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5380/raega
Curitiba, v.42, p. 288 -294 , Dez/2017 eISSN: 2177-2738
RESENHA
AS DEZESSETE CONTRADIÇÕES E O FIM DO CAPITALISMO
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sucede realmente no mundo que nos rodeia Harvey demonstra como o dinheiro oferece ao
(p.20). sistema capitalista a possibilidade de medir o
A obra está dividida em três momentos de valor de diferentes mercadorias, do qual a força
discussão, propostos como: contradições de trabalho, que é por ele obscurecida, serve-nos
fundamentais (os primeiros sete capítulos); a de expressivo exemplo. Isso em razão de o
segunda parte, nomeada como as contradições dinheiro representar o valor social de todas as
dinâmicas (do oitavo ao 14º capítulo); e a terceira atividades, de todos os trabalhos, sendo o
parte, em que se discorre sobre as contradições intermédio pelo qual os proprietários dos meios
perigosas (do capítulo 15º ao 17º). Vale lembrar de produção podem reivindicar o trabalho social
que os três momentos não se separam, mas sim que será aplicado pelo operário.
se entrelaçam, prendendo a atenção do leitor O dinheiro permite, em primeira ordem, a
desde o início até o fim. passagem da relação simbólica que possui para
Uma das características admiráveis em uma relação de poder. No entendimento do
Harvey é a dimensão do horizonte geográfico autor, o dinheiro falsifica as formas de
mundial apresentado por meio dos ricos e representação do trabalho social; mais que isso,
oportunos exemplos das diversas cotidianidades cria um conjunto de máscaras (fetiche) que
expostas. oculta a socialização do trabalho (p. 46). É
Ao apresentar as primeiras contradições, exatamente essa disparidade que representa a
as fundamentais, Harvey lembra que essas são segunda contradição.
constantes e que possuem papel dominante no A propriedade privada e o Estado
sistema capitalista: sem elas, o capital sequer capitalista (terceira contradição) são trazidos ao
poderia sustentar-se. debate de forma sucinta nas simulações
O autor apresenta a primeira contradição, desenvolvidas pelo autor. Isso porque o direito à
valor de uso e valor de troca, com magnificência, propriedade privada confere a possibilidade de
lembrando, inicialmente, que os valores de uso vender (trocar) o que é de posse. Porém, a
são infinitamente variados e que os de troca são imposição desses direitos depende da existência
qualitativamente idênticos. Para exemplificar a dos poderes estatais, de um sistema jurídico e de
primeira contradição, ele traz o exemplo do valor um sistema legal que codifique e defina as
de uso e de troca de uma moradia. Nesse caso, o obrigações contratuais que correspondem ao
valor de uso aplica-se quando se realiza um direito de propriedade privada e ao direito dos
financiamento a fim de adquirir uma moradia indivíduos jurídicos individuais. Embora sejam
com o intuito de habitar. Já o valor de troca traz antagônicos, Estado e capital andam juntos,
consigo uma série de signos (interesses, realizam-se por meio de acordos comercias e
ganância, especulação) e condicionantes alianças (p. 58). No entendimento de Harvey, é
(localização, materiais utilizados em sua exatamente o uso desse poder que se legitima
construção, tamanho do terreno e outros) que o por meio de imposição da violência contra os
determinam (p. 58). Essas diferenças convertem grupos desfavorecidos na grande maioria dos
a moradia (e não apenas nesse exemplo, mas na casos, visando à proteção e centralização de
educação, na saúde etc.) num artigo riquezas, que torna a propriedade privada, um
ressignificado, num objeto de especulação. Isso regime de direitos repleto de contradições.
