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IDEIAS PARA O SOCIALISMO

DO SÉCULO XXI COM VISÃO


MARXIANA-ECOMUNITARISTA

1
UNIVERSIDADE FEDERAL
DO RIO GRANDE – FURG

Reitor
JOÃO CARLOS BRAHM COUSIN
Vice-Reitor
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Pró-Reitora de Extensão e Cultura
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Pró-Reitor de Planejamento e Administração
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Pró-Reitor de Infraestrutura
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Pró-Reitora de Graduação
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Pró-Reitor de Assuntos Estudantis
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Pró-Reitor de Gestão e Desenvolvimento de Pessoas
CLAUDIO PAZ DE LIMA
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
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Divisão de Editoração
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Presidente
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Vice-Presidente
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IVALINA PORTO
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Luiz Lorea, 261
CEP 96201-900 – Rio Grande – RS – Brasil
www.vetorialnet.com.br/~editfurg/
editfurg@mikrus.com.br

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SIRIO LOPEZ VELASCO

IDEIAS PARA O SOCIALISMO


DO SÉCULO XXI COM VISÃO
MARXIANA-ECOMUNITARISTA

Rio Grande
2012

3
 de SIRIO LOPEZ VELASCO

2012

Capa: João Balansin e Irai Mirapalhete


Formatação e diagramação:
João Balansin
Gilmar Torchelsen

V433i Velasco, Sirio Lopez


Idéias para o socialismo do século XXI com
visão marxiana-ecomunitarista / por Sirio Lopez
Velasco.– Rio Grande : Editora da FURG, 2011.
257p. ; 23cm

ISBN

1. Filosofia 2. Ética I. Título

CDU 17
Bibliotecária: Jandira Maria Cardoso Reguffe CRB 10/1354

4
ÍNDICE

Dedicatória e confissão ………………………………… 7

Introdução ……………………………………………… 9

Ética ecomunitarista, pessoa e formação política.......... 11

A crítica à alienação no Capital à luz da Ética


Argumentativa Ecomunitarista ...................................... 43

Ucronia mínima………………………………………… 159

La ética ecomunitarista y las necesidades legítimas en


la perspectiva del socialismo del siglo XXI en América
Latina …………………………………………………… 195

Fundamento filosófico y legitimación ética de la


libertad de expresión en el socialismo del siglo XXI …. 211

El Ecomunitarismo y el Tao Te King: primera


aproximación …………………………………………… 245

Bibliografia ....................................................................... 255

5
6
Para meus três amores Maria Josefina, Carolina,
Sirio Roberto, meus pais, minha irmã e nossa
numerosa família repartida em dois continentes,
e todas aquelas e todos aqueles que na América
Latina caíram ou lutam hoje, inventando o
socialismo do século XXI

TODO DIA SINTO A VOZ DOS NOSSOS


MORTOS QUE ME EXIGE NÃO CESSAR DE
LUTAR E DE SONHAR

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INTRODUÇÃO

O presente livro reúne alguns dos trabalhos produzidos nos


últimos dois anos e que foram destinados a distintos veículos
impressos e/ou eletrônicos publicados em países da América Latina.
Sua reunião neste volume visa facilitar a tarefa dos leitores que em
Nuestra América, e inclusive para além das nossas fronteiras, se dão
ao trabalho de acompanhar as peripécias da progressiva elaboração de
nossa visão ecomunitarista. O fato do livro conter alguns textos em
português e outros em espanhol é expressão da sua vocação latino-
americana e latino-americanista em tempos do socialismo do século
XXI que está sendo inventado no nosso Continente mestiço.
Agradeço calorosamente as traduções iniciais realizadas pelo
professor Paulo Granada para a parte dedicada à crítica marxiana da
alienação, e as de quase todos os relatos de Ucronía mínima feitas
pel@s seguintes alun@s do Mestrado em Educação Ambiental da
Universidade Federal do Rio Grande (FURG) em 2010: Daniela
Pieper, Aline dos Santos Baptista, Krischna Duarte, Marta Antunez,
Rafaela Schiavon, e Renan Pimentel; essa parte é a versão
portuguesa da primeira metade de uma obra editada em 2009 em
espanhol pela FURG, intitulada Ucronía; considero que essa
primeira parte é a mais interessante daquele livro, pois ela resume a
nossa visão do futuro ecomunitarista, e daí o nosso interesse em
facilitar o seu acesso ao público brasileiro, colocando-a a sua
disposição na sua língua materna.

Sirio López Velasco


lopesirio@hotmail.com
Cassino, verão 2011

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10
ÉTICA ECOMUNITARISTA,
PESSOA E FORMAÇÃO POLÍTICA

Tentaremos apresentar resumidamente no que segue a nossa


proposta de fundamentação última da ética, preenchendo o abismo
aberto por David Hume (1752) entre as expressões que tratam do
“ser” e aquelas que tratam do “dever ser”, e completando o
caminho que Karl-Otto Apel (1973-1988), e Jürgen Habermas
(2000), empreenderam sem sucesso, e mostrar as conseqüências do
conteúdo e da aplicação das três normas éticas fundamentais
(deduzidas argumentativamente da pergunta que instaura a ética)
para a constituição da pessoa e para a formação política dos
cidadãos. Esperamos mostrar resumidamente que as três normas
fundamentais da ética, com validade intersubjetiva universal,
podem ser deduzidas argumentativamente da pergunta que instaura
a ética; e que essas três normas nos exigem, respectivamente,
realizar nossa liberdade individual de decidir, realizá-la em buscas
consensuais com os outros em relação ao que devemos fazer, e a
preservar e regenerar a saúde da natureza humana e não humana.
Consideramos que a pessoa, como indivíduo com “capacidade de
se determinar por motivos cujo valor ele possa justificar perante
outros seres racionais” precisa unificar sua personalidade,
vencendo a fragmentação tríplice da sua estrutura interna, e
vencendo a fragmentação dos diferentes papéis que lhe toca
interpretar na existência social. Ora, essa unificação revela-se
impossível no capitalismo, na medida em que este violenta no seu
dia a dia as três normas fundamentais da ética e condena os
indivíduos a uma existência alienada. Para que a pessoa possa se
constituir é preciso superar o capitalismo numa ordem sócio-
ambiental que denominamos “ecomunitarismo” (ordem utópica na

11
qual as três normas fundamentais da ética teriam realização
cotidiana). Para que os sujeitos possam exercer uma critica à
tripartição da sua personalidade e à alienação negadora que sofrem
no capitalismo, é preciso colocar em ação uma pedagogia
problematizadora, nos moldes da proposta por Paulo Freire. Ora,
hoje é preciso que essa proposta educativa diga claramente que o
inimigo chama-se ordem capitalista, e que o futuro almejado é o
ecomunitarismo (para que possam vir à luz indivíduos universais
solidários com os outros e respeitosos da natureza não humana), e
que a ação político-pedagógica almejada em nível formal e não
formal é a educação ambiental ecomunitarista.

RESUMO DA ÉTICA ECOMUNITARISTA

Considero que a ética é o conjunto de respostas


argumentadas que damos à pergunta “Que devo fazer?” na forma
de Quase-raciocínios Causais (QRC). Um QRC está constituído
por um obrigativo (com a forma “devo fazer tal coisa”, ou “não
devo fazer tal coisa”, seguido do operador não veritativo “porque”,
seguido por sua vez de um enunciado (no sentido da lógica
clássica, isto é uma sentença suscetível de ser verdadeira ou falsa).
A gramática dos QRC se apresenta como segue: se resultar
falseado o enunciado que sustenta o obrigativo, então essa
obrigação vê-se revogada por via argumentativa (isto é, não obriga
mais); terá que ser procurada outra, que seja sustentável pero
mesmo ou por outro enunciado constitutivo do respectivo QRC. Se
o enunciado do QRC não é falseado no debate de argumentos,
então o obrigativo permanece como obrigação legítima (até que
eventualmente sua falência ocorra em novos debates). A única
restrição dentro deste jogo gramatical consiste no fato de que o
enunciado que sustenta o obrigativo tem que tratar do mesmo
assunto (conteúdo) que este último; assim por exemplo “Devo
cuidar as crianças por que o sol é uma estrela” não pode ser aceito
como um QRC bem constituído.
Para a dedução das normas ética é fundamental o operador

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lógico que chamo de condicional (e que funciona em expressões
do tipo “tal coisa é condição de tal outra coisa”) e cuja tabela
veritativa é a que segue.

p q p*q
V V V
V F V
F V F
F F V

A dedução dessas normas, no que constitui a fundamentação


última da ética tout court, dá-se pela elucidação das condições de
felicidade (no sentido de John L. Austin 1962) da pergunta que
instaura a ética, a saber “Que devo fazer?” (sem ou fora da qual
simplesmente não há ética) e com a ajuda do operador lógico de
“condicional” (ver Lopez Velasco 2003a).
Essas três normas se apresentam como segue.
A PRIMEIRA NORMA ÉTICA – A felicidade da pergunta
“Que devo fazer?” está condicionada pela possibilidade que eu/nós
tenhamos de escolher entre pelos menos duas alternativas de ação.
Ora, escolher entre duas alternativas de ação supõe liberdade de
decisão. Assim, a liberdade de decisão é uma condição referente à
posição do sujeito que realiza o ato de fala “Que devo fazer?” e faz
parte da realização feliz desse ato. Posso portanto dizer:
a) Eu tenho liberdade de decisão é condição de Eu posso
realizar mais de uma ação ou tipo de ação diferente.
b) Eu posso realizar mais de uma ação ou tipo de ação
diferente é condição de Eu faço a pergunta "Que devo fazer?".
c) [porque o operador de condicional respeita a propriedade
de transitividade, ou seja porque a fórmula sentencial que segue é
uma tautologia: ((( p * q ) . ( q * r ) → ( p * r)))] eu tenho
liberdade de decisão é condição de eu pergunto “Que devo fazer?”.
d) Eu quero fazer a pergunta “Que devo fazer?” (numa
realização feliz). E por esse procedimento eu deduzo a primeira
norma da ética que reza:

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“Devo garantir minha liberdade de decisão porque Eu garanto
minha liberdade de decisão é condição de Eu faço a pergunta
'Que devo fazer?' (numa realização feliz)".

Esta norma é o fundamento ético de toda crítica a qualquer


instância da falta de liberdade de decisão, particularmente quando
essa falta resulta de relações alienadas com os outros e comigo
próprio. Nota-se que haja vista a condição humana (que é uma
condição social) podemos dizer que talvez nunca uma instância da
pergunta "Que devo fazer?" será plenamente "feliz", mas ao
mesmo tempo devemos constatar que essa pergunta é o “lugar” da
instauração-reafirmação da nossa liberdade de decisão e da luta
por consegui-la.
A SEGUNDA NORMA DA ÉTICA Agora a questão é a
seguinte: “É ilimitada a liberdade individual de decisão
estabelecida pela primeira norma da ética?”. Inspirado em Karl-
Otto Apel (1973) e Oswald Ducrot (1972), proponho que a
gramática do ato de “perguntar” inclui como condição da sua
“felicidade” os dois princípios seguintes:
a) o indivíduo que formula uma pergunta acredita que seu
interlocutor responderá à mesma dizendo o que acredita ser
verdadeiro ou correto;
b) o indivíduo que formula uma pergunta assume com esse
ato uma atitude de busca coletiva e consensual do verdadeiro ou do
correto.
[Nota-se que a violação de qualquer um destes princípios é
possível, mas nesse caso a pergunta em questão não será “feliz”].
Também postulo que quando se realiza a nível ético a pergunta “Que
devo fazer?” espera-se como resposta um QRC. Sobre essa base e
considerando que qualquer indivíduo que formula a pergunta “Que
devo fazer?” está abrindo por esse ato a porta para a participação na
condição de interlocutor válido a qualquer pessoa que entenda a
interrogação, advém a segunda norma da ética, que reza:

"Devo buscar consensualmente uma resposta para cada

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instância da pergunta 'Que devo fazer?' porque Eu busco
consensualmente uma resposta para cada instância da
pergunta 'Que devo fazer? ' é condição de a pergunta 'Que
devo fazer?' é feliz ".

Esta norma traça os limites da liberdade individual de


decisão estabelecida pela primeira norma exigindo uma construção
e vivência consensual da liberdade. Penso que as pessoas que
defendem o dissenso contra o consenso (caso de Lyotard 1979)
estão confundidas. Em primeiro ligar, chamo a atenção para o fato
de que redigir um artigo o um livro para defender a importância do
dissenso é uma prova irrefutável da importância do consenso,
porque mediante aquele escrito o que se pretende é fazer consenso
sobre a importância do dissenso. A oposição simples de “dissenso
contra consenso” parece ser uma “contradição ilocucionária na
medida em que o conteúdo ilocucionário do ato lingüístico se
contrapõe à força ilocucionária veiculada pelo mesmo (como
quando alguém ordena “Não me obedeças!”, porque o próprio da
ordem é pressupor e comandar a obediência). Creio que consenso e
dissenso estão numa relação dialética onde um se transforma no
outro. Se busco o consenso é porque estou no dissenso. Mas,
especialmente no caso das normas éticas, o consenso é sempre
provisório e pode transformar-se em dissenso a cada instante,
bastando para isso que venha a ser falseado argumentativamente o
enunciado que dá sustentação ao obrigativo que as integra. Disso
também se desprende que não há um problema real na suposta
problemática que diferencia entre consensos fáticos e consensos
legítimos. Todo consenso é sempre provisório. As normas da ética
são históricas e a História está sempre aberta. Mas a segunda
norma confirma a primeira no sentido de que devemos lutar por
uma ordem social na qual todas as pessoas sejam o mais livres que
for possível em suas decisões individuais consensualmente
estabelecidas (e criadas e recriadas a cada instante mediante
discussão argumentativa).

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A TERCEIRA NORMA ÉTICA – Quais são as condições de
existência da pergunta “Que devo fazer?” (cfr. as regras “A”
propostas por Austin). Em primeiro lugar, deve existir o ato
lingüístico da pergunta. Mas para a existência de tal ato se faz
necessária a existência da linguagem humana; ou seja, a existência
do ser humano. Mas, o que caracteriza um ser como “humano”?
(se excluirmos a dimensão da sua linguagem). Posso responder: o
trabalho. O trabalho é a interação entre a parte da natureza que é o
ser humano e o restante da Natureza, através da qual o primeiro
está em situação histórica de permanente auto-produção. O
trabalho pressupõe a Natureza em seus três componentes: o sujeito
(o ser humano), o objeto e o instrumento, ambos naturais de forma
direta ou indireta. Mas a respeito de que Natureza estamos
falando? A resposta é: de uma Natureza saudável para o trabalho,
que é uma condição para a sobrevivência do ser humano. Agora
posso propor o seguinte argumento:
Premissa 1: A natureza é saudável do ponto de vista produtivo é
condição de eu sou um ser humano.
Premissa 2: Eu sou um ser humano é condição de eu faço a
pergunta ' Que devo fazer' ?
Conclusão: A natureza é saudável do ponto de vista produtivo é
condição de eu faço a pergunta 'Que devo fazer?'.
A este raciocínio posso associar a forma p*q;q*r
p*r
que é uma forma logicamente válida, porque a fórmula sentencial
que a representa é uma tautologia.
Assim encontramos a terceira norma da Ética:

“Devo preservar uma natureza saudável do ponto de vista


produtivo porque eu preservo uma natureza saudável do
ponto de vista produtivo é condição de eu faço a pergunta
‘Que devo fazer?’ (numa realização feliz)".

Quero de imediato advertir que talvez essa norma não seja a


última palavra da ética em matéria ecológica e de educação

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ambiental, dado o caráter utilitarista da visão da natureza ali
compreendida. Mas creio que ela é uma base mínima aos efeitos
do dispor de um fundamento argumentativo para a importante
tarefa que é a preservação-regeneração da Natureza, atividade que
faz parte da luta por uma ordem sócio-ambiental ecomunitarista.
Note-se que essa norma trata tanto da natureza humana quanto da
não humana. Para a primeira invocamos o conceito (utópico) de
saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), no qual “saúde”
é não apenas a ausência de doença, mas a situação de perfeito
bem-estar físico, mental e social. Já, para a natureza não humana
podemos tentar definir “saúde” em termos de “equilíbrio dinâmico
ecossistêmico sustentável”; como hoje é praticamente impossível
que qualquer parte do planeta não sofra direta ou indiretamente os
efeitos da ação antrôpica, esse equilíbrio exige cuidar para que
nessa ação os grandes ciclos e ecossistemas da natureza não
humana (a nível local, regional e planetário) não sejam afetados de
maneira irreversível.

O Ecomunitarismo

Chamo de “Ecomunitarismo” a ordem sócio-ambiental


utópica pós-capitalista (talvez nunca alcançável, mas indispensável
horizonte guia da ação) capaz de se articular com base nas três
normas da ética e de manter-se pela postura de seres humanos em
atitude de libertação; dela fazem parte: a) uma economia ecológica
e solidária sem patrões, sem dinheiro e sem desemprego que
preserva-regenera a saúde da natureza humana e não humana e
articula-se com base no princípio ‘de cada um segundo sua
capacidade e a cada um segundo suas necessidades’ (ver sobre a
extensão e legitimidade das ‘necessidades” Lopez Velasco 2003b,
p. 86-88), b) uma erótica do prazer compartilhado, não sexista e
não repressiva (Lopez Velasco 2003b, p. 201-210), c) uma
pedagogia ambiental problematizadora (Lopez Velasco 2003b,
p. 125-129 e 210-237), d) uma política de todos (Lopez Velasco
2003b, p. 238-278), e, e) uma comunicação livre e simétrica

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baseada na mídia comunitária associativa, expropriando as
oligarquias do seu monopólio mediático (Lopez Velasco 2009c).
No livro “Ucronía” (Lopez Velasco 2009c), e em especial na
primeira parte dessa obra (a que dá nome à mesma) tentamos
mostrar como funcionaria uma sociedade ecomunitarista no seu
dia a dia, incluindo as esferas da educação, da livre sexualidade, da
economia ecológica e solidária, da política participativa direta, e
da comunicação livre, democrática e simétrica. Num primeiro
relato, intitulado “Uma jornada de Almotasim em Tlön”,
apresentamos um dia qualquer na vida de um casal que tem dois
filhos, mostrando o funcionamento de uma economia ecológica e
solidária sem patrões, o uso de energias limpas e renováveis, os
relacionamentos humanos marcados pela amizade, a cooperação e
o respeito mútuo, e a livre sexualidade, assim como pela prática da
educação problematizadora. Num segundo relato, intitulado
“Viviendo, produciendo, distribuyendo y consumiendo”, apresento
uma oikonomia sem patrões baseada no principio “de cada um
segundo suas capacidades e a cada um segundo suas necessidades”
e respeitosa da preservação-regeneração da saúde da natureza
humana e não humana, incluindo os problemas e dilemas de
algumas pessoas que dela participam (já que o ecomunitarismo não
acaba com todos os dilemas humanos, mas ajuda a enfrentá-los
melhor). Num terceiro relato, intitulado “La escuela
ecomunitarista” descrevo o funcionamento da escola no
ecomunitarismo, incluindo considerações relativas às instalações,
às metodologias e à educação sexual. Um quarto relato, intitulado
“El amor libertario” detalha as diversas vivências da livre
sexualidade prazerosa e a diversa conformação dos núcleos
familiares. O quinto relato, “La comunicación simétrica”,
apresenta uma comunicação baseada em mídias comunitárias e
participativas, que abrangem desde o espaço local até o planeta por
inteiro. O sexto relato, “La política de todos”, descreve o
funcionamento concreto de uma democracia direta, participativa e
decisória, que administra desde as questões locais até as
planetárias. Em fim, um último relato, intitulado “Más allá de la

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tierra”, mostra os seres humanos vivendo no ecomunitaismo fora
da terra, inclusive depois da destruição do nosso planeta azul.
A proposta ecomunitarista (incluindo a sua constituinte
pedagógico-ambiental) sente-se hoje bem acompanhada por
algumas idéias do ecossocialismo (ver Lopez Velasco 2003), do
ecofeminismo (ver Lopez Velasco 2003), do ecologismo dos
pobres (ver Lopez Velasco 2003), do biorregionalismo de esquerda
(ver Lopez Velasco 2003) e do socialismo do século XXI, que
começa a nascer na América Latina (ver Lopez Velasco 2009b).

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PESSOA E A SUA


NEGAÇÃO NO CAPITALISMO

O “Vocabulaire technique et critique de la Philosophie” de


André Lalande (1976) define a pessoa do ponto de vista moral,
seguindo Leibniz e Kant como « (O) ser individual entanto que ele
possui as características que lhe permitem participar na sociedade
intelectual e moral dos espíritos: consciência de si, razão, ou seja
capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, o bem do mal;
capacidade de se determinar por motivos cujo valor ele possa
justificar perante outro seres racionais”. Se esquecermos da
dicotomia não unificável entre ser empírico e coisa em si, que
Kant (influenciado pela sua divisão entre “fenômeno” e “coisa em
si”) introduziu no indivíduo humano ao considerá-lo
separadamente como ser biológico e ser moral, e assumirmos o ser
humano como “busca de liberdade no mundo” (a partir das três
normas éticas, sendo que a primeira focaliza a liberdade individual
e a segunda e a terceira, respectivamente, a sua condição e
circunstâncias de ser social e de ser biológico), então veremos que
o capitalismo nega no seu dia a di a possibilidade da constituição
de cada indivíduo como pessoa. E isto ocorre tanto pela alienação
quanto pela fragmentação da existência individual. Desta última
deu testemunha Bertrand Russell (1946) quando disse que não
podia dar conta na sua filosofia (alicerçada no atomismo lógico,
que só reconhecia as sentenças como expressões lingüísticas

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legítimas do ponto de vista argumentativo), com as suas opções
morais e políticas (que usavam obrigativos e julgamentos de
valor); como sabemos, tal separação fica superada na nossa
proposta pela própria estrutura das normas éticas reconfiguradas
como Quase-Raciocínios Causais; eles dão conta daquela
expectativa que Russell tinha, e nunca conseguiu desenvolver, de
uma ética fundada em razões. Por outro lado e mais recentemente,
os chamados pós-modernos (Lyotard 1979) catalogaram a
fragmentação da existência como sendo um “dado” insuperável da
chamada pós-modernidade,na qual, segundo eles, cada indivíduo
desempenharia ao longo de uma mesma jornada e da sua vida
inteira, uma multiplicidade não unificável de papéis. Ora, como já
tenho dito (Lopez Velasco 2009a) esse suposto dado não é senão
expressão das misérias da vida individual no capitalismo, da qual a
dita pós-modernidade não é senão mais um momento histórico;
considero também que essa fragmentação é indissociável da
alienação que Marx criticara na sua juventude (em especial no
“Manuscritos econômico-filosóficos”), mas também, e isto e
menos sabido, na sua obra decisiva, “O Capital”. Antes de
resenhar brevemente essa crítica quero lembrar que também
Freud,ao focalizar a estrutura tríplice do sujeito, se pronunciou
pela unificação da personalidade como sendo o modo de existência
desejável de cada indivíduo, quando disse que a vida adulta
saudável e o objetivo da psicanálise consiste em fazer que ali onde
reinava o Id ou o Superego passe a comandar o Eu; disse Freud
que a tarefa da psicanálise consistia em “fortalecer o Eu, fazé-lo
mais independente do Superego, ampliar seu campo de percepção
e desenvolver sua organização, de forma tal que possa se apropriar
de novas partes do Id; onde havia Id há de haver Eu” (Freud 1968,
vol. II, p. 916; ver também vol. II, p. 851, e vol. III, p. 61). Ou
seja, dizemos nós, sem negar a importância dos desejos e da
pressão social e do mundo, é fundamental que se consiga que a
decisão consciente do indivíduo passe a ser o eixo da sua conduta,
conforme o exige a primeira norma da ética. É claro que no
ecomunitarismo, esse indivíduo é um indivíduo universal, não só

20
porque realiza as suas múltiplas vocações, mas também porque as
realiza em convergência com os outros (respeitando a segunda e a
terceira norma fundamental da ética). Mas agora cabe mostrar
como, pelo menos em grande parte, a não realização da unificação
da personalidade desejada por Freud, deve-se às condições da
existência social dos indivíduos no capitalismo, lembrando a
crítica marxiana da alienação.

Breve resenha da crítica da alienação no “Capital”

Indo além da divisão estabelecida por Althusser entre um


“jovem Marx filósofo” e um “Marx adulto científico”, é decisivo se
focar diretamente o texto do ‘Capital’, tendo como pano de fundo os
“Manuscritos de 1844”, para se verificar como se apresentam na
obra máxima de Marx as diversas dimensões da sua crítica à
alienação. Da nossa parte, verificamos que a crítica marxiana à
alienação realizada no “Capital” é subsumível pela ética
argumentativa ecomunitarista, em especial através das suas três
normas éticas fundamentais (ver Lopez Velasco 2009d); eis a seguir
alguns exemplos (abreviamos os Tomos do “Capital” em “T”, o
Livro em “L”, e a Secção em “S”; todas as traduções são nossas).

Alienação em geral e fetichismo; inversão sujeito-objeto e


reificação do ser humano

Como se sabe, no primeiro volume do “Capital”, na secção


dedicada ao fetichismo da mercadoria (L. 1, S. 1, Cap. 1, item D4)
Marx esclarece que usa esse termo para aludir ao fato de que,
assim como o primitivo se prosterna e adora o fetiche que ele
mesmo criou com suas mãos, admitindo um poder de esse fetiche
sobre ele, o homem que vive nas condições do capitalismo, se vê
submetido ao império dos resultados de suas relações sociais e dos
frutos de sua labor (nessa passagem, em especial, nas diversas
mercadoria que brotam do processo produtivo do trabalho social).
Fazendo o balanço entre libertação e subordinação provocado pela

21
aparição do capitalismo, diz Marx: “O produtor direto, o operário,
não pôde dispor da sua pessoa até que não deixou de viver sujeito
à gleba e de ser escravo ou servo de outra pessoa. Além disso, para
poder se converter em vendedor livre de sua força de trabalho, que
vai com sua mercadoria onde quer que encontre mercado para ela,
teve que se sacudir também o jugo dos grêmios, se furtar às
ordenanças sobre os aprendizes e os oficiais e a todos os estatutos
que entravavam o trabalho. Por isso, num de seus aspectos, o
movimento histórico que converte os produtores em trabalhadores
assalariados representa a libertação da servidão e a coação gremial,
e esse aspecto é o único que existe para nossos historiadores
burgueses. Mas, se enfocamos o outro aspecto, vemos que esses
trabalhadores recém emancipados só podem se converter em
vendedores de si mesmos, uma vez que se vêm despojados de
todos seus meios de produção e de todas as garantias de vida que
as velhas instituições lhes asseguravam. A lembrança desta
cruzada de expropriação tem ficado inscrita nos anais da história
com traços indeléveis de sangue e fogo”, T. 1, L. 1, S. VV, Cap.,
24 item 1, p. 655-656.
Na fetichização geral da vida, ocorre a inversão sujeito-
objeto e brota a ‘ideologia’ (no sentido de uma visão destorcida da
realidade que repousa nas suas aparências): “Por uma parte, o
trabalho pretérito que domina sobre o trabalho vivo, se personifica
no capitalista; por outra parte, o trabalhador aparece, inversamente,
como uma força de trabalho objetivada, como una simples
mercadoria. E essa relação invertida faz surgir necessariamente, já
no plano das simples relações de produção, uma idéia invertida
congruente, uma consciência transposta, que as mudanças e
modificações do verdadeiro processo de circulação se encarregam
depois de desenvolver”, T. 3, L. 3, S. 1, Cap. 2, p. 67.
Todas essas situações podem ser subsumidas criticamente à
luz das três normas fundamentais da ética, pois elas comprometem
ao mesmo tempo a liberdade individual de decidir, a construção
consensual de respostas para as questões vitais que a todos afetam, e
a saúde da natureza (em especial, neste caso, da natureza humana).

22
Alienação dos meios de vida e de produção

Marx constata que no capitalismo a situação de cada


indivíduo vem desde a nascença pré-determinada pela relação
social existente entre os indivíduos agrupados em duas grandes
classes no que se refere à distribuição dos meios de vida e de
produção: uma que é proprietária dos mesmos (os capitalistas e
donos das terras), e a outra que, desprovida dos mesmos, não tem
mais remédio que vender sua força de trabalho aos primeiros para
poder sobreviver (os trabalhadores). Essa situação constitui uma
flagrante violação da liberdade individual de decisão (em especial
para os trabalhadores) amparada pela primeira norma da ética e,
por tanto, é subsumível criticamente por ela. No “Capital” essa
distribuição classista assimétrica se divide em, pelo menos, três
componentes: a) a terra, b) as fábricas, máquinas, matérias primas,
e, c) o dinheiro.

Alienação da terra (privatização da terra)


A terra é, a princípio, fornecedora de meios de vida e é um
meio de produção; assim, dela poderiam os seres humanos retirar
in natura alimentos diversos (frutos, caça) e outros meios de vida
(por exemplo, madeira para fazer móveis ou se aquecerem), e,
cultivando-a, ou seja usando-a como meio de produção, poderiam
através da agricultura e a criação de gado, potenciar a quantidade e
qualidade da satisfação de suas necessidades vitais satisfeitas pela
terra.
Mas ocorre que a terra tem sido privatizada por uma minoria
(latifundiários que depois se aliam, e inclusive se fusionam com os
capitalistas) separando os trabalhadores do acesso à terra. Assim
diz Marx: “A propriedade territorial pressupõe o monopólio de
certas pessoas que lhes dá o direito a dispor de determinadas
porções do planeta como esferas privativas de sua vontade privada
com exclusão de todos os demais” (t. 3, L. 3, S. VI, Cap. XXXVII,
p. 627). Essa situação é a base econômica da apropriação do lucro
extraordinário por parte do latifundiário que é ao mesmo tempo

23
capitalista explorador de ‘sua’ terra (diferentemente do que ocorre
quando recebe das mãos do capitalista a renda derivada da
diferença entre a lucro médio e o lucro individual: “A propriedade
territorial permite ao proprietário absorver a diferença entre o lucro
individual e o lucro médio; o lucro assim captado, lucro que se
renova todos os anos, pode ser capitalizado, apresentando-se como
se fosse o preço da própria força natural” (da terra ou de um salto
de água, etc.; T. 3, L. 3 S. VI, Cap. XXXVIII, p. 658); e Marx diz
“como se fosse” porque sua tese central é que a renda do
latifundiário, como o lucro do capitalista, são extraídos da massa
de maisvalia que a classe possuidora dos meios de vida e de
produção arranca em conjunto ao conjunto da classe trabalhadora;
esclarecemos desde já que nossa subsunção ética da crítica da
alienação é por completo independente dessa tese crucial de Marx
acerca da mais-valia e todos seus derivados.

Alienação das fábricas (e máquinas, ferramentas) e das matérias


primas
A alienação dos meios de vida e de produção pelo lado do
trabalhador fica patente como segue: “…se o trabalhador pudesse
dar a seu trabalho uma existência independente, venderia
mercadorias e não trabalho”, T. 1, L. 1, S. VI, Cap. XVII, p. 482.
Globalmente Marx vê assim a situação: “O processo
capitalista de produção reproduz, portanto, em virtude de seu
próprio desenvolvimento, o divórcio entre a força de trabalho e as
condições de trabalho. Reproduz e eterniza, com eles as condições
de exploração do trabalhador. O obriga constantemente a vender sua
força de trabalho para poder viver e permite constantemente ao
capitalista comprá-la para se enriquecer”, T. 1, L. 1, S. VII, Cap.
XXi, p. 523. E mais adiante diz que o processo produtivo não
assume a característica de acumulação de capital “enquanto não se
enfrentarem com o trabalhador na forma de capital, seus meios de
produção e, por conseguinte, seu produto e seus meios de vida”, T.
1, L. 1, S. VII, p. 543. Ante isso reage o trabalhador: “A faceta
independente e estranha que o regime capitalista de produção dá às

24
condições e as produtos do trabalho em relação ao trabalhador,
enfrentando-as com ele, se converte com o maquinário, em uma
aberta e total contradição. Por isso é na era do maquinário quando
explodem as primeiras revoltas brutais do trabalhador contra os
instrumentos de trabalho”, T. 1, L. 1, S. IV, Cap. XIII item 5, p. 383

Alienação do dinheiro transformado em modalidade da relação


social de “capital”
O dinheiro que devêm capital é aquele que se usa para
comprar meios de produção e força de trabalho com o propósito de
se produzir mais-valia, de preferência em reprodução ampliada, na
qual pelo menos uma parte da mais-valia é reinvestida
sucessivamente na compra de meios de produção e força de
trabalho aos efeitos de gerar mais mais-valia). Ora, esse dinheiro
(como resultado de uma acumulação originária ou como resultado
do ciclo capitalista D – M – D’) é propriedade do capitalista, e dele
está alienado o trabalhador (quem, precisamente por isso, se vê na
obrigação de vender sua força de trabalho ao capitalista). Diz
Marx: …[no capitalismo] só existem duas classes: a classe
trabalhadora, que não dispõe mais do que de sua força de trabalho,
e a classe capitalista, monopolizadora tanto dos meios de produção
quanto do dinheiro” (T. 2, L. 2, S. III, Cap. XX item V, p. 399).
Resumindo a situação geral Marx diz: “A forma das
condições de trabalho alienada deste, autônoma frente a ele, e,
portanto, transfigurada, na qual os meios de produção criados se
convertem em capital e a terra em terra monopolizada, em
propriedade territorial, essa forma correspondente a um determinado
período histórico, coincide, por conseguinte, com a existência e a
função dos meios de produção cridos e da terra no processo de
produção em geral”, T. 3, L. 3, S.VII, Cap. XLVIII, p. 831-832.
Como alternativa pós-capitalista Marx levanta a hipótese de
uma organização comunitária onde a terra e demais meios de
produção deixem de ser privatizados, para serem administrados
coletivamente pelos produtores livremente associados.

25
Alienação do trabalho

O trabalhador está obrigado (negação da primeira norma da


ética) a vender sua força de trabalho aos capitalistas donos dos
meios de produção par poder sobreviver. Ora, para que essa venda
se faça efetiva, não basta a vontade do trabalhador, pois ele
depende da vontade de contratá-lo por parte do capitalista; assim o
desemprego ameaça sempre o trabalhador, como uma dura
realidade presente e/ou sempre como una ameaça futura que pode
se concretizar a qualquer momento. Diz Marx: “A insegurança e
irregularidade do trabalho, a freqüente repetição e longa duração
de suas interrupçõess, sintomas todos eles da existência de uma
superpopulação relativa, figuram nos informes dos inspetores de
beneficência como outras tantas queixas do proletariado agrícola
irlandês”, T. 1, L. 1, S. VII, Cap. XXIII iten 5f, p. 649. Além desta
há de se considerar as longas considerações de Marx sobre a
superpopulação relativa e o exército industrial de reserva,
umbilicalmente unidos à instabilidade do acesso ao trabalho e a
ameaça-realidade do desemprego, en T. 1. L. 1, S. VII, Cap. XIII
item 3 e 4, p. 573-591.
Essa alienação do trabalhador em relação ao trabalho viola a
primeira norma da ética, porque lhe é retirada ao trabalhador a
liberdade de decidir trabalhar ou não e de quando e quanto fazê-lo.

Alienação do produto do trabalho

O trabalhador não pode usar para satisfazer suas


necessidades aqueles produtos que são o fruto de sua produção
e/ou da produção de outros trabalhadores, no contexto do trabalho
social. Ele tem de se contentar com o salário, que paga o valor de
sua força de trabalho, e só então na condição de “consumidor” o
trabalhador tentará se reencontrar no mercado (dentro do limite da
capacidade aquisitiva do montante de seu salário) com os frutos de
seu trabalho e daquele dos outros produtores. Essa situação viola
as duas primeiras normas da ética pois não são os produtores os

26
que a partir de sua liberdade de opinião e em dinâmica consensual
resolvem sobre a distribuição do fruto do trabalho social, porque se
vêm limitados nas suas escolhas não consensuais ao que dispõe a
capacidade aquisitiva limitada de seus salários respectivos. Por
outro lado, essa insuficiência muitas vezes deriva numa violação
da terceira norma da ética, que ocorre quando a saúde do
trabalhador se vê afetada pela incapacidade de satisfazer certas
necessidades (materiais ou espirituais, diria Marx). Diz Marx: “O
capital variável não é, pois, …, mais do que uma forma histórica
concreta de se manifestar o fundo de meios de vida ou o fundo de
trabalho de que necessita o trabalhador para seu sustento e
reprodução e que em todos os sistemas de produção social tem
constantemente que produzir e reproduzir. Se o fundo de trabalho
aflui a ele constantemente na forma de meios de pagamento de seu
trabalho, é, simplesmente, porque seu próprio produto se afasta
dele na forma de capital”, T. 1, L. 1, S. VII, Cap. XXI, p. 514; ver
também items 3 e 4, e T. 2, L. 2, S. III, Cap. XIX, item II5, e T. 3,
L. 3, S. VI, no fim do Cap. XLVII e início do XLVIII.

Alienação do mercado

Deve se notar a condição alienada desse mercado no qual o


produtor tenta satisfazer suas necessidades vestindo a pele do
“consumidor”: “O mercado tem, portanto, que se estender
constantemente, de modo que suas conexões e as condições que o
regulam vão adquirindo cada vez mais a forma de uma lei natural
independente da vontade dos produtores, cada vez mais
incontrolável”, T. 3, L. 3, S. III, Cap. XV, item 1, p. 267.
Essas considerações cobram atualidade redobrada quando a
TV não cessa de fala todo dia sobre “humor do mercado”,
salientando que “o mercado está nervoso”, ou “o mercado está
animado”, o ainda “o mercado espera tal medida do governo”, e
outras tantas jóias de linguagem que personificam o mercado e
colocam os indivíduos de carne e osso a sua mercê. Tal situação
viola flagrantemente a liberdade de decidir e a exigência de fazê-lo

27
consensualmente, estipuladas pelas duas primeiras normas da
ética, e como vimos, também é violada a terceira norma quando a
saúde do trabalhador é afetada por essa alienação, e/ou é afetada a
saúde da natureza não humana (por exemplo pelas poluições por
resíduos do consumo governado sem nenhum planejamento pelo
‘mercado’.

Alienação da atividade produtiva

Quando o trabalhador tem a “sorte” de poder vender sua


força de trabalho a um capitalista para poder sobreviver, sua
atividade produtiva deixa de lhe pertencer, em flagrante violação
da liberdade de decisão amparada pela primeira norma da ética, e
com plausíveis violações da terceira norma (como acontece
quando o emprego de sua força de trabalho deriva em doenças
profissionais, como as “lesões por esforço repetitivo”, LER,
flagelo da atualidade; ao mesmo tempo, ao lhe ser retirado o
controle de sua atividade, o trabalhador não pode zelar, como o
exige também a terceira norma, pela saúde da natureza não
humana que pode ser afetada (em especial, por contaminação e
devastação) por essa atividade produtiva e seus efeitos, que ele não
controla.
Outra dimensão dessa alienação é o fato de que a atividade
produtiva do trabalhador és governada despoticamente pelas
ordens do capitalista e seus representantes, em clara violação da
dinâmica consensual de construção de decisões, estipulada pela
segunda norma da ética. Ambas dimensões foram questionadas de
maneira brilhante por Charles Chaplin em “Tempos Modernos”.
Diz Marx, referindo-se ao trabalhador: “Assim que seu
trabalho começa a se colocar em ação, deixa de lhe pertencer e não
pode, portanto, vender o que já não lhe pertence”, T. 1, L. 1, S. VI,
Cap. XVII, p. 484; e antes, incluindo a disciplina das ordens nessa
dimensão da alienação, Marx tinha dito: “O trabalhador trabalha sob
o controle do capitalista, a quem seu trabalho pertence. O capitalista
toma o cuidado de vigiar que esse trabalho seja executado como é

28
devido e que os meios de produção sejam empregados
convenientemente...", T. 1, L. 1I, S. III, Cap. V, p.147.

Alienação do outro ser humano

O capitalismo é essa guerra de todos contra todos, na qual.


em especial, os capitalistas se opõem aos trabalhadores e vice-
versa, ao tempo em que os capitalistas e os trabalhadores se
opõem, por seu lado e respectivamente, entre si. Essa guerra é
claramente violatória das três normas éticas (incluindo a terceira
pelas enfermidades físicas ou nervosas que podem derivar desse
conflito incessante). Basta ouvir a rádio para saber que em cada
greve, capitalistas e trabalhadores se opõem em especial em
relação ao montante do salário, a duração da jornada de trabalho e
as condições nas quais se realiza o mesmo (que podem ser mais ou
menos penosas para o trabalhador); e em perspectiva histórica,
ambos se opõem objetivamente pela propriedade dos meios de
produção (que no capitalismo pertencem aos capitalistas, e que a
revolução comunista pretende colocar nas mãos dos produtores
livremente associados). Por sua vez, os trabalhadores se opõem
entre si, em especial por causa da luta para acessar e
permanecerem num emprego remunerado com um salário. E
também se opõem os capitalistas entre si, em especial na
concorrência pela conquista e manutenção de mercados e pela
obtenção de créditos, ambas situações vitais para sua manutenção
na condição de capitalistas, ou sua morte como tais, na luta da
concorrência entre os pares.

O trabalhador oposto ao capitalista e ao trabalhador


Explicando a maneira pela qual se constitui a quota geral de
lucro, observa Marx que se nivelam certos desníveis na mais-valia
e/ou o lucro, e que: “Isso pressupõe a concorrência entre os
trabalhadores e a nivelação mediante sua emigração constante de
um ramo de produção para outros”, T. 3, L. 3, S. II, Cap. X, p. 197.

29
O capitalista oposto ao trabalhador e ao capitalista
Abordando outra faceta da oposição entre capitalistas, diz
Marx que quando se trata de se distribuir perdas, e não lucros:
“Isso o decide a força e a astúcia; ao se chegar aqui a concorrência
se converte numa luta entre irmãos inimigos. A partir desse
momento se impõe o antagonismo entre o interesse de cada
capitalista individual e o da classe capitalista no seu conjunto, do
mesmo modo que antes a identidade desses interesses se abria
caminho praticamente através da concorrência”.

O camponês oposto ao camponês


A mútua alienação tampouco poupa os camponeses. Diz
Marx, ao se referir à formação de uma classe de diaristas agrícolas
desprovidos de meios de produção: “No período de formação
dessa nova classe, que só existe ainda em estado esporádico, os
camponeses acomodados adotaram o costume de explorar por sua
conta diaristas agrícolas, do mesmo modo que na época feudal os
‘vilãos’ afortunados tinham a seu serviço outros vassalos”, T. 3, L.
3, S. VI, Cap. XLVII item 4, p. 806

Alienação de si mesmo

Essas múltiplas facetas da alienação mostram que no


capitalismo (especialmente o trabalhador, mas também o
capitalista), o ser humano encontra-se alienado com respeito a si
mesmo, uma vez que o indivíduo se estrutura a partir desse “nó”
que é o das relações sociais, e das que existem no capitalismo com
a natureza não humana, mediadas pelas primeiras. Tal situação é
claramente violatória da liberdade de decisão exigida pela primeira
norma da ética.
Para o trabalhador isso se mostra, por exemplo, no fato de
que ele se relaciona com os outros trabalhadores “como
indivíduos” (sublinha Marx), só quando entram em relação com o
mesmo capital, mas não entre si, e “Sua cooperação começa no
processo de trabalho, quer dizer, quando já têm deixado de se

30
pertencer a si mesmos”, sublinhado meu, T. 1, L. 1, S. IV, Cap. XI,
p. 288. Essa alienação se expressa assim no ‘capital’: “Na
manufatura, da mesma forma que na cooperação simples, a
individualidade física do trabalhador em funções é uma forma de
existência do capital”, T. 1, L. 1, S.IV, Cap. XII item 5, p. 315; e
depois dirá Marx: “…no sistema baseado no maquinário, a grande
indústria possui um organismo perfeitamente objetivo de produção
com o qual o trabalhador se encontra como com una condição
material de produção pronta e y acabada”, T. 1, L. 1, S. IV, Cap.
XIII item 2, p. 338
Demais está dizer que a alienação individual com respeito a si
mesmo e com respeito a esses outros e à natureza não humana, com
os quais o relacionamento em redes faz possível a emergência do
próprio indivíduo humano, violam claramente as três normas da ética.

Outras considerações sobre o capitalista e o trabalho alienado

Ao efeito negativo apontado por Marx do trabalho alienado


para o capitalista (que lembramos acima) gostaríamos de
acrescentar as seguintes observações.
As faculdades que o capitalista coloca em ação em sua
"função", se encontram rebaixadas ao caráter de simples meios de
subsistência enquanto capitalista e deixam de ser livre
exteriorização vital do sujeito que atua como personificação do
capital; assim, por exemplo, o capitalista argumentará e ainda
poderá exercer a imaginação criadora, mas somente o fará nos
limites estabelecidos pela melhor estratégia de valorização do
capital que ele personifica;
Ambas circunstâncias significam que o capitalista está
alienado da natureza na medida em que, apesar de ser seu
proprietário e precisamente por sê-lo, o capitalista perde toda
relação transformadora direta com ela através do trabalho (sem
falarmos da relação lúdico-artística, que também pertence a uma
faculdade especificamente humana);
As duas primeiras circunstâncias manifestam uma alienação

31
do sujeito que é "suporte" do capitalista com respeito a si mesmo e
um desenvolvimento unilateral das aptidões que este sujeito,
enquanto ser humano, possui; este último fato é a causa explicativa
da paixão do capitalista por "hobbys" diversos que, ocupando-o
nas horas vagas, não deixam de revelar as vocações e atividades
das quais vê castrado por e na sua "função" de capitalista;
Por outro lado o capitalista se encontra alienado do outro
homem, o que se concretiza tanto na relação conflituosa que
mantém com o assalariado como na relação competitiva que está
condenado a manter com os outros capitalistas (embora forme
também alternadamente com pelo menos alguns deles, como já
dissemos, "cartéis"), e na indiferença que pratica e sofre em geral
na relação com os seres humanos, sejam eles assalariados ou
capitalistas.
Do que foi dito, resulta que o capitalista está muito longe de
ser o "homem realizado" que se supõe ser. Resulta também
evidente que a superação destas características constitutivas da
alienação sofrida pelo capitalista em situação de trabalho alienado
não pode desvincular-se da superação do próprio trabalho alienado
na sua modalidade capitalista.

A superação da alienação e da fragmentação do indivíduo e a


constituição de indivíduos universais, como pessoas, no
ecomunitarismo

Não é difícil de se perceber, que só a superação do


capitalismo e a efetivação das três normas da ética (num processo
infindável em permanente auto-correção), são capazes de criar as
condições, aplicando o lema “de cada um segundo suas
capacidades e a cada um segundo suas necessidades”, para que
cada indivíduo se desenvolva como pessoa universal; ou seja, para
que desenvolva as suas múltiplas vocações, somando sua liberdade
à liberdade dos ouros, numa dinâmica de convivência que
preserva-regenera a saúde da natureza humana e não humana. Já
esclarecemos (Lopez Velasco 2009a) que as ditas “necessidades”,

32
por sua vez, deverão ser históricamente estabelecidas e revistas à
luz das três normas da ética (e em especial da terceira, que marca
os limites ecológicos a toda intervenção antrôpica na natureza não
humana).

ÉTICA ECOMUNITARISTA E FORMAÇÃO POLÍTICA:


BREVES CONSIDERAÇÕES

Neste ponto nos contentamos com dizer que enxergamos a


educação como fenômeno político-pedagógico, nos moldes da
educação problematizadora (tanto em nível formal como no
informal), segundo a ótica freireana (Freire 1970), que ampliamos
na nossa proposta ecomunitarista com visão sócio-ambiental no
paradigma da educação ambiental.
Sustento que a educação ambiental é uma educação sócio-
ambiental problematizadora alicerçada nas três normas
fundamentais da ética e orientada rumo ao ecomunitarismo.
Lembremos que a educação problematizadora, segundo Paulo Freire
(1970), se alicerça na “conscientização”, definida como a
combinação do desvelamento crítico da realidade e a ação
transformadora sobre ela rumo a uma sociedade sem opressores nem
oprimidos. Salientamos este último elemento da concepção
freireana, para mostrar que se o capitalismo comporta relações de
opressão, então a educação problematizadora (se pretende ser
verdadeiramente freireana) deve apontar para além do capitalismo.
E o desvelamento crítico que ela deve propiciar é aquele das
dominações existentes entre os seres humanos (e acrescentamos na
nossa visão ecomunitarista, das relações de devastação e/ou,
contaminação irreversível, existentes entre os seres humanos e a
natureza não humana). Para Freire ambas facetas da educação
problematizadora se dão de forma dialógica entre os oprimidos e os
que assumirem a sua causa, para derrotar os opressores e a opressão
(ou seja para que os atuais oprimidos não virem novos opressores).
A fundamentação de tal educação problematizadora
encontra-se nas três normas fundamentais da ética.

33
A Educação Ambiental e a crítica do capitalismo

O “capital” é (como Marx o definiu na sua obra “O Capital”)


uma relação social, e não uma coisa (embora ele apareça sob a
forma de “coisas” como o são uma certa quantia de dinheiro ou de
bens móveis e imóveis, ou ainda, como capital variável, na soma
do salário do trabalhador empregado por um capitalista); essa
relação social é aquela que existe entre os donos dos meios de
produção (dentre os quais figura a própria terra, convertida em
propriedade privada de alguns) e aquela grande maioria que por
não possuí-los vê-se obrigada a trabalhar para os primeiros na
condição de trabalhador assalariado. Assim percebe-se que pela
sua própria definição a relação social de “capital” é desigual, e
coloca uns (os trabalhadores) submetidos às ordens de outros (os
capitalistas); note-se que é o capitalista quem decide se o
trabalhador trabalhará ou não (por isso o desemprego é inerente ao
capitalismo, já que quem quer trabalhar não é quem decide sobre
se o fará ou não), e uma vez que o trabalhador conseguiu vender
sua força de trabalho a um capitalista (isto é, conseguiu um
emprego) é esse capitalista quem dirá o que e como o trabalhador
aplicará suas aptidões produtivas (tolhendo as suas vocações
múltiplas para autorizar só aquelas que sirvam à atividade que dará
lucro ao capitalista), é esse capitalista quem se apropriará do
produto do trabalho, embolsando o seu valor após a venda (pois o
trabalhador se limita a receber, no melhor dos casos, o equivalente
ao valor da sua força de trabalho). Nessas condições o capitalista
não se importa em sacrificar a saúde do trabalhador; hoje são
conhecidas as cifras assustadoras de mortos por causa da miséria
do desemprego ou do sub-emprego, dos acidentes de trabalho, das
doenças profissionais mortais, e dos suicídios (em 9 de abril de
2010 o jornal “Libération” denunciou que investiga-se o suicídio a
partir de 2008 de nada menos que 35 trabalhadores da empresa
France Telecom causados pelo assédio moral e stress dum plano
de reestruturação com mais de vinte mil demissões ou
transferências previstas), assim como se conhecem os números

34
impressionantes das doenças físicas (em especial as Lesões por
Esforços Repetitivos, LER) e psicossomáticas (que provocam
entre outros depressão, insônia, impotência ou indiferença sexual,
ou ainda o aumento excessivo da agressividade-violência no
comportamento), derivadas do desemprego ou do medo do
desemprego, das cadências infernais em vigor na produção, ou da
exacerbação da concorrência entre os indivíduos e da cobrança em
relação a cada um deles. Assim o capitalismo é de fato o sistema
da guerra de todos contra todos entre os seres humanos, e da
indiferença crescente entre eles; essa guerra afeta tanto as relações
dos capitalistas com os trabalhadores, quanto as relações existentes
no interior dessas duas grandes classes sociais.
O capitalismo é o modo de produção no qual a produção tem
por objetivo o lucro (ou seja a transformação de uma certa soma de
dinheiro numa soma maior), tendo a mercadoria (incluída a força
de trabalho assalariada) como uma simples mediação para fazer
possível esse aumento do dinheiro; assim o capital realiza o ciclo
D – M – D’, onde M é a mercadoria, e D’ é maior que D. Note-se
que essa lógica que comporta uma implacável concorrência pela
venda com lucro ao menor preço possível, se impõe à suposta
liberdade que teria o capitalista nas suas decisões.
Nessa dinâmica sacrifica-se também, na devastação e na
contaminação irreversível a saúde da natureza não humana (a qual
fornece os materiais que funcionam como objeto de produção,
parte do instrumento de produção, e parte do produto destinado à
venda).
Assim constatamos que o capitalismo violenta no seu dia a
dia as três normas fundamentais da ética, porque ele nega a
liberdade de decisão dos indivíduos (em especial dos
trabalhadores, mas também dos capitalistas), porque ele não
permite aos trabalhadores a participação nas decisões sobre o que
fazer (já que eles devem se submeter às ordens do capitalista se
quiserem manter o emprego e com ele sua renda de sobrevivência),
e porque ele sacrifica a saúde, tanto dos humanos quanto da
natureza não humana (porque o seu “tempo” de produção-lucro,

35
incessantemente encurtado pela concorrência, é inferior ao tempo
de recuperação-regeneração necessitados pelo trabalhador e pela
natureza não humana, usada sem cuidado como se fosse um
recurso sem fim e infinitamente renovável).
Por tudo isso fica claro que a Educação Ambiental (EA)
deve ser educação política crítica do capitalismo e defender uma
ordem sócio-ambiental que supere as mazelas deste; quando digo
educação política uso o termo no seu sentido mais amplo, ou seja,
refiro-me a uma educação para a formação de cidadãos capazes de
organizar mediante sua participação argumentada, consciente e
permanente, a polis, local, regional e planetária, na qual vivem. Tal
educação, fundamentada nas três normas básicas da ética, e
orientada rumo ao ecomunitarismo, deve perpassar o dia a dia das
salas de aula e se estender a todas as esferas da educação da
educação não formal. Para a educação formal propus as seguintes
diretrizes:
1) Vincular os conteúdos a problemas sócio-ambientais da
vida dos alunos e dos brasileiros nas áreas de:
produção,distribuição, consumo, lixo, classes sociais, alimentação,
saúde, moradia, higiene, lazer, sexualidade e ecologia, reservando
espaços para discutir essas questões sem medo de se afastar do
"conteúdo específico".
2) Promover a pesquisa coletiva e individual, devendo o
professor exercer o papel de "auxiliar de planejamento,
observação, elaboração de hipóteses, testes das mesmas e
elaboração de resultados" numa atividade que visa a "re-
descoberta" – "re-construção" dos conhecimentos mediante a
reflexão dialogada.
3) Sair para trabalhos de campo e/ou criar espaços, mesmo
que modestos, na própria escola ou instituição educativa, voltados
para atividades de pesquisa descritiva ou experimental.
4) Dialogar na escola (instituição educativa) e/ou "in loco"
com conhecedores do tema em estudo, visando à integração entre
os conhecimentos "técnicos" e as suas implicações sócio-humanas.
5) A partir do trabalho coletivo e das sistematizações

36
elaboradas com a ajuda do professor e de conhecedores, promover
ações voltadas para a informação e a busca de soluções para
problemas sócio-ambientais existentes na escola ou instituição
educativa, no bairro desta, no bairro de residência dos alunos e/ou na
comunidade onde for realizada a pesquisa (cfr. Lopez Velasco 2008).
É obvio que eu penso que para que a proposta educativa seja
um verdadeiro processo de formação política, a aplicação dessas
diretrizes devem se dar numa dinâmica de permanente crítico ao
capitalismo (com base nas três normas fundamentais da ética) e de
defesa da alternativa ecomunitarista; (eis uma diferença capital
com outras propostas educativas que se apresentam como sendo
“transformadoras” ou, inclusive, como “libertadoras” ou
“emancipadoras”).

A EA ecomunitarista

A EA ecomunitarista critica o capitalismo e anuncia e ajuda


a construir a ordem sócio-ambiental que haverá de superá-lo, o
ecomunitarismo. Nele a natureza não humana é desprivatizada, ou
seja, colocada sob a administração da comunidade humana (desde
o nível local até o nível planetário), e a produção, a distribuição e o
consumo são organizados para que, a partir do esforço produtivo
de todos os que estiverem em condições de produzir, mas com
ocupações rotativas e sem desemprego e sem patrões, se cumpra o
lema que reza “de cada um segundo suas capacidades, e a cada um
segundo suas necessidades”; isto é, para que cada indivíduo possa
se realizar como indivíduo universal, desenvolvendo suas
múltiplas vocações e cultivando sua saúde integral. Nessa ordem
produtiva-distributiva-de-consumo que supera a era das sociedades
humanas divididas em classes, as “necessidades” haverão de ser
redefinidas consensualmente com base nas três normas da ética, o
que inclui uma atitude humana de constante preservação e
regeneração da natureza não humana, conforme o exige a terceira
norma. Assim a economia ecomunitarista é ecológica e solidária, e
instrumento da realização efetiva do gênero humano, constituído

37
como família humana real a nível planetário. Mas simultaneamente
com a economia ecológica o ecomunitarismo pratica a democracia
participativa e direta, superando a pseudo-democracia
representativa (na qual de fato os supostos “representantes” não
representam os supostos representados e onde primam hoje o
interesses das grandes multinacionais e dos ricos do campo e da
cidade, fora ou para além de qualquer processo eletivo); essa
democracia participativa têm caráter resolutivo desde o nível local
(por exemplo nos Conselhos Comunais, que já operam na
Venezuela), e com a ajuda da Internet abrange espaços cada vez
maiores de decisão à distância, para culminar nas questões
mundiais (como o são a mudança climática, a administração
comunitária e responsável dos recursos naturais renováveis e não
renováveis, o plano mundial de produção, distribuição e consumo,
etc.). Acompanhando a economia ecológica e solidária e a
democracia participativa, direta e resolutiva, haverá de se
desenvolver a livre comunicação simétrica; ela implica a
reapropriação pelas comunidades da grande mídia atual,
monopolizada por uns poucos, que elaboram e distribuem
diariamente o discurso único que garante a sua dominação;
conjuntamente com a grande mídia socializada, haverão de
funcionar as pequenas mídias comunitárias (a partir dos espaços
locais, tanto para a radio e a TV) como os espaços das
comunicações inter-individuais possibilitados pelo uso
universalizado dos recursos eletrônicos (Internet, telefones
celulares, etc.); nesse contexto a comunicação física ocorrerá
através de meios públicos de transporte construídos a base de
material reciclável e usando fontes de energia renováveis e limpas
(como a energia solar e a eólica). Toda essa revolução pós-
capitalista está apoiada numa educação ambiental ecomunitarista
que se desenvolve tanto a nível formal como a nível não formal,
cobrindo a sociedade inteira através de múltiplas redes; essa
educação integra uma educação sexual baseada na erótica da
libertação, a qual, apoiada nas três normas da ética, apregoa a
superação do machismo, da homofobia, e da condena à

38
masturbação, e defende o livre gozo compartilhado do prazer
sexual entre adultos; esse gozo supõe a superação de todo
relacionamento que use a violência, as drogas que impedem o livre
discernimento, e, ainda, opõe-se ao uso de menores ou de animais
como parceiros sexuais (pois estes não dispõem efetivamente da
livre capacidade de escolha). Nessa sociedade de livre e
responsável desfrute do prazer, floresce o erotismo, e não sobra
espaço para a pobre pornografia, tão pobre humanamente que nos
filmes que a veiculam os seres humanos mal falam; seres humanos
que, aliás, não passam de outros tantos trabalhadores assalariados
que, nesse filmes se prostituem em troca de uma soma de dinheiro
para sobreviverem; note-se que a esse respeito aqueles que
defendem o status de trabalhador assalariado para a prostituta e o
garoto de programa, confessam sem querer essa grande verdade do
capitalismo, pois dizendo que a=b estamos afirmando que b=a, ou
seja que se toda prostituta ou garoto de programa é um trabalhador
assalariado, isso significa que todo trabalhador assalariado na
sociedade capitalista é uma prostituta ou garoto de programa,
vendendo a outrem o controle do seu corpo por algumas horas, em
troca da obtenção de uma certa soma de dinheiro. Nessa EA
ecomunitarista cada instituição educativa faz parte efetiva da
comunidade na qual está inserida, tendo a comunidade como uma
permanente co-gerente da sua ação educativa, ao tempo em que a
instituição ajuda a comunidade no dia a dia na construção e
correção do ecomunitarismo; essa inserção local se articula com a
inserção regional, continental e planetária, requeridas para a
efetivação do gênero humano no ecomunitarismo.
No livro “Ucronía” (Lopez Velasco 2009), e em especial na
primeira parte dessa obra (a que dá nome à mesma) tentamos
mostrar como funcionaria uma sociedade ecomunitarista no seu
dia a dia, incluindo as esferas da educação, da livre sexualidade, da
economia ecológica e solidária, da política participativa direta, e
da comunicação livre, democrática e simétrica. Num primeiro
relato, intitulado “Uma jornada de Almotasim em Tlön”,
apresentamos um dia qualquer na vida de um casal que tem dois

39
filhos, mostrando o funcionamento de uma economia ecológica e
solidária sem patrões, o uso de energias limpas e renováveis, os
relacionamentos humanos marcados pela amizade, a cooperação e
o respeito mútuo, e a livre sexualidade, assim como pela prática da
educação problematizadora. Num segundo relato, intitulado
“Viviendo, produciendo, distribuyendo y consumiendo”, apresento
uma oikonomia sem patrões baseada no principio “de cada um
segundo suas capacidades e a cada um segundo suas necessidades”
e respeitosa da preservação-regeneração da saúde da natureza
humana e não humana, incluindo os problemas e dilemas de
algumas pessoas que dela participam (já que o ecomunitarismo não
acaba com todos os dilemas humanos, mas ajuda a enfrentá-los
melhor). Num terceiro relato, intitulado “La escuela
ecomunitarista” descrevo o funcionamento da escola no
ecomunitarismo, incluindo considerações relativas às instalações,
às metodologias e à educação sexual. Um quarto relato, intitulado
“El amor libertario” detalha as diversas vivências da livre
sexualidade prazerosa e a diversa conformação dos núcleos
familiares. O quinto relato, “La comunicación simétrica”,
apresenta uma comunicação baseada em mídias comunitárias e
participativas, que abrangem desde o espaço local até o planeta por
inteiro. O sexto relato, “La política de todos”, descreve o
funcionamento concreto de uma democracia direta, participativa e
decisória, que administra desde as questões locais até as
planetárias. Em fim, um último relato, intitulado “Más allá de la
tierra”, mostra os seres humanos vivendo no ecomunitarismo fora
da terra, inclusive depois da destruição do nosso planeta azul.

