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WALTER BENJAMIN
João Barrento
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Limiares: sobre Walter Benjamin
LIMIARES
sobre Walter Benjamin
João Barrento
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Reitora
Roselane Neckel
Vice-Reitora
Lúcia Helena Martins Pacheco
EDITORA DA UFSC
Diretor Executivo
Fábio Lopes da Silva
Conselho Editorial
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Limiares: sobre Walter Benjamin
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João Barrento
João Barrento
LIMIARES
sobre Walter Benjamin 5
© 2013 João Barrento
Direção editorial:
Paulo Roberto da Silva
Editoração:
Paulo Roberto da Silva
Capa:
Maria Lúcia Iaczinski
Ficha Catalográfica
(Catalogação na publicação pela Biblioteca Universitária da Universidade
Federal de Santa Catarina)
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida,
arquivada ou transmitida por qualquer meio ou forma sem prévia permissão
por escrito da Editora da UFSC.
Impresso no Brasil
Sumário
Nota...................................................................................................... 7
João Barrento
Um filósofo sem qualidades............................................................ 45
João Barrento
Nos ensaios que compõem este volume, o leitor – tal como
eu próprio, ao escrevê-los – encontra-se sempre com Walter
Benjamin em espaços nos quais o pensamento se demora em
zonas de passagem, limiares que, espera-se, permitirão vislumbrar 9
alguns núcleos importantes da sua Obra. No movimento de
um pensamento como o de Benjamin – que, de facto, é móvel
e move, é enigmático e luminoso – é sempre mais significativa
a deambulação por essas zonas de abertura do que a passagem
da linha de fronteira que delimita problemas, com a pretensão
de chegar à sua solução e fixação. Benjamin e o seu método
de pensar participam em alto grau da natureza do que é a um
tempo oblíquo e transparente, configurando-se num modo de
pensamento essencialmente prismático.
Prismas poderia também ter sido o título deste livro, se
Adorno o não tivesse já dado a um dos seus. Os ensaios que aqui
se oferecem à leitura não têm outra ambição que não seja a de
projectar alguma luz refractada a partir dos textos de Benjamin,
ficando-se pelos limiares do seu pensamento em alguns domínios
e temáticas que o marcam e que, entre muitos outros, apelaram
para o meu olhar. Eles prolongam-se, ainda e sempre em múltiplas
zonas-limite, no Diário para Walter Benjamin, manuscrito e com
colagens, que acompanha este livro em forma de um CD-ROM, e
que fui compondo entre 2003 e 2007, à medida que ia traduzindo
e comentando os volumes das Obras Escolhidas, um projecto ainda
em curso (nos ensaios remete-se para esses prolongamentos,
referindo as páginas do Diário em que se reflecte sobre matéria
afim).
*
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
Serei eu aquele que se chama W. B., ou chamo-me simplesmente
W. B.? 11
(W. B., O Livro das Passagens)
João Barrento
ou quadros de pensamento que produzem sentido, não pelas
imagens ou pelos quadros isolados, mas de forma relacional e
contextual – a partir das suas constelações.
É neste âmbito, não sistemático e só marginalmente
13
conceptual (porque sempre atravessado pelo espectro ou a sombra
da imagem), que nascem e se desenvolvem aquelas constelações.
Enumero algumas delas, cobrindo com essa enumeração o
essencial do campo de interesses e de intervenção filosófica e
teórica de Walter Benjamin:
a palavra e o Nome
a tradução e a comunicação
a tragédia e o drama lutuoso
a crítica e o comentário
a destruição e a salvação
a beleza e a verdade
a experiência e a vivência
a experiência e a semelhança
o tempo e a história
a actualidade e o tempo-de-agora
a história e o progresso
o progresso e a melancolia
a modernidade e as vanguardas
a alegoria e o símbolo
a aura e a técnica
o vestígio e a aura
a teologia e o materialismo
o messianismo e o marxismo
as origens e a teleologia
a ruína e a morte
o destino e o carácter
Limiares: sobre Walter Benjamin
o brinquedo e o jogo
o historiador e o coleccionador
a memória e a rememoração
o romancista e o contador de histórias
a faculdade mimética e a abstracção
a percepção e a leitura
a citação e a montagem
a mercadoria e o flâneur
a grande cidade e as exposições universais
14 a passage e o interior burguês
......................................
João Barrento
O actual é o que o presente confirma do passado, tal como
“o que eu sou” (e que está para além do nome, quando muito
se reflecte no “nome próprio”) é o reflexo “daquilo que já foi”,
“do que foi vivido”, “o hábito de uma vida vivida”, o substrato
15
de uma “experiência” (ou a écharpe da mãe antes de sair para a
ópera, que no universo da infância está pelo nome de Carmen
ou de Electra). Quando Benjamin diz que “o nome só pode
ser reconhecido em contextos de experiência”, quando sugere
que somos nós que “nos ligamos a um nome” (por uma acção
animada pelo impulso mimético), ou quando afirma que o
“brilho” original do nome que corresponde ao Ser é objecto de
uma “mimese” (“Ser” deve entender-se aqui como a vertente
da “verdade”, coincidência consigo próprio, como “essência de
linguagem”, não mera nomeação acidental, que é a sua vertente
instrumental da linguagem), está a dizer que “eu” sou aquilo
com que me identifico pela acção, pelo fazer (é isto que, para lá
da objectividade das informações, salta aqui e ali dos próprios
curricula que tem de elaborar: é possível lê-los como tabulae
de acções que configuram uma vida sem nome, toda feita de
interesses particulares que levam à acção, que neste caso é uma
acção do pensar e da escrita). Esse fazer é o do verbo, não o do
nome, nem mesmo o do nome que diz “eu” (é rara a pergunta
“quem sou?” nos textos de Benjamin, que cedo deixou de usar o
pronome pessoal no que escrevia), como mais tarde dirá também
Maria Gabriela Llansol no diário que escreve para e com Vergílio
Ferreira, onde lemos: “toda a linguagem está assente no nome”,
mas “o eu como nome é nada”, “o nome por que nos chamam não
é um consistente”; “um verbo é mais forte do que o nome”, porque
Limiares: sobre Walter Benjamin
1
Llansol, Maria Gabriela, Inquérito às Quatro Confidências. Lisboa: Relógio d’Água
1996, p. 40, 48.
2
Adorno, Theodor W. prefácio a W. Benjamin, Briefe. Frankfurt a. M.: Suhrkamp,
1966, p. 14.
Um tal sentido de actualidade, desprendido de si, mas não
do tempo, aplica-se à própria obra de Benjamin, que, nos seus
momentos mais pregnantes e nas próprias formas que escolheu
para se configurar, estava prenhe de um futuro que, reconhecemo-
lo hoje, seria em parte o nosso presente – apesar de não vivermos
todos no mesmo presente.
A Obra de Walter Benjamin é um daqueles corpus em
relação aos quais, mesmo ao fim de muito tempo de convivência,
ficamos sempre com a impressão de que nunca se nos abrem
totalmente. Os enigmas, o recanto obscuro que só se descobre
a partir da luz sobre ele lançada de outro lugar da obra, o estilo
ensaístico inconfundível que só pode ser reconstituído na
releitura (ou na re-escrita da tradução conseguida), tudo isso nos
João Barrento
leva constantemente de volta a esta Obra que nunca poderemos
dar por lida (→Diário, 9-10). Por isso Benjamin nunca perde
actualidade para os leitores viciados nos meandros da sua escrita
e nas fulgurações do seu pensamento, em que abre e fecha
pistas, sugere trilhos inesperados, espalha vestígios para uma 17
sempre renovada e surpreendente reconstituição arqueológica
da modernidade do nosso último século. É dela, em diversas
vertentes, que fala toda a sua obra.
A sua aura, que ainda existe, é, assim, a dessa ambiguidade
inassimilável, ou das “correspondências mágicas”, pela “percepção
de similitudes não sensíveis” (vd. “Doutrina das semelhanças”,
1933) que o seu pensamento traça entre realidades díspares.
A atmosfera de qualquer “retrato”, mesmo sem eu, de uma
textualidade multímoda e sem caixilhos – Benjamin sempre foi
um pensador de alto risco, da atracção de sondáveis abismos, à
direita e à esquerda, para cima e para baixo –, será necessariamente
“saturnina”, o quadro é o de um melancólico, eterno estudante e
coleccionador de raridades, in-significâncias e meios-tons (“Vim
ao mundo sob o signo de Saturno – o planeta da lenta rotação,
das hesitações e dos atrasos”).
Partindo de um desenho do artista italiano Valerio Adami,
Jacques Derrida delineou em 1975 um sugestivo retrato de
Walter Benjamin, uma fisionomia da instabilidade em alguém
que, contraditoriamente, confirma essa instabilidade em certos
momentos da sua vida “burguesa”, mas a nega no rigor e no
voluntarismo com que aborda os objectos do seu fazer filosófico:
3
J. Derrida, “+R (par dessus le marché)”. In: Valerio Adami, Le Voyage du Dessin. Paris:
Maeght, 1975.
Walter Benjamin foi, na verdade, um pensador da fronteira
ou do limite (Grenze), mas também, talvez ainda mais, do limiar
(Schwelle) (ver o último capítulo deste livro). Ele próprio afirma
que as duas coisas se não podem confundir, mas as duas figuras,
na sua complementaridade, são referências simbólicas – que
nele a maior parte das vezes ganham configuração alegórica
– incontornáveis para se entender a natureza da sua obra e a
orientação do seu pensamento heterodoxo. A análise materialista
do mundo moderno, que empreende em grande parte dos seus
textos, parte em Walter Benjamin de constatações ou firmes
convicções de ordem metafísica, de intuições que por vezes
elabora genialmente, e outras vezes se ficam por convolutos
de fragmentos, como aconteceu com o grande projecto das
João Barrento
“Passagens de Paris”.
Um desses fragmentos poderia bem aplicar-se ao impulso
subjacente a toda uma obra como a sua:
5
Nesse périplo, que irei seguindo, sirvo-me sempre que possível de referências à
correspondência de Benjamin, disponível em seis volumes, mas relativamente pouco
usada, apesar de ter uma importância fundamental para o esclarecimento de muitos dos
seus textos.
Peço-lhe que veja estas linhas, com as quais me desligo do
senhor totalmente e sem reservas, como uma última prova
de fidelidade, e apenas isso. [...] Nenhuma manifestação
deste tempo nos permite ficar em silêncio [...] Com o
senhor aprendemos que também o espírito, em si mesmo
e de forma incondicional, é capaz de ligar seres humanos
vivos, que a pessoa está acima das questões pessoais [...] O
senhor sacrificou a juventude a um Estado que lhe retirou
tudo. Mas a juventude pertence apenas aos idealistas que
a amam, e nela amam acima de tudo a ideia [...] (GB I,
263).
João Barrento
[...] →Diário, 29-32; 38-49), fio condutor de toda uma especulação
e reflexão centrada em duas áreas determinantes: a filosofia da
linguagem e a filosofia do Tempo e da História. O ensaio chamava-
se “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana” 21
(Über Sprache überhaupt und über die Sprache des Menschen), e
constitui o início de uma linha de reflexão em que posteriormente
irão surgir trabalhos tão importantes como “A tarefa do tradutor”
(Die Aufgabe des Übersetzers, 1921), Ursprung des deutschen
Trauerspiels (Origem do Drama Trágico [ou lutuoso] Alemão,
1925) ou “O contador de histórias” (Der Erzähler, 1936). Sobre
esse primeiro ensaio importante e decisivo escreve Benjamin a
Scholem em 11 de novembro de 1916:
Cur hic? [Por que estou aqui?] – este hic, caro senhor
Rychner, é uma longa história [...] Não cabem numa
exposição por escrito as razões que me levaram a
enveredar pelo caminho do recurso a um ponto de vista
materialista [...] Cur hic? – Não por eu ser adepto de uma
“mundividência” materialista, mas porque me esforço
22 por orientar o meu pensamento para aqueles objectos
nos quais a verdade surge de forma mais condensada.
E esses objectos não são hoje as “ideias eternas”, nem
os “valores intemporais” [...] Espero que não se veja em
mim um representante do materialismo dialéctico, mas
um investigador para quem a posição do materialismo,
de um ponto de vista científico e humano, se afigura, em
todas as coisas que nos tocam, mais frutuosa do que a
idealista. E, para o dizer numa palavra: eu nunca pensei
nem estudei num sentido que não fosse, se assim se pode
dizer, teológico [...] (GB IV, 17-19).
João Barrento
que dirige), será objecto de um prolongado e meticuloso trabalho,
de onde nascerá um dos tópicos centrais, e hoje mais discutíveis,
do pensamento estético de Benjamin, o da relação entre a beleza e
a aparência (estética), ou entre a beleza e a verdade. Mas é também 23
uma das peças fundamentais, não só de uma teoria da melancolia
em Benjamin, como também de um dos traços essenciais de um
método que, evitando “a barbárie da linguagem das fórmulas”,
chega à integração perfeita entre a linguagem e o pensamento,
numa linguagem que se manifeste como “pedra de toque da força
do pensar”, conforme lemos numa carta a Hofmannsthal, de 13
de Janeiro de 1924 (GB II, 409-410).
Nestes anos de ebulição artística e ideológica, em
que na Alemanha e na Suíça (onde vive e estuda entre 1917 e
1919) floresciam as vanguardas (Dadaísmo, Expressionismo)
e se preparavam as revoluções, Benjamin – que nos anos
trinta iria teorizar alguns dos momentos mais significativos da
modernidade, de Baudelaire ao Surrealismo e das origens da
fotografia à revolução do cinema – mantém a distância e afirma
explicitamente uma rejeição dos movimentos modernos. Prefere
coleccionar livros infantis, lê os clássicos, encontra pela primeira
vez Ernst Bloch (sobre cujo Geist der Utopie / Espírito da Utopia
terá escrito uma recensão que nunca chega a publicar, aliás cheia
de reservas em relação a este “expressionismo filosófico”), começa
a traduzir, num despique inglório com as versões consagradas de
Stefan George, os primeiros poemas de Baudelaire e descobre a
sua atracção pela cultura francesa, e em especial por Paris.
