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publicada
na edição 76
MAI/JUN 2020
Walter Puppo
Engenheiro Civil, mestrando em Engenharia
Civil com ênfase em Gestão, Produção e
Meio Ambiente pela Universidade Federal
Fluminense (UFF), PMP, com experiência de
mais de oito anos como consultor. Trabalha
há três anos no Ilos com vivência em projetos
com foco em logística e supply chain, com
atuação em variados setores.
walter.puppo@ilos.com.br
Thatiana Nomi
Formada em Engenharia de Produção pela UFF, possui
cinco anos de experiência em projetos de consultoria
em logística e supply chain envolvendo otimização de
rede logística, custo de servir, plano diretor logístico,
definição de política de estoque, previsão de vendas,
S&OP e planejamento e gestão de transportes.
thatiana.nomi@ilos.com.br
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Na definição da Agência Nacio- lidade por doenças transmissíveis. grama foi determinante para a redu-
nal de Vigilância Sanitária (Anvisa), Segundo a Organização Mundial ção da mortalidade infantil e para
as vacinas são como ‘medicamentos de Saúda (OMS), evita de dois a três a eliminação, prevenção e controle
imunobiológicos que contêm uma milhões de mortes por ano, e outras bem-sucedido de doenças imu-
ou mais substâncias antigênicas 1,5 milhões poderiam ser evitadas nopreveníveis no Brasil. Os êxitos
que, quando inoculadas, são capa- por meio de uma maior cobertura alcançados, como a erradicação da
zes de induzir imunidade específica de vacinação. varíola, a eliminação da poliomieli-
ativa, a fim de proteger contra, re- No Brasil, o controle de doenças te e da febre amarela urbana, dentre
duzir a severidade ou combater a(s) infecciosas, pela vacinação, come- outros, fizeram do PNI um progra-
doença(s) causada(s) pelo agente çou na década de 60 por meio de ma de saúde pública de referência
que originou o(s) antígeno(s).’ A campanhas pontuais, até que, em internacional. No entanto, uma pe-
vacinação é uma das mais relevantes 1973, com o objetivo de coordenar rigosa estagnação na cobertura de
medidas de saúde pública disponí- ditas ações, foi formulado o Progra- vacinação tem se observado nos úl-
veis e contribui sobremaneira para ma Nacional de Imunizações (PNI). timos anos. Em 2018, apenas a BCG
a redução da morbidade e morta- Especialistas concordam que o pro- alcançou a cobertura preconizada
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A supply chain de vacinas brasileira: análises e oportunidades
de 95%. A consequência é imediata: a baixa imunização favorece o retorno a vida daqueles que a consumirão.
de doenças antes erradicadas, como o Sarampo. Mesmo tendo conseguido Características próprias do Brasil,
o certificado da Organização Pan-americana da Saúde, como país livre do como a extensão territorial, ampla
sarampo em 2016, a doença voltou em 2018 e mais de 10 mil casos foram variação climática e carências de
confirmados (Figura 1). Nesse mesmo ano, 49% dos municípios do país não infraestrutura, aumentam os desa-
atingiram a meta de vacinação. Mesmo considerando que o fenômeno não fios para garantir a qualidade e se-
é exclusivo do Brasil e é influenciado por múltiplas causas, como a desin- gurança dos produtos durante toda
formação e os movimentos antivacina, problemas relacionados à cadeia de a cadeia.
suprimentos, como stockouts, geram um grande impacto nas coberturas e A quantidade de produtos a
necessitam ser resolvidos. serem gerenciados também tem
aumentado significativamente ao
longo dos anos. O primeiro calen-
dário nacional de vacinação, vol-
tado para o cuidado das crianças,
determinava a aplicação de apenas
quatro vacinas. Hoje, ele cobre to-
das as faixas etárias e garante a pre-
venção de 20 doenças por meio da
aplicação de aproximadamente 19
tipos de vacina (ver Figura 2). A
incorporação de cada nova vacina
implica a necessidade de reavalia-
ção da capacidade da cadeia, consi-
Figura 1. Distribuição dos casos confirmados de sarampo hospitalizados, por
faixa etária. Fonte: Sinan apud Boletim Epidemiológico 23, Secretaria de Vigilân-
derando desde sua infraestrutura e
cia em Saúde, Ministério da Saúde, 09/2019. equipamentos até as capabilities das
pessoas. Tais avaliações devem ser
FATORES DE COMPLEXIDADE baseadas em previsões de demanda
Por serem medicamentos imunobiológicos as vacinas são complexas de que são complexas de realizar, pois
gerir. São produtos termolábeis e fotossensíveis, isto é, sensíveis ao calor, envolvem fatores como a sazonali-
ao frio e à luz. As especificações dependem do imunobiológico, mas as dade, possíveis situações de surto e
temperaturas geralmente devem ser mantidas na faixa de 2° a 8° C, ou em campanhas de incentivo. O aumen-
temperaturas negativas de -25° a -15° C. Assim, para manter sua eficácia to do portfólio também impacta o
e potência, devem ser recebidas, armazenadas, transportadas, entregues, processo de compra, que em geral
conservadas e administradas adequadamente. Desvios de conservação em apresenta como grandes desafios à
relação ao especificado pelos laboratórios produtores podem comprometer oferta limitada de produtos e gran-
não apenas a qualidade e eficácia das vacinas, mas também por em risco des lead times.
