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Contextos Clínicos, 10(2):257-267, julho-dezembro 2017

Unisinos - doi: 10.4013/ctc.2017.102.10

A direção da cura na clínica lacaniana das psicoses

The direction of the cure in the Lacanian clinic of psychosis

Tiago Iwasawa Neves, Andreza Silva dos Santos


Universidade Federal de Campina Grande. Av. Juvêncio Arruda, 795, Bodocongó, 58429-600,
Campina Grande, PB, Brasil. tiagoiwasawa@yahoo.com.br, andrezagiannini@hotmail.com

Resumo. O objetivo deste artigo é problematizar o conceito de cura a par-


tir de referenciais psicanalíticos lacanianos, tomando a clínica das psicoses
como campo de questionamento sobre a consistência e as possibilidades
desse conceito. É um trabalho que se justifica pela importância da compre-
ensão da cura na orientação de um tratamento, já que ela se apresenta como
a responsável por fundamentar os diferentes meios de abordagem na clínica.
Partimos da discussão proposta por Georges Canguilhem em “O normal e
o patológico” e de uma definição breve dos conceitos de saúde e doença,
procurando demonstrar como esse autor propõe uma perspectiva de cura
aberta às possibilidades do sujeito, e não enquanto meta objetiva do saber
médico e científico. Em seguida, apresentamos a teorização psicanalítica
sobre a psicose a partir das obras de Freud e de Lacan, procurando articu-
lar uma direção clínica da cura compatível com a proposta de Canguilhem.
Concluímos com uma defesa da ética da psicanálise como contraponto aos
desenvolvimentos clínicos normatizantes da atualidade, buscando especifi-
car a clínica psicanalítica como uma clínica que toma como único referencial
o sujeito.

Palavras-chave: psicose, psicanálise, cura.

Abstract. The objective of this article is to problematize the concept of “cure”


from Lacanian psychoanalytical references, taking the clinic of psychoses as
a questioning about the consistence and possibilities of this concept. It is a
work that is justified by the importance of understanding the cure in the di-
rection of a treatment because it presents itself as responsible for substanti-
ating the different approach means in the clinical practice. We start with the
discussion proposed by Georges Canguilhem in “Normal and pathological”
and a brief definition of the concepts of health and disease, trying to demon-
strate how the author proposes an open cure perspective to the possibilities
of the subject and not as objective goal of medical knowledge and scientif-
ic. Then we present the psychoanalytic theorizing about psychosis from the
works of Freud and Lacan, seeking to articulate a clinical direction of cure
compatible to the proposed by Canguilhem. We conclude with a defense of
the psychoanalysis ethics as opposed to the normative clinical developments
of today, seeking to specify the psychoanalytic treatment as a clinic which
takes as its sole criterion the subject.

Keywords: psychosis, psychoanalysis, cure.

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permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
A direção da cura na clínica lacaniana das psicoses

A direção da cura na clínica inserção política, clínica e social do diagnós-


das psicoses tico, e sua consequente ‘força de lei’, capaz de
gerar coações, interdições, tratamentos e que
É de conhecimento público que o termo tais” (Dunker, 2015, p. 20).
psicose tornou-se o equivalente moderno da Posteriormente, discutimos a teorização
velha noção de loucura, sendo o seu significado da psicanálise em torno do conceito de psico-
etimológico “condição anormal da mente”. se, especificamente nos trabalhos de Sigmund
Segundo Lopes (2001), a palavra psicose apa- Freud e Jacques Lacan, a fim de estabelecer
receu no campo da medicina pela primeira vez quais são os elementos que sustentam a sua
em 1845, pela letra do alemão Feuchtersleben, compreensão de cura e modelam as caracterís-
e no ano seguinte, no Zeitschrifte fur Psychiatrie ticas de seu posicionamento clínico. Concluí-
und Gerichtliche Medizin (Jornal de Psiquiatria mos, assentando as diretrizes da ética analítica
e Medicina Forense). O termo psicose não é como contraponto ao discurso medicalizante,
uma invenção recente da psicanálise, porém buscando especificar a postura dessa ética
o tratamento que ela fornece a esse conceito diante da experiência clínica com o sujeito.
não se enquadra em seu significado etimoló-
gico. Afinal, quem se habilita a afirmar qual é A cura e seu sentido epistemológico
a condição normal da mente? Qual a legitimi-
dade dessa afirmação? Em que ela se sustenta Problematizar a cura exige inicialmente
e como ela pode ser refutada? que exercitemos a nossa compreensão sobre
Este artigo é fruto de um processo de pes- a doença, sobre a condição patológica. Pen-
quisa realizado no Núcleo de Estudos e Pes- sar a condição patológica somente por um
quisa em Epistemologia da Universidade viés negativo, como déficit das condições de
Federal de Campina Grande. Seu intento é um organismo, é negligenciar a potência cria-
problematizar o conceito de cura a partir de dora de um estado de crise, seja ela somática,
referenciais psicanalíticos, tomando a clínica ou psíquica. A doença consiste, antes de tudo,
lacaniana das psicoses como campo de ques- em uma forma diferente de vida, de modo que
tionamento sobre a consistência e as possibi- uma verdadeira atitude clínica deve tomar
lidades desse conceito. É um trabalho que se como referência o sujeito e a sua relação com
justifica pela importância da compreensão da o meio e não partir de uma média social para
cura na orientação de um tratamento, já que classificá-lo e categorizá-lo como tipo anor-
é ela que usualmente como fim costuma fun- mal. Na doença o homem perde a capacidade
damentar diferentes meios de abordagem com de ser normativo, isso significa que ele se tor-
o sujeito. Nosso principal objetivo, então, con- na menos flexível às variações do meio e mais
siste em situar quais são os fins que acredita- fixado em uma determinada norma. Já o esta-
mos e quais são os meios que defendemos no do de saúde se caracteriza por manter essa ca-
manejo clínico de um quadro psicótico. pacidade normativa preservada. Nas palavras
Para isso, iniciamos o percurso funda- de Canguilhem (2009, p. 148):
mentando os fatores epistemológicos que
utilizamos para problematizar esse conceito, Ser sadio significa não apenas ser normal em
articulando as noções de saúde/doença e nor- uma situação determinada, mas ser, também,
matividade/vida e debatendo a importância normativo, nessa situação e em outras situações
política dessas distinções no cenário que apre- eventuais. O que caracteriza a saúde é a possi-
sentamos, aproveitando para situar já nossa bilidade de tolerar infrações à norma habitual e
crítica a um dos principais métodos comparti- de instituir normas novas em situações novas.
lhados e legitimados atualmente no tratamen-
to oferecido aos sujeitos psicóticos: o diagnós- A cura, partindo dessa perspectiva, dei-
tico estatístico dos manuais psiquiátricos, que, xa de ser um momento para ser um processo
devido aos seus excessos de determinação, de estabelecimento de novas normas de vida.
reduzem o processo de nomeação e reconheci- Curar passa a ser o trabalho de subsídio para
mento do sofrimento subjetivo ao ato terapêu- o reaparecimento de uma nova ordem, uma
tico da medicalização. Seguindo a proposta de nova ordem individual. Um tratamento efe-
Christian Dunker (2015), pensamos a medi- tivamente clínico, portanto, é aquele que res-
calização como um modelo de racionalidade peita as novas constantes criadas pelo indiví-
diagnóstica: uma estratégia política de “ex- duo para lidar com a situação de sua condição
pansão dos atos, raciocínios e estratégias de patológica (Canguilhem, 2009). No caso da

