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Desenho

Material Teórico
O Desenho Expressivo

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Ms. Miguel Ambrizzi

Revisão Textual:
Profa. Dra. Selma Aparecida Cesarin
O Desenho Expressivo

• Técnicas Pictóricas: O Uso da Cor


• Figuração e Abstração
• Desenhando com o Lado Direito do Cérebro
• Exercício Desenhando de Cabeça para Baixo
• Representando Emoções
• O Desenho Livre Infantil

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Abordar diversos aspectos que caracterizam a expressividade do de-
senho: o uso da cor e as técnicas pictóricas, a figuração e a abstração,
o desenho feito com o lado direito do cérebro, a representação de
emoções e o desenho livre infantil.
· Entender como cada um destes aspectos contribui para a compre-
ensão da diversidade da produção artística, ampliando a concepção
de desenho, com o foco voltado para as produções modernas e con-
temporâneas desta linguagem.
· Introduzir conhecimentos de modos de fazer, necessários para a
compreensão dos estudos em artes e, principalmente, do desenho,
contribuindo para sua formação e produção pessoal.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como o seu “momento do estudo”.

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo.

No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e
sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também
encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados.

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão,
pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato
com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem.
UNIDADE O Desenho Expressivo

Contextualização
Nesta Unidade, você aprenderá, entre outros conteúdos, o uso de cores e a
representação das emoções. Um dos artistas citados é o brasileiro Iberê Camargo
que, por mais que grande parte de sua obra seja feita em pintura, ele torna-se
um artista importantíssimo para compreendermos os conteúdos já vistos até o
momento, como a representação da figura humana (o retrato e o autorretrato) e a
representação de objetos.

Agora, veremos de forma mais específica o seu interesse, as emoções humanas,


o uso das suas memórias da infância e a percepção do mundo que o rodeia
incorporada à sua produção artística.

Sugerimos que você assista ao vídeo Conhecendo Museus – Ep. 59: Fundação Iberê
Explor

Camargo, que está disponível no Youtube no link:


https://youtu.be/WxWcnRTVCVo
Neste vídeo, você poderá conhecer a Fundação Iberê Camargo (Porto Alegre – RS), voltada
para a preservação da obra do artista também para a produção moderna e contemporânea
nacional e estrangeira.
Observe no vídeo os aspectos conceituais e processuais do artista, procurando já se
familiarizar com as questões acerca dos temas por ele abordados e na forma como o artista
os investiga e os expressa por meio da sua arte.

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Técnicas Pictóricas: O Uso da Cor
O desenho a lápis, carvão e canetas fornece valiosa prática, sendo também
gratificante em termos estéticos e processuais por ser de fácil domínio manual e
permanência no suporte. Porém, com o meio colorido de desenho, pode-se expe-
rimentar e produzir trabalhos que são tão expressivos e refinados como a pintura.
Os artistas de hoje estão numa posição afortunada face à vasta gama de materiais
de alta qualidade disponíveis – sendo o único problema a escolha inicial.
Aqui abordaremos alguns materiais e técnicas que resultam em trabalhos que
ficam na fronteira entre o desenho e a pintura, como o giz pastel seco e oleoso e
os lápis coloridos aquareláveis.
Os lápis de cor aquareláveis são um ponto de partida democrático para qualquer
estudante que esteja interessado no das cores em seus trabalhos de desenho.
Assim como os demais lápis, eles são de fácil manuseio, iguais ao uso do lápis
grafite e possuem uma gama imensa de cores e tons que podem ser adquiridos e
experimentados de forma gradativa em seu processo de criação.
Sobre a diferença entre os lápis de cor normais e os aquareláveis, temos:
Por sua composição cerosa, os lápis convencionais não se dissolvem
quando umedecidos com água; ao contrário, eles a repelem. Os lápis-
-aquarela, porém – sobretudo os de boa qualidade – possibilitam uma
explosão de cores. Com a absorção de água, o desenho de hachura pode
até desaparecer. Normalmente, desenha-se com lápis-aquarela como se
fossem lápis convencionais, incorpora-se a água. Os traços duros do lápis
resistem e ficam visíveis por trás da aguada. Secas essas aguadas, é pos-
sível acrescentar mais cores e detalhes com os lápis (ROIG, 2007, p.43).

Todos os meios coloridos são feitos de pigmentos unidos por um aglutinador


(ceras ou vernizes). A quantidade de aglutinador varia de um fabricante para outro
e, com isso, resulta em diferenças de consistência entre as marcas.
Temos lápis macios, calcários e opacos, assemelhando-se aos pastéis. Outros
são ligeiramente gordurosos e outros, ainda, são mais duros e transparentes.
Não há como dizer que um é melhor que o outro, justamente por essas
características físicas do material. Em determinado projeto artístico, o giz mais
duro pode ser a melhor escolha para o resultado estético que se pretende. O ideal
é conhecer todas as variações, começando por adquirir poucas quantidades de cor
para, aos poucos, descobrir suas preferências.
Apesar da grande quantidade de cores e tons que temos hoje no mercado, é
possível fazer misturas de cores no desenho a partir de pequenas quantidades, por
meio da sobreposição de camadas.
O método clássico de mistura de cores é o uso de linhas paralelas e linhas
cruzadas. Esse método possibilita efeitos sutis na mistura, efeitos de luz e sombra por
meio da maior pressão do lápis sobre o papel ou pela quantia de linhas aplicadas,
além de dar grande profundidade às cores.

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UNIDADE O Desenho Expressivo

Por exemplo, ao usarmos linhas cruzadas nas cores azul e amarelo, podemos
criar variações de áreas verdes, de acordo com a proporção do uso dessas duas
cores. Se quisermos verdes mais claros, utilizamos maior quantidade de amarelo;
caso contrário, utilizamos maior quantidade de azul para conseguirmos um tom de
verde mais escuro.

É importante observar que a ordem das cores aplicadas sobre o papel altera
o seu resultado, porque a composição cerosa das minas dos lápis de cor faz com
que a primeira camada funcione como reserva em relação às seguintes. Sobre-
pondo uma cor clara a outra escura, não se obterá o mesmo resultado da sobre-
posição contrária.

Figura 1 – Lápis aquarela – linhas cruzadas e esfumaçadas


Fonte: Acervo do Conteudista

O método de linhas cruzadas é excelente para trabalhos refinados e detalhados


e é um processo não muito rápido. Para um efeito mais solto e delicado, pode-se
misturar cores por meio do sombreamento.

As cores, dessa forma, são combinadas oticamente com o próprio suporte


quando sombreadas diagonalmente umas junto às outras ou quando são sobre-
postas, sendo que o uso da água e do pincel irá tornar mais clara e visível essa
mistura de cores.

Figura 2 – Lápis aquarela – linhas sobrepostas


Fonte: Acervo do Conteudista

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Figura 3 – Lápis aquarela – cores justapostas e aquareladas
Fonte: Acervo do Conteudista

Com os lápis aquareláveis, as misturas das cores ficam mais visíveis. Pode-se
espalhar a cor numa aguada com pincel limpo logo após a sobreposição de duas
cores ou mais. Pode-se, ainda, usar somente uma cor, aquarelar, esperar secar e
depois inserir outra, num processo de acúmulo de cores por etapas.

Não há uma regra, há possibilidades de experimentação que podem ser


descobertas ao longo da prática do desenho. É importante ressaltar que alguns
lápis possuem pigmentos mais suaves e próximos de qualidade de giz, deixando
sujeira de partículas quando misturados ainda molhados. É um material delicado e
o uso excessivo de água pode retirar todo o pigmento do papel.

A beleza de um trabalho feito com o lápis aquarelável está na combinação de


uma imagem “desenhada e pintada”. Há artistas que utilizam um pincel úmido ou
embebido em água ou terebintina.

De acordo com Ray Smith, sobre o processo de aquarela:


A melhor técnica consiste em pintar rápida e confiadamente sobre o de-
senho. Desta forma, as cores não se misturam demasiadamente e o dese-
nho original permanece. Claro que a aparência característica do lápis de
cor “a seco” se modifica totalmente, mas é substituída por algo igualmen-
te interessante, em especial na textura do papel (SMITH, 2006, p.74).