CONCLUSÃO

Esperamos ter mostrado no que antecede que as três normas


fundamentais da ética, com validade intersubjetiva universal,
podem ser deduzidas argumentativamente da pergunta que instaura
a ética; essa três normas nos exigem, respectivamente, realizar
nossa liberdade individual de decidir, realizá-la em buscas

40
consensuais com os outros em relação ao que devemos fazer, e a
preservar e regenerar a saúde da natureza humana e não humana.
Consideramos que a pessoa, como indivíduo com “capacidade de
se determinar por motivos cujo valor ele possa justificar perante
outros seres racionais” precisa unificar sua personalidade,
vencendo a fragmentação tríplice da sua estrutura interna, e
vencendo a fragmentação dos diferentes papéis que lhe toca
interpretar na existência social. Ora, essa unificação revela-se
impossível no capitalismo, na medida em que este violenta no seu
dia a dia as três normas fundamentais da ética e condena os
indivíduos a uma existência alienada. Para que a pessoa possa se
constituir é preciso superar o capitalismo numa ordem sócio-
ambiental que denominamos “ecomunitarismo” (ordem utópica na
qual as três normas fundamentais da ética teriam realização
cotidiana). Para que os sujeitos possam exercer uma critica à
tripartição da sua personalidade e à alienação negadora que sofrem
no capitalismo, é preciso colocar em ação uma pedagogia
problematizadora, nos moldes da proposta por Paulo freire. Ora,
hoje é preciso que essa proposta educativa diga claramente que o
inimigo chama-se ordem capitalista, e que o futuro almejado é o
ecomunitarismo (para que possam vir à luz indivíduos universais
solidários com os outros e respeitosos da natureza não humana), e
que a ação político pedagógica almejada em nível formal e não
formal é a educação ambiental ecomunitarista.

41
42
A CRÍTICA À ALIENAÇÃO NO “CAPITAL” À LUZ
DA ÉTICA ARGUMENTATIVA ECOMUNITARISTA

INTRODUÇÃO

No presente texto pretendemos abordar a crítica à alienação


produzida por Marx no Capital (no único de seus três tomos
publicado por ele, o primeiro, e nos outros dois arranjados e
publicados por Engels, as vezes com opiniões deste último, que
evitaremos levar em conta) e tentar subsumi-la sob as três normas
fundamentais da ética argumentativa. Devido ao fato desta
pesquisa ter sido realizada principalmente na Espanha, decidimos
associar incidentalmente um breve diálogo com as obras de
filósofos espanhóis que, dentro da bibliografia a que tivemos
acesso, mais nos interessaram; são eles Ángel Prior Olmos,
Aurelio Arteta Martínez Marzoa, Ramón García de Haro, e
Manuel Reyes Mate, e a revista”Ecologia Política”; não obstante e
desde já advertimos que prescindiremos das referências desses
autores a outros escritos de Marx, inclusive os de sua maturidade
(como o Cap. VI inédito de “O Capital”, os Grundrisse de 1857–
1858, os manuscritos de 1861–1863, ou a Crítica ao Programa de
Gotha, as vezes abundantemente citados nessas fontes).
“Estar alienado de” significa “estar separado de”, como o
entende a terminologia jurídica ao considerar como um fato de
alienação a separação de um bem que ocorre em uma venda, troca,
cessão ou empréstimo. Vale a pena que recordemos que o
português usa uma só palavra, “alienação”, para traduzir dois
termos usados por Marx: “entfremdung’ e “entäuβerung”, o
primeiro conotando por sua raiz a “estranheza” causada pela
separação (“entfremdem” é “estranhar” e “fremd” é o que é

43
“estranho”), e o segundo a situação de “despojar-se de” (entäuβern
significa: “desfazer-se de” “desprender-se de”, “despojar-se de”),
também causada pela separação. Nota Arteta (p. 212, no que segue
abreviado em AA) que “fremdheit”designa globalmente
”separação”, independência, substantivização, etc., ao que tem de
se adicionar as conotações de poder, domínio, hostilidade
submissão, antagonismo, contraposição e “similares” que
configuram o “fenômeno total da alienação”; e mais adiante nota
que “em sua forma social capitalista as coisas se alienam frente a
totalidade social, e que no processo social se dá uma sujeição geral
ao movimento e leis das coisas ‘valorizadas’ ou ‘capitalizadas’’’
(p. 217); a alusão à “totalidade social” nos parece aqui ambígua e
discutível, mas AA diz-se de imediato que “não há dúvidas de que
a modalidade mais ressaltada por Marx na alienação das coisas sob
sua determinação capitalista é sua substantivação e poder sobre os
próprios indivíduos, alienação que tem lugar na produção material,
no verdadeiro processo da vida social desses indivíduos” (p. 217),
como o destacou Marx. De minha parte julgo que o que preocupa
Marx em sua critica ao capitalismo é o fato de que nesse modo de
produção e de vida, o indivíduo (em especial o trabalhador que é o
objeto principal de sua atenção, mas também o capitalista e seus
representantes), se encontra mutilado e impedido de desenvolver-
se como individuo universal (ou seja, desenvolvido em todas suas
vocações e aptidões), porque encontra-se separado (ou seja,
alienado) de diversos modos: do outro indivíduo (com e não contra
cuja liberdade deveria realizar-se a sua própria liberdade), de si
mesmo, e de múltiplas instâncias onde se dão e/ou plasmam as
relações inter-individuais e com a natureza não humana. Não
esqueçamos que Marx, seguindo Aristóteles (para quem o ser
humano é um ser político), considera o indivíduo como um nó da
rede de relações sociais nas quais está inserido.
Recordemos novamente que dos três tomos publicados sob o
título de “Das Capital” (Marx imaginou que seriam quatro, e o
quarto saiu postumamente sob o título de “História crítica da teoria
da mais-valia”), Marx pode publicar em vida e sob sua supervisão

44
só o primeiro (que teve como tema “O processo de produção do
Capital”); os outros dois deveram-se à atividade recolhedora-
ordenadora de seu inventariante, Frederico Engels, pelo que têm às
vezes a forma de uma colcha de retalhos inconclusos, mas não por
isso são menos ricos que os textos do primeiro tomo. Assim, nos
interessa aqui mostrar como aflora nos três tomos, inclusive em
suas repetições, a importância que dava Marx ao tema da alienação
no auge da sua maturidade. [Nas citações identificamos os três
tomos, respectivamente por T.1, T.2 e T.3; “Livro” se abrevia em
“L”, Secção em “S”, e “Capítulo” em “Cap”; fizemos comparações
da versão espanhola usada com uma edição alemã, e quando foi
preciso a corrigimos à luz desta última].

A HIPÓTESE DA SUBSUMÇÃO

Nestas notas nos propomos realizar a subsumção das diversas


observações de Marx acerca da alienação constantes em “O Capital”
em uma ou outra das três normas fundamentais deduzidas em nossa
ética argumentativa ecomunitarista. Como se sabe (ver, entre outros
López Velasco 2003b, 2003c e 2009a) temos deduzido como
primeira norma da ética a obrigação de zelar por nossa liberdade
individual de decidir; como segunda norma, a obrigação de realizar
consensualmente essa liberdade; e como terceira norma, a obrigação
de zelar pela saúde da natureza humana e não humana (pelo menos
desde o ponto de vista produtivo).
A leitura do “Capital” permite verificar que há em seus três
volumes diversas observações sobre diferentes facetas da
alienação. Assim, o primeiro contem a célebre passagem sobre o
fetichismo, mas é menos sabido que no terceiro volume também se
usa esse termo, e que a ele devem juntar-se as observações
relativas à inversão dialética entre sujeitos e objetos, a objetivação
do trabalhador, e ao despotismo do capital, que aparecem tanto no
primeiro como no último volume; observações sobre a alienação
em geral se encontram nos três volumes; as notas sobre a alienação
em relação aos meios de vida e de produção são freqüentes, nos

45
três volumes; a alienação em relação ao trabalho é mencionada no
primeiro, e a relativa ao produto do trabalho aflora em diversos
trechos dos três volumes; a alienação em relação a si mesmo é
assunto que figura nos dois primeiros, e a alienação a respeito da
atividade produtiva consta nos três volumes; finalmente a
alienação em relação a outro indivíduo (tanto para o trabalhador
como para o capitalista, e inclusive para o camponês e mesmo para
o gerente) aparece no último volume.
Inicialmente faremos uma primeira aproximação a algumas
dessas observações marxianas, para logo poder subssumí-las em
uma e/ou outra das três normas fundamentais deduzidas em nossa
ética argumentativa ecomunitarista. Assim, por exemplo,
postulamos como hipótese que poderiam ser subsumidas entre
outras: a) pela primeira norma, diversas limitações à liberdade
individual imposta pela alienação em relação a si mesmo, ao
trabalho, ao produto do trabalho e à atividade produtiva, b) pela
segunda norma, diversas violações do consenso impostas pela
alienação em relação aos meios de vida e de produção, à atividade
produtiva e nas relações interindividuais de produção e
comunicação existentes na empresa capitalista (marcada pela
preponderância do ato lingüístico da “ordem”), e c) pela terceira
norma, diversos atentados à saúde da natureza humana e não
humana impostos pela alienação em relação a si próprio e ao outro,
aos meios de produção e de vida, à atividade produtiva e à
natureza não humana.

Resumo da ética argumentativa e do ecomunitarismo

Creio que é um “universal humano” presente em todas as


culturas o fato de que as pessoas se perguntam “o que devo fazer?”
(em tal ou qual circunstância); e que essa pergunta contém a carga
de uma auto-obrigação que, se não cumprida, independentemente
de qual seja a opinião dos outros ou a sanção ou prêmio social,
deixa na pessoa o desagradável sabor da insatisfação para consigo
mesmo. Essa auto-obrigação é própria da ética e da moral. Agora

46
bem, se ética e moral se ocupam do conteúdo e da forma das
respostas que damos à pergunta “o que devo fazer?”, ambas não o
fazem de igual maneira. Muita gente tem apontado essa diferença;
mas no que me diz respeito a estabeleço a partir de um critério
lingüístico simples: se a moral se contenta com respostas da forma
“devo fazer tal coisa” ou “não devo fazer tal coisa”, a ética vai
além e nos coloca perante a difícil tarefa das justificações; por isso
suas respostas são do tipo ”devo fazer tal coisa, porque...”, ou,
“não devo fazer tal coisa , porque...”; e depois desse “porque” vai
uma frase sobre cuja verdade ou falsidade podemos discutir.
Note-se que não se pode discutir se é verdade a expressão
“que horas são?”; simplesmente porque nas línguas humanas as
perguntas não podem ser verdadeiras ou falsas; só podem sê-lo
algumas das respostas que damos a essas perguntas. Em geral e
incluindo essas respostas, as expressões que podem ser discutidas
como sendo verdadeiras ou falsas chamam-se de “sentenças” ou
“enunciados”.
Essa discussão é possível e necessária para a ética. Com
efeito, recém dissemos que depois do “porque” vem uma frase
discutível em termos de verdade ou falsidade. E as coisas se
organizam como segue: se aceitarmos a verdade dessa frase, então
assumimos a obrigação expressada antes do “porque”, como
“dever”; e se considerarmos que a frase depois do “porque” é falsa,
então não aderimos nem cremos eticamente legítimo que a
ninguém seja solicitado aderir à obrigação expressada antes do
“porque”. (A única restrição que se impõe a esse jogo é que a frase
que siga ao “porque” trate do mesmo assunto que a obrigação que
o precede; e, para que as coisas se façam mais claras, muitas vezes
há de se explicitar as circunstâncias em que opera a obrigação,
para que a discussão da verdade ou falsidade da frase que segue o
“porque” seja capaz de chegar a uma conclusão).
Assim se dirá, por exemplo, “Devo respeitar meus pais
porque o respeito a meus pais mantém a família unida e eu quero
manter a família unida”.
Assim, neste caso, dada a verdade da expressão (de fato são

47
duas, neste caso, e ambas verdadeiras) que segue à palavra
“porque” se revela legitima a obrigação que precede aquela
palavra. (E a negação daquela obrigação seria eticamente ilegítima,
por ser falsa, para o caso considerado, a frase “o respeito a meus
pais mantém a família unida e eu quero manter a família unida”).
O que me interessa é que meu modo de distinguir a moral da
Ética permite que, usando a forma lingüística apropriada (a saber,
a obrigação, seguida de “porque”, seguida de uma frase discutível
em termos de verdade ou falsidade), toda pessoa por sua
apreciação do que seja verdadeiro ou falso (nas circunstâncias do
caso analisado), pode decidir sem equívocos (e se pôr de acordo
com outra sobre ele), qual obrigação é legítima e qual não.
Em outras palavras, por sua própria estrutura as expressões
éticas tem a capacidade de superar (ao menos dentro do mesmo
horizonte cultural, e aqui penso no chamado “mundo ocidental”
considerando-o em todas suas extensões) o “relativismo moral”, ao
poder definir, em base ao que se julgue verdadeiro ou falso para o
caso em questão, o que constitui uma obrigação legitima e o que não.
Ou seja, que se certas perguntas (pertencentes ao mesmo
horizonte cultural) nunca podem dialogar desde a diferença que em
matéria de obrigações morais os separa, sim podem fazê-lo e
chegar a um acordo no modo ético, ou seja, dando as justificativas
(referentes a cada caso) que apóiam a obrigação em questão.
Claro que o que julgamos verdadeiro ou falso muda com
nossos conhecimentos e experiências; daí que o que é eticamente
legítimo para nós e nossos interlocutores, também está submetido
a esse processo de mudança. Ou seja, as normas éticas (que podem
ser numerosíssimas, a rigor, infinitas, pela estrutura que as
caracteriza em minha proposta), tem a propriedade de não serem
dogmáticas (ou seja, prisioneiras de algum dogma inquestionável)
nem estáticas (ou seja, imutáveis para sempre), mas, pelo
contrário, argumentativamente renováveis segundo o que
considerarmos (discutindo com os outros) verdadeiro ou falso
(para o contexto e a questão analisada). Isso diferencia as normas
éticas das morais, que na simplicidade do “devo” ou “não devo”,

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são incapazes de viver essa dinâmica.
Se temos dito que algumas expressões, como as perguntas (e
as obrigações) não são passíveis de discussões em termos de
“verdade” ou “falsidade”(porque isso só é possível no caso das
afirmações e negações de “sentenças” ou “enunciados”), éis
chegado o momento de lembrar-mo-nos de Austin. Este filósofo
inglês, em reflexões que foram reunidas depois de sua morte em um
pequeno livro intitulado “How to do things with words” (Austin
1962; literalmente “Como fazer coisas com palavras?”) se
perguntou qual critério poderia nos ajudar a fazer diferenças entre
expressões para as quais não há discussão possível em termos de
“verdade” ou “falsidade”, porque nelas fazemos outra coisa além de
descrever (afirmando ou negando), como o fazem as “sentenças”.
Austin propôs que tais expressões, se não podem ser distinguidas
entre “verdadeiras” ou “falsas”, sim podem sê-lo entre “felizes” e
“infelizes”. E acrescentou que uma ou outra eventualidade
dependem de que certas regras tenham (ou não tenham) sido
respeitadas. Essas regras exigem a existência de um procedimento
convencionalmente aceito para se fazer algo por meio das palavras
em questão, exigem que esse procedimento seja executado pelas
pessoas adequadas nas circunstâncias apropriadas e em todos os
seus passos, e também que ao fazê-lo os pensamentos ou
sentimentos presentes sejam os adequados. Três exemplos, o
“felicitar”, o “batizar-se” e o “divorciar-se”. Existe o procedimento
consistente em “felicitar” pronunciando as palavras “Te felicito (por
tal coisa)”, e esse procedimento está disponível para ser usado por
qualquer pessoa; não obstante (em função do terceiro tipo de regras)
a felicitação será “feliz” se há na pessoa que o usa o sentimento-
pensamento de alegrar-se efetivamente pelo outro que está sendo
felicitado; e será “infeliz” se esse sentimento está ausente; por
exemplo, posso felicitar meu colega pintor dizendo-lhe “Te felicito
pela exposição”, mas esse ato será feliz se verdadeiramente me
alegro com ele pela mostra de sua obra, e, pelo contrário, será infeliz
se ao pronunciar aquelas palavras penso-sinto: “Muito mais que tu,
medíocre criador, merecia eu essa exposição”. (Como pode-se

49
imaginar esse exemplo é mera invenção literária e nunca acontece
de verdade entre artistas). Em relação ao “batizar” o ato será infeliz,
por exemplo, se a pessoa que pronuncia as palavras não é um
sacerdote, ainda que todo o rito lingüístico e gestual seja o prescrito
pelo procedimento convencionalmente aceito (no contexto da
cultura cristã), e mesmo que também estejam presentes os
sentimentos-pensamentos adequados; ou seja, aqui a “infelicidade”
estaria decretada pela violação do segundo tipo de regras.
Último exemplo: será “infeliz” meu intento de divorciar-me
de minha mulher pronunciando uma e mil vezes a frase “me
divorcio de ti”, porque no caso da cultura ocidental dentro da qual
temos contraído matrimônio, não basta a palavra do marido para
consumar o divórcio; ou seja, o procedimento usado não é o
convencionalmente aceito para praticar o ato pretendido; (ao
parecer sim o é no mundo muçulmano pois ali o direito de
“repúdio” concedido ao marido em muito se assemelha ao ato aqui
descrito; éis aqui um primeiro problema para qualquer diálogo
intercultural com os muçulmanos sobre essa questão).
Ao fim de suas reflexões Austin percebeu que até nos casos
das “sentenças” era possível discernir em termos de “felicidade” e
“infelicidade” (com o que relativizava a tradicional divisão entre
“verdadeiro” ou “falso” com a que até então haviam sido tratadas).
Sem considerar este último ponto, a partir de Austin sustento que:
a) todos temos a capacidade de discernir entre atos lingüísticos
“felizes” e “infelizes”, e no uso normal da linguagem todos
pretendemos produzir atos “felizes”, b) a “felicidade” dos atos
lingüísticos depende de que certas regras tenham sido respeitadas
ou não, c) essas regras são condições da “felicidade” do ato
lingüístico em questão.
Agora, partindo da base de que todos pretendemos realizar
execuções felizes da pergunta que instaura a ética, a saber, “Que
devo fazer?, me pergunto: quais são as condições de “felicidade”
de tal pergunta?
Penso que por essa via descobriremos normas que já estão
presentes na gramática profunda dessa pergunta e que se

50
apresentam como normas éticas (segundo a estrutura que antes
explicitamos). Creio que acontece com essas normas algo parecido
ao que acontece com as regras gramaticais de nossa língua
materna, ou seja, que as conhecemos e usamos sem ter consciência
delas antes de ir à escola, e quando lá chegamos, descobrimos
então de forma reflexiva e distinta quais são essas regras; a partir
desse momento passamos a estar obrigados por elas no uso da
língua (embora possamos decidir não respeitá-las, nunca, ou em
certas circunstâncias). De maneira similar defendo a idéia de que
ao investigar as condições de “felicidade” da pergunta “Que devo
fazer?” chegaremos a detectar normas éticas que desde antes nos
obrigavam sem que o soubéssemos, e que agora passam a obrigar-
nos de forma reflexiva (ainda que possamos decidir afastar-nos
delas a qualquer momento). Claro que a ética vive do fato de que
não nos sentimos bem quando fazemos isto último e que tal
sensação não está divorciada do fato de que sentimos que em tal
caso estamos fracassando no uso “feliz” da linguagem que
contribui de forma decisiva a fazer-nos humanos.

Lembrando as três normas fundamentais da ética

Peço ao leitor a) que não se desanime com o aspecto de


“trava-línguas” que parece ter a forma das normas éticas que
deduziremos ao investigar as condições de “felicidade” da
pergunta que instaura o universo ético; (quando se vê sua enorme
importância e alcance em todas as facetas da vida, essa sensação
de “jogo de palavras” haverá sido superada pela luminosidade que
sua aplicação nos dá em cada caso), e, b) que me diga se elas
valem ou não em sua cultura.

1. Da liberdade

Perguntar(se) “Que devo fazer?” pressupõe que se poderia


fazer mais de uma só coisa; se só posso fazer uma, então, não
caberia a pergunta. Por exemplo, este lápis que tenho na mão a um

51
metro do solo não se pergunta, quando solto, o que deve fazer; se
estivermos na Terra o lápis cairá pelo efeito da gravidade, e se
estivermos em uma nave espacial em órbita terrestre o lápis
permanecerá flutuando, devido a ausência de gravidade. Mas os
seres humanos ao perguntar-nos o que devemos fazer pré-supomos
por esse mesmo ato que podemos optar em cada circunstância entre
mais de uma conduta. Agora bem, poder fazer mais de uma coisa
em cada circunstância, pressupõe poder escolher entre diversas
alternativas de ação. Mas, para ter essa capacidade de eleger entre
diversas alternativas de ação há de se ter liberdade de fazê-lo.
Assim, interrogando o que está por trás e na raiz da pergunta
“O que devo fazer?” temos descoberto a condição para sua
realização “feliz”. (Lembrando que todos desejamos realizar
execuções felizes de tal pergunta), podemos concluir que temos
chegado a uma norma ética embutida na gramática da pergunta em
questão que se deixa resumir como segue:

“Devo lutar para garantir minha liberdade de decidir, porque


minha liberdade de decidir é condição da realização feliz da
pergunta “O que devo fazer?”

Observe-se que esta norma, contrariamente ao que tem dito


muitos eminentes filósofos, não afirma que os seres humanos são
livres. O que ela nos mostra é a obrigação de lutar por nossa
liberdade de decidir. Isso significa que ela nos obriga a lutar contra
todas aquelas coações e empecilhos que limitam essa liberdade.
Agora bem, há outras duas normas que traçam o círculo
dentro do qual tem legitimidade esta primeira.

2. Do Consenso

Karl Otto Apel (Apel 1973 e 1985) nos mostra que as


ciências funcionam, ainda que as vezes os próprios cientistas não
se dêem conta disto, a partir de três normas éticas. Elas são: a)
dizer o que se crê ser verdadeiro, b) renunciar ao egoísmo na busca

52
coletiva da verdade, e, c) aceitar qualquer ser humano como
parceiro legítimo nessa busca (Apel 1985, fim do Tomo II). Não
haveria ciência tal como a conhecemos se diante de cada artigo
científico nos perguntássemos: este senhor está nos dizendo o que
acredita ser verdadeiro ou está nos enganando (por brincar ou por
fazer-se de importante)? Praticar ciência supõe que dizemos
efetivamente o que acreditamos ser em cada caso a verdade e que
lemos/ouvimos os outros com essa mesma expectativa. Por outro
lado, a história da ciência tem demonstrado que ninguém é dono
da verdade; hoje mais do que nunca, grandes equipes, em enormes
laboratórios, são as encarregadas de renovar dia a dia o
conhecimento científico, mostrando que o que acreditávamos saber
era inexato ou incompleto e que as coisas são diferentes do que
havíamos imaginado. Essas equipes e laboratórios tornam públicos
seus resultados em seminários, congressos, revistas, livros e cada
vez com mais freqüência, na internet, através da qual mantém
comunicação quase permanente entre si. Cada cientista se
incorpora a essa busca coletiva da verdade, nunca plenamente
alcançada, mas sem cessar perseguida pelo conjunto das pessoas
dedicadas a cada área das ciências. Por último, ninguém pode ser
descartado dessa carreira sem fim em busca da verdade; quando a
princípios do século XX Einstein publicou sua primeira versão da
Teoria da Relatividade, ele era um simples empregado em uma
oficina de registro de patentes de inventos; é verdade que, pelo
fato de não pertencer a nenhuma das equipes dos centros de
pesquisa mais célebres da época, essa primeira publicação não teve
o impacto imediato da cerimônia do Oscar; mas essa sua condição
não impediu que Einstein atirasse em breve a atenção dos centros
de investigação famosos da época e que suas idéias fossem tema
do dia entre os Físicos mais conhecidos; logo, logo, o próprio
Einstein foi chamado a incorporar-se aos círculos por eles
freqüentados.
De minha parte creio poder afirmar que o que Apel
descobriu no universo do discurso descritivo das ciências pode ser
aproveitado para o jogo lingüístico das perguntas (e dentro dele

53
para a que nos guia em toda esta caminhada). Assim creio que
perguntar pressupõe que: a) nos abrimos à busca coletiva da
verdade, e, b) que cremos que nosso(s) interlocutor(es)
responde(rão) dizendo o que julgam verdadeiro ou correto em cada
caso. Notem que isso, como nas ciências, não significa que estou
obrigado a concordar com meu interlocutor; pelo contrário, é a
partir da liberdade de discordar e discutir com ele, que se renova a
busca da verdade ou correção da resposta pretendida. Claro que
também, como nas ciências, o fato de supor que existe uma
resposta apropriada para cada caso, indica que a busca coletiva
se orienta pela idéia de que é possível se chegar a um consenso
sobre o assunto em questão. Note-se que tudo isto explica o
constrangimento do orador que ao fazer uma “pergunta retórica”
(aquela pseudo-pergunta destinada a ser respondida só por aquele
mesmo que a formula), ouve do auditório uma resposta diferente
da que ele pretende dar na seqüência de sua exposição; por
exemplo, depois de várias ponderações moralizantes que tendem a
associar o álcool ao diabo, o orador pode formular a pergunta
retórica, “devemos proibir a bebida?”, para a qual já tem preparada
a resposta positiva, e ouvir com desagrado como desde o fundo do
público que se aglomera sob a sombra das árvores do parque, uma
voz de bêbado diz alto e claro: “Não!”. O embaraço vem do fato de
que a pergunta efetiva (e não a pseudo-pergunta aparente que é de
caráter retórico) abre efetivamente o campo da busca das respostas
à participação coletiva, da qual nenhum ser humano pode ser
excluído. Um exemplo que presenciei pessoalmente me confirma a
validade desta interpretação; aconteceu que num ônibus bastante
cheio de um país latino-americano uma senhora perguntava em
voz baixa a sua companheira de assento se devia ou não separar-se
de seu marido infiel; para seu assombro, poucos minutos depois,
boa parte do ônibus opinava sobre sua pergunta; uns para defender
a separação, julgando inaceitável a infelicidade, e outros pedindo-
lhe paciência porque é notório que os homens são eternos
adolescentes até os 40, mas começariam a ter juízo com a chegada
dos cabelos brancos, e então as coisas começavam a ordenar-se.

54
Do que foi dito podemos deduzir a segunda norma ética que assim
resumimos:

Devemos buscar consensualmente uma resposta para cada


instância da pergunta “o que devo fazer?” porque eu busco
uma resposta consensual para a pergunta “o que devo fazer?”
é condição da realização feliz de tal pergunta.

Se vê que tal norma vem colocar um limite claro no exercício


legítimo da liberdade individual amparada na primeira norma, porque
agora resulta evidente que o uso de minha liberdade de decidir
somente tem legitimidade ética quando se combina com a busca do
consenso com os outros. O que a segunda norma coloca é o desafio
de que minha liberdade de decidir não opere contra a liberdade de
decidir dos outros, mas, pelo contrário, opere com ela. Ela permite
questionar a partir da ética a máxima que diz “Minha liberdade
termina onde começa a dos outros”, porque esta máxima pressupõe
que ambas as liberdades se contrapõem; podemos notar que tal
pressuposição, em vez de retratar uma constante da condição humana,
é o reflexo de uma expressão histórica de tal condição (entre outras
possíveis), a saber, a que existe na sociedade capitalista (Marx 1844).
Os filósofos chamados “pós-modernos” creram eticamente
legítimo defender a idéia do dissenso e da diferença contra o
consenso (porque disseram que em nome da razão que o
reivindica, muitos crimes foram cometidos); sem entrar na
discussão do conteúdo, e o fundo e trasfundo histórico-político
destes pós-modernos, quero chamar a atenção sobre uma flagrante
auto-contradição destes senhores supostamente muito espertos; dar
cursos e conferências e escrever artigos e livros sobre a (suposta)
prioridade do dissenso, não significa renunciar-superar o
consenso, mas ao contrário, significa intentar fazer consenso sobre
a importância do dissenso; e assim os pós-modernos mostram às
claras a falsidade de sua teoria, reafirmando o consenso como
idéia-guia de nossa ação (pautada explícita ou implicitamente pelo
que acreditamos que devemos fazer).

55
3. A norma ecológica

Lembre-se que segundo Austin, a existência de um


procedimento convencionalmente aceito é condição básica de
felicidade do ato lingüístico de que se trate em cada caso. Assim, é
condição da felicidade da pergunta “Que devo fazer?” a existência
do ato lingüístico de “perguntar”. Agora bem, do que nos dizem
nossos atuais conhecimentos sobre formas de comunicação entre
os seres vivos, podemos concluir que somente o ser humano possui
“perguntas”. Por sua vez (e ainda que os computadores agora
rivalizem conosco, não esqueçamos que somos nós quem os
fabricamos, lhes colocamos dentro os programas com suas
linguagens e as fazemos funcionar), só os seres humanos sabem
fazer uso cabal e completo da linguagem humana. (Animais que
entendem algumas palavras não sabem lê-las num livro). Mas
agora vem a pergunta chave: “o que define um ser humano?” Se
respondermos que é a linguagem nada avançaremos porque
estaremos girando em círculos. Mas com Marx posso reivindicar
outro traço distintivo: o trabalho. Por ele o ser humano tem
transformado o planeta a sua imagem e semelhança, para o bem e
para o mal. Causa assombro e preocupação o fato de que hoje não
há praticamente nenhum rincão do planeta que escape ao poder
transformador, por via direta ou indireta, do trabalho humano. Nos
antigos pântanos que até o século XVII rodeavam Paris se
edificaram palácios e jardins; em nossos modestos jardins latino-
americanos voam os pardais trazidos sem querer por algum barco
da Inglaterra, não se sabe exatamente quando; florestas em
qualquer lugar do mundo estão sendo literalmente queimadas por
chuvas ácidas provocadas por emanações industriais e de
automóveis que operam, às vezes, a muita distancia dali.
Ora, apesar de sua incrível variedade todo o trabalho humano
repousa em três invariantes: o sujeito que produz, o instrumento
através do qual esse sujeito produz, e o objeto sobre o qual opera o
sujeito através do instrumento. O sujeito é um ser humano,
mamífero pertencente a natureza terráquea; o instrumento através

56
do qual opera o sujeito pode ser desde uma pedra usada para talhar
outra, até a máquina computadorizada de comando digital, ou o
próprio computador; enfim, o objeto é sempre algum material
extraído da própria natureza (desde a pedra antes citada, até o gás
liquefeito que serve de combustível ao foguete, ou ainda, a própria
“informação”, que é material especial produzido por esse ser
natural que é o ser humano). Note-se que as três constantes que
tornam possível o trabalho remetem-nos para a natureza: o ser
humano, o instrumento e o objeto. Mas elas remetem a uma
natureza que seja apta para o trabalho. E assim, chegando ao início
desta longa escada, alcançamos a terceira norma da ética que reza:

Devo preservar-regenerar uma natureza saudável desde o


ponto de vista do trabalho, porque isto é condição de
felicidade da pergunta “o que devo fazer?”

Esta forma é capaz de orientar-nos na decisiva questão


ecológica que tanto se discute hoje. Já ouço vozes alertando-me:
“não se necessita de caminhos tão difíceis para se chegar à
conclusão de que devemos preservar a natureza, porque isso é
evidente!”. E eu respondo: não se esqueça que a alguém tão
inteligente como Aristóteles lhe parecia “evidente” que houvesse
seres humanos destinados a serem escravos (ou seja, pensava ele
que a escravidão sendo algo “natural” não poderia ser nunca
abolida); tampouco se esqueça que a temática ecológica não foi
reconhecida como tema capital pela cultura chamada “ocidental”
(hoje dominante no planeta), senão muito recentemente, na
segunda metade do século XX; e por último note-se que a terceira
norma da ética faz parte de um conjunto também formado pelas
outras duas, com o que se configura um claro perfil sócio-
ambiental em cujo interior não cabe dissociar as questões sociais
(da liberdade individual e do consenso) das ecológicas.
Confesso que a terceira norma, assim como a temos
deduzido, apresenta um caráter utilitário, na medida em que coloca
a preservação-regeneração da natureza em conexão com sua

57
potencialidade produtiva. Admito essa limitação, mas também
digo que sem se abandonar o campo da linguagem, também
podemos deduzir essa norma do fato de que para que exista um ser
humano saudável o bastante para usar a pergunta que instaura a
ética, o seu contexto natural deve ser o bastante saudável como
para não afetar aquela capacidade (por exemplo, uma dose
excessiva de radiações na fase uterina, pode afetá-la
decisivamente). Espero que seja evidente que essa terceira norma
muito nos ilumina em relação a importantes questões de economia,
a ecologia, a política, a erótica e a pedagogia (como o mostro em
López Velasco 1996-1997-2000, 2003b e 2009a), nas quais parece
que podemos alcançar significativas convergências interculturais.
Postulo que as três normas éticas nos orientam rumo à
construção de uma nova ordem sócio-ambiental planetária que
chamo de “Ecomunitarismo” e que aparece como horizonte
utópico para ação. O Ecomunitarismo (talvez nunca alcançável,
mas indispensável estrela guia) representa a efetiva construção
histórico-real do gênero humano em uma associação planetária de
produtores livremente associados (Marx 1844) que satisfaçam
solidariamente as necessidades de desenvolvimento multifacetado
de cada indivíduo em um intercâmbio preservador-regenerador
com a natureza humana e não-humana. [Como me ocupo e me
ocuparei de Marx, porque muito me inspira sua posição crítico-
utópica perante o capitalismo, é bom clarear que minha posição,
fundamentalmente nas três normas éticas antes deduzidas, é por
completo independente do sucesso ou do fracasso das teses
centrais de Marx referentes à mais-valia e seus derivados, como a
taxa de lucro e sua suposta queda progressiva].
Outrossim, no ecomunitarismo as “ordens” e toda relação
impositiva assimétrica terá sido superada pelos acordos
consensuais, que regem, a) na erótica, transformada numa vivência
de encontro das liberdades que compartilham o prazer, b) na ação
pedagógica, superando a educação “bancária” com a
“problematizadora” (Freire 1970), c) na política, devolvendo-a a
seu sentido original de “conjunto de cidadãos que organizam a

58
polis”, praticando a democracia participativa e subordinando às
bases as funções representativas que se fizerem necessárias, e, no
planeta, substituindo a atual ONU por uma efetiva assembléia
cooperativa de povos, abolindo-se o atual abismo entre as poucas
nações que “decidem” e as muitas que “não-decidem” (como fica
claro no direito de veto vigente no Conselho de Segurança da
ONU e na dominação militar).

Breve lembrança da primeira sistematização marxiana acerca


da alienação: os Manuscritos de Paris de 1844

Nossa análise parte da crítica do trabalho alienado feita por


Marx na parte final do primeiro dos manuscritos econômico-
filosóficos escritos em Paris em 1844; ali as seções XXII, XXIII,
XXIV e XXV (esses números romanos são usados nas diversas
edições dessa obra da sua juventude) estão explicitamente
dedicadas ao trabalho alienado [citaremos os Manuscritos por seus
números (I, II, e III), seguidos da página na edição espanhola que
usamos confrontando-a e corrigindo-a à luz do original alemão; as
itálicas e os sublinhados são de Marx].
Marx apresenta a alienação em relação ao produto do
trabalho como segue. “A objetivação aparece como perda de
objeto a tal ponto que o trabalhador se vê privado dos objetos de
trabalho mais necessários para a vida e também para seu próprio
trabalho... O objeto que o trabalho produz, seu próprio produto, se
confronta a ele como um ser estranho, como um poder
independente do produtor”. (XXII) Em resumo, isso quer dizer que
o produto não pertence ao assalariado mas ao dono dos meios de
produção que o emprega; a tal ponto que pode acontecer que quem
produz alimentos passe fome por não ser ele dono dos mesmos.
Note-se que para saciar essa necessidade o trabalhador não pode
recorrer à natureza (inclusive se esta fosse uma floresta que nada
deve ao trabalho humano), porque a mesma foi privatizada e
passou a ser propriedade do latifundiário-capitalista. É verdade que
“o trabalhador não pode criar sem a natureza, sem o modo exterior

59
sensível. Esta é a matéria na qual seu trabalho se realiza, na qual
opera, na qual e com a qual ele produz” (XXIII); é verdade que “a
universalidade do homem aparece na prática justamente na
universalidade com a que faz da natureza seu corpo inorgânico,
tanto porque ela é: 1) um meio de subsistência imediata, como, 2)
a matéria, o objeto e o instrumento de sua atividade vital. A
natureza é o corpo inorgânico do homem, ou seja, a natureza
enquanto ela mesma não é corpo humano. Que o homem vive da
natureza quer dizer que a natureza é seu corpo, com o qual há de
manter-se em processo contínuo de intercâmbio para não morrer.
Que a vida física e espiritual do homem está ligada com a natureza
não significa outra coisa senão que a natureza está ligada consigo
mesma, pois o homem é uma parte da natureza” (XXIV). Mas “o
trabalho alienado aliena do homem a natureza” (XXIV). Assim,
quem não é dono da terra não pode recorrer a ela para colher seus
frutos que satisfazem suas necessidades (nem sequer, por exemplo,
frutas silvestres à beira de um arroio, pois o mesmo fará parte de
uma estância que tem dono), nem materiais que, uma vez
transformados pelo homem, poderiam satisfazer suas necessidades,
direta ou indiretamente mediante a troca ou a venda (como, por
exemplo poderia servir uma árvore dessa mesma floresta,
convertida em mesa para ser usada ou vendida/trocada por outros
bens necessários para o trabalhador).
A alienação em relação ao próprio trabalho é apresentada
como segue: “O próprio trabalho se transforma em um objeto do
qual o trabalhador somente logra apropriar-se com o maior dos
esforços e com as mais extraordinárias interrupções...” (XXII).
Concretamente isso significa que o assalariado está sempre a
mercê do desemprego: a) porque não é ele quem decide se terá
emprego, mas o capitalista (ou um representante seu), b) porque
quando conseguir um emprego não está a salvo de perdê-lo a
qualquer momento (também por decreto unilateral do capitalista).
Agora bem, se o trabalhador tem a “felicidade” de conseguir
um emprego, a alienação também se configura no “...ato de
produção, dentro da atividade produtiva mesmo” (XXIII). [No

60
trabalho alienado] “o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva
mesma, aparece perante o homem somente como um meio para a
satisfação de uma necessidade, da necessidade de manter a
existência física. ...Agora bem, na forma da atividade vital reside
todo o caráter de uma espécie, seu caráter genérico, e a atividade
livre, consciente, é o caráter genérico do homem. [Mas no trabalho
alienado a vida mesma aparece tão só como meio de vida...” (XXIV).
“Uma conseqüência imediata do fato de estar alienado o
homem do produto de seu trabalho, de sua atividade vital, de seu
ser genérico, é a alienação do homem em relação ao homem. Se o
homem se enfrenta consigo mesmo, se enfrenta também ao outro.
O que é válido a respeito da relação do homem com seu trabalho,
com o produto de seu trabalho e consigo mesmo, vale para a
relação do homem com o trabalho e o produto do trabalho de outro
homem... O ser estranho a que pertencem o trabalho e o produto
do trabalho, a cujo serviço está aquele e para cujo prazer serve
este, somente pode ser o homem mesmo. Se o produto do trabalho
não pertence ao trabalhador, se constitui frente a ele um poder
estranho, isto só é possível porque pertence a outro homem que
não é o trabalhador. Se sua atividade [do trabalhador] é para ele
dor, haverá de ser gozo e alegria vital para outro” (XXIV).
Marx também sublinhava que essas diversas dimensões do
trabalho determinam a alienação do sujeito (em especial do
trabalhador, mas também do capitalista) em relação a si mesmo.
Assim Marx recorda que pelo fato de alienar o ser humano da
natureza, o trabalho alienado o aliena de si mesmo (posto que o ser
humano é uma parte da natureza), e destaca que há “auto-alienação”
na alienação da atividade produtiva na medida em que nela “sua
vida aparece ao trabalhador como uma atividade dirigida contra ele,
independente dele, que não lhe pertence” (XXIII). No trabalho
alienado “o trabalho é externo ao trabalhador, quer dizer, não
pertence ao seu ser; ...em seu trabalho, o trabalhador não se afirma,
mas, pelo contrário nega-se; não se sente feliz, mas desgraçado; não
desenvolve uma livre energia física e espiritual, mas mortifica seu
corpo e arruína sua alma. Por isso o trabalhador só se sente ‘em si’

61
[bei sich] fora do trabalho e se sente ‘fora de si’ [auβersich] no
trabalho. Está ‘em casa’ [zu hause] quando não trabalha e quando
trabalha não está ‘em casa’. Seu trabalho não é, assim, voluntário,
mas forçado, [é] trabalho forçado. Por isso não é a satisfação de
uma necessidade, mas somente um meio para satisfazer as
necessidades fora do trabalho. Seu caráter estranho se evidencia
claramente no fato de que tão pronto como não existe uma coação
física ou de qualquer outro tipo, [o trabalhador] foge do trabalho
como foge-se da peste. O trabalho externo, o trabalho em que o
homem se aliena, é um trabalho de auto-sacrifício, de ascetismo.
Para terminar, a exterioridade se mostra para o trabalhador no fato
de que aquele... não lhe pertence, mas que pertence a outrem”
(XXIII). [Esse “outro” apontado por Marx é o capitalista, ou seja o
dono dos meios de produção]. “Disso resulta que o homem (o
trabalhador) só se sente livre em suas funções animais (no comer,
beber, procriar e tudo que se refere a habitação e ao vestuário) e,
pelo contrário, em suas funções humanas se sente como animal. O
animal se converte no humano e o humano em animal. Claro que
comer, beber, procriar etc. são também autênticas funções humanas.
Mas na abstração que as separa do contexto restante da atividade
humana e as converte em fim único e último, são animais”. (XXIII).
Esse fato decisivo da auto-alienação significa “pobreza
individual”, pois esse indivíduo separado de si necessita ser re-
integrado, no mesmo processo pelo qual se constitui em individuo
universal integrado livre e solidariamente com os outros (no senso
da comunidade comunista mundial). Essa situação pode ser
reescrita usando categorias freudianas dizendo que essa “auto-
alienação” indica a falta do Eu dominando o Id e o Superego; dizia
Freud que a tarefa da psicanálise consiste em “fortalecer o Ego,
fazê-lo mais independente do Superego, ampliar seu campo de
desenvolvimento sua organização, de maneira que possa apropriar-
se de novas partes do Id; onde era Id há de ser Ego” (Freud 1968,
vol. II, p. 916, “Novas contribuições a psicanálise: a divisão da
personalidade psíquica”).
Para terminar vale a pena recordar que para Marx o

62
capitalista (ainda que se beneficie da alienação do trabalhador)
tampouco é um indivíduo humano realizado. Com efeito, (ecos
hegelianos em Marx da dialética do amo e do escravo?) em sua
“função” de capitalista, não realiza sua capacidade manual-
produtiva em interação direta com a natureza não humana, e se faz
escravo do “ter”, num individualismo possessivo (III 147-150) que
o denuncia como um indivíduo que não está multifacetadamente
desenvolvido. Por outro lado, de nossa parte evidenciaremos
também questões racional-comunicativas que mostram essa
frustração no capitalista, que apontaremos a seguir.

Enfim: a crítica marxiana da alienação no “Capital”

Alienação em geral e fetichismo; inversão e coisificação do ser


humano

Como se sabe, no primeiro volume de “O Capital”, na seção


dedicada ao fetichismo da mercadoria (L. 1, S. 1, Cap. 1, item D4)
Marx esclarece que se usa esse termo para aludir ao fato de que
assim como o primitivo adora o fetiche que ele mesmo criou com
suas mãos, admitindo um poder deste sobre ele, o homem que vive
nas condições do capitalismo, se vê submetido ao império dos
resultados de suas relações sociais e dos frutos de seu trabalho
(nessa passagem, em especial, as diversas mercadorias que brotam
do processo produtivo do trabalho social). Disse Marx: “O caráter
misterioso da forma mercadoria reside, portanto, pura e
simplesmente, no fato de que projeta perante os homens o caráter
social do trabalho destes como se fosse um caráter material dos
próprios produtos de seu trabalho, um dom natural destes objetos,
como se, portanto, a relação social que medeia entre os produtores
e o trabalho coletivo da sociedade fosse uma relação social
estabelecida entre os mesmos objetos, à margem de seus
produtores. Este quid pro quo é o que converte os produtos do
trabalho em mercadorias, em objetos metafísicos ou objetos
sociais” (T.1.S.1, Cap.1, pag. 39). Nessa dinâmica, os seres

63
humanos são objetivados e as que parecem ter relações sociais são
as mercadorias, em especial através do valor (e seu representante
universal, o dinheiro): “A forma geral do valor, forma que
apresenta os produtos do trabalho como simples cristalizações do
trabalho humano indistinto, demonstra por sua própria estrutura
que é a expressão social do mundo das mercadorias” (T.1, L.1, S.1,
p.35, o sublinhado é meu). E logo concluirá Marx, constatando-
denunciando o atomismo-individualismo incitado pelo
capitalismo: “A conduta puramente atomística dos homens em seu
processo social de produção, e, portanto, a forma material que
revestem suas próprias relações de produção, subtraídas a seu
controle e a seus atos individuais conscientes, se revelam antes de
tudo no fato de que os produtos de seu trabalho revestem com
caráter geral, a forma de mercadorias. O enigma do fetiche
dinheiro não é, portanto, mais do que o enigma do fetiche
mercadoria, que, recebe no dinheiro uma forma visível e
fascinante” (T.1, L.1,S.1, Cap. 2, p. 59). Essa fetichização do
dinheiro alcança sua máxima expressão no capital a juros, que
reduz a forma geral “D-M-D” a seus extremos, “D-D”; disse Marx:
“No capital a juros aparece consumada a idéia do capital-fetiche, a
idéia que atribui ao produto acumulado do trabalho plasmado
como dinheiro, a virtude, nascida de uma misteriosa qualidade
inata de criar automaticamente mais- valia numa progressão
geométrica...” (T.3, L.3, S.5, Cap. XXIV, p. 419)
Nessa fetichização geral da vida, ocorre a inversão sujeito-
objeto e se produz ‘ideologia’ (no sentido de uma visão distorcida
da realidade que repousa em suas aparências); Martínez Marzon (no
que segue abreviado em MM) relativiza a distorção e aparência,
p.105 e SS): “De sua parte , o trabalho pretérito que domina sobre o
trabalho vivo, se personifica no capitalista; por outro lado, aparece,
ao contrário como uma força de trabalho objetivada, como uma
simples mercadoria. E esta relação invertida faz surgir
necessariamente, já no plano das simples relações de produção, uma
idéia invertida correspondente, uma consciência transposta, que as
trocas e modificações do verdadeiro processo de circulação se

64
encarregam logo de desenvolver” (T.3, L.3, S.1, Cap. II, p. 67).
Como no capitalismo, a força de trabalho do operário, os meios de
produção, e os produtos do trabalho (entre os quais se incluem
meios de vida do trabalhador) são capital, Marx afirma: “...o próprio
operário produz constantemente a riqueza objetiva como capital,
como uma potência estranha a ele, que o domina e o explora, e o
capitalista produz, não menos constantemente a força de trabalho
como fonte subjetiva de riqueza, separada de seus próprios meios de
realização, como fonte abstrata que reside na mera corporeidade do
operário, ou, para dizê-lo brevemente, do operário como operário
assalariado”(T.1, L.1, S.7, Cap. XXI, p. 517).
Prevenindo-se contra a fetichização do ‘capital’, Marx alerta
(contra a aceitação ingênua das categorias da economia burguesa):
“Capital, terra e trabalho, muito bem! Mas o capital não é uma
coisa material, mas é uma determinada relação social de produção,
correspondente a uma determinada formação histórica da
sociedade, que toma corpo em uma coisa material e lhe infunde
um caráter social específico” (T.3, S.7, Cap. XLVIII, p. 821).
Referindo-se ao processo de coisificação e fetichização que
ocorre no capitalismo, diz AA: “...a alienação que as personifica
(ou, ao contrário, a personificação que as aliena) equivale a
socialização das coisas, mas uma socialização determinada. Se
em todo regime social de produção as coisas incorporam
determinados caracteres e cumprem determinadas funções sociais,
só um regime como o capitalista lhes imprime universalmente uma
determinação que lhes confere independência e domínio sobre os
indivíduos. A personificação das coisas é, segundo isso, o modo
especifico de sua socialização no marco da produção capitalista.
Pois neste âmbito social, onde as coisas exercem papeis de
mediadores e possibilitadores reais das relações entre os
indivíduos, são elas mesmas as que devem assumir imediatamente
(e não mediatamente, como em outros modos de produção
baseados em relações mais pessoais) as virtualidades sociais que as
próprias relações (a-sociais) entre os indivíduos em principio
rechaçam. As coisas são assim, neste regime de produção, seus

65
verdadeiros agentes socializadores, os personagens sociais” (p.
233). E mais adiante conclui AA: “A alienação das coisas neste
modo de personificação, resulta ser, em conseqüência, uma
subjetivação das coisas correlativa a uma ‘objetivação’ das
relações sociais, ou reificação), um processo de inversão entre
sujeito e objeto da produção”(p. 235). Só nos resta recordar que na
evolução de sua obra Marx reservou a categoria de “sociedade” e a
do “social” (incluindo as relações “sociais”) para referir-se aos
vínculos inter-individuais existentes no capitalismo (ao que
contrapôs os vínculos “comunitários” ou a “livre associação dos
produtores livremente associados”, no pós-capitalismo).

Alienação dos meios de produção

Marx constata que no capitalismo a situação de cada


indivíduo vem desde o nascimento predeterminada pela relação
social existente entre os indivíduos englobados em duas grandes
classes no que se refere a distribuição dos meios de produção: uma
que é proprietária deles – os meios de produção (os capitalistas e
os latifundiários)- e outra que, desprovida dos mesmos, não tem
mais remédio que vender sua força de trabalho aos primeiros para
poder sobreviver (os trabalhadores). Esta situação constitui uma
flagrante violação da liberdade individual de decisão (em especial
para os trabalhadores) amparada pela primeira norma da ética e,
portanto, é subsumida criticamente por ela. Em “O Capital” esta
distribuição classista assimétrica se divide em, pelo menos três
componentes: a) a terra, b) as fábricas, máquinas, matérias primas,
e, c) o dinheiro.

Alienação da terra (privatização da terra)


A terra é, em princípio, doadora de meios de vida e é um
meio de produção; assim, dela poderiam os seres humanos retirar
in natura alimentos diversos (frutos, peixes) e outros meios de vida
(por exemplo, madeira para fazer móveis e, aquecer-se), e,
cultivando-a, ou seja, usando-a como meio de produção, poderiam

66
através da agricultura e da criação de gado resolverem em
quantidade e qualidade a satisfação de suas necessidades vitais.
Mas ocorre que a terra tem sido privatizada em mãos de uma
minoria (latifundiários que logo se aliam, e inclusive se fusionam
com os capitalistas) separando os trabalhadores do acesso à terra.
Assim disse Marx: “A propriedade territorial pressupõe o
monopólio de certas pessoas que lhes dá direito a dispor de
determinadas porções do planeta como esferas privativas de sua
vontade, com exclusão de todos os demais” (T.3, L.3, S.6, Cap.
XXXVII, p. 627). Essa situação é a base econômica da apropriação
do lucro extraordinário por parte do latifundiário que é ao mesmo
tempo capitalista explorador de sua terra (a diferença do que
ocorre quando recebe de mãos do capitalista a renda derivada da
diferença entre o lucro médio e o lucro individual): “A propriedade
territorial permite ao proprietário absorver a diferença entre o lucro
individual e o lucro médio; o lucro assim captado, lucro que se
renova todos os anos, pode capitalizar-se, apresentando-se como se
fosse o preço da mesma força natural” ( da terra ou de um salto d’
água, etc.; T.3, L.3, S.6, Cap. XXXVIII, p. 658); e Marx disse
“como se fosse” porque sua tese é que a renda dos latifundiários,
como o lucro do capitalista, são extraídos da massa de mais-valia
que a classe possuidora dos meios de vida e de produção arranca
em conjunto ao conjunto da classe trabalhadora. (Repetimos
novamente que nossa subsumção ética da crítica à alienação
capitalista é por completo independente da tese crucial de Marx
sobre a mais-valia, e todos seus derivados).

Alienação das fábricas (e máquinas, ferramentas) e das matérias


primas
A alienação dos meios de vida e produção pelo lado do
trabalhador fica patente como segue: ‘...se o operário pudesse dar a
seu trabalho uma existência independente, venderia mercadoria e
não trabalho” (T.1, L.1, S.6, Cap. XVII, p. 482).
Globalmente Marx vê assim a situação: “O processo
capitalista de produção reproduz, portanto, em virtude de seu

67
próprio desenvolvimento, o divórcio entre a força de trabalho e as
condições de trabalho. Ele reproduz e eterniza, com eles, as
condições de exploração do operário. Obriga-o constantemente a
vender sua força de trabalho para poder viver e permitir
constantemente ao capitalista comprá-la para enriquecer-se” (T.1,
L.1, S.7, Cap. XXI, p. 532). E mais adiante diz que o processo
produtivo não assume a característica de acumulação de capital
“enquanto não se enfrentem com o operário em forma de capital,
seus meios de produção e, por conseguinte, seu produto e seus
meios de vida”, T.1, L.1, S. VII, p. 543. Diante disso reage o
operário: “A faceta independente e estranha que o regime
capitalista de produção dá às condições e aos produtos do trabalho
com respeito do operário, enfrentando-as com ele, se converte com
a máquina, em uma aberta e total contradição. Por isso é na era do
maquinário quando eclodiram as primeiras revoltas brutais do
operário contra os instrumentos de trabalho” (T.1, L.1, S.4, Cap.
XIII item 5, p. 383).

Alienação do trabalho transformado em modalidade social de


“capital”
O dinheiro que vira capital é o que se usa para comprar
meios de produção e força de trabalho com o propósito de produzir
mais-valia, de preferência em produção extensiva, onde pelo
menos uma parte da mais-valia é revertida sucessivamente na
compra de meios de produção e força de trabalho aos efeitos de
gerar mais mais-valia. Agora bem, esse dinheiro (como resultado
de uma acumulação originária ou como resultado do ciclo
capitalista D-M-D) é propriedade do capitalista, e dele está
alienado o trabalhador (quem, precisamente por isso, se vê
obrigado a vender sua força de trabalho ao capitalista). Disse
Marx: ... [no capitalismo] “só existem duas classes: a classe
operária, que não dispõe mais do que da sua força de trabalho, e a
classe capitalista, monopolizadora tanto dos meios de produção
como do dinheiro” (T.2, L.2, S.3, Cap. V, XX item V, p. 399).
Resumindo a situação geral dos meios de produção, Marx

68
disse: “A forma das condições de trabalho alienadas deste,
autônoma frente a ele, e, por isso transfigurada, na qual os meios
de produção criados se convertem em capital e a terra em terra
monopolizada, em propriedade territorial, esta forma
correspondente a um determinado período histórico, coincide, por
conseguinte, com a existência e a função dos meios de produção
criados e da terra no processo de produção em geral” (T.3, L.3,
S.7, Cap. XLVIII, p. 831-832).
Como alternativa pós-capitalista Marx lança a hipótese (que
fazemos nossa) de uma organização comunitária onde a terra e
demais meios de produção se tornem propriedade social dos
produtores livremente associados, para satisfazer as necessidades
de cada um (sem devastar a natureza não humana).

Alienação do trabalho

O trabalhador está obrigado (negação da primeira norma da


ética) a vender sua força de trabalho aos capitalistas, donos dos
meios de produção, para poder sobreviver. Agora bem, para que
essa venda se faça efetiva, não basta a vontade do trabalhador, pois
ela depende da existência da vontade do capitalista de contratá-lo;
assim o desemprego espreita sempre o trabalhador, como uma dura
realidade presente e/ou como uma ameaça futura que se pode
concretizar a qualquer momento. Disse Marx: “A inseguridade e
irregularidade do trabalho, a freqüente superpopulação relativa,
figura nos informes dos inspetores de beneficência como outras
tantas queixas do proletariado agrícola irlandês”(T.1, L.1, S.7,
Cap. XXIII, item 5f, p. 649).
Além disso há de se levar em conta as longas considerações
de Marx sobre a superpopulação relativa e o exêrcito industrial de
reserva, umbilicalmente unidas à instabilidade de acesso ao
trabalho e à ameaça real do desemprego. (em T.1, L.1, S.7, Cap.
XIII, item 3 e 4, p. 573-591). A ameaça do desemprego se acentua
para o trabalhador com a concentração de capitais e a progressiva
predominância do capital constante (meios de produção) sobre o

69
capital variável (salários); de fato: “...a concentração amplia e
acelera ao mesmo tempo as transformações operadas na
composição do capital, permitindo aumentar o capital constante às
custas do variável, e como é lógico,(diminuir) a demanda de
trabalho” (T.1, L.1, S.7, Cap. XXIII, p. 573). E o tragicômico é
que é o próprio operário quem produz seu desemprego: “Portanto,
ao produzir a acumulação de capital, a população operária produz
também, em proporções cada vez maiores, os meios para seu
próprio excesso relativo” (idem. P. 575). Agora bem, como esse
excesso relativo (que configura o “exército industrial de reserva”
do que lança mão o capitalista quando lhe convém) permite que o
capitalista se aproveite da incrementada luta entre os operários
para conquistar trabalho, para reduzir os salários, dirá Marx
(opondo-se a Malthus): “A superpopulação relativa [de operários]
é, portanto, o fundo sobre o qual se move a lei da oferta e da
demanda de trabalho. Graças a ela, o raio de ação desta lei opera
dentro dos limites que convém a cobiça e ao despotismo do
capital” (idem. p. 583; há que se recordar que Marx dedica os itens
‘3’ e ‘4’ do Cap. XXIII do T.1 do ‘Capital’ à discussão da lei da
superpopulação relativa no capitalismo, p.573 a 591).
Esta alienação do trabalhador em relação ao trabalho viola a
primeira norma da ética, porque é retirada, do trabalhador a
liberdade de trabalhar, e de decidir como e quando o fará.
Ángel Prior Olmos (abreviado em PO a seguir) destaca que
“Marx sublinha o caráter ilusório das relações de intercâmbio
como relações de indivíduos presumivelmente livres. Os
indivíduos se relacionam mutuamente como indivíduos em uma
determinação dada. Nas relações próprias de um sistema de
intercâmbio ...burguês... Marx ressalta como o trabalhador se vê
obrigado a vender sua força de trabalho para poder viver... [e] a
questão de porque esse trabalhador livre lhe sai ao encontro na
esfera da circulação, não interessa ao dono do dinheiro” (PO, p.
64). À luz desses fatos e burlando-se da falsa liberdade capitalista-
burguesa e das teorias filosófico-jurídicas que a defendem, Marx
dirá em O Capital: “A única coisa que impera ali é liberdade

70
(Freiheit), igualdade (Gleichheit), propriedade (Eigentum), e
Bentham. Liberdade! Pois o comprador e o vendedor de uma
mercadoria, por exemplo, a força de trabalho, não estão
determinados mais do que por sua livre vontade (freien willen).
Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é
o resultado final em que suas vontades se dão expressão jurídica
comum” (citado por PO, p. 65). Marx sustentará, ao contrário, no
Capital, que quanto mais se desenvolve o capitalismo, mais
precária é a garantia de trabalho (e com ele a subsistência) do
trabalhador: “quanto mais elevada é a força produtiva de trabalho”,
tanto maior é a pressão sobre os meios de ocupação do
trabalhador...”,ou seja, tanto mais precária é sua condição de
existência: a venda de sua própria força para aumentar a riqueza
alheia, para a auto-valorização do capital” (citado por PO, p.145).
Por sua vez, MM notou que no capitalismo a objetividade
tem por fundamento “a alienidade da medida de trabalho com
respeito ao trabalho ‘real mesmo’, pois as mercadorias (coisas) são
expressão de quantidades de trabalho, e termos numa universal
relação de trocas” (p. 111).
Em virtude da alienação em relação ao trabalho se faz
possível o desemprego, o qual, por sua vez, pode desembocar na
mendicância, transformando o trabalhador em mendigo. A esse
respeito disse Reyes Mate, fazendo-se eco de Walter Benjamim:
“O mendigo...dispõe de um ponto de vista privilegiado para
analisar as sociedades avançadas. Ao mendigo não foge o fato de
que o sistema funciona criando desperdícios que logo recicla e
aproveita como alimento da sua engrenagem”. “As sombras são
uma realidade do sistema e também a metáfora da exclusão. O que
o sistema rejeita não é só o que circula pelos esgotos ou vai para a
lixeira. Ele converte em lixo tudo o que usa e que um momento
antes havia sido festejado com todas as honras”. À luz dessa
situação levamos a reflexão de Reyes Mate para outro contexto,
quando ele diz que hoje chegou ao fim a invisibilidade das vítimas
(que eu interpreto aqui como sendo vítimas do sistema capitalista,
dentre as quais, inclusive, e como se verá mais adiante, há de se

71
incluir o próprio capitalista); diz Reyes: “O assassinato não pode
tomar-se como uma fatalidade do destino ou como um passo
lógico do progresso. As vitimas tem se tornado visíveis. Têm
deixado de ser o preço silencioso da política e da história. A
visibilidade consiste em ter-se conseguido que seu sofrimento
deixe de ser insignificante, quer dizer, que, signifique injustiça”
(Reyes Mate, 2008, p.21).