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psicose, esse trabalho pode ser realizado, por tir de uma outra posição relacional com meio,
exemplo, com a produção delirante do sujeito. viver a doença como uma experiência de valor
O papel do clínico nesse sentido é o de acom- positivo e não como decréscimo de potência.
panhar o sujeito na construção de uma forma Segundo Le Blanc (1998), estar doente não é
de existência que o sustente, já que, devido às uma experiência marcada pela desordem, pelo
peculiaridades da apresentação de sua deman- transtorno ou pelo desvio da norma. Estar do-
da, quando ela existe, coloca-se sobre a forma ente é estar próximo de uma experimentação
de um pedido de afirmação de existência (Ri- que aumenta e alarga as leis do normal.
naldi Meyer, 2007). Pensando assim, a desordem mental deixa
Ora, se há uma distinção, para Cangui- de ser uma desordem para ser a substituição de
lhem, entre o normal e o patológico esta não uma ordem esperada ou apreciada por outra
é uma diferença fixa e estática entre a norma ordem (Canguilhem, 2009). A própria doença
e o seu desvio. Poderíamos dizer que o nor- mental passa a ser vista como uma saída que
mal, assim como o patológico, não são expe- compromete a capacidade normativa do sujei-
riências idênticas para sujeitos diferentes. Ser to, mas que lhe oferece novas possibilidades
portador do vírus HIV pode, por exemplo, de arranjo com o meio (Miller, 1996). A fim de
ser uma experiência de vida totalmente dife- compreendermos o problema da cura dessa
rente quando tomamos dois sujeitos ao acaso. maneira, precisamos deixar de tomar a esta-
No entanto, para Canguilhem, não se trata tística como modelo de referência para a nor-
de relativizar ou psicologizar as distinções malidade, precisamos deixar de tomar a saúde
entre saúde e doença, normal e patológico. mental a partir de parâmetros epidemiológi-
Ao contrário, esta distinção só pode ser tri- cos. Tomar o sujeito como referência significa
butária de um valor individual e não de um abandonar por completo as categorizações sin-
dado ou prova empírica. Por isso, não se trata tomáticas de manuais como o ‘Manual Diag-
de simples relativização, mas de uma forma nóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais’,
de restituir à clínica a condição que a suscitou: que já está em sua 5ª edição, para associar as
ser uma experiência da doença partilhada en- respostas sintomáticas do sujeito a sua própria
tre o doente e o médico e não uma técnica de história e a seu modo singular de fazer laço
identificação e classificação dos sintomas que no presente. Procurar ser eficaz no tratamen-
foca sua ação na conversão da doença à saúde to da psicopatologia, através, por exemplo, de
e do patológico ao normal. métodos abusivos de medicalização, é tentar
Seguindo esta mesma linha de raciocínio, adequar cegamente o indivíduo a uma norma
Safatle (2015) assinala que a clínica de hoje pro- médica e farmacológica estranha a ele, isto é,
cura através da sua especialização, nos ramos a uma linha fraca que se rompe no primeiro
da anatomia patológica, da neurociência e da impacto de qualquer mudança contingencial
fisiologia experimental, por exemplo, determi- da vida. A direção do tratamento deixa de ser
nar a realidade da doença. Porém, o que esse guiada pelo sujeito para seguir as medidas
modelo de clínica esquece, e que não deveria ineptas e cruéis de um modelo, que medianiza
de modo algum esquecer, que essa realidade o homem. Para Calazans e Lustoza (2008, p. 5),
da doença só é percebida “através da consciên-
cia – veiculada primeiro pelo sujeito que sofre O projeto medicalizante não é só ideológico, mas
– de decréscimo da potência e das possibili- também político. Político por querer tratar o de-
bate não como um confronto entre posições que
dades de relação com o meio. Enquanto mo-
disputam qual é a verdade sobre o homem, mas
dificação global da conduta, a doença é indis- sim como um conflito de interesses democrati-
sociável da restrição da capacidade de ação” camente administrado em Assembleia Legislati-
(Safatle, 2015, p. 427). Como consequência, é vas, no qual terá ‘razão’ quem detiver a maioria
possível depreender que essa compreensão da de votos.
doença não é idealista ou essencialista, mas sim
relacional, e por isso, a capacidade de ação do O apelo cientificista dos tratamentos estri-
sujeito doente depende de seu poder de nor- tamente medicalizantes desloca a discussão
matividade (produzir novas normas) em rela- da psicopatologia do seu verdadeiro eixo. A
ção ao meio. Nada, absolutamente nada, nessa apreciação dos valores atribuídos pelo sujeito
definição nos conduz a pensar a doença como a sua condição de patologia é descartada dian-
um rompimento do funcionamento normal e te de um saber que o objetiva e determina sua
esperado do organismo. Mesmo funcionando localização nos conjuntos pré-estipulados de
de modo diferente, é possível ao sujeito, a par- lugares sociais. A questão, desse modo, torna-

