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Eterno retorno: do amor

“A verdade (alétheia) é chamada perfeitamente esférica porque girando na


pura circularidade do círculo, no qual começo e fim coincidem”.
Heidegger, O fim da filosofia, Os Pensadores, 1973, p. 277.

“Desde que o homem, ao olhar o Ser, se deixa tomar por ele, é arrebatado para
além de si mesmo; de modo que ele se torna, por assim dizer, tencionado entre
ele mesmo e o Ser, e fora de si. Este fato de ser elevado acima de si mesmo e
atraído pelo Ser constitui éros’.”
Heidegger, “A vontade de potência enquanto arte, curso sobre Nietzsche de 1936-7, aula chamada “O
Fedro de Platão: beleza e verdade em um benfazejo ‘desacordo’”, tr. da tr. fr., p. 177.

“O que se faz por amor se realiza sempre para sempre além do bem e do
mal”Além do bem e do mal, 153.

1.

1. Caracterização das quatro posições que um sujeito


(amoroso) qualquer ocupa diante de um objeto (amado)
qualquer. Este escrito trata da construção do conceito de
experiência amorosa em que o sujeito amoroso circula em
torno de seu objeto amado a partir de quatro posições
matriciais.
1.1. Na origem deste texto está a ideia de que eterno
retorno é o nome que Nietzsche atribui a uma “experiência”
cujo “conceito”, para si-mesmo, teria permanecido
enigmático. Sua pretensão é simplesmente a de ser uma pálida
e precária tentativa de determinar o “conceito” de eterno
retorno. De ante mão, não me encontro de modo algum
convencido de que a “experiência” designada por este nome
seja determinável a partir de um conceito construído por uma
exposição sistemática. O problema da crítica do estatuto do
discurso sistemático tradicional da filosofia foi, como se sabe,
posto em evidência pelo próprio Nietzsche, seja através do
conteúdo em geral de suas reflexões, seja pela decisão de
expressar essas reflexões em uma exposição de estilo
aforístico1. A estratégia que adotei foi a de tentar, através de
um discurso que se quer sistemático, ir até o seu limite
interno, obtendo aí um impulso para um salto. Se com este
salto conseguiu-se alguma coisa é o que francamente não
saberia afirmar.
1.2. Permitir-me-ei procurar determinar o conceito de eterno
retorno a partir da exposição do conceito de experiência
amorosa. À primeira vista a aproximação entre experiência
amorosa e eterno retorno pode parecer excêntrica, caprichosa,
e arbitrária, e o mais grave é que, em certo sentido, isto é
verdade. Pediria apenas que me fosse concedida a permissão
para tentar mostrar um laço íntimo entre essas duas
“experiências”. No fundo, o problema propriamente dito deste
escrito é o de tentar determinar o conceito de experiência em
geral; a experiência amorosa entrará aqui como um modelo
particular da experiência em geral, e sua escolha se justifica,
creio, pelo fato de ser uma experiência suficientemente
generalizada e difundida, por ser uma experiência que todo
mundo sabe o que é, por já tê-la, de algum modo, vivido.

2.

1
Fragmentos Póstumos (Outono, 1887), 9[188]“(...): Eu desconfio de todos
os sistemas e construtores de sistemas: talvez se descubra finalmente por
traz deste livro o sistema que eu evitei... A vontade de sistema em um
filósofo, moralmente falando, uma corrupção refinada, uma doença do
caráter, imoralmente falando, vontade de se mostrar mais estúpido do que se
é – mais estúpido, isto quer dizer: mais forte, mais simples, mais imperioso,
mais inculto, mais autoritário, mais tirânico... ”

Fragmentos póstumos (Julho - agosto, 1888), 18[4]: “Eu desconfio de todos


os fazedores de sistema e os evito. O espírito de sistema pelo menos para
nós pensadores tem algo de comprometedor, uma forma para nossa
imoralidade. – Talvez se adivinhe lançando um olhar por traz desse livro a
que homem de sistema eu só consegui evitar a duras penas... ”

2
2.1. Conceito de experiência amorosa enquanto errância do
desejo do sujeito amoroso pelo percurso do círculo.
2.1.1. A idéia de círculo foi-me sugerida, primeiramente, pelo
próprio Nietzsche nos fragmentos em que tematiza o eterno
retorno, ora em relação ao que chama de Amor Fati 2 (amor do
destino), ora determinando-o como anel do tempo, circulus
vitiosus deus 3 ; mas também, e não secundariamente, pelo
poema de Parmênides onde se lê que pouco importa por qual
atributo do ser se inicie sua exposição, posto que qualquer que
seja o princípio da exposição chegar-se-á sempre ao mesmo
ponto de partida4.
2.1.2. Esta formulação é surpreendentemente apropriada para
designar o que ocorre com a exposição do conceito de
experiência amorosa. Aquilo que na exposição do conceito de
ser chamamos de seus atributos (unidade, eternidade,
totalidade), na exposição do conceito de experiência amorosa
chamaremos de momentos da experiência amorosa. O
conceito de experiência amorosa é tal que qualquer que seja o
momento pelo qual se decida começar a percorrer a linha do
círculo que a sustenta e determina para expô-lo,
encontraremos sempre o mesmo momento inicial.

2
Apêndice, frag. póst., 16[32].
3
Apêndice, A.B.M., § 56.
4
Parmênides de Elea, 5 Proclo, in Parm. I, 708, 16, Cusin. Cit. em Kirk and
Raven, Pre-socratic philosophers: “It is all one to me where I begin; for I
shall come back there again in the time.” 1˚ Ed. Reprinted with corrections,
1969; “It is a common point from which I start; for there again and again I
shall return”. 2˚ Ed. 1983. “Me es igual donde comiece; pues volveré de
nuevo allí con el tiempo”. Tr. Jesús Gácia Fernándes, 1969. “É tudo para
mim o mesmo, onde quer que comece; pois aí voltarei na devida altura.” Tr.
Carlos Alberto Louro Fonseca, 1990; “Comum é para mim o ponto por onde
começo; pois aí hei-de voltar novamente depois”. Tr. Beatriz Rodrigues
Barbosa, 1994. “Ce m’est tout un par où je commence, car là même à
nouveau je viendrai en retour.” Tr. Barbara Cassin, Si Parmenide. “Commun
m’est là d’où je pars; car j’y reviendrai de nouveau”. Tr. Jean Bauffret.
“Igual es para mi por donde comiece. Poes alli mismo tendré que volver de
nuevo.” Autor desconhecido.