Laboratórios
públicos
+ Privados
+ Internacionais Tipos de vacina Salas de vacinação
Municípios CRIE*
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Tanta complexidade provoca física para a estrutura gestora mais uma Central Nacional de Armazena-
consequências: eventuais proble- mento e Distribuição de Insumos (Cenadi), localizada em Guarulhos (SP).
mas de disponibilidade de vacinas A principal responsabilidade da CGPNI é o provimento dos imunobiológi-
e elevados níveis de perda, tanto cos definidos no Calendário Nacional de Vacinação. As vacinas podem ser
físicas como técnicas. As perdas adquiridas de laboratórios brasileiros, públicos ou da iniciativa privada, e
físicas são consideradas evitáveis e em geral é necessário comprar também no mercado internacional, já que a
ocorrem com os frascos ainda fe- demanda é maior do que a capacidade de produção. Todos os produtos são
chados por alteração de temperatu- inicialmente armazenados na Cenadi, passando pelo controle de qualidade
ra, quebra, validade vencida ou pro- do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), para
cedimentos inadequados. A OMS posterior distribuição mensal aos estados. A instância estadual consta de
estima que aproximadamente 50% 27 centrais de armazenamento e distribuição, geralmente instaladas nas ca-
das vacinas produzidas em todo o pitais das unidades federadas. Essa instância é responsável principalmente
mundo chegam aos postos com a pela gestão dos estoques estaduais, armazenamento e o abastecimento dos
sua integridade comprometida de- munícipios. Finalmente, a instância municipal é encarregada da gestão dos
vido à quebra da cadeia de frio. Já estoques municipais, armazenamento e transporte até as salas de imuniza-
as perdas técnicas são consideradas ção, que representam a instância final da rede.
justificáveis, pois ocorrem devido à
abertura de frasco multidoses, com
o vencimento do prazo de uso da
Instâncias
doses restantes após a abertura do Conforme estrutura do estado Fluxo de imunobiológicos Solicitação de imunobiológicos
frasco não sejam utilizadas nesse
período, serão desprezadas. Assim, Figura 2. Estrutura da supply chain do Brasil
a escolha da embalagem mais ade-
quada e a análise do trade-off entre Todos os meses, os estados enviam as solicitações de imunobiológicos
o número de doses por frasco e as por meio do sistema de informação para a CGPNI. Essa coordenação, em
políticas de imunização podem ge- conjunto com outras áreas técnicas do Ministério da Saúde, analisa o pedi-
rar não só um grande impacto nas do considerando o público-alvo, esquema de vacinação, média histórica de
perdas, mas também no dimensio- distribuição de anos anteriores, estoques disponíveis na cadeia, validade e
namento da capacidade de armaze- situações de surtos, dentre outras.
namento e transporte da cadeia. Para garantir a qualidade dos imunobiológicos até o usuário final, to-
das as partes envolvidas no processo da cadeia, incluídas as empresas de
transporte, operadores logísticos e distribuidoras, devem cumprir com os
ANÁLISES DA SUPPLY CHAIN DE requisitos de boas práticas e com as legislações em vigor. As recomenda-
VACINAS BRASILEIRA ções incluem câmaras frias para armazenagem, áreas refrigeradas junto aos
A estrutura da rede brasileira espaços de recebimento e expedição, fontes alternativas de energia, moni-
permeia as três esferas de gestão go- toramento e controle contínuo da temperatura, alarmes, frota refrigerada
vernamental e consta de cinco ins- e embalagens especiais, dentre outras. Parte essencial das boas práticas é
tâncias: nacional, estadual, regional, a qualificação da cadeia, que consiste em um conjunto de ações realizadas
municipal e local (ver Figura 3). A para atestar e documentar que quaisquer instalações, sistemas e equipa-
instância nacional é representada mentos estão propriamente instalados e/ou funcionam corretamente, para
pela Coordenação Geral do PNI que se chegue aos resultados esperados.
