesse vivo, enquanto Brody ficara cativo, enfrentando torturas e privações. É interessante notar
que Brody desaparece por oito anos, o que coincide com o tempo total de intervenção dos Estados
Unidos no Iraque, ou seja, da entrada das tropas norte-americanas ao fim das operações no Iraque.
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Após o retorno de Brody, os Estados Unidos é um país diferente daquele que ele havia deixado e ele
também havia mudado, estando atormentado, sua personalidade desestruturada, apresentando
comportamentos instáveis e momentos de crise. Esse personagem atormentado, desequilibrado e com
identidade fragmentada representa o próprio Estados Unidos após oito anos de Guerra no Iraque.
Muitos desses comportamentos, bem como sua dinâmica e intimidade familiar, são expostas
a Carrie em sua vigilância, que viola seu espaço privado. A personagem da agente também é retratada
como instável, pois ela sofre do transtorno bipolar, o que acaba refletido em suas ações, tanto em um
nível pessoal como profissional, já que este é sabido apenas por seus familiares mais próximos.
Devido a forte medicação, a personagem se mantém centrada em boa parte da temporada.
A partir do segundo episódio, o seriado passa a contar com uma abertura que fala muito sobre
o seriado. Mostra Carrie Mathison desde menina à frente da televisão acompanhando notícias sobre
o 11 de setembro. Surge um labirinto em que uma criança com uma máscara semelhante a do
Minotauro perdida em meio local. São incluídos discursos presidenciais enquanto as imagens são
mostradas. Obama é retratado de cabeça para baixo. Em outras palavras, a abertura da série é
desconcertante, mostrando alguns aspectos dos Estados Unidos fora do lugar e a protagonista perdida,
sem encontrar saídas. De acordo com Mary Anne Junqueira, nos Estados Unidos, durante um discurso
presidencial em diversos momentos são recuperados quadros de referências familiares para os norte-
americanos. Essas referências contêm resgates de mitos e símbolos da narrativa de construção da
nação que lembram que os EUA são parte de uma comunidade única e exclusiva.4
A primeira sequência do seriado se passa em uma representação do Iraque, onde o primeiro
foco da câmera é uma mesquita. É possível ouvir, ao fundo, cantos religiosos islâmicos. Logo em
seguida é apresentado em uma legenda o local, Bagdá, e a personagem, a agente Carrie Mathison. A
personagem aparece dirigindo e desviando de vários homens em meio à uma via enquanto tenta entrar
em contato pelo telefone com o diretor da CIA. No momento em que Carrie fica presa no trânsito, o
enfoque da câmera muda para uma visão mais distante, mostrando pessoas caminhando na via,
disputando espaço entre os carros, enquanto é possível ouvir ainda o mesmo cânticos religiosos em
árabe e múltiplos diálogos ao fundo, alguns se sobressaindo como discussões e gritos. A personagem,
então, decide abandonar o carro e seguir andando a pé até a prisão para se encontrar com um
prisioneiro, que supostamente teria informações sobre um ataque terrorista em solo americano,
mesmo após ter seu pedido de visita ao prisioneiro negado pelo diretor da CIA. A personagem suborna

4
JUNQUEIRA, Mary Anne. Os discursos de George W. Bush e o excepcionalismo norte-americano. Margem (PUCSP),
São Paulo, v. n° 17, p. 163-171, 2004 p.164.
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com dólares um guarda iraquiano para entrar dentro da prisão. A partir desse trecho, é possível notar
a imagem que os roteiristas e produtores da série buscam passar do Iraque. É interessante notar que a
mesma trilha sonora, um canto religioso em árabe, é recorrente ao longo da cena. A personagem se
locomove de carro por ruas estreitas, desviando a todo momento de pedestres que aparentemente não
se importam de andar em meio a carros em alta velocidade desordenadamente. Nota-se que as
primeiras imagens expostas desse Oriente são uma mesquita, a prisão e uma forca. Ainda mais, a
personagem suborna um militar em dólares para entrar dentro da prisão.
A série expõe uma concepção de Iraque, ao mesmo momento contrapondo a uma imagem dos
Estados Unidos representada por roupas de gala, pelo Obelisco em Washington e pelo Capitólio, pela
monumentalidade dessas construções e suas significações políticas. Mas como mencionado, mostra
Carrie subornando alguém para obter informações privilegiadas. Tal ato não merece crítica já que ela
faz isso num país desordenado e como parte do seu trabalho de evitar outro ataque terrorista em solo
norte-americano.
A imagem de um Iraque corrupto, religioso, com instituições jurídicas que não funcionam na
normativa idealizada norte-americana e de ruas estreitas e caóticas, é apresentada nos primeiros três
minutos da série contrapondo com a imagem de construções monumentais, conhecidas pelos norte-
americanos, quase como se fosse uma tentativa de estabelecer o “nós” e o “eles”, quase uma
“civilização” versus “barbárie”. A partir da análise desse trecho, foi possível questionar a forma como
o Oriente é representado em Homeland.
A pesquisa baseando-se na primeira temporada do seriado tem quatro objetivos principais: o
primeiro é tentar pensar a forma em que a Guerra ao Terror é retratada; em segundo lugar, buscar
discutir os dois personagens principais, Carrie e Brody, e o que eles representam; um terceiro ponto
será acompanhar como os países do Oriente, em particular o Iraque e Arábia Saudita, são
representados no seriado; e por fim pensar como o próprio muçulmano é representado.
A pesquisa parte da hipótese de que o seriado justificaria e legitimaria a Guerra ao Terror.
Consequentemente, os países do Oriente que aparecem ou são mencionados ao longo do seriado
seriam vistos de forma bastante negativas. O Oriente e o muçulmano apareceriam como antítese do
mundo norte-americano, dado o momento incerto e polarizado da Guerra ao Terror. Ainda que o
seriado toque nos limites e nas consequências negativas da Guerra ao Terror, ele acaba por mostrar
que a atuação da CIA e das tropas de elite norte-americanas no Oriente seriam a única saída para
conter o terrorismo. Também pressupomos que os dois personagens principais, que têm
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personalidades desestruturadas, representam os Estados Unidos e as consequências da Guerra tanto


internamente quanto externamente ao país.

Referências Bibliográficas

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