Este segundo ciclo fecha-se, significativamente, com uma
viragem para a filosofia judaica e com a redacção de um texto em
Limiares: sobre Walter Benjamin
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a História):
João Barrento
reflexão, Einbahnstrasse / Rua de Sentido Único (“apontamentos
que me dizem muito [...], um monte de ervas amargas”, carta a Jula
Radt, Paris, 30 de Abril de 19267) (→Diário, 102-107). O Diário
de Moscovo (1926-1927), reflexão decisiva para uma rejeição do
27
comunismo prático e do estalinismo nascente, adiará nestes anos
a redacção das primeiras notas (de 1927) da “féerie dialéctica”
que deveria ser o volume das “Passagens de Paris” (Das Passagen-
Werk).
Em 18 de Março de 1933, Walter Benjamin, “dissidente
e sem filiação partidária”, como escreve no curriculum vitae
número IV (GS VI, 220), é obrigado a deixar a Alemanha nazi
6
“A nova Grande Eciclopédia Russa pretende de mim um texto sobre Goethe, do ponto
de vista da doutrina marxista. O divino desplante que a aceitação de uma tal encomenda
representa tocou-me deveras, e penso poder aqui [em Paris] juntar material para o que de
essencial há a dizer.” (GB III, 133).
7
“Quando comecei a sentir-me pior, arrumei num canto todo o Proust e passei a
trabalhar só para mim, anotando alguns apontamentos que me dizem muito: sobretudo
um, maravilhoso, sobre marinheiros e o modo como olham para o mundo, outro sobre o
reclame, outros ainda sobre as vendedoras de jornais, a pena de morte, feiras, barracas de
tiro ao alvo, Karl Kraus – um monte de ervas amargas, muito amargas, como as que agora
cultivo com paixão num jardim da cozinha.” (GB III, 151).
para se refugiar em Paris. Dois dias depois escreve a Gershom
Scholem sobre a situação “na Alemanha depois do 15 de Março”:
João Barrento
e pessoal do que intelectual, o “sol de Brecht”, que Benjamin
visita por duas vezes no exílio dinamarquês, e de cuja obra diz,
na mesma carta, que a sua importância lhe vem do facto de não
ter nada a ver com as “alternativas” do comunismo partidário
29
que tanto preocupam o amigo. No plano oposto está a obra de
Kafka, igualmente notável, e que não corresponde a nenhuma das
posições que o comunismo oficial combate (id., 409-410).
Mais do que nunca, Benjamin é um homem de fronteira,
figura instável no limiar da História. Entre os equívocos estratégicos
da aceitação forçada de encomendas de Horkheimer, como o
ensaio sobre “Eduard Fuchs, coleccionador e historiador” (Eduard
Fuchs, der Sammler und der Historiker), ou a conferência “O Autor
como Produtor” (Der Autor als Produzent, provavelmente nunca
pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo, em Paris),
surge, em 1935-1936, o texto de todos os equívocos, que Adorno
logo denuncia em implacável argumentação epistolar: “A Obra de
Arte na Época da sua Possibilidade de Reprodução Técnica” (Das
Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit). O
que de autenticamente benjaminiano haverá neste texto (e já nos
apontamentos sobre o haxixe de 1930, e depois também nos ensaios
sobre Baudelaire e no cerne de todo o trabalho das “Passagens”)
é o complexo da teoria da “aura” (→Diário, 172-174) – mas não
necessariamente da sua morte –, com todo o nebuloso rigor em que
Benjamin consegue envolver as suas mais originais ideias. É dessa
categoria, na articulação com a teologia negativa do progresso e do
fetichismo da mercadoria, que irá viver o ensaísmo desses anos,
sobre os temas obsessivos de Baudelaire, da modernidade e da Paris
do século XIX, que ainda constituirá a referência histórica concreta
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
31
Limiares: sobre Walter Benjamin
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Um sistemático fragmentário:
editar e traduzir Benjamin
João Barrento
Situação de Walter Benjamin em Portugal
33
A edição, em curso, das Obras Escolhidas de Walter
Benjamin8 veio preencher uma imensa lacuna na literatura
filosófica em Portugal. De facto, não se pode dizer que Benjamin,
um autor cuja obra teve uma difusão e recepção muito alargadas, a
partir de finais da década de 1960, por toda a Europa, nos Estados
Unidos e, mais tarde, também no Brasil, alguma vez tenha tido
uma presença significativa em Portugal, pelo menos no que se
refere à edição dos seus textos fundamentais. Uma rápida consulta
à bibliografia organizada por Momme Brodersen é elucidativa da
quase ausência de textos de Benjamin traduzidos do original e
editados em livro antes da década de 1990. É certo que o primeiro
8
Em sete volumes (de que já saíram quatro), na editora Assírio & Alvim, com selecção,
edição e tradução minhas. Sairam também já no Brasil os primeiros três volumes desta
minha edição de Benjamin (Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2011-2013).
texto de Benjamin traduzido por um português (mas não editado
em Portugal, na medida em que aparece na revista Humboldt,
ao tempo com redacção em Hamburgo e publicada em alemão,
castelhano e português) é já de 1963: trata-se de “A tarefa do
tradutor”, numa versão de Fernando Camacho que traz claras
marcas das difiduldades que o tradutor teve em compreender
e passar para português esse ensaio-chave da metafísica da
tradução no século XX. Mas o facto é que Walter Benjamin só
surge em edições autónomas, também elas muito problemáticas,
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
de actualidade, orientado – como já na imagem do historiador
em Friedrich Schlegel, visto como “profeta de olhos postos no
passado” – por um olhar que se volta para trás, com consciência
da sua própria contemporaneidade, aplica-se, assim, à própria
35
obra de Benjamin, que poderia ter sido actuante, mas não o foi.
E assim é que, no tempo presente português, a actualidade da
obra de Walter Benjamin é ainda contraditória e inconsistente.
Fechámos largamente os olhos à sua palavra durante o último
quarto de século, um tempo que noutros lugares – na Alemanha
e em Itália, em França e nos Estados Unidos, em Espanha e no
Brasil – assistiu à sua progressiva, e a dado passo quase excessiva,
descoberta e assimilação. Este filósofo atípico, que gostava de
escovar a filosofia e a estética a contrapelo, só muito esparsamente
(e quase sempre com os mesmos filosofemas) informa a nossa
conceptualidade filosófica, argumentativa e estética dominante,
e é, no fundo, um corpo estranho e exótico que apenas penetrou
pontualmente, com alguns estilhaços, no nosso universo mental,
e não chegou a entrar no corpo da nossa linguagem filosófica e
crítica. Nem isso podia facilmente acontecer, dada a quase total
ausência de traduções dos seus textos. A situação de Walter
Benjamin em Portugal era, até há pouco tempo, a de um défice
total dos textos fundamentais, em versões de confiança (uma
situação que as poucas publicações em livro até agora aparecidas
em nada vieram alterar). A exigência primeira e o maior
desiderato, para podermos começar a falar de e com Benjamin
em português, era, por isso, a de uma edição suficientemente
ampla que desse a ler, em versões fidedignas e congeniais (num
género como o ensaio benjaminiano este aspecto é essencial:
Limiares: sobre Walter Benjamin
9
Detlev Schöttker, Konstruktiver Fragmentarismus. Form und Rezeption der Schriften
Walter Benjamins [Fragmentarismo Construtivo. Forma e recepção das Obras de W. B.],
Frankfurt a.M., Suhrkamp Verlag, 1999.
Obra, é a de que a sua natureza fragmentária leva a que essa
Obra se vá permanentemente reconfigurando no processo da
sua recepção. Natureza fragmentária, mas não assistemática,
note-se, uma vez que ela se constrói sobre algumas constelações
sistemáticas bem visíveis, que uma outra obra recente (os dois
volumes dos Benjamins Begriffe10) procura tornar evidentes. A
condição textual da Obra de um “sistemático fragmentário” como
Benjamin tem-se revelado, deste modo, tão importante como o
potencial de pensamento que contém. “E assim a posteridade vai
completando o que Benjamin iniciou” (Schöttker, p. 7). Se
aceitarmos a tese – e penso que ela representa mais do que uma
mera inflexão para uma perspectiva formalista, numa altura em
que praticamente se esgotaram as possibilidades hermenêuticas
João Barrento
em relação aos sentidos desta Obra –, então cada edição, e cada
tradução, dos textos de Benjamin vem abrindo novas portas para
a sua recepção activa e produtiva, em parâmetros culturais e
linguísticos diferentes. De facto, se os textos de Benjamin forem
37
vistos – como tem acontecido desde que Adorno começou a
editá-los, nos anos cinquenta – como “ensaios” (no sentido do
alemão Versuche: “experiências”) que colocam dilemas que
pedem indagação e evidenciam as falácias de todas as “saídas”
pretensamente definitivas, como textos que prenunciam, desde a
sua génese, o fracasso das leituras teóricas lineares, com a intenção
de levar os problemas “a bom porto” – se assim for (e parece que
assim é), então a sua recepção está destinada a não acabar. Este
ponto de vista é, naturalmente, importante para um caso de
recepção tardia como o do espaço português. Apostar numa Obra
que, mais do que propor um sistema, incita a uma reflexão sobre
o secreto e a uma actualização inevitável e constante das questões
que a (pre)ocupam, é um gesto de crença na actualidade dessa
Em: Michael Opitz / Erdmut Wizisla (Ed.). Aber ein Sturm weht vom Paradiese her.
11
Texte zu Walter Benjamin [Mas há um vento que sopra do paraíso. Textos sobre W. B.].
Leipzig, Reclam Verlag, 1992, p. 348-362.
em esperança não penso em nada cor-de-rosa. O fundo
negro está aí, é pressuposto essencial. Pode tratar-se
mesmo simplesmente da esperança de uma catástrofe que
depois permita ver claro.12
João Barrento
descurado nas traduções, a que Sigrid Weigel chama, num lúcido
ensaio incluído no primeiro número dos Benjamin Studies, “das
Bilddenken” [o pensamentio imagético] de Walter Benjamin.13
Se aceitarmos, como já se salientou, que “a obra de Benjamin só é 39
compreensível enquanto fenómeno de recepção” (Schöttker,
p. 8), se a construção desta Obra é um processo póstumo contínuo
e ainda em aberto (desde as primeiras edições e durante todo o
período da acidentada história da edição crítica alemã das Obras
e da Correspondência, entre 1974 e 2000, continuando ainda com
a nova edição histórico-crítica, em curso de publicação desde
2008), então as edições que dela se continuarem a fazer poderão
ser momentos decisivos da (re)configuração de um pensamento
no processo de recepção. Cada nova edição poderá ser então, não
apenas mais um estádio na história da recepção, mas também
13
Sigrid Weigel, “Lost in Translation. Vom Verlust des Bilddenkens in Übersetzungen
Benjaminscher Texte” [Lost in Translation. Sobre a perda do pensamento imagético nas
traduções de textos de Benjamin], Benjamin Studies, no 1, Amesterdão/Nova Iorque, 2002,
p. 47-63.
construção da Obra de Walter Benjamin, e, assim, sua interpretação
(Schöttker, p. 109) – é esse o destino de toda a tradução que
se assume, não como reprodução mecanicista de sentidos, mas
como “leitura”, reconstituição de uma “forma”, no sentido do
próprio Benjamin. A história desta interpretação e apropriação
pela recepção é, neste caso, uma história marcada pela persistência
e coerência (das sucessivas equipas que, ao longo dos anos, levaram
a cabo a edição crítica alemã dos textos e da correspondência de
Benjamin, os Gesammelte Schriften e as Gesammelte Briefe, e agora
Limiares: sobre Walter Benjamin
Traduzir Benjamin
40
Não será também este o lugar para longas reflexões sobre o
que significa traduzir Benjamin. Mas uma, ou algumas, questões
prévias se colocam, ou podem colocar: por exemplo, a questão
de saber como tem sido traduzido Benjamin e como pode o seu
texto ser traduzido, ou como pede o seu texto para ser traduzido
para uma língua como a nossa, cuja “natureza” (para usar o
termo de Lutero na “Epístola sobre a tradução”) parece, à partida,
juntamente com a quase ausência de tradição, predestiná-
la para o fracasso de uma tal empresa. A pergunta não exige
necessariamente uma resposta, muito menos definitiva, mas
Reinhard Markner, autor de uma bibliografia crítica de referência, “Walter Benjamin nach
der Moderne. Etwas zur Frage seiner Aktualität angesichts der Rezeption seit 1983” [W. B.
depois da modernidade. Notas sobre a questão da sua actualidade face à recepção desde
1983], Schattenlinien, Berlim, n. 8-9/1994, p. 37-47.
contém a ideia de uma busca, e pode gerar hipóteses de trabalho,
que se poderão condensar numa formulação como a seguinte:
traduzir é interrogar o outro para trazer a distância à proximidade
do próprio, através da escuta da voz desse outro. A escritora
Maria Gabriela Llansol define também a tradução (no seu caso,
de Rilke) neste sentido, numa frase lapidar: ver o outro – que às
vezes vem de bem longe – “bater à janela, na minha língua”.15 E
um outro filósofo, de perfil e estilo bem distintos de Benjamin,
mas igualmente complexo para a tradução, Heidegger, parece ir
na mesma linha quando afirma, nas lições do semestre de Verão
de 1928, em Marburg: “Só a capacidade de ouvir a distância
produz o despertar da resposta daqueles que estão destinados a
estar perto desse despertar”.
João Barrento
Mas também esta questão – até onde pode ou deve ir a
escuta e o trabalho com a linguagem, a todos os níveis, no texto
de chegada da tradução de textos filosóficos em geral – me parece
ter duas vertentes. Uma delas é visível em muitas das traduções
41
de que dispomos; a outra parece-me constituir ainda o horizonte
distante, mas não impossível de alcançar, do texto filosófico em
português. Vejamos brevemente os dois aspectos.