3
2.1.3. Antes de passar à nomeação e descrição dos momentos
da experiência amorosa, gostaria de postular que cada um dos
momentos coincide com uma posição do desejo, e não apenas
coincide, mas exprime e/ou produz uma posição de desejo do
sujeito amoroso.
2.2. Os momentos da experiência amorosa são quatro: júbilo,
ressentimento, má-consciência, ideal-ascético. Dos três
últimos, retirei a inspiração da “Genealogia da Moral” ainda
que empregando estas palavras em sentido diferente.
2.2.1. Júbilo. Este momento exprime o desejo - realizado -
que possui o sujeito amoroso de ser amado pelo objeto amado
tanto quanto o ama. Pelo fato deste desejo encontrar-se
realizado, há a vivência de certeza de adequação entre sujeito
amoroso e objeto amado.
2.2.2. Ressentimento. Este momento exprime o desejo -
agora não realizado - que possui o sujeito amoroso de ser
amado pelo objeto amado tanto quanto o ama. Pelo fato deste
desejo não se encontrar realizado, há a vivência de certeza de
não adequação entre o sujeito amoroso e o objeto amado. A
vivência de certeza de não adequação dá origem à vontade de
verdade5 que detecta a razão da não adequação: uma cisão no
objeto amado entre seu desejo e a representação de seu desejo.
2.2.3. Má-consciência. Este momento exprime o desejo -
também não realizado - que possui o sujeito amoroso de ser
amado pelo objeto amado tanto quanto o ama. Do mesmo
modo, pelo fato deste desejo não se encontrar realizado, há a
vivência de certeza de não adequação entre o sujeito amoroso
e o objeto amado. Agora a vontade de verdade que se
originara na vivência de certeza de não adequação do desejo
ressentido do sujeito amoroso se flexiona sobre si - mesma,
flexão que localiza a razão da não adequação no próprio
sujeito amoroso determinada enquanto fissura entre seu desejo
e a representação de seu desejo.

5
Por exemplo, Gaia Ciência, § 344.
4
2.2.4. Ideal-ascético. Este momento exprime o desejo que
possui o sujeito amoroso de renunciar ao desejo de amar o
objeto amado tanto quanto o de ser amado por ele. Esta
decisão é determinada pela vontade de verdade que em seu
exercício renuncia à potência seja para desfazer a cisão entre o
desejo e sua representação no objeto amado, seja para soldar a
fissura entre o desejo e sua representação no sujeito amoroso.
2.3. Estes momentos devem ser pensados como marcações
pontuais em um círculo cuja linha é percorrida pelo desejo do
sujeito amoroso, e a experiência amorosa deve ser concebida
como errância do desejo cuja posição é determinada pelo
momento da experiência amorosa em que estiver.
2.4. O caráter circular e errático do desejo não exclui,
entretanto, a possibilidade de que um incidente particular
transforme, a partir de então, a circularidade do percurso do
desejo em linearidade infinita, em razão do que o sujeito
amoroso passa a se relacionar com o objeto amado a partir de
uma só posição desejante, transformando a experiência
amorosa em sentimento de amor ou ódio.

3.

3.1. Farei, aqui, uma distinção entre o conceito corrente,


vulgar, ou metafísico do amor e ódio e o ‘conceito’ de
experiência amorosa enquanto errância do desejo pelos
momentos do percurso do círculo. Para a determinação
metafísica do amor e do ódio, definirei primeiramente o
conceito metafísico de amor e ódio; em seguida definirei o
conceito de posição metafísica em relação ao amor e ódio;
depois explicitarei a composição de uma posição metafísica
do amor e ódio; finalmente, procederei a uma descrição
esquemática de cada uma das quatro matrizes básicas das
infinitas posições metafísicas em relação ao amor e ódio.

5
3.1.1. Por conceito metafísico de amor e ódio entendo a
suposição da oposição radical e irredutível entre amor e ódio. 6
3.1.2. Por posição metafísica em relação ao conceito
metafísico de amor e ódio entendo toda tentativa teórico-
discursiva mediante a qual se procura ou resolver, ou explicar,
ou fundamentar tanto a suposta oposição quanto o modo de
relação disto que se supõe oposto. Tanto a suposição da
oposição quanto a tentativa teórico-discursiva de resolvê-la,
explicá-la, ou fundamentá-la pode ser encontrada seja ao nível
do que se costuma chamar de consciência ingênua, seja ao
nível da consciência crítica ou filosófica, daí porque se diz
que a concepção metafísica do amor e ódio é também uma
concepção vulgar, ordinária ou comum.
3.1.3. Cada posição metafísica é composta de três dimensões
que tradicionalmente são chamadas de gnosiológica, moral, e
estética. A suposição da oposição em cada posição metafísica
do amor e ódio repercute sobre cada uma das três dimensões
que compõe uma posição metafísica, de tal modo que na
dimensão gnosiológica se supõe a oposição entre verdade e
falsidade, na dimensão moral se supõe a oposição entre bem e
mal, e na dimensão estética se supõe a oposição entre o belo e
o feio. Embora exista um número incalculável de possíveis
posições metafísicas em relação ao amor e o ódio, isto é, de
tentativas teórico-discursivas de resolver, explicar, ou fundar
a suposta oposição e a modalidade de oposição, nenhuma
posição metafísica é capaz, enquanto tal, de descobrir e
revelar as condições de possibilidade da suposição de
oposição de valor. A questão sobre a origem ou condição de
possibilidade desta suposição de oposição pertence a um
domínio de investigação que Nietzsche chama de genealógico,
cujo sentido e valor podem ser resumidamente precisados pela