Alienação do produto do trabalho

O trabalhador não pode usar para satisfazer suas


necessidades aqueles produtos que são fruto de sua produção e/ou
da produção de outros trabalhadores. Tem que contentar-se com o
salário, que paga o valor de sua força de trabalho, e só então em
qualidade de “consumidor” tentará reencontrar-se no mercado
(dentro do limite da capacidade aquisitiva da monta de seu salário)
com os frutos de seu trabalho e os dos outros produtores.
Rastreando a exacerbação da separação do produtor em relação aos
produtos por ele criados, na adoção de maquinismo, diz Marx: “A
faceta independente e estranha que o regime capitalista de
produção dá as condições e aos produtos do trabalho com respeito
aos operários, enfrentando-os com estes, se converte, com o
maquinário em uma aberta e total contradição” (T.1, L.1, S.4, Cap.
XIII, p. 383, o sublinhado é meu). Expondo a realidade da
propriedade no embolso pelo capitalista da mais-valia arrancada do
operário (que antes de sua realização em dinheiro se expressa em
uma determinada quantidade de produto produzido por aquele),
disse nosso autor: “Agora a propriedade, vista do lado do capitalista,
se converte no direito de apropriar-se do trabalho alheio não
retribuído, ou seu produto, e, vista do lado do operário, como a
impossibilidade de fazer seu o produto de seu trabalho”(T.1, L.1,
S.7, Cap. XXII, p. 529, os sublinhados são meus).
E logo esclarece: “Como antes de entrar no processo de
produção o operário é despojado de seu próprio trabalho, que o
capitalista se apropria e incorpora ao capital, durante o processo este

72
trabalho se materializa constantemente em produtos alheios. E como
o processo de produção é, ao mesmo tempo, processo de consumo da
força de trabalho pelo capitalista que a compra, o produto do operário
não só se transforma constantemente em mercadoria, mas também em
capital” (T.1, L.1, S.7, Cap. XXI, p. 516).
Esta situação viola as duas primeiras normas da ética, pois
não são os produtores quem a partir de sua liberdade de opinião e
em dinâmica consensual resolvem sobre a distribuição do fruto do
trabalho social, mas pelo contrário se vêem limitados em suas
decisões não consensuais ao que dispõe a capacidade aquisitiva
limitada de seus respectivos salários. Por outro lado, essa
insuficiência muitas vezes deriva em uma violação da terceira
norma da ética, que ocorre quando a saúde do trabalhador se vê
afetada pela incapacidade de satisfazer certas necessidades (ou
materiais ou espirituais, diria Marx). Disse Marx: “O Capital
variável não é, pois,..., mais do que uma forma histórica concreta
de manifestar-se o fundo de meios de vida ou o fundo de trabalho
de que necessita o operário para seu sustento e reprodução e que
em todos os sistemas de produção social tem constantemente que
produzir e reproduzir. Se o fundo de trabalho aflui a ele
constantemente em forma de meios de pagamento de seu trabalho,
é, naturalmente, porque seu próprio produto se aliena dele em
forma de capital” (T.1, L.1, S.7, Cap. XXI, p.514; ver também
itens 3 e 4, e T.2, L.2, S.3, Cap. XIX, item II5,e T.3, L.3, S.6, ao
fim do Cap. XLVII e início do XLVIII).
PO recorda como em “O Capital” Marx “destaca o enigma
que se torna a forma da mercadoria para a consciência dos
homens”, ao ponto de que para explicar esse fato através de “uma
analogia adequada”, há que se recorrer à região nebulosa do
mundo religioso. Neste, os produtos das cabeças humanas
aparecem entre elas e os homens. “Assim, lhes ocorre no mundo
das mercadorias aos produtos da mão humana” (citado por PO, p.
140). E Marx esclarecerá no “Capital”: “O enigmático da forma
mercadoria consiste, pois, simplesmente em que ela devolve aos
homens a imagem dos caracteres sociais de seu próprio trabalho

73
deformados como caracteres materiais dos produtos do trabalho,
como propriedades naturais sociais dessas coisas; e portanto,
refletem também de maneira deformada a relação social dos
produtos com o trabalho total, em forma de uma relação entre
objetos que existiria fora deles (citado por PO, p. 155).

Alienação do mercado

É de se notar a característica alienada desse mercado no qual


o produtor tenta satisfazer suas necessidades vestindo a pele de
“consumidor”: “O mercado tem, portanto, que se estender
constantemente, de modo que suas conexões e as condições que o
regulam vão adquirindo cada vez mais a forma de uma lei natural
independente da vontade dos produtores, cada vez mais
incontrolável” (T.3, L.3, Cap. XV, item1, p. 267).
Essas considerações têm atualidade redobrada quando a TV
não cessa de dizer, um dia sim e outro também, que “o mercado
está nervoso”, ou “o mercado está animado”, ou “o mercado espera
tal medida do governo”, e outras tantas jóias que personificam o
mercado e põem os indivíduos de carne o osso a sua mercê. Tal
situação viola flagrantemente a liberdade de decidir e a exigência
de fazê-lo consensualmente, estipuladas pelas primeiras normas da
ética; e, como vimos, também é violada a terceira norma quando a
saúde do trabalhador é afetada por essa alienação, e/ou é afetada a
saúde da natureza não humana (por exemplo, pelas contaminações
geradas pelos desperdícios do consumo governado sem nenhum
plano pelo ‘mercado’).

Alienação da atividade produtiva

Quando o trabalhador tem a “sorte” de vender sua força de


trabalho a um capitalista para poder sobreviver, sua atividade
produtiva deixa de lhe pertencer. Disse Marx: “O que este [o
trabalhador] vende é sua força de trabalho. Tão logo seu trabalho
começa a se pôr em ação, tem deixado de lhe pertencer, e [o

74
trabalhador] não pode mais portanto vender o que já não mais lhe
pertence” (T.1, L.1, S.5, Cap. XXII, p. 484).
Esta alienação é uma flagrante violação da liberdade de
decisão amparada pela primeira norma da ética, e contém
plausíveis violações da terceira norma (como acontece quando o
emprego sem limite da sua força de trabalho desemboca para o
trabalhador em enfermidades profissionais, como os são, as
“lesões por esforços repetitivos”, LER, ou DORT, “enfermidades
osteomusculares” relativas ao trabalho, flagelos da atualidade); ao
mesmo tempo, ao ser-lhe retirado o controle de sua atividade, o
trabalhador não pode zelar, como o exige também a terceira
norma, pela saúde da natureza não humana que pode ser afetada
(em especial por contaminação e devastação), por essa atividade
produtiva e seus efeitos, que ele não controla.
Outra dimensão dessa alienação o constitui o fato de que a
atividade produtiva do trabalhador é governada despoticamente
pelas ordens do capitalista e seus representantes, em clara violação
da dinâmica consensual de construção de decisões, estipulada pela
segunda norma da ética. Ambas as dimensões foram exploradas de
maneira brilhante por Charles Chaplin em “Tempos Modernos”.
Lembremos mais uma vez a observação de Marx já referida:
“Tão logo como seu trabalho começa a se pôr em ação, tem
deixado de lhe pertencer, e [o trabalhador] não pode mais portanto,
vendê-lo já que não mais lhe pertence” (T.1, L.1, S.6, Cap. XVII,
p. 484); e antes, incluindo a disciplina das ordens nessa dimensão
da alienação, Marx havia dito: “O trabalhador trabalha sob o
controle do capitalista, a quem seu trabalho pertence. O capitalista
cuida para que esse trabalho seja executado como é devido e que
os meios de produção sejam empregados convenientemente...”
(T.1, L.1I, S.3, Cap. V, p. 147);
Mas não há de se esquecer que no “Capital” Marx (usando
uma imagem de clara inspiração platônica) continua marcando
claramente a diferença entre a atividade produtiva humana e
qualquer ação animal: “Mas...o que distingue o pior arquiteto da
melhor abelha é que o arquiteto constrói a cela em sua cabeça

75
antes de construí-la com cera... Não se trata somente de que o
trabalhador faz uma alteração da forma da natureza; é que ao
mesmo tempo realiza na natureza a sua finalidade (Zweck), a qual
é conhecida por ele, e determina como uma lei o modo de seu fazer
e subordina sua vontade” (citado por PO, p. 98). E também no
“Capital” (T.1, Cap. V), Marx volta a destacar que “O trabalho é
um processo entre o ser humano (Mensch) e a natureza (Natur),
um processo no qual o ser humano medeia, regula e controla
mediante sua própria atividade, seu metabolismo com a natureza.
O ser humano se enfrenta com a matéria natural como sendo força
natural ele mesmo. Põe em movimento as forças naturais
pertencentes a sua corporeidade – braços e pernas, cabeça e mãos –
com o objetivo de apropriar-se da matéria natural de uma forma
utilizável para sua própria vida. Mediante esse movimento opera
na natureza externa a ele e a altera, e assim altera ao mesmo tempo
sua própria natureza. Desenvolve as potências que estavam
adormecidas nela e submete a seu próprio domínio o
funcionamento de suas forças” (citado por PO, p. 112).

Alienação do outro ser humano

O capitalismo é essa guerra de todos contra todos, em que os


capitalistas se opõem aos trabalhadores e vice-versa, ao tempo em
que os capitalistas e os trabalhadores, por sua vez se opõem,
respectivamente, entre si. Essa guerra é claramente uma violação
das três normas éticas básicas (incluindo a terceira, pelas
enfermidades físicas ou nervosas que podem derivar desse conflito
incessante). Basta ouvir a rádio para saber que em cada greve
capitalistas e trabalhadores se opõem, em especial pelo salário, a
duração da jornada de trabalho e/ou pelas condições em que se
realiza o mesmo (que podem ser mais ou menos penosas para o
trabalhador); e em perspectiva histórica, ambos se opõem
objetivamente pela propriedade dos meios de produção (que no
capitalismo pertencem aos capitalistas, e que a revolução
comunista, e também a ecomunitarista, pretende colocar em mãos

76
dos produtores livremente associados). Por sua vez, os
trabalhadores se opõem entre si, em especial a causa da luta para
acessar um emprego remunerado com um salário e permanecer
nele. E também se opõem os capitalistas entre si, em especial na
concorrência pela conquista de mercados e pela obtenção de
créditos; ambas as situações são vitais para sua manutenção como
capitalistas, ou sua morte como tais na luta da concorrência com
seus pares.

O operário oposto ao capitalista e ao operário

Explicando a maneira em que se constitui a quota geral de


lucro, observa Marx que devem se nivelar determinados desníveis na
mais-valia e/ou no lucro, e que: “Isto pressupõe a concorrência entre
os operários e a nivelação mediante a sua migração constante de um
ramo da produção para outro” (T. 3, L. 3, S.2, Cap. X. p. 197).

O capitalista oposto ao operário e ao capitalista

Abordando outra faceta da oposição entre capitalistas, disse


Marx que quando se trata, não de distribuir lucros, mas perdas,
então “isto é decidido pela força e a astúcia; ao chegar aqui a
concorrência se transforma numa luta entre irmãos inimigos. A
partir desse momento se impõe o antagonismo entre o interesse de
cada capitalista individual e o da classe capitalista em seu
conjunto, do mesmo modo que antes a identidade desses interesses
se abria caminho praticamente através da concorrência.” (T.3, L.3,
S.3, Cap. XV, p. 275).

O camponês oposto ao camponês


A mútua alienação tampouco poupa os camponeses. Disse
Marx, ao referir-se à formação de uma classe de diaristas agrícolas
desprovidos de meios de produção: “No período de formação desta
nova classe, que ainda só existe em estado esporádico, os
camponeses acomodados tomaram o costume de explorarem por

77
sua conta os diaristas agrícolas, do mesmo modo que na época
feudal os vilões afortunados tinham a seu serviço outros vassalos”
(T.3, S.6, Cap. XLVII item 4, p. 806).
Nota AA ao abordar a alienação dos indivíduos entre si, que
ocorre no capitalismo, que “A alienação dos indivíduos
significa...a autonomia e substantivação e domínio de uns
indivíduos frente a outros em virtude de sua forma social”. E
explica: “No modo de produção capitalista a forma social do
indivíduo lhe vem dada por estas relações sociais específicas que
nele, como em quaisquer entes materiais, tomam corpo e o
convertem em suas personificações. A forma social do indivíduo é,
por conseguinte, seu ser social como personificação daquelas
relações” (p. 239). E nota AA que há dois “grandes modos de
personificação”, o do capitalista e o do assalariado, na medida em
que “ambos atuam como funcionários do capital”. E esclarece:
“Mas ao tempo em que o capitalista será capital personificado,
por ser a personificação dos meios de produção, o operário será
trabalho vivo ou tempo de trabalho personificado em sua
qualidade de representante da força de trabalho, tal como Marx o
repete até fartar-se. E assim a personificação foi dividida em uma
personificação específica como poder e em outra personificação
como submissão...” (p. 241). E AA conclui: “O poder do
capitalista, em definitivo, revela assim a natureza última do poder
na sociedade moderna e o caráter formal e delegado (subsidiário)
desde o capital de todos os demais poderes sociais” (p. 247), e “Ao
assumir esse poder – essa separação, autonomia e domínio de uns
indivíduos em relaçãos aos outros em virtude de sua determinação
social – como alienação dos indivíduos, note-se que é justamente
essa alienação a que dá lugar às classes sociais específicas do
regime capitalista” (p. 249).

Alienação de si mesmo

Estas múltiplas facetas da alienação implicam que no


capitalismo (especialmente o trabalhador, mas também o

78
capitalista), o ser humano se encontra alienado em relação a si
mesmo, uma vez que o individuo se estrutura a partir desse “nó”
(que é) de relações sociais, e daquelas que existem no capitalismo
com a natureza não humana, mediadas pelas primeiras. Tal
situação é claramente violatória da liberdade individual de decisão
exigida pela primeira norma da ética.
Para o trabalhador isso mostra-se, por exemplo, no fato de
que se relaciona com os outros trabalhadores “como indivíduos”
(sublinha Marx), só quando eles entram em relação com o mesmo
capital, mas não entre si, e “Sua cooperação começa no processo
de trabalho, quer dizer, quando já tenham, deixado de pertencer a
si mesmos” (sublinhado meu, T.1, L.1, S.4, Cap. XI, p. 288). Essa
alienação no ‘capital’ se expressa assim: “Na manufatura, assim
como na cooperação simples, a individualidade física do operário
em funções é uma forma de existência do capital” (T.1, L.1, S. 4,
Cap. XII item 5, p.315); e logo dirá Marx: “... no sistema baseado
nas máquinas, a grande indústria possui um organismo
perfeitamente objetivo de produção com o qual o operário se
encontra como uma condição material de produção pronta e
acabada” (T.1, L.1, S.4, Cap. XIII item 2, p. 338), e antes havia
comentado o impacto dessa situação sobre a subjetividade como
segue: “Na produção a base de máquinas desaparece o princípio
subjetivo da divisão do trabalho. Aqui o processo total se converte
em objetivo...” (idem, p. 332).
Nota AA que “o ser auto-alienado da matéria consiste antes
de tudo em um ser-de-outro-modo (Anderssein) (AA, p. 253), e
resume sua visão neste ponto como segue: no capitalismo “...é tal a
submissão dos caracteres materiais dos indivíduos e das coisas aos
imperativos sociais daquela forma, tal a carência e perda das
propriedades humanas e objetivas, que por fim, os indivíduos
tendem a desaparecer como sujeitos pessoais e as coisas a
dissiparem suas propriedades específicas; e que, em resumo, a
realidade inteira oferece um imenso espetáculo no qual o lugar de
uns e de outras tem sido ocupado por formas e funções sociais
capitalistas neles substantivadas, únicas protagonistas do processo

79
social e representadas sob a figura de coisas e indivíduos” (p. 258).
Citando as palavras de Marx no terceiro tomo de “O Capital”
[Os agentes principais deste sistema de produção, o capitalista e o
operário assalariado, não são, como tais, mais que encarnações,
personificações do capital e do trabalho assalariado, determinados
caracteres sociais que o processo social de produção imprime nos
indivíduos; produtos destas determinações sociais de produção”]
AA observa que no capitalismo “A determinação formal dos
indivíduos, em definitivo, consiste no ser o caráter social que
recebem como personificação daquelas relações sociais através da
personificação de suas capacidades (separadas de si mesmo) e de
seus objetos” (p. 273). Mas observa AA que a forma social
capitalista resulta também positiva para o indivíduo, pois “a forma
capitalista dos fatores produtivos, ao obrigar a produção a um
crescimento incontrolável em extensão e intensidade, promove o
desenvolvimento até agora inigualado da natureza humana” (p.
275) Se compartilha-mos a idéia de que o indivíduo capitalista é
um momento aparentemente necessário do processo de expansão
do individuo universal do pós-capitalismo, há de se acrescentar
hoje a AA (apoiando-nos na terceira norma da ética e na evidente
crise ecológica mundial) que esse ‘incomparável crescimento’ da
produção se faz às custas dos grandes equilíbrios ecológicos (e que
o movimento ao pós-capitalismo, como intuiu Benjamin, é pelo
menos ao mesmo tempo que um salto adiante no processo de
individuação, um “freio” aplicado à locomotiva desgovernada do
capital, que ameaça conduzir ao holocausto da humanidade e de
boa parte do planeta). Em todo caso, faz-se hoje mais claro do que
nunca que a aposta na emergência do indivíduo universal se faz
desde “a alienação praticamente universal dos indivíduos sob as
relações capitalistas avançadas” (AA. P. 279).
Disse AA que onde melhor se traduz o grau de auto-
alienação do indivíduo (ainda que a nosso juízo também podemos
incluí-la na alienação inter-individual) é na lei da população
própria ao modo capitalista de produção, pois ela faz aparecer uma
superpopulação “excedente, sobrante, remanescente, um conjunto

80
de indivíduos sem direito à vida em razão da forma social que as
relações capitalistas imprimem a suas condições materiais de
existência” (AA, p. 284); superpopulação esta que, como disse
Marx, constitui um exército industrial de reserva, a serviço do
capital (inclusive para usá-lo como meio de pressão para rebaixar
os salários), quando o entenda útil e necessário. E AA destaca que
em sua auto-alienação capitalista “os indivíduos resultam
idênticos, tão inter-cambiáveis entre si como suas mercadorias,
abstratos, carentes de toda peculiaridade diferenciadora,
perfeitamente substituíveis, equivalentes entre si por serem
realmente in-diferentes” (AA, p. 288)
Basta uma olhada à moda no vestir e aos costumes, à troca
de uns empregos por outros que se permite a qualquer momento
qualquer empresa, e à mútua indiferença entre os que habitam nas
grandes cidades, para certificar o acerto desta observação.
De sua parte PO destaca como em “O Capital” a concepção
marxiana “se opõe aos intentos de conceber uma natureza humana
imóvel, fixa para sempre, como ocorre, dentre outros, nos pensadores
do século XVIII”. E cita uma passagem do “Capital” em que Marx
registra a dívida de Bentham para com Helvetius: “O princípio da
utilidade não foi uma invenção de Bentham. Ele só reproduziu sem
graça o que tinham dito Helvetius e outros franceses do século XVII.
Quando se quer saber, por exemplo, o que é útil para um cachorro, há
de se investigar a natureza canina. Essa natureza não pode ser
construida sobre a base do ‘principio utilitarista’. Aplicado ao ser
humano: se se quiser julgar de acordo com o princípio da utilidade
toda ação, todo movimento, toda relação ou situação, etc., humanos,
se tratará primeiro da natureza humana em geral, e depois da natureza
humana historicamente modificada” (citado por PO, p. 93-94). De
minha parte aqui me permito só indicar a importância do feito de
Marx, defensor da construção histórico-social incessante do ser
humano, não renegar de certas ‘invariáveis humanas’ (ao referir-se a
‘natureza humana em geral’), questão essa que é decisiva por sua
conotação ecológica, vinculada à terceira norma da ética, e para se
para discutir as “necessidades humanas”.

81
Um raconto de Arteta

AA fez um claro reconto, que transcrevemos integralmente,


de como se cumprem no capitalismo, e em especial para o
operário, “todos os requisitos da alienação”; disse ele: “A coisa-
força de trabalho, em sua determinação social de mercadoria ou
entanto que suporte do capital variável, alcança os caracteres de
autonomia, substantivação e poder sobre os indivíduos que a
albergam. Como no caso de qualquer outro objeto que contém a
forma social capitalista, a vida e o movimento dos indivíduos
depende inteiramente da vida e movimento insuflado neste
singular objeto, a força de trabalho. A independência de sua
própria capacidade produtiva em relação ao trabalhador é tão
palpável quanto o é a do objeto e os meios de produção quando
recebem seu caráter social de capital constante: de fato é, como
estes, uma propriedade alienada, propriedade do capital que a
adquire; e o domínio sobre o sujeito que a encarna, é tão férreo
como o dos elementos materiais do trabalho. Se a força de
trabalho é, no processo de produção capitalista enquanto
processo de valorização, um meio dos meios de produção, o
indivíduo trabalhador transforma-se, por sua vez, num meio de
sua força de trabalho, em sua propriedade efetiva. Seu ser como
indivíduo está em função de seu ser como trabalhador (proprietário
da capacidade de trabalho), seu destino individual está fixado por
este objeto específico, sua vida há de começar por colocar-se ao
serviço de sua força de trabalho. Afinal de contas, sua existência
física mesma depende por inteiro da venda desse objeto e dele
recebe sua permissão para viver. (p. 222).

O ponto de vista de Prior Olmos

PO lembra como alguns autores tem contraposto a crítica à


alienação, como suposta expressão exclusiva da obra do jovem
Marx, ou inclusive como criação de Lukács em “História e
consciência de classe”, da teoria do valor-trabalho e da mais-valia

82
(que seriam próprias do Marx maduro, em especial no “Capital”).
PÓ, por sua vez, vê “ao contrário, o ensaio de Lukács sobre a
reificação publicado na obra citada [como] um argumento
adicional para se afirmar a unidade do pensamento de Marx. O
fato de que Lukács pudesse reconstruir em seus escritos mais
profundos a teoria da alienação de Marx baseando-se no ‘Capital’
e na ‘Contribuição’ de 1859, prova a profunda relação entre o
jovem Marx e sua obra da maturidade” (PO, p. 153). Fazemos
nossa esta leitura de PO.

Marx e a questão da liberdade e a autonomia

Em seu estudo dedicado ao “Capital”, Garcia de Haro


(Garcia 1987), desde uma militância católica muito explícita,
afirma que Marx é um inimigo da liberdade. Disse ele: “Toda a
teoria do regime capitalista de produção [em ‘O Capital’] é –
acabamos de ver– uma contínua negação da possibilidade mesma
da liberdade”. E acrescenta: “É sintomático que Marx, nos três
extensos volumes de O Capital, só duas vezes trate da liberdade. A
primeira para dizer que os que acreditam os capitalistas ser a
liberdade e se defende como tal na sociedade burguesa, não existe;
é uma mera aparência (Tomo I)...a segunda, para descrever em que
consistiria a liberdade no futuro regime comunista (Tomo III)” (p.
109-110). Nosso autor resume sua leitura da posição de Marx
sobre a liberdade em “O Capital”, como segue: 1. Em Marx a
liberdade deixa de ser reconhecida como propriedade essencial da
pessoa. É mais um bem que lhe advêm extrinsecamente, de modo
semelhante a como se fala da liberdade das bestas, que se dizem
livres se não estão enjauladas. [A liberdade] tem deixado de se
entender como propriedade da natureza humana, inseparável da
dignidade pessoal, que nada pode arrebatar ao homem, e a cujo
íntimo exercício somente ele pode renunciar. Para Marx o homem
nunca possui por si a liberdade; mesmo na futura perfeição do
paraíso comunista, [o homem] nunca será livre enquanto trabalhe.
A produção como necessidade que elimina a liberdade, o seguirá

83
sendo nessa etapa: enquanto o homem trabalhe permanecerá no
reino da necessidade. Só fora da jornada de trabalho há lugar para
a liberdade: na melhor das hipóteses o homem será livre por pouco
tempo... 2) Coincide com a noção perdida de liberdade como
propriedade da pessoa a dissolução da distinção entre o bem e o
mal, substituída pela categoria suprema do progresso. A perfeição
do homem não é algo pessoal, fruto do bom exercício da liberdade,
mas um desenvolvimento necessário do incessante
desenvolvimento histórico... 3) Por último, há em Marx um
chamativo ódio em relação ao arrependimento cristão, que termina
por dar forma a sua [de Marx] negação radical da liberdade: se não
houvesse liberdade, o puro fazer e o agir bem se identificariam; o
bem seria o simples exercício do próprio poder de agir, e o único
mal [seria] arrepender-se dos próprios atos... (p.113-118).
E Garcia explicitará seu credo ao detalhar no quarto (último)
capítulo de sua obra, respectivamente, ‘A essência da tentação
marxista’, ‘A possibilidade de renunciar ao bem honesto’, e a
‘Urgência de lembrar qual é o verdadeiro bem comum da
sociedade’, que, obviamente, já estaria definido pela doutrina da
Igreja Católica.
É evidente que nosso autor não percebeu que no “Capital” a
alusão (direta ou indireta) à liberdade vai muito além das duas vezes
registradas por ele. O que Garcia de Haro não viu ou não quis ver é
que no “Capital” Marx mostra como e porque a liberdade humana é
impossível no capitalismo. Por sua parte, PO sustenta, referindo-se a
Marx que “a temática da liberdade ocupa um papel de suma
relevância para a compreensão de sua obra, pois recorre o conjunto
da produção de Marx, desde sua Dissertação de Doutorado até os
últimos capítulos do livro III de O Capital, constituindo-se no
motivo central que subjaz a diversos conceitos básicos de seu agir
teórico, como podem sê-lo a temática da emancipação humana,
social e política, a teoria da alienação e o fetichismo da mercadoria,
o papel do proletariado como classe chamada a libertar-se e a
antecipação do comunismo como estágio do percurso histórico que
possibilite novas relações humanas” (PO, p. 43).

84
Baseando-nos nas exigências das primeiras normas
fundamentais da ética (lutar pela liberdade individual de decidir, e,
exercê-la buscando decisões consensuais), queremos enfocar agora
com mais detalhamento e sob uma ótica diametralmente oposta à
de Garcia de Haro, e similar a de PO, as posições crítico-
propositivas de Marx em relação à liberdade e à autonomia.
Nos Manuscritos de 1844, ainda em plena crítica da filosofia
hegeliana (que ocupa a ultima parte do terceiro Manuscrito), Marx
denuncia a dependência do trabalhador no contexto do modo de
produção capitalista, considerando-a (às vezes implicitamente)
como uma restrição inaceitável de sua autonomia (decisória).
Assim, entre outras passagens, lemos: “Um ser só se considera
independente enquanto é dono de si e só é dono de si enquanto
deve a si mesmo sua existência. Um homem que vive pela graça de
outro se considera a si mesmo um ser dependente” (III 154); agora
bem, como o trabalhador, alienado dos meios de produção de vida
e de produção, deve sua existência ao salário que lhe paga o
capitalista, se faz dele dependente, mais ainda, escravo: “...o
aumento dos salários conduz a um excesso de trabalho dos
operários. Quanto mais querem ganhar, tanto mais de seu tempo
devem sacrificar, e, alienados de toda liberdade, hão de realizar,
para satisfazerem a cobiça, um trabalho de escravos”; e completa
pouco depois: “E assim [o operário]... vai se tornando mais
dependente de todas as flutuações do preço de mercado, do
emprego dos capitalistas e do humor dos ricos” (I 54). Mais
adiante, insiste: “Um aumento forçado dos salários, prescindindo
de todas as demais dificuldades...não seria...mais que uma melhor
remuneração dos escravos, e não conquistaria, nem para o
trabalhador, nem para o trabalho, sua vocação e sua dignidade
humanas” (I117). Complementando a idéia com a outra face da
moeda, disse Marx: “A concentração de capitais se faz maior, os
capitalistas grandes arruínam os pequenos e uma fração dos
antigos capitalistas cai para a classe operária, que por obra desta
ajuda padece de novo a depressão do salário e cai em uma
dependência ainda maior em relação aos poucos grandes

85
capitalistas, e com ela o crescente bem-estar da sociedade faz o
operário cada vez mais dependente do capitalista...” (I 57). Fiel a
seu estilo de reconhecer dívidas e precursores, Marx cita a mesma
idéia formulada por Pecqueur na “Théorie nouvelle d’économie
sociale”: ‘Pour vivre, donc, les non-propriétaires sont obligés de se
mettre, directement ou indirectement, au service des propriétaires,
c’est à dire sous leur dépendance’ (p. 409, I63; [Para viver, os não
proprietários estão obrigados a colocarem-se direta ou
indiretamente a serviço dos proprietários, ou seja, sob sua
dependência].
Em “O Capital”, fazendo o balanço entre liberação e
submissão provocado pela aparição do capitalismo, disse Marx: “O
produtor direto, o operário, não pôde dispor de sua pessoa até não
deixar de viver sujeito à gleba e ser escravo ou servo de outra
pessoa. Além disso, para poder converter-se em vendedor livre de
sua força de trabalho, que acorre com sua mercadoria aonde quer
que encontrar mercado para ela, houve de sacudir também o jugo
dos grêmios, furtando-se às ordens dos aprendizes e dos oficiais e
de todos os estatutos que obstaculizavam o trabalho. Por isso, em
um de seus aspectos, o movimento histórico que converte os
produtores em operários assalariados representa a libertação da
servidão e da coação gremial, e este aspecto é o único que existe
para nossos historiadores burgueses. Mas, se enfocarmos o outro
aspecto, vemos que estes trabalhadores recém emancipados só
podem converter-se em vendedores de si mesmos, uma vez que se
vêem despojados de todos os seus meios de produção e de todas as
garantias de vida que as velhas instituições lhes asseguravam. A
lembrança desta cruzada de expropriação ficou inscrita nos anais
da história com traços indeléveis de sangue e fogo” (T. 1, L. 1, S. 7,
Cap. XXIV, p. 655-656). E retornando ao tema da (in)dependência
com palavras muito similares às de 1844, dirá Marx: “E nossos
possuidores de mercadorias advertem que este mesmo regime de
divisão do trabalho que os converte em produtores privados
independentes, faz que o processo social de produção e suas
relações dentro desse processo sejam também independentes deles

86
mesmos; pelo que a independência de uma pessoa em relação a
outras vem a se combinar com um sistema de mutua dependência
em relação às coisas” (T. 1, S. 1, Cap. III, p. 73; lembremos que
Marx havia visualizado o comunismo como uma inversão desses
termos, a saber, como a administração conjunta-cooperativa-
consciente dos seres humanos sobre as coisas.
Ao abordar a alienação da atividade produtiva do trabalhador
sob contrato assalariado, Marx constata: “Se ele [o operário] se
relaciona com sua atividade como com uma atividade não livre,
está se relacionando com ela como com a atividade a serviço de
outro, sob as ordens, a compulsão e o jugo de outrem” (I 115).
Para resumir essa perda de liberdade e autonomia do
trabalhador, Marx dirá varias vezes que, nas condições de trabalho
alienado, o operário transforma-se em máquina (por exemplo, em
III 158).
Vejamos como retoma essas idéias em “O Capital”.
Denunciando a falta de liberdade do trabalhador disse: “A segunda
condição essencial que há de dar-se para que o possuidor do
dinheiro encontre no mercado a força de trabalho como uma
mercadoria, é que seu possuidor, não podendo vender mercadorias
em que seu trabalho se materialize, se vê obrigado a vender como
uma mercadoria sua própria força de trabalho, identificando-a com
sua corporeidade viva” (T. 1, L. 1, S. 2, Cap. IV, p. 130). Tal
situação faz cair por terra a imagem que a sociedade capitalista
faz-divulga de si mesma (com a doutrina dos Direitos do Homem),
jurando que se embasa no livre contrato assentado na liberdade e
igualdade dos possuidores de mercadorias (ver T.1, L. 1, S. 2, Cap.
IV, p. 138). Com efeito, ao analisar a acumulação originária e
comentando o decreto de Enrique VII sobre as explorações
agrícolas (do qual ocupou-se Bacon em seus “Essays, Civil and
Moral”), Marx constata que tal lei estipulava “precisamente o
contrário do que exigia para se instalar, o sistema capitalista, a
sujeição servil da massa do povo, a transformação deste em um
tropel de gentes assalariadas e de seus instrumentos de trabalho em
capital” (T.1, L. 1, S. 7, Cap. XXIV, p. 660); tal sujeição foi

87
assegurada, inclusive, vetando-se a liberdade de emigrar para
tentar fugir da pobreza; assim “No século XVIII, aos escoceses
expulsos de suas terras se lhes proibia ao mesmo tempo emigrar do
pais, para assim empurrá-los à força para Glasgow e outros centros
fabris da região” (idem, p. 669) Mas nesse processo os poderosos
se asseguraram seus terrenos de caça, como disse Robert Somers
em carta ao “Time”: “deixa-se correr a caça em liberdade, sem
taxar-lhe o terreno, [mas] persegue-se as pessoas e se as tranca em
faixas de terra cada vez mais estreitas... Ao povo foram
arrebatadas as liberdades umas depois das outras” (idem, p. 671).
Para Marx, a condição assalariada no capitalismo é aquela na qual
um homem (o trabalhador) se vê “obrigado” (ou seja, contrariado
na sua liberdade) a “vender a outro sua força de trabalho”, o que
significa “vender-se a si mesmo” (pelo menos durante a duração da
jornada de trabalho) (ver T. 2, L. 2, S. 3, Cap. X, p. 417). De fato,
trabalhando como assalariado, o operário converte-se em mais uma
“coisa” nas mãos do capitalista: “...dentro da produção capitalista o
próprio operário, uma vez que entra no processo de produção, passa
a ser por si mesmo um ingrediente do capital produtivo em funções
e pertencente ao capitalista...” (T. 3, L. 3, S. 1, p. 50)
Depois essa falta de liberdade far-se-á “natural” para os
trabalhadores “A organização do processo capitalista de produção
já desenvolvido vence todas as resistências”, e “No transcurso da
produção capitalista vai se formando uma classe que, a força de
educação, de tradição, de costumes, se submete às exigências deste
regime de produção como às mais lógicas leis naturais” (Y. 2, L. 2,
S. 3, Cap. X, p. 676). Há de se notar que também o capitalista,
carrasco da liberdade do trabalhador, com quem nunca toma
decisões consensuais, é, por sua vez, um indivíduo não livre,
pressionado pela lógica concorrencial do capitalismo (e por isso o
comunismo, que ampliamos em ecomunitarismo, haverá de servir
também para que o atual capitalista, despojado de tal função e
integrado na associação livre dos produtores livres, possa realizar
consensualmente sua liberdade de decidir): “A livre concorrência
impõe ao capitalista individual, como leis exteriores inexoráveis,

88
as leis imanentes da produção capitalista” (T. 1, L. 1, S. 3, Cap.
VIII, p. 226). Submetido a uma lógica que extrapola sua liberdade
de decidir, o capitalista individual nem sequer sabe como a mais-
valia gerada em seu ramo de produção contribui e cria o lucro
médio, pois “esse é um processo que se desenvolve a revelia dele,
que ele não vê, que não compreende e que em realidade não lhe
interessa” (T. 3, L. 3, S. 2, Cap. IX, p. 190).
MM por sua parte, referindo-se de fato aos capitalistas, nos
proporciona um panorama claro da realidade e incompletude da
vigência da liberdade de decisão exigida-amparada pela primeira
norma da ética, quando observa que a concorrência capitalista
“significa que a livre decisão de cada produtor sobre a que haverá
de dedicar sua capacidade produtiva, e a livre decisão de cada um
sobre que produto prefere adquirir mediante a troca, se encontram
(‘concorrem’) no mercado com as correspondentes decisões
igualmente livres de cada um dos demais (em princípio infinitos)
indivíduos; mas ocorre que, logo, no mercado, essa liberdade se
verá limitada (e redirecionada, com a eventual troca do capitalista
a outro ramo produtivo), pois é ali onde “cada um assume o risco
de que sua atividade produtiva seja ou não confirmada a
posteriori...como socialmente necessária” (p. 58), quer dizer, seja
ou não passível de venda (com a conseqüente realização do valor,
que inclui a mais-valia, embutida no produto, com o que isso tem
de decisivo para a permanência ou não do capitalista em seu papel
de tal); como o disse MM: “Cada um conserva sua liberdade de
decisão, e somente um mecanismo cego (que não é sujeito algum,
nem individual nem coletivo) lhe fará saber se a decisão que
adotou é ou não compatível com as exigências da sociedade e o
compelirá a aceitar essas exigências se quiser viver” (p. 60); quem
sabe há de se sinalizar que na realidade o “mercado” é uma espécie
de sujeito coletivo alienado, na medida em que se constitui pelas
relações produtivas alienadas contraídas-renovadas pelos
indivíduos.

89
A questão da temporalidade

Cremos que a questão da “temporalidade” da vida do


assalariado, magistralmente observada-julgada por Arteta (p. 301 e
SS), faz parte deste panorama da alienação da própria liberdade e
autonomia. Nota AA primeiro a “alienação do tempo individual
sob sua forma social capitalista”, e depois “a alienação do
indivíduo mesmo, entanto que submetido a uma temporalidade
assim formalmente determinada”; AA mostra como sob sua forma
capitalista, o tempo do indivíduo é tempo alienado tanto de si (é
um tempo outro) como respeito do indivíduo mesmo
(convertendo-se num tempo de e para outrem)”. No capitalismo a
alienação do tempo “consiste na independência e domínio de suas
determinações formais sobre seus componentes materiais como no
esvaziamento de sua substância mesmo... – ou perda de seu caráter
individual ou qualitativo- e sua conversão em tempo abstrato, em
tempo da forma, como – enfim – em sua substantivação,
autonomia e domínio sobre os indivíduos mesmos” (p. 306);
recordemos que no capitalismo, onde o “produto só é social se é
valor (e mede sua magnitude pelo tempo de trabalho que encerra)
o tempo deverá ser, antes que qualquer outra modalidade, só
tempo de trabalho; melhor, tempo de trabalho produtor de tal
valor, tempo abstrato, e, enquanto tal, como medida desse
trabalho, pura quantidade (e não qualidade de tempo” (p. 304).
Assim, para o assalariado “inclusive seu tempo livre é tempo no
qual ele se limita a repor forças para reiniciar seu processo de
trabalho e, por isso deve empregá-lo ‘produtivamente’” (p. 308).
Disse AA que os capitalistas “por contar com tempo objetivo em
quantidade suficiente (dinheiro em forma de capital constante e
variável) empregam livremente seu próprio tempo presente e o dos
demais” (p. 308). (Como veremos a situação não é totalmente
assim, pois também ao capitalista alcança a urgência coercitiva na
vivência e uso do tempo, em especial devido à concorrência a que
está submetido no dia a dia). Por sua vez o assalariado “por não
possuir senão tempo presente (aquele que se atualiza no exercício

90
de sua força de trabalho) há de colocá-lo como tempo de trabalho a
serviço daquele tempo objetivado que não lhe pertence” (p.308).
Lembremos que Marx descreveu a inversão temporal que no
capitalismo se dá entre “tempo necessário” e “tempo excedente”,
em um duplo sentido; por um lado, porque para o capitalista sendo
o único tempo interessante aquele no qual o trabalhador cria mais-
valia (catalogado tecnicamente como “excedente”), passa a ser um
tempo supérfluo que há de se reduzir ao mínimo, tanto o tempo no
qual o assalariado se limita a repor na produção o valor de sua
força de trabalho (tempo “necessário”, tecnicamente falando, na
categorização marxiana), como aquele no qual o trabalhador
permanece fora da produção (em casa, por exemplo, ou seja,
“improdutivamente”, mas de maneira “necessária” para sua
subsistência, e, ainda mais, e da aí a defesa marxiana da luta por
ampliar o tempo livre, aquele tempo eventualmente dedicado pelo
trabalhador à sua realização como indivíduo). AA observa que o
“tempo formal” que no capitalismo mede o trabalho abstrato
criador de valor, “é uma alienação do tempo real”, é “um tempo
alienado, porque através do esvaziamento da sua própria
substância, tem gerado o domínio de seus caracteres formais sobre
os materiais”, e arremata: “Em definitivo, todos os tempos
individuais são devorados pelo único Tempo do capital,
submetidos a ele e por ele mediados e regulados” (p. 317). E assim
chegamos à “substantivação, autonomia e domínio do tempo sobre
o indivíduo”, pois no capitalismo o tempo mesmo do indivíduo se
converte em uma mera partícula ou suporte individual do tempo
geral (p.317). AA conclui: “O tempo do indivíduo, sob esta
determinação [a capitalista] resulta sempre um tempo alheio que a
todo momento há de alienar-se: definitivamente, a exploração
capitalista não consiste em outra coisa que em uma imensa
pilhagem de tempo humano, e é nesse despojo reincidente onde
apóia-se a riqueza atual” (p.318); como vemos, esta formulação
globalizadora de AA, supera seu juízo sobre o “tempo livre dos
capitalistas”, e se compatibiliza com nossa apreciação (que
também Marx havia assinalado, ainda que de passagem) da

91
‘escravidão temporal’ da qual também são vítimas os capitalistas,
e não só os assalariados. Tal amplitude destaca mais ainda nas
palavras com que AA resume as conclusões de todo o livro que
comentamos: “A modo de conclusão, a forma capitalista albergada
no indivíduo exige deste que não seja indivíduo pessoal
propriamente dito, senão Gênero, parte indistinguível de uma
Massa homogênea e uniforme; que não produz senão o que,
quanto, como, quando e para quem determine essa forma; que não
ponha nada próprio em sua objetivação e se limite a personificar a
vontade alheia, que confunda seus fins pessoais com os da Pessoa
impessoal da que é representante, isto é, que seja pessoa em sua
primitiva acepção da palavra de ‘máscara’(porta voz, personagem)
da única Personalidade social; que não exerça sua racionalidade
senão como mero depositário da Razão formal, que sua
autoconsciência não seja mais que reflexo particular de uma
Inconsciência universal; que negue suas necessidades individuais
por sua identificação com a necessidade da forma, única
necessidade que submete todas as demais; que sacrifique seu
tempo real a um tempo abstrato e consinta em ser simples órgão do
tempo do capital” (p. 319).

Conclusão provisória e herética coincidente com as duas


primeiras normas da ética

A critica da alienação em “O Capital”, abarcada pelas três


normas fundamentais da ética nos leva à conclusão de que Marx
postulou (sem que a grande maioria dos supostos marxistas o
percebessem) a superação de uma das teses centrais do
materialismo histórico, ao esperar-desejar que a consciência deva
determinar o ser social. Os manuais supostamente marxistas têm
ensinado sempre o contrário, e não sem razão, pois Marx
efetivamente também em “O Capital” sustenta que na existência
alienada e em especial no capitalismo (o sublinhado é meu), “o ser
social determina a consciência”; mas repito: na existência alienada
e em especial no capitalismo; pois se esquece que o mesmo Marx

92
que expõe as teses da perda do controle pelos indivíduos de suas
decisões e relações sociais (em violação das duas primeiras normas
da ética) é o que prega também em “O Capital” a “expropriação
dos expropriadores” (T. 1, fim do Cap. XXIV), para que os
“produtores livremente associados” retomem o controle de suas
vidas; ou seja, para que seu ser social seja determinado por sua
consciência, o que no terreno da produção-distribuição-consumo
passa pela programação da vida econômica através de um plano
consensualmente estabelecido entre os produtores livremente
associados. Assim disse ele, imaginando o comunismo: “...
imaginemos para variar uma associação de homens livres que
trabalhem com meios coletivos de produção e que desenvolvam
suas numerosas forças de trabalho, com plena consciência do que
fazem, como uma grande força de trabalho social. Nesta sociedade
se repetirão todas as normas que organizam o trabalho de um
Robinson [Crusoé], mas com caráter social e não individual... O
produto coletivo da associação a que nos referimos é um produto
social. Uma parte desse produto volta a prestar serviço sob a forma
de meios de produção. Continua sendo social. Outra parte é
consumida pelos indivíduos associados, sob a forma de meios de
vida” (T. 1, LK. 1, S. 1, Cap. ID, p.45, o sublinhado é meu; e ver,
dentre outros, T. 2, S. 1, Cap. VI, item 1b, T.3, L.3, S.1, Cap. VI
item 2); e em outro momento Marx insistirá em que “nos
imaginamos a sociedade despojada de sua forma capitalista e
organizada como uma associação consciente e sujeita a um
plano”(T. 3, L. 3, S. 6, Cap. XXXIX, p. 671, o sublinhado é meu).

Marx: um ‘individualista’
A superação da determinação da consciência pelo ser social,
na determinação do ser social pela consciência, faz de Marx,
contrariamente à fama de ‘coletivista’ que tem lhe atribuido
inclusive alguns supostos ‘marxistas’, um claro defensor do
indivíduo (pois o fim proposto para a ordem pós-capitalista é a
livre e plena expansão dos indivíduos solidariamente associados, e
reconciliados com o restante da natureza, como o exigem as três

93
normas fundamentais da ética), Assim dirá Marx: “O sistema de
apropriação capitalista que brota do regime capitalista de
produção, e, portanto, a propriedade privada capitalista, é a
primeira negação da propriedade privada individual, baseada no
próprio trabalho. A negação da produção capitalista se produzirá
por si mesma com a necessidade de um processo natural. É a
negação da negação. Ela mostra de novo a propriedade individual,
mas sobre a base dos avanços da era capitalista: a cooperação de
trabalhadores livres e sua apropriação coletiva da terra e dos meios
de produção produzidos através de seu próprio trabalho” (T. 1, L.
1, S. 7, Cap. XXIV, p. 705-706 de EAC, a tradução é nossa; ver
em EAC, T. 1, L. 1, S. 7, Cap. XXIV item 7, p. 700). Note-se que
de nossa parte não aderimos a nenhuma interpretação determinista
e/ou necessária da História, considerando que a mesma está
sempre aberta e é o resultado das decisões que os indivíduos e
comunidades tomarem em cada circunstância.
No que respeita ao caráter ‘individualizante’ do ‘reino da
liberdade’ conforme à dignidade da natureza humana, disse Marx:
”com efeito, o reino da liberdade só começa ali onde termina o
trabalho imposto pela necessidade e pela coação dos fins externos;
ele fica, pois, conforme a sua natureza, para além da órbita da
verdadeira produção material... A liberdade nesse terreno, somente
pode consistir no fato de que o homem socializado, os produtores
associados, regulem racionalmente seu intercâmbio com a
natureza, a coloquem sob seu controle comum, em vez de deixar-
se dominar por ela como por um poder cego, e o façam com o
menor gasto possível de forças e nas condições mais adequadas e
mais dignas de sua natureza humana” (T. 3, L. 3, S. 7, Cap.
XLVIII, p. 826-827).

A crítica de Marx a destruição da natureza humana e não


humana no capitalismo, à luz da terceira norma da ética.

Lembre-se que a terceira norma fundamental da ética


estipula que devemos preservar-regenerar uma natureza humana e

94
não humana sadia.
Marx em “O Capital” mostra de forma abundante e variada
como tal norma é violada desde a sua origem pelo capitalismo.
Assim, sintetizando em uma frase final sua análise da acumulação
originária do capital, e à luz das massacres, exploração de
populações e sua subjugação à indústria nascente nas piores
condições de trabalho e de vida, Marx concluiu: “Se o dinheiro,
segundo Augier, ‘nasce com manchas naturais de sangue na
mandíbula’, o capital vem ao mundo jorrando sangue e lodo por
todos os poros, desde os pés até a cabeça” (T. 1, L. 1, S. 7. Cap.
XXIV, p. 697). Para chegar a essa conclusão Marx detalhou-
denunciou as condições de vida e de trabalho dos trabalhadores
(por exemplo, em seu estudo histórico da jornada de trabalho, no
T. 1, S. 3, Cap. VIII, e no estudo da mais-valia, em especial em T.
1, S. 4, Cap. X a XIII). Como o lucro que vai determinar a
posteriori o Lucro Efetivo é o quociente entre a mais-valia e o total
do capital desembolsado, é lei do capital fazer “economias” que
permitam reduzir o divisor daquela proporção a fim de que cresça
o lucro. Essa “economia” opera, por exemplo, no capital constante,
e se traduz, dizia Marx, “na aglomeração dos operários em lugares
pequenos e insalubres, o que em termos capitalistas se conhece
com o nome de poupança de edifícios; na concentração de
máquinas perigosas nos mesmos locais, sem preocupação de se
instalar os necessários meios de segurança contra os perigos; na
omissão de todas as medidas de precaução obrigatórias nos
processos de produção que por seu caráter atentam contra a saúde
ou que, como nas minas, são intrinsecamente perigosos”. [T. 3, S.
1, Cap. V, p. 110]. E prossegue: “a produção capitalista é sempre,
em que pese a sua mesquinharia, uma dilapidadora no que se
refere ao material humano, do mesmo modo em que em outro
terreno, graças ao método da distribuição de seus materiais por
meio do comércio e a seu regime de concorrência, dilapida os
recursos materiais e perde de um lado para a sociedade o que por
outro lado ganha para o capitalista individual” (idem). Nesse
contexto se constata a ausência de medidas tendentes a

95
“humanizar, fazer agradável ou simplesmente suportável para o
operário o processo de produção” (idem).
Marx já havia constatado as enfermidades LER e DORT (ver
acima) provocadas pelo capitalismo desde seu alvorecer na
manufatura: “É indubitável que toda divisão do trabalho no seio da
sociedade leva inseparavelmente a uma determinada degeneração
física e espiritual do homem. Mas o período manufatureiro acentua
esse desdobramento social dos ramos do trabalho de tal modo e afeta
a um ponto tal, com seu regime peculiar de divisão, as raízes vitais do
indivíduo, que cria as bases e dá o impulso para que apareça uma
“patologia industrial” (T. 1, L.1, S. 4, Cap. XII, p. 318).
Resumindo a situação global de inevitável ruína do ser
humano e da natureza não humana enquanto não se superar o
capitalismo, dizia Marx em palavras que hoje não podem senão
considerar-se com muita atenção: “A pequena propriedade
territorial pressupõe uma maioria de população
predominantemente camponesa e o predomínio do trabalho isolado
sobre o trabalho social; pressupõe, portanto, a exclusão da riqueza
e do desenvolvimento da produção tanto no que diz respeito às
suas condições materiais como às espirituais também, por
conseguinte, enquanto às condições de um cultivo racional. Por
outro lado, a grande propriedade sobre a terra reduz a população a
um mínimo em decréscimo constante e lhe opõe uma população
industrial em constante aumento e concentrada em grandes
cidades; e deste modo cria condições que abrem um abismo
irremediável na teia do metabolismo social imposto pelas leis da
vida, como conseqüência do qual a força da terra se dilapida e esta
dilapidação é transportada pelo comércio muito além das fronteiras
do próprio país (Liebig)... Se a pequena propriedade territorial cria
uma classe de bárbaros colocados quase à margem da sociedade e
na qual toda a grosseria das formas sociais primitivas se une a
todos os tormentos e a toda a miséria dos países civilizados, a
grande propriedade da terra mina a força de trabalho na última
região na qual vai se refugiar sua energia natural e onde se
acumula como fundo de reserva para a renovação da energia vital

96
das nações: na terra mesmo. A grande indústria e a agricultura
explorada industrialmente atuam de modo conjunto e formam uma
unidade. Se bem no princípio se separam pelo fato de que a
primeira devasta e arruína preferencialmente a força de trabalho e,
portanto, a força natural do homem, e a segunda arruína mais
diretamente a força natural da terra, mais tarde tendem as duas a
darem-se cada vez mais as mãos, pois o sistema industrial acaba
roubando também as energias dos trabalhadores do campo, ao
tempo em que a indústria e o comércio suprem a agricultura dos
meios para o esgotamento da terra.” [T. 1, S. 6, Cap. XLVII, p.
819-820]. Especificando sua apreciação da agricultura capitalista,
disse Marx em palavras que tem plena atualidade depois das
experiências da chamada “Revolução Verde” feita a base de
agrotóxicos e fertilizantes artificiais: “... todo o progresso realizado
na agricultura capitalista, não é só um progresso na arte de pilhar o
trabalhador, mas também na arte de pilhar a terra, e cada passo
que se dá na intensificação de sua fertilidade dentro de um período
de tempo determinado, é mais um passo dado rumo ao
esgotamento das fontes perenes que alimentam essa fertilidade”
(T. 1, S. 4, Cap. XIII, p. 454).
Enfocando o tema do desmatamento (tema hoje urgente, pois
o desmatamento é impulsionado por multinacionais que na
América Latina compram milhares de hectares no Uruguai, no sul
do Brasil e na Argentina) dizia Marx: “O longo período de
produção (que inclui um período relativamente curto de trabalho),
e, portanto a longa duração de seus períodos de rotação, faz dos
cultivos florestais uma base de inversão pouco favorável para uma
empresa privada, e, por conseguinte, capitalista, a qual não perderá
este caráter ainda que em vez do capitalista individual a dirija uma
sociedade capitalista. Em geral, o desenvolvimento da cultura e da
indústria se traduz na tendência zelosa a destruir os bosques, e
tudo o que se tem tentado para a conservação e produção da
riqueza florestal representa um fator verdadeiramente
insignificante ao lado daquela tendência”. E logo destaca as
seguintes palavras de um texto de Kirchof sobre essa questão:

97
“além disso, a produção florestal continuada requer, por sua vez,
uma reserva de madeira viva, que representa dez e até quarenta
vezes o rendimento anual”, para observar a seguir que isto
significa uma (e tão só uma, pouco tentadora, acrescento eu)
rotação do capital a cada dez ou quarenta anos. [T. 2, S. 2, Cap.
XIII, p. 229-230].
Embasado nessas considerações, concluiu que “a produção
capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo social
de produção socavando ao mesmo tempo as duas fontes de toda a
riqueza: a terra e o trabalhador” (T. 1, L. 1, S. 4, Cap. XIII, p. 455).
Contra essa devastação é preciso se defender (a partir da
terceira norma da ética), como o faz Reyes Mate, o direito à vida
como o primeiro de todos os direitos (Reyes Mate, 2008, p. 67 e ss).

Nosso resumo-atualização do trabalho alienado em distintas


atividades atuais

Para o que segue ver Lopez Velasco 2003b.

Alienação do assalariado

Alienação do objeto de trabalho


Na produção de bens "materiais" (que é a que aqui nos
interessa), o objeto de trabalho merece ser considerado em dois
momentos fundamentais: naquele no qual ele antecede ou faz parte
do processo de produção e naquele no qual ele deixa para trás este
processo ao se constituir em "produto" (para entrar como tal na
esfera da circulação). [Sabemos que há "produtos" que são usados
por sua vez como "objeto de trabalho" num novo processo de
produção para dar origem a um novo "produto", diferente do
utilizado como objeto de trabalho; não obstante, a lógica da
produção capitalista e a lógica da produção em geral exige que
todo processo de produção deságüe finalmente num "produto",
"produto final" poder-se-ia dizer, cujo destino não é permanecer na
órbita da produção, mas ingressar naquela da circulação e através

98
desta na do consumo].
No primeiro momento, ao nos referirmos ao "objeto de
trabalho", de fato estamos diante do objeto sobre o qual recai a
atividade produtiva (através da mediação do "instrumento de
trabalho"), o qual, em última instância, é um "pedaço de natureza"
sobre o qual tem recaído algum ou nenhum trabalho humano
prévio.
Aqui trataremos, pois, do "objeto de trabalho" enquanto
"produto final", ou seja, fruto do processo de produção introduzido
na órbita do consumo individual através da circulação. Ora,
constatamos que no capitalismo contemporâneo o assalariado está
alienado do produto de seu trabalho. Isto porque este não lhe
pertence, mas pertence ao proprietário do meio de produção.
A separação, de fato privação [em benefício do capitalista]
do produto de seu trabalho por parte do assalariado é tão drástica
que ocorre no chamado Terceiro Mundo o fato de que assalariados
que produzem alimentos venham a padecer de fome e mesmo a
morrer por causa de má nutrição.
Se no chamado Primeiro Mundo o perigo da morte por fome
não afeta (por enquanto?) senão a minorias, e sem entrar na
questão de saber até que ponto este panorama não se faz possível
precisamente às custas da fome de vastas multidões do Terceiro
Mundo, é um fato inegável que também ali o assalariado está tão
separado do produto de seu trabalho. E isto pela singela razão de
que também ali o produto pertence ao capitalista e não ao
assalariado.
Isto transparece entre outros fatos na "pobreza relativa"
evidente da enorme maioria dos assalariados em relação aos
capitalistas quando se compara em quantidade e qualidade o nível
de sus respectivos consumos de bens .
Sintomática nesta alienação do assalariado em relação ao
produto de seu trabalho é a recente irrupção da figura do
"Consumidor" no jargão da economia a-crítica, da propaganda e da
mídia em geral. Ali se fala das "exigências", das "preferências",
dos "cuidados", da "ganância" ou da "perda", ou ainda dos

99
"direitos" do consumidor em tal ou qual circunstância econômica
relativa à esfera da circulação e do consumo. Mas é preciso
perguntar : Quem é esse "consumidor"?
Obviamente a resposta não poderia ser mais simples: na
esmagadora maioria dos casos esse famoso "consumidor" não é
senão um assalariado. Ou seja, o "consumidor" não é senão o
produtor considerado no momento no qual, através da "via longa"
do "mercado", tenta reencontrar-se com os produtos de cuja
elaboração tem participado enquanto integrante da rede de
produtores do regime social capitalista. [Regime cuja produção,
sendo a mais socializada da história da humanidade se realiza, não
obstante, em e com vistas ao tráfico mercantil, o que faz que
somente mediante a compra-venda de mercadorias podem ser
satisfeitas as diversas necessidades da sobrevivência e da "vida
confortável"].
O jargão antes citado separa a vida do mesmo ser humano
em dois compartimentos estanques: um no qual ele é produtor e
outro em que ele transforma-se em consumidor.
O que não suspeita esse jargão é que ele
expressa/revela/confessa a alienação sofrida pelo assalariado com
relação ao produto de seu trabalho no regime capitalista, regime no
qual o assalariado pode ser apresentado (e auto-perceber-se) como
dividido em duas figuras separadas e alternativas: as de
"funcionário" e "consumidor". E se isto acontece é porque de fato
essa divisão existe sobre a base da separação-privação do produto
do seu trabalho por parte do assalariado em benefício do
capitalista.
[É de notar que agora esse mesmo jargão disse “funcionário”
ou “colaborador” onde antes dizia sem má consciência e quem
sabe com menos domínio da dimensão conotativa da linguagem
“operário” ou “empregado” por um lado e “patrão” por outro].