Primeiro: o estado das coisas (nisto, peço à comunidade
filosófica alguma indulgência em relação ao que poderá ser a
natural deformação literária do meu ponto de vista). Sente-se
muitas vezes nas traduções de textos filosóficos por filósofos a
vontade – que reconheço como necessidade – de dar o conceito,
nomeadamente os de sentido complexo ou forma composta,
no caso de uma língua como o alemão, nas suas diversas
componentes semânticas, que são indestrinçáveis de construções
morfológicas radicalmente diferentes das habituais e possíveis
em português. A tradução filosófica faz desta necessidade uma
João Barrento
Traduzir Benjamin não é muito diferente de traduzir outros
filósofos, mas também pode ser radicalmente diverso de traduzir
outros filósofos. Ou seja: não se traduzem do mesmo modo todos
os filósofos, tal como não se traduzem do mesmo modo todos
43
os poetas. Há especificidades a respeitar, a natureza dos textos
dita os caminhos da sua tradução. O caso de Benjamin enquadra-
se certamente na situação descrita. A exigência, já referida, de
Sigrid Weigel para a tradução de Benjamin é fundamental, pois
“se o pensamento imagético de Benjamin, as suas imagens lidas e
escritas, se tornam irreconhecíveis no texto traduzido, perdeu-se
nessa passagem o que de mais específico há no seu pensamento”.16
O que se perdeu pelo caminho – mas não pode perder-se –
foi a “forma do conteúdo” do texto de Benjamin, foi a própria
fisionomia filosófica de Walter Benjamin e o “espaço imagético
total e exclusivo” da sua escrita, de que ele próprio fala no ensaio
sobre o Surrealismo, e que não é o da metáfora, do conceito ou da
perífrase em que muita tradução o transforma. Há uma história,
17
W. Benjamin, “La traduction – le pour et le contre”, GS, VI. Frankfurt a.M., Suhrkamp
Verlag, 1985, p. 157-160.
potencialidades expressivas da língua alemã, permanentemente
activadas no texto original, desaparecem em algumas traduções
(nisto, a tradução brasileira intitulada Origem do Drama Barroco
Alemão é desastrosa, para além de estar pejada de erros que
distorcem gravemente o sentido); que não simplificaria a estrutura
da frase, tornando simplista o movimento de um pensamento
que o não é, porque uma coisa espelha a outra, especialmente
no texto filosófico. E Walter Benjamin pratica um virtuosismo
contorcionista da frase que, não sendo arbitrariamente abstruso,
é marca de um pensamento que funciona num movimento
alternante de espirais, ora mais apertadas, ora mais amplas – não
é a prosa descuidada de Hegel, nem a conceptualmente cerrada
de Kant, mas também não se deixa obcecar, perigosamente, pelo
João Barrento
fundo matricial da língua, como em Heidegger.
Naturalmente que a consciência destes problemas não irá
evitar que certas passagens ou textos de Benjamin se furtem mais
a uma transposição segundo os princípios aqui enumerados.
45
Porque, como se disse antes,
46
Um filósofo sem qualidades18
João Barrento
Como foi o seu primeiro encontro com Walter Benjamin?
Não tenho bem a certeza. Mas penso que deve ter sido 47
em Hamburgo, na Alemanha, onde eu, depois de ter acabado a
licenciatura em Literaturas Germânicas, era leitor de português.
Estávamos na segunda metade dos anos 1960, e Benjamin estava
a ser recuperado por uma Nova Esquerda. Cá nunca ninguém
me tinha falado dele. Conheci então um Benjamin que não era
o que, à primeira vista, me poderia interessar mais nessa altura
– o relacionado com a literatura e a linguagem –, mas sim um
Benjamin mais herético, um pensador que projectava a imagem
de um objecto esquivo e que apelava muito para uma nova
esquerda não dogmática. Trata-se do Benjamin das Teses sobre a
filosofia da História. Foi por aí que comecei. As primeiras coisas
que li foram os textos relacionados com cidades e viagens, e com
a filosofia da História.
João Barrento
pensamento como uma interpretação activa de fragmentos
radiografados de uma determinada realidade, ou como uma
estenografia de um inconsciente europeu. Trata-se da tentativa
de captar centelhas, fenómenos que estavam fora do âmbito dos 49
interesses da filosofia mais instituída e mais institucionalizada,
fora da grande tradição filosófica desde Kant ou Hegel. Tudo isto
o transforma numa espécie de filósofo sem qualidades, e também
num outro “homem sem qualidades” (→Diário, 33-37).
Sem qualidades?
João Barrento
sistemático, existem núcleos de sistematicidade dentro dele. É
possível, ao longo de toda a obra, muito dispersa e fragmentária,
reconstituir determinados núcleos de significação que aparecem
e reaparecem, constituindo o “sistema” de Walter Benjamin. 51
O tempo que medeia entre este momento e o de Benjamin faz
com que já tenhamos condições de entender plenamente aquilo
que ele próprio tenta compreender. E, quando menos se espera,
saltam desta obra estilhaços de actualidade.
João Barrento
presente lhe oferece, através da nomeação – por exemplo, todo
o livro sobre Baudelaire seria esse exorcismo das fantasmagorias
do tempo que o século XIX viu nascer: a mercadoria, a noção
de progresso, os valores da vida burguesa, a profanização
53
generalizada do mundo, com a consequente profanização do
sagrado, que não o religioso, etc. Benjamin nomeava e através
desse gesto conhecia e exorcizava. Hoje, limitamo-nos a olhar
para tudo isso.
João Barrento
O texto “A tarefa do tradutor” ou assusta os tradutores, ou
fá-los dizer: isto não me interessa, porque na minha prática não
me serve para nada. Reconheço que, se nos guiamos por um texto 55
como este, provavelmente bloqueamos. O que aí está em causa
não é um pequeno tratado de técnicas de tradução, mas uma
metafísica da tradução. O paradoxo, mais um, é que esse texto
foi a introdução às suas traduções de Baudelaire. Há uma ligação
à prática que passa pela questão, colocada nesse texto, da relação
entre as línguas e de uma espécie de fundo disponível onde todos
vamos buscar o material que usamos, quer quando escrevemos,
quer quando traduzimos. Esse fundo vai dar à figura da “língua
pura”, que vejo como uma espécie de “esquema” kantiano que
permite a todas as línguas exercitarem-se e colocarem-se em acto.
É o princípio, ou o pressuposto, que permite que se escreva, ou
fale, ou traduza. Benjamin diz ainda que as línguas não funcionam
em termos de oposição, mas de convergência. É precisamente isto
que tento pôr em prática quando traduzo – por exemplo, todas as
línguas europeias vêm de fundos comuns, têm as mesmas raízes
e basicamente as mesmas possibilidades, apesar de o alemão
ter uma sintaxe e um conjunto de possibilidades expressivas
desconhecidas do português. No entanto, todas essas diferenças
são compensadas pelas características específicas de cada língua.
Esse fundo está disponível, desde que eu o tenha constituído ao
longo da minha vida, pela minha relação com os textos da minha
própria língua.
linguística?
João Barrento
57
Limiares: sobre Walter Benjamin
58
Um enigma por decifrar19
João Barrento
À esquerda tudo eram ainda enigmas por decifrar,
e o meu destino estava preso a cada aceno...
(W. Benjamin, Imagens de Pensamento)
59
Ambiguidades
Recupero neste ensaio um texto escrito há trinta anos, e até hoje inédito, destinado, na
19
21
Anotação no Arbeitsjournal [Diário de Trabalho], com data de 25 de Julho de 1938, no
exílio dinamarquês, em Svendborg: “Benjamin está cá. Escreve um ensaio sobre Baudelaire
[...] Parte de uma ideia a que chama aura, e que se liga ao sonho (ao sonho diurno). Diz
que quando sentimos um olhar fixado em nós, mesmo nas costas, lhe respondemos (!). A
expectativa de que aquilo para que olhamos nos olhe também produz a aura. Esta estará
em decadência nos últimos tempos, tal como o valor de culto. B[enjamin] descobriu isto
ao analisar o cinema, onde a aura desaparece devido à possibilidade de reprodução da
obra de arte. Tudo misticismo, por mais antimística que seja a sua atitude. E deste modo
se manipula a concepção materialista da História! É de ficar com os cabelos em pé”.
uma configuração monolítica que haveria de marcá-la durante
décadas, nomeadamente no domínio da arte e da estética, para
ultrapassar os limites de formas de intervenção teórica e cultural
que estagnavam nas águas mornas de teorias classicizantes da
“herança” e de tácticas de política cultural que se limitavam a
requentar a sopa aguada da receita realista.
Benjamin foi radical e inovador – como Brecht –, e não
receou arriscar por vezes o “sonho diurno” – como Bloch. Nesses
anos trinta, Ernst Bloch constata e lamenta, num livro brilhante
e infelizmente esquecido – Erbschaft dieser Zeit [A Herança deste
Tempo], publicado em 1935 –, a aridez e o esquematismo da
esquerda comunista perante a verborreia e a hábil exploração do
irracionalismo pelo Partido Nacional-Socialista, e escreve:
João Barrento
Os nazis falam mentira, mas para pessoas; os comunistas
falam absolutamente verdade, mas apenas de coisas. Os
comunistas servem-se também muitas vezes de chavões
até à exaustão, mas muitos deles já não têm pinga de 61
álcool, apenas encerram esquemas [...] O que se impõe
aqui, neste momento, é a reforma da linguagem e da
propaganda: reforma da cabeça, que não pode imbecilizar-
se nem empedernir, e dos membros, com os quais a revolta
continua a movimentar-se também entre os empregados e
os indivíduos ex-temporâneos [...] Não se demarca de forma
suficientemente esclarecedora o materialismo dialéctico do
“materialismo” dos industriais; não se insiste suficientemente
no facto de que o materialismo comunista não é uma
mentalidade, mas uma doutrina, não é a repetição de um
totalitarismo económico, mas precisamente a alavanca que
permitirá empurrar para a periferia a economia dominada
e colocar pela primeira vez o Homem no centro. Em vez
disso, muito marxismo de vulgata quase apoia a imagem
deformada que os irracionais pintaram da razão “mecânica”.22
Ernst Bloch, Erbschaft dieser Zeit [A Herança deste Tempo], Frankfurt a.M., Suhrkamp
22
Ensaio incluído em: João Barrento (Org.). Realismo, Materialismo, Utopia. Uma
23
João Barrento
e na fronteira:
W. Benjamin, O Anjo da História. OE, v. 4. Lisboa, Assírio & Alvim, 2010, p. 13.
24
e o meu destino estava preso a cada aceno; à direita ele já
tinha acontecido, e tudo fora um único aceno silencioso.
Este jogo de contrastes durou ainda muito tempo, até
eu próprio não ser mais que o limiar por sobre o qual
alternavam nos ares aqueles mensageiros sem nome,
negros e brancos.25
W. Benjamin, Imagens de Pensamento. OE, v. 2. Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p. 205-
25
João Barrento
o “profeta para a posteridade” ou “um visionário no mundo
burguês”. Jacques Derrida esboça em 1975, a partir de um desenho
de Valerio Adami, um perfil já atrás citado, no qual, para além de
acentuar o lado “inassimilável” da figura de Benjamin, destaca 65
também a abrangência dos seus interesses, a natureza inovadora
do seu estilo e a originalidade do seu método:
Vd. Zur Aktualität Walter Benjamins [Sobre a actualidade de W. B.], ed. por S. Unseld,
28
João Barrento
História com base numa teoria oficial da “herança cultural”,
Benjamin aproxima-se de um contemporâneo da “linha quente”
do marxismo, como Ernst Bloch, na recusa, quer do puro
historicismo, quer do puro sociologismo. Bloch escreve, numa 67
clara alusão ao método do próprio Benjamin nas Teses, que “um
bom historiador não esgota as suas forças no boudoir da odalisca
‘Era uma vez’; é antes capaz de fazer explodir esse contínuo, o
contínuo da própria História, e de dominar os momentos de
actualidade (Jetztzeit) e suas correspondências”.32 E, ao analisar as
raízes do nazismo, Bloch afirma ainda, no livro já citado: “Aceitar
todo o passado como se se tratasse de uma imensa polifonia sem
voz dominante é puro historicismo; aplicar a todo o passado ‘leis’
ou ‘formas’ tipicamente, ou pelo menos formalmente idênticas,
Theodor W. Adorno, Teoria Estética. Trad. de Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1982.
31
p. 13.
Über Walter Benjamin, op. cit., p. 19.
32
é puro sociologismo”.33 Daqui resulta, em Bloch como em
Benjamin, uma postura hermenêutica crítica para a aproximação
da literatura e da arte entendidas como organon da História. A
sua base metodológica e teórica encontra-se nas Teses “Sobre o
conceito da História” (de 1940, mas cujas raízes remontam, em
Benjamin, aos anos vinte), nas quais se rompe definitivamente
com as concepções progressivistas da social-democracia e com
a imagem da História como um contínuo, característica do
historicismo do século XIX. As consequências que daqui se
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
A história da arte é uma história de profecias. Só pode
ser escrita a partir do ponto de vista de um presente sem
mediação, pois cada época tem a sua possibilidade própria,
nova, mas não transmissível, de interpretar as profecias 69
que lhe dizem respeito e estão contidas nas obras do
passado [...] Mas, para que essa profecia seja apreensível,
há circunstâncias que têm de amadurecer, em relação às
quais a obra de arte se antecipou, por vezes séculos, outras
apenas anos. Trata-se, por um lado, de determinadas
mudanças históricas que transformam a função da arte,
e por outro de certas invenções mecânicas.35
36
No ensaio “Experiência e indigência”: “Barbárie? De facto, assim é. Dizemo-lo para
introduzir um novo conceito, positivo, de barbárie. Senão vejamos aonde esta nova
pobreza leva o bárbaro. Leva-o a começar tudo de novo, a voltar ao princípio, a saber viver
com pouco, a construir algo com esse pouco, sem olhar nem à esquerda nem à direita [...]”
(O Anjo da História, OE, v. 4, p. 74).
assumem formas por vezes esotéricas e desconcertantes. Benjamin
não constrói um sistema, mas põe de pé uma construção com
várias fachadas e múltiplos patamares. As suas formas de expressão
mais frequentes (com a excepção, significativa, das duas teses
académicas: O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão e
Origem do Drama Trágico Alemão) são o ensaio, a crítica, a crónica,
o aforismo, o fragmento. Por comparação com uma prosa ensaística
como a de Brecht – uma lâmina afiada cujo corte linear põe a nu
os grandes veios da textura dos fenómenos sociais e artísticos –, o
estilo de Benjamin é antes, para usar uma imagem feliz de Ernst
Bloch, “um corte transversal oblíquo”, um perfurar das texturas
mais esotéricas – e ao mesmo tempo mais banais – da realidade,
fazendo-as estalar e revelar filões estranhos que o olhar rotineiro
João Barrento
tem dificuldade em associar e relacionar. A escrita de Benjamin
é a de um inconformista que “rompe com as formas ritualizadas
do discurso científico e jornalístico, não aceita as delimitações das
disciplinas académicas, neutraliza conceitos dominantes através
71
da sua redefinição sugestiva. Esta estratégia serve-se de técnicas
esotéricas: da citação que quase parece um assalto, da imagem
carregada de experiência, da definição peremptória, do salto
imperceptível do fluxo das ideias e da analogia que choca”.37
Do estilo de Benjamin falam, dispersamente, algumas
anotações do meu Diário manuscrito, que acompanha este volume.