6
Nietzsche, Para além de bem e mal, §2: “A crença fundamental
(Grundglaube) dos metafísicos é a crença na oposição dos valores (Glaub an
die Gegensätze der Werthe)”. Daqui em diante usarei sistematicamente o
conceito de metafísica nesta acepção: a metafísica como suposição da
oposição entre verdadeiro e falso, bem e mal, feio e bonito, amor ódio.
6
elaboração de uma resposta à questão: o que quer a vontade
que põe esta oposição? Se é verdade que existe uma
quantidade incalculável de tentativas teórico-discursivas de
fundar a oposição suposta entre amor e ódio, e de resolver
suas possíveis relações, penso que esta proliferação discursiva
pode ser reduzida a quatro matrizes básicas a partir das quais
se desenvolvem as inumeráveis filosofias do amor.
3.1.4. A seguir, farei uma descrição esquemática de cada uma
destas quatro posições matriciais. Esta descrição terá que ser
esquemática porque se entrasse nos detalhes das possíveis
resoluções da suposta oposição teria, certamente, que expor,
por completo, as tentativas que na história da filosofia foram
feitas, o que não é, evidentemente o propósito deste escrito.
3.1.4.1. As três dimensões da posição matricial júbilo.
3.1.4.1.1. A dimensão gnosiológica se caracteriza por ser
vivência de certeza gnosiológica em que há a evidência da
adequação entre as representações que o desejo do sujeito
amoroso faz sobre aquilo que aparece do objeto amado e
aquilo que o objeto amado é, em si - mesmo, íntima e
internamente, isto é, em seu desejo. Tanto o sujeito amoroso
quanto o objeto amado se determinam enquanto verídicos
(verdadeiros) no sentido epistemológico, não havendo cisão
ou fissura entre aquilo que dizem pensar um do outro e aquilo
que, efetivamente, pensam. A possibilidade do falso não é
sequer colocável.
3.1.4.1.2. A dimensão moral se caracteriza por ser vivência de
certeza moral em que há a evidência de efetuação da vontade
de justiça ou de justeza seja entre as representações que o
desejo do sujeito amoroso faz sobre o objeto amado com as
representações que o desejo do objeto amado faz de si -
mesmo. Tanto o sujeito amoroso quanto o objeto amado se
determinam como verídicos (bons, ‘sinceros’) no sentido
moral, não havendo cisão ou fissura entre o desejo que dizem
ter um pelo outro e o desejo que de fato têm. A possibilidade
do mal não é sequer colocável.

7
3.1.4.1.3. Adimensão estética se caracteriza por ser vivência
de certeza estética em que há a evidência da efetuação da
vontade de fruição ou de sentir prazer, tanto por parte do
sujeito amoroso quanto por parte do objeto amado com o fato
de cada um ser o que espontaneamente são: unidades entre
desejo e representação que se atraem e se unificam. O sujeito
amoroso e o objeto amado se determinam reciprocamente
como belos, não havendo cisão ou fissura entre o que cada um
diz sentir pelo outro e o que de fato sentem. A possibilidade
do feio não é sequer colocável.
3.1.4.2. As três dimensões da posição matricial
ressentimento.
3.1.4.2.1. A dimensão gnosiológica se caracteriza por ser
vivência de certeza gnosiológica em que há a evidência da não
efetuação da vontade de adequação entre as representações
que o desejo do sujeito amoroso se faz sobre o desejo do
objeto amado com base nas representações que o desejo do
objeto amado envia para o que lhe é exterior e o que o objeto
amado é intimamente. O sujeito amoroso detecta uma cisão
entre aquilo que o objeto amado é em si - mesmo e as
representações que envia para o que lhe é exterior, de tal
maneira que já não é mais possível para o sujeito amoroso
decidir com certeza se as representações que de si o desejo do
objeto amado envia-lhe corresponde ao que o desejo do objeto
amado é em si, íntima e internamente. O sujeito amoroso se
certifica de que o conhecimento imediato do desejo do objeto
amado está fatalmente destinado ao erro, e para retificar esta
alta potência do falso detectada no objeto amado cindido,
desenvolve uma igualmente potente vontade de verdade com
o intuito de controlar e corrigir a disparidade que existe entre
o que o objeto amado em seu desejo é em si - mesmo e para si
e aquilo que parece ser, por suas representações, para o outro.
A vontade de verdade se funda e se determina na memória de
uma vivência de suposta certeza de adequação que agora
aparece e se mostra como quimérica. A falsidade se introduz
por causa da natureza cindida do objeto amado em sua relação

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com o sujeito amoroso. O objeto amado é falso no sentido
gnosiológico, não é o que quer parecer ser.
3.1.4.2.2. A dimensão moral que se caracteriza por ser
vivência de certeza moral em que há a evidência de não
efetuação de vontade de justiça ou de justeza não entre as
representações que o sujeito amoroso se faz sobre o objeto
amado porque estas são perfeitamente adequadas às imagens
que o objeto amado forja de si - mesmo e envia para o que lhe
é exterior, mas entre as representações que faz de si – mesmo
(com o intuito deliberado de enganar o sujeito amoroso) e o
que o objeto amado é íntima e internamente, isto é, em seu
desejo. O mal enquanto mal objetivo é introduzido pela
injustiça e não justeza do objeto amado consigo mesmo, pela
sua insinceridade: o objeto amado é falso no sentido moral. O
mal é o ódio que o sujeito amoroso ressente motivado pela
traição do objeto amado.
3.1.4.2.3. A dimensão estética que se caracteriza por ser
vivência de certeza estética em que há a evidência de não
efetuação da vontade de fruição ou de sentir prazer não só
porque não há correspondência entre as representações que o
desejo do sujeito amoroso se faz sobre o objeto amado mas
também e sobretudo porque não há correspondência entre as
representações que o objeto se faz para si - mesmo e envia
para o que lhe é exterior com aquilo que é íntima e
internamente, isto é, em seu desejo. O feio ou o sentimento de
desprazer que passa a envolver o objeto amado é objetivo,
determinado pela sua natureza cindida.
3.1.4.3. As três dimensões da posição matricial má-
consciência.
3.1.4.3.1. A dimensão gnosiológica se caracteriza por ser
vivência de certeza gnosiológica em que há a evidência da não
efetuação da vontade de adequação entre sujeito amoroso e
objeto amado. No momento anterior o sujeito amoroso havia
detectado uma cisão entre aquilo que o objeto amado é em si -
mesmo e para si, íntima e internamente, isto é, em seu desejo
e as representações que de si envia para o que lhe é exterior,