Para o uso do lápis de cor aquarelável, recomendam-se os papéis mais


encorpados, como os próprios para pintura em aquarela (300g), pois são mais
resistentes à água e não deformam ou enrugam.

Na pintura em aquarela, pouco se usa o branco, pois se trata de uma técnica em que
o papel e as transparências é que são a base para a aplicação da luz na composição.

No entanto, temos uma técnica chamada de polimento ou branqueamento, um


método usado para aumentar o brilho das cores em determinadas áreas do desenho.

Por sua composição física, os lápis de cor apresentam uma particularidade:


permitem fundir ou atenuar traços, pintando-se com cinzas claro ou branco sobre
outras cores, dando ao desenho um aspecto mais harmônico, com resultado
cromático mais suave e menos contrastado.

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UNIDADE O Desenho Expressivo


Figura 4 – Técnica do branqueamento com lápis aquarela
Fonte: Acervo do Conteudista

O uso do branqueamento, porém, não é apropriado para lápis solúveis em água


usados molhados. Tendo sido construídas com espessura, as cores são misturadas
com o uso do lápis branco sobre elas, friccionando os pigmentos e unindo-os,
dando um aspecto acetinado e brilhante ao desenho. Essa mistura também pode
ser feita com o esfuminho ou com a borracha.

Figura 5 – Miguel Ambrizzi, Cena com lápis aquarela, 2008. Observe os detalhes com
técnica do branqueamento na montanha ao fundo da composição. Tanto na vegetação,
quanto no animal, há o uso de diferentes tons, enriquecendo o resultado
Fonte: Acervo do Conteudista

A melhor maneira de trabalhar o branqueamento é aplicar com intensidade a


cor branca sobre os sombreados, pois isso faz com que as cores iniciais se mos-
trem mais apagadas, mais apasteladas, ou seja, com tons mais suaves e menos
saturados. O lápis branco funde os traços e faz desaparecer os efeitos próprios
do grão do papel.

Há ainda, entre várias possibilidades do uso do lápis de cor, a técnica de


impressão de linhas. Normalmente, se desenharmos com lápis de cor em papel
muito texturizado, a maior parte do pigmento ficará depositada na parte superior
da trama do papel; a impressão segue o mesmo princípio.

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Linhas “cegas” são impressas no papel com o uso de uma agulha de tricô, um
capo de um pincel ou até com uma caneta com o uso de um desenho prévio em
outro papel menos encorpado. Esse método também é conhecido como desenho
de linhas brancas.

Figura 6 – Lápis aquarela – impressão de linhas.


Fonte: Acervo do Conteudista

Podemos usar linhas de impressão apenas como variação de um desenho ou


na possibilidade de explorar texturas e efeitos padronizados intrigantes. Se a linha
branca tiver um papel importante no desenho a ser elaborado, é aconselhável que
se use um papel de seda para passar o desenho de forma correta. O processo
consiste em desenhar a trama no papel de seda e em seguida passar o risco para
o papel do desenho, riscando sobre as linhas com lápis duro, pressionando com
força o papel.

Por fim, trabalhamos com a sobreposição de cores, as quais não serão aplicadas
sobre as linhas do desenho que foram riscadas previamente, pois o papel foi
sulcado, pressionado, deixando as linhas em baixo-relevo. Ao aplicarmos a cor, as
linhas brancas aparecerão na composição.

O lápis aquarela ainda pode ser aplicado em papel úmido. Ao riscar, a ponta
do lápis amolece e se dissolve com facilidade, criando efeitos suaves e aveludados,
com efeitos de aguada ao redor do traço.

Outro material muito comum no uso da cor em desenho é o giz pastel, em sua
variação de seco e oleoso:
A técnica do pastel está tão próxima da técnica pictórica quanto do
desenho; por isso, seria difícil tentar vincular de maneira exclusiva esse
procedimento a uma das duas disciplinas. Essa dicotomia se deve ao

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UNIDADE O Desenho Expressivo

fato de que o pastel proporciona desde traços absolutamente lineares,


semelhantes aos do giz pastel, até fusões e gradações tonais opacas que
lembram os efeitos pictóricos do guache ou do óleo. Portanto, apesar de
ser aplicado por fricção, é indubitável que, graças à riqueza cromática, aos
efeitos esfumados, aos degradés e às misturas de tons, os desenhos com
pastel se aproximam do âmbito pictórico (ROIG, 2007, p.44).

Conforme vimos na Unidade I, o pas-


tel aparenta uma superfície mais pulve-
rizada por sua característica física. Pode
ser utilizado com linhas definidas ou em
grandes áreas de cor que são esfuma-
çadas com a mão ou com o esfuminho.
Posteriormente, é necessário que se
proteja o desenho com o uso de um fi-
xador, pois seu pigmento é forte e tem
pouca aderência sobre o papel.

Um dos grandes artistas que mais uti-


lizou o pastel em suas obras foi o francês
Edgar Degas, principalmente nas suas
famosas bailarinas.

O trabalho de mistura de cores com o


giz pastel seco é semelhante ao do lápis Figura 7 – Edgar Degas,
de cor aquarelável. No entanto, o uso do Two dancers entering the stage, 1877
esfuminho e dos dedos é o mais comum. Fonte: Wikimedia Commons

   
Figura 8 – Mistura de cores com uso dos dedos: linhas paralelas
azuis e amarelas ou com cores justapostas (amarelo e vermelho)
Fonte: Acervo do Conteudista

Pode-se fazer efeitos de sombreado linear quando queremos trabalhar com a


transição entre duas ou mais cores e tonalidades diferentes. Como são de puro
pigmento, sem um revestimento de madeira (como no lápis), se utilizados no seu
comprimento (deitados) produzem semelhanças com as pinceladas de cor. Por
serem macios, não permitem produzir linhas muito finas, a não ser quando ainda
se tem arestas no bastão. São materiais agradáveis de se usar, excelentes para
trabalhos relativamente pequenos. A cor pode também ser parcialmente espalhada
com água e pincel limpo, produzindo um efeito de aguada, suavizando as linhas
onde houver necessidade.

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Figura 9 – Giz pastel seco puro e com aguada
Fonte: Acervo do Conteudista

Figura 10 – Giz pastel seco puro e com aguada


Fonte: Acervo do Conteudista

Os pastéis oleosos também não produzem linhas bem definidas, mas são ideais
para desenhos arrojados e vivos, com áreas sólidas de cor. Os pastéis oleosos não
são tão macios e não esfarelam muito como os secos, justamente por levarem óleo
na composição, não exigindo, assim, o uso de um fixador. Artistas como Manet e
Toulouse-Lautrec utilizaram muito este material em seus trabalhos de retratos.

Figura 11 – Édouard Manet, Figura 12 – Henri de Toulouse-Lautrec,


Tetê de Feme, cerca de 1882 Jane Avril enters the Moulin
Fonte: Wikimedia Commons Rouge, cerca de 1892
Fonte: Wikimedia Commons

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UNIDADE O Desenho Expressivo

Com os pastéis oleosos, podemos praticar uma técnica chamada de sgrafitto,


na qual uma camada de cor é raspada para dar lugar à outra que está por baixo.

Podemos obter uma variedade de efeitos com essa técnica utilizando instrumentos
de pontudos para linhas mais finas ou com espátulas ou facas para raspar camadas
maiores, criando texturas diferenciadas.

Figura 13 – Exemplos de uso do giz pastel oleoso (da esquerda para a direita: esfumaçado,
sgraffito, degradê de várias cores e degradê do azul com sobreposição do branco (branqueamento)
Fonte: Acervo do Conteudista

   
Figura 14 – Giz pastel oleoso: linhas paralelas e branqueamento
Fonte: Acervo do Conteudista

Para os trabalhos com sobreposição de cores, os papéis indicados são os que


possuem uma leve textura para que segurem mais o pigmento. No entanto, se o
trabalho for, em sua grande maioria, composto por linhas, os papeis mais lisos são
os mais indicados, visto que a textura faz com que as linhas não sejam tão sólidas.

Figuração e Abstração
Até o presente momento, nesta Disciplina, estudamos o desenho no seu
viés figurativo. A arte figurativa corresponde aos trabalhos que se desenvolvem
principalmente pela representação de seres e objetos cujas formas são reconhecíveis
pelos seus observadores, não somente pelas formas, mas pela maneira como as
formas compositivas de um desenho ou pintura, por exemplo, foram organizadas,
permitindo associações com o mundo real.