Bastará salientar ainda como esse estilo serve o seu trabalho
de “micrologia com a mão esquerda” (Bloch) e o seu método
destrutivo-actualizador. Sobre esta relação, é esclarecedora a
resposta de Ernst Bloch quando lhe perguntam o que mais admira
em Benjamin. Uma passagem dessa resposta poderá completar
as referências à escrita benjaminiana, e servir de ponte para o
Burkhard Lindner, “Links hatte noch alles sich zu enträtseln [...]” Walter Benjamin im
37
Kontext. [‘À esquerda tudo ainda eram enigmas por decifrar [...]’. W. B. em contexto].
Frankfurt a.M., Syndikat, 1978, p. 10.
esclarecimento da problemática central de alguns dos seus mais
conhecidos ensaios sobre a arte, a sociedade e a técnica. Diz Bloch:
João Barrento
[...] Trata-se de determinar o lugar exacto no presente
em que a minha construção histórica se relaciona
com o seu ponto de fuga. Se o pretexto do livro [sobre
Baudelaire] é o do destino da arte no século XIX, este 73
destino tem alguma coisa a dizer-nos porque está contido
no tiquetaque de um mecanismo de relógio cujo bater
das horas só se fez ouvir por nós. O que quero dizer é
que a hora da verdade da arte soou para nós, e eu fixei
as suas marcas numa série de reflexões provisórias a que
dei o título “A obra de arte na época da sua possibilidade
de reprodução técnica”. Estas reflexões procuram dar às
questões da teoria da arte uma forma verdadeiramente
actual, e a partir de dentro, evitando todas as relações não
mediatizadas com a política.39
João Barrento
categoria que condiciona, tanto a produção lírica de Baudelaire
como as formas de recepção da arte e os padrões de percepção
na sociedade industrializada. A fotografia e o cinema são as
inovações técnicas, de que a arte irá apropriar-se, que melhor
75
reflectem estas condições modificadas da produção e recepção
artísticas na sociedade de massas.
Alguns dos ensaios mais importantes de meados da década
de trinta, atrás referidos, documentam, porém, um estádio mais
avançado e radical da teoria estética de Benjamin: neles não se
reflecte apenas sobre a “decadência” de formas tradicionais da
arte, mas desenvolve-se todo um enquadramento categorial que
permitirá teorizar (de um ponto de vista que Benjamin vê como
“materialista”, e em relação ao qual nem sempre se entenderá com
Adorno nas longas discussões epistolares desses anos) formas de
arte novas, cujo aparecimento se explica a partir das transformações
verificadas no plano da produção material e dos meios técnicos
(dependência da arte em relação ao mercado, possibilidade de
reprodução mecânica da obra, desenvolvimentos na imprensa,
surto do cinema), e cuja existência está intimamente ligada a uma
transformação qualitativa do público e das formas de recepção
da arte (passagem da recepção individual para a colectiva, do
sujeito individual para as massas, da fruição contemplativa
para a recepção “na distracção”, da empatia para a distanciação
crítica). As novas formas de arte que privilegiam a sociedade de
massas permitirão a Benjamin desenvolver uma teoria em que se
dá a reintegração total do estético no social, e que por isso tem
de pôr de lado as categorias da estética imanentista tradicional,
inadequadas às formas da arte “pós-estética”, funcional e mesmo
Limiares: sobre Walter Benjamin
40
Por exemplo no texto (mais propriamente uma montagem de fragmentos textuais
próprios e alheios) que Brecht designa de “experiência sociológica”, que editei e comentei
longamente: O processo do filme “A Ópera de Três Vinténs”. Uma experiência sociológica.
Porto, Campo das Letras, 2005.
posição central o conceito de técnica da obra, entendido numa
relação directa com um dado estádio de desenvolvimento
dos meios de produção, possibilitando assim a análise social,
materialista, da obra e dos seus processos de produção, bem
como uma superação do dualismo forma-conteúdo e da eterna
questão da relação entre tendência política e qualidade artística.
A importância da técnica resulta de que nela, ou através dela,
se pode chegar à percepção da função prática, socialmente
emancipatória, da obra (Benjamin exemplifica isto no ensaio
“O autor como produtor”, servindo-se dos exemplos de Brecht,
na Alemanha proto-nazi, e de Tretiakov, na União Soviética
estalinista). A técnica que, segundo Benjamin, melhor permitirá
reflectir artisticamente o momento histórico do capitalismo
João Barrento
tardio será a da montagem, que ele próprio pratica (→Diário,
181-184) e que descobre e analisa em manifestações e autores
muito diversos, da colagem “chocante” do Dadaísmo ao teatro
épico, da montagem literária de Tretiakov e da fotomontagem
77
de John Heartfield aos filmes de Chaplin e ao cinema em geral.
Ainda na esteira de Brecht, Benjamin formulará em “O autor
como produtor” aquela que me parece ser a sua tese central: a
necessidade de uma reconversão (Umfunktionierung) da produção
artística que, para ser realmente interveniente (operativa), terá de
ser capaz de transformar, e não apenas de fornecer, passivamente,
os aparelhos de produção da sociedade burguesa. Se assim não
acontecer, o destino de qualquer obra, ainda que de conteúdo ou
intenção revolucionários, será o da integração e assimilação pelos
mecanismos ideológicos e de produção dominantes (a Teoria
Crítica da Escola de Frankfurt viria mais tarde a mostrar como
isto se deu nas sociedades neocapitalistas contemporâneas e na
sua “indústria da cultura”, e o estado actual das coisas evidencia a
inversão total dos prognósticos, quer de Benjamin, quer da Teoria
Crítica). Não se limitando a trabalhar apenas sobre as obras como
produtos, mas forçando também, através de novas técnicas, a
transformação dos próprios meios de produção e consumo da
arte, o novo “escritor-produtor” deixa para trás a ideia da obra
como imanência sem intenções para além de si própria, para lhe
conferir desde logo uma função organizativa, uma finaliade social
prática e um “carácter modelar” como o teve o teatro épico de
Brecht. Do ponto de vista da sua estética da produção, Benjamin
atribui, assim, à arte o estatuto de força produtiva e teoriza a
superação dialéctica da arte autónoma (aurática) e o advento de
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
seus modos de ver – num “examinador” e num “perito”. Perito
porque o filme (pelo menos o cinema que Benjamin tinha em
mente: Chaplin ou o cinema russo pós-revolucionário) lhe
oferece uma imagem de si próprio e do seu mundo, de uma
79
forma muito próxima da realidade empírica – e ao mesmo tempo
com um efeito de estranhamento provocado pela interposição
do “aparelho”. O espectador é agora um “examinador distraído”,
como o transeunte em relação à arquitectura e ao cenário urbano,
por via da própria estrutura descontínua da obra cinematográfica
que, libertando-o do mergulho contemplativo, lhe fornece,
como o novo teatro de Brecht, suficientes motivos de “choque”
e momentos de “identificação” distanciada que o mantêm
participativo e desperto. Com a arte de massas, assistimos, assim,
não apenas ao aumento da quantidade de quem vê, mas também,
e simultaneamente, ao nascimento de uma nova qualidade do ver.
As teses de Benjamin são controversas e problemáticas, e
a evolução posterior nem sempre as confirmou. É um facto que,
depois do cinema e da televisão, a recepção individual da arte foi
sendo modificada e substituída por formas de recepção colectiva,
e com isso se dessacralizou e desritualizou também a obra de arte:
hoje não se lê como (nem o mesmo que) no século XIX, ou mesmo
em grande parte do século XX; o museu (hoje também o virtual)
alargou e tornou colectiva a recepção da pintura (e certo turismo
de massas também a da arquitectura); a literatura visualizou-se e
desceu à rua; o teatro, e o próprio cinema, foram mediatizados pelo
vídeo. Tudo isto trouxe consigo potencialidades emancipatórias
que Benjamin acentuou e de que fez mesmo o cerne da sua teoria
progressista dos media. Mas hoje podemos constatar que este
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
“misticismo” a propósito da teoria da aura. De um outro
quadrante, e anunciando já aquilo que constituirá o cerne da sua
Teoria Estética, da afirmação da autonomia da arte e da teoria
crítica da “indústria da cultura”, Adorno acusa Benjamin de não
81
dialectizar suficientemente a obra de arte autónoma e de operar
com base em posições antinómicas extremas.42
41
Cf. Herbert Marcuse, Die Permanenz der Kunst. Wider einer bestimmten marxistischen
Ästhetik [A Permanência da Arte. Contra uma certa estética marxista]. Munique, Carl
Hanser Verlag, 1977, p. 16-17. O livrinho de Marcuse, que, como o subtítulo desde
logo indica, é um libelo contra a estética marxista dogmática do realismo socialista, foi
traduzido e editado em Portugal tardiamente (imitando a tradução francesa, e induzindo
o leitor em erro) por A Dimensão Estética. Para uma crítica da estética marxista Lisboa,
Edições 70, 1999.
42
A longa carta, de várias páginas, enviada de Londres em 18 de Março de 1936, em
que Adorno expõe as suas divergências em relação ao ensaio de Benjamin, está traduzida
integralmente no vol. 3 da minha edição das “Obras Escolhidas” de Benjamin, nas
p. 474-479. Aí se lê, entre outras coisas: “Por mais dialéctico que seja este seu trabalho,
ele não o é no que se refere à própria obra de arte autónoma; não repara naquela que,
para mim e a partir da minha relação com a música, é a experiência mais elementar e
diariamente evidente: que precisamente a observância da maior coerência no que se refere
aos princípios tecnológicos da arte autónoma transforma esta última e a aproxima, não da
tabuização e da fetichização, mas do estado de liberdade e daquilo que, conscientemente,
ela pode e deve fazer. Não conheço melhor programa materialista do que aquela frase de
Não é este o lugar para entrar na discussão das posições
da teoria crítica da Escola de Frankfurt, que ganha corpo sob
condições muito diversas e bem menos adversas do que aquelas
em que Benjamin escreve, e que em muitos aspectos se mostra,
nos anos difíceis do exílio de Benjamin em Paris, particularmente
crítica em relação a algumas das suas obras (apesar de tudo aceitas
por Max Horkheimer para publicação na Revista de Investigação
Social, então sediada em Nova Iorque). Apesar disso, algumas
reservas se poderão colocar às duras críticas de Adorno à teoria
Limiares: sobre Walter Benjamin
Mallarmé em que ele define a poesia como não inspirada, como feita de palavras […]”
(p. 476).
a nível das consciências individuais). Como já escrevi noutro lugar
(e há muito tempo), a teoria de Adorno reveste-se, também ela, de
um carácter redutor, na medida em que
João Barrento
Adorno e a teoria crítica vêem ainda, em oposição
flagrante com Brecht e Benjamin, a sociedade capitalista de forma
unidimensional (totalmente mercantilizada) e apenas o intelectual
ou o artista como instâncias capazes de penetrar criticamente, 83
por acção individual e no âmbito de uma dialéctica negativa,
a alienação e as ideologias. Também a ideia da obra e dos seus
momentos emancipatórios como heteronomia de si está longe
das concepções mais abertas, de teor funcionalista, de Benjamin e
Brecht, e remete para um telos ideal(ista) que não deixa qualquer
espaço à intervenção da arte num determinado momento histórico.
Brecht via ainda o capitalismo, e a dinâmica própria das suas
crises, como o maior obstáculo ao seu próprio desenvolvimento
(talvez nunca, como na situação actual, isso se tenha tornado tão
evidente); a teoria crítica, pelo contrário, viria defender a ideia
de um sistema capitalista à prova de crises, com uma enorme
capacidade integradora, limitando-se a constatar e descrever esta
João Barrento
Hoje, num contexto civilizacional em que não se descortinam
gaivotas orientadoras, nem à esquerda, nem à direita (há muito
que se deixou de sentir essa necessidade, e vivemos numa alegre
deriva), impõe-se – quando os media deixam que ela exista – a
85
consciência de que, ainda e sempre, tudo são ainda enigmas por
decifrar.
Limiares: sobre Walter Benjamin
86
“Percepção é leitura”:
a cidade, o olhar, a memória
João Barrento
Percepção é leitura.
Legível é apenas o que se manifesta na superfície
(W. Benjamin)
87
Veja-se o filme, de 2005, do argentino David Mauas, Quién mató a Walter Benjamin?,
45
que, depois de uma investigação de três anos em vários lugares da Europa, coloca a hipótese
de a morte do filósofo em Port Bou não ter sido suicídio. O realizador apresenta assim
o filme: “Port Bou, 1940. Em 25 de Setembro, após sete anos de exílio, Walter Benjamin
atravessa os Pirenéus num esforço desesperado de escapar à ocupação de França pelos nazis.
mistério, na fronteira, lugar de eleição do próprio pensamento
de Benjamin.
Como já vimos, a noção de actualidade nunca foi para
Walter Benjamin a do puro imediatismo ou da novidade, era
antes a de um “tempo-de-Agora” (Jetztzeit) que convoca passado
e futuro e tem de se distinguir da mera factualidade e da vivência
daquilo que é de hoje na ordem do imediato e se esgota no
presente. Em rigor, para Benjamin não há presente. “Não consigo
ver o rosto do presente” – é uma das falas atribuídas a Benjamin
Limiares: sobre Walter Benjamin
p. 13-14.
não é, então, aquilo que acontece no presente e que muitos vêem
e vivem à superfície, mas aquilo que nele actua e promete. Não há
actualidade sem consciência da dimensão histórica no presente.
