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As fronteiras africanas (II)

A
quando da 1.ª Guerra Mundial, independências em África tem o catalisador e os seus direitos inalienáveis a uma existên- integração coordenada, outros movimen-
África era administrada por específico no fim da 2.ª Guerra Mundial: cia independente”. Desta forma, evocava-se tos representaram um clara violação à
potências imperialistas: a Grã- quebra da supremacia estratégica global de a diplomacia do equilíbrio cara à Europa intangibilidade das fronteiras proclamada
-Bretanha, suserana de um im- uma Europa devastada; a Carta das Nações dos Estados-nação do século XIX, mantendo pela OUA: a Etiópia absorveu a Eritreia;
pério mundial, tutelava, parcial Unidas; a descolonização asiática e o “patro- as fronteiras coloniais, segundo a doutrina Marrocos reivindicou o Sara Ocidental (que
ou totalmente, vinte e um ter- cínio” da Conferência de Bandung (1955); o uti possidetis juris. Referiu Julius Nyerere, permanece); a Somália exigiu parcelas da
ritórios; a França tinha oito na denominada confronto bipolar no âmbito da guerra-fria, líder da Tanzânia e mentor da OUA, que “as Etiópia e do Quénia; com a independência
África Ocidental Francesa e quatro na África pelo qual a URSS e os EUA se substituem às fronteiras que separam os Estados africanos da Nigéria (1960) e a guerra de secessão do
Equatorial Francesa; a Bélgica dominava o potencias europeias na ingerência em África. são tão absurdas que, não fosse o nosso sen- Biafra (1967), a Costa do Marfim, o Gabão, a
imenso território congolês; Portugal ocupa- Assim, na década de 1950, Líbia, Marrocos, tido de unidade, seriam causas de atritos”. Tanzânia e a Zâmbia ingerem territorialmen-
va a Guiné-Bissau, Angola, Moçambique e Tunísia, Sudão, Gana e Guiné-Conacri Evitar o risco de desencadear uma série de te na situação. Os Estados Unidos de África
os arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé ganharam o estatuto de Estados soberanos. conflitos era a preocupação dominante. sonhados por Nyerere desvanecem-se. No
e Príncipe; a Alemanha subjugava o Togo, os 1960 é a data-chave da emancipação africa- Contudo, o processo de assunção das entanto, a falência da unidade africana teve
Camarões e ocupava a África Oriental Alemã na, ano em que dezoito Estados se tornam fronteiras não foi unânime: os naciona- menos a ver com os conflitos interestatais,
e o Sudoeste Africano; a Espanha tinha sob independentes, num processo que continua listas contestaram a delimitação herdada, que foram diminutos, do que com os confli-
seu controlo o Sara Ocidental, alguns en- nas duas décadas seguintes. O processo entendendo-a como contrária aos interesses tos internos, onde a luta pelo poder foi fre-
claves a norte e a Guiné Equatorial; a Itália culmina com a independência da Rodésia das populações etnicamente divididas; quente. Dos países representados na sessão
dominava a Líbia, a Somália e a Eritreia. do Sul (Zimbábue), em 1980. Depois, o alguns dirigentes, interessados em preservar inaugural da OUA, só quatro não sofreram
Como Estados independentes em África Sudoeste Africano (Namíbia) separou-se da as “áfricas francesas” e unir as possessões mudança violenta de governo ou estiveram
existiam a Etiópia, a Libéria, desde 1847, África do Sul, em 1990, e a Eritreia cindiu-se inglesas da África Oriental num só Estado, a braços com uma guerra no interior do
mas muito dependente economicamente da Etiópia, em 1993. temiam a “balcanização” dessas regiões seu território até à actualidade (Tunísia,
dos EUA, e a União Sul Africana, mediante Em 1963, na reunião em Adis Abeba que em pequenos Estados; os pan-africanistas Camarões, Costa do Marfim, Tanzânia).
a união das províncias do Cabo e do Natal juntou trinta Nações africanas, proclamou-- defendiam a unidade política do continente Vários factores explicam a incapacidade