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De forma bem simples, um triângulo, um quadrado e um retângulo podem con-
tinuar a ser formas geométricas numa composição ou serem configurados e organi-
zados, possibilitando o entendimento da imagem como representação de uma casa.

Figura 15
Fonte: Acervo do Conteudista

Na arte ocidental, a prática da arte figurativa foi se transformando nos finais do


século XIX e foi no início do século XX que surgiu a arte abstrata, voltada para os
interesses pelos próprios elementos que constituem a linguagem visual: o ponto, a
linha, a cor, as pinceladas, o gesto. Sobre esse contexto, Rosa Iavelberg e Rafaela
Gabani Trindade afirmam:
As profundas mudanças econômicas, sociais e culturais que marcaram
a época refletiram sobre a produção artística: surgia a necessidade de
se considerar as novas realidades então reveladas pela ciência, pelas
dinâmicas da matemática e da física, as novas ideias nas áreas da psico-
logia e da biologia; atentava-se também a novas tendências no cenário
político, à crescente industrialização e desenvolvimento tecnológico, ao
surgimento da fotografia e do cinema. Estas condições possibilitaram
aos artistas se verem livres da necessidade da arte como representação,
abrindo espaço para a pesquisa e a invenção em arte em âmbitos ligados
à própria arte e aos seus elementos constitutivos, tal como a superfície e
os elementos da linguagem, consolidando sua autonomia (IAVELBERG;
TRINDADE, 2009, s.p.)

A arte passa a investigar a própria arte em suas possibilidades expressivas e


criativas: a busca por expressar o mundo interior, o mundo dos sentidos e das
relações concretas.

De acordo com Mel Gooding:


Inúmeros artistas reagiram à liberdade de expressão sem precedentes,
que constituiu um requisito de abstração necessário, alargando as
possibilidades expressivas da arte figurativa. Cores arbitrárias, pinceladas
enérgicas e texturas exageradas, colagem e outras rupturas da superfície,
distorções da figura e de outras formas naturais: eis alguns dos diversos
expedientes que adotaram (GOODING, 2002, p.8)

As vanguardas europeias de 1910 e 1920 recusaram a representação ilusionista


e mimética da natureza na qual, aos poucos, foram decompondo a figura,
simplificando as formas, usando a cor de diferentes formas (distanciadas das cores

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UNIDADE O Desenho Expressivo

do mundo real), rompendo com as leis da perspectiva e das técnicas de modelagem


com o uso convencional da luz e sombra na representação.
Nesse período, os artistas estavam interessados em realizar pesquisas intuitivas.
Havia no ar um estímulo à criação, a palavra “novo” estava associada ao “moderno”:
essas duas palavras tornaram-se chaves incontestáveis do século, como combustíveis
para a criação artística.
Entre as várias respostas à ordem modernista “Façam algo novo!”, a arte abstrata
foi uma das mais ousadas e, nas suas diferentes vertentes, resultou de processos de
desconstrução, de novas formas de perceber e interpretar o mundo.
Mel Gooding irá ressaltar que “o que os artistas escrevem reveste-se amiúde de
grande interesse em termos das fontes e das intenções das suas obras, mas nunca
é definitivo nem conclusivo quanto aos seus efeitos”, ou seja, “cabe ao espectador
criar significados e não ao artista ditá-los” (2002, p. 8).
A arte moderna e abstrata, neste sentido, trabalhou muito com o poder de
sugestão, deixando muitas questões na obra de arte que está aberta a múltiplas
interpretações e compreensões. Há sempre algo “incompleto” na obra, permitindo
ao sujeito observador um diálogo e um questionamento sobre o que está observando:
Mais do que a arte representativa, a arte abstrata exige o encontro ge-
nuíno, a sensação própria da coisa. Para os seus efeitos, sejam simples
ou complexos, sensuais ou conceituais, depende da presença do obser-
vador, que permite atribuir significados possíveis à apresentação das
formas e das cores, aos seus padrões e ritmos visíveis, às suas formas,
contornos e texturas. Os significados são criados quando essas realida-
des concretas os impõem, através dos sentidos, à imaginação receptora
(GOODING, 2002, p.11).

Wassili Kandinsky (1866-1944) é considerado o pioneiro da arte abstrata. Sua


obra Primeira Aquarela Abstrata (1910) e as séries chamadas Improvisações
(1909-1914) são inspiradas na música e numa orientação espiritual da arte, apoia-
da na teosofia.

Figura 16 – Wassili Kandinsky, Primeira Aquarela Abstrata, 1910


Fonte: Wikimedia Commons

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Na arte abstrata, temos duas vertentes, uma mais voltada para as emoções,
pelo uso e ritmo das cores e a expressão de impulsos individuais, conhecido
por abstracionismo lírico ou informal, cujas bases estão nos movimentos do
Expressionismo e do Fovismo.
A outra vertente tem suas bases nos fundamentos racionalistas das composições
cubistas, no rigor matemático e no estudo da forma e é conhecida como abstração
geométrica ou formal.
Kasimir Malevich (1878-1935) é um dos grandes nomes da arte abstrata
geométrica. Líder do movimento do Suprematismo (1915), sua arte está voltada
para o estudo sistemático da estrutura da imagem.
Ainda na arte abstrata geométrica, temos suas vertentes dos movimentos do
Construtivismo, do Realismo e do Neoplasticismo com nomes como Alexander
Rodchenko, Naum Gabo, Piet Mondrian e Theo van Doesburg.
Esses artistas influenciaram fortemente a produção na área do design gráfico,
na elaboração de cartazes e na produção editorial por meio da diagramação
de materiais impressos como livros e revistas. Esses movimentos tiveram como
propósito encontrar novas formas de expressão plástica, fugindo das ideias e
princípios da representação. As obras são elaboradas em composições que utilizam
elementos básicos como linhas, retângulos, cores primárias, forte uso do preto e
tons de cinza.

Figura 17 – Kasimir Malevich, Figura 18 – Piet Mondrian, Composição


Composição suprematista, 1916 com vermelho, azul e amarelo, 1928
Fonte: Wikimedia Commons Fonte: Wikimedia Commons

Na produção contemporânea do desenho abstrato, temos CY Twombly, artista


americano que surgiu cerca de 1950 no cenário artístico de Nova Iorque no auge do
Expressionismo Abstrato e da Pintura de Ação (Action Painting). Sua linguagem
artística é enérgica e emotiva, “buscava separar a palavra da imagem e o desenho
da pintura” (SIMBLET, 2011, p. 221). Em suas obras, a linha desenhada aparece
claramente na superfície do seu suporte, revelando aspectos gestuais caracterizados
pela repetição.

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UNIDADE O Desenho Expressivo

Figura 19 – CY Twombly, Sem título (Roma), 1966.


Fonte: Museu de Arte Contemporânea de Munique

Mel Goodman (2002, p.11) ainda ressalta que a arte figurativa seria aquela que
representa a “ilusão de uma realidade percebida, por mais que seja simplificada,
distorcida, exagerada ou ampliada”.

Já a arte abstrata se refere a não figuração, “independentemente das diversas


nominações recebidas em diferentes momentos históricos ou circunstâncias
ideológicas e críticas (IAVELBERG; TRINDADE, 2009).

Para Gooding:
Os artistas abstratos criaram imagens originais que se equiparam em
intensidade e força às da grande tradição da arte figurativa. A abstração
não suplantou a arte representacional, mas ocupou um lugar a seu lado,
descobrindo novas possibilidades de visão, mudando a maneira como as
coisas são vistas e conhecidas (GOODING, 2002, p. 9).

De acordo com o autor, quando falamos em “semelhança” para definir a arte


abstrata e a figurativa, não se trata de encontramos essa categoria ausente na
abstração e presente na figuração.
“A categoria “semelhança” pode ser aplicada tanto à arte figurativa
quanto à arte abstrata. Porém, diferindo em relação à natureza dessa
semelhança”, ou seja, “no primeiro caso, ela pode se estabelecer entre o
objeto real e o pictórico ou, de outro modo, instituir a aproximação entre
um objeto e um conceito” (IAVELBERG; TRINDADE, 2009, s/p).

