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MARX E A RELIGIÃO: PRESSUPOSTOS BÁSICOS PARA UMA

COMPREENSÃO DA RELIGIÃO NA OBRA DE MARX1

Francisco Alencar Mota2

Resumo: O trabalho se propõe a uma análise da relação entre Marx e a religião,


buscando fugir a determinados reducionismos, referindo-se à interpretação que
simplifica e generaliza determinada concepção de religião a partir de algumas assertivas
de Marx. Para o autor, faz-se necessário compreender tal relação no contexto das obras
em que Marx se refere à religião, mais especificamente, o que requer distinguir no
pensamento marxiano algumas fases diferenciadas no desenvolvimento de seu
pensamento e obras. Nesse sentido, o autor tomou como referências três obras que
julgou representativas desse desenvolvimento, em que Marx se refere à religião,
comparando-as em função dos dilemas enfrentados por esse autor ao longo de sua vida.
A tese do autor é que o foco da crítica da religião em Marx tem como base muito mais,
em um primeiro momento, a crítica à filosofia idealista que se apresentava como uma
religião; em seguida, uma crítica da alienação humana, compreendida em termos de
ideologia religiosa; por último, uma crítica do Capital, que tomara o lugar da divindade,
subsumindo o homem como por interior à sua lógica.

Palavras-chave: Marx, Religião, Crítica.

Abstract: The paper proposes an analysis of the relationship between Marx and
religion, seeking to escape certain reductionism, referring to the interpretation that
simplifies and generalizes certain conception of religion from some assertions of Marx.
For the author, it is necessary to understand this relationship in the context of the works
in which Marx referred to religion, more specifically, which requires distinguishing the
Marxian thought some different phases in the development of his thought and works. In
this sense, the author took as references three works representative of this development,
in which Marx referred to religion, comparing them on the basis of the dilemmas faced
by the author throughout his life. The author's thesis is that the focus of Marx's critique
of religion is based on much more, at first, the critique of idealist philosophy which
presented itself as a religion; then a critique of human alienation, understood in terms of
religious ideology; Finally, a review of the capital, which had taken the place of
divinity, such as subsuming the man inside his logic.

Keywords: Marx, Religion, Critical.

1
O presente trabalho é a base da comunicação apresentada no III Colóquio Marx, Marxismo e Religião,
promovido pelo Grupo de Estudos Marxista – GEM-UFC, no dia 22 de maio de 2014, sediado na
Universidade Federal do Ceará – UFC.
2
Professor Associado da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, Mestre e Doutor em Sociologia
pela Universidade Federal do Ceará – UFC, Pós-Doutor em Estudos Avançados de Cultura
Contemporânea – UFRJ.
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Francisco Alencar Mota

Introdução

Abordar a relação entre o pensamento de Marx e a religião requer um cuidado


hercúleo. Isso porque a obra de Marx, entendida aqui como o conjunto de seus escritos,
não compreende um todo rigorosamente sistematizado e concatenado, sendo seu
pensamento construído historicamente à medida que Marx lidava com diferentes
questões práticas e teóricas – controvérsias intelectivas, questões pessoais, engajamento
político etc., compreendidas também em termos de “fases”. Isso não é verdade somente
para com o tema da religião, mas igualmente com sua teoria do Estado, sua teoria das
classes sociais, sua teoria da revolução etc. Eis porque falamos em um Marx em
oposição ao neo-hegelianismo, um Marx francês, um Marx amigo de Engels, um Marx
propriamente revolucionário etc., sem qualquer desmerecimento da assertiva, apenas
para facultar a qualquer autor sua condição histórica.
Assim, no que concerne à abordagem da religião, me limitarei à teoria
“marxiana”, propriamente dita, se é que é possível abordar o pensamento de um autor,
livre do que disseram já sobre ele, propondo inicialmente alguns pressupostos iniciais,
na forma de questões, que permearão todo o trabalho, a saber: quais escritos, mais 93
especificamente, Marx se refere à religião, sem que eu pretenda abordar todos eles, mas
apenas algumas referências escolhidas para o momento? Com que escolas ou autores,
Marx está dialogando nesses escritos? E sobre que questões? Qual a relação que Marx
estabelece entre a religião e essas questões? A que exemplos de religiões
(historicamente falando) Marx se refere propriamente e por que o abordou da forma
como o fez?
Tais pressupostos não serão seguidos necessariamente nessa ordem, mas de
forma a orientar o trabalho, como um todo, ao final do qual arrisco algumas conclusões,
sempre na qualidade de “provisórias”, para suscitar uma discussão, muito mais que
afirmar posições dogmáticas.