O verdadeiramente actual, lemos no texto que anunciaria a revista
Angelus Novus, que nunca chegou a sair, “emerge sob a superfície
estéril do novo ou da novidade que aos jornais cabe explorar”. A
revista, diferentemente do jornal, deve ser o lugar dessa noção
de actualidade actuante e promissora, e Benjamin vai por isso ao
ponto de, no que respeita à Angelus Novus, afirmar que “a sua
actualidade não se encontra no público. Toda a revista deveria,
como esta, ser implacável no pensamento, imperturbável no que
tem para dizer, ignorando totalmente o público”.47
Por outro lado, anota num dos textos sobre Baudelaire
João Barrento
(“Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire”) que este poeta,
cujo único tema foi a cidade de Paris – melhor, as forças, figuras e
tipos em acção nela –, escreve para um leitor póstumo, ou seja, entre
outros, para nós.48 O próprio Benjamin foi um contemporâneo
89
não militante do pensamento e da arte do seu tempo, um tempo
atravessado por todas as vanguardas (com que não se identificou,
à excepção do Surrealismo, fonte da “féerie dialéctica” que foi
o primeiro projecto d’O Livro das Passagens, a partir de 1927),
tempo subjugado por totalitarismos de vária ordem, testemunho
de algumas das mais marcantes revoluções epistemológicas,
científicas e artísticas da era moderna. E procurou ser actual e
actuante no seu tempo, acompanhando-o através de formas de
intervenção, pela escrita, que o iluminam a partir da distância, lhe
rompem a superfície aparente com o olhar crítico, o ultrapassam
48
“Baudelaire escreveu um livro [As Flores do Mal] que desde logo tinha poucas
possibilidades de ser um êxito de público imediato. Ele contava com um tipo de
leitor como aquele que o poema introdutório descreve. E aconteceu que esse cálculo
correspondeu a uma visão de longo alcance. O leitor para o qual ele escrevia foi-lhe dado
pela posteridade.” (W. Benjamin, A Modernidade. OE, v. 3, p. 105).
pelo recurso a “origens” que se projectam num futuro de que esse
presente vai grávido, salvando-o de se afundar no pântano da
inconsciência de si e das suas raízes ocultas. Segue vestígios de
sentido nas ruínas da História para chegar à sua iluminação, não
epifânica, mas profana e, à sua maneira, “materialista”.
Não é muito fácil ao nosso tempo compreender e seguir
este “método”. Isto, apesar de este nosso Agora neo-europeu
se ajoelhar, com mais fervor e menos consciência, diante dos
mesmos esperpentos ideológicos que Benjamin exorcisou
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
fanal obscur). A pulsão niilista, em Baudelaire e Benjamin, leva-
os a ver o novo que o “progresso” anuncia, ou como sempre-igual,
ou como carregando consigo o estigma do transitório (→Diário,
74-76). Hoje, pelo contrário, o novo é vivido em permanência no
91
seu borbulhar de superfície, sem preocupações de se lhe atribuir
sentidos para além da vivência não reflectida. Chegámos ao ponto
extremo da “pobreza da experiência” que Benjamin aponta como
marca da nossa modernidade. O espelho dessa polis que vive
a vertigem do instante foi, no século XIX, o jornal; hoje é o do
paroxismo da informação. As “redes” são o lugar por excelência
desse “isolamento da informação em relação à experiência”,
antes ocupado, a uma escala infinitamente menor, pelo mosaico
desconexo das notícias de jornal. A “experiência” (Erfahrung),
no sentido em que Benjamin usa o termo, reduz-se na exacta
medida em que cresce a informação, que é mera acumulação
de “vivências” isoladas (Erlebnisse), factos, acontecimentos. Em
“Sobre alguns motivos na Obra de Baudelaire” (mas também nos
escritos sobre Proust, o “contador de histórias” ou “Experiência e
indigência”), Benjamin esclarece:
Segundo Proust, depende do acaso cada indivíduo
adquirir ou não uma imagem de si próprio, ser ou não
capaz de se apropriar da sua experiência. Não é de modo
algum evidente esta dependência do acaso. As coisas da
nossa vida interior não têm, por natureza, este carácter
privado sem alternativa. Só o adquirem depois de se
terem reduzido as possibilidades de os factos exteriores
serem assimilados à nossa experiência. O jornal é um dos
muitos indícios dessa redução. Se a imprensa se tivesse
proposto como objectivo que o leitor incorporasse as suas
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
imprevisível da flânerie, que julgávamos definitivamente
enterrado. [...] Paisagem – é isso, de facto, a cidade para o
flâneur. Ou, dito de forma mais exacta: para ele, a cidade divide-
se nos seus dois pólos dialécticos. Abre-se-lhe como paisagem,
93
encerra-o em si como uma sala”.51 O acaso, fundamento da
memória involuntária que rege essa deambulação, dá lugar à total
previsibilidade. Mingua a experiência interior, ampla e livre, e
cresce a vivência estreita do sempre-igual. O valor ritualístico da
experiência cedeu ao mero valor de troca da vivência isolada do
idêntico.
Fantasmagorias
Tensões
João Barrento
a forma e o método adequados para trazer à luz, nos moldes
de um pensamento imagético e de uma armadura alegórica,
algumas das grandes fantasmagorias do século no quadro da
grande cidade nascente. O seu método – que vem também sendo 95
o meu – pretende ser deíctico e não discursivo, demonstrativo e
não argumentativo. É o método da “montagem literária” usado
nas Passagens, nos fragmentos de Parque Central e também já
em Rua de Sentido Único, e que Benjamin sintetiza na afirmação
lapidar: “Não tenho nada para dizer. Apenas para mostrar.” (O
Livro das Passagens, N1a, 8). É o método da “actualização”, da
presentificação sensível, segundo uma lógica dos extremos que
melhor pode abarcar as constelações contraditórias na análise da
metrópole parisiense em fase de grandes transformações (ou da
Berlim dos anos de entre as guerras, explodindo de modernidade
e chocando o “ovo da serpente”, que Ingmar Bergman irá
mostrar no filme com o mesmo nome, cuja matriz se encontra
em Brecht, n’A Imparável Ascensão de Arturo Ui): os complexos
cidade versus paisagem, exterior versus interior, racionalidade
versus mito, capitalismo versus mundos oníricos, técnica versus
nostalgia. Enquanto alguns iam lendo unilateralmente o processo
da modernidade como “desumanização” (Ortega y Gasset, em A
Desumanização da Arte ou A Rebelião das Massas) ou triunfo da
“técnica” em conflito com o Ser (Heidegger), que impediriam
os indivíduos de “habitar poeticamente esta Terra” (fórmula
hölderliniana onde, afinal, ecoa o mito insustentável das Idades de
Ouro do Idealismo), Benjamin humaniza dialecticamente o seu
ponto de vista ao fazer da cidade a morada possível do homem
moderno e o seu inferno, lugar de tipos humanos “heróicos” (o
Limiares: sobre Walter Benjamin
Segunda versão (francesa) da sinopse d’O Livro das Passagens, GS, v. V, p. 74.
53
João Barrento
modernos do século XX, com menor agressividade em obras
como o Livro do Desassossego, e de forma mais intensa e violenta
na literatura e na pintura do Expressionismo alemão, por exemplo
em poemas como este:
97
Fim...
55
Uma pseudo-dialéctica que comento em “Dialéctica das aparências”, no livro A Escala
do meu Mundo (Lisboa, Assírio & Alvim, 2006): “O que verdadeiramente nos distingue
é o facto de hoje ninguém querer ser o que é. E de se tomar isso como qualquer coisa de
‘natural’. E, uma vez naturalizado o simulacro, uma branda dialéctica das aparências (aliás,
muito social-democrata) tomou conta do ‘mundo da vida’. E está aí para ficar”. (p. 113-
114).
Raparigas com gestos de quem sempre aqui
Esteve, e o eléctrico tocando sem parar...
Toda esta dor, que quer ela de mim?
Não fiz mal a ninguém neste lugar.
56
Poema de Ernst Blass, 1912. In: A Alma e o Caos. 100 poemas expressionistas. Tradução
de João Barrento. Lisboa, Relógio d’Água, 2001. Vd. também o meu livro A Poesia do
Expressionismo Alemão. Lisboa, Editorial Presença, 1989.
57
Cimêncio, de Diogo Lopes e Nuno Cera. Lisboa, Fenda, 2002. Também aqui a flânerie
se tornou ainda mais impossível: o “cimêncio” (neologismo formado a partir de cimento
e silêncio) é um não-lugar sem paisagem, se por paisagem entendermos, classicamente, o
caos do visível transformado numa visão ordenada. No pesadelo dos subúrbios, escreve
o crítico Delfim Sardo no posfácio deste livro, “a paisagem volta a percorrer-se entre o
caminho da arquitectura e da escrita, entre a fotografia e o cinema, entre uma banda
sobora inaudível e ninguém”. Mas essa paisagem “não institui nenhum ponto de vista,
ninguém a vê. Ninguém está lá. Ninguém. Shhh. Cimêncio.”
pela cidade e os seus avatares (dos Futuristas a Alfred Döblin e às
utopias urbanas futurantes de Yona Friedmann, Paolo Soleri ou o
grupo Archigram).
O trabalho do flâneur
João Barrento
motivo central da experiência da cidade em Benjamin (e não
apenas dela, também do cinema). Como se, aquém e além da
observação atenta (que é mais a do “detective”), fosse a própria
cidade a tornar-se sujeito activo da experiência e a agir sobre o 99
flâneur distraído e atento, absorto e disponível. É também assim
que Georg Simmel e Freud vêem os efeitos dos estímulos fortes
da grande cidade sobre os transeuntes no início do século XX
(que Benjamin descreve com recurso à categoria do “choque”):
Georg Simmel, “As grandes cidades e a vida intelectual”. In: J. Barrento, Literatura
58
Alemã. Textos e Contextos. Vol. II: O século XIX. Lisboa, Presença, 1989, p. 283.
É assim que os Expressionistas, na poesia ou no teatro,
sonham transfigurações míticas e fazem nascer a metáfora
da cidade-monstro da mente de homens lúcidos no meio da
multidão anónima:
No terraço do Café Josty
Poema do expressionista Paul Boldt, em: João Barrento, A Alma e o Caos. 100 poemas
59
João Barrento
e apressado, neutralizado numa pós-modernidade desencantada,
não no sentido que Max Weber deu à expressão Entzauberung
der Welt (a perda da magia do mundo), antes no de um tédio
inconsciente (e não cultivado, como o spleen de Baudelaire) ou 101
de um entusiasmo artificial que dominam as massas acomodadas
e auto-satisfeitas, em existências sem exterior, sem contraponto
reactivo. O flâneur de Baudelaire, esse “botânico do asfalto” (OE
III, 38), figura própria de “povos com imaginação” (OE III, 51) e
de épocas que conhecem o tempo que se evola das coisas, a aura
temporal que lhes amplifica os sentidos, protesta ainda com o seu
passo de tartaruga contra a divisão do trabalho (e será vencido
pelo taylorismo). Hoje, esfumou-se totalmente a sua capacidade
de contemplação e de sonho, até da própria mercadoria, reduzida
ao mais nu e cru valor de troca, no seu mais trivial ou mundano
valor de culto. O shopping não é a passage: os próprios nomes
o dizem, nas suas origens anglo-saxónica e parisiense. Num
60
F. Pessoa, Livro do Desassossego, por Bernardo Soares. Prefácio e organização de
Jacinto do Prado Coelho. Lisboa, Ática, 1982, v. I, p. 123-24.
compra-se e vende-se, no espírito de um pragmatismo que
impede o olhar livre sobre as coisas, na outra flana-se, alimenta-
se o olhar, o desejo e a imaginação. Já o grande armazém,
aonde vai dar o “homem da multidão” do conto de Poe, lembra
Benjamin, é a forma decadente de uma flânerie que transformou
o exterior (a passagem, a rua) em interior. No grande armazém
e no centro comercial é o contrário que acontece: um interior
gigantesco transforma-se em exterior, modelo reduzido da
quadrícula da cidade moderna. Aí, a atracção fatal da “alma da
Limiares: sobre Walter Benjamin
Para o desenvolvimento desta temática, ver o último ensaio deste volume, “Ler o que
61
não foi escrito. Conversa inacabada entre Walter Benjamin e Paul Celan”.
Mas também essa face do sempre-igual se pode transformar
– já se transformou – em motivo de culto, nomeadamente
em formas da melancolia urbana moderna, num spleen dos
subúrbios diferente do de Baudelaire, visto por Benjamin como
“o sentimento da catástrofe permanente” (OE III, 154). O nosso é
menos ambicioso, dispensa a filosofia da História e confunde-se
com a revolta dos excluídos. É um “exercício da visão no plano
do horizonte a que temos acesso” (Delfim Sardo em Cimêncio)
no universo urbano/suburbano de hoje. Um horizonte que cria
expectativas e mobiliza para a acção e a ira sob a égide de um “no
future”, também diferente do “dique contra o pessimismo” que
é, para Benjamin, o spleen baudelairiano, indiferente ao futuro
(OE III, 151). A nova flânerie é nocturna e violenta, desesperada
João Barrento
e ressentida. O seu móbil já não é o da experiência do olhar
(embora se continue o culto da deriva, mas agora na horda, no
gang). Este spleen remete para outros horizontes, e tem outras
implicações que vão para além de meros “exercícios da visão”.
103
Impõe à política e ao pensamento arquitectónico e urbanístico
de hoje um compromisso com a história e com o humano, que
será, ou realizado ou abortado. E o resultado será, ou um campo
de ruínas, ou uma paisagem-outra (aquela que uma autora
como Maria Gabriela Llansol inventa como “mais-paisagem”,
propiciadora da recuperação da capacidade do olhar recíproco
original). A cidade actual, em que o cerne histórico se esvazia (à
noite) e os subúrbios são desertos (de dia), é uma paisagem sem a
medida humana (de que fala o fragmento de Hölderlin “Em azul
ameno [...]”, e que, de outro modo, os novos tipos humanos ainda
emprestam à Paris de Baudelaire), um território marcado por um
duplo vazio. Um grande texto/tecido à espera de ser reescrito, no
espírito de uma nova polis que fosse construída e vivida à imagem
de um paradigma humano, tão humano que custa a crer que se
imporá um dia, tão viciados estamos em noções estreitas do
humano. Benjamin fala de um novo mundo a nascer das ruínas
da velha cidade. Nós só podemos falar de um mundo em devir
para o incerto, neste momento final de uma modernidade que a
si mesma se superou para entrar na fase da sua decadência – que
sempre marcou a ponta final das chamadas “grandes épocas” e dos
grandes impérios. Nesses momentos vive-se em falso, em universos
de ilusão e fantasmagoria, como o das passagens do século XIX,
espelho do mundo burguês que as gerou e do “luxo industrial”
da mercadoria produzida em série. Nisto, não são diferentes dos
Limiares: sobre Walter Benjamin
Percepção é leitura
Legível é apenas o que se manifesta na superfície.
[...]
Há três configurações na superfície absoluta: sinal,
percepção e símbolo. A primeira e a terceira têm de se
manifestar na forma da segunda. (GS VI, 32).
João Barrento
fotógrafo – um fotógrafo que capta a essência das coisas.
