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A Noite Dos Tempos - Rene Barjavel PDF
A Noite Dos Tempos - Rene Barjavel PDF
Sobre a obra:
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Do original francês La Nuit des Temps
Copyright 1968 by Presses de La Cité
Copyright 1971 da edição em português Editora Artenova S.A. Terceira edição brasileira
em abril de 1975
Reservados todos os direitos desta tradução. Proibida a reprodução, mesmo sem expressa
autorização da Editora Artenova S.A.
MINHA BEM AMADA, minha abandonada, eu te deixei lá no fim do mundo, voltei para
meu quarto de homem da cidade com seus móveis familiares sobre os quais tantas vezes
pousei minhas mãos que os amavam, com os seus livros que me alimentaram, com sua velha
cama de cerejeira onde dormi minha infância e onde, esta noite, procurei em vão encontrar
o sono. E todo este cenário que me viu crescer, desenvolver, tornar-me eu, hoje me parece
estranho, impossível Este mundo que não é o teu tornou-se um mundo falso, no qual meu
lugar jamais existiu.
E no entanto é meu pais, eu o conheci...
Vai ser preciso reconhecê-lo, aprender novamente a nele respirar, a nele fazer o meu
trabalho de homem no meio dos homens. Serei capaz disso?
Cheguei ontem à noite pelo jato australiano. No aeroporto de Paris-Nord, um bando de
jornalistas me esperava, com seus microfones, suas câmaras, suas inúmeras perguntas. Que
poderia eu responder?
Todos eles te conheciam, todos eles haviam visto sobre suas telas a cor dos teus olhos, a
incrível distância do teu olhar, as formas perturbadoras do teu rosto e do teu corpo. Mesmo
aqueles que te viram apenas uma vez não puderam te esquecer. Eu os sentia, por trás dos
reflexos de sua curiosidade profissional, secretamente mudos, agitados, magoados. Mas
talvez fosse a minha própria dor que eu projetava sobre o rosto deles, minha própria ferida
que sangrava quando eles pronunciavam o teu nome...
Voltei para meu quarto. Não o reconheci. A noite passou e não dormi. Através da parede
de vidro, o céu, que era negro, tornava-se pálido. As trinta torres da Defesa se tingiam de
cor-de-rosa. A Torre Eiffel e a Torre Montparnasse enfiavam seus pés na bruma. O Sacré-
Coeur parecia uma maquete de gesso pousada no algodão, sobre esta bruma envenenada
por suas fadigas de ontem, milhões de homens acordam já extenuados de hoje. Do lado de
Courbevoie, uma chaminé alta joga uma fumaça negra que tenta reter a noite. Sobre o Sena,
um rebocador solta seu grito de monstro melancólico.
Estremeço. Nunca mais, nunca mais sentirei calor no meu sangue nem na minha carne...
O Dr. Simon, as mãos nos bolsos, a testa apoiada na parede de vidro de seu quarto, olha
Paris, sobre a qual o dia se levanta. É um homem de 32 anos, grande, magro, moreno.
Veste um suéter grosso de gola roulé, cor de pão queimado, um pouco deformado, gasto
nos cotovelos, e calça de veludo negro. Sobre o tapete, seus pés estão descalços. Seu rosto é
coberto por anéis de barba castanha, curta, barba de alguém que a deixou crescer por
necessidade. Por causa dos óculos que usou durante o verão polar, o côncavo dos olhos
parece claro e frágil, vulnerável como a pele cicatrizada de um ferimento. Sua testa é larga,
meio escondida pela nascente dos cabelos curtos, um pouco tombada em cima dos olhos e
cortada por uma profunda ruga. Suas pálpebras estão inchadas, o branco de seus olhos é
estriado de vermelho. Não pode dormir, não pode mais chorar, não pode esquecer, é
impossível...
A aventura começou com uma missão de simples rotina, das mais banais. Havia anos que o
trabalho sobre o continente antártico não era mais feito pelos corajosos, mas sim por sábios
organizados. Havia todo o material necessário para lutar contra os inconvenientes do clima e
da distância, para conhecer o que procuravam saber, para assegurar aos pesquisadores um
conforto equivalente ao de um hotel de luxo. Todo o pessoal da equipe possuía os
conhecimentos indispensáveis à missão. Quando o vento soprava forte demais, fechavam-se e
deixavam-no soprar; quando se acalmava, todos saíam e cada um fazia o que tinha a fazer.
Sobre o recortado mapa daquele continente, na Base Paul-Emile Victor, a missão francesa
permanente debruçava-se sobre a fatia que lhe coubera, dividia-a em pequenos quadrados e
trapézios e os explorava sistematicamente um após outro. Sabia que não havia mais nada a ser
encontrado a não ser gelo, neve e vento, vento, gelo e neve. E, abaixo, rochas e terra, como em
toda parte. Não havia nisso nada de excitante, mas mesmo assim aquilo os apaixonava, porque
eles estavam longe do óxido de carbono e dos engarrafamentos, porque cada um dava a si
próprio uma pequena ilusão de ser um pouco de herói explorador, enfrentando grandes
perigos, e principalmente porque estavam no meio de amigos.
A missão acabara de fazer a exploração do trapézio 381, a documentação estava
encerrada, uma cópia tinha sido enviada à sede em Paris. Restava-nos passar à tarefa seguinte.
Burocraticamente, do 381, deveríamos ter saltado para o 382, mas nem sempre as coisas
aconteciam assim. Havia as circunstâncias, os imprevistos e a necessidade de um mínimo de
variedade.
A missão acabava de receber um novo aparelho de sondagem subglacial de concepção
revolucionária, que, segundo seu construtor, era capaz de descobrir os menores detalhes do
solo sob vários quilômetros de gelo. Louis Grey, o glaciólogo, 37 anos, agregado de
Geografia, estava ardendo de impaciência para pô-lo à prova, comparar o seu trabalho com o
das sondas clássicas. Foi então decidido que um grupo iria fazer um levantamento do solo
subglacial no quadrado 612, que se situava a algumas centenas de quilômetros do Polo Sul.
Em duas viagens, o pesado helicóptero depositou os homens, seus veículos, e todo o
material sobre o local de operação.
O lugar já havia sido bastante sondado pelos métodos e engenhos habituais. Sabia-se que
profundidades de 800 a 1.000 metros de gelo terminavam em abismos de mais de 4.000
metros. Aos olhos de Louis Grey, o local constituía um campo de experiência ideal para testar
o novo aparelho. Era, acreditava ele, o que havia motivado sua escolha. Hoje em dia, ninguém
ousa acreditar.
Com tudo o que foi revelado depois, como se poderia pensar ainda que tinha sido só o
acaso, ou uma razão qualquer, que fizera vir esses homens com todo o material necessário
exatamente a este ponto do continente, ao invés de a qualquer outro ponto desse deserto de
gelo maior que a Europa e os Estados Unidos juntos?
Muitos espíritos sérios acreditam agora que Louis Grey e seus companheiros tenham sido
"chamados". De que maneira? Isso não foi esclarecido com os acontecimentos seguintes. E
nem mesmo se tratou disso. Havia problemas bem maiores e mais urgentes a elucidar. Mas a
verdade é que Louis Grey e mais onze homens, levados em três snowdoggs, se colocaram
exatamente no lugar certo.
E, dois dias depois, todos estes homens sabiam que tinham vindo ao encontro de um
acontecimento inimaginável. Dois dias...
Como falar aqui de dias e de noites? Estávamos no princípio de dezembro, quer dizer em
pleno verão austral. O sol não se punha. Girava sobre os homens e os caminhões, em volta do
seu mundo redondo, como para vigiar de longe e por todos os lados. Mais ou menos às 9 horas
da noite, passava atrás de uma montanha de gelo, reaparecia às 10 do outro lado dessa
montanha, lá pela meia-noite parecia a ponto de sucumbir e desaparecer sob o horizonte que
começava a engoli-lo. Então se defendia, crescendo, deformando-se, tornando-se vermelho.
Ganhava a batalha e recomeçava lentamente a percorrer suas distâncias e sua ronda de
sentinela, iluminando ao redor da missão um imenso disco branco e azul de frio e solidão. Por
outro lado, muito além desses limites longínquos sobre os quais montava guarda, atrás dele
havia a Terra, as cidades e as multidões, os campos com suas vacas, as ervas, as árvores e os
passarinhos.
O Dr. Simon estava nostálgico. Acabava uma permanência de três anos, quase ininterrupta,
nas diferentes bases francesas da Antártida, e estava mais do que cansado.
Após esse estágio, deveria ter tomado o avião para Sidney. Ficou, porém, a pedido do seu
amigo Louis Grey, para acompanhar sua missão, pois o Dr. Jaillon, seu substituto, estava
ocupado na base atacada por uma epidemia de rubéola.
Essa rubéola era inverossímil. Quase nunca se veem moléstias na Antártida, dir-se-ia até
que os micróbios têm medo do frio. Os médicos só têm que cuidar de acidentes e, às vezes, de
frieiras dos recém-chegados, que não deixam de cometer imprudências. Por outro lado, a
rubéola quase que desapareceu da face da Terra depois que inventaram a vacina bucal que
todos os recém-nascidos tomam nas suas primeiras mamadeiras. Apesar dessas evidências,
havia rubéola na Base Victor. Um homem em cada quatro ardia de febre em sua cama, a pele
transformada num tecido de bolinhas.
Louis Grey juntou um grupo ainda ileso, em meio do qual estava o Dr. Simon, e embarcou-
o a toda pressa para o ponto 612, desejando ardentemente que o vírus não os seguisse.
Se não tivesse sido a rubéola...
Sentado numa esteira do snowdogg, o Dr. Simon sonhava com um croissant molhado num
café cremoso. Molhado, sumarento, para ser comido aos pequenos pedaços, mastigando
devagar, à maneira dos bons parisienses. Era um prazer que lhe trazia as melhores lembranças,
aquele de entrar no bistrot, aproximar-se do balcão, aspirando o cheiro do café expresso, os
pés sobre a serragem, lado a lado com os rabugentos da manhã, compartilhando do seu
primeiro prazer do dia, talvez o maior, o de se encontrar neste lugar de primeiro encontro com
os outros homens, sentindo o calor e as correntes de ar.
Não podia mais com todo este gelo e este vento, um vento que não cessava jamais de
fustigá-lo, de fustigar todos os homens da Antártida, metidos naquele deserto glacial.
Empurrava-os sem cessar, a eles e a suas barracas, antenas e caminhões, para que se
fossem, abandonassem o continente, e os deixassem, ele e a neve mortal, consumar a sós,
eternamente na solidão, suas monstruosas bodas ultrageladas...
Era preciso ser verdadeiramente obstinado para suportar aquela vida. Simon tinha
chegado ao auge de sua obstinação. Antes de sentar-se, havia colocado uma coberta dobrada
em quatro sobre a esteira do snowdogg, a fim de que suas nádegas ficassem melhor
protegidas.
Estava com o rosto voltado para o sol e esfregava as faces, escondidas pela barba,
tentando convencer-se de que o sol o esquentava, se bem que lhe fornecesse mais ou menos
tantas calorias quanto uma lanterna a óleo a três quilômetros de distância. O vento tentava
virar o seu nariz em direção a sua orelha esquerda. Virou a cabeça para receber o vento do
outro lado. Pensava na brisa do mar à noite em Collioure, tão quente, mas que achavam fresca
porque fazia muito calor durante o dia. Pensava no indescritível prazer de se despir, de
mergulhar na água sem se transformar em gelo, de se deitar sobre as areias quentes...
— Quentes! Isso lhe pareceu tão inverossímil que ele riu.
— Você agora ri sozinho? — disse Brivaux. — Estamos bem... Você estará com rubéola?
Brivaux estava por trás dele, a sonda a tiracolo, pendurada numa larga correia de pele de
lobo que passava por trás do seu pescoço.
Estava pensando nos lugares do mundo onde faz calor — disse Simon.
— Não é rubéola, é meningite... Fique sentado assim, e você vai gelar até a alma...
Olhe, venha ver um pouco isto aqui... Apontou-lhe o mostrador da sonda, com sua folha
registradora já em parte enrolada. Era um modelo comum como qual ele acabava de
prospectar o setor que lhe tinha sido designado.