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Desenhando com o Lado Direito do Cérebro
A autora Betty Edwards é uma referência no que diz respeito ao desenho feito
utilizando o lado direito do cérebro. Mas o que vem a ser isso?

Nos anos 1968, foram publicadas pesquisas na área de psicobiologia, as quais


investigaram as funções dos hemisférios cerebrais humanos.

Roger W. Sperry foi um dos pesquisadores renomados e inclusive contemplado


com um Prêmio Nobel. Sua pesquisa chegou à conclusão que o cérebro humano usa
duas formas distintas de pensar: uma verbal, analítica e sequencial (lado esquerdo
do cérebro), e outra visual, perceptiva e simultânea (lado direito do cérebro).

Essas duas formas influenciaram o pensamento de Betty Edwards sobre o ato de


desenhar, sobre como uma pessoa passa de um modo de pensar ou ver para outro
diferente do usual.

O hemisfério esquerdo do cérebro controla o lado direito do corpo e o hemisfério


direito controla o lado esquerdo. De acordo com a autora, a modalidade do hemisfério
direito do cérebro é intuitiva, subjetiva, holística e atenta às relações entre as partes
e independente do tempo. Ela ressalta que é também uma “modalidade desprezada,
fraca, canhota, que na nossa cultura não recebe a atenção que merece”, pois
“grande parte do nosso sistema educacional se destina a cultivar as aptidões do
hemisfério esquerdo – verbal, racional, pontual” deixando, portanto, que a outra
parte do cérebro se desenvolva nos estudantes (2000, p.61).

Para ela, o desenho é uma habilidade possível de aprender; não se trata de dom,
mas de aprendizado e exercício do olhar e da percepção, os quais são resultado de
uma transição mental, ou seja, acionar o lado direito do cérebro para perceber o
mundo de modo diferente e vê-lo de modo diferente.

Durante o ato de desenhar, o sujeito deve criar um estado de consciência para o


desenho e, se recorre à parte do cérebro normalmente adormecida pela rotina (o
lado direito), irá encontrar outras possibilidades de percepção e caminhos criativos.

Para Edwards:
Desenhar não é difícil. O problema é ver, ou, de modo mais específico,
passar a ver de uma forma específica. (...) Muitos artistas já falaram de
ver as coisas de maneira diferente ao desenhar e costumam mencionar
que ao fazê-lo entram em estado alterado de consciência. Neste estado
subjetivo diferente, dizem se sentir transportados, “em comunhão com o
trabalho”, capazes de perceber relacionamentos que normalmente não
captam. A noção de tempo se esvai e as palavras deixam de ter lugar
na consciência. Sentem-se alertas e conscientes, porém relaxados, sem
ansiedade, vivenciando uma ativação mental agradável, quase mística
(EDWARDS, 2000, p.30)

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UNIDADE O Desenho Expressivo

Segundo a autora, o hemisfério direito não é muito capaz de observar sequências,


não tem um controle verbal muito bom, não é capaz de emitir proposições lógicas,
não tem boa noção de tempo e não é muito capaz de dar nome às coisas e separá-
las em categorias. O hemisfério direito “aparentemente encara cada coisa como
ela é no momento atual; vê as coisas simplesmente como elas são, em toda a
sua tremenda e fascinante complexidade. Não é muito dado a analisar e abstrair
características proeminentes (EDWARDS, 2000, p.61).

Especificamente no desenho, Betty Edwards, em seu livro Desenhando com


o Lado Direito do Cérebro, apresenta uma série de exercícios que estabelecem
condições para transitar do lado esquerdo para o direito, entre os quais selecionamos
um para apresentar aqui.

O livro Desenhando com o Lado Direito do Cérebro, de Betty Edwards é uma leitura
Explor

importante para a sua formação acadêmica. Nele, você encontrará vários exercícios
explicados passo a passo, seguidos de questionamentos que estimularão sua reflexão sobre
a sua produção em desenho. O livro se encontra digitalizado e disponível em vários sites da
internet e também em: https://goo.gl/HtBouf

Um dos exercícios que acionam a transição para o lado direito do cérebro é o de


desenhar uma imagem invertida, de cabeça para baixo.

Mas por que desenhar dessa forma?

Normalmente, nós temos o hábito de perceber as coisas pela sua posição usual,
ou seja, de topo para cima. Essa posição nos facilita o reconhecimento dos objetos
cotidianos, identificamos com um nome e classificamos, comparando-os com os
conceitos e lembranças que temos armazenadas na memória.

Lemos um texto da direita para a esquerda e de cima para baixo, não é mesmo?
E se invertermos, o que acontece? E quando se trata de uma imagem?

Para Edwards, quando a imagem está invertida, de cabeça para baixo, os sinais
visuais não são os mesmos. “A mensagem fica estranha e o cérebro se confunde.
Vemos as formas e as áreas de luz e sombra” (EDWARDS, 2000, p.77).

Os rostos mais conhecidos, se vistos de cabeça para baixo, tornam-se difíceis de


serem identificados ou reconhecidos.

Observe as duas figuras: a primeira se trata de uma pessoa famosa e a outra se


trata de uma pintura complexa.

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Figura 20 – Albert Einsten Figura 21 – Giovanni Battista Tiepolo,
Fonte: Wikimedia Commons Madona e Criança com o Santo, 1750-1760
Fonte: Wikimedia Commons

A inversão da imagem provoca problemas de reconhecimento, principalmente


quando se trata de uma imagem complexa, tornando-se quase indecifrável. “O cérebro
(hemisfério esquerdo) simplesmente ‘desiste’ de entendê-la” (EDWARDS, 2000, p.77).

O exercício de desenhar uma imagem de cabeça para baixo parte da premissa de


aproveitar a falha de aptidão do hemisfério esquerdo para dar ao lado direito uma
chance de assumir o comando do cérebro durante algum tempo.

Com seus alunos, Betty Edwards utili-


zou como referência o desenho feito por
Picasso, o Retrato de Igor Stravinsky
(1920), e a tarefa se consistiu em copiar a
imagem invertida e o desenho foi realiza-
do de cabeça para baixo. Segundo a au-
tora, ao fazermos essa atividade, estamos
copiando o desenho exatamente como o
estamos vendo.

Para compreendermos a atividade,


vamos apresentar de forma resumida as
etapas do exercício proposto pela autora
e, posteriormente, algumas considera-
ções a serem ressaltadas de acordo com a
teoria utilizada pela autora acerca do uso
do lado direito do cérebro em atividades Figura 22 – Pablo Picasso,
de desenho. Retrato de Igor Stravinsky, 1920.
Fonte: Wikimedia Commons

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UNIDADE O Desenho Expressivo

Exercício Desenhando de Cabeça para Baixo


O que você vai precisar

- reprodução de um desenho (sugestão: Picasso), lápis preto, prancheta de


desenho, fita crepe e um tempo ininterrupto de 40 minutos a 1 hora.

O que você vai fazer

Antes de começar, leia todas as instruções:


1. Se você gostar, coloque uma música. Complete o desenho em uma única
sessão, levando 40 minutos ao menos. Não vire o desenho de cabeça para
cima antes de terminar, pois isso causaria uma transição para o lado esquerdo,
o que se deve evitar;
2. Pode começar por onde quiser. Tente não entender o que você está vendo
na figura de cabeça para baixo, é melhor não saber. Basta começar copiando
as linhas e esqueça o que elas significam;
3. É recomendável não desenhar o contorno inteiro da forma e depois preen-
cher as partes. Qualquer erro acarretará a alteração das outras partes cumu-
lativamente. A recomendação é passar de uma linha para a outra adjacente,
encaixando as partes do desenho à medida que vai prosseguindo, até o fim;
4. Se falar consigo mesmo, use apenas a linguagem da visão, como: “esta linha
faz uma curva assim”, ou “aquela forma tem uma curva ali”. Você deve
evitar dar nomes às partes;
5. Quando você chegar às partes cujos nomes se imponham a você (as MÃOS
e o ROSTO), tente se concentrar apenas nas formas destas partes. Você
poderá cobrir partes do desenho com a mão ou com um dedo, deixando
exposta apenas a linha que você estiver desenhando ou alternar para outra
parte do desenho;
6. Se num dado momento, o desenho começar a parecer um quebra-cabeça
interessante, até fascinante, você estará “desenhando de verdade”, ou seja,
você terá conseguido fazer a transição do lado esquerdo para o lado direito
do cérebro e estará vendo corretamente. No entanto, este estado se rompe
com facilidade, necessitando total concentração e isolamento, sem conversar
com outras pessoas;
7. Você deve compreender que tudo o que você precisa saber para desenhar a
imagem em questão está bem diante dos seus olhos. Toda informação está ali,
facilitando o seu trabalho. Não complique as coisas. É só isto, simples desse jeito.