com o Transval, em 1909 (contemplando os se “a África para os africanos” (substituindo mediante uma mera função administrativa política da OUA na resolução dos problemas
10 Bantostões que o regime de apartheid a fórmula pan-africanista). Nascia a Organi- das fronteiras. internos de África: diferenças entre a África
imporia às populações negras) e que ficou zação da Unidade Africana (OUA) e, com ela, Após a independência, o princípio de francófona e anglófila; a coabitação do pan-
“encerrada” na Commonwealth. Os “direi- o idealismo de um continente unificado, intangibilidade das fronteiras não foi total- -africanismo com o pan-arabismo e a Liga
tos de posse” vigoraram até 1919, altura mediante um comprometimento de respeito mente respeitado. Se a união do Tanganica Árabe; a falta de uma potência directora;
em que a Alemanha, potência derrotada, foi pela “integridade territorial de cada Estado e do Zanzibar (Tanzânia) representa uma Estados mais preocupados com os seus
expropriada das suas colónias pela Socieda- problemas internos que com a estabilidade
de das Nações, que coloca os Camarões e o ÁFRICA EM 1914 do espaço continental.
Togo sob administração conjunta da França MARROCOS ESPANHOL Tunes Quando a OUA adoptou as fronteiras
Argel TUNÍSIA
e da Grã-Bretanha, o Zanzibar (Tanzânia) e Marraquexe MARROCOS Tripoli para os Estados africanos independentes,
Ilhas Canárias IFNI
a Niassalândia (Malawi) ficam sob tutela bri- (Espanha) ARGÉLIA
Cairo ignorando a perigosa premissa de a um
LÍBIA
tânica e a Bélgica recebe o Ruanda-Urundi. RIO DO OURO EGIPTO povo étnico corresponder um Estado,
De modo semelhante, o Império Otomano é MAURITÂNIA assumiu uma postura política racional e
SOMÁLIA
Cartum
obrigado a retirar do Norte de África. Entre- ÁFRICA OCIDENTAL CHADE FRANCESA a inserção de jure dos países africanos no
FRANCESA NÍGER ERITREIA
Dacar SUDÃO SOMÁLIA
tanto, a União Sul Africana ocupa de motu GÂMBIA ANGLO-EGÍPCIO INGLESA sistema político internacional. Em termos
próprio o Sudoeste Africano e o Egipto GUINÉ Fachoda Adis Abeba de legislação internacional, os acordos co-
PORTUGUESA Costa do
separa-se, em 1922, da Grã-Bretanha, que Marfim Lagos ABISSINIA SOMÁLIA loniais permanecem, por isso, vinculativos.
SERRA LEOA CAMARÕES
DAOMÉ ITALIANA
permanece na região, controlando o canal LIBÉRIA UGANDA Assentes em barreiras naturais ou pontos de
TOGO
COSTA São Tomé CONGO
do Suez. Posteriormente, a Itália ocupa a DO OURO (Portugal) BELGA
ÁFRICA ORIENTAL BRITÂNICA demarcação mediante um conceito de linha,
Etiópia (1935-1943). Mombaça elas não obrigam, utilizando terminologia
GUINÉ ESPANHOLA Léopoldville ÁFRICA
ORIENTAL Zanzibar
ALEMÃ (protectorado de Ratzel, um movimento orgânico a parar,
britânico)
Da limes uti possidetis juris algo impensável na África multiétnica
ANGOLA
RODÉSIA Moçambique
No período entre guerras assiste-se à reali- DO NORTE transfonteiriça. Na verdade, favorecem
Francês MOÇAMBIQUE
zação de vários Congressos pan-africanos, SUDOESTE AFRICANO RODÉSIA a comunicação e a interligação entre os
Belga DO SUL
(protectorado alemão) Madagáscar
organizados por elites africanas em capitais Britânico BECHUANALÂNDIA
povos. África é o continente com o maior
Baía das Baleias
europeias e nos Estados Unidos, que põem Português (União Sul Africana) Pretória número de conflitos armados do mundo,
Joanesburgo
Espanhol SUAZILÂNDIA
em causa a administração colonial em África Alemão UNIÃO mas a grande incidência é no interior dos
SUL-AFRICANA ESTADO LIVRE DE ORANGE
e defendem a “África para os africanos Italiano Cidade do Cabo BASUTOLÂNDIA Estados. Efectivamente, como informa Elikia
negros”. Dado o mote, o processo das Fonte: ROBERTS, John (1999) – História Ilustrada do Mundo, Vol. VIII, Círculo Leitores. M’Bokolo, “raras foram as situações em que