Simon levantou-se e olhou. Não entendia muito da parte técnica. O mecanismo do corpo
humano lhe era mais familiar do que o de um simples isqueiro a gás. Mas tivera tempo, depois
de três anos, de se familiarizar com os desenhos que traçava, sobre o papel magnético, a
grafite das sondas portáteis. Pareciam, em geral, com o corte de um terreno vago, ou de um
montão de ruínas, ou de não importa o quê, que não se parecesse com coisa alguma. Ora, o que
lhe mostrava Brivaux parecia com qualquer coisa...
Com quê?
Com nada de conhecido, nada de familiar, mas...
Seu espírito, habituado a fazer a síntese dos sintomas para apresentar um diagnóstico,
compreendeu de repente o que havia de incomum nesse relevo do solo glacial. A linha reta
não existe na natureza bruta. A linha curva regular também não. O solo brutalizado, áspero,
misturado no decorrer das idades geológicas, pelas formidáveis forças da Terra, é sempre
totalmente irregular. Ora, o que a sonda de Brivaux havia inscrito sobre o papel era uma
sucessão de curvas e de retas. Interrompidas e quebradas, mas perfeitamente regulares. Que o
solo pudesse apresentar um tal perfil, era totalmente improvável e mesmo impossível. Simon
tirou a conclusão mais evidente:
— Há qualquer coisa errada nesse negócio...
— E você, você tem qualquer coisa errada aí dentro? — Brivaux bateu com o dedo
enluvado na sua cabeça.
— Este aparelho funciona com perfeição. Gostaria de funcionar tão bem quanto ele até o
meu último dia. Mas lá embaixo há qualquer coisa que não está bem...
Bateu na superfície do gelo com o salto da sua bota forrada.
—Um perfil assim, não é possível — continuou Simon.
— Eu sei, isto não parece ser verdade.
— E os outros? O que encontraram?
— Não sei de nada, vou dar um toque de cometa para chamá-los... Subiu no laboratório do
caminhão, e, três segundos depois, soava a sirena chamando os membros da missão de volta
ao acampamento.
Aliás, eles já estavam prestes a voltar. Primeiro as duas equipes a pé, com suas sondas
clássicas. Depois o snowdogg, que tinha na frente o transmissor-receptor da nova sonda, uma
armadura metálica entre suas duas lagartas. Um cabo vermelho o ligava ao posto de comando
e ao registrador, no interior do veículo. Estava também, no veículo, o mecânico Eloi, Louis
Grey, impaciente para ver funcionar o novo instrumento, e um engenheiro da fábrica que tinha
vindo para mostrar o seu funcionamento.
Era um rapaz alto e magro, mais para louro, e de maneiras delicadas. Dava a impressão,
por sua elegância natural, de ter feito cortar seus trajes polares numa casa de alta costura. Os
veteranos não podiam deixar de sorrir ao olhá-lo. Eloi o havia chamado de "Cornexquis" o
que lhe assentava com perfeição.
Desceu do caminhão em silêncio, escutando com um ar reservado as apreciações de Grey
sobre seu "utensílio". Segundo a opinião do glaciólogo, a nova sonda falhara completamente.
Ele nunca havia visto, nem mesmo no aparelho mais antigo, ser traçado um perfil igual àquele.
— Mas o mistério não acaba aí... — disse Brivaux, que esperava junto ao caminhão-
laboratório. — Foi você que chamou?
— Fui eu, velhinho...
— O que é que está acontecendo?
— Entre e verá... E eles viram...
Eles viram os quatro levantamentos, os quatro perfis, todos estranhos e semelhantes entre
si. O da nova sonda estava inscrito num filme de 3mm. Grey o havia seguido sobre a tela de
controle. Os outros membros da missão o viram sobre a tela do laboratório.
O que as outras três sondas tinham deixado supor, o novo aparelho mostrava com
evidência. Fazia desfilar sobre a tela, com uma nitidez que não deixava lugar a nenhuma
dúvida, perfis de escadas derrubadas, muros quebrados, cúpulas arrebentadas, rampas
helicoidais torcidas, todos os detalhes de uma arquitetura que uma mão gigantesca parecia ter
deslocado e destruído.
— Ruínas!... — disse Brivaux.
— Não é possível... — disse Grey, com uma voz que ousava apenas se fazer ouvir.
— E por quê? — indagou Brivaux, tranquilamente. Brivaux era filho de um pequeno
camponês da Alta-Savoia, o último de sua cidadezinha a continuar a criar vacas ao invés de
seguir os parisienses acumulados a dez por metro quadrado de neve ou de grama seca. O
velho Brivaux havia cercado seu pedaço de montanha de moirões e de arame-farpado —
"É proibida a entrada" —e nessa prisão vivia em liberdade.
O filho tinha herdado os olhos azul-claro, os cabelos negros e a barba avermelhada, além
do humor sempre igual e o senso de equilíbrio. Ele via as ruínas, como todos os que ali
estavam e sabiam interpretar um perfil. A diferença é que os outros não acreditavam, mas ele
acreditava porque os via. Se tivesse visto seu próprio pai lá no gelo, teria ficado espantado
durante um segundo, depois teria dito "olha aí meu pai..."
Mas os membros da missão não podiam deixar de se render à evidência. Os quatro
levantamentos se assemelhavam e se confirmavam uns aos outros. O desenhista Bernard foi
encarregado de fazer a síntese. Uma hora mais tarde, apresentava seu primeiro esboço. Não
parecia com nada que se conhecesse: era uma arquitetura gigantesca, destruída por alguma
força titânica, descomunal.
— A que profundidade estão estas coisas? — perguntou Elói.
— Entre novecentos e mil metros! — disse Grey com ar furioso, como se fosse
responsável pela enormidade do acontecimento.
— Isso significa que elas estão lá há quanto tempo?
— Não se pode saber... Nunca perfuramos tão profundamente.
— Mas os americanos já o fizeram — disse calmamente Brivaux.
— Sim... os russos também... — acrescentou Simon, para depois perguntar: — Eles teriam
podido datar suas amostras?
— Pode-se sempre... isso não quer dizer que seja exato.
— Exato ou não, eles dataram de quando?
Grey levantou os ombros diante do absurdo que ia dizer.
— Aproximadamente novecentos mil anos, há alguns séculos... Houve exclamações e
depois um silêncio estupefato.
Os homens reunidos no caminhão olhavam sucessivamente o esboço de Bernard e as
últimas linhas do perfil, imóveis sobre a tela. Acabavam de tomar consciência, de repente, da
imensidão da sua própria ignorância.
— Não pode ser — disse Elói... — Foram homens que fabricaram isso. Há novecentos mil
anos, não havia homens, só havia macacos.
— Quem lhe disse isso, meu caro? — disse Brivaux.
— O nosso conhecimento da história dos homens e da evolução da vida sobre a Terra —
observou Simon — não é maior do que um cocô de pulga na Praça da Concórdia...
— E então? — disse Elói.
— Sr. Lancieux, peço desculpas ao seu aparelho — disse Grey. Lancieux. Cornexquis.
Ninguém mais tinha vontade de chamá-lo assim, nem mesmo mentalmente. Não havia mais
lugar na cabeça desses homens para as brincadeiras de colegiais que os ajudavam
normalmente a suportar o frio e a lentidão do tempo. Lancieux mesmo não parecia mais com o
seu apelido. Seus olhos estavam cansados, suas faces encovadas, tragava seu cigarro apagado
e retorcido, e escutava Grey, sacudindo a cabeça com ar ausente.
— É uma mecânica sensacional — dizia o glaciólogo. — Mas há uma outra coisa...
Ninguém prestou atenção. Mostre-lhes... E diga-lhes o que você pensa...
Lancieux apertou o botão de rebobinagem, depois o botão vermelho, e a tela se iluminou,
mostrando novamente o lento desfile do perfil das ruínas.
— É ali que se deve observar — disse Grey.
Seu dedo mostrava, no alto da tela, embaixo do traçado tormentoso do subsolo, uma linha
retilínea apenas visível, finamente ondulada, de uma regularidade perfeita.
Efetivamente, ninguém havia prestado atenção, pensando talvez que fosse uma linha de
referência, um reparo, ou outro sinal qualquer, mas nada de significativo.
— Diga-lhes... — repetiu Grey. — Diga-lhes o que você me disse! No ponto em que
estamos...
— Preferiria — disse Lancieux com voz um pouco aflita — fazer primeiro uma
contraprova. Nenhuma das outras sondas registrou...
Grey cortou-lhe a palavra:
— Elas não são bastante sensíveis!
— Talvez — disse Lancieux com sua voz suave. — Mas não é certo... Talvez seja porque
elas não estejam na frequência exata...
Lançou-se, juntamente com Brivaux, numa discussão, à qual se juntaram logo os outros
técnicos do grupo, cada um sugerindo quais as modificações que, em sua opinião, convinha
fazer nas sondas.
O Dr. Simon encheu seu cachimbo e saiu.
Não sou um técnico. Não me debruço sobre meus doentes: faço isso o menos possível.
Antes procuro compreendê-los. Para agir assim é preciso poder. Mas eu sou um
privilegiado... Meu pai, que era médico em Puteaux, via desfilar mais de cinquenta clientes
por dia no seu gabinete. Como saber o que eles são, o que eles têm? Cinco minutos de
exame, a pinça para perfurar, o cartão, a máquina de diagnóstico, a receita impressa, o selo
de imposto, está pronto, pode se vestir, o seguinte. Ele detestava sua profissão tal como ele
e seus colegas eram obrigados a exercer. Quando se apresentou para mim a ocasião de vir
para cá, ele me empurrou pelos ombros com todas as suas forças: "Vai!
Vai! Você terá um punhado de homens para tratar. Uma cidade! Você poderá conhecê-
los..."
Ele morreu no ano passado, esgotado. Seu coração lhe falhou. Não tive nem tempo para
ir lá.
Ele nunca pensou em perfurar seu cartão pessoal e colocá-lo na fenda do seu médico
eletrônico. Mas pensou em me ensinar umas tantas coisas que havia aprendido com seu pai,
médico em Auvergne.
Por exemplo, a tatear o pulso, olhar uma língua e o branco dos olhos. É prodigioso o
que o pulso pode revelar sobre o interior de um homem. Não somente sobre o estado
momentâneo de sua saúde, mas sobre suas tendências habituais, seu temperamento, e
mesmo seu caráter, se ele é superficial ou profundo, agressivo ou suscetível, sedoso ou
áspero. Há o pulso do saudável e o do doente, há também o pulso da caça e o do caçador.
Tenho também, como todos os médicos, um diagnosticador e pequenos cartões. Que
médico não os tem? Só os uso para confortar aqueles que têm mais confiança na máquina
do que no homem.
Aqui, felizmente, eles não são muito numerosos. Aqui, o homem conta.
Quando Brivaux deixou a fazenda de seu pai, para fazer em Grenoble os estudos que o
apaixonavam, havia calmamente dado uma olhada no programa e transposto todos os
obstáculos. Tendo saído em primeiro lugar da escola eletrônica com um ano adiantado, pôde
transformar seu diploma de engenheiro numa ponte de ouro para qualquer grande indústria do
mundo. Mas escolheu a Base Victor. "Porque — explicava ele ao Dr. Simon, seu amigo —
tratar de eletrônica aqui, é divertido... Estamos a dois dedos do polo magnético, em pleno
vaivém das partículas ionizadas, em pleno sopro do vento solar, e mais uma quantidade
enorme de coisas que não se conhecem. Isso faz uma salada interessante. Pode-se fazer
"misérias"...
Ele abria os braços horizontalmente e agitava os dedos, como se convidasse as correntes
misteriosas da Criação a penetrar no seu corpo e a percorrê-lo. Simon sorria, imaginando-o
um Netuno da eletrônica, em pé sobre o polo, os cabelos plantados nas trevas do céu, sua
barba vermelha mergulhada nas chamas da Terra, seus braços estendidos no vento perpétuo
dos elétrons, distribuindo à Natureza os fluxos e refluxos vivos do planeta-mãe. Mas era
nessas "misérias" que ele manifestava uma espécie de gênio.