Mas a natureza constitutiva deste tempo terreno e do
seu aparelho só lhe permite fixar na chapa o negativo da
essência. Ninguém é capaz de ler essas chapas, ninguém
consegue extrair do negativo da essência das coisas, tal 105
como o tempo a mostra, a sua verdadeira essência. E o
elixir para a revelação ninguém o conhece. Aqui entra
Baudelaire: também ele não dispõe do líquido vivo em que
essas chapas teriam de ser mergulhadas para mostrarem
a verdadeira imagem das coisas. Mas só ele, num esforço
intelectual enorme, consegue ler essas chapas. Só ele está
em condições de extrair do negativo da essência uma
intuição (Ahnung) da imagem que esse negativo esconde.
É a partir dessa intuição que o negativo da essência fala
em toda a sua poesia. (GS VI, 133).
João Barrento
aproxima dos procedimentos surrealistas: faz convergir imagens
cruzadas e inesperadas para sugerir um universo mais profundo,
com ligações imperceptíveis, como no sonho. A imagem sobre-
real da cidade em Baudelaire e Benjamin é o resultado de um
107
trabalho de percepção anamnésica que recupera imagens do
passado para construir uma visão do espaço urbano em chave de
futuro, “anywhere out of this world”, como diz o título de um dos
poemas em prosa de Baudelaire (em que a cidade de referência,
curiosamente, é Lisboa). Aqui, o presente é o espaço neutro,
mas activo, onde essa operação é possível, algo assim como um
catalizador do tempo.
As formas da memória
João Barrento
dados do passado. O instrumento do trabalho sobre o passado
(a lembrança subjectiva) em Benjamin é a escrita, e tem vida e
imperativos próprios. Não é o sujeito que dispõe da sua memória,
é a sua memória (involuntária, recordação ou rememoração,
109
presentificação anamnésica) que dispõe dele, sob as mais diversas
formas e nas mais diversas linguagens.62
Vd., a este propósito: V. Borsò/G. Krumeich/B. Witte (Ed.). Medialität und Gedächtnis
62
João Barrento
do flâneur são as ratoeiras do trânsito de hoje (ou os corredores
do centro comercial); a floresta onde ele se perde por gosto é a
selva que nos consome; à cidade como campo de alegorias que
emergem do meio da multidão corresponde o reino sempre-
111
igual dos rostos tristes, abúlicos ou agressivos, das massas
híbridas de hoje; o choque produtivo amorteceu na sequência
entediante e mortífera de acontecimentos de rotina, mas cresceu
quantitativamente; a cidade-texto e palimpsesto gerou espaços de
redes saturadas e asfixiantes; a paisagem do inorgânico acentua-
se em cenários de pesadelo
E, tal como em Baudelaire, a “vida anterior”, “o objecto
da experiência no estado da similitude”, sinónimo do belo (OE
III, 135), continua a ser o sonho de algo de irremediavelmente
perdido, e hoje mais distante. “É na beleza” – lembra Maria
Filomena Molder – “que Baudelaire vislumbra a saída do círculo
infernal. E Benjamin tomou-a incansavelmente como objecto da
sua procura, respondendo ao pedido que cada coisa nos faz de
reconhecermos aquele ponto, aquele nó, aquela saliência quase
escondida, aquela ruga indelével (→Diário, 206-207), que não se
encontram em mais nenhuma coisa, o que exige um afundar-
se nos pormenores de cada coisa”.63 No lugar desta busca de
beleza e da retribuição do olhar – mais ainda no mundo actual
destituído de memória – instala-se o reverso dessa vida anterior,
o Nada festivo, um outro “apocalipse alegre” (Hermann Broch).
É nesse deserto de experiência que nos encontramos: destituídos
da tradição que ainda nos poderia falar e insensíveis à aura das
coisas que nos olham.
Limiares: sobre Walter Benjamin
112
Maria Filomena Molder, Semear na Neve. Estudos sobre Walter Benjamin. Lisboa,
63
João Barrento
Auf der Grenze liegen immer die seltsamsten Geschöpfe
(A fronteira é o lugar das mais estranhas criaturas)
(Lichtenberg)
Die Schwelle ist ganz scharf von der Grenze zu scheiden. 113
(O limiar deve distinguir-se claramente da fronteira)
(Walter Benjamin, O Livro das Passagens, O 2a,1)
No limiar
João Barrento
convivemos diariamente: a cidade, a mercadoria, o cinema,
a moda, a fotografia, os interiores da casa – o que não impede
que todas essas análises revelem um nível de complexidade e
de profundidade invulgares e comparáveis a poucos outros no
115
carácter único das suas deambulações. A existirem semelhanças
será com alguns dos ensaios de sociologia da cultura de um
autor como Georg Simmel, que no entanto pratica um tipo de
análise sociológica eivada de um simbolismo e de um certo
impressionismo a que o pensamento de Benjamin é avesso.
Walter Benjamin é, de facto, um pensador múltiplo e não
situável, um dos grandes polígrafos do século XX, um filósofo
atípico, pensador para-doxal por excelência (i. e.: que pensa
sempre nas margens, no limiar da doxa), filósofo da história,
da linguagem, da política, da ideologia, da estética, sociólogo,
historiador da literatura e da arte, crítico, cronista e contista,
poeta e coleccionador, teorizador dos novos media (a fotografia,
o cinema, a publicidade) e autor de alguns dos grandes ensaios
literários do séc. XX, sobre Kafka e Proust, Goethe e Brecht,
o Barroco e o Surrealismo. E, o que era quase inevitável, um
fragmentarista (mas não um autor do fragmento como forma)
que só escreveu dois livros, numa obra imensa – duas teses
académicas, uma das quais, um dos livros do século, foi recusada
pela Universidade de Frankfurt. Autor de fragmentos, portanto,
mas não assistemático, nem aforístico, como outros de uma
tradição filosófica contra-corrente, em que Nietzsche é o grande
exemplo. Se a “condição textual” desta Obra é o fragmento, como
escrevi no posfácio à edição portuguesa em curso, essa “exigência
fragmentária” (Blanchot) – ditada muitas vezes pelos próprios
Limiares: sobre Walter Benjamin
Método é desvio
João Barrento
aos contextos orgânicos da vida: é destruído e conservado
ao mesmo tempo. A alegoria agarra-se às ruínas. É
a imagem do desassossego petrificado. O impulso
destrutivo de Baudelaire não está nunca interessado na
117
eliminação daquilo que lhe caiu nas mãos. (OE III, 161).
por uma nesga estreita que se abre no tempo não linear, em cada
momento de esperança e utopia da história humana no seu plano
imanente, em cada um dos pequenos “desvios” que se podem dar
no acontecer humano. Mais do que isso não podemos esperar que
aconteça. E quando isso acontece, estamos num espaço-tempo de
mudança, nos limiares entre mundos. Benjamin vai buscar a ideia
das mudanças na história como resultado de pequenas deslocações a
uma parábola hassídica do judaísmo do Leste (que, afinal, se revelou
118 ser uma leitura da Cabala pelo amigo Gershom Scholem), segundo a
qual a vinda do Messias não corresponderia a uma mudança violenta
do mundo, mas apenas a um ligeiro ajustamento. Esta ideia vem na
linha do citado Fragmento teológico-político, onde o reino messiânico
(que mais não é do que a nostalgia de felicidade no mundo) é visto
como estando já presente na ordem da imanência (como em Kafka,
quando sugere que o Juízo Final acontece já aqui).
No projecto do humano que orienta toda a sua Obra,
também a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol encontra
um nome para esse “minimalismo messiânico”, como lhe chamou
Hans Blumenberg, lembrado por António Guerreiro em páginas
muito pertinentes para esta questão dos pequenos desvios da
História – e suas incalculáveis consequências.64 Llansol fala
Cf. António Guerreiro, “História e apocalipse”. In: O Acento Agudo do Presente. Lisboa,
64
João Barrento
“desvio” em relação às leituras dominantes (de factos ou de
quimeras) que, por pequeno que seja, implica, naturalmente,
riscos. A permanência no limiar contém o perigo da indecisão
(nada que Benjamin não conhecesse bem), a “topografia
119
dos limiares” (Menninghaus), físicos e simbólicos, integra os
extremos da protecção e do medo do desconhecido (entre estes
dois extremos se move também o acto de escrita para M. G.
Llansol). Mas o “método” seguido implica e integra esses riscos, e
é largamente compensado pela “salvação” que propicia do que há
de mais essencial nos objectos – quase sempre textos – de que se
ocupa: aquilo a que chama o seu “conteúdo de verdade”.
Se tivesse de resumir numa frase o método de Benjamin,
diria que ele pretende descobrir o mais distante pela observação
incansável e implacável do mais próximo. E isto exige um “desvio”,
seguindo por vezes os mais imprevisíveis caminhos que levam à
percepção do “modo de ser simples das coisas” (OE I, 22). Mas
será bom desfazer aqui uma possível confusão que poderá nascer
Maria Gabriela Llansol, Finita. Diário II. 2. ed. Lisboa, Assírio & Alvim, 2005, p. 43.
65
facilmente em leitores portugueses, entre “o modo de ser simples
das coisas” e “o mistério das coisas é as coisas não terem mistério
nenhum”, do nosso Alberto Caeiro – uma invenção literária de
Fernando Pessoa que, não o esqueçamos, não tem autonomia,
é parte de uma constelação pessoana muito mais complexa e
também ela constituída por zonas heteronímicas que são limiares
umas das outras! De facto, aquilo que neste confronto se esboça é
a oposição entre o alegórico e o elementar, entre a disponibilidade
(da coisa) para a significação – toda e qualquer, aquela que o olhar
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
janelas” (a expressão de Adorno para a obra-mónada autónoma),
isto é, centrado sobre si próprio. O impossível a que o método de
Benjamin aspira seria qualquer coisa como uma onto-história da
arte (→Diário, 77-81).
121
Neste método (em que o objecto/a obra não é acidente
histórico, mas substância de um passado para a iluminação de
um presente) não tem lugar o Eu: Benjamin decidiu um dia, ainda
nos anos vinte, não usar a palavra “eu” nos seus escritos. Mas que
significa dizer Eu, ou silenciar o Eu? Voltamos ao início deste
livro. Quando Walter Benjamin pergunta “Sou eu aquele que se
chama W. B., ou chamo-me simplesmente W. B.?”, e se decide
pela primeira hipótese, está a decidir-se pelo Ser, e não pelo
Nome, a introduzir entre si e si, num limiar da consciência, uma
distância preenchida por uma história que é uma acumulação
de experiência (Erfahrung), diferente da mera vivência pessoal
(Erlebnis), e que lhe permite chegar a um terceiro, mais autêntico,
um Selbst: o si-próprio que é nome próprio – este é, para o
indivíduo W. B., o seu “conteúdo de verdade” (Maria Filomena
Molder desenvolveu já este tema num dos seus mais brilhantes
ensaios, em que se interroga sobre a questão do indivíduo em
Benjamin).66
Limiar e fronteira
66
Maria Filomena Molder, “Aquele que acaba de despertar”, in: Semear na Neve. Estudos
sobre Walter Benjamin. Lisboa, Relógio d’Água 1999, p. 119 segs. O tema é retomado no
seu último livro, O Químico e o Alquimista. Benjamin leitor de Baudelaire. Lisboa, Relógio
d’Água, 2011.
diferentemente da fronteira, que é um lugar que pode assustar
pelo que esconde, o desconhecido do outro lado; o limiar é uma
linha (ampla, mais uma “zona”, como diz Benjamin) de passagens
múltiplas, a fronteira é uma linha única de barragem, num caso
mais traço de união, no outro de separação; enquanto a fronteira
é muitas vezes apenas um lugar burocrático, o limiar é um lugar
onde fervilha a imaginação (e na obra de Benjamin, o livro de
memórias Infância Berlinense: 1900 é disso o melhor exemplo,
cheio de figuras que são guardiões dos limiares, de portas,
portões, varandas, campainhas, corredores que constituem
objectos privilegiados do fascínio da criança – e do filósofo que
mais tarde os transformou em imagens de pensamento, tal como
Proust, um dos autores de Benjamin, deles faz a matéria que no
João Barrento
romance alimenta a memória involuntária). Alguns exemplos,
colhidos ao acaso:
– Os “senhores dos umbrais”: “Entre as Cariátides e
os Atlantes, os putti e as Pomonas que nessa altura 123
olhavam para mim, os que mais me atraíam eram os
daquela estirpe poeirenta dos senhores dos umbrais,
que guardam a entrada na existência ou numa casa.
Porque esses sabem da arte da espera”. (OE II, 84);
– “No limiar entre mito e conto de fadas” (o mundo de
Kafka ou de Ulisses): “Para os incompletos e desastrados
há esperança. O que de mais delicadamente libertador
se reconhece no agir destes mensageiros é uma lei que,
de forma duradoura e sombria, domina o mundo de
tais criaturas. Nenhuma delas tem lugar fixo, nem um
perfil claro e inconfundível [...] Não é possível falar
aqui de ordens e hierarquias [...] Entre os antepassados
que Kafka tem na Antiguidade, não se pode esquecer
o grego, Ulisses, que se situa no limiar entre o mito e o
conto de fadas [...]” (“Kafka”, GS II/2, 415);
– O Surrealismo: no limiar entre vigília e sono: “Tudo
aquilo em que tocava era assimilado. A vida só parecia
digna de ser vivida no ponto em que o limiar entre a
vigília e o sono era percorrido por cada um, como sob
as passadas de imagens que iam e vinham, em massa,
a linguagem ela mesma e mais nada, onde o som e a
imagem, a imagem e o som, se confundiam com uma
exactidão automática e de forma tão feliz que nem uma
fresta ficava aberta para a insignificância do ‘sentido’”
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
versus citação, “memorialismo” e crítica) e objectos (a passage e
as suas múltiplas significações, a loggia e o seu estatuto de lugar-
entre a casa e a cidade). Concretamente, e para escolher apenas
alguns desses conceitos-chave: 125
– a ideia, e o seu lugar entre empiria e conceito;
– o vestígio: o limiar é o lugar onde se detectam vestígios
– do que está para lá deles e pode ser antecâmara, por
exemplo da
– aura: porta de entrada para uma vida-outra da obra,
janela que abre para o horizonte de uma (visionada)
unicidade do objecto (particularmente na arte);
– a obra, porque toda a obra é inacabada e se fica pelo
limiar da sua intencionalidade;
– a citação, como limiar da obra; ou
– o fragmento, como sua promessa;
– a crítica, se por isso se entender uma noção de “crítica
filosófica” que está para lá da crítica historicista e
imanente, e aquém da pura reflexão filosófica, no
encalço de um “conteúdo de verdade”;
– o Schein (brilho, ou aparência), que tanto pode
corresponder ao brilho enganador da fantasmagoria
mercantil, entre valor de troca e valor de uso, como à
bela aparência estética da obra clássico-romântica no
limiar da sua destruição pelas dissonâncias modernas
(já em Baudelaire);
– a alegoria moderna, limiar de todas as significações
possíveis, dispositivo por excelência do transitório e
da fractura (o símbolo, pelo contrário, não conhece
Limiares: sobre Walter Benjamin
126
Ler o que não foi escrito:
conversa inacabada entre Walter Benjamin e
Paul Celan67
João Barrento
Se quisermos olhar a história como um texto, aplica-se a ela o
que um autor recente diz dos textos literários: em ambos o passado
depositou imagens comparáveis às que foram fixadas numa chapa
sensível à luz. “Só o futuro tem reveladores suficientemente fortes para
fazer emergir a imagem em todos os seus pormenores. [...] O método 127
histórico é um método filológico, e assenta sobre o livro da vida.
