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ANTONIO CICERO

As vanguardas e a tradição
(Folha de S. Paulo, 20-04-2008)

As vanguardas do início do século


20 não reconhecem precursores nem
aceitam tradição

EM ENSAIO chamado "Escrever como Reescrever: a Poesia Concreta como Retaguarda",


a crítica literária americana Marjorie Perloff defende a tese de que seria mais adequado
considerar a poesia concreta brasileira como "retaguarda" do que como "vanguarda".
Evitemos mal-entendidos: para ela, "retaguarda" não significa o oposto de "vanguarda".
Não se trata, por exemplo, de um movimento de conservação ou de restauração do passado.
Tendo em vista a origem militar tanto de um termo quanto do outro, ela lembra que "a
retaguarda do exército é a parte que protege e consolida o movimento das tropas em
questão". Assim, "quando um movimento de vanguarda não é mais novidade, o papel da
retaguarda é completar a sua missão, assegurar o seu êxito".
As vanguardas do início do século 20 -em particular o futurismo italiano e o russo, além de
dadá- não reconhecem precursores nem aceitam tradição. Para elas, de maneira geral, o
passado não só estava morto mas seu cadáver era letal. É nesse espírito que, por exemplo,
Marinetti, em manifesto de 1909, declara que um automóvel rugidor é mais belo que a
Vitória de Samotrácia, e, entre outros, Maiakovski, em manifesto de 1912, exorta os poetas
a jogarem fora do navio da modernidade Pushkin, Dostoiévski, Tolstói, etc.
"Em compensação, a retaguarda", observa, com razão, Perloff, tendo em mente o
concretismo, "trata as proposições da primeira vanguarda com um respeito vizinho da
veneração". Perloff cita entrevista de 1993 em que Augusto de Campos explica que, na
década de 50, "toda poesia experimental, toda arte experimental havia sido em certo sentido
marginalizada. Só na década de 50 começou a redescoberta de Mallarmé, a redescoberta de
Pound. [...] Acho que era necessário recuperar os grandes movimentos de vanguarda".
O que Perloff chama de "retaguarda" consiste, portanto, numa vanguarda que reconhece
precursores. O fato de destacar essa peculiaridade do concretismo é evidentemente mais
importante do que o rótulo que usa para fazê-lo. E quais são os precursores que Augusto
reconhece na entrevista citada? Mallarmé e Pound, os dois primeiros poetas que haviam
sido citados como precursores no "Plano-Piloto para Poesia Concreta", de 1958.
Mallarmé, que morreu antes do século 20, não fez parte de nenhum movimento de
vanguarda. Já Pound fez parte de dois movimentos de vanguarda ingleses, o imagismo e o
vorticismo. Esses movimentos, como os continentais, não parecem reconhecer precursores.
Além disso, eles se opõem ao passado imediato e às diluições vitorianas e edwardianas do
romantismo. Por outro lado, ao contrário dos movimentos continentais, são capazes de
valorizar, por exemplo, a poesia da antigüidade clássica.
De certo modo, porém, não seria correto dizer que Pound não reconhecesse precursores.
Tomemos os princípios do imagismo, que ele publicou em 1913: tratar diretamente o
objeto, não utilizar uma única palavra que não contribua para apresentá-lo etc. Se tais
princípios pretendem ser o resultado da destilação da grande poesia de todas as épocas,
então a poesia conscientemente feita de acordo com eles toma toda grande poesia como sua
precursora. Além disso, por um processo sem dúvida circular, embora não necessariamente
vicioso, esses princípios, uma vez destilados, proporcionam a base que permitem a Pound -
e, na sua esteira, a T.S. Eliot- propor ousadas reavaliações e revisões do cânone poético em
vigor na sua época.
Pois bem, quando o concretismo toma Pound como precursor é porque pretende ter
radicalizado e levado às últimas conseqüências as descobertas desse poeta (assim como as
de Mallarmé e de outros), chegando ao extremo de -no "Plano-Piloto" de 1958- dar por
encerrado o ciclo do verso. Isso estava errado, é claro, pois grandes poemas em verso foram
escritos desde então.
No entanto, apesar de seu radicalismo -ou melhor, por meio dele- o concretismo também
foi capaz de, tendo aprendido com Pound, empreender a sua própria reconsideração e livre
reapropriação da tradição. Não deve ser um acaso que não tenham sido poetas do Velho
Mundo, mas americanos e brasileiros, os que precisaram levar a cabo tais reapropriações.
Ao fazê-lo entre nós, o concretismo conseguiu dar a um país cuja intelligentsia costuma ser
excessivamente cautelosa um exemplo de audácia muito mais significante e inteligente do
que se tivesse simplesmente, ao modo das vanguardas históricas, em vão rejeitado todo
precursor e toda tradição.