Seus grossos dedos cabeludos eram incrivelmente hábeis, e sua ciência, associada a um
instinto infalível, lhe dizia exatamente o que devia fazer. Ele sentia essas correntes assim
como os bichos sentem a água. E seus dedos hábeis começavam a agir. Três pontas de fio, um
circuito, três metais granulados semicondutores, que ele virava, juntava, colava, ligava.
Uma fumacinha, um cheiro de resina - e pronto, um quadrante começava a viver, um
arabesco palpitava na espessura da tela.
O problema que Lancieux lhe formulou não era um problema para ele. Em menos de uma
hora havia trocado as três sondas clássicas e as equipes se repartiam. O que iam procurar era
tão espantoso que todos estavam convencidos de que iam voltar, sem haver conseguido nada.
Afora Lancieux, que conhecia bem seu aparelho, os demais pensavam que a pequena linha
ondulada era efeito de um capricho da nova sonda. Um "fantasma", como dizem os técnicos de
televisão.
O sol se escondia por trás de uma montanha de gelo quando eles voltaram. Tudo estava
azul, o céu, as nuvens, o gelo, os rostos e o vapor que saía de suas narinas. O casaco vermelho
de Bernard estava cor de abóbora. Eles não tinham voltado sem nada conseguir.
A linha ondulada estava gravada em suas fitas registradoras, sob a forma de uma linha
reta. Menos detalhada, ela havia perdido sua pequena ondulação, mas ela estava lá. Bem que
haviam encontrado o que tinham ido procurar.
Comparando seus levantamentos e o de Lancieux, Grey pôde localizar um ponto certo do
solo subglacial. Projetou o perfil sobre a tela do snowdogg. Aquilo parecia representar um
pedaço gigantesco de escada, virado e quebrado.
— Meus filhos — disse Grey com uma voz controlada — lá... lá tem... Na mão esquerda,
segurava uma folha de papel que tremia. Calou-se, pigarreou. Sua voz não conseguia mais sair.
Batia na tela com seu papel que se amassava.
Engoliu a saliva, explodiu:
— Meu Deus, isso é loucura! Mas existe! As quatro sondas não podem ter enlouquecido
exatamente da mesma maneira! Não há somente ruínas, no meio dessa camada, lá, nesse lugar
aí, justamente aí, há um emissor de ultrassons que funciona!
Seria a pequena linha misteriosa o registro de um sinal enviado por um emissor que
funcionava, segundo toda lógica, há mais de novecentos mil anos? Tal suposição ultrapassava
a história e a pré-história, derrubava todos os credos científicos, não estava no alcance
daquilo que aqueles homens sabiam. O único que aceitava o acontecimento com calma era
Brivaux, o único nascido e educado no campo. Os outros, nas cidades, tinham crescido no
meio do provisório, do efêmero, do que se constrói, se queima, se desmorona e se transforma.
Ele, na vizinhança das rochas alpinas, tinha aprendido a ver a grandeza e a perscrutar a
eternidade das coisas.
— Vão pensar que estamos loucos — disse Grey.
Chamou a base pelo rádio e pediu o helicóptero com urgência para ir buscar o grupo.
Mas havia esquecido da rubéola. O último piloto disponível acabara de cair de cama. —
Tem o André que está melhorzinho — disse o rádio da base — dentro de três ou quatro dias
poderemos mandá-lo. Mas por que é que vocês querem voltar? O que foi que aconteceu?
Pegou fogo nas geleiras?
Grey cortou. Enfim, essa brincadeira boba adiantara de certo modo.
Dez minutos mais tarde, o chefe da base, Pontailler, chamava outra vez, muito preocupado.
Queria saber qual a razão da missão querer voltar. Grey tranquilizou-o, porém recusou-se a
dizer o que quer que fosse.
— Não bastará que eu lhe diga, é preciso que lhe mostre — disse — senão você vai
pensar que ficamos todos malucos. Mande-nos buscar logo que for possível.
E desligou.
Quando o helicóptero chegou ao ponto 612, cinco dias mais tarde, Pontailler estava nele e
foi o primeiro a saltar em terra.
Os homens de Grey haviam passado aqueles cinco dias numa excitação e numa alegria
crescentes. Acabado o estupor devido ao choque inicial, eles haviam aceito as ruínas, aceito o
emissor, e os haviam adotado. O próprio mistério e sua inverossimilhança os exaltavam assim
como crianças que entram numa floresta onde as fadas existem de verdade. Haviam acumulado
os levantamentos E os registros. Bernard, baseado nas coordenadas fornecidas pelos
aparelhos, trabalhava numa espécie de plano piloto, cheio de lapsos e de partes em branco,
mas que já tomava o aspecto de uma paisagem fantástica, mineral, deserta, desconhecida,
porém humana.
Brivaux havia trazido um magnetofone e o havia acoplado ao registrador da sonda nova.
Obteve uma fita magnética e convidou seus amigos para escutá-la. Eles não ouviram ruído
nenhum, nada de nada.
— Esse seu "troço" deve estar meio esburacado! — resmungou Elói...
Brivaux sorriu.
— Está tudo em silêncio — disse ele. — Vocês não podem ouvir os ultra-sons.
Mas eles estão lá, isso eu garanto. Para ouvi-los, seria preciso um redutor de frequência.
Eu não tenho. Na base também não há. Seria preciso ir a Paris.
Seria preciso ir a Paris. Esta foi também a conclusão de Pontailler que a princípio havia
recusado para depois aceitar a evidência da descoberta. Não se podia nem mesmo falar sobre
isso pelo rádio, com todos os ouvidos do mundo atentos noite e dia ao menor segredo. Era
preciso levar todos os documentos à sede em Paris. O chefe das Expedições Polares decidiria
o que e a quem comunicar. Enquanto esperavam, todos deviam ficar calados. Como dizia Elói,
"isso poderia ser algo de diferente".
Peguei o avião para Sidney, com duas semanas de atraso, e o desejo de voltar o mais
depressa possível. Não estava mais atormentado por aquele desejo de café creme. Nem um
pouco. Havia lá, embaixo do gelo, qualquer coisa de bem mais excitante que o odor dos
cafés parisienses.
O avião ganhou velocidade na pista, subiu no ar como uma bolinha de plástico sobre
um repuxo, virou um pouco no mesmo lugar à procura da sua direção; depois, com um ruído
ensurdecedor, atirou-se rumo ao norte e para cima, a 50 graus de inclinação. Apesar das
cadeiras reclinadas e acolchoadas como amas de leite, é engraçada a sensação que dá ao
subir, com tal inclinação e muita velocidade. O avião levava somente viajantes
experimentados e não corria o risco de quebrar as janelas por conta do bang. Então os
pilotos pouco ligavam para o resto...
Ele me levava com minhas valises e minha pasta, que continha, além da escova de
dentes e o pijama, os microfilmes dos levantamentos e do plano piloto de Bernard, a fita
magnética, as cartas de Grey e de Pontailler autenticando tudo isso.
Eu levava também, sem saber, o vírus da rubéola, que iria dar a volta ao mundo sob o
nome de rubéola australiana. Os laboratórios farmacêuticos fabricaram a toda pressa uma
nova vacina e ganharam muito dinheiro.
Só cheguei a Paris dois dias depois da minha partida. Ignorava que tinha se tornado
muito difícil atravessar os oceanos. No nosso isolamento de gelo, havíamos esquecido os
ódios estúpidos do mundo, que haviam crescido mais e se ramificado durante esses três
anos. A estupidez generalizada evocava para mim a ideia de cães enormes acorrentados uns
diante dos outros, cada um forçando a sua corrente, não pensando senão em rompê-la para
ir abocanhar o cão que estava à sua frente. Sem razão. Simplesmente porque é um outro
cão. Ou talvez porque esteja com medo...
Li os jornais australianos. Havia pequenos incêndios espalhados pelo mundo inteiro.
Eles haviam crescido depois da minha partida para a Antártida. E haviam-se multiplicado.
Em todas as fronteiras, à medida que se tiram as barreiras alfandegárias, barreiras
policiais as substituem.
Desembarcado no aeroporto de Sidney, não fui autorizado nem a sair nem a partir
novamente.
Faltava não sei qual visto militar no meu passaporte. Foram-me necessárias 36 horas
de discussão furiosa para finalmente poder pegar o jato com destino a Paris. Eu tremia com
a ideia de que eles pudessem meter o nariz nos meus microfilmes. Que teriam imaginado?
Porém ninguém me pediu para abrir a pasta. Poderia muito bem estar transportando os
planos das bases atômicas. Mas isso não os interessava. Precisavam do visto, nada mais.
Era a estupidez. Era o mundo organizado.
Logo que Simon lhe entregou o conteúdo de sua pasta, Rochefoux, chefe das Expedições
Polares Francesas, tomou-o na mão com sua energia habitual. Ele tinha quase 80 anos, o que
não impedia de passar todos os anos algumas semanas na proximidade de um ou de outro polo.
Seu rosto era cor de tijolo, seus cabelos curtos de um branco brilhante, seus olhos azul-
celeste, seu sorriso otimista, tornavam-no idealmente fotogênico para a televisão, que não
perdia uma oportunidade de entrevistá-lo, de preferência em primeiro plano.
Naquele dia, ele as havia convocado todas, as do mundo inteiro e toda a imprensa, no fim
da reunião da Comissão da UNESCO. Ele havia decidido que o segredo já havia sido
guardado durante, bastante tempo, e tinha a intenção de sacudir a UNESCO, como um fox-
terrier sacode um rato, a fim de poder obter toda a ajuda necessária, imediatamente.
Num grande escritório do 7º andar, os operadores do Centro Nacional de Pesquisas
Científicas acabavam de instalar seus aparelhos sob a direção de um engenheiro. Rochefoux e
Simon de pé diante da grande janela, olhavam os dois oficiais trotar seus cavalos alazões na
perspectiva retangular do pátio da Escola Militar.
A Praça Fontenoy estava cheia de jogadores de pelanque que sopravam nos dedos antes
de jogar as pesadas bolas.
Rochefoux pigarreou e virou-se. Não gostava nem dos ociosos nem dos militares. O
engenheiro informou que tudo estava pronto. Os membros da Comissão começaram a chegar e
a tomar lugar ao longo da mesa, diante dos instrumentos. Eram dois negros, dois amarelos,
quatro brancos e três mulatos. Mas o sangue de todos eles misturados, formaria um só sangue
bem vermelho. No momento em que Rochefoux começou a falar, a atenção e emoção deles
foram únicas.
Duas horas mais tarde, eles sabiam tudo, haviam visto tudo, haviam feito cem perguntas a
Simon. Rochefoux concluiu, mostrando sobre a tela um ponto do mapa que ali estava
projetado:
— La no ponto 612 do continente antártico, sobre o paralelo 88, sob 980 metros de gelo,
há os retos de qualquer coisa que foi construída por uma inteligência e há milênios emite um
sinal. Há novecentos mil anos, este sinal diz: "Estou aqui, eu os estou chamando, venham..."
Pela primeira vez, os homens vieram a ouvi-lo. Vamos hesitar? Nós salvamos os templos do
vale do Nilo. Mas a água sempre crescente da barragem de Assuã nos jogava para trás. Aqui,
evidentemente, não há necessidade, não há urgência! Mas há qualquer coisa de bem maior: há
o dever de conhecer, de saber. Chamam-nos. É preciso ir! Isto exige de nós meios
consideráveis. A França não pode fazer tudo. Ela fará a sua parte. E pede às outras nações
para se juntarem a ela. O delegado americano desejava alguns detalhes.
Rochefoux pediu-lhe que tivesse paciência, e continuou:
— Esse sinal, vocês o viram sob a forma de uma simples linha escrita sobre um
quadrilátero. Agora, graças aos meus amigos do Centre National de Recherches Scientifiques,
que o ouviram de todas as maneiras possíveis, vou fazê-los ouvir...