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de tal forma que já não era mais possível decidir-se com
certeza sobre se as representações que de si o objeto amado
envia para o que lhe é exterior correspondem ou não àquilo
que é íntima e internamente, ou seja em seu desejo, e para
tentar controlar esta disparidade desenvolve a vontade de
verdade enquanto vontade de não se deixar mais enganar pelo
objeto amado, que cindido, mente e falseia. Neste momento
de má-consciência há uma flexão da vontade de verdade sobre
o próprio sujeito amoroso a partir da qual detecta agora em si
- mesmo e não mais, ou não mais apenas, no objeto amado
uma fissura entre as representações que faz de seu desejo e
envia para o objeto amado, e o que é em si - mesmo e para si,
íntima e internamente, isto é, em seu desejo. O sujeito
amoroso se determina como inverídico e falso no sentido
gnosiológico. O erro se produz por causa da natureza
fissurada do sujeito amoroso em sua relação com o objeto
amado.
3.1.4.3.2. A esfera moral que se caracteriza por ser vivência
de certeza moral em que há a evidência da não efetuação da
vontade de justiça ou de justeza entre as representações que o
sujeito se faz do objeto amado com o objeto amado não ou
não apenas porque o objeto amado aparece como cindido
entre seu desejo e sua representação, mas, sobretudo porque o
próprio sujeito amoroso se descobre a si - mesmo e para si -
mesmo opaco, opacidade que é função de fissura entre as
representações que se faz de seu desejo e envia para o que
objeto amado e seu desejo efetivo. O mal se determina como
mal subjetivo, o sujeito amoroso é inverídico e falso no
sentido moral, falso em relação a si e falso, sobretudo, ao
objeto amado. Aqui o mal é a culpa determinada pelo
sentimento de ter infringido a lei do amor que é a sinceridade,
o dever ser verídico.
3.1.4.3.3. A dimensão estética que se caracteriza por ser
vivência de certeza estética em que há a evidência da não
efetuação da vontade de fruição ou de sentir prazer não tanto
porque não haja correspondência entre as representações que

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o desejo do sujeito amoroso se faz do objeto amado, mas
,sobretudo, porque não há correspondência entre o desejo
íntimo do sujeito amoroso e as representações que de si envia
para o objeto amado. O feio ou o sentimento de desprazer é
agora subjetivo, determinado pela natureza fissurada do
sujeito amoroso.
3.1.4.4. As três dimensões da posição metafísica matricial
do ideal-ascético.
3.1.4.4.1. A dimensão gnosiológica se caracteriza por ser
vivência de certeza gnosiológica em que há não só a evidência
da não efetuação da vontade de adequação entre sujeito
amoroso e objeto amado, mas a evidência do caráter
inefetuável da vontade de adequação seja por causa da cisão
entre desejo e representação objetivos, seja por causa da
fissura entre desejo e representação subjetivos seja por ambas
as causas. Neste momento, ocorre uma mudança mais
profunda no desejo do sujeito amoroso, porque agora já não
deseja mais ser amado pelo objeto amado tanto quanto o ama,
e, portanto, há a renúncia a toda e qualquer vontade de
adequação entre sujeito amoroso e objeto amado, o que não
ocorria nos momentos ressentimento e má-consciência onde,
embora não houvesse vivência de certeza quanto a efetuação
da vontade de verdade, esta vontade era uma aspiração
fortemente praticada pela vontade de verdade seja em relação
ao objeto cindido, seja em sua relação com o sujeito fissurado.
É o exercício zeloso da vontade de verdade levado ao último,
mais estranho e extremo desejo: o de não desejar o que quer
que seja. A renúncia ao desejo de desejar qualquer objeto
amado possível implica a renúncia do exercício da vontade de
verdade para proporcionar os meios seja para corrigir a cisão
do objeto amado, seja para soldar a fissura do sujeito
amoroso. Neste momento, o erro, que fora introduzido no
momento ressentimento pela cisão do objeto amado, e
permanecera no momento má-consciência pela fissura do
sujeito amoroso, é suprimido pela supressão de sua causa, a
vontade de verdade enquanto vontade de não errar, de não

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enganar e de não se deixar enganar. E a supressão da vontade
de verdade é possível pela renúncia da vontade de adequação
operada pela decisão que toma o sujeito amoroso de não
desejar, ou antes, de desejar não mais desejar.
3.1.4.4.2. A dimensão moral se caracteriza por ser vivência de
certeza moral em que há a evidência da não efetuação da
vontade de justiça ou de justeza entre sujeito amoroso e objeto
amado. O ódio produzido pela insatisfação do sujeito amoroso
em seu desejo de ser amado pelo objeto amado tanto quanto o
ama que era explicado pela cisão do objeto amado, e a culpa
produzida pela mesma insatisfação diferindo apenas em sua
explicação como fissura do sujeito amoroso o leva a seu
limite. É o ódio e a culpa, ambos resultantes da vontade de
justiça ou de justeza não efetuadas, que tem que ser
suprimidos pela supressão de sua causa: a própria vontade de
justiça, supressão operada pela decisão que toma o sujeito
amoroso de desejar não mais desejar.
3.1.4.4.3. A dimensão estética que se caracteriza por ser
vivência de certeza estética em que há a evidência de não
efetuação da vontade de fruição do sujeito amoroso com o
objeto amado. A não efetuação da vontade de fruição produz
desprazer e pena para o sujeito amoroso que crescem à
medida que se empenha a vontade de fruição de efetivar-se.
No limite do sofrimento e pena o sujeito amoroso decide
terminar com seu sofrimento suprimindo sua causa, a vontade
de fruição, operada pela decisão que toma o sujeito amoroso
de desejar não mais desejar.
3.2. Tendo feito uma descrição esquemática das quatro
posições metafísicas matriciais das incontáveis filosofias
possíveis do amor, rememorarei o conceito de experiência
amorosa, a fim de poder, em seguida, e mais claramente
proceder a sua distinção da determinação vulgar, corrente, ou
metafísica do amor. No parágrafo dois, o conceito de
experiência amorosa ficou determinado como errância do
desejo pelos momentos do percurso do círculo. Pode-se
também dizer que a experiência amorosa é a descrição de uma

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sucessão de figuras produzidas pelo percorrer do desejo que
mudando de momento muda também de posição. De qualquer
modo, o traço da experiência amorosa que gostaria, agora, de
ressaltar é o da determinação temporal deste conceito,
evidenciada pelas palavras ‘errância’, ‘sucessão’, ‘percorrer
de um percurso’, ‘mudança de posição do desejo’, ‘momento’
presentes em sua caracterização.
3.3. Efetuação da distinção entre determinação conceptual da
experiência amorosa e determinação metafísica do amor e
ódio. A determinação da experiência amorosa enquanto
errância do desejo pelos momentos do percurso do círculo se
distingue, originariamente, da determinação metafísica,
corrente, ou vulgar do amor segundo a qual é o amor uma
experiência jubilatória e/ou místico-ascética que se distingue
pela oposição a sua alteridade radical e irredutível - o ódio -
determinado por experiências ressentidas e/ou culpadas (a
culpa pode ser descrita como ódio em relação a si mesmo), na
medida precisa em que inclui como intrinsecamente
constitutiva de si isto que a determinação vulgar ou metafísica
do amor define como o outro do amor, sua negação, o ódio. O
efeito principal que a determinação da experiência amorosa
produz sobre a determinação metafísica do amor e do ódio é o
da transmutação da qualidade do desejo: o desejo que põe a
oposição se transforma em desejo que põe a diferença. Cada
momento da experiência amorosa exprime uma posição de
desejo que se constitui a partir do solo ou horizonte de várias
efetuações concretas possíveis de determinações metafísicas
de amor e ódio; cada posição de desejo é uma matriz que
sustenta uma variedade de possíveis filosofias do amor e do
ódio, e é nessa medida que se deve determinar o desejo a
partir da determinação conceitual de experiência amorosa não
a reduzindo a uma de suas posições, mas ressaltando,
precisamente, a sua mobilidade como constitutiva. No
parágrafo seguinte penso que ficará melhor caracterizada a
transmutação da qualidade do desejo do sujeito amoroso
operada pela determinação conceitual da experiência amorosa.