(CGPNI) e conta com uma área O transporte de imunobiológicos pode ser realizado por via aérea, ter-
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A supply chain de vacinas brasileira: análises e oportunidades
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que, cada vez mais, todas as eta- outras advêm de debilidades existentes na supply chain. Além disso, a pou-
pas e processos estejam pensa- ca capacidade de resposta, ante situações emergenciais do passado, colocam
dos de forma integrada, sob uma em questão a capacidade de resposta futura. Assim, a necessidade de ana-
perspectiva holística, visando lisar as oportunidades de aprimoramento da cadeia se tornam evidentes.
o ótimo global. Nesse sentido, Neste artigo destacam-se três assuntos prioritários, que devem entrar na
procurar o aperfeiçoamento do pauta para melhorar a performance do programa: aumento da produção
sistema de informações, para nacional; reavaliação da estrutura da rede e gestão integrada com visibilida-
que seja capaz de fornecer uma de end-to-end. Alguns progressos pontuais vêm sendo alcançados com su-
visibilidade end-to-end (ex.: de- cesso na rede, mas só a partir de mudanças transformacionais se conseguirá
manda, estoques, capacidades, a performance desejada na supply chain. Pesquisas internacionais encora-
monitoramento de carga, etc.), jam os investimentos necessários em programas de imunização. Segundo
é essencial para melhor planejar, um estudo publicado na Health Affairs, pesquisadores da Johns Hopkins
gerenciar e controlar os fluxos University concluíram que a cada dólar gasto em imunização há um retorno
de produtos e informações pon- de US$16,00. Espera-se que tais mudanças possam ser implementadas e
ta a ponta. Alguns dos assuntos impulsionem o crescimento sustentável do programa, tão importante para
que devem ser abordados siste- toda a população brasileira.
micamente são, por exemplo, a
previsão da demanda, o geren-
ciamento do transporte, a polí-
tica de estoques e a aquisição e
manutenção dos equipamentos
e sistemas de armazenagem. Em
pesquisa no mercado de saúde
brasileiro com 50 empresas da
indústria farmacêutica, o Ilos
constatou que a média de rup-
tura de estoque das empresas foi
de 10,4%. Além disso, 91% dos
executivos entrevistados acredi-
tavam ser possível reduzir esse
número, e 52% deles afirmaram
também ser possível reduzir os REFERÊNCIAS
níveis de estoque. Do mesmo • Brasil. Manual de Rede de Frio do Programa Nacional de Imunizações.
modo, ineficiências a serem re- Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de
Vigilância das Doenças Transmissíveis, 5. ed., Brasília, 2017.
solvidas devem existir na supply
• Brasil. Grupo de trabalho sobre imunizações e cobertura vacinal. Comissão de
chain de vacinas brasileira. Seguridade Social e Família, nov. 2019.
• Da Costa, Carolina Guimarães Furtado et al. Análise da cadeia de suprimento
de vacinas no Brasil. II Congresso Brasileiro de Redução de Riscos e Desastres,
CONSIDERAÇÕES FINAIS Rio de Janeiro, Brasil, 2017.
A implementação do PNI trou- • Evelot Duijzer,Willem van Jaarsveld, Rommert Dekker. Literature Review - the
xe importantes melhorias para a vaccine supply chain. European Journal of Operational Research, 2018.
saúde da população brasileira. No • <http://www.immunizationsupplychains.org/supply-chain-transforma-
entanto, a manutenção das cober- tion-through-system-design/>.
turas vacinais tem se convertido em • Ministério da Saúde <https://saude.gov.br/>.
um grande desafio a ser resolvido. • Nomi,Thatiana. A relevância da gestão do supply chain na disponibilidade de
vacinas. Artigos ILOS. Disponível em <https://www.ilos.com.br/web/a-relevan-
A desinformação e a circulação de cia-da-gestao-do-supply-chain-na-disponibilidade-de-vacinas/>.
notícias falsas são apontadas como • Panorama ILOS – Supply Chain do Setor de Saúde – Edição 2017 <https://
possíveis causas do problema, mas www.ilos.com.br/web/analise-de-mercado/relatorios-de-pesquisa/>.
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