Fez sinal ao engenheiro, que colocou um novo circuito sob tensão. No começo, urgiu na
tela do osciloscópio uma linha reta luminosa como o mi de um violão, enquanto que se ouvia
um assobio superagudo que fez Simon caretear. O negro mais negro passou a língua sobre os
lábios ressequidos. O branco mais louro colocou seu dedo indicador no ouvido e agitou-o
violentamente. Os dois amarelos fecharam completamente a brecha dos seus olhos. O
engenheiro do CNRS apertou lentamente um botão. O som superagudo tornou-se agudo. Os
músculos se distenderam. Os maxilares se relaxaram. O agudo baixou, o assobio tornou-se um
trinado. Começaram a tossir e a limpar a garganta. Sobre a tela do osciloscópio a linha reta
tinha-se tornado ondulada.
Lentamente, lentamente, a mão do engenheiro fazia descer o sinal, do agudo ao grave, em
toda a escala das frequências. Quando chegou ao limite dos infrassons, foi como uma massa de
feltro batendo na pele de um tambor gigantesco. E cada batida fazia tremer os ossos, a carne,
os móveis, os muros da UNESCO até suas raízes. Era semelhante às batidas de um coração
enorme, o coração de um animal inimaginável, o coração da própria Terra.
No dia seguinte, lia-se nos títulos da imprensa francesa: "A maior descoberta de todos os
tempos", "Uma civilização congelada", "A UNESCO vai derreter o Polo Sul".
Um jornal inglês perguntava em sua manchete principal: "Quem ou quê?"
Em redor de uma mesa em forma de meia-lua estão os Vignont, família francesa: o pai, a
mãe e um casal de filhos. Na tela da tevê, penduradas na parede diante deles veem o jornal
televisionado, enquanto jantam. Os pais dirigem uma loja da União Europeia de Calçados. A
filha segue um curso na Escola de Artes Decorativas. O filho se arrasta entre o segundo e o
terceiro ano do ginásio.
Na tela assiste-se à entrevista de uma etnóloga russa, transmitida diretamente pelo satélite.
Ela fala em russo, com tradução simultânea.
— A senhora pediu para fazer parte da expedição encarregada de elucidar o que se chama
o mistério do Polo Sul. A senhora espera encontrar traços humanos sob mil metros de gelo?
A etnóloga sorri.
— Se existe uma cidade, ela não foi construída por pinguins...
Não existem pinguins no Sul. Só existem m anchots. Mas uma etnóloga não é obrigada a
saber disso.
O Secretário Geral da UNESCO anuncia que os Estados Unidos, a URSS, a Inglaterra, a
China, o Japão, a União Africana, a Itália, a Alemanha, e outras nações fizeram saber que
dariam todo o seu apoio material à empreitada de degelo do ponto 612. Os preparativos vão
ser apressados. Tudo estará pronto em princípio do próximo verão polar.
A televisão fazia entrevistas com populares:
—Você sabe onde é o Polo Sul?
— Bem... eu...
— E você?
— Ora... é lá em baixo...
— E você?
— É ao sul!
— Bravos. Você gostaria de ir lá?
— Eu não, bolas.
— Por quê?
— Bem, deve fazer muito frio.
— Na mesa em forma de meia-lua, a mãe Vignont sacudiu a cabeça: — Como eles são
bobos de fazer essas perguntas assim! Refletiu um segundo e depois acrescentou:
— É claro que lá não deve fazer calor... O pai Vignont replicou: — Imagine só o que isso
vai custar em dinheiro! Seria muito melhor que eles construíssem parqueamentos...
Na tela apareceu o plano piloto de Bernard.
— Mas mesmo assim é um bocado gozado encontrar isto naquele lugar — disse a mãe.
— Não é novo — disse a filha - é pré-colombiano...
O filho nem olhou. Enquanto comia, lia as historinhas de aventuras de Billy Kid. Sua irmã
o sacudiu.
— Olha um pouco! Não é gozado? Ele sacudiu os ombros.
—Besteiras — disse ele.
Um engenho monstruoso afundava-se no flanco da montanha de gelo, projetando atrás de si
uma nuvem de fragmentos transparentes que o sol atravessava e coloria com um arco-íris.
A montanha já estava cortada por umas trinta galerias em volta das quais haviam instalado,
no coração vivo do gelo, os entrepostos e os emissores de rádio e televisão da EP1 —
Expedição Polar Internacional. A cidade na montanha chamava-se EPI-1 e a que estava
abrigada sob o gelo no platô 612 chamava-se EPI-2. Esta compreendia todas as outras
instalações e a pilha atômica que fornecia a força, a luz e o calor às duas cidades protegidas e
a EPI-3, a cidade da superfície composta dos hangares, dos veículos e de todas as máquinas
que atacavam gelo de todas as maneiras que a técnica podia imaginar.
Jamais uma empreitada internacional desse tamanho fora realizada. Parecia que os homens
haviam encontrado, com alívio, a tão sonhada ocasião de esquecer ódios, de confraternizar
num esforço totalmente desinteressado.
A França era a potência que convidara, o francês tinha sido escolhido como língua de
trabalho. Mas para tornar as relações mais fáceis, o Japão havia instalado na EPI-2 uma
máquina tradutora de ondas curtas. Ela traduzia imediatamente discursos, os diálogos que lhe
eram transmitidos, e emitia a tradução em dezessete línguas sobre dezessete ondas diferentes.
Cada sábio, cada chefe de equipe e técnico importante, havia recebido um receptor adesivo,
que não era maior que uma ervilha, no comprimento de onda da sua língua materna, que e
mantinha permanentemente no ouvido, e um emissor-alfinete que levava geralmente preso à
lapela ou ao ombro. O manipulador de bolso, da espessura de uma moeda, lhe permitia se
isolar do barulho das mil conversas quando dezessete traduções se misturavam no éter, numa
confusão de Babel, e permitia lecionar o diálogo do qual se desejava participar.
A pilha atômica era americana, os helicópteros pesados eram russos, as roupas
acolchoadas eram chinesas, as botas finlandesas, o uísque escocês e a cozinha francesa.
Havia máquinas e aparelhos ingleses, alemães, italianos, canadenses, carne da Argentina e
frutos de Israel. O condicionamento de temperatura e o conforto no interior do EPI-1 e 2 eram
americanos. E eram tão perfeitos que poderiam receber visita de mulheres.
Um poço se afundava no gelo translúcido, partindo numa linha vertical do ponto onde
havia sido localizado o emissor do sinal. Tinha onze metros de diâmetro. Uma torre de ferro
semelhante a um derrick o dominava, trepidante de motores, fumegante de vapores, que o
vento transformava em echarpes de neve. Dois elevadores levavam para as profundezas os
homens e o matéria" que se afundavam cada dia um pouco, rumo ao coração do mistério.
A 917 metros, os mineiros do frio encontraram um pássaro no gelo. Era vermelho, com o
peito branco, as patas alaranjadas, uma crista da mesma cor, o bico amarelo, largo,
entreaberto, o olho ruço e preto, brilhante. Tinha as asas meio abertas, distorcidas, a cauda em
leque, as patas bem abertas como se tentasse frear, dando a impressão de se debater numa
rajada de vento que o pegara por trás. Estava eriçado como uma chama.
Recortaram ao seu redor um cubo de gelo e ele foi enviado para a superfície...
O comitê diretor da expedição decidiu deixá-lo em sua embalagem natural. Foi colocado
num refrigerador transparente, e os sábios começaram a discutir sobre o seu sexo e sua
espécie. A tevê tornou sua imagem conhecida no mundo inteiro.
Quinze dias mais tarde, em plumas, em pelúcia, de seda, de lã, de plástico, de madeira e
de penas, ele inundava a moda e as lojas de brinquedos. No fundo do poço os entalhadores de
gelo tinham atingido as ruínas.
O Professor João de Aguiar, delegado do Brasil, presidente em exercício da UNESCO,
subiu à tribuna e virou-se para a assistência. Estava de casaca. Na grande sala de
conferências, havia naquela tarde não somente sábios, diplomatas e jornalistas, mas também o
tout-Paris muito parisiense e o tout-Paris internacional.
Acima da cabeça do Professor Aguiar, a maior tela de tevê do mundo ocupava quase toda
a parede do fundo. Ela ia receber e mostrar em relevo holográfico a emissão vinda do fundo
do poço, emitida pela antena do EPI-1 e retransmitida pelo satélite Trio.
A tela iluminou-se. O busto gigantesco do presidente apareceu, em cores pastéis, um pouco
enfeitadoras, em relevo perfeito.
Os dois presidentes, o pequeno em carne e osso e sua grande imagem, ergueram a mão
direita num gesto amigável e falaram. Isto durou sete minutos. Concluiu informando: "Uma
sala pôde ser talhada no gelo, no meio das ruínas extraordinárias. Salvo alguns heroicos
pioneiros da ciência humana que cruzaram o poço com sua técnica e sua coragem, ninguém
ainda no mundo as viu. E o mundo inteiro vai, dentro de um instante, descobri-las. Quando eu
apertar este botão, graças ao milagre das ondas, lá, do outro lado do mundo, os projetores se
iluminarão e a imagem daquilo que talvez tenha sido a primeira civilização do mundo, á
enviada a todos os lares da civilização de hoje..."
Na sua pequena cabina, o realizador vigiava na tela de controle a imagem do presidente.
Os dois abaixaram o dedo polegar ao mesmo tempo. Nos confins do mundo a sala de gelo
iluminou-se.
O que logo viram todos os espectadores foi um cavalo branco. Ele estava de pé, por trás
da superfície de gelo. Magro, grande, alongado, parecia prestes a cair de lado, relinchando de
medo, os lábios arreganhados sobre os dentes, sua crina e sua cauda flutuavam, imóveis, há
novecentos mil anos.
O tronco partido de uma árvore gigantesca estava caído e atravessado atrás dele. Nas
palmas de sua folhagem, no teto da sala, aparecia a goela aberta de um tubarão. Um lance de
escadas enormes, ou de pequenos degraus amarelos, descendo da noite, se perdiam na
escuridão.
Em frente, uma flor flamejante, grande como uma rosácea de catedral, espalhava três
quartos de suas pétalas púrpuras. À sua direita, erguia-se um trecho destruído de muro cor-de-
rosa, de uma matéria desconhecida, que não era completamente opaca. Aí se abria uma
espécie de porta, ou de janela, através da qual se viam, imóveis, um pequeno roedor com a
cauda em pé, as patas para o ar, e um bando de ouriços azuis. Mais abaixo, notava-se o pico
de uma larga pista helicoidal feita de um metal que parecia com o aço. Tudo envolto na bruma
de um mundo gelado.
A segunda operação começou. Uma mangueira de ar foi dirigida para a parede onde estava
um pedaço de muro. Aos olhos do mundo inteiro, o primeiro fragmento do passado
embalsamado ia ser libertado da sua canga.
O ar quente jorrou, afundando-se no gelo que começou a derreter. Uma mangueira de
sucção aspirava a lama que se formava, uma outra engolia a água da fonte e tornava a enviá-la
à superfície.
A parede de gelo começou a diminuir, recuar, até que o muro verde apareceu. E sobre as
telas, a imagem distorcida, deformada pelas gotas que escorriam das câmaras blindadas,
mostrou esse fenômeno inacreditável: o muro fundiu ao mesmo tempo que o gelo...
Os ouriços e o roedor de patas para o ar derreteram-se e sumiram. O ar quente havia
invadido toda a sala. Todas as paredes se fundiam. Do teto, cataratas corriam sobre os homens
de escafandros. As palmas da árvore se derreteram. A goela do tubarão derreteu-se como um
chocolate. Duas das pernas do cavalo e o seu flanco se derreteram. O interior do seu corpo
apareceu, vermelho e fresco. A flor vermelha transformou-se em água sangrenta.
O ar morno atingiu o alto da pista helicoidal de aço, e o aço se fundiu.
Os jornais exploraram com sensacionalismo o assunto. As suas manchetes diziam: "A
maior decepção do século". "A cidade embalsamada não era senão um fantasma". "Milhões
engolidos por uma miragem".
Uma entrevista televisionada de Rochefoux colocou as coisas no lugar. Ele explicou que a
enorme pressão sofrida durante milênios havia dissociado os corpos mais resistentes até suas
moléculas. Mas o gelo mantinha na sua forma primitiva a poeira impalpável na qual eles se
tinham transformado. Ao fundirem-se, a poeira os libertava e eram arrastados pela água.