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Finalmente, a transformação da disjunção entre amor e ódio,
posta pela sua determinação metafísica, em conjunção de
amor e ódio posta pela determinação conceitual da
experiência amorosa repercute sobre as esferas gnosiológica,
moral e estética que compõe cada posição metafísica,
transformando as disjunções opositivas entre verdade/erro,
bem/mal, belo/feio, em conjunção diferencial.

4.

Neste parágrafo distingo o conceito de momento da


experiência amorosa do ‘conceito’ de instante na experiência
amorosa. Primeiramente, farei a exposição do conceito de
momento da experiência e depois do ‘conceito’ de instante. A
exposição do conceito de momento da experiência amorosa
compreende três etapas, a saber, a descrição dos momentos, a
experiência dos momentos, e finalmente a definição de
momento.
4.1. Descrição dos momentos da experiência amorosa. Cada
um dos quatro momentos exprime vivências de certeza com
conteúdos sucessivamente diferentes:
4.1.1. 1- No momento júbilo há a certeza do sujeito amoroso
de ser amado pelo objeto amado tanto quanto o ama; 2- no
momento ressentimento há a certeza do sujeito amoroso de
amar mais o objeto amado do que este o ama; 3- no momento
da má-consciência há a certeza do sujeito amoroso de não
amar tanto o objeto amado quanto deveria amá-lo; 4- no
momento do ideal-ascético há a certeza da não fusão do
sujeito amoroso com o objeto amado em conseqüência da
renúncia do sujeito amoroso a entregar-se à demanda de amor
de qualquer objeto amado possível que no limite se
transforma em certeza quanto à existência de um objeto
amado transcendente, isto é, um objeto que embora além de
toda experiência possível aparece para o sujeito como objeto
possível de desejo.

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4.1.2. Experiência de momento da experiência amorosa. Ao
nível de sua experiência fática, os momentos da experiência
amorosa aparecem para o sujeito amoroso como estados
substancializados e não como determinação temporal, o que
impede que a experiência amorosa ela - mesma apareça como
composta de momentos sucessivos uns aos outros no tempo.7
Ao nível da experiência fática de cada um dos momentos da
experiência amorosa, momento aparece apenas como
determinado pela certeza de um conteúdo preciso que é, ele -
mesmo, enquanto tal, intransitivo; a certeza específica de cada
momento exclui a possibilidade de que os conteúdos dos
outros momentos apareçam, simultaneamente, como
possíveis: a certeza do conteúdo de um momento impede que
o conteúdo mnêmico de outros momentos apareçam como
possíveis, restando-lhes apenas a possibilidade de aparecerem
como quimeras. Em outras palavras, a certeza do sujeito
amoroso de amar mais do que é amado, no momento de
ressentimento, exclui, enquanto tal, a possibilidade seja da
certeza que de fato foi amado tanto quanto amou, seja, por
exemplo, da certeza de que amará menos do que deveria amar.
É neste sentido que na experiência de momento da
experiência amorosa, momento aparece como estado
substancializado e não como determinação temporal, aparece
como ser por oposição ao devir (o que não quer dizer que não
haja uma ‘temporalidade’ interna a cada momento, ao nível da
experiência fática dos momentos da experiência amorosa: há,
por exemplo, durante a experiência do momento
ressentimento, a memória de uma suposta certeza que agora se
revela ser o que sempre fora, quimera, e daí memória de um
passado ressentido com a falsidade do objeto amado; há a

7
Heidegger, Nietzsche I, (curso sobre o eterno retorno), trad. franc., p. 360:
“Uma primeira resposta - é grosso modo a de Parmênides - diz : o ente é;
singular resposta, seguramente: muito profunda, contudo, pois
imediatamente, pela primeira vez e para tudo que vier depois, inclusive o
pensamento de Nietzsche, é estabelecido o que significa ‘é’ e ‘ser’:
constância e presença, eterna atualidade.”
15
consciência de um presente ressentido determinado pelo afã
da vontade de verdade enquanto vontade de não se deixar
enganar; e há a antecipação de um futuro ressentido enquanto
igualmente determinado pela vontade de não se deixar mais
enganar, o mesmo valendo para os outros momentos). Por
último, o conteúdo específico de cada um dos momentos da
experiência amorosa exclui a presença simultânea da certeza
de um dos outros momentos distintos, seja anterior seja
posterior, e é esta exclusão que impede que, ao nível da
experiência fática, momento apareça em sua determinação
temporal, como devir.
4.1.3. Definição de momento da experiência amorosa. É
apenas a partir da determinação conceitual de experiência
amorosa que momento adquire sua caracterização temporal,
isto é, a definição conceitual de momento ressalta sua
característica temporal, que ao nível da experiência fática,
havia se substancializado; a determinação conceitual de
momento devolve-lhe o caráter de devir, por oposição ao de
ser, resultante de sua experiência fática.8
4.1.4. Concluindo a exposição do conceito de momento da
experiência amorosa, digo que no âmbito da experiência
amorosa, o que é determinação temporal aparece como estado
substancializado; a experiência puramente fática de momento
transforma e/ou reduz o devir ao ser. Inversamente, ao nível
da definição conceitual de momento da experiência amorosa,
o que era experimentado como estado substancializado - o ser
ressentido, por exemplo - aparece como determinação
temporal, um estar ressentido; o simples conceito de momento
é suficiente para imprimir o caráter de devir no ser.
4.2. Passo agora à exposição do ‘conceito’ de instante.
4.2.1. Instante nomeia uma apreensão temporalizada do
momento da experiência amorosa originada de uma síntese
entre, de um lado, a experiência de momento da experiência

