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O Discurso do Capitalista

Em seu seminário sobre o Avesso da Psicanálise, Lacan formula os quatro


discursos que estruturam as relações entre o sujeito, os significantes e os objetos,
organizando o laço social conforme a posição de cada elemento nos mesmos (discurso do
mestre, discurso universitário, discurso da histérica e discurso do analista). Não iremos
nos deter aqui nos mesmos. Ressaltamos apenas que são os discursos que fazem laço
social e determinam a posição do sujeito ($) no mesmo. Em outras palavras, determinam
as relações de poder no laço social entre os sujeitos. (LACAN, [1967-70], 1992).

Poucos anos depois desse seminário, quatro anos após o maio de 68, numa
Conferência em Milão, em 1972, Lacan falou pela primeira e única vez no discurso do
capitalista, dizendo que é o substituto do discurso do mestre, não sem antes lembrar que
“é demonstrado historicamente: não há discurso do mestre mais duro do que onde se faz
a revolução”.

Lacan enfatiza que há Um (S1), que intervém no campo dos significantes e faz
funcionar. O que o mestre deseja, ao incorporar o saber do escravo, é que a coisa funcione.
“Há Um. O significante foi o que introduziu no mundo o Um. E basta que haja Um para
que comece. Isso impõe (commande) o S2. Quer dizer que o significante que vem depois
que o Um funcione, obedece. Se o escravo não soubesse algo, não haveria preocupação
em obrigá-lo (le commander)”, acrescenta Lacan, “e pelo fato de que há linguagem, o
discurso do mestre funciona. (...) Aliás, tudo que é preciso ao mestre é que funcione”.
(LACAN, 1972).

Na sequência diz que:

“...agora é tarde demais... a crise não do discurso do mestre, mas do discurso do


capitalista, que é o substituto dele, está aberta. O discurso do capitalista ... é
loucamente astucioso, mas destinado a explodir”.

“Afinal, foi o que se fez de mais astucioso como discurso. Esse último não é menos
destinado à explosão. É porque é insustentável, num truque que poderia lhes explicar,
porque o discurso do capitalista está bem ali (indica o discurso no quadro negro), uma
pequenina inversão simplesmente entre S1 e $... que é o sujeito, basta para que isso
ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido
demais, se consome (consomme) se consome tão bem que se consuma (consume)”.

“Agora vocês estão embarcados, estão embarcados, mas há poucas chances de que
algo aconteça de sério na corrente do discurso analítico, salvo assim, ao
acaso”.(LACAN, 1972)

Lacan se mostra bem pessimista quanto às possibilidades de que o discurso do analista


possa nos desembarcar do laço social determinado pelo discurso do capitalista.

Na transcrição acima, Lacan fala numa “pequenina inversão entre S1 e $”. As


controvérsias sobre o discurso do capitalista surgem em relação ao que ele havia anotado
no quadro negro como sendo o discurso do capitalista com relação aos vetores tomados
por Lacan da topologia do tetraedro, determinando como cada lugar se relaciona com os
demais na escrita dos quatro discursos, como se vê abaixo:
Pesquisando na internet e nos textos, partindo do discurso do mestre, encontramos
diferentes notações do matema do discurso do capitalista, inclusive em sua
denominação:discurso capitalista, do capitalista ou do capitalismo (ver abaixo). Na
notação mais recorrente do discurso do capitalista, além da inversão entre S1 e $, há uma
inversão no vetor, passando a ir do agente à verdade e não mais da verdade ao agente,
mas sem inverter os lugares de agente e verdade. Elimina-se também o vetor que vai do
agente ao outro. É a notação proposta por Marc Darmon, que mostra os passos na
alteração dos vetores para chegar a essa notação. (DARMON, 1994). Há também
notações com a mesma inversão referida, mas sem que o vetor que vai do agente ao lugar
do outro seja eliminado.

Encontra-se ainda uma terceira notação, que é a que considero a mais interessante,
pois mantém as operações entre os lugares tais quais no discurso do mestre, porém
invertendo apenas as posições de S1 e $, ficando $ no lugar de agente e S1 no lugar da
verdade, ressaltando-se o de ligação vetorial entre o lugar da produção e o da verdade
impedimento ( simbolizado por ∆, frequentemente também por duas barras paralelas //) .

As três notações do discurso do capitalista podem ser vistas abaixo:

A dificuldade que vejo na inversão do vetor, que passa a ir do $ no lugar de agente


para o S1 no lugar da verdade, é que aponta para a ideia de que nesse discurso o sujeito
no lugar do agente capitalista comanda o significante mestre (S1), o que me parece uma
identificação imaginária do sujeito com o S1, que passa a se considerar no comando da
linguagem, e não ‘apenas’ como amo do outro, seu escravo (trabalhador).