— Vamos adotar uma nova técnica — acrescentou Rochefoux. — Recortaremos o gelo
com os objetos que ele contém. Não renunciamos a descobrir o segredo dessa civilização que
nos vem da noite dos tempos. O transmissor de ultra-sons continua a emitir seu sinal.
Nós continuamos a descer em sua direção...
A 978 metros abaixo da superfície do gelo, o poço atingiu o solo do continente. Mas o
sinal emitido vinha do subsolo.
Depois de ter se enfiado no gelo, o poço afundou-se mais dentro da terra, e depois dentro
da rocha. Em seguida, esta apareceu muito dura, vitrificada, como se tivesse sido cozida e
comprimida, e que depois se enrijecesse cada vez mais. Sua consistência deixou os geólogos
desconcertados. Ela apresentava uma dureza, uma compacidade desconhecida em qualquer
outro ponto do globo. Era uma espécie de granito, mas as moléculas que o compunham
pareciam ter sido ordenadas e arrumadas para ocupar um mínimo de lugar possível e oferecer
um máximo de coesão. Depois de ter quebrado uma quantidade de ferramentas mecânicas,
chegamos finalmente ao fim da rocha, e a 107 metros abaixo do gelo, encontramos areia. Esta
areia era um absurdo geológico. Não poderia ser encontrada aí. Rochefoux, sempre otimista,
dizia que ela deveria ter sido trazida para aquele lugar. Isto era uma prova de que estávamos
no bom caminho.
O sinal continuava chamando, cada vez mais para o fundo. Era preciso continuar
descendo.
Continuamos.
2
APÓS ATINGIRMOS A AREIA, fomos obrigados a fechar o poço antes mesmo de tê-lo
cavado, enfiando um invólucro metálico na areia, tão seco e móvel quanto a de uma ampulheta
e que escorria como água.
A dezesseis metros abaixo da rocha, um mineiro seguro pelas cordas começou a fazer
gestos frenéticos e a gritar qualquer coisa que sua máscara contra poeira tornava
incompreensível. O que ele queria dizer é que sentia qualquer coisa dura sob seus pés.
O aspirador, enfiado na areia, subitamente começou a fazer barulho e a vibrar até que seu
tubo achatou-se. Higgins, o engenheiro, que do alto da plataforma supervisionava os trabalhos,
desligou o motor. Juntou-se aos mineiros, e começou a escavar com precaução, primeiro com
a pá, depois com a mão, depois com uma vassoura.
Quando Rochefoux desceu, acompanhado de Simon, de Brivaux, da atraente antropologa
Leonova, chefe da delegação russa, e do químico Hoover, chefe da delegação americana,
encontraram no fundo do poço, já limpa de toda a areia fina, uma superfície metálica,
ligeiramente convexa, unida, de cor amarela.
Hoover pediu que parassem os motores, mesmo o da ventilação, e que todos se
abstivessem de falar ou de mexer.
Houve então um silêncio extraordinário, protegido dos barulhos da Terra por cem metros
de rocha e um quilômetro de gelo. Hoover ajoelhou-se e o seu joelho esquerdo estalou. Com o
dedo indicador dobrado, ele bateu na superfície do metal. Ouviu-se somente um barulho
frágil: aquele da carne frágil de um homem de encontro a um obstáculo maciço.
Houver tirou um martelo de cobre da sua maleta e bateu no metal, primeiro suavemente,
depois com grandes golpes. Não houve nenhuma ressonância.
Hoover resmungou e inclinou-se para examinar a superfície. Não tinha marca nenhuma dos
golpes. Tentou ver se tirava uma amostra. Mas sua tesoura de tungstênio escorregou sobre a
superfície e não conseguiu prendê-la.
Então jogou diferentes ácidos que logo examinava com espectroscópio portátil.
Levantou-se. Estava perplexo.
— Não compreendo o que o torna tão duro. Ele é praticamente puro.
— Ele, por que ele? Que metal é este? — Leonova perguntou irritada.
Hoover era um gigante avermelhado, barrigudo e bonachão, com movimentos lentos.
Leonova era miúda e morena, nervosa. Era a mulher mais bonita da expedição. Hoover
olhou-a sorridente.
— O quê! Você não reconheceu? Você, uma mulher?... É ouro!...
Brivaux tinha feito seu aparelho registrador funcionar. O papel se desenrolava. A delgada
linha registradora aparecia sem um colchete, sem uma interrupção.
O sinal vinha do interior do ouro.
Parecia que o poço tinha atingido uma grande esfera, não exatamente no seu cimo, mas um
pouco do lado. Uma grande parte da superfície fora limpa, mas pelos lados tudo parecia
afundado em areia.
Limparam o ponto mais alto da esfera e o transpuseram. Logo depois fizeram a primeira
descoberta reveladora. No metal aparecia uma série de círculos concêntricos, o maior tendo
mais ou menos três metros de diâmetro. Esses círculos eram compostos de uma fileira de
dentes agudos e baixos inclinados como para funcionar no sentido de uma rotação.
— Isto parece a extremidade de uma escavadora — disse Hoover. — Para fazer um
buraco! Para sair de lá de dentro!...
— Você acredita que seja oco e que exista alguém lá dentro? — disse Leonova.
Hoover fez uma careta.
— Talvez...
Ele acrescentou:
— Antes de pensar em sair, foi preciso que eles entrassem. Em algum lugar deve existir
uma porta!...
Duas semanas depois do primeiro contato com o objeto de ouro, os diversos instrumentos
de sondagem haviam fornecido bastantes conhecimentos para que pudessem tirar conclusões
provisórias:
O objeto parecia ser uma esfera pousada sobre um pedestal, o todo colocado num bolso
cheio de areia e afundado numa rocha artificialmente endurecida A areia serviria sem dúvida
para isolar o objeto dos abalos sísmicos e de todos os movimentos terrestres. A esfera e seu
pedestal pareciam estar solidários e formar um só bloco. A esfera tinha 27 metros e 42 de
diâmetro e era oca. A espessura de sua parede era de 2m92.
Resolveu-se começar por tirar toda a areia e a esvaziar o bolso rochoso para soltar o
objeto de ouro, pelo menos até a metade.
Eu estava de pé sobre o assoalho de ouro, na peça redonda e vazia. Uma poeira ligeira
espalhava seus véus ao longo do muro de ouro circular, atravessado por milhões de
alvéolos que pareciam jeitos para conter alguma coisa e que não continham nada.
Os outros desciam, olhavam e se calavam. A poeira quase invisível velara o feixe das
lâmpadas frontais, e enfeitava com uma auréola nossas silhuetas mascaradas.
Depois vieram os dois eletricistas com seus projetores de bateria. A grande claridade
transformou a peça no que ela era: simplesmente uma peça vazia. Diante de mim, uma
parte do muro era lisa, sem alvéolo. Tinha a forma trapezoidal, um pouco mais larga em
cima do que em baixo, com um ligeiro estrangulamento na metade. Pensei que isso podia
ser uma porta e dirigi-me para ela.
Foi assim que dei meus primeiros passos na lua direção.
Não havia nenhuma maneira visível de abrir aquela porta, se é que era porta. Nem
maçaneta nem fechadura. Simon ergueu sua mão direita enluvada, colocou-a de encontro à
porta, perto da beirada, à direita, e empurrou. A borda direita da porta separou-se do muro e
entreabriu-se. Simon tirou a mão. Sem barulho e sem clique, a porta voltou exatamente ao seu
lugar.
— E então, o que estamos esperando? — disse Hoover. — Vamos... Como ele estava à
esquerda de Simon, instantaneamente ergueu sua mão esquerda e pousou-a sobre a borda
esquerda da porta. E a porta abriu-se à esquerda.
Sem se demorar a admirar essa porta ambivalente, Hoover empurrou-a mais
profundamente. Ela permaneceu aberta. Simon com um gesto chamou um eletricista que levou
seu projetor e o fixou na abertura.
Era como um corredor longo de vários metros de comprimento. O solo era de ouro, e os
muros de uma matéria de cor verde que parecia porosa. Uma porta azul da mesma matéria
fechava o fundo do corredor. Duas outras estavam à direita e uma à esquerda.Simon entrou
seguido de Hoover, de Higgins e dos outros atrás dele. Quando chegou à primeira porta,
parou, ergueu a mão e empurrou.
Sua mão enluvada afastou a porta e passou para o outro lado...
Hoover pigarreou de surpresa e fez um movimento para se aproximar. Seu corpo enorme
roçou em Higgins que para conservar o equilíbrio, apoiou-se contra a parede.
Higgins passou através da parede. Gritou, e a tradutora reproduziu o mesmo grito em todos
os microfones de ouvido. Houve um baque surdo alguns metros mais abaixo e a voz de
Higgins calou-se.
O choque havia abalado as paredes. Viram-nas tremer, se dobrar, se abater e desmoronar
suavemente em camadas de poeira, descobrindo um abismo de escuridão mostrado pelos
projetores, onde outras paredes caíam sem barulho, revelando todo um mundo à beira de
desaparecer. Móveis, máquinas, animais imóveis, silhuetas vestidas, espelhos, formas
desconhecidas que se deformavam, escorregando sobre o assoalho que balançava e trepidava.
Do fundo da esfera, onde se encontravam todas essas coisas, subiam rolos cinzas e
espessos de cúmulos de poeira. Os sábios e os técnicos tiveram tempo de perceber Higgins lá
em baixo com os braços em cruz, o peito atravessado por uma estaca de ouro. Depois a nuvem
o envolveu e continuou a subir.
— Máscaras! — gritou Hoover.
Apenas tinham colocado suas máscaras, a nuvem os atingiu, envolveu-os e encheu toda a
esfera. Ficaram parados no lugar, não ousando se mexer. Não viam mais nada.
Estavam numa passarela sem balaustrada, acima de oito andares de vazio, envolvidos por
uma neblina impenetrável.
— Ajoelhem-se! Devagar! — disse Hoover. — Fiquem de quatro!...
Foi assim que voltaram lentamente, tateando as bordas da passarela, a sala redonda, e
depois para o exterior da esfera. Emergiram um a um, trazendo com eles farrapos e echarpes
de poeira. O poço de ouro fumegava.
Dois escafandristas presos por cordas desceram para procurar o corpo de Higgins.
Um pastor celebrou um serviço fúnebre numa igreja debaixo do gelo. Uma cruz de luz
abria-se para o céu, recortada na abóbada translúcida.
Depois o corpo de Higgins fez a longa e silenciosa viagem de volta à Cidade do Cabo, sua
terra natal.
A imprensa deleitou-se: "A esfera maldita ataca de novo", "O túmulo do Polo Sul matará
mais sábios do que o de Tutankhamon?" No restaurante do EPI-2, os jornais acabavam de
chegar pelo último avião, e passavam de mão em mão. Leonova olhava com desprezo um
hebdomadário inglês cujo título era o seguinte: "Que fantasma assassino toma conta da esfera
de ouro?"
— A imprensa capitalista delira — comentou.
Hoover, sentado diante dela, espalhava um quarto de litro de creme sobre o seu prato de
milho.
— Sabemos bem que os marxistas não acreditam no sobrenatural — respondeu ele — mas
espere até que o fantasma venha lhe fazer cócegas na sola dos pés, de noite...
Engoliu sem mastigar mais uma colherada de milho, e prosseguiu:
— Houve alguma coisa que empurrou Higgins através da parede, não?
— Foi sua barriga que o empurrou!... Você não tem vergonha de transportar tamanho
horror diante de si? Ela não é somente inútil, mas também perigosa!
Ele bateu carinhosamente na sua pança.
— Toda a minha inteligência está aqui. Quando eu emagreço me torno triste e tão bobo
quanto qualquer outra pessoa... Estou desolado por Higgins... Não gostaria de morrer como
ele, sem ver a continuação...
Haviam introduzido no interior da esfera um enorme tubo de ar que a aspirava há uma
semana.
O ar lançado para a superfície era recebido dentro de sacos e a poeira recolhida era
enviada para os laboratórios que, no mundo inteiro, trabalhavam para a expedição.