Alienação da atividade produtiva


Por atividade produtiva entendemos aquela desenvolvida
pelo assalariado no processo de trabalho mediante o qual este

100
contribui à gestação de um "produto". Esta atividade é
desenvolvida pelo assalariado segundo as capacidades genéticas da
espécie por ele herdadas, aperfeiçoadas mediante o processo
educativo que antecede a sua inserção social como "produtor"
(processo este que às vezes pode limitar-se a ser um sinônimo da
simples convivência com produtores adultos).
O que se constata é que, quando um ser humano passa a ser
assalariado e durante o tempo da jornada em que se desempenha
como tal, perde o controle sobre sua própria atividade produtiva.
Quem passa a exercer tal controle é o capitalista ou um
representante seu por ele indicado. Isto acontece porque a
capacidade produtiva do assalariado é precisamente o que este
vende ao capitalista em troca do salário; e como essa capacidade se
atualiza (ou seja passa da "potência" para o "ato", fazendo-se
"real"), na atividade de produção o capitalista é o dono desta (nos
limites temporais da jornada de trabalho) e como tal ele se
comporta. Esta situação recebe confirmação e expressão por e
através do ato lingüístico que predomina na relação entre o
capitalista (ou representantes seus) e os assalariados no espaço-
tempo da jornada de trabalho: a "ordem".
Discutindo a pouca atenção dada por Apel às relações
comunicativas vigentes no seio da empresa capitalista e a
vinculação a se estabelecer entre estas e as relações produtivas ali
em vigor, submeti a exame num trabalho anterior o império do ato
lingüístico da "ordem" no referido universo celular (de importância
sem dúvida fundamental na arquitetura do organismo total da
sociedade capitalista)1.. Ali partia eu do fato empírico constituído
pela predominância da "ordem" no conjunto dos atos lingüísticos
executados pelo capitalista (ou algum dos seus representantes) e
tendo como destinatário os trabalhadores (em especial os de "chão
de fábrica") no espaço da empresa e no tempo da jornada de
trabalho. Sobre essa base eu fazia notar como, se se seguisse ao pé
da letra a análise austiniana das regras que presidem a "execução

1
Cf. López Velasco 1993 e 1994, 1a. parte e Cap. I , 1a. parte , respectivamente.

101
feliz" dos atos lingüísticos, poder-se-ia canonizar a assimetria
comunicativa vigente em tal situação. Isto porque, exemplificando
um "infortúnio" [infelicitie] produto da violação de um e/ou ambos
dos dois primeiros tipos de regras por ele desveladas, dizia Austin:
"...numa ilha deserta outrem pode me dizer 'vá trazer lenha', e eu
responder-lhe 'não recebo ordens suas ' ou 'você não está
autorizado me dar ordens '. Não recebo ordens do outro quando
este pretende 'afirmar sua autoridade ' (coisa que eu poderia aceitar
ou não) numa ilha deserta , em contraposição ao caso no qual o
outro é o capitão de um barco e por isso tem autoridade legítima"2.
Lembrando a definição3 de "ordem", no uso aqui relevante
deste termo, como "ato pelo qual um chefe, uma autoridade,
manifesta sua vontade", eu chamava a atenção sobre a perfeita
correspondência existente entre aquela definição e a análise
austiniana do supracitado "infortúnio", cuja conclusão decerto não
desagradaria um bom prussiano; o problema é que a última frase
de Austin poderia terminar, com ligeira diferença, como segue:
"...em contraposição ao caso no qual o outro é meu patrão e por
isso tem autoridade genuína".
Dessa maneira, receberia canonização austiniana o império
da "ordem" vigente na empresa capitalista. Este resultado seria o
inevitável ponto de chegada de toda análise que, tão rigorosa como
candidamente se propusesse a tematizar "procedimentos
convencionais aceitos" empregados "por certas pessoas em certas
circunstâncias", sem exercer a crítica das relações sociais a partir
das quais certos "procedimentos" devêm "convencionalmente"
"aceitos" e que possibilitam a execução sempre a salvo do
"infortúnio" de certos atos lingüísticos por parte de "certas
pessoas" em "certas circunstâncias".
No caso considerado, a pergunta que espera resposta é a
seguinte: qual é a condição de existência do trabalhador sobre a
qual se assenta a sua "aceitação" (enquanto atos nunca

2
Austin, 1962, Cf. III.
3
Cf. Dicionário Petit Robert, 1983.

102
"infortunados") das ordens a ele endereçadas no espaço-tempo do
trabalho vindas do capitalista (ou algum de seus representantes)
enquanto "pessoa apropriada"? Responder a essa pergunta implica
entrar no universo das relações produtivas vigentes entre o
capitalista e o trabalhador. Nestas, como assinalava Marx:
a) o assalariado, que se encontra separado das condições
objetivas de realização de sua capacidade de trabalho como fonte
criadora dos bens necessários para sua subsistência, somente pode
superar essa separação e conseguir aqueles bens vendendo sua
capacidade de trabalho ao capitalista, e, b) na superação dessa
separação mediante a forma citada "o trabalhador como
trabalhador entra sob o comando do capitalista" ["der Arbeiter als
Arbeiter unter das Kommando des Kapitalisten tritt"] e seu
"trabalho vivo...como ocupação, utilidade da capacidade de
trabalho a ele comprada" passa a pertencer (juntamente com o
material de trabalho e os instrumentos de produção) ao capitalista,
a quem passa a pertencer pois a totalidade do processo de trabalho;
mas "visto que o trabalho é ao mesmo tempo exteriorização vital
do trabalhador mesmo, é ocupação de sua própria realização e
capacidade pessoal - uma ocupação que depende de sua vontade
[e] é ao mesmo tempo exteriorização voluntária da mesma - o
capitalista vigia o trabalhador, controla a ocupação da capacidade
de trabalho como uma ação que lhe pertencesse"4.
Assim, vemos que no trabalho assalariado a ordem dada pelo
capitalista é sempre "feliz", na medida em que ela não se inscreve
no quadro de uma plena intersubjetividade. Isto porque, na relação
assalariada, o trabalhador se reduz a simples "capacidade de
trabalho" que pertence ao conjunto de "coisas", por meio das quais
o capital recorre seu ciclo de autovalorização e o capitalista,
corporificação personalizada daquele, afirma solipsisticamente na
"sua" empresa sua subjetividade5.

4
Marx, 1861-1863; os destacados são meus.
5
Para dizê-lo com palavras de Marx: "Desde seu ponto de vista (o do
capitalista) o processo de trabalho não é mais do que o consumo da mercadoria

103
Essa "confusão" se vê facilitada pelo fato de que realmente
acontece que, por ser o proprietário da "capacidade de trabalho"
cuja "sede" é o corpo do trabalhador, o capitalista tem o poder de
impor sua vontade a certas facetas da vivência desse corpo no
período de tempo em que este permanece no local de trabalho.
Com efeito, o capitalista, enquanto dono da "capacidade de
trabalho" do trabalhador, tem poderes sobre certos "movimentos"
do corpo deste último no espaço-tempo da jornada de trabalho,
poderes que são exercidos tanto através da legislação trabalhista
como por meio de "regulamentos" internos da empresa. Assim, por
exemplo, o capitalista tem o poder de limitar a liberdade de ir e vir
do trabalhador no espaço da empresa, mesmo quando essa
movimentação tenha por objeto a satisfação de necessidades
fisiológicas básicas. O "regulamento" interno, que pode ter em
todo ou em parte caráter oral, encarregar-se-á de dispor sobre o
número de vezes ao dia em que o trabalhador poderá abandonar seu
posto para ir ao banheiro, como não deixará de esclarecer o tempo
de permanência no mesmo que se julga "conveniente"; tudo isso, é
claro, acompanhado das correspondentes sanções, incluída a
demissão do emprego, em caso de transgressão das regras. Na
empresa, a "ordem" dada ao trabalhador, como poderia ser dada a
um cavalo, um boi ou uma máquina computadorizada, é o
instrumento da "vigilância" e do "controle" aos que se referia Marx.
Por outro lado o assalariado se vê obrigado à "aceitação" do
"procedimento da ordem" e de sua invocação-realização pelo
capitalista ou um representante seu, "aceitando" a "felicidade" de

força de trabalho comprada por ele, se bem que somente pode consumi-la
facilitando-lhe meios de produção. O processo de trabalho é um processo entre
coisas compradas pelo capitalista , entre coisas pertencentes a ele"; O Capital,
Livro I , Seção III, Cap. V, p.147. Essa coisificação do trabalhador reduzido a
"capacidade de trabalho" é tão forte que o capitalista se "confunde" e se coloca
na pele de um dono de escravos à moda antiga ao crer-se proprietário do corpo
do trabalhador, por ser o corpo a "sede" da "capacidade de trabalho" da qual o
capitalista é realmente dono, como acontece nos casos de assédio sexual do
capitalista (ou seus representantes) ao assalariado/assalariada de sua empresa.

104
cada uma de suas execuções no seio da empresa, porque dessa
"aceitação" depende nem mais nem menos que sua própria
subsistência como assalariado e sua própria subsistência física
como ser humano. Com efeito, o desemprego, com seu cortejo de
penúria absoluta ou relativa no referente às "necessidades"
satisfeitas mediante o salário – penúria que pode chegar aos limites
da indigência e mesmo da morte - é o preço do questionamento de
tal "felicidade" e a sempre pendente espada de Dâmocles do
desemprego é a base da instauração e perpetuação do referido
"procedimento" enquanto "convenção aceita".

Alienação das capacidades humanas


a) O trabalho marcado pela obediência às "ordens" é o
âmbito onde o trabalhador se vê obrigado a alienar suas próprias
capacidades humanas (constituintes de seu "ser genérico", diria o
Marx dos Manuscritos de 1844). Entre estas capacidades
destacam-se a "capacidade humana de trabalho" (produto de
determinações genéticas e do processo educativo) e a capacidade
de argumentar (ou seja de elaborar-propor raciocínios) a partir e
sobre a base da linguagem humana (cujos traços específicos tanto
Martinet quanto Chomsky têm destacado).
Já vimos como em condições capitalistas o trabalhador está
alienado da sua "capacidade de trabalho" na medida em que esta
passa a ser propriedade do capitalista. Esta situação inclui o fato de
que o trabalhador não pode decidir no espaço-tempo da empresa
sobre "qual", "como" e o "grau" das habilidades que compõem sua
"capacidade humana de trabalho" haverá de pôr em ação. Pelo
contrário, sua ação deverá pôr em jogo somente aquelas
habilidades indicadas pela "ordem" recebida do capitalista (ou um
de seus representantes) e na forma e grau especificado pela
mesma. As habilidades, ou sua forma ou grau não contempladas
por essa ordem, não devem ser exercidas sob pena do trabalhador
ser passível de punições, entre as quais figura a demissão,
estipuladas na legislação trabalhista como nos "regulamentos
internos" da empresa. Por sua vez, é obvio que não é permitido que

105
o trabalhador argumente, opondo raciocínios às ordens recebidas,
nem isto é aconselhável se ele quiser conservar seu emprego. Do
trabalhador , como do soldado, o que se espera é que ele aja, não
que pense.
É interessante constatar que, em ambas as dimensões, tanto a
relativa ao encurtamento das habilidades constitutivas da capacidade
de trabalho especificamente humana (com a conseqüente
componente repressiva das habilidades "sobrantes") como no
cerceamento da sua capacidade de argumentar, o trabalhador se vê
literalmente animalizado no e pelo trabalho alienado.
b) Daí que, na atividade produtiva em condições capitalistas,
o trabalho continue merecendo a etimologia que o vincula à tortura
do "tripalium" pois realmente ele é uma atividade da qual o
trabalhador "foge como da peste" (Marx 1844) quando se vê livre
de coação. Daí também que o trabalhador se sinta "em casa" ( "zu
hause", Marx 1844) fora do trabalho e não se sinta "zu hause" nele,
ou seja, que se sinta humano quando desempenha atividades como
comer e beber, que o homem compartilha com os animais como
característica comum a ambos, e se sinta animal quando
desempenha uma de suas funções específicas (que o distinguem
dos animais): a saber, conforme Marx, o trabalho.
São necessários exemplos atuais que alicercem estas
asserções ?
Basta observar com quanta alegria os trabalhadores recebem
no capitalismo a chegada de cada dia feriado e com que
impaciência aguardam as férias anuais.
c) No trabalho assalariado as capacidades humanas são pois:
1. degradadas pela coação e pela rotina, e, 2. transformam-se em
simples meio de subsistência física (Marx, 1844). Do primeiro fato
já nos ocupamos em detalhe. Do segundo cabe dizer que, nesse
trabalho , aquilo que constitui parte da diferença específica entre o
ser humano e o animal, a saber, a capacidade humana de trabalho,
longe de realizar-se pelo prazer de sua posta em ação, se vê
reduzida a um simples meio através do qual o trabalhador garante
sua subsistência. Ou seja, o que era digno de ser praticado como

106
um "fim em si" (ao igual que pode acontecer com a capacidade de
criação artística, outro traço distintivo do homem com respeito ao
animal) vê-se reduzido a meio (de subsistência) ao tempo em que
se degrada em sua forma e em seu conteúdo pelo encurtamento e a
rotineirização de seu espectro de ação.
Esta mudança pode levar, em seu brutal cerceamento, a uma
prática patológica. Não outra coisa quer fazer compreender
Chaplin em "Tempos Modernos" através da conduta obsessiva,
desaguando no patológico, enquanto "apertador de parafusos", de
seu personagem principal.

Alienação do trabalho
Mesmo que se submeta à eterna "felicidade" das ordens do
capitalista "o trabalho mesmo se converte num objeto do qual o
trabalhador somente pode apropriar-se com o maior dos esforços e
as mais extraordinárias interrupções"6. Ou seja: o desemprego
ronda sempre o trabalhador. Eis alguns dados atuais provenientes
de fontes situadas acima de qualquer suspeita que fundamentam tal
afirmativa: segundo a OIT em 2009 haveria no mundo uns 800
milhões de pessoas desempregadas ou subempregadas; só na
Espanha em 2010 o desemprego atingiu quase 20% dos aptos para
o trabalho; também em 2010 a ONU registrou pela primeira vez na
história da humanidade, o número de um bilhão de pssoas que
passam fome crônica.
É óbvio que essa alienação existe na medida em que o
trabalhador está alienado tanto: 1) do objeto de trabalho (que, se
está em estado natural puro, não é seu porque faz parte da
"natureza alheia" e quando não está nesse estado porque é "matéria
prima" ou "matéria auxiliar" que não é sua), como, 2) do
instrumento de trabalho. Ora, separada de ambos, a "capacidade de
trabalho" do trabalhador fica sem seus meios materiais de
exercício e aplicação que são precisa e respectivamente o
instrumento de trabalho (ferramenta ou máquina que o trabalhador

6
Marx, 1844.

107
interpõe entre ele e o objeto de trabalho e mediante o qual este
último é transformado em "produto"), e o objeto de trabalho (o
"material" que a capacidade de trabalho é capaz de transformar em
produto servindo-se do instrumento de trabalho).

Alienação de outro homem

... a sociedade civil é o campo de batalha dos interesses


individuais de todos contra todos...
(W. F. Hegel – Princípios da Filosofia do Direito, 289)

Que o ser humano é um "ser social" é coisa que temos


demonstrado, à luz da lógica da produção, no Cap. IV de Ética de
la Producción: Fundamentos. Isto quer dizer, muito
resumidamente, que cada ser humano não se constitui como ser
humano senão na medida em que faz parte de uma comunidade
humana; ou seja, em que é um "nó" de uma rede de relações na
qual cada nó é um ser humano. Ora, nas condições do trabalho
alienado vigente no capitalismo, cada ser humano se vê privado
dessa vinculação inter-humana. Marx defendeu a tese de que o
trabalho alienado faz com que as relações humanas se coisifiquem
dando-se através de coisas e aparecendo como relação dessas
mesmas coisas, na mesma medida em que, por força do fetichismo
(em especial da mercadoria), "personifica" coisas, executando
assim uma transmutação dialética de sujeitos em objetos e de
objetos em sujeitos. O que aqui me interessa destacar é que aquela
relação social na qual e mediante a qual cada ser humano se
constitui como ser humano assume no capitalismo o rosto da
concorrência e da indiferença, em resumo: nega-se no
individualismo. A concorrência tem por cenário tanto os vínculos
entre capitalistas e trabalhadores como aqueles existentes entre
capitalistas e também os vigentes entre trabalhadores. A
indiferença recíproca, por sua vez, instala-se como tendência
generalizada e crescente.
No capitalismo, nem o objeto de trabalho, nem o instrumento

108
de trabalho, nem a capacidade de trabalho (depois que ela foi
vendida por seu possuidor, e somente sendo vendida ela pode
reunir-se, como vimos, com o objeto e o instrumento de trabalho),
nem o produto de trabalho pertencem aos trabalhadores sobre os
quais descansa a produção, mas pertencem ao capitalista que os
emprega. Daí a hostilidade aberta ou velada, atual ou potencial
entre capitalistas e trabalhadores.
A concorrência entre capitalistas, na medida em que estes
são "personificações" dos respectivos capitais em concorrência, é
um fato empírico que, longe de negar, o capitalismo transforma em
virtude que propagandeia como atitude vital formadora do caráter
humano sem mais e por isso merecedora de permear todas as
relações entre indivíduos7.
Essa concorrência se estabelece também entre os próprios
trabalhadores, em particular porque, como já vimos, o trabalho é
um "objeto" do qual o trabalhador está em permanente ameaça de
ver-se alienado, e como do trabalho assalariado depende a
satisfação das necessidades próprias à subsistência do trabalhador
(em última instância depende sua própria vida e a da sua família),
os trabalhadores se enfrentam entre si para tentar assegurar-se o
acesso e a permanência ao e no trabalho8.
Que a indiferença recíproca generalizada se instala no
capitalismo como tendência crescente o mostram na atualidade
alguns fatos como, entre outros, os seguintes:
7
Isto não impede que na realidade do capitalismo esta concorrência entre
capitalistas se transforme a cada momento no seu contrário, a saber, o "cartel"
(passando-se então à concorrência entre "cartéis" num novo giro dialético).
Transcendendo a esfera do "econômico" considerado em sentido estreito a
realidade do "cartel" se faz visível quando certas ações dos assalariados, por sua
amplitude e/ou radicalidade, têm por resposta a reação unificada dos
capitalistas, às vezes aberta e explicitamente coordenada por uma associação
representativa destes.
8
É obvio que desta concorrência se servirá o capitalista para aumentar seu lucro,
seja por meio da diminuição direta e absoluta dos salários, seja por outros meios
como o do aumento da produtividade a partir da incitação e exacerbação da
situação objetiva de concorrência existente entre os trabalhadores.

109
a) Somos legião os que passamos diante de seres humanos
que necessitam ajuda, seja porque estão sendo objeto de agressão
física direta, seja por sua situação de miserabilidade, por exemplo
quando estão jogados na calçada, e no entanto continuamos nossa
marcha como se não os víssemos.
b) Se essa indiferença já ganhava terreno na família européia
primeiromundista (família nuclear muito menor já que a família
dos inícios do capitalismo) fazendo necessária na Alemanha as leis
que obrigavam (!) os pais a ocupar-se da subsistência de seus
filhos até certa idade (cerca de 30 anos, supondo-se que esta é a
idade aproximada na qual naquele país um estudante médio pode
terminar um curso universitário e com isso conquistar sua
autonomia financeira), por certo sem que isso obste para que os
filhos "retribuam" colocando em asilos os seus pais quando
chegam à ancianidade, o Brasil terceiromundista mostra que não
fica para trás e não quer ficar para trás nem nos fatos nem na
legislação ao proclamar uma lei que obriga (!) os filhos a ocupar-
se da subsistência de seus progenitores envelhecidos quando estes
não conseguem satisfazer suas necessidades por conta própria.

A alienação no assalariado “não proletário”


É um fato que, com o passar do tempo, tem se verificado no
capitalismo uma diminuição do número relativo de trabalhadores
braçais operando na esfera da produção "material". O número
desses "proletários" decresceu relativamente (e em alguns casos
também em termos absolutos) na medida em que aumentava a
participação na "produção" (considerada em sentido amplo, ou
seja, incluindo todas as atividades voltadas à criação de um
produto, e não somente as direta e imediatamente produtoras do
mesmo, abrangendo também as esferas da distribuição e do
intercâmbio de produtos) de outros assalariados. Dentre estes, será
objeto de nossa atenção a condição produtiva dos "operários
especializados", dos cientistas e dos funcionários administrativos.

110
Operários especializados e trabalho alienado

Chamo de "operários especializados" aqueles assalariados


que, participando da atividade direta e imediatamente criadora de
um certo produto, o fazem através da vigilância de dispositivos
maquinísticos (as vezes dotados de controle digital) que são os
responsáveis imediatos, em sistema automático (como é o caso dos
"robots" empregados na cadeia de montagem ) ou semi-
automático, pela atividade produtora propriamente dita. Se
excetuarmos a relativa "assepsia" física que as vezes carateriza o
seu ambiente de trabalho e a distância salarial que os separa dos
trabalhadores braçais, não vemos diferença alguma entre o
trabalho alienado praticado por uns e outros. Com efeito, assim
como acontece com o trabalhador braçal, este "operário
especializado" :
a) está alienado do objeto e do instrumento de trabalho
(pertencentes ao capitalista);
b) consegue apropriar-se do próprio trabalho somente através
de muito esforço (em situação de concorrência com seus pares) e
sempre sob a ameaça dessa "interrupção", ora temporal ora
definitiva, que é o desemprego;
c) está alienado da sua própria capacidade de trabalho
(depois que esta foi vendida ao capitalista);
d) não decide sobre o "que" produzir nem sobre o "como "
fazê-lo, porque ambas as decisões pertencem ao capitalista; o
taylorismo se encarregará de prescrever a quantidade e qualidade
dos movimentos que lhe são exigidos e o ritmo de produção lhe
será ditado pelo capitalista através do ritmo imposto ao complexo
maquinístico que o operador integra na qualidade de "recurso
humano";
e) está alienado da natureza a partir do fato de que esta,
apropriada pelo capitalista, deixa de ser para este "operário
especializado" tanto um manancial de meios imediatos de
subsistência quanto uma fonte fornecedora de objetos e/ou
instrumentos de trabalho;

111
f) está alienado de suas faculdades humanas na medida em
que dele se exige, não que pense e argumente, mas que igual ao
soldado obedeça às ordens recebidas e, por isso mesmo, se vê
privado da possibilidade de desenvolver uma atividade produtiva
criativa;
g) está alienado do outro homem na medida em que, para
conquistar e manter seu posto de trabalho, está em relação
conflitiva com o capitalista (comprador de sua capacidade de
trabalho, com quem se enfrenta enquanto vendedor em eterno
regateio entretecido de pressões e ameaças em torno ao valor da
força de trabalho, ou seja o salário), e está em concorrência (às
vezes real e, sempre, virtual) com o conjunto dos outros "operários
especializados" (pelo menos os que atuam na sua mesma
especialidade);
h) está alienado do produto de sua atividade produtiva com o
qual poderá se re-encontrar (se pode faze-lo, dado o seu poder
aquisitivo) somente através da "via longa" do mercado, na
qualidade de "consumidor".

O cientista e o trabalho alienado

Cada dia o capitalismo reafirma e intensifica o uso da ciência


como uma força produtiva de vital importância. Se na área da
atividade imediata e diretamente produtiva também as chamadas
"ciências humanas" (em especial a Psicologia, utilizada como
ferramenta para a seleção e o treinamento dos assalariados) são
usadas como forças de produção, é evidente que se destacam neste
papel as chamadas "ciências naturais" (em especial a Física, a
Química e a Biologia) com o concurso das "ciências formais"(em
especial a Lógica Formal, a Matemática e suas correspondentes
extensões, como o é a Informática).
Legiões de cientistas, trabalhando em laboratórios
vinculados mais ou menos diretamente a empresas ou diretamente
pertencentes a elas, passam a ser agentes indiretos da atividade
produtiva. A pergunta é: trata-se ou não neste caso de trabalho

112
alienado?9
Contra a idílica imagem popperiana de uma comunidade
científica guiada pelo desejo de aproximar-se da verdade mediante
o recurso da falseação sucessiva de hipóteses (Karl R.Popper,
1959) já levantava Thomas Kuhn (1962) a evidência da existência
maciça do que ele chamou "Ciência Normal". Nesta, longe de se
preocupar com a audaz elaboração de hipóteses e a realização de
castos testes destinados a falseá-las, o cientista encontra-se,
enquanto indivíduo, em situação de "elemento submetido a teste".
Isto porque dele se espera que , partindo do paradigma em vigor
(que é excluído assim da dinâmica da falseação), saiba dar
soluções a questões pontuais (" quebra-cabeças"); soluções das
quais dependem a manutenção de seu emprego e a conquista dos
subsídios financeiros que, possibilitando a continuação de seu
trabalho, são também elementos constitutivos de seu prestígio
profissional e pessoal, chave das portas que conduzem até novos
trabalhos e subsídios.Esta observação de Kuhn ganha
profundidade crítica quando se a coloca no contexto que é o da
utilização da ciência como força produtiva no capitalismo.
O fato que me parece decisivo é que nesse contexto o
cientista passa a ser assalariado direto ou indireto do capitalista. É
seu assalariado direto quando trabalha no espaço da empresa, e o é
indiretamente quando (por exemplo trabalhando numa
universidade, seja ela pública ou privada) depende do
financiamento oriundo do capitalista para garantir seu salário
(além de outras condições de sua atividade, como ser instrumentos
e materiais de pesquisa).
Dado este "cordão umbilical-assalariado" que une o cientista
ao capitalista, não é de se estranhar que este lhe exija, no quadro
da "ciência normal", "soluções" capazes de armá-lo com inovações
tecnológicas que lhe permitam enfrentar com sucesso (e com as
periódicas vantagens do lucro extraordinário que propicia o

9
A esta pergunta dava eu a mesma resposta afirmativa que dou agora (López
Velasco 1994, Cap. I. 4.)

113
aproveitamento em situação de monopólio temporário de uma
inovação tecnológica recém incorporada ao processo produtivo) a
feroz guerra de concorrência na qual encontra-se sempre engajado.
Ora, dada essa situação de vassalagem salarial, o cientista se
vê condenado, na "ciência normal" - como acontece com o
trabalhador braçal - a uma atividade (a própria "ciência normal")
que não é livre exteriorização de suas energias vitais criadoras mas
simples meio de subsistência. Mas poder-se-ia perguntar: valerá o
modelo popperiano da atividade científica para o que Kuhn
denominou, em contraposição à "ciência normal", "ciência
revolucionária"? A "ciência revolucionária" é para ele a atividade
dos cientistas que, desafiados pelas anomalias persistentes
apresentadas pelo paradigma estabelecido, se dedicam a questioná-
lo e a propor, para substituí-lo, um novo paradigma explicativo dos
fenômenos em questão. Há de se ver não obstante que tampouco
esta "ciência revolucionária" escapa à dependência financeira
(direta ou indireta, ou seja via poder político) com respeito ao
capitalista. Mas o capitalista, enquanto fornecedor de recursos, não
deixa de orientar seletivamente a "ciência revolucionária" nas
direções suscetíveis de oferecer resultados prometedores na esfera
de sua aplicação tecnológico-produtiva e, dentro das áreas
escolhidas, de estabelecer prazos de transformação da pesquisa
voltada à "ciência revolucionária" em pesquisa aplicada (ou seja
do nível da "ciência normal"), prazos estes que não devem ser
transgredidos sob pena de ver anulada a contribuição financeira
que faz possível a própria investigação.
No capitalismo, a busca consensual e coletiva da verdade
mediante a falseação sucessiva de hipóteses submetidas à
discussão pública no âmbito da comunidade científica está
submetida a uma dinâmica contraditória; de um lado ela é
incentivada à luz da concorrência entre capitais (e nesta medida a
produção capitalista é a base histórico- material sobre a qual se faz
possível e necessária a emergência dessa busca, que Peirce
chamara de "socialismo lógico"), mas por outro lado ela encontra
seus limites nessa mesma lógica da concorrência. Esses limites são

114
os de seu "espartilhamento" no interior das áreas problemáticas
relevantes dentro dessa lógica e dos "prazos de retorno rentáveis" à
luz dela.
Ora, este último dado significa que o cientista, seja ele
dedicado à "ciência normal" ou à "ciência revolucionária" - desde
que esta funciona como força produtiva subsumida direta ou
indiretamente pelo capital - de forma semelhante ao que acontece
ao trabalhador braçal empregado por este:
a) está alienado do produto resultante de seu trabalho
(porque este pertence ao capitalista);
b) está alienado de sua atividade produtiva porque, não
sendo possuidor do objeto e do instrumento necessários à sua
atividade, não é ele quem decide do "que" e do "como" de seu uso,
em particular na medida em que isto último enquadra-se em áreas
e prazos não determinados pelo cientista e sim pelo capitalista;
c) está alienado da natureza, a partir da circunstância de que
esta, apropriada pelo capital, deixa de ser para o cientista fonte
tanto de meios de subsistência imediata, como de meios de
trabalho, ou seja, em concreto, de objetos e instrumentos de
trabalho (entendendo aqui "trabalho" segundo o uso amplo que
permite incluir a atividade própria do cientista enquanto atividade
indiretamente propiciadora da transformação com fins de
apropriação da natureza pelo homem);
d) está alienado de suas faculdades humanas porque, por um
lado, enquanto executor da atividade que é a sua (ou seja a de
"cientista") no contexto de uma divisão social do trabalho onde os
indivíduos se vêm obrigados a utilizar suas capacidades (reduzidas
a simples meio de subsistência) no exercício de uma única função,
se vê impedido de desenvolver outras facetas de suas aptidões
(como por exemplo as requeridas pela atividade diretamente
produtiva ou pela criação artística); por outro lado, porque os
limites de sua capacidade de argumentar (exercendo assim outra
faculdade exclusiva dos seres humanos) estão definidos para o
cientista, como o estavam para o trabalhador braçal, por sua
condição de assalariado, condição que, como vimos, aconselha e

115
na prática obriga ao cumprimento de ordens (para o cientista
podendo ser camufladas sob o disfarce de "indicações" , em
especial no referente às "áreas preferenciais" e os "prazos
razoáveis" relativos à sua atividade), se quiser evitar o fantasma do
desemprego;
e) está alienado do outro homem porque, como o trabalhador
braçal, encontra-se em situação de permanente relação conflitiva
com seu patrão e em situação de concorrência permanente com
seus pares, neste caso os outros cientistas capazes de disputar
"seu" emprego e "seus" financiamentos10.

O funcionário administrativo e o trabalho alienado

Considero um fato evidente o de que o funcionário


administrativo de baixo escalão não escapa - pelo fato de trabalhar
num escritório - da alienação característica do trabalhador comum11.
Com efeito, esse assalariado:
a) está alienado do produto para cuja produção contribui;
b) está alienado do objeto e do instrumento de seu "trabalho"

10
Esta situação de concorrência, vale a pena dize-lo, leva à violação do auto-
obrigativo "Devo dizer o que acredito ser verdadeiro", base do a priori
consensual da argumentação que fundamenta a busca consensual da verdade
pela qual se pauta a comunidade científica e que define a própria ciência
contemporânea; embora a própria comunidade científica guarde muita discrição
sobre este fato, por evidentes interesses corporativistas, sabemos que até o
célebre MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusets) foi cenário dessa fraude
pelo menos una vez, a saber, quando o Prêmio Nobel de Medicina de 1975,
David Baltimore, assinou em caráter de co-autor um trabalho que dava conta de
uma pesquisa da área de imunologia cujo andamento não tinha acompanhado,
desenvolvida por Theresa Imanishi-Kari, e cujos resultados esta havia
falsificado para fins da correspondente publicação na revista científica CELL
depois de demitir a assistente que havia inocentemente registrado o fracasso da
experiência em questão e que foi a encarregada de dar a luz posteriormente ao
ocorrido. Ver Jorge Dómine, 1992].
11
Aqui , outra vez , utilizo o termo "trabalho" segundo o uso amplo empregado
para me referir à atividade do cientista.

116
(na medida em que não é proprietário do material e das máquinas
existentes no escritório em que atua, em resumo, não é dono desse
mesmo escritório);
c) está alienado da natureza (a partir do fato de que esta não
é para ele nem fornecedora de meios imediatos de subsistência
nem de meios de trabalho), de sua atividade produtiva, de suas
faculdades humanas (em especial daquelas não mobilizadas por
sua atividade de "servidor administrativo");
d) está alienado, enfim, do outro homem pela conflitualidade
de seu relacionamento com o patrão e a situação de concorrência
vigente com respeito de seus pares.
Se o fato é transparente no que se refere à "ordem" que a
polícia e o exército se encarregam de manter para que a produção
capitalista não sofra desagradáveis perturbações, é necessário que
se diga também que, quando se analisa até a raiz a função de
serviços tais como os da saúde, a educação e a previdência social,
se percebe que, mesmo quando desenvolvida pelo Estado, esta está
ao serviço da produção capitalista.
Saúde e educação pública têm respectivamente por objeto a
manutenção em estado aceitável, segundo o padrão do socialmente
necessário-possível, da capacidade de trabalho dos assalariados, e
a criação-melhoria dessa capacidade nos níveis do hábito e as
aptidões corporais-intelectuais.

A alienação dos assalariados no "capitalismo de acumulação


flexível" (o toyotismo)

Atualmente, à luz de certas transformações ocorridas, fala-se


da existência de uma modalidade nova do capitalismo, chamada
"capitalismo de acumulação flexível", ou "toyotismo", para
diferencia-la da forma anterior denominada "fordista-taylorista"
(em alusão aos métodos produtivos preconizados por Henry Ford e
F. W. Taylor). As características novas, que, como opostas às
existentes antes, singularizam o "capitalismo de acumulação
flexível", são: a) gestão de estoques menores através do método

117
"just in time"; b) descentralização das grandes empresas em
unidades de produção menores organizadas com base numa
atividade supostamente participativa dos assalariados; c)
terceirização da produção mediante a subcontratação; d) Contrato
de Trabalho flexível em diversas modalidades que incluem o
contrato clássico, o temporal e o trabalho a domicílio; e)
obsolescência programada dos produtos.
A pergunta, em função de nossos atuais propósitos, é: em
que medida a alienação do assalariado por nós descrita se aplica à
situação do "capitalismo de acumulação flexível?". Para respondê-
la, dedicar-me-ei a analisar a situação trabalhista vinculada a estas
características, com exceção da primeira e da última, pois a gestão
de estoques menores não afeta a relação capitalista-assalariado
senão quantitativamente, quer dizer, no relativo à diminuição dos
assalariados contratados para lidar com essa gestão, e a
obsolescência programada dos produtos não se vincula senão
indiretamente àquela relação, através da necessidade para o
assalariado de renovar em tempo mais breve bens cujo valor
determina o valor de sua força de trabalho.

Descentralização empresarial e administração "participativa".

Ao que foi dito anteriormente poder-se-ia objetar que a


produção do "capitalismo de acumulação flexível" (toyotismo) não
é esse "reino da ordem" por nós descrito porque têm-se aberto
formas de participação do assalariado no que-fazer da Empresa. A
isso respondo que essa tão comentada "participação", além de ter
por cenário um número de empresas grandes e médias
ridiculamente pequeno ao ser comparado com o total de empresas
capitalistas existentes no mundo12 se reduz a uma pseudo-

12
São bilhões as micro-empresas e as pequenas empresas, as quais, apesar de
seu tamanho, empregam massas de assalariados nada desprezíveis; por exemplo
60 % dos mesmos no Brasil de 1994 segundo propaganda televisiva da
Associação das micro e pequenas empresas)

118
participação na qual a única coisa que está em jogo é a
contribuição que o assalariado pode dar com vistas ao aumento da
produtividade, sem que lhe seja permitido, já não o decidir, mas
sequer o opinar sobre "que" e "onde" produz e vende a empresa e
sobre "como" distribui e administra esta seus recursos financeiros;
nesta pseudo-participação, a contribuição a ele solicitada se reduz
a pedir-lhe que ajude a elevar o "quanto" (absoluto e relativo, isto
é, em função de um recurso e tempo dado de produção) e o "como"
(a qualidade) de um produto cuja fabricação foi determinada por
outros. Exemplo disto é o programa japonês denominado "5 S's"
(Programa das cinco "esses") propagandeado “a toque de caixa”
por muitos "modernizadores" no Terceiro Mundo (e inclusive no
Primeiro) como sendo a última palavra em matéria de
"administração participativa".
Com efeito, o mencionado programa diz fundamentar-se na
"participação intensa de todos os empregados" e promete, entre
outros resultados, o "exercício de uma administração
participativa". Não obstante, quando vemos a própria definição
que o programa dá de cada uma das famosas cinco "esses" e dos
outros resultados prometidos , damo-nos conta da indigência da
suposta "participação" dos empregados no contexto da empresa.
Com efeito:
"Seiri" eqüivale a "sentido da utilização" e consiste na
classificação das coisas e dados de acordo com sua utilidade, com
o conseqüente descarte dos itens desnecessários.
"Seiton" eqüivale a "sentido do ordenamento" e consiste na
disposição sistemática dos itens úteis de maneira que estes sejam
localizados rapidamente.
"Seisou" eqüivale a "sentido da limpeza" e consiste na
execução rigorosa da limpeza (em especial das máquinas) e na
promoção e criação do hábito de não sujar.
"Seiketsu" corresponde aproximadamente a "sentido do
asseio" e, incluindo tanto a empregados quanto a máquinas e
materiais de produção, aparece como resultado da aplicação
conjugada dos três "esses" anteriores .

119
"Shitsuke", por último, eqüivale ao "sentido da auto-
disciplina" (do empregado) e é apresentado como segue: "Este é o
sentido mais importante, pois quem o possui não necessita ser
controlado".
Por sua vez, os resultados prometidos pelo programa são,
além do comentado "exercício da administração participativa", a "
Melhoria da moral dos empregados, redução do índice de
acidentes, melhoria da qualidade e da produtividade e redução do
tempo de imobilização das máquinas".
Não é preciso ter muita astúcia para perceber que os cinco
"esses" estão em função destes últimos resultados e não da comentada
"participação" do trabalhador na "administração" da empresa. A única
coisa que o trabalhador é convidado a "administrar" é o melhor uso
racional (da racionalidade instrumental conforme a fins) dos recursos
produtivos, incluindo entre eles sua própria atividade produtiva, de
forma a poupar ao capitalista as moléstias e, principalmente, as
despesas do controle sobre a atividade do trabalhador, como
magnificamente o confessa o último "esse"; e, tudo isso, em função
da melhoria na quantidade e qualidade da produção (para garantir,
isto é o que não diz o programa, um maior lucro).
Como se vê no último "S", a novidade "modernizadora" em
matéria de "ordens" e da "vigilância" e o "controle" a que fazia
referência Marx no universo da empresa se resume ao fato de que
agora cada trabalhador é o capataz (ou " encarregado de turno ",
ou como se chame) de si mesmo, auto-infligindo-se as "ordens"
que garantem a melhor produtividade em quantidade e qualidade.
Mas o interessante é que esse perfeito exercício de ascetismo
alienado não se conforma com a auto-punição, sendo alcançado
através da prática da "democracia" a seus companheiros de
infortúnio. Com efeito, comentando o último "esse" se diz no
programa:" A pessoa com auto-disciplina discute até o último
instante, mas executa o que foi decidido pela equipe mesmo
quando sua opinião tenha sido contrária a essa decisão". É obvio
que a " equipe " e sua animada discussão não têm nem a mais
remota possibilidade de colocar-se como assunto, por exemplo,

120
nem o "que" está chamada a produzir, nem, muito menos, a
diferença quantitativa existente entre o dinheiro que mensalmente
entra respectivamente na casa do trabalhador e na do capitalista.
Que estas questões irrelevantes não façam parte da animada
discussão democrática da "equipe" é coisa que garante a
interpretação que da "auto-disciplina" faz o referido programa
quando esclarece que : "Seguir os parâmetros técnicos, éticos e
morais que regem a organização na qual tem-se decidido
trabalhar... faz parte da essência de quem tem esse sentido [N.B.
a auto-disciplina] desenvolvido". Que esses "parâmetros" são
impostos à "equipe" e a cada trabalhador pelo capitalista (e a seus
representantes dentro e fora da empresa) como dogmas que devem
ser "seguidos" sem discussão possível é coisa que o programa não
esclarece. Essa imposição, que faz parte da suposta "decisão"
referida na passagem relativa à "... organização na qual tem-se
decidido trabalhar", tem por base a simples e prosaica necessidade
por parte do trabalhador de ser admitido em alguma empresa para
não morrer de fome (ou passar a ser dependente da caridade da
seguridade social).
Por outro lado, diz muito mais do que gostaria de dizer o
referido programa quando afirma que essa "auto-disciplina" faz
parte da essência do trabalhador que a possui; com efeito, essa
auto-disciplina é parte do trabalho (e do trabalhador) alienado.
Dessa "auto-disciplina" faz parte a auto-submissão do trabalhador
ao papel de uma engrenagem a mais do processo de trabalho que o
engloba e escapa a sua vontade, em especial mediante a assunção
do ritmo de trabalho que lhe é imposto através do ritmo das
máquinas (regulado pelo capitalista ou um representante seu) e da
execução dos movimentos que lhe são prescritos (taylorismo
mediante, pelo capitalista ou um de seus representantes, ou agora,
pela "equipe" e/ou pelo próprio trabalhador enquanto capataz de si
mesmo) a efeitos de acompanhar e manter esse ritmo.
Subcontratação
Como a subcontratação ocorre através de pedidos feitos por
grandes empresas a empresas pequenas para que estas assumam

121
parte do processo produtivo destinado à elaboração de um certo
produto, haveremos de ver nela um fenômeno que não altera nas
segundas o "universo da ordem" descrito por nós porque, segundo
a hipótese que antes esbocei, a suposta "administração
participativa" abrange (quase) exclusivamente o conjunto das
grandes empresas em processo de descentralização.

Novas formas do Contrato de Trabalho

O "capitalismo de acumulação flexível" deve seu nome em


especial à flexibilidade imposta aos regimes de contrato
trabalhista. Segundo publicação de 1986 do Institute of Personnel
Management13 a nova situação desses regimes se apresenta como
segue.
A "nova empresa capitalista" articular-se-ia em torno a um
Grupo Central de assalariados que ocupam posição essencial para
o futuro a longo prazo da empresa, beneficiários de contrato
trabalhista clássico (ou seja por tempo integral , indeterminado e
com média de 40 horas semanais) mas com flexibilidade funcional
e flexibilidade da carga horária semanal real em função das
necessidades da produção. Em volta deste grupo girariam dois
Grupos Periféricos em situações trabalhistas muito diferentes. Um
deles, chamado Primeiro Grupo Periférico, está formado por
"empregados em tempo integral mas dotados de habilidades
facilmente disponíveis no mercado de trabalho, como é o caso do
pessoal do setor financeiro, secretárias e o pessoal das áreas de
trabalho rotineiro e de trabalho braçal menos especializado"14. O
Segundo Grupo Periférico "oferece uma flexibilidade numérica

13
Intitulada "Flexible Patterns of Work" e cujo resumo faz David Harvey em
The Condition of Postmodernity. An Inquiry into the Origins of Cultural
Change, de cuja versão portuguesa titulada A Condição Pós-Moderna vou me
servir, p.143 e ss.)
14
Este grupo, com menos oportunidade de "fazer carreira na empresa" que o
Grupo Central, tende a caracterizar-se por uma alta taxa de rotatividade, "o que
torna relativamente fácil, por desgaste natural, as reduções da força de trabalho".

122
ainda maior e inclui empregados em tempo parcial, empregados
casuais, pessoal com contrato por tempo determinado",
subcontratação e 'estagiários'; a eles haveria de se acrescentar
ainda, como parte do vínculo de "subcontratação" ou
independentemente deste o trabalhador a domicílio. Este grupo se
carateriza por ter ainda menos garantia de emprego que o primeiro
grupo periférico.
Diante deste panorama se impõe-se observar que esta
"flexibilização" constitui um passo semelhante ao que aconteceu
quando o capitalismo, abolindo a escravidão na sua forma clássica,
possibilitou que o capitalista não tivesse que arcar (em matéria de
alimentação, saúde e habitação) com o "peso morto" do escravo
improdutivo e se limitasse a desembolsar recursos vinculados à
efetiva utilização da força de trabalho do assalariado no espaço-
tempo da empresa (que é onde se valoriza o valor personificado
pelo capitalista). Se naquela ocasião a mudança se fez através da
instauração do contrato de trabalho por jornada ou período
determinado, a atual "flexibilização" vem limitar e/ou fazer
maleável (para evitar ao capitalista os riscos do desembolso em
favor de um assalariado temporalmente "improdutivo" na ótica da
valorização do valor) o período de tempo considerado.
Assim , é preciso observar que esta situação caracteriza uma
instância a mais da alienação do assalariado com respeito do
trabalho (atividade da qual pode apropriar-se somente através de
ações de sucesso incerto e nunca a salvo das "interrupções" do
desemprego parcial ou total). Desta eventualidade está
relativamente protegido, depois e durante o contrato de 40 horas
semanais, o assalariado integrante do Grupo Central; mas nunca
está a salvo da demissão e, portanto, do desemprego.
Este grupo, da mesma forma que o que acontece com os
outros dois, nada tem de diferente ao que até aqui havíamos
descrito em relação ao estado de alienação sofrido pelo assalariado
com respeito à natureza e ao outro homem. Na sua situação de
suposto privilégio, nem sequer escapa o integrante desse grupo à
alienação com respeito à atividade produtiva, na medida em que a

123
proclamada flexibilização de horários e atividades em função das
necessidades da produção não é outra coisa que a concretização
daquela alienação, toda vez que as respectivas decisões não são
fruto de acordos consensuais com participação em condições de
igualdade do interessado, mas mandamentos (precedidos ou não de
"consultas" aos afetados) do capitalista ou seus representantes
imediatos.
Como resulta evidente, os integrantes dos outros dois grupos
periféricos padecem a mesma situação de alienação no trabalho
que os assalariados que fazem parte do Grupo Central, ao tempo
em que estão submetidos de maneira mais clara, dada a condição
precária de seu contrato trabalhista, em matéria do tempo de sua
duração, à alienação no que respeita ao trabalho15.

O capitalista e o Trabalho Alienado

Nas condições do trabalho alienado vigente no capitalismo o


capitalista é o "outro homem estranho" ao qual são transferidos, na
alienação sofrida pelo assalariado: a) o produto do processo de
trabalho; b) o objeto e instrumento de trabalho; c) a natureza, ex-
fornecedora de meios de subsistência imediata e de meios de trabalho
(objeto e instrumento de trabalho); d) a capacidade de trabalho
(depois que esta foi comprada ao assalariado); e) a atividade
produtiva do assalariado no espaço-tempo da jornada de trabalho.
Cabe perguntar então se o capitalista não faz figura de
"homem realizado", embora isso aconteça às custas da não-
realização do assalariado. Ora, uma simples observação da vida do
capitalista é suficiente para que se duvide de tal eventualidade.

15
Para concluir, vale a pena frisar que, para a análise aqui realizada, o trabalho a
domicílio não se singulariza senão pelo fato de que as ordens e controles do
capitalista e/ou seus representantes não acompanham o assalariado no minuto-a-
minuto de sua atividade; não obstante elas não deixam de estar presentes como
pontos de partida e instâncias de controle de qualidade da mesma vinculadas ao
pagamento ou não pagamento do salário estipulado para o "produto padrão"
definida por aquele e/ou aqueles.

124
Com efeito:
a) o capitalista carece de desenvolver suas faculdades
humanas senão aquelas exigidas por sua "função" (para não dizer
"trabalho") de capitalista; ou seja, o capitalista está alienado,
mercê ao trabalho alienado vigente no capitalismo, das faculdades
humanas potenciais que sua "função" não exige pôr em ação; entre
elas poderíamos citar a interação física com a natureza para efeitos
de sua transformação orientada a sua apropriação, e a criação
artística;
b) aquelas faculdades que o capitalista coloca em ação em
sua "função", se encontram rebaixadas ao caráter de simples meios
de subsistência enquanto capitalista e deixam de ser livre
exteriorização vital do sujeito que atua como personificação do
capital; assim, por exemplo, o capitalista argumentará e ainda
poderá exercer a imaginação criadora, mas somente o fará nos
limites estabelecidos pela melhor estratégia de valorização do
capital que ele personifica;
c) ambas circunstâncias significam que o capitalista está
alienado da natureza na medida em que, apesar de ser seu
proprietário e precisamente por sê-lo, o capitalista perde toda
relação transformadora direta com ela através do trabalho (sem
falarmos da relação lúdico-artística, que também pertence a uma
faculdade especificamente humana);
d) as duas primeiras circunstâncias manifestam uma
alienação do sujeito que é "suporte" do capitalista com respeito a si
mesmo e um desenvolvimento unilateral das aptidões que este
sujeito, enquanto ser humano, possui; este último fato é a causa
explicativa da paixão do capitalista por "hobbys" diversos que,
ocupando-o nas horas vagas, não deixam de revelar as vocações e
atividades das quais vê castrado por e na sua "função" de
capitalista;
e) o capitalista se encontra alienado do outro homem, o que
se concretiza tanto na relação conflitiva que mantém com o
assalariado como na relação competitiva que está condenado a
manter com os outros capitalistas (embora forme também

125
alternadamente com pelo menos alguns deles, como já dissemos,
"cartéis"), e na indiferença que pratica e sofre em geral na relação
com os seres humanos, sejam eles assalariados ou capitalistas.
Do que foi dito, resulta que o capitalista está muito longe de
ser o "homem realizado" que se supõe ser. Resulta também
evidente que a superação destas características constitutivas da
alienação sofrida pelo capitalista em situação de trabalho alienado
não pode desvincular-se da superação do próprio trabalho alienado
na sua modalidade capitalista.

Os "representantes" do capitalista e o trabalho alienado

Chamo de "representantes" do capitalista todos àqueles que


operam como mediação direta entre o capitalista e o assalariado na
órbita da produção como àqueles que defendem o capitalismo ao
apresentar as relações sociais produtivas e comunicativas vigentes
no capitalismo como sendo "naturais", as únicas possíveis (ou,
ainda, as melhores imagináveis com vistas à "realização" dos seres
humanos), ajudando consciente ou inconscientemente a sua
reprodução como regime social, sem serem eles mesmos
capitalistas. Refiro-me no primeiro caso aos diversos "executivos"
que operam na área da produção, (entendendo esta última em seu
sentido amplo, ou seja incluindo também a distribuição e o
intercâmbio e o consumo produtivo) e no segundo caso, a diversos
profissionais, entre os quais se incluem muitas vezes os dos meios
de comunicação e da propaganda, da rede escolar e até
eclesiásticos.
Os primeiros, assalariados diretos do capitalista, sofrem a
mesma alienação padecida pelos funcionários administrativos, com
a ressalva de que eles são fonte e destinatários de argumentos na
sua relação com o capitalista; mas em circunstâncias em que essa
dinâmica argumentativa tem por limite a palavra final dada sempre
pelo capitalista em forma de ordem, seja esta aberta ou "educada".
Também costumam ser assalariados diretos do capitalista
(que pode ser o dono da agência de publicidade) os agentes de

126
propaganda. Sua situação não difere da dos "executivos".
Tampouco é diferente da anterior a situação dos comunicadores e a
dos professores que são assalariados diretos de um capitalista
(estando contemplados neste último caso os educadores
empregados por escolas privadas).
Por outro lado, o que mais me interessa destacar é que tanto
uns como outros em e pela "função" desempenhada estão tão
alienados como o trabalhador braçal: a) dos objetos e instrumentos
de trabalho e da natureza como fornecedora destes e de meios de
subsistência imediata, b) de sua capacidade produtiva vendida, de
sua atividade produtiva (no espaço-tempo da jornada de trabalho)
assim como de suas faculdades humanas reduzidas a simples meio
de subsistência no exercício de sua "função" e daquelas não
exigidas por esta, c) de si mesmos enquanto sujeitos
potencialmente multilaterais negados, e, d) do outro homem, de
quem os separa a concorrência quando trata-se de um semelhante,
a conflitividade quando trata-se do capitalista e a indiferença em
ambos os casos.

O autor destas linhas e o trabalho alienado

O que acabamos de dizer se aplica aos professores de


qualquer nível do ensino, e dentro destes aos docentes de Filosofia.
Longe de sobrevoar a miséria humana com sua ciência, o professor
é um assalariado (direto ou indireto do capitalista) que somente
nos espaços de autonomia, instáveis e de fronteiras não sempre
claras, vigentes no sistema de ensino (em particular como fruto da
luta sindical dos docentes) pode levantar a voz para exercer a
crítica do capitalismo. Não obstante, nunca está livre de um
encurtamento ou simples eliminação desses espaços.
O professor, também o de Filosofia, é um ser humano
carente de objeto e instrumentos de trabalho, alienado da natureza
enquanto fornecedora de tais entes e de meios de subsistência
imediata, que se vê obrigado a fazer de sua capacidade de trabalho
um meio de subsistência individual empregado numa atividade na

127
qual, por seu controle exógeno, sua rotina e horários prolongados
(aos que se acrescenta as vezes o soberbo desinteresse dos alunos,
ou ainda a estressante "batalha campal" travada com estes),"não se
sente feliz, e sim desgraçado" e da qual "tão cedo não existir uma
coação física ou de qualquer outro tipo...foge...como da peste".
(Marx 1844, I ). O professor, também o de Filosofia, é um homem
unilateralmente desenvolvido nas suas capacidades humanas, de
vida livresca, desconhecedor muitas vezes tanto dos "segredos" da
instalação elétrica que lhe permite ler durante a noite como dos
atos que trazem um tomate desde a semente até a sua mesa; isto
porque, assim como o trabalho braçal reduz o trabalhador que o
pratica a uma mão (de fato dele se fala chamando-o "mão de obra"
!), o trabalho intelectual praticado pelo professor o reduz à
condição de cabeça desvinculada do corpo e das práticas
necessárias à obtenção dos meios que ao permitirem a subsistência
deste último são condição do exercício da atividade de primeira.
Aqui consuma-se a alienação do professor com respeito à
natureza, pelo fato de não participar diretamente na ação
transformadora que faz possível sua apropriação pela espécie
humana. Não raramente esta distância com respeito à natureza,
quando não o sonho, frustrado pela divisão social do trabalho
imperante no capitalismo, de ser agricultor, se revelam, ocultando-
se, na fruição com a qual o professor cultiva e desfruta um
minúsculo jardim de fundo de quintal ou de sacada de
apartamento. Outras, aquela distância, e esta vez o sonho frustrado
do engenheiro, do mecânico ou do marceneiro fazem do professor
o infatigável bricoleur das horas vagas diante do qual desfilam
para conserto todas as coisas quebradas da casa.
Mas uma e outra atividade não passam de intervalos, sempre
demasiadamente curtos, na atividade na qual se vê ele obrigado a
gastar o melhor de suas energias; aquela que sendo própria da sua
"função" de professor , não é cenário do esbanjamento de "uma
livre energia física e espiritual", não é "trabalho...voluntário, mas

128
forçado, trabalho forçado"16. O professor é também, como
assalariado - e qualquer que for o seu nível de atividade - um ser
humano ameaçado pelo desemprego, compelido a zelar em
situação conflitiva pelo valor de seu salário e submetido à
concorrência com seus semelhantes. Somente a falta de reflexão
sobre sua condição vital como o auto-convencimento provocado
pelo papel de "onipotente dono do saber" que às vezes o professor
representa perante seus alunos, podem faze-lo alheio a estas
simples verdades.

Nosso resumo sobre a violação das três normas fundamentais


da ética no capitalismo

A violação das primeiras normas da ética

Na medida em que nessa célula fundamental do trabalho


alienado no capitalismo que é a empresa, o trabalhador está sempre
submetido à ordens do capitalista (ordens cuja “felicidade” o
trabalhador deve reconhecer sempre sob pena de perder seu
emprego), é evidente que o dia a dia do capitalismo nega ao
assalariado o exercício de sua liberdade individual de decisão e sua
participação na construção de propostas consensuais. No
capitalismo se espera do trabalhador, o mesmo que do soldado, ou
seja, que não pense, mas que obedeça. Como disse Marx, no
contexto do trabalho alienado o trabalhador passa a ser mais uma
“coisa” (como o são o instrumento e o objeto de trabalho)
pertencente ao capitalista; e o capitalista acredita estar certo
quando conclui que essa “coisa”, como qualquer outra, está
incapacitada para a liberdade de decisão que é amparada pela
primeira norma da ética.
O capitalismo é uma ordem social de “guerra de todos contra
todos”; guerra da capitalistas contra capitalistas (ainda que se
aliem contra os assalariados e podem aliar-se também em cartéis

16
Marx,1844, I, o sublinhado é de Marx.

129
para guerrear contra outros cartéis); guerra dos capitalistas contra
os assalariados (em especial a causa do montante dos salários, das
condições do trabalho e da duração da jornada de trabalho); e
também é uma guerra de assalariados contra assalariados (em
particular na luta pela conquista e manutenção do emprego).
Nessas circunstâncias é evidente que estamos muito longe da
construção consensual de decisões e respostas exigida pela
segunda norma da ética.
Ao mesmo tempo essa guerra se acompanha da indiferença
crescente de cada ser humano para com os outros, no egoísmo
crescente que o capitalismo causa e incentiva ao glorificar a
concorrência e a ‘vitória dos mais aptos’ (com a condena dos
‘perdedores’). Hoje há pesquisas que mostram que o crescimento
dessa indiferença acompanha pari pasu o desenvolvimento
capitalista; assim, um ator que finge passar mal na rua, é atendido
por quase todos na pequena cidade (de capitalismo comercial
incipiente e rodeada de um campo onde, ainda há ecos de
vivências pré-capitalistas), é atendido por poucos na cidade média
(a de comércio e indústria capitalista medianos), e não é atendido
por quase ninguém na grande urbe (centro do grande capital
financeiro, comercial e industrial).

A Violação da Terceira Norma da Ética

Os efeitos nocivos para a natureza, resultantes da


continuidade do modelo de produção-distribuição-consumo
capitalista imperantes hoje em dia, provocam uma degradação
quantitativa e/ou qualitativa de tal magnitude no meio ambiente
que faz possível a vida humana, que a própria subsistência da
humanidade (e de muitas outras espécies, e até a saúde dos
componentes abióticos do planeta) corre perigo. Esse perigo é
reconhecido inclusive em foros tão influenciados diretamente
pelos grandes capitais como o é o “Clube de Roma”. A ameaça de
um holocausto ecológico capaz de exterminar a humanidade inteira
é uma situação absolutamente inédita na história da espécie

130
humana, mas não deixa de ser hoje bem real.
Agora bem, aqui quero destacar, em primeiro lugar, que a
incerteza em relação a obtenção e manutenção do emprego, o nível
de exigência na atividade produtiva, e os perigos existentes nela
(velocidade de produção, e/ou nível de tensão-atenção
permanentes, e/ou falta de equipamentos e medidas de segurança),
e os efeitos contaminantes da produção capitalista, levam os
assalariados a adoecerem. Diversas pesquisas mostram o estrago
que nas massas assalariadas causam os acidentes de trabalho
(muitas vezes mortais, em especial nas indústrias da construção, de
transporte, e nas minas), as enfermidades diversas causadas pela
contaminação da terra, a água e ao ar (fato evidenciado na
correlação existente entre a maior mortalidade por problemas
circulatório-respiratórios em uma mesma cidade como São Paulo e
o maior nível de contaminação do ar que ali se respira), e as
enfermidades físicas e/ou mentais devidas ao estresse. Uma e outra
evidência do trabalho alienado capitalista são contrarias à saúde da
natureza humana, e, por isso, contrárias a terceira norma ética.
Ao mesmo tempo são hoje indiscutíveis os estragos que
causa a produção-distribuição capitalista baseada no trabalho
alienado à saúde da natureza não-humana. A tal ponto, como
dissemos, que o envenenamento progressivo da terra, do ar e da
água, faz perigar a sobrevivência futura da própria espécie humana
(pelo menos nas áreas mais contaminadas), e a de muitas outras
espécies. Ao mesmo tempo se verifica uma clara devastação do
espaço-tempo geográfico: desmatamento irreversível
(especialmente nas grandes florestas tropicais), desertificação e
salinização de imensas áreas por causa de usos agrícolas não
sustentáveis, uso insustentável de recursos minerais e energéticos
não renováveis (tudo indica que o petróleo se acabará antes do
século XXII), e a própria água potável já começa a faltar em
muitos países e até regiões inteiras. Se o ciclo da água já está
afetado a esse ponto, não menos afetado está o ciclo do carbono,
porque emissões massivas derivadas do modo capitalista de
produção-distribuição-consumo (copiado também pelo chamado

131
“socialismo real” defunto na Europa desde 1991) geraram o “efeito
estufa”que está alterando o clima mundial por causa de um
aquecimento da temperatura no planeta (com o derretimento dos
gelos polares e o conseqüente aumento do nível dos oceanos e a
variação das correntes marinhas, cujos efeitos são todavia
incalculáveis em detalhe); outros gazes gerados pela produção-
distribuição-consumo capitalista aumentam o buraco na camada de
ozônio, o que se traduz em um aumento da radiação ultravioleta
que alcança a superfície terrestre (com os perigos que isto acarreta,
como o aumento dos cânceres de pele, já detectados no sul do
Brasil); ao mesmo tempo a produção-distribuição-consumo
capitalista põe em risco de extinção a cada dia mais e mais
espécies vegetais e animais.