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A direção da cura na clínica lacaniana das psicoses

se política, pois mobiliza as intervenções nos transferência com os sujeitos psicóticos. E era
corpos e comportamentos desses sujeitos que exatamente essa transferência que se colocava
passam a ser invadidos por um poder exterior como o motor responsável pela condução da
que os relega ao lugar de objeto (Safatle, 2011). relação entre o analista e o paciente.
A justificativa parte de um conceito de Saúde A transferência, de acordo com as observa-
Pública e Mental, que insere o sujeito em um ções freudianas, consistia em um investimento
discurso de normalidade externo a ele. A saú- libidinal pelos pacientes neuróticos na figura
de deixa, assim, de ser algo intrínseco à vida do médico, que era incluído em uma série psí-
do indivíduo e à sua capacidade de criação de quica construída por eles, através das impres-
normas particulares, para se tornar fator de sões pulsionais estabelecidas durante os seus
uma contabilidade social (Canguilhem, 2005). primeiros anos. Dentro do cenário analítico,
Não é segredo pra ninguém que a meto- essa transferência se apresentava como um
dologia de elaboração do DSM segue as vias mecanismo de resistência por parte do sujeito,
‘democráticas’ de maioria de votos dos psi- visto que era desencadeada sempre que o tra-
quiatras da comissão para o estabelecimento tamento de investigação analítica aproximava-
de quais sintomas devem ser colocados em -se de complexos patogênicos inconscientes
quais transtornos e quais transtornos devem importantes para a sua atual condição, inter-
estar inseridos em quais categorias sindrô- rompendo o percurso do exame iniciado pelo
micas. Não é segredo também que existe um analista. O paciente, nesse caso, elaborava uma
torpe enviesamento dessas escolhas pela influ- rota alternativa (ao investimento no analis-
ência mercadológica da indústria farmacêu- ta) para escapar do encontro com esse núcleo
tica, para o qual a existência de mais doentes desconhecido, que se estava fora das vistas de
é sinônimo de contabilização de mais lucro. sua consciência era porque, decerto, encerrava
De fato, não se trata mais de um segredo, por- para ele uma verdade incômoda, que esbarra-
que é expresso e publicamente declarado o va em uma resistência ao tentar ser recordada
vínculo que existe entre a força tarefa do DSM (Freud, 1969a [1912]).
e a indústria farmacêutica. Não fica difícil, Freud situou a diferença entre a neurose e a
então, perceber que o que menos há em tais psicose na topologia de seus conflitos, que, se-
medidas é uma preocupação clínica com o su- gundo ele, se davam entre instâncias distintas.
jeito. Portanto, seguir as vias que a Psicanálise Inicialmente, afirmou que a neurose era resul-
oferece a partir de sua ética para o tratamento tado de um conflito entre o eu e o isso e a psi-
da psicose coloca-se totalmente na contramão cose o saldo do conflito entre o eu e o mundo
de movimentos dessa natureza, coloca-se na externo (Freud, 1969b [1923]). Posteriormente,
direção de um respeito pelo lugar do sujeito autenticou o eu como instância psíquica no
psicótico no mundo, no seu mundo, pois só meio de um só conflito entre o isso e o mundo
existe mundo de cada um, não existe realidade externo, que seria expressão tanto para a neu-
que não seja relativa ao sujeito. rose, quanto para a psicose, sendo a posição do
eu dentro desse embate a responsável por ditar
A clínica psicanalítica das psicoses: as diferenças entre uma e outra. Na neurose,
Freud e Lacan o eu ficaria ao lado do mundo externo, escon-
dendo o isso, mas tendo que lidar com suas ir-
A psicanálise em seu advento contou com rupções desavisadas, que seriam solucionadas
a histeria como ponto de partida para uma através de formações de compromissos (os sin-
compreensão daquilo que, de acordo com seu tomas, principalmente, assim como os sonhos),
fundador, Sigmund Freud, no campo das pa- que funcionariam como acordos entre os dois
tologias, estava situado além de uma causali- querelantes. Na psicose, o eu ficaria ao lado
dade orgânica. As pesquisas dentro do cenário do isso, afastando-se do mundo externo, mas
neurótico foram realizadas com afinco tanto tendo que lidar com a existência de uma rea-
por Freud, quanto por seus seguidores; mas, lidade fora de si, que demandaria explicação e
nesse início, pouco se conjecturou dentro da provocaria o seu retorno a fim de organizá-la,
teoria nascente sobre os quadros de psicose. reformulá-la (Freud, 1969c [1924]).
Isso não significa que eles tenham sido negli- Em termos libidinais, a psicose (que apre-
genciados. A questão que se colocava como senta como principais sintomas a mania de
obstáculo para uma maior abordagem do as- perseguição, a erotomania, os delírios de ciú-
sunto na teoria era a concepção de que não era me e a megalomania) seria explicada por uma
possível estabelecer analiticamente um laço de fixação da libido na fase narcísica, que provo-