Quando os sacos não recolheram mais nada, a primeira equipe penetrou novamente na
esfera. Havia projetores assentados em todas as direções, na atmosfera interior que havia se
tornado transparente. Sua luminosidade refletida, quebrada, difundida em todas as partes pelo
mesmo metal, inundava com reflexo de ouro uma arquitetura abstrata e fantástica.
No desmoronamento do muro fechado, tudo que era composto da mesma liga da parede
externa havia subsistido. Assoalhos sem muro, escadas sem rampas, rampas que não levavam
a lugar nenhum, porta se abrindo sobre o vazio, peças fechadas suspensas, ligadas umas às
outras, sustentadas, escoradas por vigas abertas ou arcos bastante frágeis, compunham um
esqueleto de ouro leve, incrivelmente belo.
Quase no centro da esfera, uma coluna a atravessava verticalmente de lado a lado. Era ela,
ou continha a perfuratriz. Aos seus pés, apoiada contra ela, ou talvez ligada a ela, erguia-se
uma construção de mais ou menos nove metros de altura, hermeticamente fechada, em forma de
ovo, com a ponta para cima.
— Encontramos o grão, eis aqui o gérmen — murmurou Leonova.
Uma escada, cujos degraus de ouro pareciam se manter no ar sozinhos, partia do lugar da
porta na parede da esfera, atravessava o ar como um sonho de arquiteto e terminava no ovo, a
três quartos da sua altura. Logicamente nesse lugar deveria se encontrar a abertura.
De assoalho em passarela e em escada, por caminhos aéreos, os exploradores desceram
em direção ao ovo. E aí encontraram a porta no lugar onde esperavam encontrá-la. Era de
forma ovoide, mais larga para baixo. Estava bem fechada e não apresentava nenhum
dispositivo de abertura. Embora não fosse soldada, resistiu a todas as pressões.
Simon, como um moleque, tirou um canivete do bolso e tentou introduzir a lâmina na
abertura quase invisível. A lâmina escorregou sem penetrar. A fechadura era de um
hermetismo total. Hoover pegou seu martelo de cobre e bateu. Assim como na parede da
esfera, o som era oco.
Fizeram descer Brivaux com seu registrador. A linha de ultra-sons inscreveu-se sobre o
papel.
O sinal vinha do interior do ovo.
Na Sala de Conferências, sábios e jornalistas seguiam sobre as telas o trabalho das
equipes no interior da esfera. Os carpinteiros do dever instalavam passarelas escoravam
escadas.Hoover e Lanson, assistidos por eletricistas, se ocupavam com a porta do ovo.
Leonova e Simon acabavam de atingir com uma escada uma sala de ouro suspensa no
vácuo.
A atmosfera estava clara. Ninguém mais usava máscara. Com mil precauções Leonova
empurrou a porta metálica da sala redonda, que se abriu lentamente Leonova entrou e afastou-
se para deixar passar Simon. Ambos se viraram para o interior da sala e olharam.
A sala não estava iluminada senão pelos reflexos que deixava entrar a porta entreaberta.
Nessa penumbra de ouro encontravam-se seis seres humanos. Dois estavam de pé e os
olhavam entrar. O da direita num gesto móvel os convidava a sentar sobre uma espécie de
banco horizontal cujo suporte não se percebia. O da esquerda abriu os braços como se fosse
dar um abraço cordial.
Todos dois estavam vestidos de uma pesada e larga capa vermelha que caía até o solo e
escondia-lhes os pés.
Um pequeno boné vermelho lhes cobria a cabeça. Cabelos lisos, castanho num e louro no
outro, caíam até a altura dos seus ombros.
Atrás deles, dois homens quase nus sentados face a face sobre um móvel branco
entrelaçavam os dedos da. mão esquerda e erguiam a direita com o dedo indicador esticado.
Talvez fosse um jogo.
Leonova pegou seu aparelho fotográfico e apertou a claridade dupla do raio laser.
Toda a cena foi violentamente iluminada durante um milésimo de segundo.
Simon teve tempo de vislumbrar mais dois personagens, mas a imagem apagou-se, na sua
retina. E a cena apagou-se ao mesmo tempo. Como se o choque da claridade tivesse sido
muito violento para eles, as roupas, depois as substâncias dos personagens se desprenderam e
resvalaram transformando-se em poeira, descobrindo uma série de motores e de bolsos
metálicos. Depois esses esqueletos por sua vez se desmancharam lentamente. Em poucos
segundos não restou do grupo, na poeira que subia, senão alguns arabescos de fios de ouro,
sustentando, aqui e ali, uma plaqueta, um círculo, uma espiral suspensos...
Leonova e Simon se apressaram a sair e a fechar a porta da peça sobre a nuvem de poeira
que a enchia. Estavam frustrados como quando a gente acorda no meio de um sonho e sabe que
nunca mais o verá.
De pé sobre a porta do ovo, Hoover dava informações sobre os trabalhos da sua equipe.
Na sala de Conferências, os jornalistas olhavam para a grande tela e tomavam notas.
Conseguimos perfurar — disse Hoover. — Eis aqui o buraco... — Seu polegar gordo
pousou sobre a porta, perto de um orifício negro no qual se ajustava perfeitamente.
— Não houve nenhum movimento de ar, nem numa direção nem na outra. O equilíbrio das
pressões externa e interna não pode ser obra de um acaso. Nalgum lugar deve existir um
dispositivo que conhece a pressão externa e age sobre a pressão interna.
Onde está ele? Como funciona? Vocês gostariam de saber? Eu também...
— Rochefoux falou no microfone da mesa do conselho.
— Qual é a espessura da porta?
— Cento e noventa e dois milímetros de camadas alternadas de metal e de uma outra
matéria que parece ser um isolante térmico. Há pelo menos umas cinquenta camadas, um
verdadeiro folheado! Vamos medir a temperatura interior.
Um técnico introduziu no orifício um longo tubo metálico, que terminava, no lado exterior,
por um quadrante. Hoover deu uma olhada neste último, bruscamente assumiu um ar
interessado e não despregou mais seus olhos.
— Pois bem, crianças! Está descendo!... está descendo!... Ainda... mais... estamos a menos
80 graus, 100... menos 120...
Deixou de enumerar os números e pôs-se a assobiar espantado. A máquina tradutora
assobiou dentro de dezessete ouvidos...
— Menos 180 graus centígrados! — disse a imagem de Hoover em primeiro plano. — É
quase a temperatura do ar líquido!
Louis Deville, representante da Europress, que fumava um charuto longo e fino, disse com
seu belo sotaque meridional:
— Puxa! é um frigorífico! Vamos encontrar aí petit-pois congelado! Hoover continuava:
— Estamos tentando introduzir um gancho de aço no buraco e puxar para cima, a fim de abrir
a porta. Mas com o frio que faz lá dentro, o gancho vai se quebrar como um fósforo. É preciso
encontrar uma outra maneira...
Esta outra maneira foram três ventosas pneumáticas, grandes como um prato, aplicadas
sobre a porta, ligadas a um macaco-trator fixado a uma armação de ferro armada em torno do
ovo. Uma bomba sugava o ar das ventosas até quase o vácuo, com uma pressão capaz de
levantar uma locomotiva.
Hoover começou a fazer girar o volante do macaco.
Na Sala de Conferência, um jornalista inglês perguntou a Rochefoux: O senhor não tem
medo de que aí dentro haja um dispositivo de destruição?
— Não havia nada atrás da porta da esfera. Nós só soubemos disto depois que estávamos
lá dentro. Portanto não há razão para que haja um aqui.
O comitê estava todo reunido diante da tela, de onde se podia ver, bem melhor do que no
próprio local, o que se passava lá embaixo. A sala estava cheia e agitada. Mesmo aqueles que
tinham outras coisas para fazer fora dali, vinham olhar rapidamente como iam correndo os
trabalhos e depois partiam para suas obrigações.
Sozinha, Leonova, muito impaciente para ficar olhando de longe, havia acompanhado
Hoover e seus técnicos. Simon estava perto deles, com duas enfermeiras, pronto a intervir em
caso de acidente.
Sobre a tela, a imagem de Hoover virou a cabeça em direção dos seus colegas do comitê.
— Já dei vinte voltas ao volante — disse ele. — Isso representa 10 milímetros de tração.
A porta não mexeu nada. Se eu prossigo, ela vai se deformar os se arrebentar.
Continuo?
— As ventosas não correm o risco de cair? — perguntou Ionescu, físico romeno.
— Era mais fácil elas arrancarem o Polo Sul.
— É necessário que essa porta seja aberta de uma maneira ou de outra - disse Rochefoux.
Virou-se para os membros do Conselho.
— O que é que vocês pensam? Votamos?
— É preciso continuar — disse Shanga, levantando a mão.
Todas as mãos se levantaram, Rochefoux falou à imagem. — Continue, Joe — disse ele.
— O.K. — disse Hoover.
Com as duas mãos retomou o volante do macaco.
Na cabina de tevê, Lanson ligou a antena emissora. Atrás de um compartimento de vidro à
prova de som, um jornalista alemão comentava. Na tribuna da imprensa, Louis Deville
levantou-se:
— Posso fazer uma pergunta ao Sr. Hoover? — solicitou.
— Aproxime-se — disse Rochefoux.
Deville subiu ao pódio e inclinou-se para o microfone direto.
— Sr. Hoover, o senhor me ouve?
Hoover assentiu com um gesto de cabeça.
—Bem — prosseguiu Deville — o senhor fez um buraco no gelo, encontrou um grão. Fez
um buraco no grão, encontrou um ovo. Hoje o que acha que vai encontrar?
Hoover virou-se e apresentou um sorriso encantador no seu rosto gordo.
— Nuts! — disse, empregando gíria americana.
A máquina tradutora, depois de um milésimo de segundo de hesitação traduziu nos
microfones franceses como:
— Nozes.
Não se deve pedir demais a um cérebro eletrônico... Para exprimir corretamente a ideia o
cérebro do homem traduziria o termo por "bolas".
Deville voltou para seu lugar esfregando as mãos. Ele tinha uma boa notícia para esta
tarde, mesmo se...
— Atenção! — disse Hoover — creio que chegamos... Bruscamente houve no emissor um
barulho semelhante ao de algumas toneladas de veludo sendo rasgadas. Na parte de baixo da
porta apareceu uma fresta escura.
— Ela abre por baixo! — disse Hoover. — Descolem a número 1 e a número 2. Rápido!
As duas ventosas superiores cheias de ar caíram no fim das suas correntes Só ficaram as
da parte de baixo. Hoover virava o volante a toda pressa. Houve um arpejo lancinante como
se todas as cordas de um piano se arrebentassem uma após as outras. Depois a porta não
resistiu mais.
Ao cabo de alguns minutos as suas bordas cederam. Leonova e Simon vestiram macacões
de astronautas, os únicos capazes de proteger contra o frio que reinava no ovo.
Tinham sido trazidos a jato da Estação Rockefeller, a base americana de partida para a
Lua.
Esperavam os dos russos e dos europeus. Mas no momento só havia esses dois. Hoover
teve que renunciar a se meter dentro de um deles. Pela primeira vez, depois de ter passado dos
cem quilos, lamentava o seu volume. Colocou luvas de amianto, introduziu sua mão pela
fresta, por baixo do último degrau da escada, e puxou a porta, que se ergueu como uma tampa.
Entrei. E te vi.
E fui logo tomado pela vontade louca, mortal, de afastar, de destruir todos aqueles que
lá, atrás de mim, na esfera, sobre o gelo, diante de suas telas no mundo inteiro, esperavam
saber e ver. E que iam te ver, como eu te via.
Entretanto, eu queria também que eles te vissem. Queria que o mundo inteiro soubesse
como eras maravilhosa e incrivelmente bela.
Mostrar-te ao universo no tempo de um relâmpago, depois de encerrar-me contigo,
sozinho, e olhar-te durante a eternidade.
Uma luz azulada vinha do interior do ovo. Simon entrou primeiro e, por causa desta
claridade, não acendeu sua lanterna. A escada prosseguia no interior e parecia acabar no azul.
Seus últimos degraus se recortavam em silhuetas negras, e paravam mais ou menos na metade
da altura do ovo. Mais abaixo, um grande anel metálico horizontal estava suspenso no vazio.