JANUS 2010 anuário de relações exteriores


Meio século de independências africanas
Abílio Lousada Configurações políticas 3.2.5

se suprimiram as fronteiras coloniais num AS FRONTEIRAS AFRICANAS NA ACTUALIDADE gráfica das fronteiras numa óptica de espaço
processo de integração”. Apesar da divisão Tunes alargado a nível económico.
Argel
Madeira (Portugal) Rabat TUNÍSIA
cultural que o retalho fronteiriço apresenta Porque, como frisou Joaquim Chissano,
MARROCOS Tripoli
em África (muito vincado também no perí- Ilhas Canárias (Espanha) Cairo “fronteira mal gerida é fonte de conflitos”,
ARGÉLIA
LÍBIA alguns países, de comum acordo, procedem
odo pré-colonial), o irredentismo é quase El Aaiun EGIPTO
SARA OCIDENTAL
nulo, os movimentos separatistas resumem- à reverificação dos marcos das fronteiras ter-
MAURITÂNIA
-se a curtos exemplos (Marrocos, Nigéria, MALI
restres, melhorando a sinalização efectuada
Nuakchott NÍGER
ERITREIA
Sudão, Congo Belga), mas os golpes de SENEGAL r
Dacajul Niamei
CHADE Cartum pelos europeus, evitando ambiguidades.
GÂMBIA Ban au Bamaco Uagadugo Asmara DJIBUTI
Estado e as guerras civis são recorrentes. Bis s Contudo, ao contrário das fronteiras con-