O sentido da vanguarda
(Folha de S. Paulo, 04-05-2008)

Não pode haver caminho a ser


indicado ou aberto por alguns
poucos, para ser seguido por muitos

NINGUÉM IGNORA o sentido metafórico da palavra "avant-garde", de onde vem a nossa


"vanguarda". No âmbito militar em que se origina, ela designa o dispositivo avançado de
um exército ou de uma frota, isto é, o destacamento que, indo à frente, indica ou abre
caminho para o grosso do Exército ou da frota. Analogamente, chamam-se de "vanguarda"
os artistas que, estando à frente dos demais, indicam ou abrem os caminhos que serão
eventualmente tomados por estes.
Historicamente, a vanguarda não só se atribuiu o papel de indicar ou abrir caminhos, mas
efetivamente o cumpriu. Por exemplo, antes da eclosão das vanguardas, as formas poéticas
mais tradicionais em uso nas línguas modernas haviam sido fetichizadas. Supunha-se que o
uso de métrica ou de rima ou o emprego de alguma das diversas formas fixas então
catalogadas (tais quais o soneto, a balada e a sextina) fosse necessário para a produção de
um bom poema. Desse modo, consideravam-se naturais determinadas formas
convencionais.
Pois bem: ao produzir autênticos poemas sem o emprego dessas formas, as vanguardas
mostraram, em primeiro lugar, o caráter convencional de tais formas; em segundo lugar,
mostraram que a poesia ou o poético não se encontram prêt-à-porter, à disposição do poeta,
nestas ou naquelas formas fixas; em terceiro lugar, mostraram que a poesia não é
necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada: que é possível inventar
novas formas para ela.
Assim, ao desfetichizar as formas poéticas tradicionais, as vanguardas abriram novas
possibilidades para todos os poetas. E ressalto que, apesar da retórica da "morte", da
"destruição", do "fim" das formas poéticas que a vanguarda mostrou serem relativas, a
verdade é que nenhuma das formas convencionais jamais deixou de existir ou de continuar
a ser realizada, em maior ou menor grau. As formas existentes podem ser relativizadas, mas
não morrem.
No meu artigo anterior, observei que, no seu "Plano-Piloto", a poesia concreta errara ao dar
por encerrado o ciclo do verso. Por outro lado, o "Plano-Piloto" também afirmava que "a
poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural.
Espaço qualificado: estrutura espaço-temporal, em vez de desenvolvimento meramente
temporístico-linear".
Pois bem, ao efetivamente criar poemas de estrutura não-discursiva, espaço-temporal, a
poesia concreta eliminou a possibilidade de qualquer fetichismo residual em relação a
qualquer forma convencional da poesia. Trata-se, sem dúvida, de um feito eminentemente
vanguardista, pois todos os poetas são afetados tanto pelas possibilidades que ele abre
quanto pela conseqüente relativização de todas as formas tradicionais de poesia.
Entretanto, é preciso reconhecer que esse foi o derradeiro feito da vanguarda no campo da
poesia. Com isso, não quero dizer, de maneira nenhuma, que deixe de existir a poesia
experimental. Ao contrário: o feito vanguardista consistiu exatamente na abertura ilimitada
de possibilidades experimentais. Acontece, porém, que quando todas as experiências são
possíveis e nenhuma possibilidade já experimentada está morta, cada qual está livre para
seguir o seu próprio e singular caminho.
Que diríamos de um poeta ou crítico que hoje decretasse serem poemas só os experimentos
vídeo-áudio-verbais? Ou só aquilo que fosse composto em versos metrificados e rimados?
Ou, ao contrário, só aquilo que fosse escrito em versos livres? Sabemos hoje que, por
princípio, não se pode em são juízo decretar o que é admissível e o que é inadmissível num
poema; nem estabelecer critérios a priori pelos quais todos os poemas devam ser julgados.
O poeta moderno – e moderno aqui quer dizer "que vive depois que a experiência da
vanguarda se cumpriu" – é capaz de empregar as formas que bem entender para fazer os
seus poemas, mas não pode deixar de saber que elas constituem apenas algumas das formas
possíveis; e o crítico deve reconhecer esse fato. Em tal situação, não pode haver nenhum
caminho a ser indicado ou aberto por alguns poucos, para ser seguido pelos outros muitos.
Não há mais vanguarda.
Nesse sentido, não há como não concordar com Haroldo de Campos quando, em seu ensaio
"Poesia e Modernidade: Da Morte do Verso à Constelação. O Poema Pós-Utópico", afirma
que "ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode
sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis".
ANTONIO CICERO