porque ela agrega não apenas o preço do habitar Na apresentação da quarta contradição,
e sim uma série de outros elementos (acima Apropriação privada e riqueza comum, Harvey se
especificados) necessários à reprodução do debruça na compreensão dos modos de
capital que, por sua vez, desencadeia bolhas mercantilização e monetarização de tudo que
especulativas no mercado imobiliário. existe sobre a terra nos dias de hoje. Isso porque
Na segunda contradição, o valor social do trabalho (atividade essencial), terra (natureza
trabalho e sua representação em dinheiro, convertida em propriedade privada) e dinheiro
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visto, essa tática define uma contradição decidir onde e como gastá-los (consumo), e isso
intrínseca entre realização e produção. Mais que interessa diretamente ao capital. Esse
isso, permite aos ricos gestar os meios de movimento, exploratório e mercantil, penetra e
comunicação, isto é, continuar a alienar a classe altera o ritmo da vida cotidiana para além da
trabalhadora via aparato do Estado (impostos e esfera fabril e demonstra que reprodução social
políticas monetárias). não se pode entender fora dessas circunstâncias
Obedecendo aos padrões de acumulações geograficamente diferenciadas.
distintos, o sistema leva a classe dos ricos Na 14ª contradição, Liberdade e
(detentores dos meios de produção) a tornarem- dominação, pode-se presenciar um conjunto de
se cada vez mais ricos; e as classes argumentos relacionados ao que se entende em
desfavorecidas (trabalhadores) a se tornarem âmbito geral por liberdade. A maioria de nós,
cada vez mais pobres e a assumirem os custos da socializados no sistema capitalista, acreditamos
reprodução social, já que o capital socializa as estar dotado de uma capacidade de liberdade de
perdas e privatiza o lucro. Em suma, a pensamento, independente dos muros e das
disparidade na distribuição de renda é barreiras que nos rodeiam (p. 197). O autor
fundamental à sustentação do sistema capitalista desconstrói essa narrativa de senso comum
uma vez que igualdade de distribuição e argumentando que os teóricos que consideram
reprodução de capital, nesse sistema, são coisas lógico esse entendimento, reproduzem grande
incompatíveis (p. 172). equívoco. Ao criticar esse pensamento, o autor
Umas das características que Harvey mais expõe: para haver reprodução de capital, a
admira no capitalismo é o modo como se liberdade e a dominação têm de caminhar juntas,
apropria, a todo o momento, da vida cotidiana, tem de situarem-se “nos extremos de uma
reinventando-se; mais que isso, reproduzindo-se contradição que adota muitas formas sutis e
a ponto de dar origem a tantas contradições. matizadas por não dizer disfarçadas” (p. 201).
O autor mergulha, adiante, empilhando Sendo assim, os trabalhadores são livres num
argumentos e dispondo de exposições concretas duplo sentido. Livre para vender sua força de
que o ajudam a memorar a Reprodução social trabalho aos capitalistas e livres (despossuídos
(13ª contradição). Para assegurar a reprodução nos termos de Harvey) do controle sobre os
social, o capital humano necessita especializar-se meios de produção. É exatamente nesse modo de
e, ainda assim, não produz com a destreza de um submissão que situa-se este paradoxo, já que a
maquinário. Em condições normais de realização liberdade que conhecemos associa-se ao
da atividade laboral (normas e temporalidades privilégio e camufla as formas de escravaturas (p.
previstas na Organização Internacional do 203 e 203).
Trabalho - OIT) o trabalhador (capital humano) Escoltado na ânsia de constituir
não consegue ser altamente produtivo ao ponto argumentos que conectem a enorme gama de
de gerar mais-valia suficiente para que o capital paradoxos que o sistema capitalista apresenta
siga em sua abundante acumulação, nem mesmo em sua fase atual, o autor retrata, de forma
com altos níveis de especialização educacional. O única, as três últimas contradições. As
ponto de vista de Harvey, que é o mesmo de contradições perigosas são grandes riscos para o
Marx, assevera que o trabalhador só pode presente imediato, não apenas para a capacidade
produzir mais-valia em condições de exploração, do motor econômico do capitalismo continuar a
isso porque a reprodução social absorve uma funcionar, como também para a reprodução da
grande quantidade de trabalho não pago (p. 188). vida humana em condições minimamente
Os trabalhadores assumem importância razoáveis.