A religião na obra de Marx

Marx se envolve, de forma mais elucidativa, com o tema da religião em um


determinado momento de sua vida, cujo contexto pessoal e histórico pode ser resumido
pela sua estada na Universidade de Berlim, no que pese as dificuldades atravessadas,
mas igualmente determinante quanto ao curso de sua vida, tendo abdicado da carreira

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jurídica, mais especificamente, e assumido a Filosofia e a História com mais intensidade


a ponto de, segundo dados de sua biografia, até ter ficado doente. O clima intelectual
estava dominando pelo “hegelianismo”, que não se apresentava unicamente como uma
corrente filosófica, mas também como ideologia legitimadora do estado prussiano,
contra a qual se insurgirá os “jovens hegelianos” (ou “hegelianos de esquerda”), sob
uma perspectiva crítica, sobretudo quanto à tese hegeliana de que tal estado era a
encarnação dos ideais da moral e a manifestação da razão universal em todas as
dimensões da vida social, pensamento dominante na Universidade de Berlim, ao tempo
de Marx.
Para se entender a entrada da questão religiosa nas discussões devemos partir,
portanto, do pressuposto do pensamento hegeliano de que o Estado, a Religião e a
Filosofia, constituíam, para Hegel, supremas manifestações de Deus, entendido como
Absoluto, e, no que concerne mais especificamente à religião (a religião cristã, diga-se,
sobretudo a luteranismo – religião oficial do estrado prussiano, mas a Igreja Católica,
em geral), esta aparecia como a mais completa revelação da Razão enquanto espírito
universal.
Posto este pressuposto inicial, necessário à compreensão do desenvolvimento do 94
significado da religião no pensamento de Marx, podemos afirmar que a tematização da
religião se dará, inicialmente, no contexto da crítica ao postulado hegeliano que se
traduz também em função da oposição ao governo prussiano, o qual redundara numa
“frustração”, sentida no âmbito do pensamento filosófico pelos denominados “jovens
hegelianos”, dentre estes Marx, que acabaram por se constituir no que poderíamos dizer
grupo “rebelde”, vítimas de perseguição.
O tema da religião acabara por se tornar alvo de controvérsias políticas, além,
claro, de ponto central da crítica a todo o edifício da filosofia hegeliana, razão pela qual
Marx inicia a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel dizendo: “a crítica
da religião é a premissa de toda a crítica”; e no mesmo texto: “a crítica da teologia se
converte na crítica da política” (MARX, 2005). A demonstração disso está no próprio
trabalho dos jovens hegelianos, os quais escolheram a religião como ponto central de
discussão, cada um ao seu modo, buscando minar de forma até certo ponto cuidadosa e
estratégica, porém contundente os fundamentos basilares do sistema hegeliano.3

3
Refiro-me aos trabalhos sobretudo de David Strauss, Bruno Bauer e Ludwig Feuerbach, abordando, em
termos gerais, a religião sob o ponto de vista histórico, como também sua natureza em termos filosófico-
antropológico.

