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da masculinidade
Resumo
Neste pequeno ensaio pretende-se pensar a dúvida que aparece em alguns
homens neuróticos obsessivos sobre a sua masculinidade. Buscamos no caso
freudiano “O Homem dos Ratos” subsídios para pensar os enigmas da mascu-
linidade na neurose obsessiva e as possíveis inserções do obsessivo no cam-
po da alteridade. Acreditamos que a pergunta “Sou ou não homem?”, que
aparece em alguns casos de neurose obsessiva, representa uma estratégia
para manter o pai no lugar de potência.
Descritores: neurose; transtorno obsessivo-compulsivo; masculinidade; indi-
vidualidade; relações pai-filho.
Abstract
This short essay aims to analyze a question that arises on some obsessional
neurotic men about their own masculinity. We have found, on the Freudian
case “Rat Man”, subsidies to reflect on the enigmas of masculinity in obsessional
neurosis and the possible ways the obsessional neurotic might be inserted in
the field of alterity. We believe that the question “Am I, or am I not a man?”,
which arises in some cases of obsessional neurosis, represents a strategy to
keep the father as the more potent figure.
Keywords: neurosis; obsessive-compulsive disorder; masculinity; individuality,
father-child relations.
1
Psicóloga. Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP), Mestre em Filosofia – UFMG. Professora
do Programa de Pós-Graduação (M/D) em Psicologia da PUC-MG (filiado à ANPEPP).
A neurose obsessiva
e os enigmas da masculinidade
Uma dúvida se inscreve nas sessões: “Não sei se sou homem.” Vários
pacientes cuja hipótese diagnóstica é de neurose obsessiva levantam essa
dúvida. Esses pacientes se perdem em diversas indagações: “Sou homem ou
criança?”, “Sou homem ou mulher?”, “Sou homossexual?”, “Não sou huma-
no?”. Esse questionamento sobre a masculinidade coloca-a como um enig-
ma. Não seria só a feminilidade um enigma, pois, no continente masculino,
também, habita um campo obscuro.
Outro ponto em comum entre esses pacientes é a idealização do pai.
Melman1 nos revela que na relação com o outro, o obsessivo se encontra
preso no eixo imaginário do ideal, sendo que a virilidade situa-se ao lado da
imagem ideal. Assim, afirma Melman, o obsessivo aceita “certa feminilização
para assegurar a virilidade do pai”1. Acreditamos que a dúvida dos pacien-
tes descrita na pergunta “sou homem?” revela uma certa feminilização de
si e pode ser reflexo da idealização da virilidade paterna. Podemos pensar
em uma identificação com a mãe e um desejo idealizado pelo pai, mas de-
vemos enfatizar que essa solução pode representar uma defesa contra o
desejo pela mãe. Desta forma, pensamos que o destino da ideia do desejo
pela mãe é o recalque e a culpa resultantes que promovem a idealização da
virilidade do pai, pois só este pode ter essa mulher. No entanto, essa
idealização impossibilita o encontro com a própria virilidade. Assim, cabe a
pergunta: Sou Homem?
Pensamos que este seria um mecanismo similar àquele descrito por
Freud2 em os criminosos por sentimento de culpa. Nas palavras de Freud:
como vemos na tradução inglesa de James Strachey, não se reduz a uma ques-
tão terminológica, mas possui um inequívoco alcance conceitual. A pulsão
concebida como conceito limítrofe entre o somático e o psíquico escapa ao
âmbito estrito do biológico e, portanto, da fixidez, da padronização, da pro-
gramação genética que o caracterizam. Assim, pode-se falar em “destinos da
pulsão” (Triebschicksale), no plural; nos diferentes caminhos em que ela, a
pulsão, envereda na busca de uma satisfação que não mais pode ser obtida
apenas no plano da natureza, mas exige, e é nisto que consiste o seu “des-
tino”, uma mediação psíquica e, portanto, a mediação de um outro. Assim,
podemos dizer que o objeto pulsional é o que há de mais variável, porque,
ao contrário do objeto natural, exigido pela necessidade, aquele é marcado
pela contingência. O conceito de apoio esteve presente nos Três Ensaios so-
bre a Teoria da sexualidade5 desde sua primeira edição, de 1905, mas foi
posteriormente abandonado. Ele pode ser tomado como um índice claro
da passagem do registro da necessidade biológica para o do psiquismo, in-
dependentemente de como avaliemos o conceito teoricamente. Ou seja, a
afirmação da variabilidade do objeto introduz a dimensão da possibilidade
e da indeterminação e, deste modo, proporciona uma reflexão sobre a subje-
tividade que transcende a dimensão biológica. É nesse sentido que podemos
compreender a afirmação de Merea6 – que só aparentemente apresenta-se
como paradoxal – de que uma elucidação sobre o estatuto e a função do
objeto seja um imperativo para definir uma concepção de sujeito. A concep-
ção de objeto não é unívoca, uma vez que encontramos concepções antro-
pológicas naturalistas que defendem a ideia de um objeto único e natural;
concepções antropológicas transcendentalistas que enfatizam a abertura do
sujeito para um horizonte de possibilidades objetais; e ainda concepções,
como as anunciadas pela psicanálise, que revelam a variabilidade de obje-
tos para pulsão.
Acreditamos que a expressão outro-objeto possa exprimir a com-
plexidade presente na inovação freudiana no que se refere à noção de obje-
to. O encontro com o objeto da pulsão e com o objeto do desejo deve ser,
necessariamente, mediado pelo outro. Não se trata de um mero objeto
na sua materialidade ou na sua positividade de dado, mas trata-se de sua
significação constituída através da mediação do outro. Assim, na perspecti-
va freudiana, a noção de objeto remete-nos à problemática da alteridade,
que aqui poderia ser analisada especificamente através da figura de um
outro-objeto.
Não podemos deixar de pensar, nesse momento, na célebre passa-
gem da “Dialética do senhor e do escravo”, que se encontra na Fenome-
nologia do Espírito, de Hegel. O senhor depende do escravo, na medida em
que o último transforma as coisas, elevando-as à categoria de objeto do
O senhor se relaciona com estes dois momentos: com uma coisa como tal,
o objeto do desejo, e com a consciência para a qual a coisidade é o essen-
cial. […] O senhor também se relaciona mediatamente por meio do escravo
com a coisa […]7.
“Se tenho esse desejo de ver uma mulher despida meu pai deverá fatal-
mente morrer”3
“Ela lhe seria afável se alguma desgraça viesse a lhe acontecer; e, como
exemplo dessa desgraça a morte de seu pai.”3
Referências
1. Melman C. A neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Companhia de Freud;
2004.
2. Freud S. Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico
(1916). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1976. v. 14, p. 123-64.
3. Freud S. Notas sobre um caso de Neurose Obsessiva (1909). In: Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago; 1976. v. 10, p. 157-250.
4. Freud S. Os instintos e suas vicissitudes (1915). In: Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Ja-
neiro: Imago; 1976. v. 14, p. 123-64.
5. Freud S. Três Ensaios sobre a teoria da Sexualidade (1905). In: Edição stan-
dard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio
de Janeiro: Imago; 1976. v. 7, p. 118-229.
6. Merea EC. Os conceitos de objeto na obra de Freud. In: Baranger W. (Org.).
Contribuição ao conceito de objeto em Psicanálise. São Paulo: Casa do
Psicólogo; 1994. p. 1-18.
7. Hegel. A fenomenologia do espírito (1806). Petrópolis: Vozes; 1992.
8. Ribeiro MAC. A Neurose Obsessiva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2003.
9. Juranville A. Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1987.