Fazendo uma leitura dessa última escrita do discurso do capitalista, vemos se


articular a partir do mesmo a sociedade do espetáculo, a sociedade disciplinar, a sociedade
do consumo e a do gozo escópico. S1 no lugar da verdade funciona como imperativo de
gozo do Outro (Goza!), que se desdobra caracterizando cada uma das sociedades
mencionadas acima.Vejamos.

Imperativos de gozo do discurso do capitalista (neoliberal)

Agindo sobre o $ no lugar do agente, ordena o gozo do acumule. (Ver abaixo).O


imperativo é acumular o capital, sem limites. A onda neoliberal do capitalismo deixa claro
que cada vez menos pessoas detêm cada vez mais riqueza no mundo como nunca antes
na história. Outra formulação do imperativo de gozo sobre o $ como agente do discurso
é o de ostentar, sobretudo aos que considera seus pares, o quanto aparenta ter. É o
imperativo escópico mostre-se, ostente.

Perguntou-se certa vez a Bill Gates qual o limite de uma fortuna? Ao que
respondeu: tudo. Outro exemplo é o de uma publicação recente cujo título é: Quanto é
suficiente? Nessa obra, os autores propõem uma abordagem moral da economia e se
perguntam: o que constitui uma vida boa, qual é o verdadeiro valor do dinheiro, por que
trabalhamos longas horas para adquirir mais riqueza, como sair do condicionamento de
um sistema que nos oprime e nos faz agonizar? (SKIDELSKY & SKIDELSKY, 2017).

São perguntas de ordem moral, disciplinar (discipline), podemos dizer, que


procuram limitar o imperativo de gozo obsceno do Outro, dirigidas ao $ agente do
discurso do capitalista, ou o $ embarcado no mesmo, questionando sobre que limites
convém dar ao gozo de acumular capital e/ou de consumir mercadorias.

Cabe ressaltar que embora nesse discurso o produto seja colocado em contato
direto com o agente, nada do que é produzido, seja como mais-de-gozar, ou na forma de
mercadoria que irá vender no mercado, podem satisfazer ao $, por mais que
acumule/consuma/mostre-se. A insatisfação do $, esteja embarcado no discurso no lugar
que estiver, é inevitável.

O imperativo de gozo de S1 no lugar da verdade dirigida ao outro, trabalhador, toma, por


sua vez, as formas de consuma, produza, sacrifique-se trabalhando (disciplinadamente)
para poder consumir e, mostre-se! O próprio trabalhador se transforma em mercadoria
ao vender sua força (saber) de trabalho ao agente capitalista $, investido pelo imperativo
de gozo S1 no lugar da verdade, e entregar-lhe o mais-de-gozar (mais valia). E o $ como
agente do discurso intervém sobre o outro (S2) com o comando trabalha! Vale aqui o
dito popular “manda quem pode, obedece quem tem juízo (ou precisa)”, evidenciando a
dimensão disciplinar implícita.
Referências bibliográficas:

DARMON, Marc. Ensaios Sobre a Topologia Lacaniana. Porto Alegre: Artmed, 1994.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo – Comentários sobre a sociedade do


espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O Que Vemos, O Que Nos Olha. São Paulo: Editora 34,
1998.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987.

LACAN, Jaques. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise [1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.

O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise [1959]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

O Seminário, Livro 17: O Avesso da Psicanálise [1969-70]. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1992.

A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão depois de Freud [1957]. In: Escritos.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Conferência de Milão, 1972. Em italiano e em francês:


http://www.valas.fr/IMG/pdf/IIIIIin_Italia_chap-3.pdf - Em português:
http://lacanempdf.blogspot.com.br/2017/07/do-discurso-psicanalitico-
conferencia.html

LAZNIK-PENOT, Marie-Christine. Por uma Teoria Lacaniana das Pulsões. In:


Dicionário de Psicanálise Freud & Lacan. Salvador: Ágalma, 1994.

NASIO, Juan-David. O Olhar em Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

QUINET, Antonio. Um Olhar a Mais – ver e ser visto em psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2002.

ORWELL, George. 1984 (1949). São Paulo: Cia das Letras, 2009.
ROUANET, Sergio Paulo. A Deusa Razão. In : NOVAES, Adauto (org.). A Crise da
Razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SKIDELSKY, Robert. & SKIDELSKY, Edward. Quanto é suficiente – o amor pela vida
e a defesa da vida boa. Rio de Janeiro: CDFivilização Brasileira, 2017.

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