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caria a sua retirada dos objetos externos e o original da causalidade psíquica: era Jacques
seu consequente investimento no próprio eu Lacan, psiquiatra de formação, que acabou por
do indivíduo (Freud, 1969d [1914]). O retorno se aproximar do projeto freudiano ao se lançar
dessa libido para os objetos externos, na ten- no intento de reintroduzir o conceito de sujei-
tativa de realcançá-los, se daria de forma um to na ordem do conhecimento (Olgivie, 1991),
tanto ruidosa através do mecanismo da pro- considerando o fato de esse conceito ter se tor-
jeção – efetivamente o principal atuante no nado o rebotalho do discurso científico.
desencadeamento dos sintomas paranoicos Depois de Freud, alguns psicanalistas se
(Freud, 1969e [1917]). debruçaram sobre o assunto, elegendo a proje-
Segundo Freud, o que estava por trás de ção e a homossexualidade como os fins últimos
todo desencadeamento psicótico era um im- de sua descoberta e acabaram não avançando
pulso homossexual inaceitável para o sujeito. na criação de um tratamento possível para as
Em sua principal obra sobre o tema, Notas psi- psicoses (Lacan, 1998 [1958]). Com isso, é im-
canalíticas sobre um relato autobiográfico de um portante ressaltar, não estamos afirmando que
caso de paranoia, de 1911, ele discute as conjun- Lacan seja o único psicanalista que desenvol-
turas do quadro clínico de Daniel Paul Schre- veu trabalhos teóricos e clínicos significativos
ber, através da leitura de sua autobiografia. Na sobre a psicose. Entretanto, sabemos que ele
medida em que avança em suas observações, foi o grande responsável pela teorização e de-
Freud estabelece para ele o diagnóstico de de- monstração clínica de que o psicanalista não
mência paranoide e postula uma série de hipó- deveria recuar frente à psicose. E foi seguindo
teses sobre sua causa e desencadeamento. as pistas do legado clínico e dos conceitos me-
Schreber era um doutor em Direito Penal e tapsicológicos freudianos – o famoso “retorno
no âmbito de sua doença acreditava ser o Re- à Freud” que inaugura seus Seminários – que
dentor da humanidade, por conta de sua po- Lacan pôde enunciar os fundamentos da dire-
sição privilegiada de mulher de Deus, que lhe ção da cura nos casos de psicose. Seu ensino,
incumbiria a responsabilidade de reproduzir pautado por seus Seminários, foi marcado por
uma nova raça de homens para Terra. Freud um interesse cada vez mais sistematizado so-
identificou a origem dessa construção deliran- bre a possibilidade de um tratamento psicana-
te nas fantasias homossexuais de Schreber para lítico das psicoses.
com seus parentes, mais precisamente seu pai Em sua proposta de “retorno à Freud”,
e irmão. Esses impulsos teriam sido projetados Lacan partiu exatamente dos casos de psico-
na figura de seu médico Flechsig, que se torna- se na construção de sua clínica, apontando a
ria, posteriormente, em seu delírio, a figura de necessidade que havia em retificar algumas li-
um perseguidor, interessado em abusar sexual- mitações impostas durante anos ao tratamento
mente de seu corpo. Para lidar com essa nova desses pacientes não só pela psicanálise, mas
posição sexual, Schreber divinizou o seu delí- também e principalmente pela psiquiatria. Foi
rio e substituiu Flechsig pela figura superior de assertivo ao dizer que não se deveria recuar
Deus, que usaria seu corpo não com a simples diante do tratamento da psicose e que seria
e perversa pretensão de abusar sexualmente preciso reelaborar o saber da psicanálise, em
dele, mas com o objetivo maior de fecundá-lo e, seus conceitos e práticas, a fim de expandir o
assim, dar origem a uma nova raça de homens, alcance de sua clínica. O seu ponto de parti-
que transformaria a vida na Terra. da foi sedimentar, no encalço de Freud, a falta
A fixação no estado narcísico viria, então, de continuidade entre a neurose e a psicose a
explicar a localização do paranoico em termos partir da noção de estruturas clínicas. Essas
das irrupções de suas fantasias homossexuais seriam três: a neurose, a psicose e a perversão.
(por amar um indivíduo semelhante a si mes- Dentro delas se desencadeariam as relações
mo) e das suas consequentes elaborações deli- do sujeito com o seu meio social, de modo a
rantes de perseguição e megalomania. Freud tornar possível a constituição de uma história
não esgotou o tema, renunciou aplicar seu singular; livre, mas forçada pelo modelo de re-
método de tratamento nos psicóticos, mas dei- lação estabelecido pelo sujeito com o Outro no
xou em aberto a possibilidade e a necessidade momento da sua entrada no campo da lingua-
da elaboração de novos planos de abordagem gem. Foi partindo dessa concepção que Lacan
com esse público. O cenário mudou com a (1998 [1958]) definiu uma questão preliminar
chegada de um novo personagem interessado ao tratamento desses casos.
em aprofundar sua compreensão sobre a psi- Para ele, existia uma determinação signi-
cose, através da identificação de uma ordem ficante nas psicoses e ela tinha relação com

