Você está na página 1de 4

Universidade de Brasília

Departamento de Matemática
Prof. Celius A. Magalhães

Cálculo II
Notas da Aula 03 ∗

Equações Diferenciais Lineares de 1.a Ordem


O modelo de Malthus e a pesca sustentável são exemplo de equações diferenciais lineares de 1.a ordem. O
estudo dessas equações pode ser sistematizado como indicado a seguir, logo depois de mais um exemplo
que ilustra outros aspectos importantes para a compreensão do caso geral.
Pesca Sazonal
Os exemplos anteriores puderam ser resolvidos usando tanto o método de separação de variáveis como
o do fator integrante, e isso com graus semelhantes de dificuldade. No entanto, o mais comum é que um
problema possa ser resolvido por um ou por outro, mas não por ambos os métodos. É o caso da pesca
sazonal, estudado a seguir.
No caso da pesca sustentável, pesca-se uma quantidade fixa q0 de peixes por unidade de tempo.
Essa quantidade pode ser alterada para levar em conta aspectos sazonais, como a desova, o período do
ano, a comercialização, etc. Assim, devem ser pescados uma quantidade maior em certa época, e uma
quantidade menor em outra.
q Matematicamente, essa situação pode ser modelada
por meio da função q(t) = q0 + a cos(ω t − δ ), cujo grá-
q0 fico está ilustrado ao lado. Assim, seriam pescados alter-
nadamente uma quantidade grande e outra pequena, mas
de modo a manter a mesma média de q0 peixes pescados
Pesca sazonal t por unidade de tempo.

O PVI correspondente a esse modelo é


( ′
y (t) = k y(t) − q(t), t > 0
y(0) = y0

que, em razão da função q(t), não pode ser resolvido por separação de variáveis.
No entanto, como mostrado a seguir, o problema pode ser resolvido por fator integrante. Para simpli-
ficar um pouquinho, suponha que a = ω = 1 e δ = 0, de modo que o problema é
( ′
y (t) = k y(t) − [q0 + cos(t)], t > 0
(1)
y(0) = y0

Rescrevendo a equação na forma y′ (t) − k y(t) = −[q0 + cos(t)] e multiplicando pelo fator integrante
µ (t) = e−kt obtém-se

(µ (t) y(t))′ = µ (t)y′ (t) + µ ′ (t) y(t) = e−kt (y′ (t) − k y(t)) = − e−kt [q0 + cos(t)]

Essa igualdade pode ser integrada para se obter


q0
Z Z
µ (t) y(t) = − e [q0 + cos(t)] dt = e−kt −
kt
ekt cos(t) dt
k
onde a última integral do lado direito pode ser calculada usando integração por partes duas vezes.
Procedendo-se a esse cálculo, a integral é igual a

e−kt (sen(t) − k cos(t))


Z
cos(t) e−kt dt = +C (2)
k2 + 1
∗ Texto digitado e diagramado por Neil Martins a partir de anotações de sala de Olaia Diniz
Usando as duas últimas igualdades, e isolando o valor de y(t), segue-se que a solução geral da
equação em (1) é dada por

q0 1
y(t) = +C ekt − 2 (sen(t) − k cos(t))
k k +1

É curioso notar que o termo q0 /k + C ekt é a solução geral da equação da pesca sustentável sem
sazonalidade. Assim, introduzir um fator sazonal na equação resulta em introduzir um fator sazonal
também na solução. Muito interessante!
Bem, a partir da solução geral é agora fácil obter a solução do problema de valor inicial (1). Com
efeito, impondo a condição inicial y0 = y(0) = q0 /k + C + k/(k2 + 1) obtém-se que
C = y0 − q0 /k − k/(k2 + 1). Daí segue-se que a solução de (1) é