Ainda a vanguarda
(Folha de S. Paulo, 01-06-2008)

Uma vez realizado o feito conceitual


de uma obra puramente cognitiva,
ela se torna supérflua

EM ARTIGO que aqui publiquei em 3 do corrente, afirmei que, tendo cumprido a sua
função, a vanguarda acabou. Não cheguei, porém, a explicar que uma das principais razões
pelas quais penso assim é que estou convencido de que o feito principal da vanguarda
enquanto vanguarda não foi de natureza propriamente estética ou artística, mas cognitiva e,
mais precisamente, conceitual.
Em outras palavras, não é que, a partir da experiência da vanguarda, a arte tenha ficado
melhor do que era, mas que, sobre ela, se aprendeu alguma coisa que não se sabia antes.
Deu-se um aprendizado, um progresso cognitivo após o qual se passou a saber algo
fundamental, antes não plenamente reconhecido, sobre a natureza da arte.
Com certeza o divórcio mais célebre entre o feito conceitual e o feito estético de uma obra
não se deu no campo da poesia, mas no das artes plásticas. Refiro-me, é claro, a "Fontaine",
o urinol que Marcel Duchamp pôs de cabeça para baixo e expôs como arte. Como se sabe, a
partir de "Fontaine" e do conceito correlato de ready-made, foi profunda e amplamente
posto em discussão o próprio conceito de arte. Ou seja, uma peça de valor artístico ou
estético praticamente insignificante foi capaz de ter uma importância conceitual
incalculável.
Ora, evidentemente, o valor puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela
ensinou, e não nela própria. É claro que nada impede que uma obra seja importante tanto do
ponto de vista estético quanto do ponto de vista conceitual.
Se o seu valor é exclusivamente conceitual, porém, ela não passa de veículo para o que
ensina.
Logo que o que ensina é aprendido, ela passa a ser mero exemplo do que ensinou, dotado,
no máximo, de um valor histórico.
Em outras palavras, uma vez realizado o feito conceitual de uma obra puramente cognitiva,
ela se torna supérflua. Assim como quem quiser aprender a lei da gravidade fará melhor
lendo um livro de física clássica do que os "Principia" de Newton, cujo texto original tem
hoje um valor meramente histórico, assim também mais vale ler sobre "Fontaine" e ver as
suas fotos do que contemplar uma das suas réplicas (a obra "original" desapareceu há muito
tempo). O mesmo jamais poderia ser dito de uma obra dotada de valor estético, como "Les
Demoiselles d'Avignon", de Picasso, ou o soneto "Salut", de Mallarmé, cujas presenças são
insubstituíveis.
Supor que uma obra importante do ponto de vista cognitivo fosse necessariamente
importante do ponto de vista artístico ou estético foi um equívoco comum da vanguarda e
dos seus admiradores.
Por outro lado, não perceber ou negar que uma obra estética ou artisticamente insignificante
("Fontaine" é o caso clássico) pudesse ter uma grande importância conceitual e histórica foi
o erro dos detratores da vanguarda.
Não só o feito da vanguarda enquanto vanguarda foi primariamente conceitual, mas o que
com esse feito se aprendeu pode ser enunciado em poucas palavras. Aprendeu-se, de uma
vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade – em
princípio – de que a arte empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a
perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes. O "gênero"
artístico revelou-se como convencional e perdeu toda a importância. A obra de arte não se
vale de direitos hereditários ou de prerrogativas de família. Isso não significa que todas as
obras se equivalham, mas que cada uma é antes um indivíduo do que um membro de uma
espécie ou gênero e que é enquanto indivíduo que exige ser considerada.
Ora, o caminho até essas descobertas – que, no fundo, são o desdobramento de uma só – já
foi cumprido e não tem como se estender. Não é possível ir "além" ou voltar "aquém"
delas. Nesse sentido, não há mais vanguarda. O seu percurso já foi cumprido e nenhum
artista ou crítico moderno pode dar-se ao luxo de ignorá-lo.
No artigo mencionado, eu já havia observado que se, etimologicamente, vanguarda é, como
se sabe, o destacamento que, progredindo à frente do grosso do exército, abre caminho para
este, de modo que, analogamente, dizem-se vanguarda também os artistas que, progredindo
à frente dos demais, abrem caminho para estes, então essa designação só é de fato
inteiramente adequada aos artistas cujo progresso não pode deixar de ser reconhecido e
assimilado pelos demais.
Tal é o caso do progresso cognitivo que acabo de descrever, que não se dá na arte
experimental contemporânea.

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