Hofmannsthal fala de “ler o que nunca foi escrito”.
O leitor que assim lê é o verdadeiro historiador.
(Walter Benjamin, “A imagem dialéctica”, OE IV, 159)
Fala também tu,
fala em último lugar,
diz a tua sentença.
Fala –
Mas não separes o Não do Sim.
Dá também sentido à tua sentença:
dá-lhe a sombra.
[...]
Fala verdade quem diz sombra.
(Paul Celan, “Fala também tu”)
João Barrento
forma da vinda próxima desse reino. Pois na felicidade
tudo o que é terreno aspira à sua dissolução, mas só na
felicidade ele está destinado a encontrar a sua dissolução.
(OE IV, 21)
129
De uma forma ou de outra, a História repetir-se-á, a
suspensão momentânea do Tempo não significará nenhuma das
duas coisas que informaram a visão melancólica, revolucionária
a contrapelo, mas ainda assim utópica, dos dois autores que aqui
ponho em diálogo. Nem o desejo de eternizar a Revolução, que
Walter Benjamin lembra numa das teses Sobre o Conceito da
História (a XV), quando escreve que os revolucionários de 1830,
em vários lugares de Paris, disparavam em simultâneo contra os
relógios das torres para fazer parar o tempo:
68
Paul Celan, “O Meridiano”. In: Arte Poética. Edição e tradução de João Barrento.
Lisboa, Livros Cotovia, 1996, p. 43, 54.
dispositivo de concentração do tempo histórico. E é, no
fundo, sempre o mesmo dia que se repete, sob a forma
dos dias feriados, que são dias de comemoração. Isto quer
dizer que os calendários não contam o tempo como os
relógios. São monumentos de uma consciência histórica
da qual parecem ter desaparecido todos os vestígios na
Europa dos últimos cem anos. Na Revolução de Julho
aconteceu ainda um incidente em que esta consciência
ganhou expressão. Chegada a noite do primeiro dia de
luta, aconteceu que, em vários locais de Paris, várias
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
orla do pântano, quando te trans-
Schwingmoor wenn du vertorfst
formares em turfa
entzeigere ich
eu retirarei os ponteiros
den Gerechten.
ao justo.
131
O último século, febril de novidade e de progresso, foi, na
dimensão mais puramente humana da sua história, um século
do eterno retorno da cegueira. Disso falam, nos mais diversos
planos e ao longo de toda a sua obra, Walter Benjamin e Paul
Celan. Benjamin toma como referência para aquela que deveria
ser a última parte d’O Livro das Passagens – sobre Baudelaire, a
arqueologia do século XX no XIX e uma arrasadora filosofia da
História que lhe está subjacente (ou a sustenta) –, um livrinho
escrito pelo revolucionário da Comuna Louis-Auguste Blanqui
durante uma parte dos mais de trinta anos que passou encarcerado.
A obra chamava-se L’ éternité par les astres: hypothèse astronomique,
e foi publicada em 1872. Benjamin descobre-a na Biblioteca
Nacional de Paris e refere-se a ela, em carta a Max Horkheimer
(de 6 de Janeiro de 1938), como “um estranho achado, cuja
influência sobre o meu trabalho será determinante”. O adjectivo
é de peso, perguntamo-nos em que medida pode este achado –
o desconcertante tratado de um revolucionário desiludido que
propõe um itinerário a um tempo sideral e familiar pelas galáxias
da história humana – ter sido “determinante” para a construção
de uma leitura materialista dos vectores de desenvolvimento e
das contradições e ideologias do capitalismo tardio por Walter
Benjamin nos últimos anos de vida. A verdade é que as analogias
são mais que óbvias, quer com a teologia da História de Benjamin
(sobretudo nas Teses, mas também já em escritos dos anos vinte,
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
Laplace (que afirmava a eterna permanência do sistema solar: vd.
Exposition du système du monde, 1796; e a Méchanique céleste,
5 volumes, 1799-1825), e por um processo que Peirce diria de
“abdução” (um insight súbito, uma visão interior totalizante),
133
Blanqui transpõe a sua leitura desencantada do processo
histórico do seu tempo para a esfera dos astros, estabelecendo
uma analogia entre a história humana e a eterna repetição da
natureza cósmica, através das figuras da suspensão do tempo, da
permanência, da semelhança entre os corpos em rotação eterna,
das “Terras-sósias”, desmistificando assim a ideia de progresso
e de modernidade como a grande fantasmagoria da História.
Uma História que desafia a própria ideia, paradoxal, de uma
“eternidade” actual e sempre fugidia, sustentada por uma noção
do “Agora” como tempo suspenso – e que corresponde, tanto
à ideia do moderno em Baudelaire (veja-se Le peintre de la vie
moderne, ou o soneto “À une passante”) como à desconstrução,
por Benjamin, da ideia de história como um contínuo. Benjamin
deixaria esta ideia claramente expressa nas Teses XIV e XV de
Sobre o Conceito da História:
A história é objecto de uma construção cujo lugar é
constituído, não por um tempo vazio e homogéneo,
mas por um tempo preenchido pelo Agora (Jetztzeit).
Assim, para Robespierre a Roma antiga era um passado
carregado de Agora, que ele arrancou ao contínuo da
história. E a Revolução Francesa foi entendida como uma
Roma que regressa. Ele citava a velha Roma tal como a
moda cita um traje antigo. A moda fareja o actual onde
quer que se mova na selva do outrora. Ela é o salto de
tigre para o passado. Só que ele se dá numa arena em que
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
vivendo na sua prisão como num espaço sem fim, para
em breve soçobrar com o globo que suportou com o mais
profundo desprezo o fardo do seu orgulho. E a mesma
monotonia, o mesmo imobilismo nos outros astros. O
universo repete-se sem fim e marca passo sem sair do 135
mesmo lugar. Imperturbável, a eternidade representa, até
ao infinito, o mesmo espectáculo.69
*
A História como pântano, a História, uma fantasmagoria
cósmica do eterno retorno do mesmo. São leituras marcadas,
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
ou de segundo grau, quando em vários poemas se alude a motivos
benjaminianos.
Mas há sobretudo uma diferença essencial: Benjamin é,
em muitos aspectos – desde logo por nascimento – um autor do
século XIX, não tanto pelo seu método, “alegórico”, assistemático, 137
da montagem, que é iminentemente moderno, e mesmo pós-
moderno, mas pelos focos de interesse dominantes da sua obra.
Walter Benjamin é filho de uma época e de uma geração – a que
nasceu na última década do século XIX – que se formou no espírito
filosófico dos grandes debates de ideias alimentados pela crítica da
cultura e da linguagem, o cepticismo e o relativismo, a consciência
negativa e o agudizar das contradições do capitalismo tardio. É,
como sugere Hans Mayer na sua monografia Der Zeitgenosse
Walter Benjamin (Walter Benjamin, Nosso Contemporâneo), uma
geração de solitários e desencantados votados ao fracasso, como
não o fora a dos nascidos nos anos setenta e oitenta, mais sólidos
e até eufóricos, e de que Thomas Mann poderia ser tomado como
o melhor “representante” – um termo muitas vezes aplicado ao
Hans Mayer, Der Zeitgenosse Walter Benjamin. Frankfurt a.M., Jüdischer Verlag, 1992,
71
p. 13-14.
vai do negro ao branco: da visão negativa da história (presente)
– na paisagem de devastação que o Anjo da História tem à sua
frente, no olhar do alegorista melancólico e na “mortificação” do
mundo (em Benjamin), ou no metaforismo da morte, das trevas,
do amargo (em Celan). Visão negativa na qual haverá, no entanto,
lugar para a utopia e a esperança messiânica – nas configurações
várias de uma redenção neste mundo. Em Benjamin, ela é dada
pelas imagens da “palhinha”, da “lâmpada eterna”, da “pequena
porta” por onde pode vir o Messias, chamado num momento de
Eingedenken (presentificação anamnésica) do passado e da sua
latência utópica, como se poder ler nas Teses e no Fragmento
Teológico-Político:
João Barrento
causal entre vários momentos da história. Mas um facto,
por ser causa de outro, não se transforma por isso em
facto histórico. Tornou-se nisso postumamente, em
circunstâncias que podem estar a milénios de distância
139
dele. O historiador que partir desta ideia desfia os
acontecimentos pelos dedos como um rosário. Apreende
a constelação em que a sua própria época se insere,
relacionando-se com uma determinada época anterior.
Com isso, ele fundamenta um conceito de presente como
“Agora” (Jetztzeit), um tempo no qual se incrustaram
estilhaços do messiânico.
B. O tempo que os áugures interrogavam para saber
o que ele trazia no seu ventre não era certamente visto
como tempo homogéneo ou vazio. Quem tiver isto
presente, talvez possa fazer uma ideia de como o tempo
passado foi experienciado na presentificação anamnésica
(Eingedenken) – exactamente dessa maneira. Como se
sabe, os Judeus estavam proibidos de investigar o futuro.
A Tora e as orações, pelo contrário, ensinam a prática
dessa presentificação anamnésica. Isto retirava ao futuro
o seu carácter mágico, que era aquilo que procuravam os
que recorriam aos áugures. Mas isso não significa que,
para os Judeus, o tempo fosse homogéneo e vazio, pois
nele cada segundo era a porta estreita por onde podia
entrar o Messias. (OE IV, 20).
“Só o próprio Messias consuma todo o acontecer histórico,
nomeadamente no sentido de que só ele próprio redime,
consuma, concretiza a sua relação com o messiânico.
Por isso, nada de histórico pode, a partir de si mesmo,
pretender entrar em relação com o messiânico. Por isso, o
reino de Deus não é o telos da dinâmica histórica – e não
Limiares: sobre Walter Benjamin
Ao subir da
tela,
desejoso de mudança:
um azul que tudo inunda.
Nas suas margens, branco como o dia:
o tempo desta imagem.
João Barrento
Jünger (1932) e Heidegger a tematizaram – embora tenha
escrito, em 1930, sobre a mística da guerra em Jünger como
“a deliberada transposição da arte pela arte para o plano da
guerra” e desmistificado o conceito de “mobilização total” como 141
a última expressão do idealismo alemão com vestes heróicas
(vd. “Theorien des deutschen Faschismus” [Teorias do Fascismo
Alemão], de 1930). Mas ainda nestas opiniões sobre um autor
do século XX o seu ponto de vista e o seu sentido da história são
mais marcados por uma “modernidade” que é a da grande era dos
impérios que termina com as “tempestades de aço” da Primeira
Guerra e vê as consequências da derrocada prolongarem-se pelos
anos vinte. Uma modernidade em relação à qual Benjamin foi
sempre contemporâneo, mas não militante. De facto, ele não é
do seu tempo: acompanha-o à distância, observa-o criticamente,
rejeita-o, ultrapassa-o, refugia-se em “origens” que faz saltar, não
Paul Celan, A Morte é uma Flor. Poemas do espólio. Tradução, posfácio e notas de João
72
João Barrento
[...] eu sei, meu irmão, eu sei que me encontrei contigo
aqui, e que conversámos muito, e as dobras além, tu sabes
que elas não estão lá para os homens nem para nós, que
fomos andando e nos encontrámos [...], nós, com os 143
nossos nomes, os indizíveis, nós com a nossa sombra, a
própria e a estranha, tu aqui e eu aqui. (1988, p. 40).
Maria Filomena Molder, Semear na Neve. Estudos sobre Walter Benjamin. Lisboa,
74
João Barrento
encontra com tais pensamentos.
Ninguém pode dizer quanto tempo durará ainda esta pausa
na respiração – o alimentar esperanças e o pensamento. O
reino do que é “veloz”, que sempre foi o do “lá fora”, ganhou
mais velocidade. O poema sabe isso, mas mantém a sua
145
rota em direcção àquele “Outro”. (p. 55)
Varrida pelo
vento dardejante da tua Palavra
a variegada desconversa da vida
vivida – as cem
línguas do im-
poema, o niilema.
[...]
Fundo
na fenda do tempo
no
favo de gelo
espera, cristal de sopro,
o teu testemunho
irrefutável.75
Mas é preciso que fique desde já claro que esse Outro não
releva aqui da psicanálise, nem é aquele Outro que atravessa
todo um século como figura do desassossego, do cortejo infernal
Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde. Antologia Poética. Selecção, tradução e introdução
75
João Barrento
incontornável e necessário. Retomo o que aí, no posfácio à Arte
Poética de Paul Celan, escrevi a propósito do termo alemão para
“acontecimento” (Er-eignis):
João Barrento
e também as categorias com que aí se opera são de orientação
“originária”: regressão, recalcamento, sublimação, pulsão,
latência.
Entre os filósofos, Heidegger está intrinsecamente
contaminado pela mitologia das origens (e não só da obra de
149
arte): o seu método é o de um fascinante, mas por vezes ominoso,
onto-etimologismo. Ainda Adorno, apesar da vivacidade com que
repudia as teorias puristas para a arte moderna, ao ver essa arte
como “historicamente imanente” e a palavra como manifestação
não mimética (não mediatizada) da negatividade do real, se
faz eco da nostalgia da palavra original (a parole essentielle de
Mallarmé? a “palavra meridional” de Gottfried Benn?), que
atravessa igualmente os primeiros ensaios de Benjamin sobre
a linguagem, e depois sobre a tradução. A teoria adorniana do
carácter-de-linguagem da arte (Sprachcharakter der Kunst), que
parece vir na mesma linha do que Benjamin via, por exemplo
na poesia de Hölderlin, como o mutismo da palavra, o branco-
de-linguagem da expressão (Sprachlosigkeit des Ausdrucks), leva
a uma espécie de animismo estético. A utopia de Adorno não
era, no fundo, regressiva, era a da “superação” da reificação pela
arte (hélas, cherchez la femme! É o regresso das velhas propostas
idealistas da “educação estética”, da “permanência da arte”, título
de um problemático livro de Herbert Marcuse que cá chegou
como A Dimensão Estética). Mas a realidade ultrapassou-o, na
promíscua, mas feliz, co-habitação da arte com a indústria da
cultura na pós-modernidade.