Depois de terminado, você deverá virar ambos os desenhos de cabeça para


cima. A autora, com base no uso do desenho do Picasso, faz uma previsão e
ressalta os seguintes aspectos que poderão ser encontrados em seu desenho:

24
• você ficará satisfeito com seu desenho, especialmente se você pensava que
jamais seria capaz de desenhar;
• as partes “mais difíceis”, as “áreas escorçadas” estarão bem desenhadas, dan-
do uma ilusão espacial;
• as pernas do retratado ficaram bem desenhadas em vista escorçada.

Para Edwards, essas partes “difíceis” foram bem desenhadas porque quem
desenhou não sabia o que estava desenhando, ou seja, desenhou apenas o que viu,
conforme enxergou, caracterizando o que ela define como uma das chaves mais
importantes para se desenhar bem.

Entretanto, a autora afirma que pode não fazer sentido que um desenho feito de
cabeça para baixo possa ser tão superior ao feito de cabeça para cima:
Este quebra-cabeça coloca a modalidade E (lado esquerdo) num dilema
de lógica: como explicar a súbita aptidão para o desenho quando ele (o
hemisfério esquerdo que sabe de tudo) foi dispensado da tarefa? O hemis-
fério esquerdo, que admira toda tarefa bem feita se vê forçado a admitir a
possibilidade de que o hemisfério direito, tão menosprezado, sabe dese-
nhar bem. Por razoes que ainda não estão muito claras, o sistema verbal
imediatamente rejeita a tarefa de “ler” e denominar imagens de cabeça
para baixo. Com efeito, a modalidade E parece estar dizendo “não faço
nada de cabeça para baixo. É difícil dar nomes a coisas que sejam vistas
desta forma; além do que, o mundo não é de cabeça para baixo! Por que
eu deveria me preocupar com uma coisa destas (EDWARDS, 2000, p.82)

Esse exercício tem sua razão, dentro da proposta teórica da autora, no sentido de
fugir do combate entre as modalidades conflitantes, o lado direito e o lado esquerdo.
Depois de concluído o exercício, você tornará consciente de como se sentiu após
ter feito a transição cognitiva do lado esquerdo para o direito, permitindo vermos
as coisas como o artista vê, desenhando aquilo que vemos.

O importante desse exercício é desenvolver a transição cognitiva não somen-


te em momentos cujo referente esteja de cabeça para baixo. Normalmente, não
desenhamos nessas condições. Portanto, também saber fazer a transição cognitiva
mesmo quando vemos as coisas na sua posição normal, concentrando a atenção nas
informações visuais que o hemisfério esquerdo não quer processar: “Temos sempre
de apresentar ao cérebro uma tarefa que será recusada pelo hemisfério esquerdo,
permitindo com isso que o hemisfério direito use sua aptidão artística” (2000, p.84).

Essa teoria sobre o desenvolvimento do lado direito do cérebro por meio


de estudos e exercícios de desenho, cujo objetivo se encontra na mudança da
percepção e do olhar para “desenhar melhor”, tem o seu valor e sua importância
dentro dos estudos artísticos.

25
25
UNIDADE O Desenho Expressivo

No entanto, conceitos como “desenhar bem” e “olhar de artista” são muito


relativos e, na verdade, não possuem somente uma perspectiva, ou seja, não
existe uma única forma correta e uma forma melhor de desenhar, no que diz
respeito a resultados.

O desenho figurativo representativo, cujas características são a mimese, a pro-


ximidade e fidelidade ao real, não é o melhor estilo de desenho. Conforme vimos
até o momento nesta Disciplina, existem infinitas formas de desenhar e todas elas
possuem suas características, seu mérito, suas ideologias e princípios estéticos.

Representando Emoções
Até o presente momento, fomos conhecendo os jogos entre representação e
interpretação da realidade no pensamento criativo dos artistas.
Historicamente, conforme vimos, a interpretação da realidade foi se tornando
cada vez mais presente na produção artística a partir do século XIX, com os artistas
românticos, com forte presença na Alemanha, voltados para a expressão subjetiva
do artista.
No século XX, também na Alemanha, surgiu um movimento artístico e cultural
de vanguarda, chamado Expressionismo, presente em todas as linguagens artísticas,
arquitetura, literatura, música, cinema, artes visuais, dança, teatro e fotografia. Nas
artes visuais, principalmente na pintura, esse movimento teve forte influência do
fovismo francês e teve como princípio uma reação ao positivismo associado aos
movimentos impressionismo e naturalismo.
Será com o Expressionismo que a subjetividade do artista será foco de interesse
poético, no qual a arte seria uma expressão pessoal e intuitiva, revelando a visão
interior do artista, ou seja, não mais a “impressão” visual do mundo, mas uma
“expressão” individual, interna.
Dessa forma, o artista expressionista não se prende mais à aparência das coisas,
mas as deforma, com o intuito de expressar de forma subjetiva a natureza e o ser
humano, expressando seus sentimentos em relação à realidade, e não mais uma
descrição objetiva da mesma.

Investigue mais sobre os artistas do Expressionismo e veja como cada um explorou os ideais
Explor

deste movimento de acordo com sua forma de ver, interpretar e sentir o mundo em que está
inserido. Entre os artistas, citamos: Franz Mark, Ernst Ludwig Kirchner, Vincent Van Gogh,
Egon Schiele, Marc Chagall e Cândido Portinari.

Entre os temas mais correntes nesse período, destacam-se: a solidão, a miséria,


a angústia, a ansiedade, o irracionalismo, o diabólico, o sexual, o excitante, o
fantástico, o perverso e a morte, todos voltados para os sentidos e os sentimentos
do mundo interior. Portanto, os artistas criam suas obras que são composições
formais que expressam atitudes emocionais, tanto pelo uso de cores, quanto de

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distorções da forma, de gestualidades no uso do pincel ou de outros materiais
plásticos. Essas questões foram iniciadas no Expressionismo, influenciaram, e
influenciam até hoje, a produção artística.

Sendo a morte um dos temas marcantes do Expressionismo, sugerimos que você conheça
Explor

alguns exemplos de obras que tratam de um tema muito denso e triste, a perda da mãe.
No texto Modernismo e Vanguarda: o caso Flávio de Carvalho, Rui Moreira Leite analisa a
produção europeia e a sua influência na produção artística brasileira, especificamente na de
Flávio de Carvalho, cuja série Trágica (1947) retrata a própria mãe do artista em seu leito de
morte (Texto disponível em: https://goo.gl/lfCgmo

Figura 23 – Flávio de Carvalho, Série Trágica, 1947


Fonte: itaucultural.org.br

Tomemos dois exemplos para ilustrarmos esse entendimento entre representa-


ção e expressão artística pro meio de duas obras feitas por Pablo Picasso com o
mesmo tema, aves.