1
 
q0 q0 k
y(t) = + y0 − − 2 ekt − 2 (sen(t) − k cos(t)) (3)
k k k +1 k +1

No caso não sazonal, a questão da sustentabilidade foi relativamente simples de ser resolvida, pois
deviam ser pescados a quantidade correspondente ao aumento da população no período. É isso o que
diz a igualdade q0 = k y0 . Assim, se a questão fosse apenas a sustentabilidade, os cálculos feitos naquele
caso para se encontrar a solução do PVI seriam desnecessários.
Mas, no caso sazonal, essa conclusão não é tão clara. Qual a relação entre y0 , k e q0 que garante
a sustentabilidade? Para responder à essa pergunta é indispensável usar a solução obtida em (3). Com
efeito, se, em (3), o coeficiente da exponencial ekt for positivo, a população aumenta com o tempo, e, se
negativo, a população diminui. Assim, a única forma da população se manter entre limites razoáveis é se
esse coeficiente for nulo, isto é, se
q0 k
y0 − − 2 =0 y
k k +1
Essa é a relação entre y0 , k e q0 que garante a sustentabi-
y0
lidade no caso sazonal, relação que não é nada intuitiva! A
figura ao lado ilustra o campo de direções da equação em (1)
juntamente com os casos em que o coeficiente da exponencial
ekt em (3) é positivo, nulo e negativo. Gráficos das soluções sazonais t

Vale observar que, apesar de simples e intuitivo, o caso não sazonal foi quem abriu o caminho para
que o caso sazonal pudesse ser resolvido.

Existência e Unicidade
Os exemplos anteriores ilustram modelos relacionando a derivada y′ (t) com a função y(t). Procura-se
em seguida determinar a função y(t) a partir do modelo e de uma condição inicial y(0) = y0 .
Em geral, dada uma função f (t, y) de duas variáveis, a expressão

y′ (t) = f (t, y(t))

é dita uma equação diferencial ordinária de 1.a ordem, e a incognita é a própria função y(t). Frequente-
mente a equação deve ser resolvida junto com uma condição inicial y(t0 ) = y0 , e

y′ (t) = f (t, y(t))


(
(4)
y(t0 ) = y0

é dito o problema de valor inicial (PVI) associado á equação.


O PVI em (4) inclui os exemplos estudados até aqui. Por exemplo, com a escolha de
f (t, y) = ky obtém-se o modelo de Malthus, em que a equação é y′ (t) = ky(t). A pesca sustentável,
em que a equação é y′ (t) = ky(t) − q0 , é obtida com a escolha de f (t, y) = ky − q0 . Finalmente, a pesca
sazonal, como estudada acima, correspone à escolha de f (t, y) = ky − [q0 + cos(t)].

Cálculo II Notas da Aula 03 2/4


Em todos esses exemplos a função f (t, y) é linear na variável y, o que significa que ela pode ser
escrita na forma f (t, y) = −p(t)y + q(t), onde p(t) e q(t) são funções dadas. Neste caso, a equação em
(4) escreve-se como y′ (t) = f (t, y(t)) = −p(t)y(t) + q(t), ou, ainda, como

y′ (t) + p(t)y(t) = q(t) (5)

Equações dessa forma são ditas equações diferenciais lineares de 1.a ordem, e são especialmente
indicadas para serem resolvidas pelo método do fator integrante. O primeiro passo é, então, escolher o
fator integrante µ (t). Como se verá a seguir, ele deve ser escolhido de forma que

µ ′ (t) = p(t)µ (t)

onde p(t) é a função dada em (5). Com a experiência que já se tem com o modelo de Malthus, pode-se
separar as variáveis e escrever a equação na forma µ ′ (t)/µ (t) = p(t). Integrando, obtém-se ln(|µ (t)|) =
p(t) dt e, tomando a exponencial, é caro que µ (t) pode ser escolhida na forma
R

R
p(t) dt
µ (t) = e

Agora sim, multiplicando (5) pelo fator integrante µ (t) obtém-se

µ (t)y′ (t) + µ (t)p(t)y(t) = µ (t)q(t) (6)

e fica claro o motivo da escolha de µ (t): como ela satisfaz µ ′ (t) = p(t)µ (t), o lado esquerdo de (6) é a
derivada de um produto! Com efeito, (6) escreve-se como

(µ (t)y(t))′ = µ (t)y′ (t) + µ ′ (t)y(t) = µ (t)y′ (t) + µ (t)p(t)y(t) = µ (t)q(t)