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a foraclusão efetuada pelo psicótico – na sua dos de estudo próprios aos fenômenos da persona-
passagem pelo Complexo de Édipo – do sig- lidade (Lacan, 2011 [1932], p. 315).
nificante do Nome-do-pai, responsável pela
amarração dos outros significantes em uma Essa ideia posteriormente será abandona-
cadeia de sentido (Miller, 1996). “Foraclu- da, mas nesse instante de sua pesquisa será
são é um neologismo que se utiliza em por- fundamental para sustentar a natureza de seu
tuguês para designar que não há inclusão, empreendimento; principalmente, pelo apelo
que o significante da lei está fora do circuito, que a concepção de ciência faz por um mé-
sem deixar, no entanto, de existir, pois o que todo e que ele vai atender ao propor e justi-
está foracluído do simbólico retorna no real” ficar a utilização do método compreensivo, já
(Quinet, 2009a, p. 15). Assim, foraclusão não é empregado por outros autores, como alicerce
propriamente uma tradução do termo francês de sua análise sobre a psicose. A partir desse
forclusion para equivaler ao termo freudiano método, Lacan vai se debruçar em um proces-
Verwerfung. É antes, uma interpretação. so investigativo para desvendar os vínculos
Em sua tese, defendida no ano de 1932, La- etiológicos e significativos a partir dos quais
can revela o diferencial de sua abordagem em a psicose se relaciona à história vivida do su-
relação ao espírito científico da época, ao re- jeito e ao seu caráter individual, em suma, a
tomar a questão esvaziada – porque rejeitada sua personalidade. Por esse motivo, em sua
pelo núcleo comum da área psiquiátrica – dos tese, realizará uma descrição concreta de um
sentidos elaborados pelo sujeito que sofre no caso e não, como é comum no âmbito de sua
desenrolar de sua condição. Indo de encontro profissão, que superestima o valor da genera-
a uma concepção geral do inatismo, que carac- lização, uma síntese descritiva de vários casos
desprovida de seus traços específicos (Lacan,
terizava as conclusões vigentes da psiquiatria,
2011 [1932]).
ele vai situar o indivíduo como uma atividade
Ainda em relação à psiquiatria, Lacan vai
dentro de uma estrutura social, responsável por
delimitar a dicotomia organogênese-psicogê-
constituir o meio relacional de sua existência e
nese existente no campo das psicopatologias
por disponibilizar o terreno de significações
como insuficiente para explicar a problemática
que darão sentido a sua história (Olgivie, 1991).
em questão. De acordo com a organogênese, a
Para isso, ele lançará mão de um conceito
causa das psicoses é passível de ser localizada
já explorado dentro da psiquiatria e bastante
na dimensão orgânica do corpo, sendo imper-
utilizado no senso comum: a personalidade.
tinente qualquer associação com outros atri-
Seu intento era lapidar esse conceito para,
butos da vida do sujeito. Para a psicogênese, o
através dele, ampliar o nível de compreensão
quadro psicótico seria resultado ou de um fator
da constituição do sujeito, ao localizá-lo em
constitucional (segundo a escola francesa), ou
sua própria história – responsabilizando-o,
de uma reação a uma situação vital (segundo
assim, pela sua orientação, ao implicá-lo nas
a escola alemã), ambas sem nenhum ponto de
relações que ele estabelece com o meio e que
relação com a dimensão orgânica (interna) do
determinam as características de sua presença indivíduo (Lacan, 2011 [1932]). A discussão,
no mundo. O seu objetivo principal era criar portanto, pendia ora para o lado de uma he-
uma ciência da personalidade para congregar reditariedade, ora para o lado de uma influên-
os fundamentos da posição desses estudos. De cia do meio. Lacan, por sua vez, se afastava da
acordo com ele, essa ciência teria por objeto o briga. Para ele, nas palavras de Olgivie (1991,
estudo genético das funções intencionais, nas p. 77):
quais se integram as relações humanas e suas
tensões de ordem social (Lacan, 2011 [1932]). É o aspecto dinâmico da ideia da personalidade
Quando ele se refere à genética nesse contexto, concebida como um ciclo comportamental coman-
é importante salientar que ele não se refere à dado por um ‘meio’ [...] comportando, por conse-
ordem de uma hereditariedade, mas sim aos guinte, uma lógica temporal, evolutiva, articulada
processos constitutivos da gênese, enquanto em ‘momentos’ que permite, entre outras coisas,
origem e formação, da questão. ultrapassar a relação estática entre um interno e
um externo ao nível do indivíduo.
Sendo assim definida a ciência da personalidade,
pode-se ver claramente a natureza de nossa tese: O seu objetivo era realizar uma interpreta-
ela se sustenta na afirmação doutrinal de que os ção dos fenômenos mentais do delírio a partir
fenômenos mórbidos, que a psicopatologia situa de um levantamento o mais pleno possível da
dentro do quadro da psicose, dependem dos méto- história do indivíduo. Essa história, avaliada

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por intermédio de uma tendência concreta, re- passar do tempo, reconheceu vários equívocos,
velaria a orientação psíquica do sujeito a partir que o fizeram se posicionar criticamente dian-
dos seus comportamentos diante dos objetos te de inúmeros trabalhos. Isolado, construiu
do meio. Com o devido estabelecimento do uma nova forma de leitura das obras de Freud,
ponto de ligação do delírio com o meio social, com o auxílio da Linguística e da Antropologia
seria, então, possível definir a sua condição e para a formulação de suas proposições. Acusa-
estrutura. Lacan localizou toda essa dinâmica va os pós-freudianos de negligenciarem pontos
nos fenômenos da personalidade, abordando- importantes da obra do criador da psicanálise,
-os a partir de três polos: o estrutural, o indi- submetendo-se a um ideal de bem-estar e in-
vidual e o social; sendo sua intenção atingir tegração egoica incompatíveis com a proposta
os polos individual e estrutural através da di- freudiana. Um dos pontos que sinalizou como
mensão social embutida dentro da construção pouco compreendido por esses estudiosos foi
de uma psicose (Lacan, 2011 [1932]). O caso o próprio Complexo de Édipo, apesar de sua
Aimée, apresentado em sua tese, ilustra de for- expandida exploração e banalização. Foi nele
ma bastante clara o conjunto das proposições onde Lacan situou a trama crucial para a defi-
de seu trabalho (Olgivie, 1991). nição da localização estrutural dos sujeitos. Por
Aimée era uma filha de camponeses, casa- isso, estudou-o detidamente, pois avaliava que
da e mãe de um filho. Trabalhava na adminis- “abandonar o Complexo de Édipo seria fazer
tração de uma companhia ferroviária e já havia da Psicanálise um delírio” (Julien, 1999, p. 30).
sido internada em uma casa de saúde pelo pe- Ele compreendeu, antes de tudo, que é a
ríodo de seis meses, antes de ser acompanhada travessia pelo Complexo de Édipo que permite
por Lacan, que esteve em contato com ela du- a entrada do sujeito na ordem simbólica, insti-
rante um ano e meio, no Asilo de Sainte-Anne. tuída como o lugar da linguagem e dos discur-
Ela havia sido encaminhada para esse hospital sos que antecedem a existência do sujeito. Ele
após passar dois meses em uma prisão por ter acontece em três tempos lógicos. No primeiro,
esfaqueado uma atriz, que, segundo seu dis- a criança é objeto de desejo da mãe, um Ou-
curso, há muitos anos zombava dela e a ame- tro absoluto, que absorve a sua demanda sem
açava, contando com a associação de um certo deixar espaço para o advento de um desejo,
acadêmico em suas importunações. Seu delírio que lhe seja próprio. No segundo, inicia-se o
combinava temas de grandeza e perseguição. processo de separação entre os dois, que per-
Lacan deteve-se sobre esses temas e suas liga- mitirá à criança desalienar-se em relação ao
ções afetivas, assim como sobre os exames e discurso desse Outro. É o momento da entra-
antecedentes físicos da paciente, seu compor- da do Nome-do-Pai, significante responsável
tamento no asilo e suas produções literárias por operar o corte que promove o advento do
dentro dele. Descartou vários diagnósticos e sujeito no mundo da lei. No terceiro tempo,
chegou na paranoia, através da identificação ocorre o declínio do Complexo e a instalação
de um delírio de interpretação. da significação pela lei fálica, que orientará daí
Ele escolheu o termo paranoia de autopu- por diante o desejo do sujeito (Quinet, 2009a),
nição para se referir ao quadro clínico de gêne- que guiará sua fala, carregando a marca desse
se social que identificou através da história de desejo, que é inconsciente, ou seja, fundado a
Aimée: O diagnóstico se assentou na estrutura partir das articulações da cadeia significante:
da personalidade anterior do sujeito e situou a responsável por sustentar, através de seus
sua causalidade na acumulação de fatores or- equívocos de significação, a incompletude do
gânicos, afetivos e vitais (Lacan, 2011 [1932]). ser, nos seus dizeres e saberes. Isto é, um de-
Havia a causa eficiente – necessária, mas não sejo que é fundado ali onde tudo é linguagem.
suficiente –, as causas ocasionais e a causa es- Existem diferentes modos de atravessar o
pecífica – imprescindível e associada à predis- Complexo de Édipo, cada qual com um tipo
posição da personalidade do sujeito (Olgivie, distinto de resposta negativa à castração. Há
1991). Lacan, em sua tese, inaugurou como o recalque, o desmentido e a foraclusão. Pelo
novidade para o campo de estudo das psico- recalque, que nega a castração, mas a conser-
ses: as anomalias de comportamento sexual, o va no inconsciente, responde o neurótico; pelo
papel eletivo de certos conflitos e o elo desses desmentido, que a nega, mas a conserva no
conflitos com a história infantil. fetiche, responde o perverso (Quinet, 2009b);
Foi assim que ele se aproximou da Psicaná- e pela foraclusão, que ignora a castração res-
lise. Dentro do que vinha sendo produzido pe- ponde a psicose. Lacan situa nessa foraclusão
los psicanalistas pós-freudianos, Lacan, com a simbólica, promovida pelo psicótico, quando