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O foco de crítica ao sistema hegeliano dominante pelos denominados “jovens


hegelianos”, em um primeiro momento, fora à base filosófica da religião, com
implicações diretas na crítica do estado e governo prussiano, que entendiam ser
despótico e corrupto. Dentre os “jovens hegelianos” destacara-se Feuerbach, que
exercera um papel de liderança sobre os demais, incluindo o próprio Marx. Ao final,
não mais encontrando espaço devido a forte censura sofrida pelo governo prussiano,
passaram a publicar no exílio, tendo sido os Anais Franco-Alemães, um canal de
divulgação de suas idéias, no qual também Marx publicara, de imediato, dois
importantes trabalhos importantes para a compreensão do tema da religião – Introdução
a uma Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e A Questão Judaica, ambos em 1844.
Na Introdução (2005), Marx dedica o início do texto ao tema da religião, que a
apresenta como expressão do desamparo real do homem e protesto contra esse
desamparo. Assim o faz em meio a uma análise da situação da Alemanha, marcada pela
inércia política, fato esse que se compensa por um modo fantástico da ideologia que é
própria religião.
A angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão da dor real e o protesto
contra ela. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um
mundo sem coração, tal como o é o espírito de uma situação sem espírito. É o 95
ópio do povo. (2005)

No texto, Marx tem como objeto da crítica o próprio estado e governo alemão,
ou o que denominou de o “regime alemão”, de caráter anacrônico, em meio à
impossibilidade de se enveredar por uma mudança revolucionária do estado de coisas,
no máximo, minar os fundamentos idológicos deste estado, realizando a crítica da
filosofia alemã, nos termos como elaborados pela filosofia do Direito de Hegel, que
servia de base de sustentação ideológica, quanto ao Direito e ao Estado.
Na Crítica (2005), propriamente dita, Marx se debruça sobre a filosofia do
Direito de Hegel, que servira de base legitimadora do Estado moderno, e, mais
especificamente, o estado prussiano, para o que Marx propõe que seja realizada a crítica
do Estado real que serve de base a esta filosofia. É a crítica dos próprios fundamentos
do Estado, que se reveste de religiosidade, sendo a religião, por outro lado, a forma
como este Estado se apresenta, ou seja, universal, guardião de toda moral, e
desenvolvido. Ao contrário, para Marx, tal estado era despótico e atrasado, e a crítica do
mesmo representaria a condição para a saída da opressão e a verdadeira conquista da
emancipação humana, rompida a alienação que vivem as massas oprimidas.

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É nesse sentido que se enquadra sua abordagem da religião, nos termos como
subtraímos ao próprio Marx (2005):
O homem que só encontrou o reflexo de si mesmo na realidade fantástica do
céu, onde buscava um super-homem, já não se sentirá inclinado a encontrar
somente a aparência de si próprio, o não-homem, já que aquilo que busca e
deve necessariamente buscar é a sua verdadeira realidade.
A religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a religião: este
é o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a autoconsciência e o
autosentimento do homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu.
Mas o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O homem é o mundo
dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram
a religião, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um
mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio
enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade espiritualista, seu
entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão geral de
consolo e de justificação. É a realização fantástica da essência humana por
que a essência humana carece de realidade concreta. Por conseguinte, a luta
contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo que tem na
religião seu aroma espiritual.
A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o
protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de
um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o
ópio do povo.
A verdadeira felicidade do povo implica que a religião seja suprimida,
enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões
sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita

96
de ilusões. Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da critica do vale
de lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade.