8
Idem: “A outra resposta, grosso modo a de Heráclito, diz: ‘o ente se torna,
(devém): é sendo que o ente existe em um constante devir, em um desdobrar-
se e em um abismar-se em si mesmo.”
16
amorosa, para a qual momento aparece como estado
substancializado, e de outro lado, o conceito de momento de
experiência amorosa, pelo qual momento aparece como
determinação temporal das sucessivas posições do desejo do
sujeito amoroso em sua errância pelo percurso do círculo.
Instante nomeia uma apreensão temporalizada de momento
originada em uma síntese entre ser e devir. A vivência desta
apreensão é uma certeza cujo conteúdo é: o ser do devir é o
revir.9
4.2.2. A origem desta síntese, ou seja, sua condição de
possibilidade é uma transmutação interna e qualitativa do
desejo. Até este lugar-momento deste escrito desejo era desejo
de algo, não importando muito se este algo fosse coisa ou
desejo. No exemplo da experiência amorosa, o desejo (do
sujeito amoroso) deseja ser objeto do desejo (do objeto
amado), o que implicava a objetivação ou o tornar-se objeto
do desejo do sujeito amoroso. No júbilo, o desejo (do sujeito
amoroso) de tornar-se objeto de desejo (do objeto amado)
realizava-se ou objetivava-se; nos casos do ressentimento e da
má-consciência, o desejo (do sujeito amoroso) ainda que não
realizado, isto é, não objetivado, não renunciava ao desejo de
realizar-se; no caso do ideal-ascético, o desejo (do sujeito
amoroso) de objetivar-se ou realizar-se renuncia a si - mesmo,
não porque não desejasse mais continuar ser objeto de desejo
do desejo do objeto amado, mas porque o esforço despendido
para a realização deste desejo produzia um sofrimento
intolerável, seja enquanto ódio seja enquanto culpa. O
paradoxo deste momento é que quanto mais o desejo (do
sujeito amoroso) deseja não mais desejar ser objeto do desejo
(do objeto amado) mais fortemente precisa desejar (para não

9
Nietzsche, Fragments Posthumes, 7[54], fim de 1886 – primavera de 1887:
“Que tudo revenha é a mais extrema aproximação entre o mundo do devir e
aquele do ser: cume da contemplação.” A fórmula, como tal, é de Deleuze,
Nietzsche et la philosophie”, 1962, p. 28: “Revenir, est l’être de ce qui
revient”; p. 54: “Revenir, l’être de ce qui devient”; e p. 81: “L’eternel retour
est l’être du devenir.”
17
desejar), e a violência do desejo sobre si, a violência da auto-
extinção provoca um sofrimento ainda maior. Como desenlace
deste circulus vitiosus deus10 de sofrimentos inextinguíveis o
desejo do sujeito amoroso de ser objeto do desejo do objeto
amado se realiza ou objetiva através do desejo do grande
outro, de deus, ou como Nietzsche gosta por vezes de chamar,
do nada! 11 Nos quatro casos, portanto, o que condiciona o
desejo (ou sua renúncia) é o desejo do objeto amado (do
outro), enquanto realizado no momento de júbilo, irrealizado
mas suposto realizável nos momentos de ressentimento e má-
consciência, e irrealizado e irrealizável no momento do ideal-
ascético. A determinação do ‘conceito’ de instante enquanto
apreensão temporalizada do momento de experiência amorosa
originada em uma síntese entre ser e devir cujo conteúdo é a
vivência de certeza do revir tem como condição de
possibilidade um desejo que não se condiciona pelo desejo do
outro (objeto amado) ou do grande outro (deus, nada), mas
pelo desejo de continuar desejando. Há uma transmutação do
desejo (do sujeito amoroso) que deseja o desejo do objeto
amado (outro, ou deus ou nada) para o desejo que deseja o
próprio desejar; tranvaloração do desejo que deseja (do objeto
amado) se e somente se for objeto do desejo (do objeto
amado) para o desejo que deseja apenas por desejar
independentemente de ser ou não desejado pelo objeto amado.

5.

Passarei, agora, a explicitar uma distinção crucial para a


compreensão da escritura nietzscheana. Em função do
exemplo que escolhi para a tentativa de determinação do
‘conceito’ de eterno retorno a distinção a estabelecer é entre,
de um lado a exposição sistemática do conceito de experiência

10
A.B.M., §56.
11
Genealogia da moral, 1ª dissertação, § 6: “... o nada (ou Deus - a aspiração
a uma união mística com Deus sendo apenas a aspiração do budismo ao
nada, nirvana - e nada mais.” Tb. G. M., 3° dissertação § 1.
18
amorosa, e de outro a exposição aforística do ‘mesmo’
conceito. O objetivo deste parágrafo é o de tentar mostrar que
a única exposição possível do conceito de experiência
amorosa é a aforística.
5.1. Exposição sistemática do conceito de experiência
amorosa.
5.1.1. Definição de exposição sistemática:
5.1.1.1. O solo originário da vontade de exposição sistemática
se encontra na experiência de momento da experiência
amorosa em que momento aparece determinado como um
estado substancializado. A vontade de unidade, traço
característico da exposição sistemática, se funda na fixação da
posição do desejo em um momento particular da experiência
amorosa de tal sorte que quando há contradição no interior de
uma exposição sistemática pode-se sempre explicá-la como
sendo um efeito discursivo produzido pela oscilação da
posição desejante, sem que esta oscilação seja, ela mesma,
tematizada explícita e discursivamente;
5.1.1.2. O sentido e o valor de cada parte ou momento lógico
da exposição sistemática advêm do fato dele conter o todo, ou
a totalidade dos momentos ou partes lógicas de forma
condensada; em outras palavras, cada momento presente de
uma exposição sistemática adquire sentido e valor pela
relação com os momentos logicamente já expostos no passado
do texto, mas presentes nos momentos presentes do texto a
título de memória, quanto com os momentos lógicos futuros
que ainda serão expostos, mas que se encontram presentes no
momento presente do texto como antecipação;
5.1.1.3. A vontade de exposição sistemática se apóia no
desejo condicional “só desejo se for desejado” no desejo que
se funda e se subordina ao desejo do outro, no desejo que
condiciona o seu desejar ao ser desejado pelo desejo do outro,
e tanto isto é verdade que quando o desejo, instruído pela
vontade de verdade, compreende que buscar satisfazer a
exigência de ser objeto do desejo do outro é irrealizável
prática e especulativamente, decide-se, por esta razão, por sua