Contextos Clínicos, vol. 10, n. 2, Julho-Dezembro 2017 263


A direção da cura na clínica lacaniana das psicoses

de sua passagem pelo Complexo de Édipo, a serviria de testemunha do advento do sujeito


questão preliminar a todo tratamento possível ali na sua própria produção delirante, dispen-
da psicose (Lacan, 1998 [1958]). Se é por esse sando os movimentos interpretativos e o seu
Complexo que o sujeito tem acesso à entrada posto de suposto saber. Para a psicose, não há
no mundo das significações, a partir de seu en- nenhum enigma, nenhum x sobre esse lugar
contro com a metáfora paterna (Nome-do-Pai), do gozo, do qual se supõe o saber. O psicótico,
– que amarra os significantes uns nos outros principalmente o paranoico, tem certeza que o
a fim de induzir os efeitos de sentido – fora- Outro sabe sobre ele e é ao redor disso que gira
cluindo-se essa metáfora, obtém-se uma lin- todo seu processo de sofrimento.
guagem por onde deslizam metonimicamente O analista no lugar de saber, no posto de
os significantes sem fixação de sentido e, por Outro gozador só ameaçaria ainda mais o psi-
conseguinte, sem compartilhamento comum. cótico, o invadiria ainda mais com um gozo
O delírio, então, surge como um processo devastador. Segundo Hanna (2006, p. 71), ao
metafórico substitutivo para a metáfora pater- invés disso, “ele acompanha o sujeito em seu
na. Segundo Caligaris (2013), é a construção de trabalho sempre atento ao momento em que se
uma metáfora pseudopaterna. É por meio dele faz necessária a introdução de uma manobra
que o sujeito institui um vocabulário capaz de transferencial que visa reduzir o saber-gozo,
defendê-lo das investidas daquilo que não tem afastando o sujeito de sua própria abolição”.
nome e que, por não ter nome, é impossível de Portanto, o movimento inicial do psicanalista
suportar. O Real, essa dimensão amorfa e ab- seria se destituir do lugar que a Psicanálise o
soluta, passa a se apresentar como o lugar que colocou a fim de se adaptar a uma clínica pos-
recebe o retorno daquilo que escapa ao Simbó- sível para a psicose. Seria menos interpretação
lico e que se define como sintoma do sujeito, a e mais trivialização. Esta última consiste em
alucinação é um exemplo. Freud (1969f [1911]) uma manobra feita pelo analista com vistas
já havia apontado o caráter de cura imerso a esvaziar o gozo de uma formação delirante
dentro da construção delirante. Essa cura con- que ameace o sujeito, que sinalize provocar
siste na tentativa que o psicótico realiza para atuações e até mesmo passagem ao ato. Ela
barrar e apaziguar o gozo que o invade. É um exige do analista um desprendimento no to-
modo de cifrá-lo a fim de diminuir a sua inci- cante a querer dar sentido através da interpre-
dência sobre o seu corpo. O papel do analista, tação, seu lugar passa a ser o de destinatário
em um caso de psicose, é, portanto, de teste- do paciente, efetivamente seu secretário, que
munha. Se a cifra que o sujeito atribui ao gozo escuta tudo, ao pé da letra, mas dá mais aten-
lhe protege, o analista não pode contrariá-lo, ção a uma coisa que a outra, atitude que só
decifrando-o (Quinet, 2009b). pode ser sustentada prudentemente no nível
do vínculo transferencial (Monteiro e Queiroz,
Assim renunciaríamos ao empenho vão de con- 2006). Porque é possível estabelecer vínculo
vencer o doente do desvario de seu delírio, sua
com o psicótico, desde que não reforcemos o
contradição com a realidade objetiva, e em troca
encontraríamos no reconhecimento desse núcleo
lugar de ameaça do Outro.
de verdade um solo comum sobre o qual pode se Na clínica da psicose, diferente da clínica
desenvolver o trabalho terapêutico (Freud, 1969g com neuróticos – onde o psicanalista através
[1937], p. 156). da negação da demanda faz advir o desejo
de um sujeito, que já se apresenta ali dividi-
Apontando a relação da psicose com a lin- do pelo seu sintoma –, o movimento é de per-
guagem, Lacan abriu as portas para um novo missão e de estímulo à emersão desse sujeito.
tipo de abordagem para esses casos. Seu es- A aposta da psicanálise é que o psicótico pode
forço foi fazer da psicose uma questão de su- sair do lugar de objeto que o Outro lhe colo-
jeito. E sua atitude acabou criando uma nova ca e isso só pode ser realizado com um efetivo
teoria dentro da Psicanálise: o papel do ana- movimento clínico de atenção e suporte a esse
lista foi revisto e os caminhos do tratamento advento, de valorização da produção ativa de
foram retraçados. O destaque inicial lacaniano sentido diante do Outro, aliás, de um des-sen-
foi sobre a escuta, que precisava ser desenvol- tido particular ao próprio sujeito e sem exigên-
vida junto a esses sujeitos. Antes de tudo, ele cia de significação, sem necessidade de tradu-
se dispôs a ouvir esses sujeitos, a acompanha- ção para a língua comum, visto que o que o
-los em suas produções, o que o levou a nome- psicótico faz é justamente evidenciar o que nós
ar a função do analista como a de ‘secretário todos somos: vítimas da linguagem, do Outro.
do alienado’ (Lacan, 2008 [1955-1956]). Este O psicótico sabe que ignora a língua que fala,