Era aquilo que emitia a breve claridade, ou melhor, essa luminescência suficiente para
iluminar à sua volta uma quantidade de aparelhos cujas formas eram estranhas, desconhecidas.
Hastes e fios se ligavam entre si e todos estavam de uma certa maneira virados para o anel,
como se para receber alguma coisa.
O grande anel azul estava suspenso no ar sustentado por nada, em contato com coisa
alguma. Todo o resto estava rigorosamente em ordem. Ele girava, mas era tão liso o seu
movimento, tão perfeitamente realizado em torno de si mesmo, que Simon o adivinhou mais
que o viu, e não pôde ter certeza se girava muito lentamente ou a uma velocidade
considerável.
Do exterior, Lanson que tinha descido da Sala de Conferências para supervisionar as
câmaras, acendeu um projetor. Seus mil watts sorveram a luminescência azul, fizeram
desaparecer a mecânica fantasmagórica, revelaram em seu lugar uma laje transparente que,
agora, refletia a claridade viva e não deixava mais distinguir o que havia embaixo dela.
Simon continuava em pé na escada, cinco degraus abaixo do solo transparente te, e
Leonova dois degraus abaixo dele. Juntos pararam de olhar o chão a seus pés, ergueram a
cabeça e viram o que havia diante deles.
O pico do ovo se constituía de uma sala em cúpula. Sobre o solo, diante da escada, duas
bases de ouro de forma alongada. Sobre cada uma dessas bases repousava um bloco de
matéria transparente, semelhante ao gelo, extremamente clara. Em cada um desses blocos se
encontrava deitado um ser humano, com os pés em direção à porta.
Uma mulher à esquerda. A direita, um homem. Não havia nenhuma dúvida pois eles
estavam nus. O sexo do homem estava ereto, como um avião ao decolar. Sua mão esquerda
fechada repousava sobre o peito. A mão direita estava erguida obliquamente e o dedo
indicador em riste. As pernas da mulher estavam juntas. Suas mãos abertas descansavam uma
sobre a outra, logo abaixo do busto. Seus seios eram a própria imagem da perfeição.
As curvas de suas ancas eram como as de uma duna que o vento tivesse levado um século
para moldar com suas carícias. Suas coxas eram redondas e longas, um desenho perfeito. O
ninho discreto do sexo era coberto de pelos dourados curtos e crespos. Dos ombros aos pés,
semelhantes a flores, seu corpo era uma harmonia em que cada nota, milagrosamente justa, se
encontrava em completo acordo com o conjunto.
Não se via o seu rosto. O do homem estava coberto, até o queixo, por um capacete de
ouro, com traços estilizados, de uma beleza grave.
A matéria transparente que os envolvia, tanto a um como a outro, era tão fria que o ar, ao
seu contato, tornava-se líquido e escorria, franjando os dois blocos de uma renda que
dançava, se despegava, caía e se evaporava antes de tocar no chão.
Estendidos nesses cofres de claridade movediça, estavam pela sua própria nudez
revestidos de um esplendor de inocência. Suas peles lisas como uma pedra polida tinham uma
cor clara, indefinida.
Embora fosse menos perfeito que o da mulher, o corpo do homem dava a mesma impressão
de uma extraordinária juventude nunca dantes vista. Não era a mocidade de um homem e de
uma mulher, mas a da espécie. Estes dois seres eram novos, conservados intactos desde a
infância humana.
Simon, lentamente, estendeu a mão para a frente. Entre todos os homens que naquele
momento olhavam nas suas telas a imagem dessa mulher, que viam esses meigos ombros
perfeitos, esses braços redondos encerrando numa cesta os frutos ligeiros dos seios, e a curva
dessas ancas onde corria a beleza total da criação, quantos não desejaram impedir sua mão de
se estender para pousar ali?
E entre as mulheres que olhavam este homem, quantas não foram queimadas pelo desejo
irrealizável de se deitar sobre ele, de nele se plantar e de nele morrer?
Houve no mundo inteiro um instante de estupor e de silêncio. Mesmo os velhos e as
crianças se calaram. Depois as imagens do ponto 612 se apagaram, e a vida normal
recomeçou um pouco mais irritada, um pouco mais amarga. A humanidade, através de um
pouco mais de barulho, esforçava-se para esquecer o que vinha de compreender olhando
aqueles dois que jaziam no Polo: a que ponto ela era antiga, cansada, mesmo nos seus mais
belos adolescentes.
Leonova fechou os olhos e sacudiu a cabeça dentro do seu capacete. Quando ergueu as
pálpebras, não olhava mais na direção do homem. Desceu, empurrou Simon com seu joelho.
Tirou da sua sacola um pequeno instrumento, deu alguns passos, e colocou-o em contato com o
bloco que continha a mulher. Ela olhou
O quadrante e disse numa voz neutra ao seu microfone:
— Temperatura na superfície do bloco: menos 272 graus centígrados.
Houve entre os sábios reunidos na Sala de Conferências murmúrios de espanto. Era quase
o zero absoluto.
Louis Deville, esquecendo o microfone, levantou-se para gritar sua pergunta: — Pode
perguntar ao Dr. Simon, enquanto os olha, falando como médico, se acredita que eles estejam
vivos?
— Não fiquem na proximidade dos blocos — disse a voz traduzida de Hoover nos
aparelhos de escuta de Simon e de Leonova. — Recuem! Mais!
—As roupas que vocês usam não foram feitas para um frio igual a este!...
Recuaram para a parte debaixo da escada. Simon recebeu a pergunta de Deville. Esta
pergunta, ele fazia a si mesmo, há alguns momentos, com angústia.
Primeiro ele não tinha tido dúvida nenhuma: esta mulher estava viva, não podia estar
senão viva... Mas era um desejo, não uma convicção. E agora procurava razões objetivas para
acreditar ou duvidar. Informou no seu microfone, falando principalmente para si mesmo.
— Estavam vivos quando o frio os atingiu. O estado do homem comprova isto.
Estendeu seu braço forrado em direção ao sexo oblíquo do homem.
— Um fenômeno que já havia sido constatado em certos enforcados. Prova uma congestão
brutal de fluxo sanguíneo, em direção à parte inferior do corpo. Daí vem a lenda da
Mandrágora, aquela raiz mágica, de forma humana, que nascia sob os patíbulos na terra que
tinha sido inundada pelo esperma dos enforcados. Pode ser que uma congestão análoga tenha
se produzido no processo de um resfriamento rápido. Ela não pode ser produzida senão num
corpo ainda com vida. Mas é possível que num instante mais tarde a morte tenha se dado.
E mesmo se esses dois seres estavam num estado de vida que tinha sido parado, mas de vida
possível depois da sua congelação, como podemos a saber em que estado eles estarão hoje,
novecentos mil anos depois da sua congelação?
O emissor da Sala de Conferências, que transmitia diretamente a voz de Simon, traiu
nessas últimas palavras a angústia do jovem médico, e calou-se.
O físico japonês, Hoi-To, sentado à mesa do Conselho, fez notar o seguinte: — É preciso
saber a que temperatura eles se encontram. Nossa civilização nunca conseguiu obter o zero
absoluto. Mas parece que essas pessoas dispunham de uma técnica superior. Eles chegaram
lá... Esse zero absoluto é a imobilidade total das moléculas. Quer dizer que nenhuma outra
modificação química e possível. Nenhuma transformação mesmo infinitesimal... Ora, a morte é
uma transformação. Se no centro desses blocos reina o frio absoluto* este homem e esta
mulher se encontram exatamente no mesmo estado que estavam no momento em que aí foram
mergulhados. E poderiam ficar assim durante a eternidade.
— Há uma maneira bem simples de saber se estão mortos ou vivos - disse a voz de Simon
no emissor. — E como médico, creio que é nosso dever: é preciso tentar reanimá-los...
A emoção no mundo foi considerável. Os jornais gritavam em letras enormes coloridas:
"Acordem-nos!" Ou então: "Deixem-nos dormir!"
Segundo a opinião de uns, havia o dever imperioso de tentar chamá-los à vida. Outros
opinavam que não se tinha absolutamente o direito de perturbar a paz daqueles que lá
repousavam a um tempo inacreditável.
A pedido do delegado do Panamá, a Assembleia das Nações Unidas foi convocada para
deliberar.
Novos macacões espaciais tinham chegado ao 612 mas nenhum era do tamanho de Hoover.
Ele teve que mandar fazer um sob medida. Esperando sua chegada, ele assistia, impotente e
furioso, do alto da escada de ouro, aos trabalhos de seus colegas, que se locomoviam no ovo
com imperícia, as pernas abertas e os braços duros. A umidade da esfera penetrava no ovo e
se condensava logo numa neblina composta de flocos imperceptíveis. Uma geada tinha se
formado sobre toda a superfície interna do muro e uma coberta de neve pulverizada, imóvel
como a poeira, cobria o chão.
Apesar dos seus macacões, os homens que desciam no ovo podiam ficar aí durante um
tempo muito curto, o que tornava difícil a continuação das pesquisas. Tinham podido analisar
a matéria transparente que envolvia os que 1á jaziam. Era hélio sólido, isto é, um corpo que os
físicos nunca tinham conseguido obter, e sobre o qual pensavam até mesmo que, teoricamente,
ele não podia existir.
* Isto é, 273,15 graus centígrados abaixo de zero.
O nevoeiro gelado que enchia o ovo tirava era parte o homem e a mulher nus da vista das
equipes que trabalhavam a seus lados. Eles pareciam se esconder atrás dessa tumba, tomar de
novo suas distâncias, se afastar no fundo dos tempos, longe dos homens que tinham querido
encontrá-los. Mas o mundo não os esquecia.
Os paleontólogos esbravejavam. O que haviam encontrado no Polo não podia ser verdade.
Ou então os laboratórios que haviam feito as medidas das datas tinham se enganado.
Tinham examinado a lama fundida das ruínas, os restos de ouro e a poeira da esfera.
Através de todos os métodos conhecidos tinham determinado a sua antiguidade. Mais de
cem laboratórios de todos os continentes tinham feito cada um mais de cem medidas, chegando
a mais de dez mil resultados concordantes que confirmavam os 900 mil anos aproximativos de
antiguidade da descoberta subglacial.
Esta unanimidade não incluía a convicção dos paleontólogos, pois estes gritavam que era
uma fraude, um erro, uma distorção da verdade. Para eles, não havia dúvida: menos de 900
mil anos, era mais ou menos o começo do pleistoceno. Nesta época, tudo o que podia existir
de espécie de homens, era a australopiteca, ou seja, uma espécie de primata minável junto do
qual um chimpanzé teria feito a figura de um ilustre civilizado.
Estas instalações e esses indivíduos que haviam sido encontrados sob o gelo, ou bem eram
falsas, ou bem mais recentes, ou então vinham de outro lugar. Aquilo não podia ser verdade.
Era impossível!
Respostas dos transeuntes interrogados à saída do metrô, em Saint-Germain-en-Laye: O
repórter da tevê — O senhor acha que é verdade ou não o que foi encontrado?
Um senhor bem vestido — O que é que não é verdade?
O repórter da tevê — Aquele negócio lá, embaixo do gelo, lá, no Polo...
O senhor — Oh! sabe, eu... só vendo!...
O repórter da tevê — E a senhora, madame?
Uma velhinha maravilhada — Eles são lindos! Eles são tão lindos! É claro que são
verdadeiros!
Um senhor magro, moreno, sentindo frio, irritado, apossou-se do microfone — Eu, acho
o seguinte: Por que os sábios querem sempre que os nossos ancestrais sejam medonhos? Cro-
Magnon e seus companheiros, gênero orangotango? Os bisões que vimos nas grutas de
Altamira e de Lascaux eram mais lindos que a vaca normanda, não é mesmo?
E por que nós também não? Na ONU, a Assembleia desinteressou-se subitamente dos dois
seres cuja sorte havia motivado sua convocação. O delegado do Paquistão acabara de subir à
tribuna e fizera uma declaração sensacional.
Os técnicos do seu país tinham calculado qual deveria ser a quantidade de ouro constituída
pela esfera, seu pedestal e suas instalações internas. Tinham chegado a uma cifra fantástica.