Destaque-se que nessa obra, Marx ainda não tem de forma elaborada ou
sistematizada sua teoria das classes sociais, mencionando-a apenas de forma difusa,
posto que antecede à fase em que se envolverá mais efetivamente nas lutas em prol dos
operários, razão pela qual sua abordagem da religião carece de elementos que serão
acrescidos posteriormente, embora que tinha já presente a noção de dialética, daí porque
compreenderá a “angústia” religiosa, segundo defendem vários autores, sob uma
perspectiva que podemos definir “paradoxal”, compreendendo tanto uma legitimação
das condições existentes, como também uma perspectiva de protesto contra elas.
Em Sobre A Questão Judaíca (2010), Marx nos dá mais elementos para a
compreensão da religião, importando antes, entender o contexto dessa obra, também
escrita no final de 1843, e publicada no ano seguinte, nos Anais. Marx se envolve no
problema que se convencionou chamar de “emancipação política”, reivindicada pelos
judeus alemães, em função do acentuado cristianismo do Estado para o que Bauer
respondera sugerindo aos judeus que renunciem ao judaísmo, assim como o homem, em
geral, deveria abandonar a religião a fim de obterem a emancipação política e a
cidadania.

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Marx critica duramente a resposta dada por Bauer alegando que este, limitava o
critério da emancipação política unicamente à crítica da religião, transformando um
problema que, no fundo, era de outra natureza, em um problema “teológico”, o que seria
uma contradição, tendo em vista que a emancipação política não poderia ser pensada de
forma a desconsiderar o que ele denominara de “emancipação humana”. Esta seria
obtida apenas de forma integral, tendo-se o homem como uma totalidade, não apenas
sua dimensão religiosa, como um problema meamente privado, ressaltando, assim, a
contradição entre a esfera privada e a esfera coletiva, a sociedade civil e o Estado, o
interesse particular e o geral. Nesse sentido, Marx critica a concepção liberal de direitos
humanos, conforme herdada da Revolução Francesa, alegando que tal conquista não
superara de vez o “homem egoísta”. Tratava-se, portanto, para Marx, de emancipar o
homem enquanto ser genérico, emancipação do homem enquanto humano, o que
implicaria a sua sociabilidade – os homens entre si, coletivamente. (2010)
É nesse contesto que se compreende o cerne da crítica da religião em Sobre A
Questão Judaica, ou seja, sob um duplo aspecto: primeiro, a crítica à concepção do
Estado que se constitui como base e estrutura do Estado alemão e, por conseguinte, da
Europa do século XIX, em que a religião faz parte do aparato ideológico que o Estado 97
utiliza como forma de alienação; e segundo, pela religião impedir uma conscientização
política dos trabalhadores acerca dos problemas reais, rumo a um processo
revolucionário de mudança geral do estado de coisas, quando, por exemplo, projeta para
uma outra realidade, que não o mundo concreto das relações sociais, a sociedade
perfeita desejada.
Marx afirma ser a religião o “ópio do povo” e explicitará em que sentido isso se faz,
formulando o conceito de religião como ideologia, ou seja, um sistema de ideias que se
caracteriza pela representação de um mundo imaginário oposto ao mundo real de miséria em
que vive a classe dos trabalhadores. Conforme suas próprias palavras, a religião “é a realização
fantástica da essência humana porque a essência humana carece da realidade concreta”.
A religião ocupa, portanto, um papel sobretudo de obstáculo à uma tomada de
consciência pelos homens de sua verdadeira situação, fazendo com que estes passem a se preo-
cupar basicamente com um mundo alheio ao seu (o céu, o paraíso, o inferno, etc.) e deixem de
perceber a opressão e exploração pelas quais passam aqui neste mundo (terra). Ao contrário, a
percebem como vontade divina e não como fruto de um processo histórico-social.
Marx aproveita-se do que considerou ser o “egoísmo dos judeus”, alusão à
“vocação” monetária e comercial dos judeus, ao exigirem uma emancipação especial

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para si mesmo, reforçando o caráter não religioso do problema religioso, mas


engendrado nas estruturas da própria sociedade e do Estado, em particular.
Vós, judeus, sois egoístas quando exigis uma emancipação especial para vós,
como judeus. Como alemães, deveis trabalhar pela emancipação política da
Alemanha; como homens, pela emancipação humana (MARX, 2000, p. 13).