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Tiago Iwasawa Neves, Andreza Silva dos Santos

enquanto nós supomos conhecê-la (Miller, vínculos sociais, não um simples déficit dos apa-
1996). Mas o fato é que também somos falados, relhos do corpo, como quer que este seja concebido,
que o Outro também nos subjuga, mas nós nos mas um fenômeno do sujeito com tudo o que esse
termo implica de responsabilidade ineliminável.
utilizamos de outras defesas contra isso e a
principal delas é a ignorância dessa ignorân-
cia, é o nosso próprio inconsciente, que no psi- A direção da cura pela
cótico se encontra a céu aberto (Soller, 2007). psicanálise lacaniana
Arriscamos dizer, segundo uma inversão da
lógica, que a psicose trabalha no avesso do per- A psicanálise, apesar de atuar no nível da
curso neurótico na análise. Se com este a mano- estrutura, não trabalha com o determinismo
bra consiste em fazer surgir um saber no lugar mecanicista, por esse motivo, não responde à
da verdade, na psicose o percurso consiste em causalidade mecânica do psiquismo, antes exi-
fazer surgir uma verdade ali onde só há saber, ge do sujeito sua própria resposta e responsabi-
uma verdade que possa ser articulada pelo su- liza-o por esse ato. Ela abre o espaço para uma
jeito. Em outros termos, podemos dizer que o eleição, mesmo que esta seja, em certa medida,
neurótico parte de um trabalho simbólico em forçada pela própria história do sujeito (Miller,
direção ao seu Real, e o psicótico parte do Real 1997 [1989]). Sua ética é uma ética do desejo, do
para se encontrar com as possibilidades de su- bem-dizer e das verdades. Ética do desejo por-
plência que o Simbólico lhe oferece para fazer que contrária à felicidade em sua face de políti-
uma devida ancoragem do gozo. Enquanto a ca normatizada, ou seja, à política do bem-estar;
transferência, como “promessa de significação” e porque é infiel ao princípio do prazer, na ten-
(Miller, 2002), parte do analisando na clínica tativa de favorecer o acesso do sujeito àquilo
das neuroses; na psicose, a transferência parte, que há de mais real em seu sintoma. Ética do
muitas vezes, do analista e sem promessa de bem-dizer porque está em relação direta com a
significação. Isso por conta da demanda, que palavra que é responsável por um efeito, pala-
no neurótico é do sujeito e na psicose, na maior vra que é fundante e que sustenta a emergência
parte das vezes, é da família ou da sociedade. da escolha, da realização de um ato implicado
O trabalho com os psicóticos se dá geralmen- em seu desejo (Miller, 1996). Ética das verdades
te nas instituições para onde estes são levados, porque em rompimento com a regularidade,
desse modo, o estabelecimento de um vínculo porque entregue ao não sabido, à falta-de-lei,
com esses indivíduos é muito mais desafiador à existência ali onde não se sabe nada, onde o
para o psicanalista e requer muito tato e sensi- saber foi interrompido (Badiou, 1995).
bilidade clínica, além de respeito aos seus espa- A Psicanálise mobiliza o sujeito da ciên-
ços e diferentes tempos de resposta. cia, que surgiu de um contexto epistemológi-
Valorizar a condição de sujeito do psicótico co específico onde a verdade e o saber foram
significa considerar sua história e sua capaci- separados. Ela trabalha nessa fronteira com a
verdade, que é sempre semi-dizer, da ordem
dade de escolha. Como afirmam Monteiro e
da fala, não-toda, mas que se dirige, no curso
Queiroz (2006, p. 3), “ali onde está o indivíduo
da análise, em direção ao saber possível sobre
com sua história, com seu delírio, o sujeito de
o Real, de um modo que esse saber (sobre sua
direito deve advir, o que o torna responsável
própria impossibilidade) passe a ocupar a po-
pela sua condição de existência”. O caso clíni-
sição da verdade (Julien, 1999). Nas palavras
co, portanto, torna-se um instrumento valioso
de Badiou (1995, p. 80), essa “verdade perfura
no trabalho com esses indivíduos, principal-
os saberes, lhes é heterogênea, mas é também
mente considerando a sua vinculação com os
a única fonte conhecida de saberes”. É um atri-
serviços multiprofissionais de saúde, onde a
buto de todos, mas não deixa de ser relativa à
variabilidade de saberes pode significar uma
singularidade, pois só pode existir dentro de
variabilidade de invasões, se não existir o devi-
uma construção que seja subjetiva.
do aprofundamento nos “divinos detalhes” da
Lacan (1986 [1953-1954], p. 22) dando o des-
história clínica de cada um. O tratamento dos
taque necessário a essa singularidade diz que:
psicóticos, como em qualquer outro tratamen-
to, deve favorecer a implicação do sujeito em O progresso de Freud, sua descoberta, está na
seu processo de cura, pois só assim ela se torna maneira de tomar um caso na sua singularidade.
possível. De acordo com Soller (2007, p. 82), Tomá-lo na sua singularidade, o que quer dizer
isto? Quer dizer essencialmente que, para ele, o
[...] trata-se de fazer reconhecer na loucura, por interesse, a essência, o fundamento a dimensão
mais incapacitante que ela seja no tocante aos própria da análise, é a reintegração, pelo sujeito,