Buscando explicações

Na busca da explicação de porque o capitalismo viola a


terceira norma da ética; a hipótese marxiana: Time is Money

Marx mostrou (em especial no segundo volume do “Capital”,


ao analisar os efeitos da velocidade de rotação do capital) que a
busca da maximização do lucro é uma obrigação que se impõe a
cada capital (capitalista) na concorrência impiedosa com outros
capitais (capitalistas); se de dos capitais do mesmo ramo com igual
magnitude, um deles obtivesse no mesmo tempo o dobro de mais-
valia que o outro (investindo em inovações tecnológicas que o
segundo não tivesse, e lhe permitissem produzir seu produto abaixo
do seu valor), em pouco tempo, vendendo seu produto mais barato
que seu competidor, o primeiro estaria expulsandoo o segundo do
mercado (e, de fato, aniquilando-o como capital/capitalista). Marx
mostrou que nessa dinâmica há uma pressão que obriga a cada
capital (capitalista) a aumentar sem cessar sua velocidade de rotação
para não perecer, e, se for possível, ficar só, ocupando todo o
espaço, expulsando os competidores (ver “O Capital”, T.2, S. 1,
Cap. IV, e S. 2 Cap. VII, IX e XIII). De nossa parte, (coincidindo

132
sem sabê-lo com outras interpretações) deduzimos desse fato a
conclusão de que a devastação da natureza (humana e não humana)
acontece no capitalismo porque a velocidade crescente com que o
capital usa esses recursos para valorizar-se é menor que o ‘tempo de
recuperação’ que a natureza humana e não humana necessita para
preservar-se/regenerar-se em equilíbrio dinâmico. (Lopez Velasco
2003 b, p. 69-79; ver também a segunda contradição do capitalismo
segundo O’Connor).

A superação da alienação: comunismo e ecomunitarismo

Nos Manuscritos de 1844 Marx caracterizou resumidamente


o comunismo como “... retorno do homem para si enquanto ser
social, quer dizer, humano; retorno pleno, consciente e efetuado
dentro de toda a riqueza da evolução humana até o presente. Este
comunismo é como um completo naturalismo-humanismo; é a
verdadeira solução do conflito entre o homem e a natureza, entre o
homem e o homem, a solução definitiva do litígio entre existência
e essência, entre objetivação e auto-afirmação, entre liberdade e
necessidade, entre indivíduo e gênero. É o enigma resolvido da
história e ele sabe que é a solução” (III 143).
No fim do primeiro tomo do “Capital” (que, lembremos mais
uma vez, foi o único que Marx logrou publicar em vida), nosso
autor apresenta o comunismo como segue: “O monopólio do
capital se converte em grilhão do regime de produção que cresceu
com ele e submetido a ele. A concentração dos meios de produção
e a socialização do trabalho chegam a um ponto em que se fazem
incompatíveis com seu envoltório capitalista. Ela explode em
cacos. Chegou a hora final da propriedade capitalista. Os
expropriadores são expropriados. O sistema de apropriação
capitalista que brota do regime de produção, e portanto, a
propriedade privada capitalista é a primeira negação da
propriedade privada individual, baseada no próprio trabalho. Mas
a produção capitalista engendra, com a força inexorável de um
processo natural, sua negação. É a negação da negação. Ela não

133
restaura a propriedade já destruída, mas uma propriedade
individual que recolhe os progressos da era capitalista: uma
propriedade baseada na cooperação de trabalhadores livres, e na
posse coletiva da terra e dos meios de produção pelo próprio
trabalho”. E Marx arremata: “A transformação da propriedade
dispersa e baseada no trabalho pessoal do indivíduo na propriedade
privada capitalista, foi um processo muitíssimo mais lento, mais
duro e mais difícil, do que será a transformação da propriedade
capitalista, que em realidade repousa já sobre métodos sociais de
produção, em propriedade social. Ali se tratava da expropriação da
massa do povo por uns quantos usurpadores; aqui, da expropriação
de uns quantos usurpadores pela massa do povo”. (I, 699-700,
corrigimos a tradução cotejando-a com o original alemão). [Note-
se que nesta ocasião Marx não usa a palavra “comunismo”, ainda
que sem dúvida se refira à transformação que conduz até ele].
Há que se notar que na primeira edição do primeiro tomo do
“Capital” (cuja versão foi depois substituída pelas ulteriores
supervisionadas por Marx e pelas edições ‘canônicas’ a cargo das
autoridades soviéticas e alemãs). Marx dizia nesta passagem: “O
modo de produção e apropriação capitalista e, portanto, a propriedade
privada capitalista é a primeira negação da propriedade privada
individual baseada no próprio trabalho. A negação da produção
capitalista se produzirá por si mesma com a necessidade de um
processo natural. É a negação da negação. Ela mostra de novo a
propriedade individual, mas sobre a base dos avanços da era
capitalista, a cooperação de trabalhadores livres e sua apropriação
coletiva da terra e dos meios de produção através de seu próprio
trabalho... “(tradução nossa a partir da edição alemã, p. 705-706).
PO destaca como no “Capital” Marx sustenta que, do ponto
de vista produtivo “a liberdade tem uma dimensão específica
quando se identifica com o desenvolvimento das forças produtivas
como fim em si mesmo, e que esse seria o verdadeiro ‘reino da
liberdade’” (PO, p. 168). De nossa parte, sublinhamos que se o
exercício da capacidade criadora é por si mesmo sem dúvida
desalienante (como faz o artista que não produz em/para o

134
mercado), quando se estende esse ‘por si mesmo’ ao conjunto da
produção, hoje devem se impor limites que a terceira norma da
ética ajuda a traçar. Lembremos que no “Capital” Marx nos disse
que o reino dos produtores livremente associados não é ainda o
‘reino da liberdade’, pois, situado ainda no ‘reino da necessidade’,
ele somente faz possível uma única liberdade, a de que aqueles
produtores “regulem racionalmente esse metabolismo seu com a
natureza pondo-o sob seu controle, em vez de serem dominados
por ele como por um poder cego, e que façam isso com o mínimo
emprego de forças e sob as condições mais dignas e adequadas à
sua natureza humana” (T. III, citado por PO, p. 270). PO destaca
(referindo-se aos Grundrisse, mas podemos aplicá-lo também ao
“Capital”) que Marx postula “a liberdade do homem real como
sendo a meta fundamental do comunismo, e que ela só será
possível como resultado histórico” (PO, p. 283).
Sabedores pela experiência histórica de que a passagem para o
comunismo não é nem será tão “inexorável” nem tão “natural”, nem
tão “fácil” como o acreditava Marx, mas ampliando-precisando-
atualizando a utopia marxiana nas esferas comunicativa, pedagógica,
ecológica, erótica e política, temos proposto o ecomunitarismo.
Chamo de “Ecomunitarismo” a ordem sócio-ambiental
utópica pós-capitalista (nunca alcançável, mas indispensável
horizonte, guia para a ação histórica) capaz de articular-se com
base nas três normas da Ética, e de manter-se pela postura de seres
humanos em atitude de libertação.
O ecomunitarismo, em sua dimensão produtivo-distributiva,
de consumo, comunicativa, ecológica, pedagógica, política e erótica,
retorna, atualizando-a e completando-a, à utopia marxiana do
comunismo (ver Lopez Velasco 1996, Cap. VIII, 2003b, 2009a).

Não-trabalho e necessidades humanas, ciências e “ordem” no


Ecomunitarismo

Se o “Trabalho” executado no capitalismo é atividade


alienada, por sua modalidade classista-assalariada, que, submetida

135
ao império da “ordem”, é o tormento diário do que se foge como
da peste assim que surgir a oportunidade, o Não-Trabalho a que
apostamos no ecomunitarismo é o contrario disso tudo.
O Não-Trabalho é a instância de expressão das energias
produtivas na qual as pessoas realizam alternadamente suas
múltiplas vocações. O tempo diário e total da lida será o mínimo
possível, segundo o exija o satisfação das necessidades, e é de
supor que o mesmo haverá de tender a zero (em especial graças
aos processos de automação e à equitativa distribuição das tarefas.
[Terminado esse lapso de tempo, começa o uso absolutamente
livre, por decisão individual, de cada dia e da vida toda, para o que
se quiser, inclusive para o ócio].
Nele o desenvolvimento universal dos indivíduos é universal
não só porque cada individuo se desenvolve multifacetadamente a
partir de suas vocações (respeitadas às exigências postas pelas
normas éticas), mas também porque esse processo se realiza em e
graças à interação consciente existente entre cada individuo e o
resto dos seres humanos através do contato entre suas respectivas
comunidades de vida.
Assim se completa, na negação de sua atual existência
restrita porque não-consciente no capitalismo, a aparição e
perpetuação de indivíduos que produzem sua vida em interação
com o conjunto dos seres humanos, ou seja, assim se constitui o
gênero humano como entidade real. A partir do plano produtivo
local de cada comunidade e abarcando os planos regional e
planetário, se estabelece essa interação universal consciente dos
indivíduos.
Apoiados nesse plano e indo além dele, se articula o
conjunto dos intercâmbios individuais universais que não se
caracterizam, ou não se caracterizam somente, como “produtivos”,
por abarcarem aspectos vinculados, por exemplo, à criação estética
ou às relações amorosas ou de amizade. Ambas as dimensões
dessa interação são hoje, do ponto de vista técnico, perfeitamente
realizáveis, in situ e à distância, em especial através dos meios de
transporte intercontinentais (cujos atuais efeitos contaminantes

136
deverão ser minimizados), como pelas redes eletrônicas e
“multimídias” de comunicação.
Esclareçamos o que catalogamos como “necessidades”
postas por e acertadas por e no desenvolvimento dos indivíduos
universais (para isto ver a nossa lembrança da ctalogaçõ de
Salamanca 2009).
As vezes essa questão tem sido abordada com base em uma
suposta diferença existente entre “necessidades legítimas” e
“necessidades artificiais” (ou seja, “falsas necessidades”) humanas.
É evidente que a realidade do “consumismo capitalista”
proporciona um certo conteúdo pertinente ao que parece que se
quer designar com as palavras “necessidades artificiais”. (O
próprio Marx fez uso de expressões parecidas ao tratar da dinâmica
de produção-distribuição-consumo vigente na sociedade
capitalista). Mas, quando se pretende aprofundar a análise, a
diferença estabelecida se revela problemática sob dois aspectos:
a) Porque a “legitimidade” de certas necessidades às vezes se
interpreta, em oposição ao “artificial”, como sendo “natural”, e,
b) porque essa diferença supõe um fundamento ético a partir
da qual possa se afirmar sua pertinência.
Em relação ao primeiro aspecto há que se notar que o ser
humano é precisamente aquela parte da natureza que através da
cultura transforma a sua natureza; dito de outro modo, a espécie
humana é a parte da natureza que se encontra, em e através de seu
devir histórico, em permanente estado de auto-produção. Daí que
falar de uma “necessidade natural”, referindo-se aos seres
humanos, seja incorrer em uma equivocada visão imobilista que
contradiz o caráter historicamente autopoiético da espécie humana;
falsidade que se aproxima de um non-sens.
No referente ao segundo ponto, faço notar, ademais da
ausência de todo fundamento ético explícito em Marx quando ele
frisa a mencionada diferença, que a questão da “necessidade
legítima” só pode ser delimitada e resolvida à luz das três normas
éticas transcendentalmente deduzidas por nós anteriormente.
Agora, observe-se que as mesmas não estabelecem uma versão

137
estática sobre quais são as “necessidades” que cabem em seus
limites e, ao fazê-lo, cobram “legitimidade”; ao contrário, aquelas
normas se comportam como marcos flexíveis em cujo seio pode
ser acolhida como “necessidade legítima” toda carência posta pelo
desenvolvimento universal dos indivíduos que não transgrida a
livre deliberação consensual com os outros, e que não contrarie a
preservação-regeneração de uma natureza humana e não humana
saudável do ponto de vista produtivo.
O entendimento entre os seres humanos e o desenvolvimento
da tecnologia ecologicamente sustentável são os mecanismos que
em cada momento histórico haverão de marcar os limites do que
seja uma “necessidade legitima” a ser atendida por e na vida
ecomunitarista.
Agora bem: como conciliar as diversas vocações com o
conjunto de necessidades comunitárias que devem ser satisfeitas
em certo nível já alcançado (e que nunca cessa de ser melhorado,
se não quantitativamente pelo menos qualitativamente?).
A resposta é: através do acordo consensual dos produtores
livremente associados que contraem e renovam periodicamente seu
pacto de convivência.
Uma vez estabelecida a lista de necessidades e aquela das
disponibilidades vocacionais, o acordo comunitário de não-trabalho
(estabelecido com uso de todos os recursos computacionais
necessários) é o mecanismo de compatibilização entre ambas.
Esse acordo tanto no relativo ao tipo como ao tempo rotativo
de atividade, tem por base a comunidade local (o distrito), mas se
integra aos macro-acordos que abarcam sucessiva e sistemicamente
espaços maiores, até culminar no planeta inteiro (e mais longe, nos
lugares extraterrestres onde haja, provisória ou definitivamente,
seres humanos residentes). Esse acordo planetário renovado
periodicamente vem a substituir a atual divisão mundial do trabalho
gerada de forma a-consensual e aleatoriamente através das Bolsas
que se alternam para operar as 24 horas do dia. Notemos que MM
havia notado que para que se faça possível a realização plena da
truncada tecnologia vigente no capitalismo, ou seja, “para que a

138
transparência do sistema produtivo e com ela a possibilidade de uma
real planificação se dêem, é preciso, pois que o conhecimento do
aparato produtivo seja um assunto de comunicação social geral”; e
arremata “A idéia de uma autoridade planificadora sobre uma
sociedade atomizada é, ademais de sinistra, utópica” (p.139); e logo
registra que aquela planificação participativa “só pode cumprir-se
em uma situação política de democracia sem restrições” (p. 149);
finalmente, com Marx, MM destacará que “a forma política da
ditadura do proletariado é a república democrática” (p. 166). Da
nossa parte ressaltamos que essas formulações de MM representam
exatamente a aplicação da primeira e da segunda normas da ética
(acompanhadas da terceira, no que diz respeito à precaução
ecológica no cuidado da vida humana e não humana, e dos sistemas
abióticos do planeta em geral) à esfera do não-trabalho (e das
relações sociais, em geral) no ecomunitarismo.
AA nota que no capitalismo se verifica “a autoalienação que
experimenta o individuo como ser necessário, a alienação de suas
necessidades, tanto individuais como coletivas” (p. 294); e
esclarece: “Por alienação das necessidades, pois, há de se entender
em geral a determinação formal capitalista daquelas na medida em
que ela induza à submissão das necessidades materiais às
necessidades formais, e a supressão, deformação ou limitação das
necessidades em virtude daquela forma social” (p. 297). Como nós
AA destaca que não cabe distinguir abstratamente entre
necessidades naturais e artificiais (p. 295). Agora bem, para
resolver o problema das necessidades às quais não correspondem
vocações, creio que dois são os caminhos: a distribuição equitativa
da carga indesejada mediante trabalho rotativo e a invenção,
mediante tecnologias ecologicamente sustentáveis, de modalidades
produtivas que prescindam da participação humana.
MM notou que “O problema está, essencialmente marcado
pela ‘essência da técnica’. Burguesia e proletariado são, em efeito,
predicados do mesmo sujeito, ou seja: aspectos da mesma única
estrutura, a qual só pode ser entendida como totalidade. Se Marx
atribui ‘à burguesia’ a transformação técnica do mundo, isso

139
poderia ser a descrição da fase inicial dessa transformação, mas
também pode ser (e nós preferimos supor que assim o é) uma tese
mais essencial; se por ‘burguesia’ se entende ‘a sociedade
burguesa’, isto é, o modo de produção moderno, já que o
proletariado mesmo só existe na medida em que esse modo de
produção se mantém de alguma maneira; e isto quer dizer:
inclusive durante todo o processo histórico-mundial da
transformação revolucionária que Marx vê como possibilidade”
(p.96). Depois dirá MM que para Marx “a revolução é a única
possível conservação da sociedade moderna, e, portanto, o único
possível cumprimento da própria ‘revolução burguesa’” (p. 153).
De nossa parte fazemos nossa esta observação para destacar que (à
diferença de algumas propostas ‘verdes’ anti-tecnológicas) o
ecomunitarismo supõe a superação-conservação (aufhebung) da
técnica empregada pelo capitalismo, mas/e: a) pondo-a a serviço
do desenvolvimento universal de todos os indivíduos,
b) adaptando-a e limitando-a ao cuidado ecológico prescrito pela
terceira norma da ética, e, c) renunciando em uma livre auto-
censura a toda ciência e técnica que violem qualquer uma das três
normas básicas da ética e/ou se contraponham à aspiração do livre
desenvolvimento universal e solidário de todos os indivíduos em
um contexto de preservação-regeneração permanente da saúde da
natureza humana e não humana.
Note-se que se as ciências eticamente fundamentadas (e se
for preciso com auto-censura livre a partir daquelas três normas) e
com responsabilidade ecológica são um pilar do Não-trabalho,
como se pode imaginar a luz do que já foi dito, o cultivo das
ciências não será no ecomunitarismo assunto de uma “comunidade
cientifica” fechada como a existente no capitalismo; ali a ciência
será uma dentre outras das diversas atividades que uma pessoa
desenvolve em alternância temporal com vistas a sua livre
expansão multilateral. Assim se resolve a unilateralidade, que é
sinônimo de pobreza humana dos atuais cientistas, ao tempo que se
encurta a distância, por dissolução da atual comunidade fechada no
tecido social, entre os praticantes e os não praticantes de atividades

140
caracterizadas como cientificas, sendo que estes últimos, com base
numa instrução generalizada, tendem a desaparecer.
A dinâmica do acordo aqui descrita supõe a eliminação da
“ordem” do universo produtivo (e social em geral) e sua
substituição por Quase-Raciocínios Causais (QRC) que
estabelecem as obrigações assumidas e que operam num contexto
onde todo cargo de coordenação-fiscalização é eletivo e rotativo.
Diante da suposta transgressão do consensualmente
estabelecido por parte de algum dos participantes, o QRC de
“segundo grau” com que o interpela um parceiro (ocupe ou não
algum cargo de coordenação-fiscalização) ou o conjunto dos
parceiros tem a seguinte forma: “(Deves) procede(r) da forma ‘y’
porque ‘z’ foi o acordado”. O interpelado, em função da gramática
dos QRC, aceitará o obrigativo que dá inicio ao QRC de segundo
grau se assumir como verdadeiro o enunciado “z”. Se não o
considerar verdadeiro, então haverá que se recorrer às instâncias que
podem resolver a dúvida, por exemplo, ao testemunho de outros
participantes e/ou a documentos que revelem os termos do acordado
previamente. Desse recurso resultam dois fins possíveis: ou é
confirmada a veracidade do enunciado “z” e o transgressor fica
sujeito ao obrigativo que aquele enunciado justifica, ou o enunciado
“z” resulta falso e fica abolido o obrigativo em questão, ao tempo
que se conclui que a suposta transgressão não teve lugar. [A quem
pense que este procedimento é difícil quero lembra-lhe que o
mesmo já funciona cotidianamente nas “regras” estabelecidas pelos
próprios participantes nas brincadeiras das crianças].
No que diz respeito à divisão comunitária do produto e dos
serviços do Não-Trabalho, o ecomunitarismo se ajusta ao lema
“De cada um segundo sua capacidade, e a cada um segundo sua
necessidade” (lembrando que esta última está submetida ao crivo
das três normas éticas). Uma vez obtidos os produtos e serviços
comunitariamente, sua distribuição também se fará
comunitariamente. Um acordo semelhante ao “pacto de produção”
estabelece o “pacto de distribuição”, que é logicamente anterior ao
primeiro, na medida em que o orienta em quantidade e qualidade.

141
O salário e o dinheiro terão desaparecido da história humana, e as
necessidades individuais (através da família na forma desta que
venha a subsistir, ou diretamente) são satisfeitas a partir do “fundo
econômico comunitário”. Note-se que neste modo de produção-
distribuição, também é atendido em suas necessidades legítimas
(estabelecidas, como para qualquer outro a partir das três normas
fundamentais da ética), o “ex-capitalista” (e sua família), sendo ele
agora, e depois de haver sido libertado de sua “função de
capitalista”, mais um membro da associação livre de produtores
livres; nisso levamos a sério (como disse ele) a satírica observação
de Marx quando, comentando a opinião de Courcelle-Seneuil de
que ‘a conservação de um capital supõe um esforço constante para
resistir à tentação de devorá-lo’, respondia: “O mais elementar
sentimento de humanidade ordena, pois, indubitavelmente, redimir
o capitalista desse martírio e dessa tentação, do mesmo modo que
a recente abolição da escravatura redimiu o escravagista georgiano
da trágica disjuntiva de saber se haveria de gastar em champanha
todo o lucro arrancado a golpes aos escravos negros, ou investir
uma parte para comprar mais negros e mais terras” (T. 1, L. 1, S.
7, Cap. XXII, p. 543).
Para finalizar este tópico, notemos que MM considera
“problemática” a fórmula” usada por Marx ao usar o slogan “ A
cada um segundo suas necessidades” (p. 168 e ss). MM registra
que Marx subentendeu que “a mercadoria satisfaz necessidades
humanas de uma ou outra índole”, e, por outro lado, que o valor da
força de trabalho está determinado pelas “necessidades” do
trabalhador, ou seja, pelas necessidades cuja satisfação é
necessária para a existência e conservação da força de trabalho. E
MM sustenta que esses dois conceitos de “necessidade” não
podem ser o mesmo; o segundo remete à mera “subsistência”
(como força de trabalho), e não merece, diz MM, e adjetivo de
“humano”. Da nossa parte diremos que na fórmula usada por
Marx, “De cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo
sua necessidade”, que recuperamos na proposta ecomunitarista, a
“necessidade” aqui conservada remete a todas as carências

142
individualmente diferentes, que devem ser satisfeitas para que cada
indivíduo se desenvolva (em cooperação solidária com os outros, e
com um cuidado preservador-regenerador da saúde humana e da
natureza não humana) como indivíduo universal, segundo as
diversas vocações que são as suas (e cuja atualização não contrarie
nenhuma das três normas éticas fundamentais). MM disse que tal
enfoque, presente em Marx, pertence a um dos conceitos limites na
análise marxiana da sociedade moderna, e destaca que se se
satisfaz toda necessidade, o próprio conteúdo da ‘necessidade’
desaparece (p. 174). Não negamos essa visão dos fatos, mas
cremos que essa superação da oposição necessidade-satisfação
merece figurar, por sua claridade (ainda que difusa, como tem que
ser em uma História nunca acabada de “necessidades” que se
definem sem cessar à luz da ética), na bandeira ecomunitarista.
Por outro lado MM observa (em perfeita sincronia com
nossa visão aberta das “necessidades” historicamente renováveis, a
partir do uso da liberdade de decisão que exige-ampara a primeira
norma da ética) que um ser humano pode optar livremente por não
comer, elegendo assim a morte. Mas provavelmente ele vai longe
demais quando infere daí, numa ótica condenatória de toda
“pressuposição essencialista acerca ‘do homem’”, que se tenha que
excluir “toda afirmação (explícita ou implícita) segundo a qual
exista um determinado fim que converta em ‘necessidades
necessárias’ os meios necessários para ele [o homem]” (p. 170).
Cremos que para o ser humano que decide viver, sua condição de
mamífero (sem dúvida diferente, mas não menos similar em
muitos aspectos aos outros mamíferos) coloca uma série de
necessidades como condições de possibilidade de sua subsistência
física, e muito mais além dela, sob a ótica ecomunitarista, de sua
realização como indivíduo universal; dali as reivindicações-
propostas ecomunitaristas (com base em Marx) em matéria de
alimentação, saúde, moradia, educação, equipes, recursos técnicos,
lazer, etc. Arteta defende a nossa posição (em especial AA p. 270-
271 e p. 280) sobre a preservação da “natureza humana”, na sua
leitura do Marx maduro, inclusive o do “Capital”.

143
Ecomunitarismo, ecologia, pedagogia, ambiental e erótica.

Baseado na terceira norma da ética [Devo preservar-


regenerar uma natureza sadia do ponto de vista produtivo porque
eu preservo-regenero uma natureza sadia do ponto de vista
produtivo é condição de Eu faço a pergunta ‘Que devo fazer?’],
comportamento ecomunitarista a respeito da natureza não-humana
terá um caráter preservador-regenerador.
Em termos concretos isso significa que a produção
ecomunitarista usa ao máxio recursos renováveis, de forma a
economizar o mais possível os recursos não-renováveis, guiando-
se pelo princípio dos “Cinco R” que prescreve a reflexão, recusa,
redução, reutilização e reciclagem dos recursos e resíduos, e se
preocupa por evitar a contaminação, admitindo-a provisoriamente
só quando a mesma é reversível.
Essa conduta será tema fundamental da educação ambiental
problematizadora que nas instâncias formais, não formais e
informais, haverá de caracterizar o panorama cultural-educativo do
ecomunitarismo. A base da teoria de tal educação se encontra em
Paulo Freire (1970, Cap. II), onde a prática pedagógica que ele
chama de “problematizadora” (contraposta a “bancária”, cúmplice
da dominação) pode resumir-se, incorporando minha perspectiva
ética, no seguinte modelo sistêmico qualitativo:

 ↔


onde © representa cada um dos sujeitos em interação


pedagógica-dialógica que faz parte do processo de “conscientização”
e ® representa o referente, ou seja, o “objeto” a propósito do qual os
primeiros estão construindo conhecimento. Note-se que o dito
referente, não se limita a classe dos objetos físicos, podendo ser
também, por exemplo, como “objeto” de conhecimento, o tipo de

144
relações que unem-desunem os sujeitos em questão, ou o tipo de
relações que eles têm com a natureza que os cerca.
Esse conhecimento a propósito do referente não será mais do
que a série dos consensos (segundo a segunda nroma da ética) aos
quais os sujeitos dialogantes podem chegar sobre a base do
exercício da liberdade individual de convicção e postura (primeira
norma da ética), que se enriquece com o desvelamento crítico
progressivo do referente. [E quando se diz “progressivo” não se
entenda tal característica como sendo sinônimo de uma
acumulação somatória não-contraditória, mas como processo
submetido a crises de renovação, inclusive dos fundamentos, como
as descritas por Thomas Kuhn (Kuhn 1962)].
Agora bem, Freire situou a construção do conhecimento no
interior da “praxis”, que ele definiu como sendo “a reflexão e ação
dos homens sobre o mundo para transformá-lo”. Portanto, como a
relação ao referente não é só teórica, mas também prático-
transformadora, resulta que não só se transformam as opiniões dos
sujeitos acerca do referente, mas também muda o próprio
referente. E a mudança do referente não deixará de alterar os
sujeitos cognocentes e seus sucessores, no interior de uma
interação de tipo ‘sistêmico”, mas histórica. [Daí a seta dupla que
no modelo acima apresentado parte dos sujeitos rumo ao referente,
como deste último até os sujeitos].
Sobre essa base se abre a perspectiva de superar a visão
“utilitarista” presente na terceira norma da ética, para, no quadro
do desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, incentivar-se e
possibilitar-se o re-encontro dos seres humanos com toda a
natureza. Essa mudança, fundamentada na terceira norma,
ecológica, mas que se abre numa perspectiva que supera a sua
atual formulação, somente é possível no contexto do
ecomunitarismo, onde a natureza não-humana tem sido des-
privatizada e o ser humano superou a alienação em relação a si
mesmo e em relação aos outros seres humanos.
No campo da erótica destacamos que a primeira norma da
ética ampara o auto-erotismo da masturbação, que deve ser des-

145
culpabilizada (em particular na fase de maturação sexual da
puberdade e da adolescência, mas também na fase adulta, em
situações ocasionais), superando-se assim as condutas de auto-
repressão e repressão que causam grandes e duradouros traumas. A
segunda norma ampara por igual tanto os casais homossexuais como
os heterossexuais, pois o que a ética exige é o consenso no prazer
compartilhado, sem importar o sexo dos parceiros. Não obstante,
essa mesma norma condena a relação sexual com qualquer sujeito
que transitória ou duradouramente está incapacitado para exercer a
liberdade de decisão exigida pela primeira norma (tal é o caso das
crianças, dos animais e das pessoas sob efeito de drogas ou de
álcool consumido em quantidade excessiva). A terceira norma,
reforçando a segunda e a primeira, ampara toda conduta que,
querida pelos participantes, redunde em seu bem-estar (e portanto
em sua saúde física e mental). A primeira norma ampara a decisão
de não procriar e, portanto, os métodos contraceptivos, bastando a
opção de um dos participantes para legitimá-la. Por último note-se
que a ética não ampara o aborto, pois tal prática significa retirar do
futuro adulto que é o embrião ou feto, a liberdade de decisão que lhe
reserva a primeira norma para opinar sobre sua existência (ou não
existência). (De maneira menos rigorosa aqui me move o seguinte
raciocínio: porque não me agrada a idéia de que poderiam ter
prescindido de minha existência sem me consultar, não me sinto no
direito de privar da existência um ser humano que ainda é incapaz
de opinar; note-se que o debate sobre “quando começa a vida
humana” para autorizar o aborto está superado pela descrição do
genoma humano, que determina, já a partir da fecundação, o caráter
humano do novo ser; essa posição de princípio não inibe a discussão
de casos especiais, como o da gravidez resultante de estupro, o caso
das crianças sem cérebro, etc.).

Ecomunitarismo e ciência: queremos tudo o que podemos?

A ciência e a tecnologia são instrumentos fundamentais


daquilo que podemos fazer, também em perspectiva

146
ecomunitarista. Mas, devemos querer tudo aquilo que nos permite
fazer a tecnologia? Os desastres e as ameaças sócio-ambientais
vinculadas a algumas investigações e realizações científico-
tecnológicas tem levado o ecofeminismo a declarar que a ciência é
um mecanismo opressor-devastador de mulheres e crianças (em
especial no Terceiro Mundo) e da natureza não humana. Assim
Mies e Shiva (1977) sustentam que a ciência ocidental se apóia nas
relações patriarcais (que tomam forma nas relações capitalistas e
colonialistas); segundo elas as maiores vítimas da ciência são as
mulheres e as crianças do hemisfério sul e a natureza não humana.
Tal seria o resultado das oposições binárias patriarcais-capitalistas
homem/mulher, homem/natureza, industrial/indígena, norte/sul,
numa abordagem na qual a busca de uma “verdade universalizada”
se baseia na exploração da tríade mulher/natureza-Terceiro
Mundo. Se por um lado consideramos que o método de pesquisa-
ação proposto por Mies e Shiva é de sumo interesse para completar
a proposta problematizadora de Freire (que, no entanto, elas
interpretam mal, ao considerar numa ótica psicológica e não
dialética, que o desvelamento crítico da realidade antecede a sua
transformação emancipatória), divergimos da crítica à “verdade
universalizada” realizada por ambas autoras. Cremos que Karl-
Otto Apel (1973) mostrou de forma convincente que três normas
éticas sustentam implicitamente os enunciados científicos, a saber,
dizer o que pensamos que é o verdadeiro (no sentido da verdade
por correspondência aos fatos, em ótica aristotélica), renunciarmos
ao egoísmo na busca consensual da verdade, e aceitarmos qualquer
ser humano como um companheiro legítimo nessa busca.
(Obviamente, não consideramos que essa tripla exigência ética se
realize no dia a dia da alienação, violência e manipulação que é o
capitalismo, mas isto não apaga a tripla exigência ética que oculta-
se por trás de cada enunciado, exigência que devemos postular no
ecomunitarismo). Assim rejeitamos a leitura simplista da suposta
violência machista atribuída por Mies à ciência. Ao mesmo tempo,
e apoiando-nos na Teoria dos Atos de Fala desenvolvidos por
Austin (1962) sustentamos que faz parte de qualquer enunciado

147
(também o científico), que é dirigido sempre a pelo menos um
interlocutor real ou potencial, a tentativa de convencer esse
interlocutor (em ação perlocucionária, disse Austin) da correção
de nosso ponto de vista. Agora, essa convicção de correção
pressupõe e abriga a postulação de uma verdade universalizável.
(Por isso teriam razão Sócrates e os sofistas, pois se o primeiro
insistia na busca da verdade única, os segundos chamaram a
atenção sobre o irrenunciável componente perlocucionário do
discurso). Agora bem, segundo a segunda norma de Apel e
segundo nossa segunda norma, essa dinâmica abriga a
possibilidade de ser convencido pelo interlocutor e de mudar nossa
postura, o que, outra vez, confirma a aposta em uma verdade
universalizável. A prova palpável disso é o fato de que Mies e
Shiva escrevem artigos e livros, materializando sua intenção de
que seus interlocutores cheguem até a verdade no assunto debatido
(da qual elas pretendem ser porta-vozes), por exemplo, que a
ciência é sinônimo de violenta opressão machista. Contra essa
visão sustentamos que a afirmação de Mies de que “a ciência e a
tecnologia atuais são ciência e tecnologia completamente
militares” é de um simplismo generalizante inaceitável. Por sua
vez Shiva sustenta que à ciência, que é patriarcal-masculina, se lhe
opõe um “princípio feminino” que inclui tanto a mulher como a
“natureza” e os povos indígenas e o Terceiro Mundo, e essa autora
chega a dizer que nas sociedades pré-modernas centradas na
mulher, a atitude e prática foi de respeito para com a natureza
(Mies e Shiva 1997, Cap. VIII). Fazemos nossas as palavras das
feministas Maxine Molineu e Debora Lynn (1994, p. 21), quando
ponderam que “toda essa explicação se funda numa visão
romântica das culturas pré-ilustradas, pré-coloniais e pré-modernas
que se embasariam supostamente no ‘princípio feminino’ e numa
ordem natural concebida como essencialmente boa”, pelo que
“uma história complexa se converte em universal e homogênea”, e
onde a aposta em um futuro que supere as dominações típicas do
capitalismo se confunde com o desejo de voltar a um passado
idealizado.

148
Agora bem, creio que Mies expôs bem uma questão decisiva na
relação entre ética e ciência ao abordar os “limites da pesquisa”.
Disse Mies: “Posto que o paradigma científico está baseado no
dogma de que o afã científico não conhece limites, ele gera uma
busca orientada a ampliar cada vez mais os conhecimentos abstratos.
Não se permite nenhuma interferência moral no processo de
investigação. Os cientistas, portanto, não podem dar resposta por si
mesmos aos problemas éticos” (Mies e Shiva 1997, Cap. III). Aqui
tocamos o difícil problema da auto-censura ética da investigação
científica e do uso da ciência (sobre o qual já falamos antes). Nossa
primeira norma ética (referente à liberdade de decisão) parece
garantir a ausência de limites na investigação. Mas note-se que essa
norma pode e deve ser completada pelas outras duas, e estas, ou em
função da ausência de consenso, ou em função de eventuais prejuízos
a preservação-regeneração da natureza humana e/ou não humana
saudável, podem perfeitamente amparar a determinação de se colocar
limites à pesquisa. E é importante ressaltar que se trata aqui de auto-
censura ética livre e imanente, e não de qualquer censura exógena
(como o são as de fundamento religioso, como a que afetou Galileu,
ou ideológico, como a imposta por Lyssenko à genética soviética).
Tal auto-censura é possível, necessária e realizada no marco dos
Quase-Raciocínios Causais que são as normas da ética (dando pautas
de condutas estabelecidas, abolidas e renovadas mediante
argumentações). Sendo assim as coisas, é óbvio que os limites
estabelecidos pela auto-censura ética da ciência são mutáveis
historicamente segundo o estado do que julgamos verdadeiro e
devido; (e não esqueçamos que no ecomunitarismo postulamos que
todos os seres humanos são desde a infância praticantes da ciência,
posto que foi dissolvida na rotação das tarefas a “comunidade
científica” fechada existente no capitalismo).
Assim, pois, em perspectiva ecomunitarista resulta claro que
em matéria do possível mediante a ciência e a tecnologia, as três
normas éticas nos dizem que não devemos querer tudo o que
podemos, pois precisamente essas normas marcam os limites
(historicamente mutáveis) do que devemos querer (e fazer).

149
Práticas políticas rumo ao Ecomunitarismo: Historia e Utopia.

Como MM (p. 91 e SS) e AA (em especial p. 276),


consideramos que não há determinismo nem necessidade na
história, a qual permanece aberta e seguindo as decisões tomadas
pelos indivíduos.
Qual é o perfil das práticas que conformam o caminho
orientado pelo horizonte ecomunitarista?
Para responder essa pergunta me permito algumas
observações conjeturais baseadas na nossa recente experiência
histórica.
Creio que, se a fundamentação ética do processo de
libertação que aponta rumo ao ecomunitarismo se apóia na crítica
do capitalismo, e em especial na situação alienada dos assalariados
nesse regime social; mas não por isso a luta de libertação pode
definir-se como uma luta de classes onde o papel de vanguarda
está pré-determinado e lhe corresponde a classe trabalhadora.
Como dissemos antes, já foi demonstrado que a classe
trabalhadora, entendida como composta pelos trabalhadores
industriais com contrato por tempo de serviço indeterminado, se
comparada com o que ela era no início do século XX, diminuiu
quantitativamente e se transformou qualitativamente, como
resultado de incorporações tecnológicas e organizativas ao
processo produtivo. Também já dissemos que as organizações
sindicais supostamente representativas dessa classe transformada
viram minguar seu número de aderentes, ao mesmo tempo em que
restringiam cada vez mais suas reivindicações inerentes à relação
de trabalho assalariado vigente no capitalismo (em busca de
melhoras que não afetam essa relação como tal, e por isso não
fogem do contexto do capitalismo), e tem se mostrado uma e outra
vez omissas em relação à problemática ecológica, defendendo com
a mesma miopia de capitalistas e governantes, a suposta prioridade
do “emprego” perante a preocupação pelo “meio ambiente”,
omitindo o debate sobre a necessária combinação de ambos
aspectos numa sociedade sustentável do ponto de vista sócio-

150
ambiental; nesse contexto, inclusive o novo tema do “assédio
sexual” dentro da empresa não tem sido vinculado, como o propõe,
por exemplo, o ecofeminismo, a uma discussão geral sobre o tipo e
a legitimidade das relações humanas afetivas, pedagógicas,
produtivas e comunitárias vigentes no capitalismo em geral
(incluindo o universo empresarial), e em especial as que vigoram
entre os sexos, e entre os seres humanos e o restante da natureza
(sobre isto ver “Erótica” in Lopez Velasco 1997, Cap. I, 2003b e
2009a ). Também dissemos que a grande maioria das organizações
políticas supostamente representativas da classe trabalhadora
transformada tem seguido o caminho das organizações sindicais,
unindo-se de fato, quando não também de palavra, ao capitalismo
reinante (e reinante com mais força depois de que, derrotado na
Europa o chamado “socialismo real”, o capitalismo é apresentado
por seus corifeus como sendo “o fim da história”).
Nas organizações políticas supostamente representativas da
classe trabalhadora que não abdicaram de seus ímpetos para
superarmos o capitalismo, o que se observa é uma conduta
marcada por um vazio de propostas no que concerne ao regime
desejado, quando não uma simples e simplista nostalgia e adesão
de/ao defunto “socialismo real” [regime que, como, se não basta-se
a falta de perspicácia filosófica dos que assim o batizaram
(esquecendo que já o velho Hegel dizia “tudo o que é real é digno
de perecer”, não resolveu na prática nem a questão da progressiva
realização consensual da liberdade em processo de
universalização, nem a questão da reconciliação dos seres
humanos com o restante da natureza através de uma conduta
ecológica de preservação e regeneração da mesma].
Estas constatações são suficientes para aventurar a opinião
de que a marcha histórica rumo ao ecomunitarismo não pode ser
pensada como uma luta de conquista e/ou recuperação do
“socialismo real” vanguardizada pela “classe operária”, e dirigindo
esta última a suas organizações supostamente “representativas”,
sindicais e/ou políticas. À luz da crítica eticamente fundamentada
do capitalismo aqui antes desenvolvida, e sobre cujo pano de

151
fundo se mostra como alternativa o ecomunitarismo, essa marcha
aparece como parte e produto de um processo de
“conscientização” (no sentido de Paulo Freire; 1970) tendo como
protagonistas principais os assalariados e excluídos do trabalho em
geral no capitalismo (não se esqueça que em 2008 a OIT registrava
800 milhões de desempregados e sub empregados no mundo), os
cidadãos organizados em ONG’s e redes, os povos indígenas, as
minorias que às vezes são maiorias (como é o caso das mulheres),
e incorporando também todo ser humano que seja capaz de
entender e compartilhar com sua praxis o alcance daquela crítica.
Agora, que formas organizativas haverão de dar-se essas
multidões?
Recapitulo algumas afirmações anteriores. Creio que a
organização sindical e político-partidária, todavia, tem seu lugar na
história desde que seu discurso cotidiano, ademais de zelar pelas
reformas e conquistas pontuais táticas legitimamente defendidas,
aponte sempre para o objetivo pós-capitalista perseguido, a saber,
o ecomunitarismo, e desde que seu funcionamento interno esteja
marcado pela prática democrática das decisões (sempre que
possível em exercícios de democracia direta) tomadas com base na
transparência das informações, e, como parte da conscientização
em curso, desde que os cargos diretivos sejam rotativos, evitando a
profissionalização dos dirigentes em sua função de tais. Mas, como
dissemos, junto com as organizações piramidais, haverão de ter
cada vez mais força aquelas que congregam os seres humanos em
contextos “extra-produtivos”, preocupados com as questões da
qualidade de vida, começando pelo seu local de moradia; o
restabelecimento de uma proximidade solidária e a ação em redes e
em organizações não-governamentais para a melhora da qualidade
de vida no bairro e no distrito, na reião e no planeta, são tarefas de
primeira importância no que diz respeito às mudanças das relações
inter-humanas e às relações entre os seres humanos e o restante da
natureza. Por fim, como já dissemos, a educação formal
(problematizadora) e os meios de comunicação são dois espaços
que a crítica e a ação ecomunitarista a respeito do capitalismo não

152
pode abandonar em nenhuma circunstância.
Esse conjunto de espaços e ações define o perfil da maré
ecomunitarista capaz de submergir ao capitalismo no passado da
historia (ou, como disse Marx, da pré-história humana).
Parte de tudo o que aqui dissemos já começa a se realizar em
algumas experiências do chamado “socialismo do século XXI” que
está nascendo na América Latina.

Ecomunitarismo e globalização solidária

Nas minhas obras (erm especial em loopez Velasco 2000,


2003b e 2009a) tenho discutido a política sócio-ambiental
ecomunitarista. Nesse contexto afirmo que o Ecomunitarismo tem
a dimensão planetária de uma globalização solidária, o que me
leva (aproveitando idéias de Fabio Giovannini, 1993) a marcar
diferenças com o chamado “biorregionalismo”, que é um enfoque
presente em várias das atuais tendências “verdes”, e a fazer
acréscimos no mais conhecido dos slogans verdes, aquele que
prega “Pensar globalmente, atuar localmente”.
Seguindo o resumo feito por Giovannini (Giovannini 1993,
p. 70), podemos dizer que o Bioregionalismo consiste basicamente
nas seguintes posturas:

a) Temos de viver segundo as caraterísticas da região onde


habitamos; ou seja, viver usando de modo ecologicamente
sustentável os recursos da biorregião na qual se habita.
b) O uso dos recursos biorregionais deve ser sustentável,
minimizado (mediante a redução de insumos e resíduos, cuja
reciclagem deve ser generalizada), praticando a proteção
conservacionista da natureza e a agricultura orgânica.
c) O núcleo político da biorregião é a comunidade, sendo ela
a que deve gerir a terra mediante a prática de uma democracia
participativa na qual o momento de exercer o voto é só um
momento e não a totalidade do exercício democrático.

153
Giovannini alerta que esta concepção pode levar ao
isolamento de "comunidades incomunicadas"; por outro lado ela
não permite visualizar uma solução para a questão de justiça
atinente à diferença possível entre biorregiões pobres e ricas; ela
também abre a brecha para que, em nome da biorregionalidade, a
ecologia se converta numa modalidade a mais de um
"funcionalismo sistêmico luhmanniano" (que considera
"reacionário" pois o enfoque de Niklas Luhmann está "totalmente
orientado a conservar poderes e interesses existentes, em primeiro
lugar, o poder da empresa capitalista"); por último, o
biorregionalismo resulta inquietante por reabrir a porta a uma
naturalização das questões sociais humanas, quando se sabe que
este ponto de vista, ao pregar que a vida política e social dos
homens deveria imitar o mundo natural, "pode legitimar
violências, racismos, discriminações, darwinismos sociais e
autoritarismos". (Idem).
Da minha parte quero salientar que esta última prevenção de
Giovannini assim como as três anteriores, requerem, para ganhar
legitimidade argumentativa, uma fundamentação ética, que este
autor não nos proporciona. Ora, é essa fundamentação que,
precisamente, oferece o paradigma ético que proponho; em
especial, todas as objeções de Giovannini ficam cobertas pelas
duas primeiras normas por mim deduzidas.
Por conseguinte, como disse em outra oportunidade, a
efetivação das três normas éticas permite que, por vez primeira, o
"gênero humano" fique constituído como entidade real (deixando
de ser meramente uma categoria lógico-lingüístico-biológica). Isto
significa que, com base na liberdade de decisão garantida pela
primeira norma, mas com as restrições que significam a realização
consensual desta liberdade em vivências que se pautem pela
preservação-regeneração da natureza (prescritas pelas outras duas
normas), a aposta ecomunitarista logra superar as carências
isolacionistas e de justiça relacional, assim como os perigos de
legitimar opressões em nome de um sistemismo a-histórico,
detectados por Giovannini no biorregionalismo.

154
Como disse antes, o Ecomunitarismo propõe que as
comunidades de vida se integrem numa grande rede, partindo do
local, para cobrir o planeta inteiro; mas essa articulação passa pelos
"serviços" mútuos (que, em forma de reciprocidade solidária gratuita,
pode assumir a forma de um "potlatch" planetário) prestados entre
elas, numa relação de co-administração das coisas que impede que
qualquer uma delas se erija como opressora de qualquer outra. Como
essa relação resulta de consensos argumentativamente estabelecidos,
acontece que qualquer abordagem-organização sistêmica passa pelo
crivo da História que os seres humanos constróem na medida em que
se auto-produzem, e que, por ser tal, resulta, ainda quando haja
"funcionalidade sistêmica", da livre decisão, sempre renovável, de
cada indivíduo e cada comunidade. O que se propõe o
Ecomunitarismo é alguma coisa assim como uma "ONU das
comunidades", na qual todos os mecanismos de opressão militar,
assimetria comunicativa e dominação econômica existentes na atual
ONU, sejam suprimidos na fraternidade planetária.
[Isto supõe, dentre outras coisas, a construção de pactos
consensuais renováveis de alcance planetário, que venham a
substituir, organizados como Quase-Raciocínios Causais, o atual
Direito ‘Positivo, que na atual ONU se constitui em grande parte
como expressão do “direito do mais forte”].
Neste contexto, se é verdade que devemos “Pensar
globalmente e agir localmente”, não é menos verdade que
devemos também “Pensar localmente e agir globalmente”, e ainda
“Pensar globalmente e agir globalmente”; isto por que algumas
questões somente são solucionáveis mediante uma exitosa ação
global (como acontece com o combate ao aumento do buraco da
camada de ozônio, que afetando com mais intensidade a
extremidade sul do Continente americano, somente é superável se
no mundo todo forem tomadas medidas para a redução das
emissões que originam tal buraco); por outro lado, a diminuição do
“efeito estufa” que a todos ameaça no planeta, somente será
alcançável se ações globais lograrem diminuir as emissões
causadoras do fenômeno.

155
A modo de conclusão (provisória)

Hoje sabemos que, como dizia Marx em “O Capital”, o


capitalismo arruína as duas fontes da riqueza: o ser humano e a
terra. Na lógica do lucro sacrifica-se a saúde humana na angústia
do desemprego e da pobreza, ou na jornada estressante, a violência
mata todos os dias (por exemplo, pelo petróleo, a cor da pele ou os
sapatos do vizinho, ou pela droga, a briga doméstica ou o trânsito),
o ar é irrespirável nas cidades, e as florestas sofrem conseqüências
da sede do lucro e da chuva ácida, o efeito estufa e o buraco da
camada de ozônio modificam perigosamente o clima e aumentam a
incidência do câncer de pele, os rios e mares são diariamente
envenenados com enormes cargas de matérias tóxicas (em especial
os agrotóxicos), que antes de chegar até eles contaminam as terras
e as pessoas. Por tudo isso o capitalismo se transformou em algo
mais do que uma ameaça às riquezas: ele passou a ameaçar a vida
no planeta inteiro. Mas o capitalismo tem defensores que detém o
poder econômico, militar e cultural. Todo dia a TV invade a casa
de cada família para decretar que outro mundo não é possível
porque “o mercado” determina isto ou aquilo, e nas escolas e
Universidades, inclusive professores bem intencionados insistem
na idéia de que seus alunos devem preparar-se para competir no
“mercado”. Mas o que é o “mercado” senão o conjunto das
relações produtivo-distributivo-de-consumo entre as pessoas que
escaparam a seu controle e gestão? Ou seja, aquele discurso da TV
e dos ‘educadores” significa que é normal e conveniente que a
humanidade seja escrava de seus inventos interativos, e não a
gestora dos mesmos. Corresponde à educação ambiental discutir
aquele estado de coisas e esse pressuposto. Não em vão, inclusive
o organizador da “Rio 92” manifestou naquela conferência que a
discussão ambiental necessitava questionar o atual modo de
praticar a economia. É bom relembrar que essa palavra deriva do
grego “oiko-nomia”, que na era clássica designava a gestão das
necessidades da casa (oikos) para que nada necessário lhe faltasse.
O capitalismo realizou o ‘milagre” de inverter a tal ponto as

156
relações, que quer fazer-nos crer que o ser humano deve amoldar-
se a economia, e não o contrário. Esse é outro absurdo que deve
ser questionado. Para dar conta dessa tarefa a EA necessita (e
resumo de novo a meu modo a pretensão da conferência de
Tibilisi) abranger a ética e as áreas do conhecimento e das
habilidades; todas elas apontando para um novo comportamento
ecomunitarista. Creio que a ética capaz de pedir-obter adesão
universal (independentemente de todo credo religioso ou a priori
ideológico) é a das três normas que expusemos antes. Ela resume
em um só feixe a fundamentação da libertação humana e da
preservação-regeneração da natureza não humana, e aponta para o
ecomunitarismo, horizonte utópico no qual os seres humanos se
reconciliam solidariamente entre si e ecologicamente com o
restante da natureza. Se alguém disser que a realização do
ecomunitarismo é impossível eu poderia concordar de bom grado,
mas sublinhando que o ecomunitarismo é uma estrela-guia
indispensável para a ação, e que como toda utopia, “serve para
caminhar”; pois sem ela ficamos sem rumo na ação, inclusive
quando estamos animados de muito boas intenções. Suspeito que
boa parte do mal- estar da juventude de hoje, massacrada por um
sistema capitalista que a obriga a estudar e depois lhe nega a
oportunidade de exercitar aquilo que aprendera, vem, também,
dessa falta de horizontes, e do dia-a-dia frustrante e sem
amanhecer. O ecomunitarismo é a bandeira que assumindo essa
realidade, apresenta à educação ambiental (EA) o desafio de
assumi-lo como guia; ou seja, de retomar o lema do movimento
estudantil de maio de 1968, de sermos realistas pedindo o
impossível, e, para tanto, levarmos cada dia a imaginação ao
poder. Essa EA deve ocupar os espaços das ações de bairro, os
movimentos sociais, os sindicatos, os partidos, os comunicadores
engajados nessa causa e os líderes religiosos quando descobrirem
que a “religião” consiste etimologicamente em re-ligar os seres
humanos entre si e com o restante da natureza. Tal EA
problematizadora tem em Paulo Freire o seu principal precursor e
mentor, e se assume como atividade “política”, ou seja, vivendo e

157
incentivando a transformação da “polis” (a cidade-país-planeta)
rumo ao ecomunitarismo. Seu raio de ação vai desde o distrito até
o planeta inteiro, criando os espaços de reflexão e atividade
conjunta (dos quais o Foro Social Mundial já é um bom exemplo
que deve ser melhorado em sua capacidade de intervir na
concretização de soluções para os problemas sócio-ambientais
claramente diagnosticados há muito tempo). Inimiga da violência
porque baseia-se na ética argumentativa, essa EA não teme, não
obstante, reconhecer que, assim como se amarra uma pessoa
vitima de um ataque de loucura para que não fira nem se fira,
assim também é possível que haja de se exercer coação sobre os
cegos capitalistas que com sua ação prepotente nos levam (e vão
eles mesmos e suas famílias ou descendentes) rumo ao abismo da
espécie (e de muitas outras espécies e boa parte do planeta). Para
fazer possível um mundo de pessoas pacíficas essa EA não pode
furtar-se ao combate, pois isso significaria deixar o terreno livre
aos donos do mundo de hoje. Para realizar o que dela se espera, a
EA ecomunitarista deve aprender a combinar o ensino-
aprendizagem da sala de aula com a ação transformadora
comunitária (através de todas as instâncias antes mencionadas).

158
UCRONIA MÍNIMA

História e Utopia

O ecomunitarismo é hoje uma "utopia" tendo em vista que,


no capitalismo, "não está em nenhum lugar" (é, literalmente, "ouk"
– "topos"). Saber se algum dia poderá ocupar um lugar com as
características genéricas antes descritas é uma questão que
somente a ação humana poderá resolver. É bom que se diga de
imediato que, ainda que isso seja discutível, o que vale a partir das
normas éticas transcendentalmente deduzidas é o caminho
histórico que aponta rumo ao ecomunitarismo, caminho que não é
outra coisa senão o processo histórico de libertação. Ora, que perfil
geral tem esse caminho?
Para responder essa pergunta permito-me algumas
observações conjecturais baseadas na nossa recente experiência
histórica. Creio que, se a fundamentação ética do processo de
libertação que aponta rumo ao ecomunitarismo se apoia na crítica
do capitalismo, e em especial na situação alienada dos assalariados
nesse regime social, nem por isso a luta de libertação pode definir-
se como uma luta de classes onde o papel de vanguarda está
predeterminado e corresponde à classe operária. Há que se fazer
notar que a classe operária, entendida como composta pelos
trabalhadores industriais com contrato trabalhista por tempo
indeterminado, tem diminuído quantitativamente e se transformado
qualitativamente mediante incorporações tecnológicas ao processo
produtivo mediante, em relação ao que era sua situação a inícios
do século XX. Além disso as organizações sindicais pretensamente
representativas desta classe transformada têm visto seu número de
aderentes diminuir constantemente ao mesmo tempo em que

159
restringiam cada vez mais suas reivindicações a aspectos inerentes
à relação assalariada vigente no capitalismo em busca de melhoras
que não afetam essa relação em profundidade; assim, são
bandeiras de luta permanentes e (quase) únicas as relativas ao
montante dos salários, à garantia do emprego, à extensão da
jornada de trabalho e às condições de higiene e segurança do local
de trabalho; a elas recentemente tem se acrescentado como único
elemento novo, no que se refere às relações humanas dentro da
empresa, a questão do assédio sexual. Mas ela não tem sido
vinculada, no tratamento que lhe tem dado as organizações
sindicais dos assalariados, a uma discussão geral sobre o tipo e a
legitimidade das relações humanas produtivas e comunicativas
vigentes no capitalismo em geral, e em particular no espaço-tempo
da empresa.
Por sua vez, a maioria das organizações políticas
supostamente representativas da classe operária transformada tem
seguido o caminho das organizações sindicais, unindo-se de fato
quando não também de palavras ao capitalismo reinante (e reinante
com mais força depois que, derrotado na Europa e chamado
"socialismo real", o capitalismo é apresentado por seus corifeus
como sendo "o fim da História"). Nas organizações políticas
representativas da classe operária que não têm abdicado de seus
ímpetos para superar o capitalismo, o que se observa é uma
conduta marcada por uma carência de propostas no que concerne o
regime desejado, quando não uma simples e simplista nostalgia e
adesão do e ao "socialismo real"; regime que, como se não
bastasse a falta de perspicácia filosófica dos que assim o batizaram
passando por alto o fato de que de acordo ao velho e bom Hegel
tudo o que é real é digno de perecer, não resolveu na prática nem a
questão da progressiva realização consensual da liberdade de
indivíduos em processo de universalização nem a questão da
reconciliação com a natureza através de uma conduta ecológica de
preservação e regeneração da mesma.
Estas constatações são suficientes para aventurar na opinião
de que o caminho rumo ao ecomunitarismo não pode ser pensado

160
como uma luta de conquista e/ou recuperação do "socialismo real"
tendo a sua cabeça a "classe operária", e à cabeça desta "suas
organizações representativas" sindicais e/ou políticas. À luz da
crítica eticamente fundamentada do capitalismo aqui antes
desenvolvida e sobre cujo fundo se desenha como alternativa o
ecomunitarismo essa marcha aparece como parte e produto de um
processo de "conscientização" (no sentido de Paulo Freire) tendo
por protagonistas principais aos assalariados e excluídos do trabalho
em geral no capitalismo, os povos indígenas e as minorias oprimidas
(que às vezes são maioria, como as mulheres) mas incorporando
também a todo ser humano que seja capaz de entender e
compartilhar o alcance daquela crítica. (Uma experiência inovadora
é interessaante é a do chamado socialismo do século XXI que está
começando a ver a luz em alguns países da América Latina)
Ora, que formas organizativas haverão de dar-se essas
multidões ?
Creio que a organização sindical e político-partidária ainda
tem o seu lugar na história desde que seu discurso cotidiano aponte
sempre o objetivo não capitalista perseguido, para além das
reformas e conquistas pontuais legitimamente defendidas, a saber,
um ecomunitarismo, e desde que seu funcionamento interno esteja
marcado pela prática democrática das decisões consensuais
(sempre que possível em exercícios de democracia direta) tomadas
com base na transparência das informações e, como parte da
"conscientização" em curso, os cargos diretivos sejam rotativos,
evitando a profissionalização dos dirigentes na sua função de tais.
Mas junto e além de tais organizações piramidais (onde,
repito, cada nível da pirâmide que implique em delegação de poder
de decisão deve ser ocupado em sistema de rodízio) haverão de ter
cada vez mais força aquelas que congregam ao homem em seu
contexto extra-produtivo, a começar pelo seu local de residência; o
restabelecimento duma vizinhança solidária e atenta à melhoria da
qualidade de vida no bairro é uma tarefa de primeira importância
no relativo à mudança das relações interhumanas e entre os
homens e o meio ambiente; as organizações não-governamentais

161
com horizonte ecomunitarista e as diversas redes de cidadãs e
cidadãos também estão chamadas a desempenhar um papel de
destaque nessa luta. A educação formal e os meios de
comunicação são dois espaços fundamentais que a crítica
ecomunitarista do capitalismo não pode abandonar em nenhuma
circunstância. As novas possibilidades tecnológicas em matéria de
comunicação fazem possível que se estabeleçam brechas na
muralha que os meios de comunicação (em especial a televisão, o
grande "aparelho ideológico" do capitalismo atual, como poderia
dizer Louis Althusser; ver Althusser 1969) constróem diariamente
em volta do capitalismo, desde que se restabeleça o diálogo
cotidiano com o colega, o vizinho e ainda o desconhecido. As
"sessões sem televisão" no bairro dedicadas à discussão e ao
desfrute conjunto da vida, a rádio e a TV comunitária, somadas aos
espaços institucionais ou individuais que se possa ocupar nos
grandes meios de comunicação de massas, assim como a conexão
oportuna via Internet, correio eletrônico, telefone, fax e carta, e o
incessante diálogo cara-a-cara são instrumentos da ação
ecomunitarista na área da comunicação. Na educação formal o
grande desafio passa pela prática de uma "pedagogia
problematizadora" (no sentido de Paulo Freire; ver Freire 1970)
através da qual professor e aluno constróem e renovam a partir de
suas vivências sua leitura crítica do capitalismo e sua inserção
transformadora no processo de libertação. Nesse terreno o espaço
chave é o dos centros de formação de professores, pois através da
formação problematizadora dos mesmos se faz possível a
multiplicação da ação problematizadora a escala ampliada
porquanto alcança-se o conjunto dos futuros alunos daqueles (que
são milhares ao longo de uma vida de docente).
Esse conjunto de espaços e ações define o perfil da maré
ecomunitarista capaz de submergir o capitalismo no passado da
história (ou da pré-história humana, como disse Marx). Mas duas
questões continuam pendentes. Elas dizem respeito aos meios para
demover os defensores irredutíveis do capitalismo, (em especial
daqueles dotados de poder militar de destruição maciça) a respeito

162
do tempo histórico disponível para que a maré se constitua e possa
agir em grau que lhe permita êxito.
À primeira questão respondo com uma analogia relativa a
outra situação limite: assim como o doente vítima de um ataque de
loucura agressiva necessita ser controlado para que na sua
insanidade não se machuque nem machuque outras pessoas, assim
também o crescimento progressivo das ações ecomunitaristas não
deve descartar de seu horizonte uma ação de coação que impeça
que os capitalistas cometam suicídio ao tempo que provocam o
holocausto da humanidade (é bom que se lembre que até Cristo
não pôde fugir da agressividade quando se enfrentou aos
mercadores do Templo). À segunda pergunta minha resposta é a
seguinte: não sei se antes conseguirá a conscientização
ecomunitarista transformar o capitalismo ou o capitalismo acabar
com a humanidade. Em todo caso creio que a nos cabe lutar para
que aconteça o primeiro e não o segundo.