19
auto-supressão, renunciando a si - mesmo, desejando não mais
desejar, e esta auto-supressão do desejo se acompanha de um
silêncio discursivo-expositivo (silêncio místico).
5.1.2.0. O conceito de experiência amorosa pressupõe a
transformação, umas nas outras, destas quatro suposições
básicas, a saber: 1. a suposição da satisfação efetiva da
demanda do desejo do sujeito amoroso de ser amado pelo
objeto amado tanto quanto o ama, o que é a efetuação prática
da suposta possibilidade teórica de verdade sem erro, bom
sem mau, belo sem feio; 2. suposição da possibilidade de
satisfação efetiva do desejo do sujeito amoroso de ser amado
pelo objeto amado tanto quanto o ama, o que conduz, com o
auxílio da vontade de verdade, à tentativa de efetuar
praticamente a suposta possibilidade teórica de verdade sem
erro, bom sem mau, belo sem feio; 3. Suposição da
possibilidade de satisfação do desejo do sujeito amoroso de
ser amado pelo objeto amado tanto quanto o ama, o que
conduz, com o auxílio da vontade de verdade, agora
flexionada sobre o sujeito amoroso, à tentativa de efetuar
praticamente a suposta possibilidade teórica de verdade sem
erro, bem sem mal, belo sem feio; 4. Suposição da
impossibilidade de satisfação do desejo do sujeito amoroso de
ser amado pelo objeto amado tanto quanto o ama, o que
conduz à renúncia a efetuar uma impossibilidade teórica só
agora reconhecida pela vontade de verdade de obter verdade
sem erro, bom sem mau, belo sem feio; auto supressão da
vontade de verdade que decorre do desejo que deseja não mais
desejar quaisquer objetos amados.
5.1.3. Há uma inconsistência lógica entre o conceito de
experiência amorosa determinado como transformação umas
nas outras das quatros posições do desejo e a vontade de
exposição sistemática do conceito de experiência amorosa. A
exposição sistemática exige consistência e para que haja
consistência é preciso que o solo a partir do qual ela se
exponha seja sempre o mesmo. Em resumo, a vontade de
exposição sistemática só se realiza quando se trata de expor

20
uma determinada posição metafísica do amor porque aí sim a
exigência de consistência pode ser satisfeita. Mas penso ter
deixado suficientemente esclarecida a afirmação sobre a
impossibilidade de uma exposição sistemática do conceito de
experiência amorosa.
5.2. Exposição aforística do conceito de experiência amorosa.
5.2.1. Definição de exposição aforística.
5.2.1.1. O solo originário da vontade de exposição aforística
se encontra na apreensão temporalizada de momento da
experiência amorosa cuja condição de possibilidade é uma
síntese entre, de um lado a experiência de momento da
experiência amorosa, no qual momento aparece enquanto
estado substancializado, e de outro o conceito de momento
da experiência amorosa em que momento aparece em sua
determinação temporal, como determinado pela sucessão das
posições do desejo do sujeito amoroso em sua errância pelo
percurso do círculo. O solo originário da vontade de
exposição aforística se encontra na síntese entre ser e devir
cuja certeza é o revir incessante das diferentes posições do
desejo.
5.2.1.2. Ao contrário do que ocorre na exposição sistemática,
em que deve imperar uma unidade entre os momentos que a
constitui, a exposição aforística é habitada por uma
multiplicidade constitutiva em que o sentido e o valor de cada
momento fragmento ou aforismo vão ser determinados por
sua relação com aquilo que praticamente a vontade de
exposição aforística for capaz de colocá-lo. O agenciamento
entre os momentos é sempre múltiplo, precário, provisório,
contingente e, portanto, o será também seu sentido e seu
valor, e a condição disto é o que se poderia chamar de
esquecimento inter ou intra-textual, isto é, o fato de que o que
é dito em um fragmento não ser levado sistematicamente em
conta pelo fragmento que o sucede nem levar em conta
sistematicamente o fragmento que o precede. A incoerência
da exposição aforística, tão amiudemente alardeada por seus
detratores, - o fato de se poder frequentemente encontrar

21
contradições em sua superfície é função de que seus
fragmentos são escritos cada vez de uma posição desejante
distinta e é esta circulação escritural entre as diferentes
posições de desejo que, por força de sua afirmação,
possibilitam lugares/momentos textuais habitados por certezas
de instantes.
5.2.1.3. A vontade de exposição aforística se apóia no desejo
incondicionado, no desejo que deseja desejar, e não no desejo
que se condiciona ao fato de ser desejado pelo desejo do
outro.
5.2.2. Aqui apenas rememorarei o conceito de experiência
amorosa exposto no parágrafo (5.1.2.), definida como a
pressuposição da transformação de umas nas outras das
quatros suposições constitutivas nos momentos de júbilo,
ressentimento, má-consciência, ideal-ascético.
5.2.3. Penso que existe consistência entre o conceito de
experiência amoroso acima rememorado e sua exposição
aforística na medida em que esta é, formalmente, a
confirmação deste. A exposição aforística é, pois, ela também,
uma errância, na medida em que seu lugar de produção de
certeza, de sentido, ou de discurso é a repetição da errância do
desejo. É por esta dupla afirmação da errância - afirmação
prática do desejo, e teórica da exposição aforística - que
vivências de certezas de instantes textuais são possíveis. O
conteúdo destas certezas de instantes - o ser do devir é o revir
- depende e exprime o desejo transmutado que deseja desejar,
ainda que sabendo, antecipadamente, que cada uma das quatro
posições matriciais de desejo retornarão com a força da
necessidade. Ou melhor, não é apesar deste saber que o desejo
transmutado deseja desejar, mas é por causa mesmo deste
saber. A potência específica deste desejo transmutado advém
não da condicionalidade transcendente do desejo do sujeito
amoroso ao desejo do objeto amado, mas da
incondicionalidade imanente ao desejo ele-mesmo. Ao nível
da escritura, esta incondicionalidade do desejo tem como
consequência a produção de um sentido discursivo cujo valor

22
é independente de sua verdade ou erro, bondade ou maldade,
beleza ou feiura. Em relação à experiência amorosa, sua
exposição deve ser tal que possa ser formulada, para usar uma
expressão de Nietzsche, para além de bem e mal; a exposição
aforística tem por característica ser a criação de um discurso
cujo valor será independente de serem lógicos ou ilógicos,
verdadeiros ou falsos, justos ou injustos, belos ou feios, eis o
que se encontra além ou aquém dos limites da exposição deste
escrito que teve pelo menos a pretensão de ser sistemática.

6.

