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As vanguardas e a tradição
(Folha de S. Paulo, 20-04-2008)
O sentido da vanguarda
(Folha de S. Paulo, 04-05-2008)
Ainda a vanguarda
(Folha de S. Paulo, 01-06-2008)
EM ARTIGO que aqui publiquei em 3 do corrente, afirmei que, tendo cumprido a sua
função, a vanguarda acabou. Não cheguei, porém, a explicar que uma das principais razões
pelas quais penso assim é que estou convencido de que o feito principal da vanguarda
enquanto vanguarda não foi de natureza propriamente estética ou artística, mas cognitiva e,
mais precisamente, conceitual.
Em outras palavras, não é que, a partir da experiência da vanguarda, a arte tenha ficado
melhor do que era, mas que, sobre ela, se aprendeu alguma coisa que não se sabia antes.
Deu-se um aprendizado, um progresso cognitivo após o qual se passou a saber algo
fundamental, antes não plenamente reconhecido, sobre a natureza da arte.
Com certeza o divórcio mais célebre entre o feito conceitual e o feito estético de uma obra
não se deu no campo da poesia, mas no das artes plásticas. Refiro-me, é claro, a "Fontaine",
o urinol que Marcel Duchamp pôs de cabeça para baixo e expôs como arte. Como se sabe, a
partir de "Fontaine" e do conceito correlato de ready-made, foi profunda e amplamente
posto em discussão o próprio conceito de arte. Ou seja, uma peça de valor artístico ou
estético praticamente insignificante foi capaz de ter uma importância conceitual
incalculável.
Ora, evidentemente, o valor puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela
ensinou, e não nela própria. É claro que nada impede que uma obra seja importante tanto do
ponto de vista estético quanto do ponto de vista conceitual.
Se o seu valor é exclusivamente conceitual, porém, ela não passa de veículo para o que
ensina.
Logo que o que ensina é aprendido, ela passa a ser mero exemplo do que ensinou, dotado,
no máximo, de um valor histórico.
Em outras palavras, uma vez realizado o feito conceitual de uma obra puramente cognitiva,
ela se torna supérflua. Assim como quem quiser aprender a lei da gravidade fará melhor
lendo um livro de física clássica do que os "Principia" de Newton, cujo texto original tem
hoje um valor meramente histórico, assim também mais vale ler sobre "Fontaine" e ver as
suas fotos do que contemplar uma das suas réplicas (a obra "original" desapareceu há muito
tempo). O mesmo jamais poderia ser dito de uma obra dotada de valor estético, como "Les
Demoiselles d'Avignon", de Picasso, ou o soneto "Salut", de Mallarmé, cujas presenças são
insubstituíveis.
Supor que uma obra importante do ponto de vista cognitivo fosse necessariamente
importante do ponto de vista artístico ou estético foi um equívoco comum da vanguarda e
dos seus admiradores.
Por outro lado, não perceber ou negar que uma obra estética ou artisticamente insignificante
("Fontaine" é o caso clássico) pudesse ter uma grande importância conceitual e histórica foi
o erro dos detratores da vanguarda.
Não só o feito da vanguarda enquanto vanguarda foi primariamente conceitual, mas o que
com esse feito se aprendeu pode ser enunciado em poucas palavras. Aprendeu-se, de uma
vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade – em
princípio – de que a arte empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a
perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes. O "gênero"
artístico revelou-se como convencional e perdeu toda a importância. A obra de arte não se
vale de direitos hereditários ou de prerrogativas de família. Isso não significa que todas as
obras se equivalham, mas que cada uma é antes um indivíduo do que um membro de uma
espécie ou gênero e que é enquanto indivíduo que exige ser considerada.
Ora, o caminho até essas descobertas – que, no fundo, são o desdobramento de uma só – já
foi cumprido e não tem como se estender. Não é possível ir "além" ou voltar "aquém"
delas. Nesse sentido, não há mais vanguarda. O seu percurso já foi cumprido e nenhum
artista ou crítico moderno pode dar-se ao luxo de ignorá-lo.
No artigo mencionado, eu já havia observado que se, etimologicamente, vanguarda é, como
se sabe, o destacamento que, progredindo à frente do grosso do exército, abre caminho para
este, de modo que, analogamente, dizem-se vanguarda também os artistas que, progredindo
à frente dos demais, abrem caminho para estes, então essa designação só é de fato
inteiramente adequada aos artistas cujo progresso não pode deixar de ser reconhecido e
assimilado pelos demais.
Tal é o caso do progresso cognitivo que acabo de descrever, que não se dá na arte
experimental contemporânea.