Para Marx, a questão religiosa que se coloca na obra é a da necessidade de tratar a


emancipação humana como um todo indissociável, enquanto emancipação social, não somente
de uma classe, para isso importando romper com as amarras e os obstáculos que impedem uma
consciência verdadeiramente emancipatória, constituindo-se a religião um desses obstáculos,
exatamente por afirmar a verdade de uma ilusão, enquanto que a consciência emancipatória
requer a desconstrução dessa ilusão para se enxergar o mundo real, como ele de fato é – um
mundo de miséria.
A crítica da religião desengana o homem para que este pense, aja e organize
sua realidade como um homem desenganado que recobrou a razão a fim de
girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol. A religião é
apenas um sol fictício que se desloca em torno do homem enquanto este não
se move em torno de si mesmo (Ibidem, p. 86).

Trata-se da crítica do caráter absoluto da religião, compreendida como um


existir em si mesmo, posto que quem existe de fato é o homem, constituindo a religião
apenas uma forma de representação da realidade que, no contexto da crítica a que se
98
propõe, uma representação às avessas (invertida) da realidade, cumprindo uma função
corroboradora da opressão e miséria existente na sociedade (sociedade capitalista), visto
que somente no mundo imaginário a religião apregoa a igualdade e a justiça, não no
mundo concreto dos homens. Nesse sentido, a religião não é absoluta, não existe
independente do homem. Ao contrário é o homem que a cria, e mais do que isso, a cria
como forma de resposta falsa aos seus verdadeiros problemas.
A religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a religião: este é
o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a autoconsciência e o auto-
sentimento do homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu. Mas o
homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O homem é o mundo dos
homens, o Estado, a sociedade, este Estado, esta sociedade, engendram a
religião, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um
mundo invertido (Ibidem, p. 85).

Para Marx, a crítica e a derrota da religião não estão, pois, relacionadas a uma
questão teológica, não constitui um fim em si mesmo. Marx não se propõe à crítica da
religião pela própria crítica, mas para adentrar o seu fundamento último – o egoísmo
humano que impede uma representação mais coletiva da vida social e, particularmente,
da opressão humana. Assim, não se trata de acabar com a religião em si, mas acabar

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com um modelo de sociedade que cria uma religião que obstaculiza a emancipação
humana. Não se trata de um problema teológico, mas político e social.
[...] o dinheiro é o Deus zeloso de Israel, diante do qual não pode
legitimamente prevalecer nenhum outro Deus. O dinheiro humilha todos os
deuses do homem e os converte em mercadoria, [...], o dinheiro é a essência
do trabalho e da existência do homem, alienada deste, e esta essência o
domina e é adorada por ele. O Deus dos judeus se secularizou, converteu-se
em Deus universal. A letra de câmbio é o Deus real do judeu (MARX, 2000,
p. 48).

Em A Ideologia Alemã, obra em que Marx a escreve conjuntamente com Engels,


no exílio, tem-se o tema da religião pulverizado em meio a outras formas de
representação da realidade, desta feita sob o manto da noção de ideologia, como forma
de consciência, ao lado de outras formas como a própria ciência e toda a produção de
ideias. A tese principal defendia por Marx (e Engels), conforme ele mesmo nos oferece
é:
a produção de ideias, representações, da consciência está de início
imediatamente entrelaçada na atividade material e no intercâmbio material
dos homens, linguagem e vida efetiva (...) o mesmo vale para a produção
intelectual tal como se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral
da religião, da metafísica etc de um povo. (MARX; ENGELS, 1986, p. 36)
99
Na obra, Marx se encarregará de fazer a crítica da crítica à filosofia alemã,
realizada pelos neo-hegelianos, sobretudo de Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner, de
quem definitivamente agora se separa, atribuindo-lhes o fato de que se limitavam, ainda,
às representações religiosas do pensamento de Hegel, não ocorrendo de “perguntarem
qual era a conexão entre a filosofia alemã e a realidade alemã, a conexão entre a
crítica e o seu próprio meio material”.
Ao adentrar o mérito da questão, Marx introduz diversas noções que comporão o
conteúdo da obra, tais como noção de consciência, divisão do trabalho, comunismo,
proletariado, classe social, força produtiva, intercâmbio produtivo, propriedade privada,
atreladas à outras já desenvolvidas como de Estado, alienação etc, buscando uma
relação entre tais noções, de onde chega-se a uma noção mais ampla que lhe redundou
inclusive o legado de método científico a saber – o seu materialismo histórico.
Não se trata mais de fazer a crítica dos fundamentos da filosofia de Hegel, mas
afirmar que a crítica dos neohegelianos (esquerda hegeliana) não fora suficiente para
romper definitivamente com as contradições daqueles fundamentos, em termos de
representações religiosas. Faltara a eles, segundo Marx, “perguntar pela interconexão