Figura 24 – Pablo Picasso, Figura 25 – Pablo Picasso,


Galinha com pintos, 1941. Galo Novo, 1938
Fonte: Pablo Picasso, 1938 Fonte: Pablo Picasso, 1938

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UNIDADE O Desenho Expressivo

Essas duas obras de Picasso nos mostram diferentes formas de representação


gráfica, uma voltada para uma proximidade com o real, a galinha com os pintinhos
de forma proporcional e numa expressão calma que revela a proteção da mãe com
seus filhos, e outra que mostra o galo na sua expressão máxima, com os olhos
arregalados, com o bico muito aberto, com seu pescoço esticado.
Essa combinação das partes do corpo do galo, tal como foi representada, mostra
a agressividade do animal, recorrendo aos aspectos mais caricaturais exagerados
para representar uma emoção, a insolência do galo.
O artista, nessas duas obras, mostra como representar que as características
físicas de um animal não se definem somente por uma única forma, mas dependem
de qual sentimento, expressão ou intenção o artista possui perante um referencial.
Os artistas, muitas vezes, escolhem algo para representar sentimentos muito
profundos, ou seja, a arte escolhe algo para dizer outra coisa.
Outro artista fortemente conhecido por representar emoções é o brasileiro Iberê
Camargo, artista que carrega muitas características e influências do expressionismo
em sua produção e na sua concepção de arte.
Observemos algumas afirmações do artista:
Não há um ideal de beleza, mas o ideal de uma verdade pungente e
sofrida, que é minha vida, e tua vida, é nossa vida nesse caminhar no
mundo. Eu não nasci para brincar com a figura, fazer berloques, enfeitar
o mundo. Pinto porque a vida dói” (CAMARGO, 1988, p. 97)

“Eu não pinto modelos, pinto emoções” (apud MORAIS, 1986, p. 161).

“A obra só se completa e vive quando expressa. Nos meus quadros, o


ontem se faz presente no agora. Lanço-me na pintura e na vida por
inteiro, como um mergulhador na água” (CAMARGO, 1998, p.32).

Todas estas frases revelam um artista que se desdobra sobre suas próprias
memórias e emoções para se expressar por meio da arte. Suas obras resgatam
experiências de vida, histórias da sua infância, de morte e dos amores.

Figura 26 – Iberê Camargo, Formação de Carretéis, 1960


Fonte: itaucultural.org.br

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Figura 27 – Iberê Camargo, La madre y sus hijas, 1984.
Fonte: itaucultural.org.br

Figura 28 – Iberê Camargo, Grito, 1984


Fonte: itaucultural.org.br

Embora seu trabalho seja principalmente concebido na linguagem da pintura,


interessa-nos ter este artista como uma referência no que diz respeito à represen-
tação das emoções. Juntamente com Oswaldo Goeldi, Iberê Camargo também é
considerado um dos artistas expressionistas brasileiros.

Da sua infância, tanto o ato de andar de bicicleta quanto os carretéis que


sobravam do trabalho de sua mãe foram os objetos que apareceram recorrente
nas suas pinturas, com cores tristes e sombrias, transitando entre o figurativo e o
abstrato, revelando um espírito trágico e amargo do artista.

Suas pinturas representam vivências e o desejo de torná-las visíveis, juntamente


com seus pensamentos, por meio da observação do mundo, numa mescla de
passado e presente, de memória e vivência atual.

Assim como os expressionistas europeus, Iberê utilizou grandes camadas de


tinta e formas distorcidas e agressivas para registras suas emoções. De acordo com
Paulo Venâncio:

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UNIDADE O Desenho Expressivo

Iberê é um homem dostoievsquiano, angustiado, trágico, sinistro,


violento, atormentado pela consciência. [Ele assume] a pintura e sua
história como base íntegra da revolta. (...) A consciência de si que toma a
forma da angústia e do desespero não pode se situar num espaço definido
e num tempo histórico. Não aceita limites. Tardio romântico, portanto
historicamente deslocado, e mesmo assim mais desesperadamente
romântico (VENÂNCIO, 2001, p.25).

Iberê também teve a miséria humana como uma constância em suas obras nas
quais, por meio de tons escuros e muitas camadas espessas de tinta, o artista criava
personagens sombrios e tristes que revelavam os aspectos negativos da condição
humana.

Questionado sobre o fato de muitos acharem a sua pintura triste e melancólica


por causa do uso dos tons e se a pintura era reflexo do seu sofrimento, em entrevista
com Paulo Reis, Iberê Camargo afirma:
Quem olha com tristeza é porque é triste. O que está dentro é o que está
fora. Meus tons são frios porque minha paleta vem da alma. Pinto o que
sinto. Acho que não nasci para alegrar ninguém, sempre me senti um
ciclista da vida que anda contra o vento. Se as pessoas percebem tristeza
ou alegria é porque esses sentimentos vêm delas. A arte é essa busca no
sentido (apud REIS, 2003 p.121).

Tanto Iberê quanto Picasso são artistas que nos permitem pensar sobre outro
lado da produção artística, seja ela em qual linguagem for realizada. Mais que
representar o mundo como ele é, ou até distanciando-se dele em obras totalmente
abstratas, há ainda um entremeio que se refere ao lado interno do artista, um ser
pensante, um ser que sente e que quer expressar esses sentimentos na arte. Ou
seja, a arte não está preocupada somente com a aparência das coisas, mas com a
essência e como que as coisas do mundo podem representar sentimentos internos,
por meio das simbologias que o homem atribuiu aos objetos ao longo da história e
que até hoje continua a atribuir ou ressignificá-los.

Vamos ler um trecho do livro Gaveta dos Guardados, de Iberê Camargo,


para pensarmos algumas questões que permitem uma reflexão sobre a prática do
desenho que representa emoções:
A memória é a gaveta dos guardados. (...) Nós somos como as tartarugas,
carregamos a casa. Essa casa são as lembranças. Nós não podemos
testemunhar o hoje se não tivéssemos por dentro o ontem, porque
seríamos uns tolos a olhar coisas como recém-nascidos, como sacos
vazios. Nós só podemos ver as coisas com clareza e nitidez porque temos
um passado. E o passado se coloca para ajudar a ver e compreender o
momento que estamos vivendo (CAMARGO, 1998, p.31).

Esta frase nos permite estabelecer questões que podem instigar exercícios de
criação em desenho que expressem emoções pessoais atuais, mas também com
base em nossas memórias.

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Não se trata de um desenho de memória, de desenhar sem ter um objeto de
referência à nossa frente, mas de utilizarmos nossas memórias para estimular nossa
percepção de um mundo atual.

Como exercícios de criação, podemos tomar questões que nos levem a um


autoconhecimento acerca de nossas emoções e lembranças que tivemos na
infância, no passado, identificando-as. Ainda podemos fazer um exercício de
rememoração das imagens que temos guardadas em nossa memória da infância,
cenas, acontecimentos, objetos e pessoas que fizeram parte de nossa história.

Quais os sentimentos que tenho diante das situações do meu cotidiano? Que
coisas eu gostaria de dizer ou até mesmo gritar e não tenho coragem? Quais as
sensações que despertam em mim referente a questões políticas, afetivas, sociais
ou pessoais, que eu gostaria de expressar em desenho? Como eu classifico essas
emoções e sentimentos: positivos, negativos, neutros, tristes, alegres, raivosos? E,
por fim, quais materiais expressariam melhor esses sentimentos: carvão, lápis de
cor, giz pastel seco ou oleoso, caneta, nanquim ou grafite?

Os materiais tornam-se importantíssimos na produção artística, não somente por


suas características físicas, conforme vimos já nesta Disciplina, mas também as pos-
sibilidades que estes permitem de serem trabalhados em diferentes formas gestuais,
sejam mais agressivas, sejam suaves, com tons mais vivos, neutros ou escuros.

Tal como vimos nos retratos que Flávio de Carvalho fez de sua mãe, o artista
escolhe o carvão, um material frágil e suave, que permanece pouco sobre o papel
e que num sopro pode praticamente sumir da superfície, para representar um mo-
mento frágil, de perda, como uma representação da brevidade e fragilidade da vida.

O Desenho Livre Infantil


Antes eu desenhava como Rafael, mas precisei de toda uma existência
para aprender a desenhar como as crianças. (Pablo Picasso)

Há estudos que afirmam que o desenho infantil revela a espontaneidade da


criança, mesmo que saibamos que ela é condicionada pelo meio, que existe uma
arte infantil (crianças artistas) e que é possível revelar a personalidade da criança
pelo seu desenho por meio da psicologia e da psicanálise.

Não entraremos nessas questões, pois nosso foco se trata de apresentar alguns
aspectos da produção gráfica da criança por meio do desenho em seus aspectos de
liberdade, os quais foram de grande interesse dos artistas.

De acordo com Florence de Mèredieu, o interesse pelo desenho infantil se iniciou


no final do século XIX, com estudos da Psicologia Experimental, da Pedagogia, a
Sociologia e da Estética.