o
GUINÉ- Jamena SUDÃO

Nov
c r i NIGÉRIA Djibuti
a
Con etown

Yamusuk
-BISSAU Adis-Abeba

Porto
Abuja tinentais em África, que foram delimitadas

Lomé
Fre a
óvi

Acra
GUINÉ
M onr REP. CENTRO-
África: nova ordem fronteiriça? SERRA LEOA CAMARÕES -AFRICANA ETIÓPIA
SOMÁLIA pelas potências europeias, com as marítimas
LIBÉRIA Iaundé Bangui
Malabo
Sabemos que a maior ou menor relevância COSTA DO MARFIM SÃO TOMÉ E UGANDA QUÉNIA tal não aconteceu. Hoje, os assuntos do mar
PRÍNCIPE Libreville REP. DEM.CONGO Campala Mogadixo
BURQUINA-FASO
estratégica de um território e as caracterís- GANA GABÃO CONGO Kigali RUANDA Nairobi captam, sobremaneira, a atenção dos países
TOGO GUINÉ Brazzaville Bujumbura BURUNDI
ticas do agregado populacional que encerra EQUATORIAL Kinchasa ZANZIBAR de África. Mas há uma grande diferença
BENIM Dodoma Zanzibar
são muito importantes para se entender Luanda TANZÂNIA
COMORES
entre as fronteiras terrestres e as marítimas;
Moroni
a dinâmica de uma unidade política com ANGOLA Lilongwe nestas não se colocam marcos e as referên-
ZÂMBIA
as limítrofes, que amiúde determinam a Lusaca MOÇAMBIQUE cias são as coordenadas geográficas. Assim,
Harare Antananarivo
extensão das fronteiras. Tal pode acontecer ZIMBÁBUE MALAVI o processo de partilha tem uma acuidade
Windhoek BOTSUANA MADAGÁSCAR
por razões de segurança, étnicas ou simples CABO VERDE própria, estando em causa confrontações de
Gaborone
NAMÍBIA Maputo
ânsia de poder. Contudo, o carácter prático Praia
Pretória
Mbabane SUAZILÂNDIA
costa, que inclui o mar territorial (sobera-
Bloemfontein Maseru
das fronteiras geográficas surge, no século (Ao largo do Senegal,
640 km a oeste
nia espacial), a Zona Contígua (soberania
ÁFRICA DO SUL
de Dacar, e sul LESOTO
XXI, algo mitigado pela dinâmica imprimida da Mauritânia) Cidade do Cabo sanitária, migração e aduaneiros) e a ZEE
por factores como os económicos/recursos, Fonte: Nações Unidas. (soberania de recursos). Depois, há a
que também são, em conformidade com reclamação da Plataforma Continental, que
Jacques Huntzinger, «meio ambiente» dos foram confrontados com um dilema: “a alarme”. Neste sentido, em Julho de 2007, os países têm que apresentar a breve trecho
Estados. Em África, como afirma Daniel cooperação conduz à supranacionalidade e Said Djinnit, à época comissário para a Paz às Nações Unidas. A UA apontou 2012 como
Bach, “os fluxos e circuitos transestatais o respeito pelas soberanias impele-as à não- e Segurança da UA, declarou que, “além data limite para os países africanos clarifica-
exercem funções de regulação social e de ingerência”. A existência de largos espaços e da má definição de fronteiras, o conflito rem as suas fronteiras.
acumulação vitais para as populações face de vastas extensões geográficas, bem como a de interesses dos Estados pelos recursos Em jeito de fecho, a geografia gera poder e
à desagregação dos circuitos oficiais e à ampla mobilidade que lhe está associada, in- naturais e estratégicos encontrados nas é, por definição, a ciência das fronteiras. Em
regressão do enquadramento territorial do cutem nas populações uma secundarização áreas transfronteiriças complicam muitas África, ela condiciona comportamentos em
Estado”. A porosidade das fronteiras africa- do problema dos traçados rígidos de uma vezes a situação”. Por isso, enfatizou que “é vez de impor soluções. Mas uma coisa é cer-
nas impele ao comércio paralelo (petróleo, fronteira, a que a aceitação explícita obrigou imperioso criar um programa inovador para ta: o Estado moderno em África tem que ser
diamantes, cacau, algodão, amendoim, após a descolonização. Mas os recursos, a gestão programática das fronteiras inter- construído a partir da realidade existente,
trigo). Hoje, as fronteiras são um elemento disponíveis ou latentes, inscritos nas zonas africanas, visando não apenas promover um em que a sensibilidade relativa às questões
motivador das trocas comerciais e de negó- de fronteiras terrestres (difusas) ou nas ambiente de paz, segurança e estabilidade de fronteira tem de ser tratada na base da
cios “chorudos”, só possível pelo estímulo marítimas (muito ignoradas no passado), co- mas também facilitar a integração socioe- cooperação assente na confiança mútua e,
que um obstáculo não dissuasor permite locam os Estados numa dinâmica relacional conómica e o desenvolvimento sustentável de preferência, através da tutela de uma
ao nível da tributação ad-hoc. A situação é estratégica passível de conflito. em África”. Em Janeiro de 2008, os líderes instância supraestatal, como é a UA. Como
tanto mais grave quanto tal actividade sub- Há alternativas às fronteiras existentes africanos pediram à comissão da UA para a ânsia de acesso a recursos é óbvia e o
reptícia é implicitamente “patrocinada” por em África? Fará sentido redesenhá-las em trabalhar no programa fronteiriço, com vista carácter místico de posse territorial perene,
alguns Estados. Portanto, os negócios de conformidade com as identidades étnicas, à prevenção estrutural de conflitos. A essên- as fronteiras (terrestres e marítimas) ou são
fronteira são um maná para grupos de con- linguísticas e religiosas dos povos? O factor cia do programa é a procura da cooperação geridas com parcimónia ou o conflito pode
tacto transfronteiriços, que lapidam receitas recursos vai impelir os Estados a uma nova transfronteiriça de modo a converter as surgir como solução, situação indesejável
dos Estados e subjugam estratos populacio- ordem fronteiriça? A questão das frontei- áreas limítrofes em zonas de solidariedade para uma África que se deseja inserta na
nais. O exemplo dos Hansas, divididos entre ras é um dos grandes desafios da União capazes de reforçar o processo de integra- “aldeia global”. Dizia o historiador helénico
a Nigéria e o Níger, ou o Congo Belga-Shaba Africana (UA), que substituiu, em Julho de ção africana. No horizonte, perspectiva-se a Políbio que “da África surge sempre algo
e a Zâmbia-Copperbelt são elucidativos. 2002, a OUA. O litígio sobre as fronteiras criação da Comunidade Económica Africana, de novo”. Será a centúria que iniciámos o
Em Adis Abeba, os Estados assumiram marítimas entre a Nigéria e os Camarões isto é, busca-se a anulação de possíveis século de uma África nova? ■
as fronteiras herdadas, “jurando” não se (península de Bakassi) e, mais recentemen- conflitos interestatais, devido à competição
imiscuírem nos assuntos internos dos países te, entre a Eritreia e o Djibuti (região de Rãs pelos recursos em zonas de fronteira de Referências

limítrofes. Mas, como refere Pascal Boniface, Doumeira) fizeram soar as “campainhas de suserania difusa, mediante a anulação geo- Vide texto da página 124.

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