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da filosofia alemã com a realidade efetiva alemã, pela interconexão da crítica deles
com a própria circunstância material deles”.
Se propondo a isso, Marx elege como fator inovador de sua análise levar à
radicalidade “a existência de indivíduos humanos vivos”, a assertiva de que “o modo
pelo qual os homens produzem os seus meios de vida depende inicialmente da
constituição mesma dos meios de vida encontrados aí e a ser produzidos”. Inverte, pois,
o sistema do pensamento alemão de cabeça para baixo, priorizando o homem em toda a
sua extensão histórica, imerso em suas próprias cadeias produtivas, como elas se
configuram no mundo concreto, na vida prática, para, só então, subir à formação da
consciência, esta atrelada a essa condição existencial que, na forma de ideologia,
propicia ao homem pensar sua existência de forma invertida, contraditória, legitimadora
do status quo.
Ao mesmo tempo em que as formas de representação espiritual (entenda-se,
moral, jurídica, política, religiosa etc) emergem das condições mais materiais do
indivíduo concreto, possuem, em função dos poderes estabelecidos, a capacidade de
representar falsamente as condições sociais existentes no interior das relações de
produção. É-nos possível dizer, em consonância com o pensamento de Marx, que os 100
homens produzem suas ideias, mas nem sempre produzem como as querem.
Nesse sentido, a religião passa a se configurar como um modo de alienação que,
nessa obra, ganhara contornos diferenciados em relação a outras obras, como, por
exemplo, nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, de 1844. Na Ideologia Alemã a
alienação, incluindo a religiosa, é tida como força produtiva, graças à cooperação dos
indivíduos na divisão do trabalho, mostrando-se aos homens como um “poder estranho,
situado fora deles, que eles não conseguem mais dominar”, e que, na verdade, dirige a
vontade e a marcha da humanidade.
Parece-nos que, após A Ideologia Alemã, presenciamos uma relativa mudança de
foco no concerne à abordagem da religião por Marx, em termos de como vinha sendo
tratando até então. As referências à religião se darão de forma mais difusa, não mais
como uma espécie de subsistema ideológico de representação da consciência, ou de
fundamento da concepção de Estado ou mesmo do pensamento filosófico alemão; mas
como forma de existência e atuação do próprio Capital, sobretudo no que exerce sobre a
sociedade e aos indivíduos, como podemos perceber de diversos trechos dispersos em
obras como o próprio Capital.

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O capitalismo se transforma na religião na modernidade, o Capital o grande deus


e a mercadoria o objeto de adoração, daí o “fetichismo da mercadoria”; os fiéis, as
grandes massas de trabalhadores, sendo o “sacrifício” ou a “oferenda” ao Deus-Capital
a venda da força de trabalho, enquanto sacrifício humano, e as bênçãos os sonhos
ilusórios de uma vida melhor, como podemos depreender da crítica de Marx à economia
política. No entanto, vale salientar o caráter metafórico dessas referências, sem qualquer
pretensão, julgo eu, de conferir a esses conceitos religiosos um conteúdo mesmo que de
simbolismo cultural à exemplo do que ocorre nas ciências da religião propriamente
ditas. Talvez nesse ponto Marx se diferencie de Engels, que em diversos dos seus textos
parecia perseguir algum significado cultural e histórico para a religião (ou as religiões
históricas), talvez mesmo em função de sua educação protestante. Sobretudo quanto às
associações entre comunismo e religiosidade popular, tópico que poderia ser melhor
perseguido por meio da pesquisa.