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UNIDADE O Desenho Expressivo

Segundo Mèredieu:
Primeiro, de 1880 a 1900, descobre-se a originalidade da infância,
depois a influência das ideias de Rousseau em Pedagogia leva a distinguir
diferentes etapas no desenvolvimento gráfico da criança. Em seguida,
o desenho é introduzido no tratamento psicanalítico: em 1926, Sophie
Morgenstern trata desse modo um caso de mutismo numa criança de 9
anos. Paralelamente, prosseguem estudos sobre o “sentido estético” da
criança; estabelecem-se comparações entre o estilo infantil e os quadros
dos mestres, submetem-se as produções infantis aos cânones da beleza;
consagram-se estudos à escolha da cor e ao repertório gráfico da criança
(...) (MÈREDIEU, 2006, p.2).

O autor ainda cita várias outras vertentes científicas que estudou o desenho
infantil e ressalta que Piaget contribuiu muito, com sua psicologia infantil, para
compreendermos os mecanismos de expressão gráfica, gestual e musical infantil.

Os estudos da Psicologia foram importantes para o entendimento da psique


infantil, a qual é diferente da adulta que buscou durante muito tempo vê-la como
uma miniaturização sua.

No desenho, essa concepção psicológica auxiliou a romper com a visão que se


tinha do desenho infantil, o qual era sempre comparado ao do adulto e, portanto,
eram fracassos ou que as crianças tinham falta de atenção ou seus desenhos eram
erros por falta de habilidades motoras.

O desenho infantil possui originalidade, pois se trata de uma descoberta do


mundo pela criança, livre de conceitos e pré-conceitos acerca do certo e do errado,
do bem feito e do mal feito, do que é ou não bonito ou feio.

Esses conceitos são adquiridos durante a vida, em relação com os mais velhos,
com os adultos. “Nunca será demais repetir: o meio em que a criança se desenvolve
é o universo adulto, e esse universo age sobre ela da mesma maneira que todo o
contexto social, condicionando-a ou alienando-a” (MÈRIDIEU, 2006, p.3).

Por este motivo, os adultos, os professores e, principalmente, os arte-educadores


não podem esquecer-se destas questões, proporcionando situações estimulantes
para o desenvolvimento da criatividade, do pensamento crítico acerca destes
conceitos acima citados.

Pablo Picasso e Paul Klee são dois artistas que, no século XX, rejeitaram o
museu, o ensino e a produção tradicional da arte, buscando, de um ponto zero da
criação, recomeçar toda a produção artística desde as bases primitivas, um “estágio
primitivo”, um “espírito branco” (MÈRIDIEU, 2006).

Essa tentativa de apagar toda a cultura repetitiva das mesmas formas e dos
cânones também se deu por um desejo de regressão, também direcionado ao
desenho infantil, visto que este é feito pela criança que desenha pela primeira vez.

32
O desenho é uma das primeiras expressões
da criança. Para além dos cinco sentidos, a
criança se comunica e se expressa com os ins-
trumentos e materiais que o adulto lhe forne-
ce, sendo que os mais comuns são o papel e
o lápis, as canetas hidrográficas e o lápis de
cor ou de cera.

A criança possui uma atitude em face de


suas produções que se caracteriza pela falta
de apego pelos desenhos que faz. Segundo
Mèredieu, “a criança de três ou quatro anos
não reconhece como seu o desenho executa-
do alguns minutos antes; depois que a obra é
produzida, retira-se dela e concentra todas as
suas energias no gesto do momento” (2006,
p.6). O mesmo acontece com o artista con-
temporâneo que se importa mais com o gesto
e a ação do que com o resultado. Figura 29 – Paul Klee, Was fehlt ihm, 1930
Fonte: Wikimedia Commons
Para a criança, o que se torna importan-
te é o prazer do gesto. Ela explora os ma-
teriais que lhe dão (o lápis, por exemplo) e
se surpreende com a marca numa superfície,
descobrindo o poder de controlar os rabiscos
e fica muito satisfeita e alegre em produzir
algo, diverte-se com a manipulação das cores
e das tintas.

O desenho na criança é algo físico, é motor,


todo o seu corpo funciona e sente prazer na
gesticulação; para ela, o gesto é o que conta.
O gesto rápido, ligeiro da criança vai perden-
do a sua rapidez de execução de acordo com
o avanço da sua idade, pois seus interesses Figura 30 – Hans Hartung,
mudam para a busca do desenho bem acaba- Desenho, cerca de 1924
do, com detalhes, um desenho “caprichado”. Fonte: Hans Hartung, 1924

As manchas e rabiscos das crianças também são aspectos da liberdade no


desenho, que foram de grande interesse de artistas como Jean Dubuffet, Paul Klee
e Joan Miró:
Desde 1945, Dubuffet debruça-se sobre as produções infantis, lê livros
sobre o assunto, exporá as amarelinhas e os graffiti da rua Lhomond e da
rua Mouffetard. Aquilo que o pintor chamou “a aventura dos graffiti” acha-
se ligado a uma regressão da figura humana em sua obra. Essa valorização

33
33
UNIDADE O Desenho Expressivo

estética do grafismo infantil é igualmente clara em artistas como Klee, que


deixa a linha correr e proliferar jogando ao acaso, ou ainda Miró, que, ao
mesmo tempo em que a “técnica” do rabisco, utilizará processos infantis
como o “enchimento”, preenchimento da superfície por uma constelação
de pontos, estrelas e signos (MÈREDIEU, 2006, p.8).

A criança possui sua linguagem própria


na expressão gráfica, com um vocabulário
e sua sintaxe, signos gráficos como o sol, o
boneco, a casa, o navio.

Arno Stern, estudioso do desenho


infantil, constituiu uma gramática dos
signos básicos do desenho da criança,
uma gramática “gerativa” que compreende
como a criança passa de uma figura para a
outra. Stern chamou de “imagem residual”
a forma que permanece na produção
gráfica infantil, mas que vai perdendo seu
valor expressivo, sendo reutilizada em
outros contextos.
Figura 31 – Joan Miró, Capa da revista Cavall Fort
Para Méredieu, é Fonte: Wikimedia Commons

[...] partir do momento em que a criança se torna capaz de desenhar um


boneco mais elaborado, o boneco girino dá origens à imagem residual do
sol – o que explica a proliferação de sóis com cabeça humana – do polvo,
do leão, da mesa redonda com seus quatro pés deitados (MÉREDIEU,
2006, p.15).

Por mais que possamos conceber o desenho infantil como sendo um desenho
livre, há muitos momentos em que o adulto conduz a criança para uma representação
gráfica codificada em elementos e formas simples como o círculo, o quadrado, o
triângulo, as imagens da abóboda, do funil, os signos em Vetc.

Estes são elementos que, nas mais variadas combinações, geram diversas figuras
do vocabulário infantil e que, muitas vezes, permanecem conosco por toda a vida,
gerando um repertório visual que se repete. No entanto, a criança naturalmente
busca formas novas, criando uma profusão de desenhos que fogem dos esquemas
reduzidos criados pelos adultos.

Sob a influência do adulto, a criança passa a distinguir os diversos signos,


identificando o aspecto narrativo e figurativo do desenho, buscando encontrar um
sentido na imagem, tornando-a compreensível, legível.

A criança não se interessa muito, a princípio, no sentido ou na sua ausência,


pois está mais interessada no manejo dos materiais e na criação das formas.

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Aos poucos, a criança aprende a usar elementos gráficos universais para se
comunicar com o adulto, num processo de socialização. E paralela à evolução
psicomotora da criança, é elaborado o seu sistema gráfico, ou seja, trata-se de
um processo progressivo e evolutivo de acordo com o desenvolvimento das suas
experiências, sentimentos, crescimento, os quais atuam sobre a evolução dos signos
da linguagem plástica (MÉREDIEU, 2006).

Dentro da evolução do grafismo infantil, Luquet distinguiu quatro estágios:


1. realismo fortuito: iniciado quando termina o período do rabisco, por volta
dos dois anos, quando a criança já realiza uma analogia formal entre um
objeto e o seu traçado, dando nome ao seu desenho;
2. realismo fracassado: por volta dos três e quatro anos, após descobrir a
identidade forma-objeto, a criança passa a reproduzir esta forma, constituindo
a fase de aprendizagem marcada por fracassos e sucessos parciais;
3. realismo intelectual: período entre os quatro aos dez ou doze anos, no
qual a criança desenha aquilo que sabe e não aquilo que vê. Normalmente,
recorre a dois processos, o desenho do plano deitado (objetos representados
sem perspectiva como as árvores de cada lado da estrada) e a transparência
ou representação simultânea, como a casa representada de fora e de dentro
ao mesmo tempo.
4. realismo visual: marcado pela descoberta da perspectiva, pela perda do
humor e se aproximando, aos poucos, das produções adultas, geralmente
por volta dos doze anos, marcando assim, o fim do desenho infantil.