Sonhando o ecomunitarismo: uma jornada de Almotásim em


Tlön

O nosso dia-a-dia está tão recheado de capitalismo que se


constitui numa necessidade vital da respiração saudável
imaginarmos a rotina do outro mundo possível que postulamos
com nossa concepção da educação ambiental (EA). Dai a breve
jornada de Almotásim na sua cidade-planeta de Tlön.
Almotásim acordou aquele dia, como quase sempre, de bom
humor. Tomou um banho quente com água aquecida pelas placas
solares e sentir como a água retornava pelos canos para o depósito
no qual (mediante uso da mesma energia) o líquido elemento era
limpado uma e outra vez para habilitá-lo a cumprir a mesma
função (até que, por recomendação médica, era destinado a usos
menores, como lavar roupas e pisos, e molhar as plantas). Na
cozinha o forno-fogão alimentado pelas baterias do prédio
carregadas com energia eólica (e submetidas de tempos em tempos
aos necessários reparos nos quais os componentes, inclusive a

163
solução química, eram trocadas e recicladas) o café da manhã
anunciava-se esfumegante, junto com os croissants que suas filhas
tanto prezavam. Como ninguém é de ferro, Almotásim degustou
um pouco da sua marmelada favorita ao tempo que ouvia no rádio-
solar o noticiário. Uma enchente havia causado sérios estragos em
Uqbar e os vizinhos afetados tinham sido levados para as terras
altas, nas quais os aguardavam os bairros já preparados de antemão
para recebé-los em caso de necessidade, onde cada prédio tinha um
stock dos suprimentos não-perecíveis essenciáis; uma equipe de
pesquisadores de Orbis anunciava para breve a colocação em
serviço de outra geração de naves interoceânicas com volume
reduzido de ruído e velocidade e capacidade de transporte
aumentadas; antes da música veio a raridade do dia: alguém viu na
casa de um rapaz um computador portátil que lhe pertencia; falou
com a moça que naquele mês assumia a coordenação da ação
comunitária no bairro e foram visitar o rapaz; rapidamente veio a
tona que por uma estranha timidez misturada de orgulho ele não
quis contar a ninguém que durante uma excursão marítima tinha
deixado cair o seu notebook, e decidiu pegar o do amigo de um
amigo, durante uma inesperada visita ao seu domicílio; o rapaz foi
convidado a se reunir no dia seguinte com a comissão que naquele
mês cuidava da ação social e a mesma deliberou que cabiam dois
encaminhamentos: aconselhar o rapaz para cuidar da sua timidez
orgulhosa (se necessário com a ajuda de alguém que tivesse
especialização na área), e convidá-lo a passar pelo depósito
comunitário do bairro para retirar dali (com o devido registro
computadorizado) um outro portátil, devolvendo o outro ao seu
dono. Almotásim abanou diante do micro-receptor e o rádio
apagou-se. Antes de sair, visitou a privada com sistema biodigestor
seco (cuja terra era esvaziada periodicamente para o devido
processo de reciclagem-reutilização), lavou as mãos (com a mesma
água usada pelo chuveiro), escovou os dentes com a mínima
quantidade de água separada para esse uso, e para beber, preparar
as comidas e lavar a louça (que depois de usada juntava-se à do
banheiro). Chegou devagar ao dormitório onde Rafaela ainda

164
dormia e lhe deu um silencioso beijo de despedida; o mesmo fez
com o casal de filhos, no seu respectivo dormitório. Pensou: as
meninas crescem (havia muito tempo que como mais uma medida
para se combater o machismo que tinha reinado por séculos, os
plurais mistos levavam a marca do feminino), e pronto teremos
que solicitar ao depósito comunitário nossa mudança para uma
casa com outro dormitório, para que algum casal recém formado
venha se instalar nesta. Abriu a porta (que, como todas as de Tlön
não tinha fechadura) e saiu ao pátio interior do prédio; um belo
jardim o acolheu com o perfume de diversas flores; (semana que
vem fazemos parte da equipe de vizinhos que deve tomar conta do
jardim); passou ao lado do playground com areia e brinquedos de
criança, olhou distraidamente para a piscina coletiva coberta que
naquela hora estava vazia, e saiu à rua pelo vão que nenhum portão
fechava. Seu relógio solar não o enganou e naquele preciso
instante o micro-ônibus laranja dobrou a esquina. Ao subir
descobriu no lugar do motorista o médico que o havia atendido no
ano passado quando torceu o joelho jogando futebol.

– Hola, como vai...


– Almutamid, acrescentou o outro, sentindo o desconforto de
Almotásim ao constatar que não lembrava do seu nome. Estou
ótimo. Precisava sair por um semestre daquela clínica pois, como
você sabe, a responsabilidade do médico é muito estressante; aqui
somente estamos para cuidar de urgências quando falha a direção
automática do veículo orientado por satélite, para ajudar idosos e
crianças a subir ou descer, e para bater papo com as passageiras;
tudo isso somente pela manhã, pois reservo a tarde para o esporte, a
leitura (sempre é necessário acompanhar as últimas novas da
medicina, além do que, você sabe, tenho uma queda especial pelos
antigos como Borges e García Márquez), e a vadiagem. Ano que
vem não sei ainda se voltarei para a clínica ou se, como outras
vezes, irei me embarcar para pescar no mar (você sabe que essa
atividade quase folklórica, por causa dos enormes rendimentos dos
criadouros de água salgada e doce, sempre me apaixonou, e que
barco é comigo mesmo, embora às vezes a tontura me acompanhe).

165
– Que ótimo que tudo esteja bem contigo; mas o que diz a tua
família quando resolves bancar o marinheiro-pescador?
– Ainda não sosseguei; prefiro ficar, sem atolar...
– Ainda não sabes o que é deveras bom!

Ambos riram de boca cheia e no momento seguinte ajudaram


a subir uma senhora com um chapéu verde, copiado, sem dúvida,
do de Miss Marple.
Almotásim sentou-se e duvidou se acionava o sistema de tela
e auriculares que lhe permitia seguir no respaldo da poltrona da
frente musicais, noticiários, programas científicos ou de arte;
optou por saborear o sol e ficar tranqüilamente vendo na janela o
mundo passar.
Poucos quarteirões depois Almotásim apertou o botão
vermelho e o micro-ônibus se deteve suave, flutuando
silenciosamente sobre os trilhos metálicos que o faziam circular
por impulsos magnéticos. Acenou com uma mão para Almutamid
que o espiava pelo retrovisor e desceu.
Pegou uma das bicicletas comunitárias que aguardavam no
posto próximo e pedalou alguns quarteirões até chegar ao seu local
de atividade naquele semestre. (Note-se que não dizemos “local de
trabalho”, porque, como todos sabem, o “trabalho” era aquela
atividade da pré-história da humanidade na qual as pessoas eram
obrigadas, para sobreviverem, a obedecer ordens, desgastando seu
corpo e mente em tarefas que aborreciam e para beneficiar uma
minoria de espertalhões que possuíam em regime de monopólio os
meios de produção). Passou pelo pórtico e buscou a sala. À sua
porta aguardava um grupo de jovens de ambos os sexos e alguns
do terceiro (como faziam questão de não ocultar de ninguém).
Abriu a porta sem chave e adentrou-se na sala cujo centro estava
ocupado por um pátio florido banhado pelo rumor suave da água
que escorria de uma fonte que imitava o antiquíssimo modelo da
Alhambra. Redes e camas romanas estavam dispostas no pátio e
embaixo das partes cobertas e limitadas por uma colunata; a elas
faziam companhia cadeiras-mesas anatômicas com ângulos

166
calculados e estofado amortecedor; numa das paredes brilhava a
tela acoplada ao computador e ao aparelho de vídeo-áudio (do qual
Almotásim decidiu usar naquela manhã somente o dispositivo que,
a partir do minúsculo microfone que cada um abotoava na sua
camisa, elevava o tom de voz até a altura necessária). As alunas
distribuíram-se, segundo o seu desejo; algumas acionaram seu
gravador de som e imagens; quase todas orientaram seus rostos
para a cadeira-mesa na qual Almotásim preferia se acomodar para
ordenar melhor as idéias (quase nunca falava andando, embora não
dispensasse desse recurso, quando as pernas assim o pediam);
contrariamente à maioria das suas colegas, raramente usava o
dispositivo de vídeo-áudio capaz de aportar a qualquer momento a
contribuição de vídeo-conferências em vivo ou gravadas, que o
satélite trazia de qualquer parte do planeta, com tradução
simultânea, ou ainda as informações da Rede, acopladas às
inúmeras bibliotecas digitalizadas ao redor de Tlön, onde eram
acessíveis instantaneamente desde os clássicos até os últimos
lançamentos.

– Como tínhamos falado no último encontro... (sentiu que o


volume estava baixo e o corrigiu proferindo as palavras “aumenta
um pouco o volume”)...como tínhamos falado no último encontro,
nosso tema hoje é o amor; é claro que seriamos imbecís se
pensássemos que é tema para uma aula, porque como alguém já
disse, o amor não acaba nunca de ser feito; mas trata-se de dar
hoje e nos próximos encontros alguns passos nessa selva...

Como outras vezes, Emma falou a primeira.

– Li como indicaste “O Banquete” de Platão e fico intrigada pelo


fato de que aquele genial grego contrapusesse de forma tão aguda
a atração sexual à cooperação espiritual, para reservar somente a
essa última o nome de amor verdadeiro.

167
René, do terceiro sexo, foi rápida/o na resposta.

– Não faltava hipocrisia ao genial Platão, pois ele foi sucessivamente


amante-amado quando adolescente e amante-amador de adolescentes
quando adulto; aliás, todos sabemos que para os gregos da época essa
era a regra e não a exceção... E Platão não deixa de contradizer na sua
prática a teoria que defende em palavras, pois em uma e outra
posição, Platão, como os outros, juntava o prazer do corpo ao do
espírito.

Várias/os alunas/os começaram a falar ao mesmo tempo e


Almotásim pediu que cada um se expressara de uma vez, para que
todas pudessem ouvir e ser ouvidos. Algumas resolveram
caminhar silenciosamente pelo pátio, para ouvir ajustando seus
pensamentos. As intervenções se sucederam. O mestre ouviu as
várias opiniões, pedindo às vezes que o expositor esclarecesse um
ou outro ponto do seu argumento, e depois decidiu que era o
momento de intervir.

– Proponho que façamos o intervalo e que ao voltarmos


focalizemos a seguinte questão: tanto no relacionamento sexual
como no trato intelectual, cada um de nós não quer ser respeitado
como pessoa? Esse respeito não é pelo menos boa parte do que
poderíamos chamar de “amor”? Em que ética poderíamos
fundamentar esse respeito?

As jovens aproveitaram a sugestão para enfileirar rumo à


porta, trocando ruidosamente idéias em pequenos grupos. Algumas
delas seguiram para se integrar às equipes que naquela semana
deviam cuidar dos pátios e da limpeza das salas ou para tomar
conta do refeitório, ou, ainda (depois do devido treinamento) para
compor as equipes de massagem, a uma das quais recorreu
Almotásim. Sentou-se na cadeira inclinada afundando a cabeça na
almofada que para esse fim servia e, por cima da roupa, hábeis
mãos relaxaram suas costas, braços e nuca. Depois chegou-se ao
refeitório onde escolheu gratuitamente, como todo mundo, as

168
porções balanceadas pelos dietéticos de plantão, dos salgados,
doces e sucos (de frutas ou hortaliças orgânicas) apetitosos e
nutritivos (e variados, para satisfazer os diversos gostos); fazendo
equilíbrio com a bandeja preferiu ficar sozinho numa mesa deserta
ao pé de uma fonte na qual nadavam peixes coloridos. Degustou
suas escolhas nos pratos e copo de madeira (havia muito tempo
que o uso do vidro tinha sido reduzido ao mínimo necessário e que
o plástico biodegradável era uma exceção destinada a usos
indispensáveis; aliás, nas indústrias todas as tarefas repetitivas ou
pesadas eram desempenhadas por robôs e aos humanos somente
cabia a função, que exerciam em rodízio, de vigiá-los). O canto da
água da fonte levou seus pensamentos para longe. Quando quis
acordar era hora de voltar para a aula. Lá já o esperavam todas.
Apenas reocupados os seus lugares três mãos se levantaram para
opinar sobre as três questões prévias ao intervalo.
Almotásim comprovou que todas concordavam quanto à
primeira e a segunda. Em relação à última alguém citou Kant
longamente.
O mestre passou a mão no queixo e falou:

– Kant é sem dúvida um dos grandes. Mas gostaria de resgatar aqui


a contribuição de um obscuro pensador que sustentou que
questionando a gramática profunda da pergunta que instaura a ética
(sem a qual ela não existe), a saber, “que devo fazer?”, e supondo
somente que, como disse Austin, pretendemos realizar atos felizes
de fala, podemos deduzir três normas éticas de validade universal
que determinam, respectivamente, que devo lutar para realizar
minha liberdade individual de decisão, que devo realizá-la de forma
consensual com os outros (para que a minha liberdade não se
oponha à deles, mas se realize junto com ela), e que ambas coisas
devem acontecer no contexto de uma vida que preserve-regenere na
sua forma saudável a natureza humana e não-humana. Ora, vejam
que quando pedimos respeito o fazemos na condição de pessoas que
queremos ser livres, conforme determina a primeira norma da ética
aqui referida; e o mesmo acontece quando reivindicamos decisões
consensuais (conforme a segunda norma), que incluem, como seu

169
nome o indica, o respeito pela nossa opinião. Dai que, vejam, no
meu entendimento a ética proposta pelo referido pensador
proporciona o fundamento último a partir do qual podemos pedir
respeito e reivindicá-lo como uma das formas do amor. Notem que
a terceira norma foi colocada nos pré-históricos tempos do
capitalismo onde, por incrível que possa parecer a vocês, a
humanidade, controlada pela minoria capitalista, dedicava-se em
nome do lucro a destruir alegremente o nosso planeta e a condenar à
infelicidade por causa do trabalho alienado à maioria dos seus
membros (incluídos os próprios capitalistas que, aparentemente, se
beneficiavam de toda aquela loucura).

Houve intensa troca de opiniões sobre esses assertos e


várias/vários alunas/os pediram as referências bibliográficas do
autor citado pelo mestre. No fim, um deles chamou a atenção para
o fato de que não só o tempo estava cumprido mas que o cansaço
das cabeças merecia o fim do encontro.
Despediram-se com acenos de mãos e Almotásim decidiu
voltar para casa caminhando. Como acontecia com todo mundo, a
casa familiar do (naquele semestre) mestre estava à proximidade
do local de atividade; e, sem qualquer custo, a família ia usando
alternada e sucessivamente quantas casas fosse preciso para
guardar essa proximidade. No trajeto e pouco antes de chegar,
deparou-se com a Escola das crianças, perdida num denso
arvoredo (rico em pássaros e outros animais), que tinha horta
mantida pelos alunos e mestres (com fins pedagógicos e também
para alimentar a panela da instituição), ginásio e instalações
artísticas variadas. Quando chegou, as crianças estavam saindo e
coincidiram com Rafaela, que acabara de deixar sua tarefa
semestral (limpadora das ruas do bairro, com ajuda das máquinas
movidas a energia solar), que era a mesma que aguardava a
Almotásim (também tentado pela agricultura) no semestre seguinte
(no qual Rafaela, com certeza, optaria por voltar a exercer como
engenheira de construção). Já os quatro juntos encaminharam-se a
pé até o Centro Comunitário (o mesmo que tinha o antes citado
depósito) para almoçar. Num estilo igual ao do refeitório da

170
Universidade onde lecionava Almotásim, desfrutaram em família
do almoço. Depois, enquanto as filhas do casal ficavam para
ajudar na limpeza da louça pois era sua vez, Almotásim e Rafaela
decidiram tirar uma soneca e fazer aquele belo amor vespertino
digno de Al-Andalus. Depois ela foi para a aula de dança árabe,
enquanto ele preferia o basquete; ambos eram praticados
gratuitamente em outras tantas instalações comunitárias do bairro.
(Como não é a primeira vez que nessas linhas é questão de
gratuidade é hora de lembrarmos nosso leitor que em Tlön há
muito tempo o dinheiro desapareceu pois a escala planetária,
graças à solidariedade recíproca entre os povos, institucionalizada
na Organização dos Povos Unidos ,OPU, foi feito realidade o
lema: “de cada um segundo as suas capacidades e a cada um
segundo suas necessidades”; cada um exerce alternadamente
funções de utilidade social e, em troca, recebe tudo aquilo que
necessita para se realizar como indivíduo; só não vale pedir
alguma coisa que sirva para desrespeitar qualquer uma das três
normas éticas acima citadas; e isso é resolvido pela assembléia
comunal). De banho tomado o casal decidiu que era hora de
assistir aquele filme que os vizinhos não se cansavam de elogiar e
que seria retirado de cartaz em breve. Cinema de graça e volta para
o prédio de casa. Como a noite se anunciava quente decidiram
compartilhar o comedor coletivo do prédio com alguns vizinhos
que lá já estavam; as filhas, que tinham desfrutado,
respectivamente de aula de pintura e clube voluntário de ciências,
preferiram ficar curtindo TV interativa para sairem mais tarde com
uma turminha barulhenta. No comedor cada um levava de casa
algumas guloseimas e bebidas que compartilhava na mesa comum.
Alguém disse que lera um velho livro no qual o personagem
principal vivia angustiado pelo medo de perder o emprego e
trancafiado numa casa protegida por grades sem fim. Várias vozes
caridosas compadeceram-se dos longínquos tempos em que a
humanidade sacrificou ao deus da insanidade e se submeteu ao
absurdo poder dos patrões. Um dos casais comentou que receberia
em dois dias amigos que habitavam do outro lado de Tlön e que

171
decidiram passar com eles essas férias (para logo ceder sua casa
aos anfitriões nas férias deles). Alguém disse que pensava usufruir
esse semestre do seu direito bianual de visitar pessoalmente (tem
muito mais graça que pela Rede) uma localidade e um museu
clássico; cogitava ir a Atenas ou à Amazônia, e ao Louvre. Antes
da meia-noite Almotásim e Rafaela decidiram que era hora de irem
para a cama. Ela ameaçou brincar com o corpo dele, e ele se
defendeu:

– Rafaela, não sou de ferro...

Então ela deu as notícias:

– Amor, este semestre decidi trocar o alojamento de férias


com os meus pais; eles chegarão na semana que vem pois
dizem que se aborrecem de ver o mar todo dia; imagina só!...
Almotásim engoliu saliva e respondeu com um
monossilábico “ahá...”, enquanto pensava “ainda bem que não
aderi à experiência dos casamentos coletivos, pois isso significa
multiplicar o número de sogras!”.

Desligaram a luz e se dispuseram a dormir.

Vivendo, produzindo, distribuindo e consumindo

Roberto levantou a cabeça do sulco e olhou a pequena selva de


plantas de tomates que se estendiam por um hectare. Também viu as
alfaces, os pimentões, os rabanetes, o milho e tantas outras coisas. E
entre uns e outros, diversas plantas silvestres e árvores frutíferas que
alimentavam os insetos e pássaros variados do lugar. Os limites entre
um hectare e outro eram marcados pelas piscinas onde se criavam
peixes. Cada uma tinha em cima o pequeno recipiente com
feromônios que atraíam os machos dos insetos indesejáveis com a
força de um imã, e ali ficavam presos para em seguida cair nas águas
tranqüilas e servir de alimento para os peixes.

172
Juan verificou que os jornais colocados embaixo da terra já
estavam quase desmanchados, e mesmo que sua tinta não
contivesse chumbo nem outro material fortemente contaminante,
decidiu que naquele pedaço teria que prescindir dos jornais no
próximo plantio. Lentamente, carregou o carrinho-de-mão que o
acompanhava como um cachorro. Esse é o último desta manhã,
pensou. Disse “vamos” e o carrinho que parecia um pequeno
caminhãozinho, o seguiu à distância de uns dois passos. Quando
entrou no galpão de distribuição, quatro companheiras terminavam
de preparar as cestas; cada uma continha verduras e frutas da
estação, mais os produtos lácteos e de padaria em quantidade
adequada segundo cada caso.
Suzana fez a recontagem: escola local, seis; clube de pintura,
uma; centro desportivo, seis; cinema e teatro, quatro; biblioteca e
cyberteca, quatro; bombeiros, dois; industrias de computadores, de
calçados, de roupas, de casas pré-fabricadas, vinte cada uma; praça
pública, seis; paradas de transporte, quatro; ...creio que estão todas,
concluiu. Deu a ordem ao robô de transportar rapidamente as
cestas para colocá-las no caminhão que esperava.

– Humberto não te esqueças de recolher os três


computadores que não vieram ontem e de trazer do depósito
comunitário os sapatos para Ângela e suas filhas e também a
roupa da equipe da padaria.
Humberto falou e o sistema elétrico colocou o caminhão em
movimento, quase sem fazer ruído. Não muito longe se
podiam enxergar alguns lugares aonde levaria sua carga, pois
a granja se situava, como muitas outras, numa cidade verde,
salpicada por unidades produtivas rurais e muitas áreas
cobertas de arvoredos e jardins, que acompanhavam os
edifícios dispersos e achatados contra o piso.

Vendo-o partir, Roberto se dirigiu ao estábulo onde as vacas


se alimentavam antes de retornar ao curral ao ar livre; ali passavam
todo o dia, salvo nos horários das ordenhas diárias. Al lado do

173
estábulo Roberto carregou outro carrinho-de-mão de adubo
orgânico (cuja base era generosamente produzida todos os dias
pelas vacas e pelos restos orgânicos de plantas e alimentos que se
compostavam na cooperativa ecomunitarista); e voltou devagar
para esparramar o adubo no pedaço de terra que cuidava aquele
dia. Ao sair encontrou Ana, que vinha buscar um pouco mais de
leite para levar para a fábrica construída no mesmo prédio da
cooperativa, onde ela e outros cooperados se encarregaram de
produzir queijos, manteiga e iogurtes (alguns misturados com
doces de frutas, que sem nenhum agrotóxico, se revezavam ao fio
das estações nas arvorezinhas do grande pomar adjacente).

– Olá Ana, alguma novidade?


– Nenhuma. Ramona, como sempre, acompanha boa parte das
suas ações com suas piadas, e opaca a leitura de livros que esta
semana ficarão a cargo de Pedro, para proveito dos que temos
nossas mãos ocupadas.
– ...Que livro estão escutando hoje?
– Estamos ouvindo uma antologia de contos de Jorge Luis Borges.
Eu gostei de um que se chama “À espera de Almotásim”, ou algo
assim.
– Se tens tempo, senta aqui que quero te perguntar algo.
– Pareces um desses homens pré-históricos do capitalismo. Sabes
que sempre temos tempo, pois trabalhamos para viver, e faz tempo
que não mais se vive para trabalhar.

Quando Ana se sentou, Roberto titubeou e gaguejou


ligeiramente. Depois tomou ânimo e com uma cara um tanto
lavada, disse rapidamente: - Este semestre eu vou trabalhar nesta
cooperativa, porque conheço a ti e o Carlos desde a escola e queria
perguntar se acham que já é o momento de eu e a Pámela termos
um filho.
Ana disse – Não te assusta, porque casualmente ela me
perguntou o mesmo faz alguns dias. Acho que já estão maduros –
E em seguida se foi.
Roberto voltou assobiando enquanto empurrava o carrinho,

174
que como sempre estava super carregado. Na terceira parada, ao
beber um suco natural de laranja com gelo (que extraía de uma
geladeirinha situada debaixo de uma das numerosas árvores que se
intercalavam na plantação), surpreendeu-se com o som de uma
campainha que chamava para o almoço. Colocou a geladeirinha no
ombro (não sabia se quem viria de tarde seria amante de suco de
laranja) e dirigiu-se ao refeitório. Decidiu banhar-se e colocar uma
roupa de repouso que havia deixado no armário do banheiro.
Limpo e refrescado sentou-se na mesa coletiva onde já se agitavam
umas trinta das quarenta comensais habituais. (Pámela decidiu não
vir almoçar justo hoje, para dar-me tempo de amadurecer a
pergunta). Escolheu um lugar ao lado de Ramon, pois gostava de
ouvir seus relatos espaciais, especialmente os referentes às suas
caminhadas para reparar a estação espacial “Simón Bolivar”, onde
de tempos em tempos prestava serviços. Mas nesse dia a voz
cantante não a levava aquele gigante de barba vermelha, mas a
miúda Valentina.

– Há que se ver o que é a Acrópole. Eu disse a Mohamed, um dos


meus maridos, que chegaríamos acima suando. E assim foi. Mas
um dos guias que nos esperava na entrada dos Propiléus trazia
consigo dois sorvetes. Depois que retomamos fôlego, nos mostrou
a oliveira que ocupa o mesmo lugar que haveria feito brotar
Atenea, muito perto do Erecteion e suas cariátides, que me
assustam desde criança, quando ali fui pela primeira vez com a
escola. A esplanada não é tão imensa quanto a recordava, mas é
suficientemente grande como para abrigar a multidão
multicolorida que a atravessa em todos os sentidos, ainda que
sempre volta-se atraída pela imponência do Partenon, que como
sabem igual a todos os templos gregos tinha frisos e capitéis
pintados com cores vivas.

Valentina seguiu detalhando a arte e alguns costumes da


Grécia clássica, alguns discutíveis e que discutiam Ramón e duas
vizinhas de mesa, enquanto Roberto se afundou em seus
pensamentos, saboreando a comida fumegante (... como eu

175
pergunto?). Quando se deu conta estava quase sozinho na vasta
mesa elíptica. Todavia ensimesmado, chegou a sua casa a poucos
metros dali. Entrou e a luz se acendeu. Se escovou os dentes e
entrou na habitação. Se despiu e se deitou. E uma música suave e
instrumental encheu o ambiente. Como não queria ouvi-la bateu
palmas discretamente e a música parou de imediato. Disse em voz
alta “15 horas”. (Hoje, como quase sempre, vou desfrutar de uma
sesta...um dos grandes inventos da humanidade como disse aquele
obscuro filósofo....Como se chamava?...bem não importa como se
chamava). Com o rosto vermelho acordou ao som de outra música
relaxante, interrompida a cada dois minutos pela voz doce que
anunciava as 15 horas.. Bateu palmas e a voz desapareceu. Ouviu a
música enquanto se vestia. Olhou-se pela última vez ao espelho,
passou pela porta (e a música também cessou). No portão da
cooperativa, e como sempre pontual, chegou um microônibus
laranja. Se deteve e arrancou silencioso impulsionado por uma
bateria elétrica que durava dois dias e se recarregava na central
solar. Quando estacionou perto da fábrica onde trabalhava Pámela,
o estômago começou a lhe incomodar. Ao aproximar-se do
edifício alongado ela o chamou.

– Estou voltando. Depois do almoço fui ver um filme estupendo


com a Lucia.
– Ah sim, de que se tratava?- perguntou, ganhando tempo.

Ela lhe contou detalhadamente a estória de amores


desencontrados e tele-transportes moleculares para um e outro lado
do planeta distante na qual as personagens evoluíam. De repente
parou e o convidou a jogar boliche. A cada bola que Pámela
jogava ele a olhava, juntando força. Ela se concentrava no jogo e
ria-se com seus erros. Decidiram voltar caminhando quando a
noite começava a cair. Na cooperativa, Raimundo e Soraya os
convidaram a jogar tele-baralho. Se olharam contrariados, mas não
podiam se negar. Algumas horas depois voltaram para casa.

176
– Lar doce lar- suspirou Pámela estou cansada e vou direto para a
cama.
Ele bebeu um suco olhando a tela silenciosa da teve, onde uns
animais desconhecidos se perseguiam mutuamente; quando voltou
disposto a fazer-lhe a pergunta ela roncava suavemente.

Quando despertou Pámela tinha saído, deixando em seu


lugar uma borboleta de seda. Ele a acariciou e sem tomar café se
dirigiu ao edifício da padaria. Quase junto com ele chegaram as
outras cinco que compunham essa semana a equipe de três homens
e três mulheres. Como de costume as outras lhe pediram que ele se
encarregasse dos croissants e Roberto não se fez de rogado. Todos
ligaram os instrumentos movidos a energia solar e/ou eólica e
fizeram as primeiras manipulações com farinha “branca como uma
garça branca”. (Roberto riu dessa ocorrência poética). Julia se
apresentou oferecendo-se para ler-lhes um livro, pois essa era sua
tarefa das manhãs nesse decário. Olharam-se interrogativamente e
lhe disseram que não. Julia se foi com sua voz à outra parte.
Elegeram uma seqüência musical e o ambiente se encheu de sons
envolventes. Depois se ajudaram mutuamente, intercalando os
trabalhos individuais de suas respectivas preferências. A manhã
estava bem avançada quando todos os pães, tortas e biscoitos
estavam dispostos e crescendo lentamente, até a hora fixada pelo
robô para assarem no forno. Às seis abandonaram, conversado, a
padaria. Roberto voltou para casa e ao ver sua luz acesa deu-se
conta que Pámela já tinha voltado.

– Pámela, quero tomar banho contigo...

Ela saiu envolta em uma toalha azul.

– Sinto muito, mas acabo de tomar banho.

(É uma pena porque no banho, quem sabe a pergunta teria


fluido mais facilmente). Roberto se banhou e quando terminou de
vestir-se Pámela o esperava na porta, respirando o perfume dos

177
laranjos em flor. Juntos se dirigiram ao comedor. Serviram-se na
bandeja algumas das delícias variadas que lhes eram oferecidas.
Ela quis sentar-se perto de Julia na mesa grande, mas ele preferiu
outra pequena, situada num lugar menos iluminado.

– Sabes hoje na indústria aconteceu algo estranho...

Roberto a olhava juntando coragem. – Como assim


estranho?

– Sim, um dos robôs trancou e só sabia dizer: “Robô número 32,


montador de computadores”. E o mais incrível é que Adela, que
esta semana me acompanha pelas manhãs na vigilância dos robôs,
em vez de rir, começou a gritar com ele. Imediatamente pensei que
Adela estaria com algum problema pessoal, pois há séculos que
ninguém se irrita nem se estressa com o que na pré-história
chamavam de trabalho. Enquanto eu dizia ao robô que necessitava
me acompanhar até a oficina de consertos, Adela começou a falar.

Roberto a olhava engolindo saliva e pensando que seria bom


que um trem passasse por cima de Adela (coisa que sabia ser
impossível, pois fazia muito tempo que todo veículo detectava a
prudente distância qualquer obstáculo, a fim de frear a tempo, ou
desviar-se, de acordo com o mais indicado).

–... Acontece que Cristina, a encarregada do turno deste mês, fez


uma observação sobre a forma como Adela distribuía as tarefas
dos robôs, e Adela sentiu-se ofendida. Imagina, disse-me, a
Cristina é a segunda vez que faz um turno trimestral e eu já faz
quatro vezes que ali presto serviços.

Roberto pensava: Estou me lixando para a Adela e seus


robôs, e a chata da Cristina!

– Então eu sugeri que na próxima reunião de toda a equipe, este


Chedia, ela fale sobre seu mal-estar e exponha o porquê de sua
maneira de programar a tarefa dos robôs. E como vi que se

178
acalmava, lembrei-a que Cristina partiria em breve para dar aula
em uma escola, ou para ser aeromoça, e assim Adela ver-se-ia
livre de suas críticas, que inclusive, completei, talvez tivessem
algo de sensato.

A comida transcorria prazerosamente, mas a história de


Adela continuava, enquanto Roberto esperava uma pausa em vão.

– ...Finalmente Adela concordou comigo e também obteve consolo


com a possibilidade de pedir transferência imediata...sabes como
ela gosta de cuidar de crianças no berçário...

Crianças, pensou Roberto, agora ou nunca. Mas Pámela já se


levantava para deixar a bandeja onde uma equipe das comensais
faria seu trabalho semanal de vigiar as máquinas de limpeza.
Voltaram para casa abraçados. Pámela filosofava, sob uma lua
muito visível em plena tarde – Não sei como podiam viver aquelas
pessoas que pagavam por tudo isto que hoje está a nossa disposição:
casa, comida, transporte, roupas , viagens, esportes, livros...
Distraidamente Roberto tirava a roupa e quase sem pensar
decidiu que amanhã era outro dia e que a pergunta podia esperar
mais algumas horas. Afinal das contas dentro de dois dias, no
Gandhia daquele decário, aconteceria a festa quinzenal da
cooperativa; durante a manhã haveria assembléia para fazer o
balanço e afinar os projetos (segundo a norma dos três R: revisão,
retificação e re-impulso); depois o grande almoço coletivo, a sesta,
e à tarde grande baile ou cinema ou teatro no salão cultural da
cooperativa. A noite era para se vadiar pela cidade vizinha,
recolhendo nas árvores que bordejam as ruas, algum pêssego, ou
ameixa, ou uma laranja doce, até chegar à casa de algum amigo ou
no centro de diversões escolhido.
Já estava metido na cama quando Pámela apareceu coberta
somente por um brevíssimo camisão azul transparente. A
penumbra realçava seu perfume. Escorregou para abaixo do lençol
e sussurrou:

179
– Roberto, como escolhemos ter um único marido e mulher, não
achas que está na hora de termos um filho?

Ato seguido lhe deu um beijo, enquanto lhe perguntava por


que havia suspirado daquela forma.
Muito sério Roberto começou a tirar-lhe o camisão,
enquanto lhe dizia: para não perder tempo, coloquemo-nos já a
caminho; hoje meus preservativos dormirão o sonho dos justos no
criado mudo.

A Escola Ecomunitarista

Yasmín e Romeo, que assim se chamavam os filhos de


Almotásim e sua esposa, partiram entusiasmados, como de
costume, para a Escola. Frequentavam o que em outros tempos se
chamou o Ciclo inicial de ensino de segundo grau (ou, em alguns
países, para homenagear a Aristóteles, o Licéu). Enquanto
caminhavam repassavam as diretrizes pedagógicas fundamentais
que as educadoras lhes tinham resumido a uma e outro, juntando
grupos de anos diferentes, aquele decário: 1) vincular os conteúdos
de aula a questões da realidade sócio ambiental vigente, de tal
forma que os mesmos sirvam para desenvolver uma compreensão
profunda e reflexiva dos mesmos e fazer possível uma tomada de
posição crítico-transformadora a seu respeito; 2) reservar espaços
para a discussão dessas questões, sem ter medo de que isso
signifique se afastar do tratamento "técnico específico" dos
conteúdos, pois sem isso, estes caem no vazio (para, então, perder-
se irremediavelmente depois de um curto período de tempo); 3)
fundamentar o tratamento "técnico" dos conteúdos e a discussão
das questões sócio-ambientais a eles vinculadas, na investigação
experimental, de campo e/ou bibliográfica, levadas a cabo pelas
alunas com a orientação das educadoras; 4) incentivar o trabalho
coletivo e não a concorrência individualista entre os alunos, e o
diálogo professor-alunos como instrumento da "re-construção" dos
conhecimentos e posturas; 5) incentivar as ações de reivindicação

180
e de proposta dos alunos no âmbito da Escola, do bairro da Escola,
o bairro de residência do aluno, a cidade, o país e o planeta em sua
totalidade (em matéria de produção-distribuição-consumo,
urbanismo-higiene, alimentação, moradia, transporte, saúde,
sexualidade, e demais temas de ecologia e/ou de relevância pessoal
e/ou sócio ambiental), exercitando o pedido de contas aos
administradores dos diversos níveis; 6) promover o diálogo e a
discussão na aula e fora dela com pessoas dotadas de experiência
vital ou especialização particularmente relevante (como, por
exemplo, agricultoras, pescadoras, servidoras da saúde, operadoras
de robô e meios de transporte, idosas, etc.) diretamente
comprometidas nas questões estudadas-discutidas, e, 7) realizar
ações coletivas para resolver, pelo menos parcialmente, as
questões sócio-ambientais estudadas. Yasmín e Romeo
destacaram, respectivamente seu entusiasmo pelas diretrizes "4" e
"7". Yasmín recordou a seu irmão que estavam muito avançados
nesse itinerário (que conheciam desde a etapa anterior de
escolarização e que ela tinha revisado o decário passado com o
tutor que a acompanhava pessoalmente para guiá-la em suas áreas
de maior interesse que eram a pintura e a computação), e que nesse
dia discutiriam a vistoria sócio-ambiental realizada no bairro da
escola. Tinham enfocado situações que abarcavam todas as
dimensões detalhadas na diretriz "5" e agora, com a ajuda de duas
educadoras, a uma mais versada em matemática e estatística, e o
outro em estudos sócio-comunitários, começariam a tarefa de
interpretar os dados, aprofundá-los com conhecedoras, e delinear
as ações corretivas exigidas pela diretriz "7'. Como principais
problemas tinham detectado a existência no bairro de um grupo de
jovens que fumavam uma estranha erva que os deixava aturdidos
por um tempo, a falta de cuidados para com as árvores e jardins
em um dos complexos habitacionais, e o atraso de algumas
servidoras temporárias daquele semestre no posto de saúde. Agora
se trata de quantificar os achados e de discutir suas causas e
significação; é nessas atividades que a Matemática, que antes me
resultava tão chata e abstrata, me encanta e começa a ficar na

181
minha cabeça – acrescentou Yasmín.
Quando sua irmã o permitiu, se detendo um instante para
respirar, Romeo lhe lançou com a cara radiante: – "Hoje toca-nos
realizar um Julgamento Simulado, e eu serei um dos personagens
centrais. O tema é o de um casal em que um de seus integrantes,
(eu), só quer seu próprio prazer, sem lhe interessar o de seu
companheiro ou companheira. Nossa educadora recordou-nos que
na pré-história e vencendo incompreensíveis tabus, um obscuro
pensador pediu à escola uma educação sexual que, em base às três
normas fundamentais da ética, respeitasse o auto-erotismo da
masturbação, ainda que promovendo a evolução para o
heteroerotismo, igualmente válido tanto em sua variante
heterossexual como na homossexual, sempre que se baseie naquelas
normas, à luz das quais o casal deve proporcionar-se reciprocamente
um prazer compartilhado, sem vergonhas nem restrições.”
Impaciente Yasmín cortou-o: – “Deve ser o mesmo que
recomendou as seguintes medidas de educação sexual básica, que
comentamos no ano passado: a) As mães não têm por que ocultar a
suas filhas suas partes genitais nem fazer mistério sobre seu uso;
explicações adequadas a cada idade devem incluir com
naturalidade os órgãos genitais na dinâmica do corpo como um
todo, e ainda na elucidação do processo de gestação e nascimento
das meninas; esta conduta significa responder com naturalidade à
curiosidade explícita ou implícita manifestada pelas meninas, sem
cair em exageros que levam a que algumas meninas (não
raramente filhas de pessoas com estudos em psicologia) realizem
uma verdadeira “fixação”, se referindo obsessivamente às questões
sexuais; b) desde a mais tenra infância contextualizar o vínculo
sexual dentro do universo do predicado pelas duas primeiras
normas da ética, a saber, o respeito pela liberdade de decisão
individual e a via do consenso livre como forma de resolver
qualquer questão, incluídas as de caráter sexual, atinente a nossa
relação com Outro; c) aplicar também essas ideias na atividade
escolar (por isso, entre outras coisas, no verão costumamos ter
aulas nus); também recomendou que para os púberes e

182
adolescentes, às práticas anteriores devia se somar o uso de sessões
de vídeo onde a partir de filmes eróticos possa se explicar e se
discutir a vivência concreta do heteroerotismo (o decário passado
vimos uma muito boa, e outra da época da pornografia da pré-
história que era ao mesmo tempo cruel e ridícula)”. A jovem fez
um esforço de memória, hesitou e depois acrescentou: – “Acho
que para os adultos recomendava aquele homem o uso desses
mesmos filmes e a implementação de outras atividades em grupos
de (re)educação sexual nos centros trabalhistas, instituições
educativas, clubes desportivos, sociais e artísticos, e demais
instâncias da vida individual-comunitária”.

– Deixe-me terminar, exclamou Romeo. Eu precisamente


interpreto um personagem que se parece a um desses ridículos
seres da pornografia pré-histórica; peço e exijo de manhã, de tarde
e de noite, sexo oral; mas quando me sinto satisfeito me viro na
cama e me disponho a dormir como uma pedra... Se visses o bem
que o faço! ... Já algumas das colegas que anteontem espiavam o
ensaio, não puderam conter as gargalhadas… E já queriam
começar a opinar, como cabe nestes Julgamentos Simulados, para
que se chegue às conclusões pertinentes.

Ambos se internaram no frondoso arvoredo, salpicado pelas


hortas escolares que eles e as docentes e servidoras públicas de
plantão atendiam, para alimento da panela da escola e como palco
de muitas práticas de ensino-aprendizagem sobre os mais diversos
tópicos de matemáticas, língua, geografia, biologia, física, química
e algumas outras áreas; na grama e nas árvores circulavam,
despreocupados, animais variados, que a convivência pacífica ao
longo de séculos tinha feito outra vez plenamente confiantes nos
seres humanos, que na pré-história lhes tinham feito tanto dano.
Nesse momento juntaram-se a elas Atahualpa e Eric; o
primeiro, que já terminava o Segundo Ciclo, acompanhado de seu
robô porta-bagagens, porque nesse dia, excepcionalmente, se
dirigia carregado à escola. Olhando-o interrogativas, obrigaram
Atahualpa a explicar-se:

183
– Tenho o protótipo do novo robô que montei para ajudar as
poucas pessoas que a medicina não pode curar da cegueira. Como
vem, é um robô pequeno, e lhes acrescento que tem rodas, que
acompanha a pessoa por onde quer que vá, em sua casa ou fora
dela, e quando esta lho pede, lhe descreve tudo o que vê ao seu
redor, ou lhe lê um livro, ou lhe conta um filme em exibição…
Agora, lhes confesso que tanto ou mais que esse robô, me atrai a
atividade que este semestre me ocupa pelas tardes nas quais não
pratico esportes ou não faço música, que é ajudar a cuidar os
animais órfãos ou doentes que se encontram na cidade e seus
arredores.

No entendimento da conversa, dois coelhos vieram a lhe


cheirar os sapatos, e um pavão brilhante começou a caminhar a seu
lado. A floresta e os pomares deram lugar a uma explanada repleta
de jardins floridos e fontes cantadoras que imitavam às de
Versalhes; perto do centro da grande explanada apareceram os
campos desportivos cobertos e descobertos, e ao redor da
explanada e cortando-se contra o limiar da floresta, distribuíam-se
os diversos edifícios escolares. Ao chegar à fonte central, onde um
deus arreava uma carroça puxada por quatro poderosos cavalos
que parecia que sairiam da água a qualquer momento com seus
lombos gotejantes, cada uma das jovens seguiu seu caminho para o
edifício que a esperava. O mesmo fazia uma centena de túnicas
que pontilhavam de branco aquela cena colorida.

O Amor Libertário

A reunião estava animada; a sala era um quadrado de uns 10


metros de largura e em uma das paredes uma cascata descarregava
seu suave rumor de água. Algumas pessoas estavam acomodadas em
sofás, outras em espreguiçadeiras que lembravam as romanas, outros
preferiam as redes que ficavam penduradas entre as samambaias
gigantes, iluminadas pelos vitrais. Akira falava com a voz aveludada:

184
–... Nosso grupo amoroso não teve novidades este semestre,
ninguém quis sair e ninguém foi convidado a entrar; como vocês
sabem, por acaso somos quatro mulheres e quatro homens; temos
sob nossos cuidados cinco crianças, das quais, aqui estão as
maiorzinhas que são Atahualpa e Eric; continuamos vivendo em
um edifício de dois andares, no qual as adultas têm seus quartos no
primeiro andar e as crianças no segundo; como todas nos amamos,
às noites, recebemos em cada quarto das adultas, qualquer um ou
uma das habitantes do primeiro andar; não constatamos casos de
relação homossexual, mas tampouco nos opomos a esta vivência;
as crianças estão muito contentes de ter quatro mães e quatro pais,
porque sempre há um adulto que tem tempo de cuidá-las,
acompanhá-las no que necessitem e orientá-las no que faça falta;
cada uma sabe de que mãe nasceu, mas não quem é seu pai, algo
que só um teste de DNA poderia determinar, em caso de
necessidade, para evitar futuras relações consanguíneas que
poderiam ter efeitos nocivos; elas se sentem muito bem assim,
porque cada mãe é carinhosa e dedicada com cada uma das quatro
crianças; e mais ainda o são os pais, ignorantes da paternidade
biológica que a cada um corresponde. Há poucos días, na
curiosidade de seus seis anos, Nguyen perguntou porque sua
amiguinha Carina tinha só uma mãe e um pai; respondemos que
suas mães eram livres para escolher o número de formadores do
matrimônio, mas que ele deveria sentir pena de Carina, porque ela
tem apenas dois pais para cuidá-la, enquanto que ele tem oito.

Os risos foram unânimes.

– Pois nós seguimos tão conservadores como eram boa parte dos
humanos na pré-história - interrompeu Almotásim - por hora,
Rafaela e eu nos bastamos.

E como estavam sentados um ao lado do outro no sofá, se


deram as mãos. Em suas respectivas espreguiçadeiras, suas filhas
não contiveram o sorriso e Yasmín disse quase sem pensar: “Se às
vezes uma mãe já é difícil de suportar, imagino o que será ter que
agüentar quatro ao mesmo tempo”.

185
Almotásim pensou em silêncio, que fazia pouco, havia dito
algo muito parecido para sua mulher, sobre as sogras (“Sem
dúvida que algo do meu caráter foi transmitido por herança”).
Então, um dos integrantes do grupo matrimonial de Akira,
lançou um desafio: – Não vão me dizer que nunca se sentiram
atraídos por outras pessoas nestes anos!
Rafaela reagiu rápido: – Claro que sim, inclusive fizemos
amor com outras pessoas, tanto Almotásim como eu. As crianças
sabem, mas cada vez que isso ocorreu, concluímos que o sexo que
fazemos os dois juntos é muito melhor, e também que a vida é
muito mais do que sexo, porque até agora não encontramos em
ninguém essa cumplicidade de opiniões e sentimentos que um
olhar basta para comunicar.
Então, interrompeu a voz alegre de Ingmar: – O mesmo digo
do amor que me une com Miguel, com a diferença de que ainda
não sentimos a necessidade de adotar um filho. Os dois homens
abraçaram-se e beijaram-se suavemente na boca.
– Pois não sabem o que perdem - saltou Martina - Erika e eu, duas
mulheres bonitas e completamente apaixonadas uma pela outra (os
aplausos das presentes foram estrondosos) faz mais de dez anos
adotamos essa preciosidade que aí está.
Lumumba sentiu-se incômodo, mas seus enormes olhos
negros lançaram um lampejo de alegria. Yasmín tomou-o pelo
queixo e olhando no fundo de seus olhos alfinetou: – Sorte a tua
Lumumba, pois és fruto de uma escolha e não de uma distração de
algum contraceptivo. Lumumba foi o primeiro a rir, ficou de pé e
agradeceu com um amplo gesto imitando um daqueles que havia
visto fazer no teatro aos três mosqueteiros na presença da rainha.
– Pausa para o chá ou os sucos! – gritou Andrea precedida por
uma mesinha robô que trazia o anunciado, deslizando sem ruído-
Então, os sofás, redes e beliches, se esvaziaram e mãos gulosas se
aproximaram da mesa robô que dizia com a voz entrecortada e
metálica – Não sujem as almofadas porque se vocês o fizerem, sou
eu quem vai ter que passar horas esfregando-as depois!

186
Comunicação Simétrica

Naquele semestre Carolina decidiu prestar seus serviços na


TV. Como todas as de seu gênero, era comunitária e poderia ser
sintonizada em qualquer parte do planeta. Contudo, fazia um
século que, depois de uma longa discussão e plebiscito planetário
através da internet, as comunidades decidiram que haveria um
horário de cento e vinte minutos diários em que todas as TVs
estariam interligadas para transmitir o mesmo programa, que
informava o que ocorrera no planeta no tempo transcorrido durante
sua última volta. Claro que para se evitar predomínios indesejáveis
esse programa ficava a cargo, em rodízio, de emissoras
distribuídas em todas as zonas da Terra (e ainda, daquelas fora da
Terra, onde havia concidadãs). Naquela semana a TV para onde se
dirigia Carolina fazia parte da equipe de sua região que preparava
o jornal mundial diário. Na próxima semana o turno ficaria a cargo
de um grupo de emissoras localizado ao sul do que havia sido a
Índia. Carolina apressou o passo e entrou no salão comunitário; ali
se aglomeravam num auditório barulhento umas 100 pessoas, cujas
idades iam dos sete aos cem anos (no mínimo, pois a essa idade se
parava de contar e a cada ano subseqüente voltava-se a festejar o
centenário do bem-aventurado).

Carolina pensou que a assistência não estava mal para uma


atividade que era livre e que alternava-se obrigatoriamente a cada
dia, de tal maneira que cada um dos presentes não havia estado ali
na véspera e não voltaria a estar no dia seguinte. Carolina
convidou a todas a contemplar a parede-tela que estava atrás do
tablado e disse -Vejamos primeiro o que os membros da nossa
própria comunidade nos enviaram. Depois veremos o que a nossa
equipe coordenadora de plantão julgou mais interessante daquilo
que havia chegado de todo o mundo.

A tela iluminou-se e apareceu a lista de temas da comunidade:


O robô construido por Atahualpa (muitas mãos aplaudiram), o
tribunal simulado sobre o amante egoísta (houve tantos aplausos

187
quanto antes), a reunião sobre as distintas formas do amor
matrimonial (velhos e jovens aplaudiram igualmente), a distribuição
dos produtos de uma granja agroindustrial (ouviu-se vozes que
protestavam: “Isso já é por demais sabido!”), o relato de Franz sobre
sua última estadia na estação espacial Simón Bolívar (muita gente
apoiou ruidosamente), as propostas da última assembléia comunitária
para melhorar a opção pela “embalagem zero” (foi o mais
aplaudido)... e...o caso do garoto que se apropriou de um laptop
alheio (houve escassos aplausos). Carolina seguiu dizendo - Como
cada uma de vocês já viu na parede-tela de suas casas esses filmes,
proponho que se abra um turno de propostas argumentadas para que
possamos indicar os três assuntos nossos que necessariamente farão
parte do próximo jornal; não é preciso repetir, mas cada uma de vocês
lembra que cada uma das dez emissoras que participa esta semana da
elaboração da programação mundial incluirá três temas relativos à sua
comunidade; depois votaremos aqui um tema mundial que se unirá a
pelo menos outros nove indicados por nossas concidadãs das outras
nove comunidades.
A discussão foi sempre argumentada, mas às vezes,
acalorada. Finalmente houve unanimidade. O robô de Atahualpa
poderia ajudar milhões de pessoas; o “Embalagem Zero” era uma
busca constante fazia séculos, mas não estava demais informar as
novidades sobre a eliminação das embalagens que a comunidade
havia instrumentado no último ano; essas experiências poderiam
interessar a todos os terráqueos. Por último e depois de uma
disputada votação, pois aqui não houve consenso, e o julgamento
simulado ganhou por poucas mãos ao relato de Franz.
Muito bem, disse Carolina, - agora passemos as notícias mundiais:
estabelecimento de uma base em Karnak, o mais longínquo planeta
até então povoado por seres humanos; inundações na África, e o
funcionamento das medidas solidárias previstas para o caso; Uruguai
campeão do mundo de futebol depois de 354... não...357 anos; e...
furor da nova dança que vem do onde fora o Japão.
Desta vez a discussão foi árdua e complexa. Os argumentos se
sucediam, ora destacando os méritos humanos da notícia, ora sua

188
contribuição para a crítica e autocrítica indispensáveis para a
renovação-conservação do ecomunitarismo, ora o caráter inusitado
de um acontecimento. Ao final e entre sorrisos, ganhou a exótica
notícia da façanha uruguaia; não era todos os quatriênios que uma
região habitada por 10 milhões de pessoas dava a luz uma equipe
capaz de consagrar-se campeã do mundo; ali faziam-se visíveis as
qualidades eternamente necessárias para o desenvolvimento
humano: a garra, a dedicação solidária e a vergonha.
– Muito bem, disse Carolina. Se ninguém quiser acrescentar mais
nada, a assembléia está terminada por hoje; me comunicarei
imediatamente pelo meu laptop-TV com as colegas coordenadoras
das outras emissoras e começaremos a montar o jornal.

O centro foi se esvaziando aos poucos, enquanto Carolina se


acomodava para fazer o prometido, acompanhada por sete crianças
curiosas.

A política de todos

Thaleb revisou um a um os argumentos que havia organizado


em seu laptop, com base nas notícias da TV, nas suas pesquisas na
internet, nas duas discussões anteriores na assembléia comunitária e
nos resumos da lista de discussão. Imprimiu em duas páginas o
resultado de seu trabalho de dois meses e se dirigiu ao Centro
Comunitário Maior. Umas cinco mil pessoas lotavam aquele espaço
multiuso, com divisórias corrediças muito leves e feitas do novo
material que havia sido inventado recentemente, que permitiam
dividir o grande Centro em outros vários espaços menores, para
adequá-lo ao público de cada atividade cultural, desportiva ou
política. Ao entrar recebeu, como cada um dos presentes, a mini-
câmera com microfone que abotoou no peito; a participação era
voluntária e a idade mínima para participar era de 12 anos. Buscou
algum conhecido na multidão e viu muitos; por fim sentou-se ao
lado de Almotásim e sua mulher. Não havia passado nem dois
minutos de sua chegada quando se escutou um pigarro. Iluminaram-
se os telões que estavam distribuídos ao redor das paredes e os que

189
estavam pendurados no enorme teto oval digno de Niemeyer.
– Olá, como sabem, sou Noemi, uma das designadas pela
assembléia anterior para coordenar esta última reunião depois da
qual sairemos rumo a nossa casa para votar...

Cada tela mostrava duas imagens, uma mais distante que


captava o estrado giratório no centro do salão oval onde havia seis
pessoas bem acomodadas em confortáveis poltronas, e a outra, em
primeiríssimo plano, pois saia do peito do orador ou da oradora.

–... cada um recebeu, através da lista de discussão os principais


argumentos com os prós e os contras provindos da assembléia
anterior. Mas nunca é demais repetir o que temos que decidir em
escala planetária (e com os votos das concidadãs que estão vivendo
definitiva ou provisoriamente em outros astros) e quais são os
principais argumentos a favor do “sim” e do “não”. A pergunta é a
seguinte: “Você acredita que das atuais quatro horas diárias que
cada um tem que dedicar diariamente as atividades produtivas
regulamentadas comunitariamente, temos que passar para três?”.
Resumindo, devemos dizer se acreditamos que devemos produzir
uma hora a menos por dia. Os principais argumentos a favor do
“não” são os seguintes: a) segundo os cálculos realizados, essa
redução de uma hora, nas atuais circunstâncias, levaria a não poder
garantirmos a renovação bianual dos robôs caseiros, nem a visita
bianual a um Museu e uma região distante, nem o expediente em
três horários de funcionamento diário nos Centros multiusos,
suficientes para satisfazer a todos os interessados; b) também se
argumenta que essa redução pode ser prejudicial à formação do
caráter dos jovens, que acreditariam que tudo pode ser conseguido
sem esforço. A isso, respondem os partidários do “sim”: a) podemos
viver perfeitamente com robôs que sejam trocados a cada quatro
anos; que, se fizer falta, o direito de visitar um Museu e uma região
distantes, poderiam se concretizar a cada três anos; e que se os
Centros não tem capacidade para todos, deverão revezar, e ninguém
morrerá por não poder usar o Centro durante as 24h do dia; e em
relação a “b” argüi-se que argumentos assim eram usados na pré-
história, quando nossos antepassados foram obrigados a trabalhar

190
até 16 horas diárias e tiveram que batalhar por séculos para reduzir
pouco a pouco a jornada de trabalho; e, em segundo lugar, sustenta-
se que o que forma o caráter das jovens é a boa educação caseira e
comunitária e não uma hora a mais ou a menos de atividade diária.

A seguir, abriremos espaço para que falem em número igual,


e de maneira alternada, partidários do “sim” e do “não”.
Rapidamente, várias mãos se levantaram. Gopar, que se
identificou como do terceiro sexo, insistiu que o importante não são
os robôs, mas o viver, e que uma hora a mais de liberdade para se
fazer algo, ou mesmo para ficar deitado numa rede olhando para o
céu, era uma hora a mais que a vida ganhava. Respondeu-lhe Leonor,
feliz por ser mulher – disse-, lembrando que produzir para os outros e
para si mesmo é uma atividade vital, em todos os sentidos da palavra
– e enfatizou o termo “vital”. Veio então Carmelo – homem, afirmou,
em meio ao riso geral – e destacou que a abertura dos Centros durante
os três turnos era um espaço a mais oferecido à liberdade de escolha,
e que havia em todo o planeta (e mais além) gente com as mais
diversas preferências nas manhãs, tardes e noites, tanto para produzir
comunitariamente como para fazer arte, praticar esportes, divertir-se,
ou, simplesmente, dormir. Augusta enfatizou que achava graça na
objeção moralista pré-histórica que acusava as jovens de preguiçosas,
pois parecia que as que defendiam essa tese não soubessem que havia
séculos os humanos não viviam mais submetidos a normas externas,
uma vez que todas as obrigações são assumidas consensualmente (e
quando é preciso, em casos excepcionais, com o voto de maiorias
absolutas) a partir do exercício de nossa liberdade de conceber e
avaliar argumentos; se me lembro bem -completou- essa conduta data
da obra de um obscuro pensador que viveu entre os séculos XX e
XXI da antiga era cristã.
Thaleb pediu a palavra para acrescentar outro argumento a
favor do “sim”, que se ligava a um dos argumentos centrais antes
citados, mas tinha sua especificidade: tem gente – disse– que está
tão dependente dos robôs, que se nega a carregar pesos e se
esquece de praticar esportes, e essa falta de exercícios será, sem

191
dúvida, nociva a sua saúde; por isso – concluiu – temos que
incentivar uma diminuição de nossa dependência em relação aos
robôs e incentivar um maior uso de nosso corpo, sem cair, é claro
– arrematou – nos exageros criminais da pré-história capitalista.
Um dos robôs que servia refrescos no centro, passou naquele
exato instante do seu lado, e seu comentário foi breve e metálico:
“reacionário!”. Sua exclamação vazou pelo microfone de Thaleb, e
o Centro explodiu numa grande gargalhada. Thaleb voltou a
sentar-se sorrindo, enquanto o robô rapidamente se afastava,
fazendo-se o desentendido.
E assim sucederam-se as oradoras por quase duas horas.
Então Kimal, outra coordenadora daquela sessão, perguntou se
todas as presentes sentiam-se suficientemente esclarecidos.

– Que cada uma se pronuncie através de seu microfone por “sim”


ou por “não”, deixando claro que trata-se de dizer se se considera
ou não suficientemente informado, e que não falamos de seu voto
a respeito do que temos que decidir, pois isso cada um fará em sua
casa. Um murmúrio percorreu o salão oval, e, imediatamente,
grandes números apareceram em todas as telas. Quase cinco mil
pelo “sim”, uns poucos pelo “não”. Bom, disse Kimal, acredito
que o resultado está claro, bom retorno a todas e boa votação.