Em Benjamin, e nomeadamente em Origem do Drama
Trágico Alemão, a categoria da origem, que aqui se confunde com
a de natureza (“a natureza da criação absorve em si o acontecer
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
o papel de obsessão ou quase superstição na modernidade
estética e filosófica, é uma “invenção natural”. Todo o regressus
ad uterum o seria, para este fascinante autor. O que o torna
reclamável para um paralelo com Benjamin é a sua ideia de que
151
a matéria do passado se abre num vasto leque de possibilidades
para o sujeito do presente que faz desse passado um objecto de
fruição. É central, aqui, a distinção entre o jadis (o outrora, uma
noção distante, nebulosa e dessubjectivada de origem: “o jadis
é o passado no instante em que se junta à origem”78) e o passé
(um passado historizado por e para sujeitos). Quignard escreve,
e podia ser Benjamin:
Vd. Stéphane Moses, “Ideen, Namen, Sterne. Zu Walter Benjamins Metaphorik des
79
Ursprungs” [Ideias, nomes, estrelas. Sobre o metaforismo das origens em W. B.], in:
Ingrid e Konrad Scheuermann (Ed.), Für Walter Benjamin [Para W. B.]. Frankfurt a. M.,
Suhrkamp Verlag, 1992, p. 185.
Benjamin de cariz mais mítico que antropológico. O inaudito é
o Já-não das actualizações, sempre surpreendentes, de um “índex
secreto” de momentos do passado salvos para configurar um
presente, na filosofia da História de Walter Benjamin, e que Paul
Celan transpõe para o plano da língua, que está permanentemente
a ser actualizada, isto é, posta em acto e renovada – mas não
pelo neologismo vanguardista, antes por um método de busca
de vestígios perdidos no passado da língua, que é também o de
Benjamin: ver a História, também a da língua, como um texto, e
lê-lo no sentido do “despertar de um saber do passado ainda não
consciente” (GS V/I, 572). Voltarei, no fim, a esta conjunção entre
História e Linguagem, que é, como se está vendo, o verdadeiro fio
condutor da minha reflexão.
João Barrento
No poema, algo acontece então a partir de uma origem – e
com destino a uma outra, futura. Pode ser este o sentido da sempre
referida imagem de Paul Celan para o poema como mensagem na
garrafa, e é este o fundamento da sua poética, antimonológica,
153
do dizer: dizer para e com o Outro (ou, diria Levinas, para e
com “o seu rosto que fala”). Não se trata, pois, de uma poética
moderna autotélica e fechada, mas de uma poética do encontro
na qual a revelação intencionada em cada poema é a do espanto
perante o ente, ou, na formulação muito mais viva e exacta de
Maria Filomena Molder, que já usei antes, perante “o que está a
ser” – e porque está a ser, diz-nos respeito. Deste ponto de vista,
a poesia de Paul Celan não é, contra todas as aparências, uma
poesia da morte, ou para a morte (incluindo a da linguagem),
mas do renascer, porque – para falar ainda com Benjamin –
nem nós somos meros seres para a morte, nem a linguagem nos
abandonou, apesar de toda a sua opacidade, dos seus limites e da
retórica ritualizada da sua insuficiência (coisa em que Benjamin
nunca acreditou e que Celan sempre desafiou): “fomos esperados
sobre esta Terra” (Teses Sobre o Conceito da História, II), vimos de
origens que querem ser salvas para o presente, e só na linguagem
isso pode acontecer – ainda que o presente seja um deserto. O
poema é o lugar dessa salvação, como também sabia Hölderlin,
uma presença tutelar em Celan, quando deixa, num fragmento
poético, as linhas: “Mas permanece um vestígio, / Afinal, de uma
palavra, que um homem busca. / O lugar, porém, era // O deserto.”
É neste sentido que, em O Meridiano, se diz que “o poema é
solitário e vai a caminho”. É neste sentido que ele, por ser contra-
palavra, por implicar uma mudança na respiração, por nascer da
Limiares: sobre Walter Benjamin
*
Neste processo, comum a Paul Celan e Walter Benjamin, de
busca de vestígios de sentido nas ruínas da História, a linguagem
dos dois autores revela muitas vezes afinidades (no seu carácter
elíptico, esotérico e fragmentário), e o método é o mesmo: o de
154 uma micrologia minimalista que arranca à opacidade do in-
significante os sentidos mais secretos dos grandes movimentos
da História e dos abismos da linguagem. Num certo sentido,
trata-se, num caso como no outro, de “ler o que nunca foi escrito”
(OE IV, 159), de uma “leitura antes de toda a linguagem” (GS II/1,
213), capacidade que Benjamin remete para um estádio mágico-
mítico de relação com o mundo, antes da “profanização”, filo- e
ontogenética, da linguagem humana. Ler um século, ler uma
época, escreveu também algures Hans-Georg Gadamer, implica
ter consciência de que estamos a interrogar-nos “sobre algo que
não está à luz do sol”. É uma reflexão sobre o secreto, sobre traços
nem sempre visíveis de uma constelação problemática. Walter
Benjamin, talvez mais que Paul Celan, tinha plena consciência
desta complexidade. Daí o espectro mais amplo, contraditório e
também problemático, da sua (re)construção de uma imagem da
época a partir das suas raízes no século XIX: desde a arqueologia
social e estética da modernidade até às leituras dos fantasmas
do mundo burguês de 1900 e do seu estridente e apoteótico
estertor nos anos vinte; desde o arco que liga a estética e a crítica
românticas, ou a alegoria barroca, àquela mesma modernidade,
nas figuras de Baudelaire ou do Surrealismo, até aos prognósticos
do fim da arte com o fim da sua aura, pelo advento dos novos
media e das artes mecânicas (a imprensa, a fotografia, o cinema).
Por tudo isso, em Walter Benjamin a leitura dos rastos secretos do
mundo moderno se faz de forma disseminada e fragmentária, em
textos ensaísticos, fragmentos e citações, numa escola de escrita
absolutamente única e sem continuadores (a não ser talvez, hoje,
em pensadores como Giorgio Agamben): a sua escrita não pode
nem quer chegar a encontrar saídas (falaciosas, e que nos deixam
João Barrento
sem mais caminho para percorrer), nem parece interessada em
alcançar qualquer “bom porto”, objectivo último de todos os
sistemáticos e acomodados. A sua busca é, como já foi dito, “uma
peregrinação racional falhada”.
155
Benjamin é um objecto esquivo. É assim que o vê, em 1975,
Jacques Derrida no comentário aos desenhos do italiano Valerio
Adami (posteriormente incluído em La verité en peinture), entre
os quais se encontra um com o título “Retrato de Walter Benjamin”.
Sendo ele esquivo, o nosso modo de aproximação a esse objecto
terá de ser também transversal e diagonal, já que se trata de um
pensamento que busca, no tempo, alguma coisa que escapa à
historiografia e à própria filosofia. Derrida fala da “interpretação
activa de fragmentos radiografados” e da “estenografia épica
[entendo o adjectivo no sentido de ‘narrativa’] de um inconsciente
europeu”.80 Benjamin busca, de facto, dar uma fisionomia ao que
de secreto há numa época (“Escrever história é dar às datas a sua
fisionomia”, lemos em Zentralpark: OE III, 155). E fá-lo, de facto,
João Barrento
prosa [daqui terá saído certamente o título do enigmático livro de
Agamben] coincide com a ideia messiânica da história universal”
(OE IV, 156-57).
Já o dissémos antes: o modo de chegar aos conteúdos de
159
verdade (Wahrheitsgehalt), para lá dos meros conteúdos objectivos
ou materiais (Sachgehalt) é, em Benjamin, o seu método.
Neste método não tem lugar o Eu: Benjamin decidiu um dia,
ainda nos anos vinte, não usar a palavra “eu” nos seus escritos. Mas
que significa, nestes dois, dizer Eu, ou silenciar o Eu? Em rigor,
significa quase a mesma coisa, se não na intenção, pelo menos nos
resultados. Vimos como Walter Benjamin, introduzindo entre si
e si uma distância preenchida pela história, chega a um Selbst: o
si-próprio que é nome próprio. Quando Paul Celan escreve num
poema (com o título “Lob der Ferne” [Elogio da distância]): “Eu
sou Tu quando sou eu”, está igualmente a instituir um Eu marcado
por uma intransitividade de si a si, na medida em que o seu trânsito
vai no sentido de um Tu, que aqui é o Selbst na figura do Outro.
Também esse Tu é um Tu sem sujeito, ou de muitos rostos. Nomeá-
lo, ou nomear o Eu nele, não é dar voz a uma experiência privada,
é dar voz ao que está para lá da História (e da própria arte) – talvez
a utopia daquela Gegen-Wort (contra-palavra) que é a um tempo
palavra-contra e palavra do encontro, suporte de uma experiência
que remete para o Outro absoluto (das ganz Andere) nesse Tu,
um Outro que não é inquietante como a estranha familiaridade
do mundo (e do Eu), mas antes, para usar expressões da própria
poesia de Celan, “a voz pura que lava o mundo” ou “a luz que se
fez”, que aconteceu (Licht war. Rettung [Fez-se a luz. Salvação]: vd.
Sete Rosas…, 133), a salvação prometida no “resto cantável”, nas
Limiares: sobre Walter Benjamin
André du Bouchet, “En torno de la palabra”. In: Rosa Cúbica. Revista de poesía, n. 15-
81
16 (1995-1996), p. 36.
nem sequer na linguagem, um porto seguro e confortável. Por
isso a sua linguagem não pode ser lugar de reconciliação (como
em tantos outros modernos), mas é radicalmente originária (e
original) na sua abstracção dolorosamente concreta. Só assim
essa contra-palavra poética pode ter uma vez mais a pretensão de
neutralizar a negatividade da História e apresentar-se como telos
último de uma assimilação mútua de linguagem e História. Sendo,
como é, linguagem das origens – aquela para a qual também se
orienta toda a especulação de Benjamin –, “nada é antes dela”.82 E
isto tanto pode querer dizer que antes dela é o Nada, como também
que não há mundo (nem história) por detrás dela e fora dela,
como já propunham os postulados antimetafísicos de Nietzsche
(“Acabemos com os mundos por detrás do mundo”) e Heidegger
João Barrento
(“Só onde há linguagem há mundo”).
*
O Eu que se diz (mas falando por e para um Outro) e o
Eu que se esconde (para que o mundo possa emergir), despem- 161
se, em Paul Celan como em Walter Benjamin, de subjectividade.
Por isso os podemos ver a ambos como uma espécie de “homens
sem qualidades” e paladinos de um culto do fracasso, de anulação
deliberada da chamada “personalidade”, gesto em que não estão
sozinhos no seu século (pensemos em Pessoa, Robert Walser,
Kafka, Broch ou Musil). “Heróis do nosso tempo” (como diz o
título da narrativa de Nikolai Lesskov que inspirou o ensaio de
Benjamin sobre “O contador de histórias”), mas sem causa à vista,
a não ser a de uma resistência secreta e esotérica contra o excesso
de ruído e euforia dos tempos, esse seu culto do fracasso haveria
de culminar, como tinha de ser em quem asssume uma forma de
reacção intelectual activa, num acto radical como o do suicídio. De
Vincenzo Vitiello, No dividere il sì dal no. Tra filosofia e letteratura. Bari, Laterza, 1996,
82
p. 105.
Benjamin poderia dizer-se que ele programa o fracasso, se recusa
a esconjurá-lo para afirmar, como faz Ernst Bloch, um “espírito
da utopia”, fazendo antes seu o lema da personagem Segismundo,
do fragmento dramático de Hofmannsthal Der Turm (A Torre):
“Estou bem de mais para poder ter esperança”, ou então de Kafka:
“Há muita esperança, mas não é para nós”. O suicídio terá sido,
neste caso, um gesto radical para, fugindo ao encontro implacável
com a História, antecipar o seu fim (e este “seu” pode ter uma
curiosa dupla valência) e entrar no mundo de uma “actualidade
Limiares: sobre Walter Benjamin
João Barrento
da e com a obra destes dois autores. Esse lugar de sentido é o
de uma atalaia tardo-moderna e periférica da Europa, que só
há pouco tempo deu por eles. Neste Agora dominado por um
hedonismo que não quer ter passado, por um eudemonismo sem
163
ética e incapaz de conviver realmente com a dor, teremos alguma
dificuldade em compreender os seus universos. Este nosso
Agora neo-europeu e português ajoelha-se ainda, embasbacado,
diante daqueles mesmos esperpentos ideológicos e políticos
que assombraram Walter Benjamin e Paul Celan, e que eles
esconjuraram, nomeando-os e pensando-os: a mercadoria, o
autoproclamado progresso, o conforto e a autocomplacência
burgueses, também a barbárie e a profanização generalizada do
mundo (a ausência de sentido do sagrado, que este mundo ilude
entregando-se a formas diversas de superstição e “espiritualismo”
consolador, que confunde também com religião).
Um e outro responderam ao mais secular dos séculos da
história humana, que conheceram na sua fase e na sua face mais
estridentemente bárbara e “forte”, de uma forma surpreendente
que nós, afinal, poderemos talvez compreender à luz do grande
vácuo de sentido histórico que é o nosso Agora: um deles, Walter
Benjamin, o “judeu berlinense frouxo burguês / à espera de
lenine e / do espírito santo” (Alfred Andersch), responde-lhe por
meio de uma construção ideal e alegórica do processo histórico
largamente assente num pensamento de ruínas e da ruína; o outro,
o judeu apátrida Paul Celan, com recurso ao paradoxo que é o
de uma poética dialógica do silêncio. Respostas deliberadamente
– necessariamente – “débeis”, posições enigmáticas servidas
por discursos herméticos e mesmo esotéricos, mas abertos
Limiares: sobre Walter Benjamin
Não te escrevas
entre os mundos,
ergue-te contra
a variedade de sentidos,
João Barrento
165
166
Acompanha CD-ROM
Ritos de passagem:
Diário para Walter Benjamin
João Barrento
167
Limiares: sobre Walter Benjamin
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