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A direção da cura na clínica lacaniana das psicoses

da sua história até os últimos limites sensíveis, to, que chama o ser à sua realização. Este buraco
isto é, até uma dimensão que ultrapassa de muito no real é introduzido pela palavra. Ele não está
os limites individuais. sempre ali, desde o início; às vezes, é a própria
experiência da análise que introduz.
O acesso a esse Real dentro da análise não
se encontra numa dimensão comunicativa, ele Tomada como uma experiência dialética,
só pode ser realizado no nível do encontro, a análise abre espaço, através da transferên-
por isso, mais do que trabalhar com palavras, cia, para um trabalho intelectual e afetivo com
mais do que falar, ou ouvir, na análise se atua, o sujeito em direção à realização de seu ser
dentro da relação psicanalítica se atualiza o in- (Dunker, 2012). Trabalho intelectual porque
consciente e o sintoma, a partir dela o sujeito segue as vias da interpretação do desejo en-
equivoca os seus sentidos, na busca mesmo de quanto material de trabalho na análise e afetivo
compreendê-los. A clínica psicanalítica não é a porque se mantém às voltas com o jogo de po-
clínica do excesso dos sentidos e das significa- sições e projeções que são mobilizadas durante
ções, o analista não oferece sentido, mas se dis- o processo. Segundo Cottet (1995, p. 123), “[...]
põe a fazer parte da cena psíquica do analisan- a direção da cura não dá ao analista o papel de
do, que, através do mecanismo transferencial, mentor, este só tem um desejo: o de ver o en-
recria a sua fantasia do inconsciente em torno fermo tomar as decisões por si próprio”. Desse
da figura do analista, que sustenta, somente modo, a idealização do analista como fonte de
a partir do furo do seu lugar, essa construção saber e referência de verdade não deve nunca
(Cottet, 1995). Porque antes de tudo, a ética, ser estimulada, pois vai totalmente contra a
que Miller (1997 [1989]) afirma ser a “dimen- ética da Psicanálise. Sobre essa questão, Miller
são constituinte da experiência analítica” pre- (2002, p. 89) é bastante enfático:
cisa ser relativa ao desejo do analista. E é esse
desejo que sedimenta a transferência. Isso é o que constitui o desejo do analista, desejo
O desejo do analista é fazer advir o desejo muito singular que Freud localizou em um mo-
do analisando, ele consiste em sustentar o dese- mento da história, o desejo do analista de não se
jo do Outro, em ocupar o seu lugar, com a res- identificar com o Outro, de respeitar o que Freud,
salva de não se identificar a ele (Miller, 2002). em sua linguagem, chama de individualidade do
Seu papel, portanto, é fazer semblante desse paciente, não ser um ideal, um modelo, um edu-
Outro, sendo sua intenção permanecer onde ele cador, e sim deixar espaço para a emergência do
– como sujeito – já chegou através do caminho desejo do paciente.
de sua própria análise, ou seja, ali mesmo no lu-
gar de não-saber. Não respondendo à demanda Diante do sintoma, que se apresenta como
de felicidade do sujeito, o analista permite o ad- a relação de compromisso que o sujeito estabe-
vento de seu desejo, isto é, a emergência de seu lece com seu inconsciente para conseguir lidar
vazio, que ele, enquanto analista, não procura com sua existência própria, o analista não pode
preencher. O seu saber é sempre suposto e o simplesmente retirá-lo, apagá-lo, eliminá-lo,
seu lugar é de objeto (no lugar do objeto a ele pois isso seria impedir o espaço mesmo de
opera como causa do desejo e como resíduo da advento do sujeito. O que o analista tem para
operação analítica. Ele deve ser abandonado no oferecer em substituição disso que já é uma
final do percurso e não introjetado). Sua condi- formação substitutiva na economia psíquica
ção de sujeito só deve existir na medida em que do sujeito? Nada. O analista não tem a respos-
ela possa conservar o seu desejo de analista, ta, não tem o mapa. Sua ética, portanto, deve
desejo prevenido que lhe permite não servir de mantê-lo longe de um furor sanandi, de uma
ideal para o analisando, mas de suporte para a cura que simplesmente sare e sane, pois não há
busca de sua realização enquanto ser-no-mun- nada que diga mais sobre o sujeito que o seu
do. É assim que ele sustenta o ato analítico, pro- próprio sintoma. Portanto, é através dele que o
piciando o encontro do sujeito com sua própria analista vai guiar o analisando em seu trabalho
interrogação (Veigh, 2001), pois só é a partir da (árduo) sobre a letra que lhe representa.
posição de ignorância, que o sujeito se engaja
na pesquisa de sua verdade. Referências
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BADIOU, A. 1995. Ética: um ensaio sobre a consciência
[...] só há progresso possível da palavra, e conse- do mal. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 100 p.
quentemente da experiência analítica se for possí- CALAZANS, R.; LUSTOZA, R.Z. 2008. A medica-
vel localizar um aspecto de irrealização no sujei- lização do psíquico: os conceitos de vida e saú-

266 Contextos Clínicos, vol. 10, n. 2, Julho-Dezembro 2017


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