Thaleb se despediu de Almotásim e Rafaela, trocando,


entretanto, algumas impressões sobre o tema em discussão, e
perguntando pelas novidades das filhas do matrimônio. Quando
chegou em casa ligou seu laptop, acessou o site da votação,
preencheu seu código de usuário e senha e em seguida, sem vacilar,
optou pelo “sim” e confirmou seu voto. Dormiu umas duas horas e
acordou a tempo de acompanhar na TV–computador interativo o
anúncio do resultado do plebiscito planetário. A participação havia
sido de 96% dos que estavam habilitados para votar; mais de 85%
dos votantes optaram pelo “sim”, pouco menos de 10% foram
favoráveis ao “não”, e o resto se absteve. “Nunca entenderei a esta
altura dos séculos aqueles que não votam ou se abstém em assuntos

192
como este”, pensou Thaleb. E como tinha desativado seu robô vários
dias por semana, dirigiu-se à geladeira para pegar uma cerveja e
comemorar o triunfo que compartilhava com oito de cada dez
humanos espalhados pelo planeta inteiro e alguns astros mais além.
Pela grande janela aberta de seu living entrava o inconfundível e
delicioso aroma dos jasmins e o eco de músicas mais ou menos
próximas que celebravam o triunfo. Enquanto se banhava
rapidamente para sair a festejar com amigas e desconhecidas, Thaleb
pensou que dois decários depois tocava decidir se queriam ou não
mudar as antigas bananeiras das calçadas do bairro por laranjeiras;
com a diferença que nesse caso, os únicos que votariam via internet
seriam os enfermos e os ausentes temporariamente, pois a maior
parte dos votos seriam recolhidos diretamente ao fim da assembléia
realizada no grande Centro Comunitário.

Além da Terra

O grupo estava num grande anfiteatro lotado, ao ar livre,


escavado na rocha para servir de Centro Comunitário sem paredes
nem teto, porque em Karnak não chovia mais de dois decários por
ano (sempre rigorosamente nas mesmas datas), e nunca sopravam
grandes ventos. Acima de suas cabeças três grandes luas, batizadas
em homenagem à Terra como Atlântica, Pacífica e Índica,
flutuavam com uma cor violeta clara. Igual ou parecido espetáculo
se vivia em milhões de Centros de uma dúzia de Planetas que
flutuavam nos confins da Via Láctea e fora dela.
Um poderoso telescópio coroava a montanha vermelha mais
próxima ao anfiteatro. Então uma voz disse - Atenção que a
imagem está chegando.
Uma tela gigante apareceu com vários astros flutuando
silenciosamente em um fundo negro. O sistema de indicação
visual-sonoro assinalou e nomeou os seguintes: Sol, Mercúrio,
Vênus, Terra, Marte. Então o sol tornou-se um flash que engoliu
os planetas nomeados e se prolongou além de Marte; uma mancha
amarelada parecida com uma nuvem ocupava o lugar que havia

193
sido o daqueles planetas separados. No anfiteatro muitas pessoas
choraram; as mais velhas protegiam as cabeças das crianças,
trazendo-as para perto de si, para que não seguissem vendo aquilo.
A mesma voz de antes ressoou - Lembramos a todos que o
que acabam de ver aconteceu há milhares de anos e que milhares
de anos antes disso acontecer todas as cidadãs da Terra foram
evacuadas e hoje seus descendentes vivem como nós, em outros
planetas dentro e fora da Via Láctea, a uma distância prudente do
Sol respectivo. E não se esqueçam que estejamos onde estejamos,
herdamos da Terra o ecomunitarismo como forma de viver e de
morrer; essa foi nossa melhor herança e será o melhor legado que
deixaremos para nossas filhas.

194
LA ÉTICA ECOMUNITARISTA Y LAS NECESIDADES
LEGÍTIMAS EN LA PERSPECTIVA DEL SOCIALISMO
DEL SIGLO XXI EN AMÉRICA LATINA

INTRODUCCIÓN

Propongo analizar el tema de las necesidades cotidianas a la


luz de las tres normas fundamentales de la ética, desde el horizonte
utópico ecomunitarista que ellas proyectan, y en la perspectiva del
socialismo del siglo XXI tal como este comienza a nacer en
América Latina. Las tres normas éticas básicas nos permiten
delimitar (aunque sea de manera genérica) aquello que debemos
entender como “necesidad humana legitima”. En ese contexto,
considero que el tema de las necesidades se encuadra a la vez entre
dos exigencias: por un lado la de caminar hacia el cumplimiento
del lema que estipula “de cada uno según sus capacidades y a cada
uno según sus necesidades”, y, al mismo tiempo, la de satisfacer
esas necesidades de manera ecológicamente frugal.

Las tres normas éticas fundamentales y el Ecomunitarismo

Digo que la Ética es el conjunto de los casi-razonamientos


causales (CRC) que responden a la pregunta “¿Qué debo hacer?”.
Un CRC es una expresión lingüística compuesta por un obligativo
seguido por el operador no veritativo “porque”, seguido de un
enunciado (que es el soporte falseable del mencionado obligativo).
Eso permite que la ética sea no-dogmática y mutable
históricamente en función de lo que entendemos por verdadero o
falso en un determinado momento de nuestro conocimiento y
nuestra argumentación. También pretendo que, si investigamos la

195
gramática profunda de aquella pregunta, con la ayuda del operador
de “condicional” (simbolizado por “*” y diferente del de
“implicación” pues su tabla veritativa es la que sigue) podemos
descubrir por vía estrictamente argumentativa tres normas éticas
que tienen validez intersubjetiva universal (por lo menos al interior
de la llamada cultura occidental).

p q p*q
V V V
V F V
F V F
F F V

Esas normas, derivadas de las condiciones de “felicidad” de


la mencionada pregunta, preceden nuestro conocimiento sobre
ellas, pero, una vez “descubiertas” nos obligan, así como lo hacen
las reglas gramaticales de la lengua que hablamos, que preceden el
conocimiento consciente que de ellas tenemos antes de ir a la
Escuela. Formuladas técnicamente las tres normas se presentan
como sigue:
Primera: Debo garantizar mi libertad individual de decisión
porque yo garantizo mi libertad individual de decisión, es
condición de la pregunta “¿Qué debo hacer?” es feliz.
Segunda: Debo buscar consensualmente una respuesta para
cada instancia de la pregunta “¿Qué debo hacer?” porque yo busco
consensualmente una respuesta para cada instancia de la pregunta
“¿Qué debo hacer?” es condición de la pregunta “¿Qué debo
hacer?” es feliz.
Tercera: Debo preservar-regenerar una naturaleza sana desde
el punto de vista productivo porque yo preservo-regenero una
naturaleza sana desde el punto de vista productivo es condición de
la pregunta “¿Qué debo hacer?” es feliz.
Breve e informalmente podemos resumir la deducción de
esas normas, usando el concepto austiniano de las condiciones de

196
felicidad de los actos lingüísticos y el operador lógico de
“condicional”, como sigue:
1a. Norma: Se constata que la pregunta por el qué debo hacer
presupone la capacidad de escoger entre por lo menos dos
alternativas diferentes de acción, lo que supone, a su vez, libertad
de decisión, y pone a esta última como una condición de la
realización feliz de la pregunta “¿Qué debo hacer?”.
2a. Norma: Se constata que el enunciado de la pregunta en
cuestión abre el abanico de los posibles autores de respuestas al
conjunto de todos los seres humanos capaces de entender la
interrogación, lo que instaura la obligación de construir
consensualmente cada respuesta para cada instancia de la pregunta
“¿Qué debo hacer?” como una condición para su realización feliz.
3a. Norma: Constatando que además del lenguaje, el trabajo
constituye una característica del único ser, el humano, capaz de
formular-responder la pregunta que instituye el universo ético-
moral, y que el trabajo necesita una naturaleza sana desde el punto
de vista productivo, se deduce que eso es una condición (de la
realización feliz) de la pregunta “¿Qué debo hacer?”. Esa norma
también puede ser deducida desde el campo del lenguaje, sin
invocar el trabajo, como ya fue dicho antes.
Simplificando, la primera de esas normas nos compromete a
celar por la realización progresiva de nuestra libertad individual
de decisión (superando toda situación de represión y auto-
represión alienada de esa libertad).
La segunda establece el límite y el contexto de esa misma
libertad en la construcción consensual de las decisiones relativas a
nuestras vidas.
La tercera norma de la ética, a su vez, establece la obligación
de buscar la preservación-regeneración de una naturaleza
saludable (y tal naturaleza abarca tanto al ser humano como a los
entes no-humanos).
Sobre la base de las tres normas fundamentales de la Ética,
defino la Liberación como un proceso histórico de construcción de
la libertad consensual de decisión acerca de nuestras vidas, a través

197
de la discusión y de la lucha contra las instancias de dominación
intersubjetiva y auto-represión alienada; proceso del que hacen
parte el establecimiento de relaciones productivas y estéticas de
carácter preservador-regenerador entre los seres humanos y el resto
de la Naturaleza.
He definido el ecomunitarismo como el orden
socioambiental utópico poscapitalista capaz de pautarse por las
tres normas de la ética (que hemos deducido argumentativamente
de la pregunta que la instaura y que nos obligan, respectivamente,
a luchar por hacer realidad nuestra libertad individual de decisión,
a realizarla consensualmente, y a preservar-regenerar una
naturaleza humana y no humana sana; ver López Velasco 2003 y
2009). Ese orden, a pesar de utópico, es un horizonte indispensable
para orientar la acción diaria, y tomándolo como referencia,
sopesar la significación de cada reforma y revolución. He definido
el “poder” como la relación social que media entre los que deciden
y los que no lo hacen, y he mostrado por un lado que el
capitalismo niega la capacidad de decidir a cada individuo en el
día a día, en especial a los asalariados y a los excluidos del trabajo
(violando la primera norma de la ética), y, por otro, que la
“revolución” consiste en ampliar dicha capacidad, bien por la
ampliación del número de los que ya deciden (como sucede
cuando la familia machista y patriarcal amplía el poder de decisión
al conjunto de sus miembros, superando el monopolio ejercido por
el pater familias), o por la sustitución de los que la ejercen (como
sucedió en gran medida en Francia con la ascensión de la
burguesía que desplazó a la aristocracia feudal en 1789 y los años
siguientes, en la Rusia de 1917 y en la revolución cubana). Nuestro
desafío es no infravalorar la primera alternativa, sin olvidarnos ni
renunciar a la segunda. Por otro lado, la experiencia muestra que
después de cualquier “revolución”, se impone la necesidad diaria
de “reformas”, si no queremos que la revolución se petrifique. A
propósito, esa es otra cara de la vieja discusión sobre la dialéctica
revolución-reforma (que por lo menos desde Lenin dejó claro que
ninguna reforma puede juzgarse individualmente, sino sobre el

198
fondo del contexto que la caracteriza como revolucionaria o no).
Creo que al filósofo del siglo XXI en A. Latina no le cabe ni el
papel del “hombre en la torre de cristal”, alienado de la política, ni
el papel del “intelectual orgánico” del marxismo-leninismo que
subordina el filósofo al papel dirigente del Partido supuestamente
de vanguardia; una digresión: en momentos en que la clase obrera
ha disminuido cuantitativamente y se ha modificado
cualitativamente, con centrales sindicales que de hecho aceptan los
límites del capitalismo, ya suena a museo la invocación de
cualquier “partido obrero de vanguardia”; la tarea crítico-utópica
ecomunitarista hoy es colocada en manos de un bloque social
heterogéneo, con forma de movimiento, que agrupa a los
asalariados, los excluidos de la economía capitalista formal, las
llamadas “minorías” (que a veces son mayorías, como las mujeres,
y algunas comunidades étnicas en algunos países), las minorías
activas (sobre todo en movimientos, partidos, sindicatos y
organizaciones no gubernamentales, y en especial muchas de
carácter ambientalista), los pueblos indígenas que, sin asumir una
postura identitaria a-histórica esencialista, quieren permanecer y
transformarse sin aceptar el dogma de los “valores” capitalistas de
la ganancia y del individualismo, y los movimientos de liberación
nacional que combaten el recrudecido imperialismo yanqui-
europeo.
Del ecomunitarismo, que pretende propiciar el libre y
multifacético desarrollo de los individuos asociados solidariamente
por decisión libre, hacen parte, resumidamente: a) una economía
solidaria y ecológica basada en el principio que estipula “de cada
uno según su capacidad y a cada uno según sus necesidades” y
respetuosa de la norma ética que exige preservar-regenerar una
naturaleza humana y no humana sana pautada por los grandes
equilibrios ecológicos, b) una pedagogía problematizadora (según
la entendió Paulo Freire), de la que hace parte una educación
sexual que fomenta el libre placer compartido y condena el
machismo, el sexismo, y la culpabilización de la masturbación y
de la homosexualidad, c) una “política de todos” que fomenta la

199
práctica de la democracia directa y, para las representaciones que
se revelen indispensables, instrumenta la rotatividad de los
representantes electos y revocables por sus electores en cualquier
momento; esa política se propone la reconciliación solidaria de
individuos y comunidades a nivel planetario, realizando la efectiva
constitución del “género humano” como familia que (aunque
atravesada por conflictos) resuelve los diferendos en provecho de
todos y cada uno porque se ha pasado (como quería Marx) del
gobierno de los hombres a la compartida administración de las
cosas (velando por su “salud”; nótese que ese concepto va más allá
de los organismos vivos, pues podemos postular que un aire que
tenga más que una determinada cantidad de partículas en
suspensión “no es saludable”, para el ser humano en especial, o que
una tierra que tenga más que un determinado nivel de salinización
“no es saludable”, en especial para la ganadería y agricultura, y/o
que un agua que contenga más que una determinada cantidad de
nutrientes nitrogenados o de agrotóxicos, “no es saludable”, en
especial para tomar o bañarse, o criar peces, etc.), y, d) una
comunicación simétrica.

La satisfacción de las necesidades cotidianas: rumbo al horizonte


definido por el lema “de cada uno según sus capacidades y a
cada uno según sus necesidades”, en la frugalidad ecológica

Inspirándose del slogan “de cada uno según sus capacidades,


y a cada uno según sus necesidades” la perspectiva ecomunitarista
ha tenido el mérito de precisar qué debemos entender por
“necesidades”, aclarando que deben ser consideradas como tales
todas aquellas demandas del desarrollo libre y multilateral de los
individuos que no infrinjan ninguna de las tres normas éticas
fundamentales (o sea, que no impidan la satisfacción de las
necesidades ajenas y que no impliquen la violación de la
obligación de preservar-regenerar una naturaleza humana y no
humana sana, con lo que ello implica en lo relativo a la
preservación de los grandes equilibrios ecológicos del planeta y de

200
cada localidad). Esta última norma nos exige, pues, una
satisfacción de necesidades que se encuadre dentro de la frugalidad
ecológica, libremente y consensualmente asumida (de acuerdo a
las dos primeras normas)
Antonio Salamanca (en “Política de la Revolución”, Ed.
UASLP, México, 2009, Apéndice I) hace un exhaustivo y
excelente inventario de las “necesidades” (denominadas
“necesidades de la praxis personal y de la praxis de los pueblos),
que trascribimos literalmente en lo que sigue.

Las Necesidades de comunicación material son las siguientes: I.1.


Necesidades de comunicación material eco-estética: Necesidad de
un medioambiente saludable (1), Necesidad nutritiva diaria (2),
Necesidad de una vivienda saludable (3), Necesidad de
transportarse (4), Necesidad de atención médica (5); Necesidad
estética (6); I.2. Necesidades de comunicación material ero-
económica: Necesidad de reconocimiento familiar (7), Necesidad
de reconocimiento comunitario (8); Necesidad de trabajo (9),
Necesidad de apropiación personal (como prestación personal y
directa de servicios) y comunitaria (cooperativa y estatal) de los
medios de producción laboral (10), Necesidad de apropiación
personal del fruto del trabajo (11); I.3. Necesidades de
comunicación material político-institucional: Necesidad de
participación política en la comunidad (12); Necesidad de
instituciones comunitarias al servicio de la reproducción de la vida
de los pueblos y cada uno de sus miembros (13): Necesidad
institucional de la soberanía nacional territorial (14), Necesidad
institucional de un sistema de salud popular (15), Necesidad
institucional de un sistema público de transporte (16), Necesidad
institucional de un sistema económico socialista o comunista (17),
Necesidad institucional de Dirección Estatal (Legislativo, Judicial,
Ejecutivo) Revolucionaria (18), Necesidad de instituciones
internacionales revolucionarias (19), Necesidad institucional de
medios de información del pueblo (20), Necesidad institucional de
medios de opinión del pueblo (21), Necesidad institucional de un
sistema educativo popular (22), Necesidad institucional de centros
de liberación (v. gr. centros de desadicción,) (23), Necesidad

201
institucional de un sistema de Derecho revolucionario, y de
Centros de Reorientación de la Autodeterminación y
Rehabilitación (24), Necesidad institucional de policía
revolucionaria (25), Necesidad institucional de un ejército
revolucionario (26). A su vez, las Necesidades de libertad
material son: II. 4. Necesidad de empoderamiento con la fuerza de
liberación personal y comunitaria (27), II. 5. Necesidad de
autodeterminación revolucionaria en el proyecto personal y
comunitario (28), II. 6. Necesidad de fortalecimiento en la
permanencia histórica hegemónica de la ejecución del proyecto
político revolucionario (personal y comunitario) (29). Por último,
las Necesidades de verdad material son: III. 7. Necesidad personal
y comunitaria de información veraz (30), III. 8. Necesidad
personal y comunitaria de una opinión bien formada (31), y. III. 9.
Necesidad personal y comunitaria de conocimiento (32). [Y aclara
Salamanca: “En función de la estructura de la Praxis Material-
Necesitante de Realidad, si comparamos con la clasificación de
Abraham Maslow, aproximadamente, las necesidades primarias o
fisiológicas de su sistematización, así como las necesidades
estéticas corresponden a las necesidades eco-estéticas (1-6); Las
necesidades sociales o de pertenencia (de aceptación social, las
necesidades de aprecio o estima (autoestima) y de trascendencia,
a las necesidades de comunicación material (7-26); Las
necesidades de seguridad, a las necesidades de liberación y
fortalecimiento en la permanencia histórica de la satisfacción de
las necesidades (27-29); Las necesidades de autorrealización
(necesidades del “yo”), a la necesidad de autodeterminación (28);
Las necesidades cognitivas, a las necesidades de verdad material
(30-32)”. Y remata: “Contrariamente a la jerarquización piramidal
establecida por A. Maslow, donde, por cierto, la necesidades
congnitivas y estéticas no encuentran fácil articulación con el
resto, la estructura que proponemos de las necesidades según la
Praxis Material Revolucionaria es un sistema integrado sin
jerarquización. El umbral de insatisfacción de algunas de las
necesidades es el que determina el grado de urgencia en su
satisfacción”].

202
Sin entrar a discutir en detalle este rico inventario, hacemos
notar que sus componentes sólo ganan fundamentación ética
legítima a partir de las tres normas básicas de la ética
argumentativa ecomunitarista, y lo mismo vale para las formas
concretas que se postulen-acepten para satisfacer a cada una en
cada situación concreta.
Ahora bien, después de rendir homenaje a todas las victorias
del socialismo del siglo XX contra el hambre, en la salud y en la
educación, y aunque pregonamos la frugalidad ecomunitarista (que
incluye la reducción, reutilización y reciclaje de recursos, de
preferencia renovables, y residuos), no podemos dejar de
manifestar que no entendemos como muchos años después del
viraje revolucionario, los países socialistas siguieron teniendo
notorios problemas de abastecimiento alimenticio, de casas, de
materiales escolares, de remedios y de transporte colectivo.
A mediados de 2007 el periódico “El País” de Madrid,
España, publicó un reportaje en el que afirmaba que según fuentes
de la Seguridad cubana del Estado, hoy sólo el 25% de los
habitantes de la Isla defendería su revolución hasta el fin, 50%
permanecerían neutrales, y 25% la combatirían de buen grado. Por
lo que vimos durante nuestra estadía de 3 años en Cuba a mediados
de los años 70, suponemos que esos últimos 25% deben darse por
seguros; y no nos sorprendería (aunque “El País” haya falseado sus
supuestas fuentes) que los dos otros porcentajes también lo fueran;
esa sospecha se basa en el hecho de que tras la caída del llamado
campo socialista europeo las mayorías de cada uno de aquellos
países no se levantaron para impedir la vuelta del capitalismo
(muchas veces claramente mafioso); si en algunos de ellos, tras las
brutales privatizaciones y cese de políticas sociales, tenues mayorías
prefirieron en los comicios a seudo-socialistas, es notorio que
ninguno de aquellos países renegó de la vuelta al capitalismo para
proponerse la edificación del socialismo del siglo XXI.
Todos estos hechos deberían hacernos pensar mucho, a los
cubanos, venezolanos, y latinoamericanos en general, sobre lo
poco que se dura en la historia (y 74 años en el caso de la URSS

203
fue muy poco en la escala histórica de un pueblo), cuando las
necesidades básicas no son suficientemente atendidas.
Ahora bien, creo que es una semejanza marcante entre los
socialismos de los siglos XX y XXI la reivindicación de la
socialización de los grande3s medios de producción como única
forma para que se puede avanzar en la aplicación del principio que
reza “de cada uno según sus capacidades y a cada uno según sus
necesidades”; claro que esa socialización no podrá ser más
confundida (como sucedió en el socialismo real) con la simple
estatización de esos medios; ahora, el socialismo del siglo XXI,
por ejemplo en el caso venezolano, sin renunciar a la importancia
de la “propiedad social indirecta” (donde el Estado ejerce la tutela
en beneficio de todos), destaca la necesidad de edificar también la
propiedad social directa, o sea aquella en la que la gestión está
directamente confiada a los productores-distribuidores-
consumidores libremente asociados (en especial en los Consejos
Comunales y las Comunas Socialistas). En una perspectiva
ecomunitarista lo que defiendo es que la propiedad social indirecta
a cargo del Estado debe rápida y continuamente transformarse en
propiedad social directa (preservando mecanismos de
coordinación-ayuda para que las comunidades sean mutuamente
solidarias, en vista de satisfacer el eslogan antes mencionado).
Como se sabe, se ha clasificado los Derechos Humanos en diversas
“dimensiones” (para no decir “generaciones” pues hay quienes
discuten que haya habido una estratificación cronológica entre
ellos, y en lo que sigue transcribimos casi integralmente el
resumen hecho por Antonio Carlos Wolkmer en “Etapas da
historicidade dos Direitos do Homem”, publicado en México en el
n° 2 de REDHES, Ed. UASLP, 2009), desde los clásicos
individuales y políticos; en la primera están los derechos civiles y
políticos; se trata de los derechos individuales vinculados a la
libertad, la igualdad, la propiedad, la seguridad y a la resistencia a
las diversas formas de opresión (y son derechos inherentes a la
individualidad, considerados atributos naturales, inalienables e
imprescriptibles, que por ser de defensa y establecidos contra el

204
Estado, tienen la especificidad de ser derechos “negativos”); luego
están los derechos sociales, económicos y culturales, fundados en
el principio de la igualdad y con cariz “positivo”, pues cubren la
garantía y concesión a todos los individuos de ciertos bienes por
parte del poder público (entre ellos se destacan los derechos al
trabajo, a la alimentación, a la salud, a la vivienda y a la
educación); también están los derechos colectivos y difusos, en los
que su titular ya no es el ser humano individual (ni tampoco
regulan las relaciones entre los individuos y el Estado), sino que
tratan de la protección de categorías o grupos de personas (familia,
pueblo, nación, etnia, mujeres, homosexuales, menores, indígenas,
etc.), y que no se encuadran ni en lo “público” ni en lo “privado”,
exclusivamente; Occidente hace hoy hincapié también en los
derechos ambientales (consagrándoselos constitucionalmente,
como ocurre en Brasil desde 1988, con el “derecho a un medio
ambiente saludable”), en los derechos de la bioética (referentes en
especial a la vida, la alimentación, la transgenia, la reproducción,
el aborto y la eutanasia), y los derechos virtuales (para regular las
situaciones derivadas del uso masivo de Internet y los mecanismos
computacionales en general). Es importante subrayar que las cartas
Magnas de Venezuela, Bolivia (todo el Título II) y Ecuador los
contemplan a todos; y en el caso de la boliviana, además de
proclamar bienes nacionales inalienables a todos los recursos
naturales, se prohíbe el uso de transgénicos, y se proclama el
derecho al agua y a la alimentación (art. 16); de esa manera se
concreta de forma básica pero transparente la preocupación de
atender efectivamente a las necesidades de todos y cada uno de los
seres humanos habitantes en su territorio.
La Cartas Magnas de Ecuador y Bolivia, asumiendo la
satisfacción de las necesidades de cada individuo y de las
comunidades como su finalidad máxima, declaran el “buen vivir”
(sumak kawsay en la de Ecuador) y “vivir bien” (suma qamaña en
la de Bolivia) como el objetivo mayor del Estado. Tal vivir bien,
no puede desvincularse de una relación de preservación-
regeneración de la naturaleza no humana, como lo veremos de

205
inmediato. (Muy distinta, infelizmente, fue en gran parte y medida
la actitud soviética en relación a la naturaleza no humana,
considerada, como en el capitalismo, un recurso sin fin disponible
para ser explotado sin cuidados).

La perspectiva socioambiental

Si en los años 60 y 70 del siglo XX en el fragor de la lucha


(legal o guerrillera) algunos creímos que la ecología era asunto de
bien nutridos que no tenían otra cosa que hacer, hoy descubrimos
que la superación de la pobreza, creando las condiciones para que
a cada humano se le exija socialmente según su capacidad y se le
retribuya según su necesidad (para que se desarrolle como
individuo universal) y la preservación-regeneración de una
naturaleza (humana y no humana) sana, son indisociables. El ser
humano es parte de la naturaleza y (como desde siempre lo
supieron las culturas indígenas), sin naturaleza no humana no hay
ser humano. Por eso la perspectiva ecomunitarista es
irrenunciablemente socioambiental, como lo atestiguan las tres
normas éticas fundamentales en la que se basa; la tercera, en
particular, nos obliga a velar por la salud de la naturaleza humana
y no humana (aunque más no sea a partir del criterio de su salud
para la producción). Recordemos que la primera y la segunda
norma nos obligan, respectivamente, a luchar para garantizar
nuestra libertad individual de decisión (en todos los planos:
económico, ecológico, familiar, erótico, pedagógico, político,
cultural, militar), y a ejercerla en la búsqueda de respuestas
consensuales con los otros (de tal manera que mi libertad no se
realice contra la de ellos, sino con la de ellos; claro que la
posibilidad real del consenso está más allá de las sociedades
clasistas, en el orden socioambiental ecomunitarista; por otro lado,
como dijo Nelson Rodrigues, toda unanimidad es estúpida, por lo
que habría que respetar siempre el valor creativo-innovador que la
divergencia de por lo menos algunos tiene para la permanente
transformación socioambiental). Las Constituciones venezolana, y

206
con más énfasis las de Bolivia y Ecuador consagran gran espacio a
las cuestiones ambientales, resituando a los individuos y
comunidades humanas en el contexto de la naturaleza de la cual
hacen parte. El Preámbulo de la Carta Magna boliviana comienza
así: “En tiempos inmemoriales se erigieron montañas, se
desplazaron ríos, se formaron lagos. Nuestra amazonia, nuestro
chaco, nuestro altiplano nuestros llanos y valles se cubrieron de
verdores y flores. Poblamos esta sagrada Madre Tierra con rostros
diferentes y comprendimos desde entonces la pluralidad vigente de
todas las cosas y nuestra diversidad como seres y culturas”; y en el
art. 6 pide-quiere: “Promover y garantizar el aprovechamiento
responsable y planificado de los recursos naturales…así como la
conservación del medio ambiente, para el bienestar de las
generaciones actuales y futuras”. A su vez en el Preámbulo de la
Carta Magna de Ecuador se lee: “Nosotras y nosotros, el pueblo
soberano del Ecuador…celebrando a la naturaleza, la Pacha Mama
de la que somos parte y que es vital para nuestra
existencia…decidimos construir una nueva forma de convivencia
ciudadana, en diversidad y armonía con la naturaleza, para
alcanzar el buen vivir, el sumak kawsay”; y todo el capítulo 2 del
Título VII está dedicado a la biodiversidad y los recursos naturales
(incluyendo las siguientes secciones: naturaleza y ambiente,
biodiversidad, patrimonio natural y ecosistemas, recursos
naturales, suelo, agua, biosfera, ecología urbana y energías
alternativas).

La visión intercultural

Hoy resulta claro, especialmente en el caso de A. Latina, que


el socialismo del siglo XXI no podrá fundarse únicamente en
fuentes occidentales, sino que deberá incorporar dialógicamente
las contribuciones positivas oriundas de otras fuentes
(particularmente las indígenas, negras y orientales). Las culturas
indígena y negra han resistido a 500 años de Conquista para
legarnos su lúcida perspectiva cosmocéntrica socioambiental (que

207
abordaremos en lo que sigue). El Oriente nos ilumina con su sabia
reflexión-postura acerca del lugar del ser humano en el Cosmos y
de la manera de habitarlo en nuestra condición de estrellas fugaces.
Ello no significa que la unión de esas diversas tradiciones no tenga
nudos de difícil manejo, que la filosofía ecomunitarista deberá
enfrentar con franqueza (como es el caso, por ejemplo, del
machismo que reina también en muchas culturas indígenas, negras
y orientales).
La Constitución Ecuatoriana aprobada en setiembre de 2008
establece en su art. 57 que se reconoce (entre otros, y repetiremos
algunos conceptos antes citados) a las comunas, comunidades,
pueblos y nacionalidades indígenas, los derechos de “mantener y
fortalecer libremente su identidad, sentido de pertenencia,
tradiciones ancestrales y formas de organización social”,
“conservar la propiedad imprescriptible de sus tierras
comunitarias, que serán inalienables, inembargables e indivisibles
(y exentas de impuestos)”, “participar en el uso, usufructo,
administración y conservación de los recursos naturales renovables
que se hallen en sus tierras”, “la consulta previa libre e informada,
dentro de un plazo razonable, sobre planes y programas de
prospección, explotación y comercialización de recursos no
renovables que se encuentren en sus tierras…la consulta que deban
realizar las autoridades competentes será obligatoria y oportuna”,
“conservar y desarrollar sus propias formas de convivencia y de
organización social, y de generación y ejercicio de la autoridad, en
sus territorios legalmente reconocidos y tierras comunitarias de
posesión ancestral”, “crear, desarrollar, aplicar y practicar su
derecho propio o consuetudinario” “desarrollar, fortalecer y
potenciar el sistema de educación intercultural bilingüe…desde la
estimulación temprana hasta el nivel superior…”, “construir y
mantener organizaciones que los representen [a los pueblos
indígenas]… [y] el Estado reconocerá y promoverá todas sus
formas de expresión y organización”, “ participar a través de sus
representantes en los organismos oficiales que determine la ley, en
la definición de las políticas públicas que les conciernen, así como

208
en el diseño y decisión de sus prioridades en los planes y proyectos
del Estado”, “ser consultados antes de la adopción de una medida
legislativa que pueda afectar cualquiera de sus derechos
colectivos”, “mantener y desarrollar los contactos, las relaciones y
la cooperación con otros pueblos, en particular los que estén
divididos por fronteras internacionales”, y remata pidiendo, como
ya lo vimos, “que le dignidad y diversidad de sus culturas,
tradiciones, historias y aspiraciones se reflejen en la educación
pública y en los medios de comunicación; la creación de sus
propios medios de comunicación y el acceso a los demás sin
discriminación alguna”.
A su vez la nueva Constitución de Bolivia (fruto de la ingente
y a veces violenta movilización indígena-campesina-popular que
llevó a Evo Morales al gobierno) va más allá aún que la ecuatoriana
y la venezolana en la perspectiva intercultural cuando ya en su
Preámbulo entre otras cosas se plantea el reto de “construir
colectivamente el Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional
Comunitario…”; y en el artículo 1 proclama que “Bolivia se
constituye en un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional
Comunitario, libre, independiente, soberano, democrático,
intercultural, descentralizado y con autonomías …” (los subrayados
son míos). Expresión concreta de la interculturalidad es la
proclamación en el art. 5 de todas las lenguas indígenas (¡y el texto
constitucional enumera nada menos que treinta y seis! ) como
lenguas co-oficiales del Estado, junto al castellano; más adelante se
establece la obligación de que, junto al castellano, por lo menos una
lengua indígena sea obligatoria, en función de la diversidad
lingüística reinante, en cada región/localidad; y para reforzar esa
exigencia, se establece la educación obligatoria bilingüe (también
adaptada a la realidad lingüística de cada localidad). Los derechos
concedidos a los “pueblos indígena originario campesinos” son (en
especial en el capítulo IV del Título II) tanto o más extensos y
precisos que los establecidos en la nueva Carta Magna de Ecuador y
que hemos reseñado antes aquí.

209
Conclusiones provisorias

El hecho de que cada uno de los humanos satisfaga sus


necesidades cotidianas fundamentales en acuerdo con los demás y
en actitud de preservación-regeneración de la salud de la
naturaleza humana y no humana (esto es en actitud de frugalidad
ecológica voluntaria) es la utopía ecomunitarista que la ética
ofrece al socialismo del siglo XXI naciente en A. Latina, en
contraposición al actual descalabro capitalista globalizado
(marcado por el derroche obsceno de una minoría a costa de la
miseria de amplias mayorías y de la devastación y/o
contaminación irreversible de la naturaleza no humana). Las
dificultades que esta alternativa tiene que afrontar son sin duda
inmensas, tanto en función de las resistencias estructurales propias
al capitalismo, como de aquellas que emanan de las inercias que
introyectamos de este régimen al interior de cada uno de nosotros.
Pero nos parece claro que en ese dilema se juega nada más y nada
menos que el futuro de la humanidad (y del de buena parte de las
especies existentes en el planeta). Cada uno de nosotros y nuestros
pueblos tenemos la palabra.

210
FUNDAMENTO FILOSÓFICO Y LEGITIMACIÓN ÉTICA
DE LA LIBERTAD DE EXPRESIÓN EN EL SOCIALISMO
DEL SIGLO XXI

El derecho a la libertad de expresión se fundamenta en la


primera norma de la ética. Mas veamos cómo se define la ética y
cómo se deduce esa primera norma, y las otras dos que la
completan.
1. ¿Qué es la ética?
Claro que lo más importante no es la ética, sino vivir; mas
hasta para afirmar eso (y para elegir cómo vivir) hay que pasar por
la ética.
Está lloviendo y es hora de ir al colegio: ¿debo ir a la clase
(o quedarme durmiendo?).
Mis torturadores han dicho que todos ya han hablado y la
resistencia es inútil y hasta ridícula; ¿debo denunciar el paradero
del compañero que buscan (o arriesgarme a esa muerte
ridículamente inútil que me anuncian como alternativa)?
Esas dos preguntas y una infinidad de otras parecidas en su
forma remiten a la ética y la moral. Ambas tratan del contenido y
la forma de las respuestas que damos a cada instancia de la
pregunta “¿qué debo hacer?”.
Fíjense bien: no de lo que quiero hacer, o de lo que me
conviene hacer, o de lo que en primera instancia estoy tentado a
hacer; sino de lo que debo hacer.
Pero, ¿quién inventó ese tal de “debo hacer”?; pues, nadie,
y...¡todos! En realidad ese “debo hacer” hace parte de las lenguas
que nosotros los humanos hablamos (a lo que me consta hasta hoy,
de todas sin excepción), así como de ellas hace parte eso de
“afirmar”, o “preguntar” o “prometer”. De tal manera que lo

211
recibimos en la lengua en la cual y con la cual nos hacemos seres
humanos, saliendo del capullo donde nos confundimos con
cualquier otro mamífero, y a partir de esa circunstancia a la que
nadie puede escapar, ese “debo hacer” vive en y a través de
nosotros ( como vive el “afirmar”, etc.).
Pero, ¿y Tarzán (o los casos reales que se le asemejan),
hombre que no habla, antes de su encuentro con Jane)? Pues, por
ahora lo que podemos hacer es recordar que esos casos de niños
que logran sobrevivir sin ningún contacto con otros seres
humanos, y por eso, sin lenguaje humano hasta cierta edad, son
excepciones rarísimas; y de inmediato no se olviden que se les
llama “niños-lobo”, como queriendo decir con esto, que al faltarles
la comprensión y el ejercicio del lenguaje cuando tienen edad
biológica para que ello ocurra (aunque sea con las limitaciones que
padece cualquiera de nosotros en ese difícil ejercicio), pues no son
“seres humanos” acabados. Con lo que, en el tema que ahora nos
ocupa, se está diciendo que el lenguaje y el “debo hacer” en el
incluido, es parte de lo que nos caracteriza como siendo
propiamente humanos.
Ahora bien, y volviendo al hilo de nuestra plática, si ética y
moral se ocupan del contenido y la forma de las respuestas que
damos a la pregunta “ ¿qué debo hacer?”, ambas no lo hacen de
igual manera. Mucha gente mucho más capaz que yo, ha apuntado
esa diferencia; pero en lo que me respecta la establezco a partir de
un criterio lingüístico simple: mientras que la Moral se contenta
con respuestas de la forma “debo hacer tal cosa”, o, “no debo hacer
tal cosa”, la Ética va más allá y nos embarca en la difícil tarea de
las justificaciones; por eso sus respuestas son del tipo “ debo hacer
tal cosa, porque...”, o, “no debo hacer tal cosa, porque...”; y conste
que después de ese “porque” va una frase sobre cuya verdad
podemos discutir.
Noten que no se puede discutir si es verdad la expresión
“¿Qué hora es?; sencillamente porque en las lenguas humanas las
preguntas no pueden ser verdaderas o falsas; sólo pueden serlo
algunas de las respuestas que damos a esas preguntas. En general e

212
incluyendo esas respuestas, las expresiones que pueden ser
discutidas como siendo verdaderas o falsas se llaman “sentencias”
o “enunciados”.
Ahora bien, como vimos, la Moral responde a la pregunta “
¿qué debo hacer?” con expresiones del tipo “debo hacer tal cosa”,
o, “no debo hacer tal cosa”; por ejemplo “no debo respetar a mis
padres” o, más bien, la que deben haber oído ustedes, a saber “
debo respetar a mis padres”. Mas vean que tanto una como otra
son expresiones que no pueden ser discutidas como verdaderas o
falsas, pues de forma similar a lo que ocurre con las preguntas,
estas dos frases, que al tratar de “deberes” podemos llamar
obligativos, no son discutibles en términos de verdad o falsedad;
frente a ellas cada uno asume o no la obligación contenida en el
“debo” o en el “no debo”, pero, pero ante esa obligación sería tan
absurdo discutir verdad o falsedad como lo es, dada la estructura
de las lenguas humanas, hacerlo con respecto a la pregunta “¿Qué
hora es?”.
Pero esa discusión es posible y necesaria para la Ética. En
efecto, recién dijimos que después del “porque” viene una frase
discutible en términos de verdad o falsedad. Y las cosas se
organizan como sigue: si aceptamos la verdad de esa frase,
entonces asumimos la obligación expresada antes del “porque”,
como “deber”; y si consideramos que la frase después del
“porque” es falsa, entonces no adherimos ni creemos éticamente
legítimo que nadie sea instado a adherir a la obligación expresada
antes del “porque”. (La única restricción que se impone a este
juego es que la frase que siga al “porque” trate del mismo asunto
que la obligación que lo precede). Y para que las cosas queden
más claras muchas veces habrá que explicitar las circunstancias en
que opera la obligación, para que la discusión de la verdad o
falsedad de la frase que sigue el “porque” sea capaz de arribar a
una conclusión.
Vean cómo se plantea la cuestión antes citada en el dominio
de la ética. Ahora se dirá, por ejemplo “Debo respetar a mis padres
porque el respeto a mis padres mantiene la familia unida y yo

213
quiero mantener la familia unida”.
Así, en este caso, dada la verdad de la expresión (de hecho
son dos, en este caso, y ambas verdaderas), que sigue a la palabra
“porque” se revela legítima la obligación que precede aquella
palabra. (Y la negación de aquella obligación sería éticamente
ilegítima, por ser falsa, parta el caso considerado la frase “el
respeto a mis padres mantiene la familia unida y yo quiero
mantener la familia unida”).
Lo que me interesa destacar es que mi manera de distinguir
la Moral de la Ética permite que, usando de la forma lingüística
apropiada (a saber la obligación, seguida de “porque”, seguida de
una frase discutible en términos de verdad o falsedad), toda
persona, por su apreciación de lo que sea verdadero o falso (en las
circunstancias del caso analizado) pueda decidir sin equívocos (y
ponerse de acuerdo con otra sobre ello), cuál obligación es
éticamente legítima y cual no.
En otras palabras, por su propia estructura las expresiones
éticas tienen la capacidad de superar (al menos dentro del mismo
horizonte cultural, y aquí pienso en el llamado “occidental”) el
“relativismo moral”, al poder definir, en base a lo que se juzgue
verdadero o falso para el caso en cuestión, lo que constituye
obligación legítima y lo que no.
O sea, que si ciertas personas (pertenecientes al mismo
horizonte cultural) nunca pueden dialogar desde la diferencia que
en materia de obligaciones morales los separa, sí pueden hacerlo y
llegar a un acuerdo cuando lo hacen al modo ético, o sea, dando
las justificaciones (referentes al contexto de cada caso) que apoyan
la obligación en cuestión.
Claro que lo que juzgamos verdadero o falso cambia con
nuestros conocimientos y experiencias; de ahí que lo que es
éticamente legítimo para nosotros y nuestros interlocutores,
también está sometido a ese proceso de cambio. O sea, las normas
éticas (que pueden ser numerosísimas, en rigor infinitas), por la
estructura que las caracteriza en mi propuesta, tienen la propiedad
de no ser dogmáticas (o sea prisioneras de algún dogma

214
incuestionable) y estáticas (o sea inmutables para siempre), sino,
por el contrario, argumentativamente renovables según lo que
consideremos (discutiendo con los otros) verdadero o falso (para el
contexto y la cuestión analizada). Ello las distingue de las normas
morales, que en la simplicidad del “debo” o “no debo”, son
incapaces de enfrentar y vivir esta dinámica.
Por eso pedimos (en nombre de la Filosofía, y, en general, en
nombre de la vida vivida más lúcidamente): ¡más ética, y,...menos
moral!
Y ahora, prosigamos.
Si hemos dicho que algunas expresiones, como las preguntas
y las obligaciones no son pasibles de discusiones en términos de
“verdad” o “falsedad” (porque ello sólo es posible en el caso de las
afirmaciones y negaciones de “sentencias” o “ enunciados”), ha
llegado el momento que recordemos a un señor llamado John L.
Austin (y que nada tiene que ver ni con la marca de automóviles ni
con la capital de Texas). Este señor, en reflexiones que fueron
recogidas después de su muerte en un librito intitulado “How to
do things with words” ( literalmente, “¿Cómo hacer cosas con
palabras?”) se preguntó cuál criterio nos podría ayudar a hacer
diferencias entre expresiones para las cuales no hay lugar a la
discusión en términos de “verdad” o “falsedad”, porque en ellas
hacemos otra cosa que describir ( afirmando o negando), cosa que
es función de las “sentencias”. Austin propuso que tales
expresiones, si no pueden ser distinguidas entre “verdaderas” o
“falsas”, sí pueden serlo entre “felices” e “infelices”. Y agregó que
una u otra eventualidad dependen de que ciertas reglas hayan (o no
hayan) sido respetadas. Esas reglas dicen respecto a la existencia
de un procedimiento convencionalmente aceptado para hacer algo
por medio de las palabras en cuestión, que ese procedimiento sea
ejecutado por las personas adecuadas y en todos sus pasos, y que al
hacerlo los pensamientos o sentimientos presentes al hacerlo sean
los adecuados. Tres ejemplos, el “felicitar”, el “bautizar”, y el
“divorciarse”. Existe el procedimiento consistente en “felicitar”
pronunciando las palabras “Te felicito (por tal cosa)”, y ese

215
procedimiento está disponible para ser usado por cualquier
persona; no obstante (en función del tercer tipo de reglas) la
felicitación será “feliz” si hay en la persona que lo usa el
sentimiento-pensamiento de alegrarse efectivamente por el otro
que está siendo felicitado, y será “infeliz” si éste está ausente; por
ejemplo puedo felicitar a mi colega pintor diciéndole “Te felicito
por la exposición”; pero ese acto será “feliz” si de veras me alegro
por él por la muestra de su obra, y, por el contrario no será feliz si
al pronunciar aquellas palabras pienso-siento: “Mucho más que tú,
mediocre creador, me merecía yo esa exposición”. (Como pueden
imaginarse este ejemplo que les doy es mera invención literaria y
nunca ha sucedido de verdad entre artistas).
En relación al “bautizar” el acto será infeliz si la persona que
pronuncia las palabras no es un sacerdote, aunque todo el rito
lingüístico y gestual sea el prescrito por el procedimiento
convencionalmente aceptado (en el contexto de la cultura
cristiana), y también estén presentes los sentimientos-
pensamientos adecuados; o sea, aquí la “infelicidad” estaría
decretada por la violación del segundo tipo de reglas.
Último ejemplo: será “infeliz” mi intento de divorciarme de
mi mujer pronunciando una y mil veces la frase “me divorcio de ti”,
porque en el caso de la cultura dentro de la cual hemos contraído
matrimonio no basta la palabra del marido para consumar el
divorcio, o sea, el procedimiento usado no es convencionalmente
aceptado para practicar el acto pretendido; ( noten que sí lo es en el
mundo musulmán, pues allí el derecho de “repudio” concedido al
marido en mucho se asemeja al acto aquí descrito).
Al fin de sus reflexiones Austin percibió que hasta en los
casos de las “sentencias” era posible discernir en términos de
“felicidad” e “infelicidad” (con lo que relativizaba la tradicional
división entre “verdadero” o “falso” con la que hasta entonces se
las había tratado).
Sin considerar el último punto citado, a partir de Austin
sustento que: a) todos tenemos la capacidad de discernir entre
actos lingüísticos “felices” e “infelices”, y en el uso normal del

216
lenguaje todos pretendemos producir actos “felices”, b) la
“felicidad” de los actos lingüísticos depende de que ciertas reglas
hayan sido respetadas o no, c) esas reglas son condiciones de la
“felicidad” del acto lingüístico en cuestión.
Partiendo de la base de que todos pretendemos realizar
ejecuciones felices de la pregunta que instaura el universo ético, a
saber, “¿Qué debo hacer?”, me pregunto: ¿cuáles son las
condiciones de la “felicidad” de tal pregunta?
Pienso que por esa vía descubriremos normas que ya están
presentes en la gramática profunda de esa pregunta y que se
presentan como normas éticas (según la estructura que antes
hemos explicitado). Creo que sucede con esas normas algo
parecido a lo que acontece con las reglas gramaticales de nuestra
lengua materna; o sea, que las conocemos y usamos sin tener
conciencia de ellas antes de ir a la escuela, y cuando allá llegamos,
descubrimos ahora de forma reflexiva y distinta cuáles son esas
reglas; a partir de ese momento en el uso de la lengua quedamos
por ellas obligados (aunque podemos decidir no respetarlas, nunca,
o en ciertas circunstancias). De manera similar defiendo la idea de
que al investigar las condiciones de “felicidad” de la pregunta
“Qué debo hacer?” llegaremos a detectar normas éticas que desde
antes nos obligaban sin que lo supiésemos, y que ahora pasan a
obligarnos de forma reflexiva, aunque podemos decidir apartarnos
de ellas a cualquier momento. Claro que la ética vive del hecho de
que no nos sentimos bien cuando hacemos esto último y que tal
sensación no está divorciada del hecho de que percibimos que en
tal caso estamos fracasando en el uso “feliz” del lenguaje que
contribuye a hacernos humanos.

2. Breve presentación de las tres normas éticas fundamentales

El lector no debe desanimarse con el aspecto de


“trabalenguas” que parece tener la formulación de las normas
éticas que deduciremos al investigar las condiciones de “felicidad”
de la pregunta que instaura el universo ético. Cuando vean su

217
enorme importancia y alcance en todas las facetas de la vida, esa
sensación de “entrevero de palabras” habrá sido superada por la de
la luminosidad que su aplicación nos aporta en cada caso.

2.1. De la Libertad

Preguntar(se) “ ¿Qué debo hacer?” presupone que podría


hacer más de una sola cosa; si sólo puedo hacer una, entonces, no
cabría la pregunta. Por ejemplo, este lápiz que tengo en la mano a
un metro del suelo no se pregunta, cuando lo suelto, qué debe
hacer; si estamos en la Tierra el lápiz caerá por efecto de la
gravedad; si estamos en una nave espacial en órbita terrestre el
lápiz permanecerá flotando, debido a la ausencia de gravedad. Pero
los seres humanos al preguntarnos qué debemos hacer
presuponemos por ese mismo acto que podemos asumir en cada
circunstancia más de una conducta. Ahora bien, poder hacer más
de una cosa en cada circunstancia, presupone poder elegir entre
diversas alternativas de acción. Mas, para tener esa capacidad de
elegir entre diversas alternativas de acción hay que tener libertad
de hacerlo.
Así, interrogando lo que está detrás y en la raíz de la
pregunta “¿Qué debo hacer?” hemos descubierto, sucesivamente,
la condición para su realización “feliz”. (Recordando que
suponemos que todos deseamos realizar ejecuciones felices de tal
pregunta), podemos concluir entonces que hemos llegado a una
norma ética embutida en la gramática de la pregunta considerada
que se deja resumir como sigue:
“Debo luchar para garantizar mi libertad de elegir,
porque ella es condición de la realización feliz de la pregunta
“¿Qué debo hacer?”
Observen que esta norma, contrariamente a lo que han dicho
muchos eminentes filósofos, no afirma que los seres humanos
seamos libres. Lo que ella nos plantea es la obligación de luchar
por nuestra libertad de elegir.
Eso significa que ella nos emplaza a luchar contra todas

218
aquellas coacciones y trabas que limitan esa libertad. Menudo
desafío, ¿no les parece? Pero no se apuren, porque verán que hay
otras dos normas que trazan el círculo donde cobra legitimidad
esta primera.

2.2. Del consenso

El filósofo alemán Karl-Otto Apel, que a fines del siglo XX


y a los ochenta años de edad aún discutía con el entusiasmo de un
adolescente, se dio cuenta que las ciencias funcionan, aunque a
veces los propios científicos no se den cuenta de ello, a partir de
tres normas éticas. Ellas son, a) decir lo que se cree ser la verdad,
b) renunciar al egoísmo en la búsqueda colectiva de la verdad, y, c)
aceptar a cualquier ser humano como compañero legítimo en esa
búsqueda (Apel 1985, fin del Tomo II). No habría ciencia tal como
la conocemos si ante cada artículo científico nos preguntásemos:
¿este/a señor/a está diciéndonos lo que cree ser verdadero o nos
está engañando (por bromear o por hacerse el importante)?
Practicar ciencia supone que decimos efectivamente lo que
creemos ser en cada caso la verdad y leer/oír a los otros con esa
misma expectativa. Por otro lado, la historia de la ciencia ha
demostrado que nadie es dueño de la verdad. Hoy más que nunca,
grandes equipos, en laboratorios no menos grandes, son los
encargados de renovar día a día el conocimiento científico,
mostrando que lo que creíamos saber ayer era inexacto o
incompleto y que las cosas son diferentes de lo que habíamos
imaginado. Esos equipos y laboratorios hacen públicos sus
resultados en seminarios, congresos, revistas, libros, y, cada vez
con más frecuencia, en Internet, a través de la cual mantienen
comunicación casi permanente entre sí. Cada científico se
incorpora a esa búsqueda colectiva de la verdad, nunca plenamente
alcanzada, pero sin cesar perseguida por el conjunto de las
personas dedicadas a (cada área de) las ciencias. Por último, nadie
puede ser descartado de esa carrera sin fin hacia la verdad. Cuando
a principios del siglo XX Einstein publicó su primera versión de la

219
Teoría de la Relatividad, era un simple empleado en una oficina de
registro de patentes de inventos. Es cierto que, al no pertenecer a
ninguno de los equipos de los centros de investigación más
célebres de la época, esa primera publicación no tuvo el impacto
inmediato de la ceremonia del Oscar; pero no por su condición de
no-integrante de los centros de investigación famosos de la época,
Einstein fue ignorado por los científicos. Por el contrario, muy
pronto sus ideas fueron tema del día entre los Físicos más
conocidos y el propio Einstein fue llamado a incorporarse a los
círculos científicos por ellos frecuentados
Por mi parte creo poder afirmar que, lo que Apel descubrió
en el universo del discurso descriptivo de las ciencias, puede ser
aprovechado para el juego lingüístico de las preguntas (y dentro de
él para la que nos guía en toda esta caminata). Así creo que
preguntar presupone que: a) nos abrimos a la búsqueda colectiva
de la respuesta, y, b) que creemos que nuestro(s) interlocutor(es)
responderá(n) diciendo lo que juzgan verdadero o correcto en cada
caso. Noten que eso, como en las ciencias, no significa que estoy
obligado a concordar con mi interlocutor; por el contrario, es a
partir de la libertad de discordar y discutir con él, que se renueva la
búsqueda de la verdad o corrección de la respuesta pretendida.
Claro, que también, como en las ciencias, el hecho de suponer que
existe una respuesta apropiada para cada caso, indica que la
búsqueda colectiva se orienta por la idea de que es posible arribar a
un consenso sobre el asunto de que se trate. Noten que todo esto
explica el embarazo del orador que al hacer una “pregunta
retórica” ( aquella seudo-pregunta destinada a ser respondida sólo
por el mismo que la formula), oye desde el auditorio una respuesta
distinta a la que él mismo pretende dar en la secuencia de su
exposición; por ejemplo, después de varias ponderaciones
moralizantes que tienden a asociar el alcohol al diablo, el orador
puede formular la pregunta retórica, ¿debemos prohibir la bebida?,
para la que ya tiene preparada la respuesta positiva, y oír con
desagrado cómo desde el fondo del público que se aglomera bajo
la sombra de los árboles del parque, una voz de borrachito dice

220
alto y claro: “No!”. El embarazo viene del hecho que la pregunta
efectiva (y no la seudo-pregunta aparente que es la de carácter
retórico) abre efectivamente el campo de las respuestas a la
participación colectiva de la que ningún ser humano puede ser
excluido. Un ejemplo que presencié personalmente me confirma la
validez de esta interpretación; sucede que en un ómnibus bastante
lleno de un país latinoamericano una señora preguntaba en voz
baja a su compañera de asiento si debía o no separarse de su
marido infiel; para su asombro, a los pocos minutos buena parte
del ómnibus opinaba sobre su pregunta; unos para defender la
separación, juzgando inaceptable la infidelidad, y otros pidiéndole
paciencia porque era notorio que los hombres, eternos adolescentes
hasta los 40, comenzaban a entrar en juicio con la llegada de las
canas, y entonces las cosas empezaban a arreglarse.
De lo dicho podemos deducir la segunda norma ética que así
resumimos:

Debemos buscar consensualmente una respuesta para cada


instancia de la pregunta “¿Qué debo hacer?” porque hacerlo
es condición de la realización feliz de tal pregunta.

Vean que tal norma viene a poner un límite claro al ejercicio


legítimo de la primera, porque ahora resulta evidente que el
ejercicio de mi libertad de decidir solamente tiene legitimidad ética
cuando se combina con la búsqueda del consenso con los otros. Lo
que la segunda norma plantea es el desafío de que mi libertad de
decidir no opere contra la libertad de decidir de los otros, sino con
ella. Ella permite cuestionar desde la ética el aserto que dice “Mi
libertad termina donde empieza la de los otros”, porque este aserto
presupone que ambas libertades han de contraponerse; podemos
preguntar si tal presuposición, en vez de retratar una constante de
la condición humana, no sería el reflejo de una expresión histórica
de tal condición (entre otras posibles), a saber la característica de
la sociedad capitalista.
Unos señores que se auto-denominaron filósofos de la

221
posmodernidad creyeron éticamente legítimo defender la idea del
disenso y la diferencia contra el consenso (porque, dijeron, en
nombre de la razón que lo reivindica muchos crímenes fueron
cometidos); sin entrar a discutir el contendido, el fondo y el
trasfondo histórico-político de estos posmodernos, quiero llamar
vuestra atención sobre una flagrante auto-contradicción de estos
señores supuestamente muy listos; dar cursos y conferencias y
escribir artículos y libros sobre la (supuesta) prioridad del disenso,
no significa renunciar-superar el consenso, sino precisamente lo
contrario; significa intentar hacer consenso sobre la importancia
del disenso; total: por su práctica los posmodernos muestran a las
claras la falsedad de su teoría, reafirmando el consenso como idea-
guía de nuestra acción (pautada explícita o implícitamente por lo
que creemos deber hacer).

2.3. La norma ecológica

Recuerden que según Austin, la existencia de un determinado


procedimiento convencionalmente aceptado es condición básica de
felicidad del acto lingüístico de que se trate en cada caso. Así, es
condición de la felicidad de la pregunta “¿Qué debo hacer?” la
existencia del acto lingüístico de “preguntar”. Ahora bien, de lo que
nos dicen nuestros actuales conocimientos sobre formas de
comunicación entre los seres vivos, podemos concluir que
solamente el lenguaje humano posee “preguntas”. A su vez (y
aunque las computadoras ahora nos hacen la competencia, pero no
olvidemos que somos nosotros quienes las fabricamos, les ponemos
dentro los programas con sus lenguajes respectivos y las hacemos
funcionar), sólo los seres humanos saben hacer uso cabal y
completo del lenguaje humano. (Animales que entienden algunas
palabras no saben leerlas en un libro). Mas ahora viene la pregunta
del millón: ¿qué define a un ser como “humano”? Si respondemos
que es el lenguaje nada avanzaremos porque estaremos girando en
círculos. Con Marx puedo esgrimir otro rasgo distintivo: el trabajo.
Por él el hombre ha transformado el planeta a su imagen y

222
semejanza, para bien y para mal. Causa asombro y preocupación el
hecho de que hoy no hay prácticamente ningún rincón del planeta
que escape al poder transformador, por vía directa o indirecta, del
trabajo humano. En los antiguos pantanos que hasta el siglo XVII
rodeaban París se edificaron palacios y jardines; en nuestros
modestos jardines latinoamericanos vuelan los gorriones, traídos sin
querer por algún barco venido de Inglaterra, no se sabe exactamente
cuándo; florestas en cualquier lugar del mundo están siendo
literalmente quemadas por lluvias ácidas provocadas por
emanaciones industriales y de automóviles que operan, a veces, a
mucha distancia de allí.
A pesar de su increíble variedad todo trabajo humano reposa
en tres constantes: el sujeto que produce, el instrumento a través
del cual produce, y el objeto sobre el que opera el sujeto a través
del instrumento. El sujeto es un ser humano, mamífero
perteneciente a la naturaleza terráquea; el instrumento a través del
cual opera el sujeto puede ser desde una piedra usada para tallar
otra, hasta la máquina computadorizada de comando digital, o la
propia computadora; en fin, el objeto es siempre algún material
extraído de la naturaleza (desde la piedra tallada antes citada, hasta
el oxígeno liquidificado que sirve de combustible al cohete, o: ¡la
propia “información”, que es material especial producido por ese
ser natural particular que es el ser humano). Noten que las tres
constantes que hacen posible el trabajo remiten a la naturaleza: el
ser humano, el instrumento y el objeto. Pero remiten a una
naturaleza que sea apta para el trabajo. Y así, llegando al inicio de
esta larga escalera llegamos a la tercera norma ética que reza:

Debo preservar-regenerar una naturaleza sana desde el punto


de vista del trabajo, porque ello es condición de la felicidad de
la pregunta “¿Qué debo hacer?”

Esta norma es capaz de orientarnos en la decisiva cuestión


ecológica que tanto se discute hoy. Ya oigo su voz alertándome:
“¡no hacía falta tantos vericuetos para llegar a la conclusión de que

223
debemos preservar la naturaleza, porque eso es evidente!”. Y yo
respondo: no olviden que a alguien tan inteligente como
Aristóteles le parecía “evidente” que hay seres humanos
destinados naturalmente a ser esclavos ( o sea, que la esclavitud,
siendo algo “natural”, no podría ser nunca abolida); tampoco
olviden que la temática ecológica no fue reconocida como tema
capital por la cultura llamada “occidental” ( hoy dominante en el
planeta), sino muy recientemente, en la segunda mitad del siglo
XX; y por último, noten que la tercer norma hace parte de un
conjunto también formado por las otras dos, con lo que se
configura un claro perfil socio-ambiental en cuyo interior no cabe
disociar las cuestiones sociales de las ecológicas.
Antes de que me lo reprochen confieso que la tercera norma,
así como la hemos deducido, presenta un claro carácter utilitario,
en la medida que plantea la preservación-regeneración de la
naturaleza a la luz de su potencialidad productiva. Admito esa
limitación, pero, como ya dije, esa norma también se puede
deducir desde el lenguaje, sin invocar el trabajo; ojalá pasos
ulteriores puedan conducirnos hasta la preocupación lúdica y
estética gratuita en lo que respecta a la preservación-regeneración
de una naturaleza sana en nosotros, los otros seres humanos y la
naturaleza no-humana en general. No obstante espero poder
mostrar que la tercera norma mucho nos ilumina en lo relativo a
importantes cuestiones de actualidad, incluso en el área mediática.