6.1.Retornando, para concluir, ao problema da introdução (1)


penso que o salto para o qual este escrito pretendeu contribuir
foi o da síntese entre experiência de momento e conceito de
momento. Este salto, contudo, não é um salto pelo qual se alça
para um outro mundo, um outro espaço, um outro tempo; ao
contrário, é por meio dele que se retorna, revirado, para o
mesmo mundo, o mesmo espaço, o mesmo tempo, enquanto
re-começo, ou, simplesmente, começo. Neste escrito, o nome
que este salto recebeu foi o de instante. A quantidade de sua
duração pode variar muito, mas do ponto de vista de sua
vivência dura uma eternidade. Instante pode ocorrer em
qualquer um dos momentos da experiência amorosa, porque
em cada posição do desejo do sujeito amoroso pode dar-se sua
transmutação de condicionalidade transcendente para
incondicionalidade imanente. O que este escrito pretendeu foi
transformar em princípio evidente a hipotética identidade
entre eterno retorno e instante.
6.2. Pretendo que o pensamento “o ser do devir é o revir” é
tanto o conteúdo da vivência de certeza de instante durante os
momentos da experiência amorosa, quanto o conteúdo de
vivência de certeza de eterno retorno durante a experiência da
existência ou experiência ontológica. Penso que eterno retorno
era o nome que Nietzsche dava a certos instantes de sua
experiência vital. Nietzsche teve um grande romance com a

23
vida e em certos instantes dessa paixão a morte (o não ser)
esse outro da vida (do ser) aparecia a ele não como um
argumento contra a vida e a favor de uma outra vida, melhor,
sem mal, sem morte, sem dor, eterna mas como a reafirmação
desta vida. Nestes instantes Nietzsche comemorava não a vida
eterna, mas o eterno retorno da vida e da morte.
6.3. Se consegui demonstrar apoditicamente a hipotética
identidade entre experiência amorosa e experiência da
existência, mesmo para mim, é uma questão que não saberia
responder com certeza. Momentos há em que julgo
confiantemente que consegui realizar meu desejo de
transformar em princípio evidente minha simples hipótese.
São momentos de júbilo nos quais me sinto orgulhoso, cheio
de mim, pretensioso. Mas logo sou corroído pela dúvida:
como poderia realizar uma tarefa tão complexa e profunda,
afinal trata-se, nada mais nada menos, de determinar o
conceito de eterno retorno, e quanto mais reflito sobre a
desmedida imodéstia deste desejo mais convencido vou
ficando a respeito de minha congênita e incontornável
mediocridade intelectual capaz de gerar e gerir tão descabido
propósito. Deixo-me, então, levar pela decisão de nunca mais
permitir que nasça em mim desejos de coisas assim tão
inalcançáveis e que só produzem sofrimento e pena. Mas
outras vezes, pergunto-me: ‘e então, realizaste o teu desejo?’,
e respondo distraído: ‘que desejo?’.

24
1. eterno retorno como uma “experiência” cujo “conceito” é obscuro.
1.2. “conceito” de eterno retorno determinado a partir da Experiência
Amorosa.
1.3. hipótese: equivalência entre “experiência” do eterno retorno e
experiência amorosa.
2. Conceito de experiência amorosa.
2.1. definições:
2.1.1. definição de círculo.
2.1.2. definição de momento.
2.1.3. equivalência entre momento do círculo e posição do desejo.
2.2. descrição dos momentos.
2.2.1. júbilo.
2.2.2. ressentimento.
2.2.3. má-consciência.
2.2.4. ideal-ascético.
2.3. definição de errância.
2.4. transformação da errância circular em errância linear.
3. Distinção entre conceito corrente, vulgar, ou metafísico de amor e ódio,
e o conceito de experiência amorosa enquanto errância do desejo pelo
percurso do círculo.
3.1. determinação metafísica do amor e do ódio.
3.1.1. definição do conceito metafísico do amor e do ódio: suposição da
oposição.
3.1.2. definição de posição metafísica em relação ao amor e o ódio.
3.1.3. composição das posições metafísicas do amor e do ódio: o
gnoseológico, o moral, e o estético.
3.1.4. descrição esquemática das quatro matrizes básicas das posições
metafísicas em relação ao amor e ao ódio: o júbilo, o ressentimento, a má-
consciência, o ideal-ascético.
3.1.4.1. júbilo.
3.1.4.1.1. o gnoseológico.
3.1.4.1.2. o moral.
3.1.4.1.3. o estético.
3.1.4.2. ressentimento.
3.1.4.2.1. o gnoseológico.
3.1.4.2.2. o moral.
3.1.4.2.3. o estético.
3.1.4.3. má-consciência.
3.1.4.3.1. o gnoseológico.
3.1.1.3.2. o moral.
3.1.4.3.3. o estético.
3.1.4.4. ideal-ascético.
3.1.4.4.1. o gnoseológico.
3.1.4.4.2. o moral.
3.1.4.4.3. o estético.
3.2. rememoração do conceito de experiência amorosa.
25
3.3. efetuação da distinção entre o conceito metafísico do amor e o conceito
de experiência amorosa.
4. Distinção entre momento da experiência amorosa e instante da
experiência amorosa.
4.1. exposição do conceito de momento da experiência amorosa.
4.1.1. descrição dos momentos da experiência amorosa.
4.1.2. experiência de momento da experiência amorosa.
4.1.3. definição de conceito de experiência amorosa.
4.1.4. conclusão da exposição do conceito de momento.
4.2. exposição do “conceito” de instante da experiência
amorosa.
4.2.1. síntese entre a experiência de momento da experiência amorosa e o
conceito de momento da experiência amorosa.
4.2.2. transmutação da posição do desejo.
5. Distinção entre exposição sistemática do “conceito” de experiência
amorosa e sua exposição aforística.
5.1. exposição sistemática do conceito de experiência amorosa.
5.1.1. definição de exposição sistemática.
5.1.1.1. origem da exposição sistemática.
5.1.1.2. unidade da exposição sistemática.
5.1.1.3. vontade de exposição sistemática.
5.1.2. exposição do conceito de experiência amorosa.
5.1.3. inconsistência entre o conceito de experiência amorosa e a vontade de
exposição sistemática.
5.2. exposição aforística do conceito de experiência amorosa.
5.2.1. definição de exposição aforística.
5.2.1.1. origem da exposição aforística.
5.2.1.2. multiplicidade da exposição aforística.
5.2.1.3. vontade de exposição aforística.
5.2.2. rememoração do conceito de experiência amorosa.
5.2.3. consistência entre o conceito de experiência amorosa e a vontade de
exposição aforística deste conceito. Exposição aforística enquanto repetição
da experiência amorosa.
6. Conclusão.
6.1. salto, síntese, instante.
6.2. o instante está para a experiência amorosa assim como o eterno retorno
está para a experiência de existência!
6.3. Será?

26

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