Basta agora integrar e isolar y(t) para obter que a solução geral de (5) é dada por
1
Z
y(t) = q(t)µ (t) dt (7)
µ (t)
Essa solução geral pode ser melhor entendida a partir dos exemplos já estudados.
Como verificação, no caso da pesca sazonal, com equação y′ (t) − ky(t) = −(q0 + cos(t)), tem-se que
p(t) = −k e q(t) = −(q 0 + cos(t)). Então p(t) dt = −k dt = −kt é uma primitiva de p(t), e o fator
R R
R
integrante é µ (t) = e p(t) dt = e−kt . Além disso,

q0 −kt
Z Z Z
q(t)µ (t) dt = − (q0 + cos(t)) e−kt dt = e − cos(t) e−kt dt
k
q0 −kt e−kt (sen(t) − k cos(t))
= e +C −
k k2 + 1
onde a integral do lado direito foi calculada em (2) e C é uma constante genérica. Assim, a solução geral
nesse caso é
1 1 e−kt (sen(t) − k cos(t))
 
q0 −kt
Z
y(t) = q(t)µ (t) dt = −kt e +C −
µ (t) e k k2 + 1
q0 sen(t) − k cos(t)
= +C ekt −
k k2 + 1
que é a mesma obtida anteriormente.
Contas análogas podem ser feitas nos casos do modelo de Malthus e da pesca sustentável. Essas
verificações mostram que os exemplos são de fato casos particulares da solução geral em (7), e todos
podem ser resolvidos com a técnica do fator integrane.
Voltando ao caso geral, devido à integral indefinida em (7), y(t) fica determinada a menos de uma
constante arbitrária. No entanto, essa constante fica também determinada se for imposta uma condição
inical y(t0 ) = y0 . Em consequência, obtém-se o seguinte resultado, que é fundamental para as equações
lineares de 1.a ordem.

Cálculo II Notas da Aula 03 3/4


Teorema 1 — Existência e Unicidade. Supor p(t) e q(t) funções contínuas em um intervalo (a, b),
t0 ∈ (a, b) e y0 ∈ R um número qualquer. Então o PVI
( ′
y (t) + p(t) y(t) = q(t), t ∈ (a, b)
y(t0 ) = y0

tem uma única solução y(t) definida no intervalo (a, b).

O próximo exemplo ilustra mais uma vez a técnica do fator integrante.


2
 Exemplo 1 Obtenha a solução geral da equação y′ (t) + 2t y(t) = 2t e−t . 

Solução. O interessante desse exemplo é que tanto p(t) = 2t quanto q(t) = 2t e−t dependem explicita-
mente da variável t, e vale estudar como a solução geral se comporta nesse caso.
Antes, porém, vale uma análise qualitativa da equação. Uma primeira observação é que q(t) tende a
zero rapidamente. Assim, com valores grandes de t, a equação é aproximadamente

y′ (t) + 2ty(t) = 0 (8)

equação que é bem mais fácil de ser resolvida.


y
Usando, por exemplo, separação de variáveis, a solu-
2
ção geral de (8) é y(t) = C e−t . Espera-se então que a
solução geral da equação em estudo se aproxime assintoti-
2
camente da função C e−t para alguma constante arbitrária
C. E, de fato, a figura ao lado ilustra o campo de direções
da equação, duas soluções particulares e uma função da
2
t forma C e−t (tracejada).

Voltando aoR exemplo, a solução geral pode ser obtida com a técnica do fator integrante. Com efeito,
tem-se Rque p(t) dt = 2t dt = t 2 é uma primitiva de p(t) e o fator integrante é
R
2
µ (t) = e p(t) dt = et . Além disso,
Z Z Z
−t 2 t2
q(t)µ (t) dt = − (2t e ) e dt = 2t dt = t 2 +C

Daí segue-se que a solução geral da equação é


1 1 2
Z
2 −t 2
y(t) = q(t)µ (t) dt = 2 (t +C) = (t +C) e
µ (t) et

2
Isso confirma a análise feita acima, pois t 2 e−t → 0 quanto t → ∞, e portanto a solução geral se
2
aproxima de fato da função C e−t 

Cálculo II Notas da Aula 03 4/4

Você também pode gostar