3. La ética y la comunicación (mediática) en el socialismo del


siglo XXI

3.1. Damos por sentado que en el capitalismo actual (y en


especial en América Latina) los grandes medios de comunicación
privados son propiedad y medios de acción de las clases
dominantes para defender sus intereses (haciéndolos pasar por el
interés general, cuando, por ejemplo, pretextan defender la
“libertad de expresión” y de hecho lo que les importa es mantener
sus posiciones de privilegio en el latifundio mediático que han

224
constituido como parte y apoyo de su poder económico, político,
militar y cultural). Se pudiera incluso decir que en vez de ser el
“cuarto poder” los medios son hoy el primer poder (compartiendo
el lugar en manos de los dueños, que son los mismos, con el poder
económico), pues sin ellos, la mayoría de la población no podría
mantener por tanto tiempo en muchos países su seudoadhesión
consciente al capitalismo y a las tesis de la derecha oligárquica,
permitiendo la eternización de los privilegios de la misma en
detrimento de la calidad de vida del pueblo. Ejemplos
paradigmáticos de esa preeminencia de esos medios es el caso de
Honduras (donde participaron de la gestación, ejecución y
manutención del golpe de Estado del 28 de junio de 2009 contra
Zelaya; el 18/07/2009 César Silva, dirigente del Frente de
Resistencia contra el Golpe, declaró a Telesur que 3 personas
controlan en Honduras más de 170 radios de alcance nacional, o
regional o local), y Venezuela, en la que ellos hicieron parte
destacada de la trama que forjó el Golpe de Estado que duró 48
horas en 2002, manteniendo su prédica hasta el día de hoy. El
catastro de las concesiones del espectro radioeléctrico que lanzó el
gobierno venezolano a mediados de 2009 arrojó números por
demás significativos: a) 27 familias venezolanas poseen el 32% del
espectro radioléctrico del país, y, b) el 59 % de las emisoras AM y
FM pertenecen a circuitos radiofónicos, que concentran la
comunicación, y en especial la información. (Nótese que 240
emisoras de radio no se presentaron a ese censo o estaban en
situación ilegal y el Gobierno estudia el repaso de sus concesiones
a medios públicos, comunitarios o asociativos). En América la
oligarquía mediática coordina su acción (incluyendo la
información que difunden) a través de la Sociedad Interamericana
de Prensa, que congrega a los dueños de los grandes medios
privados de comunicación.

3.2. Asumimos como base de nuestras reflexiones el


“Manifiesto de la Comunicación Revolucionaria” elaborado por
Fernando Buen Abad (en Buen Abad 2006, Cap. XI) en el que

225
pregona, entre otras cosas: a) ganar la comunicación (“Denunciemos
la barbarie que nos acorrala y devasta. Denunciemos la miseria. Pero
no sólo denunciemos, construyamos también, lo que nos toca de un
camino ascendente. Construyamos con la imaginación liberada…”),
b) lo mejor es organizarse, no amontonarse (“…no para hacer triunfar
intereses individuales, sino para cambiar la vida, las estructuras
sociales, y la realidad del individuo…”, c) “los poetas, pintores,
músicos, teatristas, vídeoastas, intelectuales, bailarines…no son más
dueños ni más hacedores de la comunicación que los obreros, los
panaderos, los electricistas…”, d) “la revolución, el acto de amor, el
acto de poesía y el acto de comunicación no son incompatibles”, e)
hay que “darse prisa, darse prisa”, pues las semillas están echadas y el
tiempo urge.
Ahora bien, aquí pretendemos, por una lado, profundizar en
los fundamentos éticos de tal postura, y por otro, pretendemos
concluir este trabajo haciendo propuestas concretas para el
accionar del comunicador revolucionario de cara a la lucha por la
construcción del socialismo del siglo XXI. Todo ello sin olvidar
que los intelectuales, y también los periodistas, tienen una relación
de tensión con las autoridades en ejercicio, incluso en aquellos
países que dicen estar construyendo ese socialismo. Ya lo decía
Alvin W. Gouldner (1980): “La intelligentsia es controlada por
dos escalones que están por encima de ella: los funcionarios
burocráticos, los “funcionarios de oficio” que están directamente
por sobre ella; y los políticos que dirigen la burocracia en la
cumbre, quienes no son nombrados sobre la base de su
competencia técnica, sino porque representan al capital dinerario o
son los “comisarios” políticamente fiables. La estructura
fundamental dentro de la cual trabaja la mayoría de la
intelligentsia, pues, genera sistemáticamente tensiones entre sus
miembros, de una parte, y los funcionarios burocráticos y
administradores, de la otra” (Gouldner, p. 75).
Tal posición la fundamenta Gouldner en la adhesión de los
intelectuales a la Cultura del Discurso Crítico (CDC) que él
resume como “una gramática del discurso que 1) se preocupa por

226
justificar sus aserciones, pero 2) cuyo modo de justificación no se
basa en la apelación a autoridades, y 3) prefiere obtener el
consenso voluntario de aquellos a quienes se dirige solamente
sobre la base de los argumentos aducidos. La CDC se centra en un
acto lingüístico específico: la justificación. Es una cultura del
discurso en la cual no hay nada que, en principio, los hablantes se
nieguen permanentemente a discutir o a hacer problemático; en
verdad hasta se hallan dispuestos a hablar sobre el valor del habla
misma y su posible inferioridad con respecto al silencio o a la
práctica” (idem. p.48). También había destacado ese autor que
aquellas fricciones vienen del apego de los intelectuales (también
del buen periodista, agregamos nosotros, a la luz de lo que diremos
en lo que sigue) a la autonomía y del rechazo a la censura (idem.,
pp. 55, y 14, 32, 111, 121, entre otras).
Ahora bien, la fundamentación última de la postura que
pregonamos para el ejercicio de los medios de comunicación en el
socialismo del siglo XXI tiene su base en la ética argumentativa
ecomunitarista (en especial en sus dos primeras normas) que
resumimos en lo que antecedió.
Sobre la base de las tres normas fundamentales de la Ética,
defino la Liberación como un proceso histórico de construcción de
la libertad consensual de decisión acerca de nuestras vidas, a través
de la discusión y de la lucha contra las instancias de dominación
intersubjetiva y auto-represión alienada; proceso del que hacen
parte el establecimiento de relaciones productivas y estéticas de
carácter preservador-regenerador entre los seres humanos y el resto
de la Naturaleza.
Llamo “Ecomunitarismo” al orden utópico socioambiental
poscapitalista (nunca alcanzable, pero indispensable horizonte
histórico que funciona como guía de la acción cotidiana) capaz de
articularse cotidianamente en base a las tres normas fundamentales
de la Ética, y de mantenerse por la postura de seres humanos en
actitud de liberación. Proponemos que el socialismo del siglo XXI
asuma al ecomunitarismo como el horizonte-guía para la acción
cotidiana.

227
3.3. Crítica de la moral, de la alienación económica y de
las “órdenes” en general
A la luz de las tres normas éticas básicas y de los conceptos
de “liberación” y de “ecomunitarismo” que en ellas se apoyan,
podemos realizar la crítica de la moral, de las relaciones
comunicativas vigentes en el capitalismo, y de los “órdenes” en
general, cualquiera que sea su campo de aparición.
Propuse distinguir la “Moral” de la “Ética” a partir de la
diferencia existente entre los respectivos actos lingüísticos
obligativos que constituyen uno y otro dominio. Pertenecen a la
“Moral” los obligativos que son imperativos simples construidos
en torno a la forma “debo/debemos x”, en el preciso uso del verbo
“deber” que cabe en los CRC17. Es obvio que, al tener esa forma,
los obligativos morales no incluyen ninguna justificación
argumentativa. Así, tanto en “¡Libera al pobre!” como en “¡Debo
decir la verdad” y en sus formas equivalentes, “Debo liberar al
pobre” y “No debo mentir”, no hay ninguna fundamentación de la
obligación que el hablante auto-instituye para sí. Esos imperativos
en su forma “categórica” instituyen una obligación aparentemente
firme, pero de hecho debilísima en sus bases de fundamentación,
inexistentes en el acto lingüístico ejecutado. Al constatarse lo
anterior, percibimos que es en función de su propia estructura, o
sea, de manera intrínseca, que los obligativos morales: a) No se
establecen sobre bases argumentativas explícitas, y, b) [debido a
eso] no son susceptibles de discusión crítica. Esa última
característica implica que no es posible al hablante dirimir en el
plano de la “Moral”, y en base a un análisis crítico, cualquier
contradicción que por ventura detecte entre diversas obligaciones
auto-instituidas, así como tampoco es posible establecer una
comparación crítica (destinada a una eventual opción
argumentativamente fundada) entre obligativos morales proferidos
por diferentes hablantes en la primera persona del plural
(“Debemos x”). En resumen, lo que observamos es que, tanto el

17
Cfr. LÓPEZ VELASCO, Sirio, 2009.

228
problema del relativismo moral, como aquél del subjetivismo-
decisionismo moral, son consecuencias inevitables de la propia
estructura de los obligativos morales. Llamo “éticos” a los auto-
obligativos instituidos y discutibles argumentativamente según el
modelo de lo que denomino “Casi-razonamientos Causales”
(CRC). Un CRC es una expresión lingüística compleja articulada
en torno al conectivo “porque” y donde la parte que sigue al
conectivo es un “enunciado”, así como lo entiende la lógica clásica
(o sea, es una frase declarativa susceptible de un y un sólo valor de
verdad, lo verdadero o lo falso), mientras que la parte que lo
precede es un “obligativo” (en la forma en que aquí he
anteriormente caracterizado ese acto lingüístico). Así, resumiendo
lo dicho, los auto-obligativos éticos tienen la forma
“Debo/Debemos x porque E”, donde “E” es un enunciado y “x” un
sintagma iniciado por un verbo en infinitivo distinto de “deber”,
sintagma cuyo contenido, aunque ligeramente transformado,
también hace parte de “E” (ver López Velasco 2009, Parte I). Los
auto-obligativos éticos son auto-instituidos según la siguiente
gramática: es porque se juzga verdadero el enunciado “E” que
sigue al conectivo “porque”, que el hablante asume el obligativo
que antecede al citado conectivo. A su vez, en situación de diálogo
con otro interlocutor, el enunciado “E” es dado por el hablante que
auto-instituye el obligativo considerado como la justificación
argumentativa (que puede ser objeto de discusión crítica) del
mismo. Hace parte, pues, de la gramática del auto-obligativo ético,
la pretensión de universalidad argumentativamente fundada que él
vehicula. El hablante que profiere un auto-obligativo ético
considera que, como sucede con él, todo ser humano que juzgue
verdadero el enunciado “E” que sigue al conectivo “porque” está
obligado a asumir el obligativo que precede a dicho conectivo. Y
eso en virtud de la propia gramática del auto-obligativo ético,
según la cual, el aceptar la verdad del enunciado “E” equivale
automáticamente a adherir al obligativo que precede al conectivo
“porque”. Si el oyente no acepta la verdad de dicho enunciado,
entonces se abre el espacio de la argumentación entre el emisor y

229
el receptor del CRC sobre la verdad o falsedad de dicho
enunciado, resultando de ello dos finales posibles: a) el receptor es
convencido en ese diálogo argumentativo de la verdad del
enunciado y debe ocurrir lo expuesto en el primer caso (asunción
del obligativo en cuestión y ejecución de la acción indicada por
él), o, b) el emisor se convence de la falsedad del enunciado y se
ve obligado entonces a “retirar” el obligativo antes proferido, en la
medida en que su “infelicidad” (como diría Austin en la citada
obra, mas con la diferencia de que aquí esta “infelicidad” ha sido
establecida en el diálogo crítico entre por lo menos dos
interlocutores) ha quedado argumentativamente establecida a partir
de la falsación del enunciado “E”.
He aplicado esa reflexión a las relaciones comunicativas
vigentes en la economía capitalista18 como sigue. Se constata que,
cuando un ser humano pasa a ser asalariado y durante el tiempo de
la jornada en la que se desempeña como tal, pierde el control sobre
su propia actividad productiva. Quien pasa a ejercer tal control es
el capitalista o un representante suyo por él indicado. Eso sucede
porque la capacidad productiva del asalariado es precisamente lo
que éste vende al capitalista a cambio del salario; y como esa
capacidad se actualiza (o sea, pasa de la “potencia” al “acto”,
haciéndose “real”), en la actividad de producción, el capitalista es
el dueño de ella (en los límites temporales de la jornada laboral) y,
como tal, se comporta. Esa situación recibe confirmación y
expresión por y a través del acto lingüístico que predomina en la
relación entre el capitalista (o sus representantes) y los asalariados
en el espacio-tiempo de la jornada de trabajo: la “orden”.
Discutiendo la poca atención dada por Karl-Otto Apel (1985)
a las relaciones comunicativas vigentes en el seno de la empresa
capitalista y el vínculo que se debe establecer entre ellas y las
relaciones productivas allí en vigor, sometí a examen en un trabajo
anterior el imperio del acto lingüístico de la “orden” en el referido
universo celular (de importancia sin duda fundamental en la

18
Cfr. LÓPEZ VELASCO, Sirio, 2009.

230
arquitectura del organismo total de la sociedad capitalista). Allí
partía yo del hecho empírico constituido por el predominio de la
“orden” en el conjunto de los actos lingüísticos ejecutados por el
capitalista (o alguno de sus representantes) que tienen como
destinatarios a los trabajadores (en especial a los obreros rasos) en
el espacio de la empresa y durante el tiempo de la jornada de
trabajo. Sobre esa base hacía notar como, si siguiésemos al pie de
la letra el análisis austiniano de las reglas que presiden la
“ejecución feliz” de los actos lingüísticos, podríamos canonizar la
asimetría comunicativa vigente en tal situación; porque,
ejemplificando con una “infelicidad” [infelicitie] producto de la
violación de uno y/o de ambos de los dos primeros tipos de reglas
por él develadas, decía Austin (1962): “...en una isla desierta otro
puede decirme 'vaya a traer leña', y yo responderle 'no recibo
órdenes suyas ' o 'usted no está autorizado a darme órdenes '. No
recibo órdenes del otro cuando él pretende 'afirmar su autoridad '
(cosa que yo podría aceptar o no) en una isla desierta, en
contraposición al caso en el que el otro es el capitán de un
barco y por eso tiene autoridad legítima”. Recordando que el
Diccionario19 define la “orden”, en el uso aquí relevante de ese
término, como “acto por el cual un jefe, una autoridad, manifiesta
su voluntad”, destacaba yo la perfecta correspondencia existente
entre esa definición y el análisis austiniano del supracitado
“infortunio”, cuya conclusión, por cierto, no desagradaría a un
buen prusiano; el problema es que la última frase de Austin podría
terminar, con ligera variante, como sigue: “ en contraposición al
caso en el que el otro es mi patrón y por eso tiene autoridad
genuina”. Y de esa manera, recibiría canonización austiniana el
imperio de las “órdenes” (y del “orden”) vigentes en la empresa
capitalista. Ese resultado sería el inevitable punto de llegada de
todo análisis que, tan rigurosa como cándidamente propusiese
tematizar “procedimientos convencionales aceptados”20 empleados

19
PETIT ROBERT. Le Robert, Paris, 1983.
20
Cfr. Reglas “A” de Austin.

231
“por ciertas personas en ciertas circunstancias”21, sin hacer la
crítica de las relaciones sociales (en especial de producción) a
partir de las que ciertos “procedimientos” devienen
“convencionalmente” “aceptados” y que hacen posible la
ejecución siempre a salvo del “infortunio” de ciertos actos
lingüísticos por parte de “ciertas personas” en “ciertas
circunstancias”. En el caso considerado, la pregunta que espera
respuesta es la siguiente: ¿cuál es la condición de existencia del
trabajador sobre la que se asienta su “aceptación” (como actos
nunca “infortunados”) de las órdenes a él dirigidas en el espacio-
tiempo de la jornada laboral venidas del capitalista (o alguno de
sus representantes), como “persona apropiada”?
Responder a esa pregunta implica entrar en el universo de las
relaciones productivas vigentes entre el capitalista y el trabajador;
en ellas, como señalaba Marx:
a) El asalariado, que se encuentra separado de las
condiciones objetivas de realización de su capacidad de trabajo
como fuente creadora de los bienes necesarios para su
subsistencia, solamente puede superar esa separación y conseguir
aquellos bienes vendiendo su capacidad de trabajo al capitalista, y,
b) En la superación de esa separación mediante la forma citada “ el
trabajador como trabajador entra bajo el comando del capitalista”
y su “trabajo vivo... como ocupación, utilidad de la capacidad de
trabajo a él comprada” pasa a pertenecer (junto con el material de
trabajo y los instrumentos de producción) al capitalista, a quien
pasa a pertenecer pues la totalidad del proceso de trabajo; mas
“visto que el trabajo es al mismo tiempo exteriorización vital del
trabajador mismo, es ocupación de su propia realización y
capacidad personal –una ocupación que depende de su voluntad
[y] es al mismo tiempo exteriorización voluntaria de la misma– el
capitalista vigila al trabajador, controla la ocupación de su
capacidad de trabajo como una acción que le perteneciese” (Marx
1861-1863; en El Capital Marx resume esas opiniones, entre otros,

21
Cfr. Reglas “B” de Austin.

232
en el siguiente pasaje: “El obrero trabaja bajo el control del
capitalista, a quien su trabajo pertenece. El capitalista vigila para
que ese trabajo sea ejecutado como es debido y que los medios de
producción sean empleados convenientemente...”, Libro I, Sección
III, Cap. V, p. 147, Ed Pueblo y Educación, La Habana, 1973,
1983).
Así, vemos que el trabajo asalariado la orden dada por el
capitalista es siempre “feliz”, en la medida en que la misma no se
inscribe en el contexto de una plena intersubjetividad; porque, en
la relación asalariada, el trabajador se reduce a simple “capacidad
de trabajo” que pertenece al conjunto de “cosas”, por medio de las
que el capital recorre su ciclo de autovalorización, y el capitalista,
corporificación personalizada de aquél, afirma solipsísticamente en
“su” empresa, su subjetividad.
Para decirlo con palabras de Marx: “Desde su punto de vista
(el del capitalista) el proceso de trabajo no es más que el consumo
de la mercancía fuerza de trabajo comprada por él, aunque
solamente puede consumirla facilitándole medios de producción.
El proceso de trabajo es un proceso entre cosas compradas por el
capitalista, entre cosas pertenecientes a él”.22
En la empresa, la “orden” dada al trabajador, como podría ser dada
a un caballo, un buey o una máquina computadorizada, es el instrumento
de la “vigilancia” y del “control” a los que se refería Marx.
Por otro lado el asalariado se ve obligado a la “aceptación”
del “procedimiento de la orden” y de su invocación-realización por
el capitalista o un representante suyo, “aceptando” la “felicidad”
de cada una de sus ejecuciones en el seno de la empresa, porque de
esa “aceptación” depende, ni más ni menos, que su propia
subsistencia como asalariado y su propia subsistencia física como
ser humano (y la de su familia). En efecto, el desempleo, con su
cortejo de penuria absoluta o relativa en lo referente a las
“necesidades” satisfechas mediante el salario - penuria que puede
llegar a los límites de la indigencia, e incluso a la muerte – es el

22
MARX, Karl, El Capital, Libro I, Sección III, Cap. V, p.147

233
precio del cuestionamiento de tal “felicidad” y la siempre
pendiente espada de Damocles del desempleo es la base de la
instauración y perpetuación del referido “procedimiento” en
cuanto “convención aceptada”.

3.3.1. Alienación de las capacidades humanas


El trabajo marcado por la obediencia a las “órdenes” es el
ámbito en el que el trabajador se ve obligado a alienar sus propias
capacidades humanas (constituyentes de su “ser genérico”, diría el
Marx de los Manuscritos de 1844). Entre esas capacidades se
destacan la “capacidad humana de trabajo” (producto de
determinaciones genéticas y del proceso educativo) y la capacidad
de argumentar (o sea de elaborar-proponer razonamientos) a partir
y sobre la base del lenguaje humano (cuyos rasgos específicos han
sido revelados por Martinet y Chomsky).
Ya vimos como en condiciones capitalistas el trabajador está
alienado de su “capacidad de trabajo” en la medida en que ésta
pasa a ser propiedad del capitalista. Esa situación incluye el hecho
de que el trabajador no puede decidir en el espacio-tiempo de la
empresa sobre “cuál”, “cómo” y el “grado” de las habilidades que
componen su “capacidad humana de trabajo” habrá de poner en
acción. Por el contrario, su acción deberá poner en juego
solamente aquellas habilidades indicadas por la “orden” recibida
del capitalista (o uno de sus representantes) y en la forma y grado
especificado por la misma. Las habilidades, o su forma o grado no
contempladas por esa orden, no deben ser ejercidas por el
trabajador, bajo pena de ser pasible de castigos, entre los que
figura la destitución, estipulados en la legislación laboral, como en
los “reglamentos internos” de la empresa. A su vez, es obvio que
no es permitido que el trabajador argumente, oponiendo
razonamientos a las órdenes recibidas, ni eso es aconsejable si
quiere conservar su empleo. Del trabajador, como del soldado, lo
que se espera es que actúe, no que piense.
Es interesante constatar que, en ambas dimensiones, tanto la
relativa al acortamiento de las habilidades constitutivas de la

234
capacidad de trabajo específicamente humana (con la consecuente
represión de las habilidades “sobrantes”), como en el
cercenamiento de su capacidad de argumentar, el trabajador se ve
literalmente animalizado en y por el trabajo alienado. Por eso es
que, en la actividad productiva ejercida en las condiciones
capitalistas, el trabajo continúa merecedor de la etimología que lo
vincula a la tortura del “tripalium”, pues realmente es una
actividad de la que el trabajador “huye como de la peste” cuando
se ve libre de coacción.23(cfr. Marx 1844, Manuscrito I).
De ahí también que el trabajador se sienta “en casa” (“zu
hause”) fuera del trabajo, y no se sienta “en casa” en él, o sea, se
sienta humano cuando desempeña actividades como comer y
beber, que el ser humano comparte con otros animales, y se sienta
animal cuando desempeña una de sus funciones específicas (que lo
distinguen del resto de los animales), a saber, el trabajo.24
En el Ecomunitarismo la re-humanización de la actividad
productiva supone la abolición de las órdenes y su sustitución por
CRC a través de los cuales los productores libremente asociados
establecen y renuevan (en base al peso del mejor argumento) los
pactos que regulan sus relaciones y los procesos y productos de la
producción-distribución.25 Recordemos que sostengo que el
socialismo del siglo XXI debe asumir como horizonte guía para la
acción cotidiana, también en la esfera comunicativa, a la utopía
ecomunitarista.
Dando por demostrada la primera norma de la ética, la
defensa de la libertad de expresión se puede fundamentar en la
ética con el siguiente CRC: “Debo ejercer-promover la libertad de
expresión porque el ejercicio-promoción de la libertad de
expresión es parte de la libertad de decisión amparada por la
23
Cfr. MARX, Karl, Ökonomische-Philosophische Manuskripte 1844, Rowohlt
Taschenbuch Verlag, Hamburg, 1968; Manuscritos de Economía y Filosofía,
Alianza, Madrid , 1970.
24
Cfr. Ídem.
25
Cfr. LÓPEZ VELASCO, Sirio, Ética de la liberación, op. cit.; Ética
ecomunitarista, op. cit.

235
primera norma de la ética”; la verdad del enunciado que en este
CRC sigue al conectivo “porque” puede defenderse haciendo notar
que sólo pudiendo expresarme libremente podré construir mi
libertad de decisión, la cual, incluso, nutriéndose de los
argumentos recibidos de los otros (igualmente libres en su
expresión), puede consistir en una rectificación de lo inicialmente
expresado (lo que se ajusta a la búsqueda del consenso, exigida por
la segunda norma de la ética).
La defensa de la apropiación comunitaria de los medios de
comunicación puede ejercerse mediante un CRC como el
siguiente: “Debo promover la propiedad comunitaria de los medios
de comunicación porque la propiedad comunitaria de los medios
de comunicación hace a la sociedad más democrática y yo quiero
ayudar a construir una sociedad más democrática”. Aquí al
enunciado que sigue al conectivo “porque’ le asociamos (como lo
estipula la lógica clásica) la fórmula sentencial conjuntiva (p . q);
defendemos la verdad de tal enunciado complejo sosteniendo que
tanto “p” como “q” son verdaderas [pues damos por supuesto “q”
(a saber, “yo quiero ayudar a construir una sociedad más
democrática”), y podemos argumentar que, si según la definición
clásica la democracia consiste en el gobierno del pueblo, y con la
propiedad comunitaria de los medios de comunicación el pueblo
podrá gobernar la comunicación, entonces concluimos que con tal
apropiación la sociedad se hace más democrática]; así, siendo
verdaderas “p” y “q”, es verdadero el enunciado de su conjunción,
y se legitima argumentativamente el obligativo que reza “debo
promover la propiedad comunitaria de los medios de
comunicación”.

3.4. Nota. Nótese que la segunda norma nos pide que


busquemos consensos; pero sabemos que la unanimidad es
imposible en una sociedad dividida en clases (y tal vez ella sea
despreciable en sí, pues como dijo el dramaturgo brasileño Nelson
Rodrigues, “toda unanimidad es estúpida”, lo que fue
abudantemente corroborado por las unanimidades de los varios

236
congresos del Partido Comunista de la URSS). Tal situación nos
lleva a proponer (basándonos en una norma democrática básica,
ejercida desde su invención por los griegos en el siglo V antes de
Cristo) que, a falta de consenso, sirva como mecanismo decisorio
el voto de las mayorías (que sabemos cuán imperfecto es, desde la
prédica minoritaria de Galileo; la salida para tales errores es
mantener siempre abierta la discusión, independientemente de las
mayorías circunstanciales que hayan decidido en una determinada
ocasión, y darse nuevas ocasiones para eventualmente revisar la
decisión antes tomada).

4. La cuestión de la objetividad: Fassano corregido por Apel

En varias entregas semanales a lo largo de 2007 el periodista


uruguayo Federico Fassano, dueño del diario “La República”
editado en Montevideo y con circulación nacional, abordó el tema
de la prensa bajo el título de “La cosa vostra”, atacando los
siguientes mitos ideológicos divulgados por los grandes medios: 1.
la noticia es la que reina y gobierna, 2. la objetividad y la
neutralidad son la base del sistema, 3. la privatización es la
garantía contra la intromisión del Estado, 4. el cuarto poder es el
poder autónomo de los medios, 5. la libertad de prensa es la
religión de los medios, 6. la opinión pública es el juez inapelable,
7. la participación es libre, 8. la publicidad iguala, 9. somos
esclavos en el trabajo pero libres en el consumo, y, 10. la ausencia
de prohibiciones resuelve el problema.
En su nota del 30/11/2007 Fassano abordó el tema de lo que
caracterizó como el mito de la objetividad y la neutralidad de la
prensa . Allí cita a James Linen, editor del muy capitalista “Time”,
quien sostuvo “que la objetividad total es tan imposible como
indeseable. A menudo se nos dice que la función del periódico es
sencillamente decir lo que ocurrió, qué hizo o qué dijo tal persona.
Nada de opiniones ni de juicios, sólo hechos. Pero si un periódico
o una revista de noticias sencillamente amontona todos los hechos
en un artículo que puede imprimir, ¿acaso cumple con su

237
responsabilidad hacia el lector? No lo creo. Me parece que esta
obsesión con sólo los hechos puede conducir al absurdo”. Por
nuestra parte recordamos que, en las antípodas del positivismo,
alguien dijo que no hay hechos, sólo interpretaciones. Fassano
adopta esa visión cuando dice: “La falacia de la objetividad no
resiste ningún test comparativo. Un mismo hecho noticioso en dos
medios de comunicación con soportes ideológicos distintos
producen dos impactos diferentes en el receptor [N.B. Con John L.
Austin, 1962, diríamos que vehiculan actos de lenguaje con
distinta fuerza perlocucionaria). Porque no sólo las palabras, la
textualidad, son las que conforman el mensaje. Su ubicación, su
complemento gráfico, la tipografía empleada, la cantidad de tintas,
la división del hecho, su titulación, su copete informativo, en fin,
toda la gama técnico-profesional de la presentación del
acontecimiento, unido a lo que no se dice, a lo que se destaca, a lo
que se minimiza, al colorido de la nota, todo influye en la
producción del mensaje y su capacidad de convencer y hacerlo
creíble, y reclutar al receptor para que acepte la carga ideológica
latente del hecho que se le ofrece”. Y más adelante aclara Fassano
que (en un medio privado) no es el periodista quien decide si su
texto se publica o no, pues esa decisión cabe a quienes manejan la
línea editorial del mismo, la que, a su vez, se pauta por los
intereses de sus dueños (parte o aliados de la oligarquía
dominante); y señala que cuando un columnista se aparta de ellos,
pronto será expulsado (si antes no renunció a su cargo). Por
nuestra parte agregamos que esa falta de poder decisorio del
periodista acerca de la publicación/divulgación (o no) de su texto,
lo equipara al trabajador alienado en el universo de la empresa
capitalista, de quien (como vimos antes) se espera que obedezca
órdenes y no que argumente y decida. Y concluía esa nota Fassano
diciendo: “Pero incluso la máscara de la objetividad tiene sus
límites, como la democracia formal siempre los tuvo. Cuando
suena el alerta roja general y el alerta se prende [N.B. o sea,
cuando peligran los intereses de la oligarquía], el sistema no duda
en transformar la objetividad en propaganda abierta, en

238
subjetivismo desenmascarado. Lo prueba la larga serie de
regímenes de fuerza instaurados en América Latina en el siglo
pasado, con el apoyo manifiesto, carente de todo disimulo, de los
principales órganos de la gran prensa demoliberal del continente,
partidaria de los gobiernos de opinión, hasta que el reclamo de las
masas en las cuotas del excedente los llevó a consolidar el giro
estratégico autocrático”. En el siglo XXI tales palabras recibieron
plena confirmación en la conducta de la gran prensa en los Golpes
de Estado consumados en Venezuela en 2002 y en Honduras en
2009, e intentado en Bolivia en 2008; lo notable en esos casos
(ahora la información a través de las antenas parabólicas e Internet
nos permiten saberlo de inmediato) fue la coordinación de casi
todos los grandes medios de comunicación privados de América
Latina para divulgar a sus millones de receptores un sólo enfoque
de los “hechos” y un sólo punto de vista, a saber, el de los
golpistas; así desinforman sistemáticamente y “forman”
literalmente la seudo-opinión de millones de cabezas (cfr.
Habermas 1962).
Por su parte Karl-Otto Apel aclaró (Apel 1985) que la visión
cartesiana solipsista de la “objetividad” (que dependería del
esfuerzo solitario de una mente por no dejarse influenciar en su
percepción de “hechos” supuestamente independientes de ella) ha
sido superada por una visión dialógica de la construcción del
conocimiento; es ésta la que, como hemos mostrado (López
Velasco 2009, Parte III), Paulo Freire (1970, Cap. II) defendió en
su “pedagogía problematizadora” ya en los años 60 del siglo XX,
donde la “objetividad” es el resultado de la crítica recíproca de los
sujetos cognoscentes (y, como tal, es variable, en función de la
variación histórica sucesiva de esos resultados). Ello es totalmente
coherente con la Cultura del Discurso Crítico a la que aludíamos
antes.
Por su parte T. Van Dijk dice que el discurso periodístico
puede estructurarse y analizarse en base a cuatro categorías
principales: resumen (titular y encabezamiento), contexto e
historia (antecedentes y hecho principal), consecuencias (hechos o

239
acciones consiguientes y reacciones verbales), y comentarios
finales (evaluación y predicción) (La noticia como discurso.
Comprensión, estructura y producción de la información, Ed.
Paidós, Barcelona, 1990; ver Sylvia Fernández y Lourdes Molero,
2007, p. 3). Como ya dijimos, es evidente que el o los “hechos” en
cuestión se delimitan a la luz de un ángulo de enfoque
interpretativo específico. J.M. Adam presenta una tipología de los
textos que los discrimina en (predominantemente) narrativos,
descriptivos, dialogales, explicativos y argumentativos; la
secuencia argumentativa se compondría de una “aserción de
partida”, una “aserción de pasaje” y una “aserción de llegada” (Les
textes. Types et pototypes, Ed. Nathan, Paris, 1992; ver Fernández
y Molero, 2007, p. 5). Como vemos, Adam toma aquí como base
la estructura de los razonamientos, en el sentido aristotélico, y en
especial la de los silogismos, compuestos por tres enunciados (que
son, respectivamente, la premisa mayor, la menor y la conclusión).
Los “razonamientos” compuestos por premisa(s) y conclusión, son
la base de la Cultura del Discurso Crítico (CDC), resumida por
Gouldner, como vimos anteriormente; nótese que si hemos
bautizado casi-razonamientos causales (CRC) a las estructuras de
las normas éticas, es porque, así como sucede con las premisas y
conclusión de un razonamiento, el enunciado E que sigue en un
CRC al conectivo “porque” es pasible de discusión en términos de
verdad o falsedad (lo que es determinante para la aceptación
argumentada del obligativo que integra el CRC, situado antes de
ese conectivo). A su vez Chilton y Shaffner sostienen que las
funciones del discurso político son (y citamos literalmente el
resumen de Fernández y Molero): “coerción” (los emisores actúan
coercitivamente mediante el discurso al disponer la prioridad de
los asuntos, seleccionar los temas de discusión y suponer
realidades que los receptores se ven obligados a aceptar, aunque
sea en forma provisional, para poder procesar el texto),
“resistencia”, “oposición” y “protesta” (cuando se consideran
opositores al poder, los emisores intentan desplegar en un sentido
contrario muchas de las estrategias discursivas utilizadas por los

240
poderosos), “encubrimientos” (se utiliza para impedir que la gente
reciba información o que algunas personas brinden información),
“legitimación” y “deslegitimación” (entre las técnicas utilizadas se
incluyen la proyección de un liderazgo carismático, el alarde sobre
los propios logros, y la autopresentación positiva; su contraparte es
la deslegitimación, en la que los otros, los enemigos, deben ser
presentados negativamente, para lo cual se recurre a actos de habla
como los de culpar, acusar, insultar, etc.) (Discurso y política, en
T. Van Dijk, compilador, “El discurso como interacción social”,
Ed. Gedisa, Barcelona, 2000, pp. 297-329; ver Fernández y
Molero 2007, p. 6). Nos parece evidente que un comunicador
revolucionario no puede escapar al ejercicio de la “coerción” tal
como aquí se la define, pues es imposible abordar todos los temas
todo el tiempo; mas, a partir de la ética (articulada en CRC) y de la
Cultura del Discurso Crítico (CDC), creemos que: a) debe evitar la
práctica del “encubrimiento”, incluso cuando las informaciones
presentadas como relevantes lo son por adversarios del socialismo
del siglo XXI, b) no debe buscar la “legitimación” de su posición
ni la “deslegitimación” de la del oponente sino en el peso
argumentativo (valor de verdad, por lo menos provisoria en aquel
momento histórico) de sus razones discutibles como enunciados
y/o como CRC, negándose a endiosar a líderes carismáticos (el
final triste de los ejemplos de Stalin y Mao están a la vista), ni
confundiendo la defensa de las conquistas revolucionarias con el
ocultamiento acrítico de los errores, que se acompaña de una
autopresentación hiper-positiva arrogante y acrítica, c) en
consecuencia, no debe vacilar en ejercer, dentro de la revolución,
la “protesta” e incluso la “resistencia” (cfr. Goudner en relación a
la posición de los intelectuales respecto a los burócratas y
dirigentes políticos indicados desde arriba), para que el socialismo
del siglo XXI, al corregir incesantemente sus carencias, se haga
cada vez mejor y más fuerte, y, d) debe evitar caer en el insulto y
la provocación, para defender y atacar posturas siempre en base al
valor de verdad de sus argumentos; no olvidemos que en el
socialismo del siglo XXI también queremos dejar atrás el

241
argumento de autoridad, mediante la autoridad del mejor
argumento.
En base a todo lo anterior hacemos las siguientes propuestas
para orientar la acción del comunicador revolucionario.

5. Algunas propuestas

1. Luchar para realizar las tres normas éticas fundamentales,


y en especial la primera, que nos exige realizar nuestra libertad
individual de decisión (aunada con la segunda, que nos exige
realizar aquella libertad en una dinámica de búsqueda consensual
de la verdad y de las respuestas a dar a la pregunta “¿qué debo
hacer?; sin olvidar nunca la tercera norma, de carácter
socioambiental, que incluye la problemática ecológica, decisiva
para el socialismo del siglo XXI pensado en perspectiva
ecomunitarista; cfr. López Velasco 2009, Parte II).
2. Luchar por y ejercer (de conformidad con la primera
norma) nuestra autonomía de investigación, juicio y opinión.
3. Definir explícitamente su punto de vista como
revolucionario, para que nadie se llame a engaño sobre su ángulo
de enfoque de la realidad.
4. Practicar una comunicación que permita a cada uno (cada
ciudadano) construir su libertad de decisión, en dinámica de
búsquedas de consenso con los demás. Ello supone: a) fomentar la
proliferación de los medios de comunicación comunitarios, donde
el ciudadano sea, a la vez, el comunicador, y no un mero receptor
pasivo del mensaje ajeno; sobre la ruina de la “opinión pública” a
causa de esta asimetría comunicativa que se trasunta en la
seudoconstrucción de una opinión privada, ya se había
pronunciado Habermas (1962) al denunciar a la prensa convertida
en empresa, y al “receptor” pasivo cuya seudo-opinión es formada
a-dialógicamente por los productos de aquella empresa; b) en los
medios no comunitarios darle la palabra al ciudadano para que
ejerza su derecho a preguntar, criticar y proponer.
5. El comunicador revolucionario debe, en su medio de

242
actuación, proponer y participar de debates con los adversarios de
la revolución, pues no hay nada peor que “cocinarse en su propia
salsa”, sin escuchar (y por tanto reflexionar seriamente sobre ellos)
los (seudo) argumentos de los adversarios; y nótese que muchas
veces puede tratarse de argumentos legítimos que apunten a
errores reales, que habrá que corregir lo más rápidamente posible.
6. El comunicador revolucionario deberá ser siempre crítico
y autocrítico con el proceso revolucionario al que adhiere, so pena
de dejar que ciertos errores se eternicen (y puedan dar al traste con
ese proceso, como ocurrió en la URSS y demás países ex-
socialistas); en esa tarea no deberá temer contrariar a los
burócratas y jefes políticos con quienes su relación siempre será
virtualmente tensionada (como bien lo destacó Gouldner).
6.1 Aun cuando la intención del adversario de la revolución
sea perjudicarla, el revolucionario siempre sabrá distinguir esa
intención y el error efectivo señalado, no cayendo en el error
denunciado por el proverbio vietnamita que reza “cuando un dedo
apunta a la luna el idiota mira el dedo”.
6.2 Para que el periodista de los medios públicos pueda
desempeñar a cabalidad su papel crítico-autocrítico, debe gozar de
estabilidad laboral, como ya sucede en muchos países de A. Latina
con los docentes de las instituciones públicas de educación (en
especial las universitarias, donde rige la libertad de cátedra).
7. Luchar para que todos los medios de comunicación estén
en manos de los productores libremente asociados, a través de
medios comunitarios (en manos de los vecinos de una localidad), y
medios en manos de asociaciones de ciudadanos (sindicatos de
trabajadores, gremios estudiantiles, Universidades y centros
educativos, organizaciones ambientalistas y no gubernamentales,
centros deportivos públicos, etc.). Mientras se lucha por esa
realidad ecomunitarista los medios en mano del Estado (a nivel de
gobierno central o gobiernos estadales o municipales) y sus
comunicadores deben atenerse a la filosofía trazada en los seis
puntos anteriores. En ese mismo ínterin los medios privados que
subsistan (una idea que ha circulado en 2009 en Argentina y

243
Venezuela propugna que no sean más del 33% de la totalidad de
los medios) deben: a) incluir no menos de 70% de producción
nacional (como ya lo estipula la ley venezolana de
telecomunicaciones), b) plegarse a las cadenas determinadas por el
poder público, c) ser jurídicamente responsables por las inverdades
que difundan, d) abrir espacios obligatorios para los medios
comunitarios y asociativos.
8. Luchar por la creación (y participación en ellos) de
Consejos Comunales de Comunicación en los que los vecinos de
un barrio discutan, sistematicen y elaboren la comunicación que
sus pares desean divulgar, y la divulguen por todos los medios a su
alcance (incluyendo Internet).
8.1 Promover y apoyar la creación de Consejos Comunales
de Empresa, de Cooperativa, de Centro Estudiantil, de Centro
Deportivo, etc., en los que los trabajadores, campesinos,
estudiantes, practicantes de deportes, que frecuentan cada uno de
esos lugares, discutan, sistematicen y elaboren la comunicación
que sus pares desean divulgar, y la divulguen por todos los medios
(incluyendo Internet).

244
EL ECOMUNITARISMO Y EL TAO TE KING:
PRIMERA APROXIMACIÓN

INTRODUCCIÓN

Este trabajo se inscribe en el contexto de los balbuceos de


diálogo intercultural instaurado a partir de nuestra propuesta
ecomunitarista (que ya iniciamos con la cultura xavante y el Popol
Vuh, y la enseñanza de Buda y del “Gita” en la interpretación de
Gandhi; ver López Velasco 2009b).
Esta primera aproximación se ve de entrada limitada por el
abismo de la lengua, ya que usamos una traducción (Tao Te King,
traducción de Stanislas Julien, versión en francés, que a su vez,
aquí citaremos traducida; hay que aclarar que Julien aclara en
diversas notas varios términos de la lengua china y diversos
aspectos de la cultura china, y que también nos servimos de las
aclaraciones de Fong Yeou-Lan, filósofo chino que comenta
resumidamente el contenido del TTK a la luz del original); eso
significa que hablamos aquí de nuestra interpretación de esa
versión, respetando toda divergencia que venga de los eruditos
conocedores del original.
El Tao Te King (“Libro de la Vía y de la Virtud”, abreviado
en lo que sigue en TTK) es uno de los clásicos de la cultura china;
en su título, a veces el Tao se traduce también por “camino”, y en
vez de “virtud” se usan las palabras “vida” y aún “potencia”. Su
extensión no supera a la de un artículo de 25 páginas dividido en
dos Libros, y contiene en total 81 brevísimos capítulos en forma de
aforismos largos (que citaremos por su numeración romana), que
muchas veces no superan un parágrafo. Dicha obra es atribuída a
Lao Tse, contemporáneo (más viejo) de Confucio en el siglo VI

245
a.c., pero ciertos estudiosos afirman que la obra contiene textos
muy posteriores a la vida de dicho pensador (Fong, 1952, p. 110).

El punto de vista metafísico

Todo viene y vuelve del-al Tao sin nombre

El TTK declara que todo proviene de un origen sin nombre,


llamado por necesidad de comunicación “Tao”, y a él vuelve sin
cesar. Así el Tao es a la vez el origen de todas las cosas y el punto
de llegada de un proceso sin fin de eterno retorno. Por ser una
especie de “no ser” y no poseer nombre, del Tao emerge la
Unidad, que da origen a la dualidad, que origina la tríada, de la que
vienen todas las cosas; Fong (1952, p. 111) aclara que “en el
sistema taoísta existe una distinción entre ‘yeou’ (ser) y ‘wou’ (no
ser), y entre ‘yeou-ming’ (lo que tiene nombre, es nombrable), y
‘wou-ming’ (lo que no tiene nombre, es innombrable).
Ahora bien, ese origen sigue actuante sin mostrarse en la
totalidad de la Naturaleza. El sabio sabe captar ese hecho,
asimilable a la captación de su esencia espiritual en cuanto ser
humano. Al hacerlo, el sabio parece torpe a la mirada miope de la
multitud que se deja guiar por la superficie de la multiplicidad de
las cosas con nombre y que sucumbe a las pasiones (en especial la
ambición de riquezas y de cargos y honores en la vida social)
(TTK I, IV, XIV, XXI, XXIV, XXXII, XXXIV, XXXV, XXXVII,
XXXIX, XLI, LI).
Nuestra propuesta ecomunitarista no ha definido una
posición metafísica determinada. Pero en nuestro diálogo con el
“Gita”, en especial a través de la interpretación que de él hace
Gandhi (López Velasco 2009b), hemos aceptado que la condición
humana es la de un ser que brilla fugazmente en su vida terrena,
para disolverse (incluso físicamente, en sus constituyentes
atómicos) en un gran Todo en el que hace figura de un
momentáneo remolino en las aguas de un caudaloso río en
permanente movimiento.

246
Dialéctica de los contrarios

La forma de manifestarse del Tao original y que continúa


actuando sin mostrarse en la Naturaleza es dialéctica, o sea, que se
expresa a través de contrarios. Así leemos “…el ser y el no ser
nacen el uno del otro; lo difícil y lo fácil se producen mutuamente;
lo largo y lo corto se dan forma mutuamente, lo alto y lo bajo
muestran mutuamente su desigualdad…”(II).
Ahora bien, al parecer el TTK concibe una dialéctica de
contrarios más de complementación que de oposición-superación
(a la manera de Hegel y Marx).
Creemos que hay que pensar si una de esas concepciones
excluye siempre a la otra, o si cabe atribuirles en cada caso su
debido lugar a cada una; así podríamos pensar que la contradicción
entre clases es una oposición histórica que debe ser superada en el
orden socioambiental sin clases ecomunitarista, al tiempo que la
estatura baja o alta de las mujeres pertenece a una dualidad de
contrarios que merece subsistir (incluso porque algunos hombres
prefieren a las altas mientras que otros se quedan con las bajas),
sin caer en la tentación de una eugenia nazi.
Otra manifestación del movimiento dialéctico es el hecho de
que el auge del desarrollo se identifica con el inicio del declinio (el
que, a su vez, concluye en el contexto de un eterno retorno cíclico,
en la disolución en el Tao original); (XIV, XVI, XXIII, XXXII,
XXXVI, XL, XLI). En lo primero la concepción del TTK es la
misma que la de Hegel (y de Marx).

La Naturaleza

Como ya se dijo, todo lo que ocurre en la Naturaleza es


expresión oculta del Tao (I, LXIV, XLII). Una característica
especial de tal manifestación es el hecho de que en la Naturaleza y
en la pareja humana, lo más débil triunfa sobre lo más fuerte; así el
agua frágil, que se amolda a correr siempre por los terrenos más
bajos, acaba por agujerear a la piedra dura, y la mujer termina por

247
imponer su voluntad al hombre (más fuerte y rudo que ella);
(XLIII, LXI, LXXVI, LXXVIII). El TTK pregona la idea de imitar
esos comportamientos, y seguir la Naturaleza (que expresa el Tao).
Por nuestra parte, la tercera norma fundamental de la ética,
que hemos deducido argumentativamente con ayuda del operador
lógico de condicional de las condiciones de “felicidad” (en el
sentido de John L. Austin, 1962) de la pregunta que la instaura
(“¿Qué debo hacer?”), nos exige preservar-regenerar una
naturaleza humana y no humana sana (López Velasco 2008 y
2009). De cierta forma también defendemos la idea de “seguir a la
naturaleza”, pues esa tercera norma limita la libertad individual
amparada por la primera norma (que nos exige luchar para
garantizar nuestra libertad individual de decidir, negada
cotidianamente en el capitalismo a través de las órdenes y las
jerarquías piramidales) y también limita-baliza el consenso
humano amparado por la segunda norma (que nos exige realizar
nuestra libertad individual en búsquedas de respuestas
consensuadas con los otros), pues éste puede olvidarse-devastar-
contaminar a la naturaleza no humana. Lo que quizá nos aparta del
TTK es nuestra idea de una permanente acción transformadora del
ser humano sobre el resto de la naturaleza (aunque esa acción deba
respetar los límites impuestos por la tercera norma de a ética), al
servicio de la satisfacción de las necesidades de cada individuo de
cara a su desarrollo pleno.

El punto de vista ético y la actitud del sabio

La conducta general del sabio (o santo) consiste en seguir al


Tao (y a la Naturaleza). El TTK dice “…el hombre sabio (santo)
conserva el Tao, es el modelo del mundo; él no se pone en
evidencia, y por eso brilla;…él no se autoelogia, y por eso tiene
mérito;…él no lucha y por eso no hay nadie en el reino que pueda
luchar contra él” (XXII). El sabio que comprende el Tao se conoce
a sí mismo y es frugal; leemos: “El que conoce a los hombres es
prudente, y el que se conoce es esclarecido; el que doma a los

248
hombres es poderoso, y el que se doma a sí mismo es fuerte; el que
sabe bastarse a sí mismo es rico” (XXXIII). El TTK insiste varias
veces en que la conducta del sabio está signada por la frugalidad:
“el que esconde un rico tesoro sufre grandes pérdidas; el que sabe
bastarse a sí mismo está al abrigo del deshonor; el que sabe
controlarse (detenerse) no periclita jamás, y podrá subsistir largo
tiempo” (XLIV); e insiste: “…No hay mayor crimen que el de
abandonarse a sus deseos (exagerados); no hay mayor infelicidad
que el no saber darse por satisfecho; no hay mayor calamidad que
el deseo de adquirir (cosas); el que sabe satisfacerse, está contento
con su suerte”(XLVI); “…El sabio no acumula riquezas”(LXXXI).
Hay que notar que el TTK (al igual que Gandhi en su
interpretación del “Gita”, ver López Velasco 2009b) exige, en
función de tal prédica de la frugalidad, la renuncia a los frutos de
la acción (en la medida en que la adhesión a ellos significaría
abdicar ante la ambición), que, siguiendo al Tao aparece como no
acción; “…el hombre sabio hace de la no acción su ocupación;
…entonces todos los seres se ponen en movimiento, y él no les
niega nada; él los produce pero no se los apropia; él los
perfecciona pero no cuenta con (depende de) ellos; habiendo
expuesto sus méritos, él no se apega a ellos…” (II; hay
expresiones parecidas en IX y X).
No otra cosa que esta frugalidad que sabe incluso renunciar a
los frutos de la acción pregona el ecomunitarismo, pues si apuesta
a la realización del slogan “de cada uno según su capacidad y a
cada uno según su necesidad”, para que se realicen los individuos
en la plenitud de sus aptitudes y vocaciones (López Velasco
2009c), no deja de aclarar que dichas “necesidades” deben
definirse en cada etapa histórica a la luz de las tres normas éticas
básicas (y de las fuerzas productivas desarrolladas por la
humanidad; López Velasco 2009a y 2009b). Tal conducta es
opuesta a la verificada en el capitalismo, donde el planeta entero
está siendo devastado y contaminado de forma cada vez más
irreversible en aras de esa ley suprema del capital que es la
obtención del mayor lucro posible en el menor espacio de tiempo

249
(López Velasco 2003, 2009a y 2009b).
El TTK afirma que cuando una sociedad (los seres humanos)
olvidan el Tao, entonces nacen las normas (heterónomas), las
llamadas virtudes y las formalidades; así, dice, “cuando el Tao ha
sido olvidado, se ve aparecer al humanitarismo y la justicia;
cuando se mostraron la prudencia y la perspicacia, se vio nacer a la
hipocresía; cuando los seis parientes cesaron de vivir en buena
armonía, entonces aparecieron los actos de piedad filial y de
afección paterna, la humanidad; cuando los Estados cayeron en el
desorden, se vio a los sujetos fieles y devotados” (XVIII); y
aconseja:”si se renuncia a la sabiduría y se quita la prudencia, el
pueblo será cien veces más feliz; si se renuncia al humanitarismo y
se quita la justicia, el pueblo volverá a la (verdadera) piedad filial
y a la afección paterna; si se renuncia a la habilidad y se quita el
lucro, los ladrones y bandidos desaparecerán” (XIX)..
Algo semejante proclama nuestra propuesta ecomunitarista
cuando propone la sustitución de las obligaciones y formalidades
impuestas de afuera por Casi-Razonamientos Causales elaborados
y reelaborados libremente por los individuos, en base al consenso
y al respeto por la salud de la naturaleza humanan y no humana
(conforme lo exigen las tres normas éticas fundamentales). De
igual manera nuestra propuesta postula que la superación de la
calamidad del lucro supone la superación del capitalismo, en el
ecomunitarismo.
Hemos visto que el TTK aconseja el no obrar (entre otros en
IX, X, LXIV), que Fong nos invita a interpretar como un no obrar
más allá de lo necesario; dice Fong que la conocida teoría taoísta
del wou-wei se deduce también del aserto de que el retorno es el
movimiento del Tao: “El término wou-wei puede traducirse
literalmente por ‘no tener actividad’, o ‘no actuar’; pero
empleando esa traducción hay que recordar que el término no
significa realmente ‘ausencia de actividad’ o ‘no hacer nada’;
significa una actividad reducida, o hacer menos; significa también
actuar sin artificialidad y sin arbitrariedad”(Fong 1952, p. 116).
En esa línea el TTK aconseja al sabio hablar poco (cosa, que

250
hay que confesarlo, a los filósofos ‘occidentales’, aunque seamos
latinoamericanos, nos cuesta mucho!). “El que habla mucho (del
Tao) es frecuentemente reducido al silencio” (V); “El que no
habla, llega al no actuar” (XXIII); “El hombre que conoce al Tao
no habla; el que no lo conoce, habla” (LVI).
Una particularidad del sabio taoísta nos preocupa, y es su no
benevolencia hacia los seres humanos (que deben ser vistos como
“perros de paja”; V); sin duda que esa postura del TTK viene de la
discrepancia de los viejos taoístas eremitas con Confucio, a
quienes aquellos increparon por el hecho de querer salvar un
mundo de gentes locas y perdidas por su ambición ignorante; uno
de ellos describió a Confucio como “el hombre que sabía que no
podría triunfar pero que continuaba sus intentos” (Fong, 1952,
p. 79). Mas hay que notar que el propio TTK dice “…el sabio se
destaca siempre en su intento de salvar a los hombres; es por lo
que él no los abandona; es por lo que el hombre virtuoso es el
maestro del que no lo es…” (XXVII).
Como se sabe, el ecomunitarismo no ignora la testaruda
ignorancia ciega de la humanidad, pero apuesta a una entreayuda
político-pedagógica (como lo enseñó Freire, 1970) para que cada
uno pueda realizarse como individuo universal; en esa relación el
que ha estudiado algo más está en la obligación de enseñar a los
demás, al tiempo que aprende con ellos; en esa dinámica el
estudioso hace su parte, al tiempo en que no hay líderes infalibles
ni eternos (López Velasco 2009b y 2009c).

Punto de vista político

El comportamiento político aconsejado por el TTK es


coherente con todo lo que se ha dicho antes. El mejor gobierno es
aquel que obra menos, o sea, el que no recarga a la comunidad con
impuestos, leyes y guerras (y que no excita la ambición). “Para
gobernar un gran reino se debe imitar a aquel que cocina un
pequeño pescado” (LX), o sea, proceder con todo cuidado antes de
ejecutar cualquier acción, por miedo a que el pescado se rompa en

251
cien pedazos. “El pueblo tiene hambre porque el príncipe devora
una cantidad de impuestos; he ahí por qué hay hambre; el pueblo
es difícil de gobernar porque al príncipe le gusta actuar…”
(LXXV). “Cuanto más el rey multiplica las prohibiciones, más el
pueblo se empobrece” (LVII).
Al que piense que esa prédica rima con el gobierno mínimo
del neoliberalismo, hemos de responder que ella es perfectamente
compatible con el ecomunitarismo; en efecto, en el orden
socioambiental ecomunitarista los propios ciudadanos asumen en
ejercicio de democracia directa (presencial o a través de los
recursos de la comunicación descentralizada pero unificable a
distancia por Internet) la toma de las decisiones, y los responsables
por las funciones de centralización que se revelen indispensables,
serán electos por los ciudadanos para esos cargos, que deberán
ejercer por tiempo limitado y rotativamente, y podrán ser
dispensados por sus electores (en decisiones revocatorias); así,
propiamente no hay gobierno, sino administración consensual de
los seres humanos sobre las cosas, como quería Marx. Por otro
lado, el tormento de los impuestos que se ha cebado con los sujetos
desde la antigua China hasta el actual capitalismo, es sustituido por
la administración comunitaria de los recursos (haciendo las
reservas que sean necesarias, para garantizar la reproducción del
ciclo producción-distribución-consumo, afrontar las emergencias,
por ejemplo de catástrofes naturales, y garantizar los recursos de
las generaciones venideras; López Velasco 2009, 2009b y 2009c).
Expresión notable del no obrar gubernamental es la prédica
antibelicista del TTK (más destacable aún teniendo en cuenta el
momento histórico en el que la obra fue escrita). “Las armas más
excelentes son instrumentos de infelicidad; todos los hombres las
detestan; es por lo que aquél que posee el Tao no las quiere”
(XXXI). “En todos los lugares donde van las tropas se ve nacer los
pinchos y las espinas; después de las grandes guerras hay años de
hambre” (XXX). No obstante el TTK abre una excepción, diciendo
que el sabio usa las armas “cuando no puede dispensarlas, pues
prefiere la calma y el reposo”, y aclara de inmediato: “si él triunfa

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no se felicita por ello; felicitarse significaría que nos gusta matar a
los hombres; el que disfruta matando hombres, no puede tener
éxito en el gobierno del imperio” (XXXI).
La propuesta ecomunitarista incluye la constitución efectiva
del género humano como una gran familia que satisface
solidariamente las necesidades de cada individuo, sin descuidar de
la preservación-regeneración de la salud de la naturaleza no
humana; en tal contexto es obvio que las guerras han quedado atrás
y todos los ejércitos han sido desmantelados (López Velasco
2009b). Así como el TTK abrimos una excepción a la condena a la
acción militar, cuando aquella es practicada para la defensa del
orden ecomunitarista contra intentos de destrucción del mismo, o
de retrotraerlo rumbo a la vieja noche de las sociedades divididas
en clases y devastadoras de la naturaleza no humana.
La polis ideal para el TTK es un Estado pequeño, pacífico,
autárquico y aislado de sus vecinos. En ese Estado no ha de
incentivarse la innovación tecnológica (la excepción aceptada es la
del uso de los caballos en las labores agrícolas, XLVI). Así
concluye el TTK: “Si gobernase un pequeño reino y un pueblo
poco numeroso, donde no hubiera armas sino tan sólo para diez o
cien hombres, yo les impediría servirse de ellas; enseñaría al
pueblo a temer la muerte y a no emigrar lejos; si hubiera barcos y
carros el pueblo no los usaría; si hubiera lanzas y corazas el pueblo
no las usaría; yo lo haría volver al uso de las cuerdas con nudos
[N.B. cuerdas similares a los “quipus” incas, usadas en China antes
de la invención de la escritura, para transmitir mensajes]; el pueblo
saborearía sus comidas, hallaría elegancia en sus vestidos, le
gustaría su casa, amaría sus usos simples; si otro reino se
encontrase frente al mío, y hasta el mío llegase el grito de los
gallos y de los perros de aquél, mi pueblo llegaría a la vejez y a la
muerte sin haber visitado el pueblo vecino” (LXXXI). Quizá esa
prédica sea una de las causas del hecho de que la vieja China,
habiendo parido tantos inventos (entre ellos la brújula y la
pólvora), no haya desarrollado una revolución industrial hasta el
siglo XX, y que tampoco haya desarrollado una política de

253
expansión y conquista de territorio (con la excepción de las
grandes navegaciones esporádicas del siglo III a.c. hasta el VI d.c,
a las que no siguió ninguna otra aventura similar a la emprendida
por España y Portugal en el siglo XV).
El ecomunitarismo promueve las pequeñas comunidades
pacíficas, frugales y con capacidad productiva endógena; pero a
diferencia del TTK no promueve ni el aislamiento (porque en el
ecomunitarismo habrá de constituirse la humanidad entera como
una gran familia solidaria con cada uno de sus miembros), ni se
opone a la innovación tecnológica que permita optimizar la salud
de la naturaleza humana y no humana (o sea de la tecnología que
sea limpia y con fuentes energéticas renovables, como lo son la
solar, la eólica, la geotérmica y la de las mareas; López Velasco
2003, 2009a, 2009b, y 2099c).

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