A terminologia de Luquet tem suas limitações, na medida em que subordina o


desenho à noção de realismo. No entanto, por ter sido o primeiro a distinguir estas
etapas, tem sua relevância.

Não se trata de identificar os estágios como degraus sucessivos numa espécie de


ascensão que busca a representação correta das coisas. É importante identificarmos
que há um percurso, não havendo uma etapa sendo mais importante que a outra. E
Mèredieu questiona: “não se poderia operar uma inversão e considerar a evolução
do grafismo não como uma caminhada para a figuração adequada do real, mas
como uma desgestualização progressiva?” (2006, p.22-3)

Mais que entender as diferentes abordagens de análises e estudos do desenho


infantil, voltados aos estágios cognitivos e perceptivos, de acordo com as produções
gráficas das crianças, é importante para nós compreendermos as características vol-
tadas para a liberdade, descoberta e experimentação presentes no desenho infantil.
São exatamente estas questões que podem nos ajudar a ampliar a concepção de de-
senho, de arte, de criatividade e de juízo de valor sobre a produção histórica da arte.

Estes aspectos do desenho infantil são revelados pela forma como a criança
explora os materiais que tem acesso, e sim, pode possuir limites motores que
resultem em linhas não muito definidas, em formas distorcidas e desproporcionais.
Mas um bom desenho é definido por precisão, virtuosismo e proporção exata?

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UNIDADE O Desenho Expressivo

Para a criança, qualquer forma, seja ela um quadrado ou um círculo, de dife-


rentes proporções, possibilita uma infinidade de significados e muitos horizontes
de exploração.

De acordo com Derdyk:


Qualquer pretexto gráfico é o alvo de um campo de representações.
Bichos, plantas, carros, prédios, casas, sóis, árvores, gentes. A criança
vai formando um repertório gráfico como num grande quebra-cabeça.
São construções de uma paisagem, universos de quatro paredes que
asseguram seu ser para ela poder estar neste mundo flutuante de sensações
(DERDYK, 1990, p.100).

O desenho da criança é caracterizado fortemente pelo gestual, pelo exercício da


sensibilidade, exploração e familiaridade dos instrumentos de desenho (lápis, papel,
giz etc.) ou outros instrumentos como gravetos, a areia, o muro, o barro.

É nessa relação entre a ação gestual e o instrumento que a criança observa


as formas, percebe-as e se encanta com suas possibilidades: “entidade móvel, o
olho vê formas, vê o outro, vê a si mesmo, vê a finitude dos corpos abrindo novas
dimensões de comunicação” (DERDYK, 1990, p. 102).

Lev Vygostky, em seu livro A imaginação e a arte na infância (2009) ressalta


que em cada período de desenvolvimento infantil, a imaginação criadora age de
modo peculiar, dependendo, portanto, das suas experiências.

É possível encontrarmos muitas opiniões de que a imaginação da criança é mais


rica que a do adulto. De certo, é na infância que encontramos mais presente a
fantasia, a qual vai diminuindo de acordo com o crescimento: “as crianças podem
fazer tudo de tudo, dizia Goethe, e esta simplicidade, esta espontaneidade da
fantasia infantil, que deixa de ser livre no adulto, confunde-se habitualmente com a
extensão ou a riqueza da imaginação da criança” (VYGOTSKY, 1990, p.38).

Nesta Unidade, estudamos Arte Figurativa e Abstrata e o Desenho Infantil. No seu texto
Explor

Arte infantil: do Pré-Simbolismo ao Abstracionismo, as autoras Rosa Iavelberg e Rafaela


Gabani Trindade discutem questões sobre o desenho infantil, sobre figuração e abstração
e sobre as relações entre os artistas e o universo infantil por meio de um estudo analítico.
Para elas, a garatuja parte de esquemas procedimentais e cognitivos diversos da imagem
abstrata. As garatujas configuram-se como peças pré-simbólicas em um momento em que
o desenhista já está de posse da função simbólica.  Serão estes aspectos que guiarão as
reflexões deste texto, que os encara como ferramentas para elucidar a didática da arte que
observa a produção da infância com fonte de alimentação na arte adulta.
https://goo.gl/twCS9a

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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Livros
Gaveta dos Guardados
CAMARGO, Iberê. Gaveta dos guardados. São Paulo: Edusp, 1998.
No Andar do Tempo: 9 Contos e um Esboço Autobiográfico
CAMARGO, Iberê. No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico. Porto
Alegre: L&PM, 1988.
O Desenho da Figura Humana
DERDYK, Edith. O desenho da figura humana. São Paulo: Scipione, 1990.
Desenhando com o Lado Direito do Cérebro
EDWARDS, Betty. Desenhando com o lado direito do cérebro. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2000.
O Desenho Infantil
MÈREDIEU, Florence de. O desenho infantil. São Paulo: Cultrix, 2006.
Abstração Informal
MORAIS, Frederico. Abstração informal. In: DA COLEÇÃO: os caminhos da arte
brasileira. São Paulo: Júlio Bogoricin, 1986. p.161.
Fundamentos do Desenho Artístico
ROIG, Gabriel Martín. Fundamentos do Desenho Artístico. Barcelona: Parramón, 2007.
Manual Prático do Artista
SMITH, R. Manual Prático do Artista. Porto: Civilização, 2006.
Iberê Camargo, Desassossego do Mundo
VENÂNCIO FILHO, Paulo. Iberê Camargo, Desassossego do Mundo. Brasília:
Pactual, 2001.
A Imaginação e a Arte na Infância
VYGOTSKY, Lev. A imaginação e a arte na infância. Lisboa: Relógio D’água,
1990.

Leitura
Iberê Camargo: Matéria da Memória / Instituto Arte na Escola
EGAS, OLGA. Iberê Camargo: matéria da memória / Instituto Arte na Escola. In:
MARTINS, Mirian Celeste; PICOSQUE, Gisa (coords.). São Paulo: Instituto Arte na
Escola, 2006.
https://goo.gl/gDJD1s

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UNIDADE O Desenho Expressivo

Arte Abstracta
GOODING, Mel. Arte Abstracta. Lisboa: Presença, 2002;
Arte infantil: Do Pré-Simbolismo ao Abstracionismo
IAVELBERG, R.; TRINDADE, R. G. Arte infantil: do Pré-Simbolismo ao Abstracionismo.
In: ARS (São Paulo) vol.7 n.14, São Paulo, 2009.
https://goo.gl/mFNbhq
Modernismo e Vanguarda: O Caso Flávio de Carvalho
LEITE, Rui Moreira. Modernismo e Vanguarda: o caso Flávio de Carvalho. On-line.
https://goo.gl/5Fcx2j
Entrevista com Iberê Camargo
REIS, Paulo. Entrevista com Iberê Camargo. In: ARS (São Paulo) vol.1 no.2 . São
Paulo, Dec. 2003.
https://goo.gl/VsWPkP

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Referências
DERDYK, E. Disegno. Desenho. Desígnio. São Paulo: SENAC, 2008.

DWORECKI, S. M. Em Busca do Traço Perdido. São Paulo: Scipione, 1999.

EDWARDS, B. Desenhando Com o Lado Direito do Cérebro. 7.ed. Rio de


Janeiro: Ediouro, 2004.

HOCKNEY, D. O Conhecimento Secreto – Redescobrindo as Técnicas Perdidas


dos Grandes Mestres. São Paulo: Cosac e Naify, 2001.

SIMBLET, S. Desenho: Uma Forma Prática e Inovadora para Desenhar o Mundo


que nos Rodeia. São Paulo: Costumes, 2011.

VILASALO, P.; J. M. A Perspectiva na Arte. Lisboa: Presença: 1998.

WONG, W. Princípios de Forma e Desenho. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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