Considerações finais

Apresentada uma síntese do desenvolvimento ou “usos” da noção de religião em 101


Marx a partir de alguma de suas obras em que trata mais diretamente do tema, não
podemos deixar de responder algumas perguntas que não param nunca de ser feitas:
qual a relevância da abordagem de Marx acerca da religião para a compreensão do
fenômeno religioso hoje? O que Marx disse sobre a religião se aplica a qualquer forma
de religião histórica? Tinha Marx em mente uma análise da religião, propriamente dita?
Esta mesma pergunta, de outra forma: existe uma teoria da religião stricto sensu em
Marx?
Obviamente que ao tentar responder a essas questões imprimimos às respostas
um quantum de subjetividade, mesmo que sob pretensão analítica. E que qualquer
resposta que arrisquemos a essas perguntas estará estritamente relacionada com nossas
histórias de vida, nossas constituições psicológicas e emocionais.
No entanto, é-nos possível correr esse risco, além do que de nada valeria a mera
ânsia de conhecimento se não visássemos uma mediação entre a contribuição teórica
que a filosofia (e a ciência, de uma maneira geral) produzisse e a prática humana e
social, entendida aqui como o conjunto das circunstâncias e situações concretas que
estão a clamar por esclarecimentos, orientação e mudança. Afinal, não é do próprio

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Marx o legado de que a ciência e a filosofia só fazem sentido se responderem e


orientarem situações concretas da vida social – no caso, a prática revolucionária?
No entanto, para isso é preciso por o trem em cima dos trilhos! O que quero
dizer com isso? Por as coisas nos seus devidos e corretos lugares! Não podemos, sob
pena de não estarmos sendo “marxista”, ignorar o caráter histórico dos fenômenos com
os quais lidamos, proceder as devidas distinções e diferenças, compreender o
significado das teorias e resultados científicos não como dogmas a serem aceitos de
forma incondicional e supra histórica sob o manto falso da coerência identificatória que
possuímos com os autores que mais “nos agradam”. Guardo como um dos principais
ensinamentos de Marx o exposto na seguinte sentença: “ser radical é tomar as coisas
pela raiz. Ora, a raiz, para o homem, é o próprio homem”. Tal assertiva faz-nos ver que
uma crítica só faz sentido se ela responder aos problemas suscitados pelo homem.
Assim como também que o homem não cria problemas que no fundo, no fundo, não lhe
interessa em sua vida prática.
Em se debruçando sobre os textos de Marx que tratam da religião, podemos, de
imediato, auferimos uma conclusão: não se encontra em momento nenhum Marx se
referindo à religião, em abstrato, ou seja, fora de um contexto histórico o qual busca 102
compreender, como, por exemplo, a situação política da Alemanha; a luta
revolucionária em que se engaja, posteriormente, a forma que assume o Capital perante
os homens e a sociedade. Só em atrelando sua abordagem sobre a religião a um
determinado contexto, em específico, é que a compreensão da religião adquire sentido.
Mesmo quando Marx se refere a experiências religiosas em concreto como o
cristianismo, o luteranismo, ele tem em mente o luteranismo alemão, não o que existe
no sul do Brasil, na Argentina ou em outras partes do mundo. Tudo o que ele se referiu
sobre a religião encontra num determinado contexto histórico uma significação que a
genialidade de Marx soubera muito bem transformar numa teoria devidamente
elaborada e coerente.
Não se pode afirmar categoricamente que Marx procedera uma análise stricto
sensu da religião. No entanto, em se debruçando sobre determinados textos em que
Marx trata da religião, não nos será difícil perceber que nosso autor tem em mente
muito mais em falar de uma filosofia que se travestia de religião do que de uma religião
em si mesma; falar do Capital que se transveste de religiosidade do que uma religião
que engendera o Capital. Isso seria coerente com o fato de que o foco de Marx não era
determinada religião, em particular, como em Weber, Durkheim etc, que se debruçaram