no âmbito da produção de mais-valia e também A primeira das contradições perigosas (15ª
ao receber seus salários (que se apresentam cada contradição), abarca o Crescimento exponencial
vez menores) já que, ao recebê-los, devem infinito e sua insuficiência diante do modelo
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econômico que se tem apresentando ao longo possibilidades de acumulação. Nesse ínterim, faz-
dos últimos anos. Como foi exposto nas se necessário observar a crítica de Harvey à
contradições anteriores, o capital segue na busca postura que se tem diante dos desastres naturais:
infinita de obter mais benefícios, ora explorando aos seus olhos, trata-se de uma contradição
de modo desavergonhado a classe trabalhadora, interna e não externa ao capital (p. 253), que
ora se apropriando de formas de reprodução aliena a sociedade ao ponto de aceitar o modelo
antes não apropriadas. Ou, ainda, utilizando-se de ecossistemas artificiais e tecnocráticos
de artifícios midiáticos, constituindo uma funcionais ao capital.
sociedade pautada no espetáculo e no consumo. Seguindo a apresentação das contradições
A grande questão é que o lucro exacerbado que nutrem o que poderia ser, no entendimento
também pode tornar-se um grande problema de Harvey, o declínio do sistema capitalista, o
para o capital, afinal, “onde vai parar todo este autor apresenta o último capítulo, A revolta da
dinheiro excedente?” (p. 228). natureza humana: alienação universal (última
Desde sua aparição, até os dias de hoje, o contradição). No movimento criado pelo autor, a
capital tem encontrado saídas, como alienação (da terra, da mente e do corpo) é
empréstimos aos bancos, aos Estados ou ainda apontada como um elemento crucial. Os
dívidas contraídas por hipoteca. No fetichismos e ficções, que infiltraram a vida
entendimento do autor, essa perpétua cotidiana e tornaram-na sublimada,
acumulação do capital em um ritmo exponencial sistematizada e alienada, introduziram também
mediante a criação exponencial de dinheiro pode necessidades supérfluas, “pervertidas em prol da
descarrilhar a relação econômica que move o circulação do capital” (p. 268).
motor do capital. E, como se sabe, a economia do A qualquer momento, os grupos excluídos
crescimento zero resultante seria a sentença da (coletivo de trabalhadores) podem afrontar
morte do capitalismo. Isso porque, sem essas coletivamente as múltiplas formas de alienação e
formas de “expansão não haveria capital” rebater o insustentável modelo do sistema
(p.228). Em suma, “é como se estivéssemos no capitalista, tal qual se apresenta. Seria uma
quadrado número vinte e um do tabuleiro de forma de combater as desigualdades sociais e as
xadrez e não pudéssemos seguir” (p. 225). disparidades econômicas, de pôr fim à
Todavia, esse modelo se apresenta exploração desmedida do meio ambiente,
insustentável quando o tema é a Relação do encontrando por exemplo, alternativas para a
capital com a natureza (16ª contradição). Ao perpetuação da acumulação do dinheiro.
seguir nessa acumulação infinita, o capital Após a apresentação dos dezessete
necessita acumular todos os elementos presseitos, Harvey aponta o que nomeou de
encontrados no meio ambiente, privatizando-os, perspectivas de um futuro feliz e disputado: a
mercantilizando-os, sem levar em conta: as promessa do humanismo revolucionário,
relações com os recursos naturais, com a considerações em que expõe, com a mesma
capacidade de absorver substâncias coerência textual e dialética apresentada ao
contaminantes ou de lidar com a degradação dos longo de toda a obra, questionamentos ao leitor
habitats, a perda de biodiversidade, o risco para um mundo melhor que este que temos
ambiental, a contaminação da qualidade do ar, herdado. O autor indica possibilidades de
da terra e da água ou, ainda, o esgotamento e/ou reivindicar e reinventar os direitos no plano do
alteração da natureza (p. 241). espaço, para assim gozarmos da plenitude de
O desenho que se apresenta na uma vida realizada.
atualidade, mostra-se insuficiente e caminha com Nessa perspectiva, todos os capítulos
vistas ao esgotamento das fronteiras de jorram em nós gotas de pensamentos que
expansão do capital, agudizando a degradação transbordam em nossas mentes e nos fazem
cancerosa da natureza para adquirir novas refletir sobre nosso compromisso como
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REFERÊNCIAS
HARVEY, David. Seventeen contradictions and the
end of capitalism. Londres: Editora Profile Books,
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HARVEY, David. Diecisiete contradicciones y el fin
del capitalismo. Barcelona: Iaen, 2015.
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