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sobre o significado social dos sistemas simbólicos das religiões em particular que
analisaram. O foco da crítica de Marx era a filosofia idealista, em um primeiro
momento, que se apresentava como uma religião; mais tarde, a alienação humana,
compreendida em termos de “idolatria” religiosa; o Capital, que tomara o lugar da
divindade e subsumia o homem, e assim por diante. Marx não se debruça sobre questões
religiosas propriamente ditas, nem mesmo como filósofo ou cientista social, a despeito
de se referir vez ou outra a determinadas religiões históricas. Marx nunca analisou uma
determinada religião, em particular, daí não podermos inferir uma filosofia da religião
amparado nas referências que faz à determinada religião. Se levarmos mais adiante essa
tese, pode-se afirmar, sem qualquer desmerecimento da abordagem de Marx sobre a
religião, que os elementos que ele toma da religião são desprovidos de análise mais
profunda, muito mais próximo do senso comum do que de uma “ciência religiosa”,
propriamente dita; isso porque não era sua intenção proceder, como tentou-se abordar
no presente trabalho, uma compreensão do sistema religioso de qualquer religião,
apenas compreender o que verdadeiramente era seu objeto de análise e crítica – o
sistema de reprodução capitalista, suas característica, conteúdos, articulações,
mediações e estratégias. Tanto é que no Prefácio da Contribuição à Crítica da 103
Economia Política (, ele explicita sua abordagem do modo de produção capitalista
dizendo que alterara a ordem das coisas explicando as formas de consciência (jurídicas,
políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas) pelas contradições da vida material,
definidas em termos de conflitos existentes entre as forças produtivas sociais e as
relações de produção. Aqui, como em outros momentos, Marx explicita o objeto de sua
análise, deixa claro o que ele verdadeiramente analisara, e o fizera muito bem. Não se
trata de submeter Marx a uma crítica, propriamente dita, ao contrário, conferir justiça ao
autor, o que muitas vezes vimos ser injustiçado por compreender a religião dessa ou
daquela forma. Trata-se, na verdade, de se fazer justiça a Marx, evitar que seja julgado
por um crime que não cometera, muitas vezes denunciado pelos seus próprios discípulos
que afirma apressadamente que Marx pensa isso ou aquilo da religião.
Isso não significa que muitas experiências religiosas não estejam cumprindo o
papel que Marx revelara – submetendo pessoas inclusive de todas as classes e camadas
sociais a uma condição de humilhação, engano, subordinação incondicional, enfim
“alienação” nos termos mesmos estabelecidos por Marx, como se pode observar em
muitas experiências religiosas.

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MARX E A RELIGIÃO: PRESSUPOSTOS BÁSICOS...
Francisco Alencar Mota

No entanto, experiências religiosas existem que apregoam a relação com a


divindade como forma de libertação e emancipação humana, inclusive em termos
políticos, sociais e econômicos, esferas essas trazidas para dentro do sagrado e não
excluídas dela, à exemplo do que ocorrera sobretudo ao longo das décadas de 1970 e
1980, e até hoje, na América Latina, dentro do próprio cristianismo católico e
protestante, à luz da Teologia da Libertação, em que a experiência religiosa é vivida
pelas comunidades de forma a compreender a emancipação religiosa no contexto das
lutas políticas, econômicas e sociais em prol da emancipação humana.

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Referências Bibliográficas

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