Havia, lá embaixo do gelo, perto de duzentas mil toneladas de ouro!
Significava uma soma de ouro maior do que a contida em todas as reservas nacionais, em
todos os bancos particulares e em todos os haveres individuais e clandestinos! Mais que todo
o ouro do mundo!
Por que haviam escondido esta verdade da opinião? Que preparavam as grandes
potências? Será que tinham feito um acordo para dividir entre si esta riqueza fabulosa como já
dividiam todas as outras? Esse volume de ouro era o fim da miséria para a metade da
humanidade que sofria ainda de fome e que tinha necessidade de tudo. As nações pobres, as
nações esfomeadas exigiam que esse ouro fosse tirado, dividido, repartido entre elas
proporcionalmente ao número da sua população.
Os negros, os amarelos, os verdes, os cinzentos e alguns brancos juntaram-se e aplaudiram
freneticamente o paquistanês. As nações pobres formavam na ONU uma grande maioria que a
habilidade e direito de veto das grandes potências controlava com uma dificuldade sempre
crescente.
O delegado dos Estados Unidos pediu e obteve a palavra.
Era um homem alto e magro que com um ar cansado carregava a hereditariedade de uma
das famílias mais distintas e antigas de Massachusetts.
Numa voz sem paixões, um pouco velada, declarou que compreendia a emoção do seu
colega, que os técnicos dos Estados Unidos tinham chegado às mesmas conclusões que
aqueles do Paquistão, e que ele se apressava justamente a fazer uma declaração a esse
respeito.
Mas, acrescentou, outros técnicos examinando as amostras do ouro do Polo, tinham
chegado a uma outra conclusão: este ouro não era um ouro natural, era um metal sintético,
fabricado por um processo do qual eles não podiam fazer a menor ideia. Os físicos atômicos,
esclareceram, fabricam um ouro artificial, através da transmutação dos átomos.
Mas somente em pequena quantidade e a um preço que o tornava proibitivo.
O verdadeiro tesouro escondido sob o gelo, não era que tal ou qual quantidade de ouro
fosse considerável mas sim os conhecimentos encerrados no cérebro daquele homem ou
daquela mulher, ou talvez dos dois. Quer dizer, não somente o segredo da fabricação do ouro,
do zero absoluto, do moto perpétuo, mas sem dúvida uma quantidade de outras coisas ainda
bem mais importantes.
— O que encontramos no ponto 612 — prosseguiu o orador — na verdade permite supor
que uma civilização muito adiantada, sentindo-se ameaçada por um cataclismo que ameaçava
destruí-la inteiramente, colocou num abrigo, com luxo de precauções que talvez tenham
esgotado todas as suas riquezas, um homem e uma mulher suscetíveis de fazer renascer a vida
depois da passagem do flagelo. Não é lógico pensar que este casal tenha sido escolhido
unicamente por suas qualidades físicas. Um ou outro, ou os dois, devem possuir bastante
ciência para fazer renascer uma civilização equivalente àquela da qual eles faziam parte. É
esta ciência que o mundo de hoje deve sonhar em dividir, antes de qualquer outra coisa. É por
isso que é preciso que se reanimem aqueles que a possuem e dar-lhes um lugar entre nós.
— Se eles ainda estiverem vivos — disse o delegado chinês.
O delegado americano fez um gesto ligeiro com a mão esquerda e esboçou um sorriso que
revelava certo desprezo:
— É claro...
Olhou toda a Assembleia com ar ausente e aborrecido e prosseguiu: — A Universidade de
Columbia está perfeitamente equipada em matéria de sábios e aparelhos para realizar essa
reanimação. Os Estados Unidos se propõem então, com o vosso acordo, ir buscar no ponto
612 o homem e a mulher dentro dos seus blocos de gelo, transportá-los com todas as
precauções necessárias e no menor tempo possível, até os laboratórios de Columbia. Lá então,
serão despertados do longo sono e acolhidos em nome de toda a humanidade.
O delegado russo levantou-se sorridente e disse que não duvidava da boa vontade
americana, nem da competência dos seus sábios. Mas a URSS possuía igualmente, em
Akademgorodok, os técnicos, os teóricos e aparelhagem necessários. Ela podia, também,
encarregar-se da operação de reanimação. Mas não se tratava nesse momento capital do futuro
da humanidade de fazer a grande pesquisa científica e de disputar um jogo que pertencia a
todos os povos do mundo. A URSS propunha então dividir o casal, ela se encarregaria de um
dos dois indivíduos e os Estados Unidos se ocupariam do outro.
O delegado paquistanês explodiu. O complô das grandes potências estourava à luz do dia!
Desde o primeiro momento elas tinham decidido atribuir a si mesmas o tesouro do 612, fosse
um tesouro monetário, ou um tesouro científico. E, dividindo entre elas o segredo do passado,
dividiam a supremacia do futuro, como já possuíam a do presente. As nações que adquirissem
o monopólio dos conhecimentos submersos sob o ponto 612, possuiriam um domínio total e
absoluto do mundo. Nenhum outro país poderia jamais esperar se subtrair à sua hegemonia. As
nações pobres deveriam se opor com todas as suas forças à realização desse abominável
ensejo, nem que para isso os dois seres vindos do passado tivessem que ficar para sempre
dentro da sua carapaça de hélio!
O delegado francês que tinha ido telefonar a seu Governo, pediu, por sua vez, a palavra.
Fez pacificamente notar que o ponto 612 encontrava-se no interior de uma fatia do continente
antártico atribuído à França, isto é, em território francês. E, daí, tudo o que pudesse vir a ser
descoberto era propriedade francesa...
Formou-se uma enorme confusão. Delegados de grandes e pequenas nações encontravam-
se desta vez de acordo para protestar, ironizar, ou simplesmente fazer uma cara divertida
segundo o seu grau de civilização.
O delegado francês sorriu e fez um gesto pacificador. Quando a calma voltou, declarou
que a França, diante do interesse universal da descoberta, renunciava aos seus direitos
nacionais, e mesmo aos direitos de "inventor", e depunha tudo o que tinha sido encontrado e
tudo o que ainda poderia ser encontrado no ponto 612 sobre o altar das Nações Unidas.
Agora eram aplausos polidos que o seu gesto se esforçava para fazer cessar. Mas... mas
sem comungar dos temores do Paquistão, a França pensava que era necessário tudo fazer para
impedi-los de se tornarem justificados, por menores que fossem. Não havia senão a Columbia
e a Akademgorodok que tinham equipes de reanimação. Podiam se encontrar especialistas
eminentes na Iugoslávia, na Holanda, nas Índias, sem falar da Universidade Árabe e da equipe
muito competente do Dr. Lebeau, do Hospital de Vaugirard, em Paris.
A França não afastava as equipes russas e americanas. Pedia somente que a escolha fosse
feita pela Assembleia inteira e sancionada por um voto...
O delegado americano riu-se logo dessa proposta. Para deixar às candidaturas
competentes o tempo de se manifestar, pediu que transferissem o debate para o dia seguinte, o
que foi decidido. Os regateios e as negociatas secretas iam começar imediatamente.
Por uma vez, a tevê funcionou em sentido contrário. O satélite Trio, de alto do éter, enviou
para a antena do EPI-1 as imagens da ONU. Na sala de Conferências, os sábios que não
tinham se ocupado de suas missões mais urgentes tinham seguido os debates em companhia
dos jornalistas. Quando tudo terminou, Hoover, com um gesto do seu polegar, apagou a grande
tela e olhou seus colegas fazendo uma careta.
— Creio — disse ele — que nós também teremos que deliberar. — Pediu aos jornalistas
que tivessem a fineza de se retirar, e lançou pelos aparelhos emissores um apelo geral a todos
os sábios, técnicos, operários e trabalhadores da Expedição para uma reunião imediata.
3
NO DIA SEGUINTE, no momento em que se abria a reunião da Assembleia da ONU, um
comunicado proveniente do ponto 612 foi entregue ao presidente. O seu texto difundido para o
mundo inteiro através de todos os meios de informação era o seguinte: Os membros da
Expedição Polar Internacional decidiram por unanimidade o que se segue:
1.º — Negam a toda nação, seja ela rica ou pobre, o direito de reivindicar para uso
lucrativo, o menor fragmento de ouro da esfera e de seus acessórios.
2.º — Sugerem, se isso pode ser útil à Humanidade, que uma moeda internacional seja
criada e afiançada por este ouro, à condição que ele fique onde está, considerando que ele não
será nem mais útil nem mais "congelado" sob um quilômetro de gelo do que nos cofres dos
bancos nacionais.
3.º — Não reconhecem a competência da ONU, organismo político, no que concerne à
decisão, de ordem médica e científica, de tomar a si a responsabilidade do casal em
hibernação.
4.º — Não confiarão esse casal a nenhuma nação em particular.
5.º — Colocarão à disposição da humanidade inteira o conjunto de informações científicas
ou de qualquer outra ordem que possam ser recolhidos pela Expedição.
6.º — Convidam Forster, de Columbia, Moissov, de Akademgorodok, Zabrec, de
Belgrado, Van Houcke, de Haia, Haman, de Beirute, e Lebeau, de Paris, a se reunir com eles,
no ponto 612, com urgência, trazendo todo o material necessário para proceder à reanimação.
O manifesto foi como uma ducha fria nas discussões da ONU. Os vidros do palácio
tremeram até o último andar. O delegado do Paquistão estigmatizou, em nome das crianças que
morreriam de fome, o orgulho dos sábios que queriam colocar-se acima da humanidade e com
isso se distanciavam daquele problema, Falou de "ditadura de cérebros", declarou que tudo
era inadmissível e pediu sanções.
Depois de um debate apaixonado, a Assembleia votou o envio imediato de uma força
militar representativa ao ponto 612 para tomar posse, em nome das nações, de tudo o que ali
se encontrava.
Duas horas mais tarde, a antena do EPI-1 pedia e obtinha um corredor internacional.
Todos os postos particulares e nacionais interromperam suas emissões para darem lugar às
imagens vindas do Polo. Foi o rosto de Hoover que apareceu. O rosto de um homem gordo,
sempre pronto a sorrir, fosse qual fosse a emoção que ele tentasse exprimir. Mas a gravidade
do seu olhar era ta1 que fez esquecer suas faces rosadas e gordas e seus cabelos vermelhos
mal penteados. Hoover iniciou:
— Estamos chocados. Chocados porém decididos.
Virou-se para a direita e para a esquerda e fez um sinal. A câmara recuou para permitir
aos que se aproximavam de surgirem na imagem. Era Leonova, Rochefoux, Shanga, Lao
Tchang. Vieram se colocar ao lado de Hoover, dando-lhe a caução de suas presenças. Atrás
deles a luz dos projetores revelava os rostos dos sábios de todas as nacionalidades que há
meses se batiam contra o gelo para lhe arrancar seu segredo. Hoover recomeçou:
- Vocês veem, estamos todos aqui. E todos decididos. Jamais permitiremos as
mancomunações privadas, nacionais ou internacionais, não deixaremos que ponham a mão
sobre bens do qual depende talvez a felicidade dos homens de hoje e de amanhã. De todos os
homens, e não somente de alguns e de tais ou quais categorias.
Passou a mão na testa, deu um pigarro e continuou:
— Não temos confiança na ONU. Não temos confiança em sua representação militar.
Se soldados desembarcarem no 612, deixaremos cair a pilha atômica dentro do poço e o
faremos explodir!...
Ficou imóvel durante um instante, silencioso, para dar tempo aos ouvintes de digerirem a
enormidade da decisão tomada. Depois a sua imagem apagou-se e surgiu a de Leonova.
O seu queixo tremia. Ela abriu a boca e não conseguiu falar. A mão gorda de Hoover
apoiou-se sobre o seu ombro. Leonova fechou os olhos, respirou fundo, e encontrou um pouco
de calma.
— Nós queremos trabalhar aqui para todos os homens — disse ela. — É fácil nos impedir.
Não dispomos de um parafuso ou de uma migalha de pão que não seja enviado por uma ou
outra nação. Basta nos cortar a remessa de víveres. Ou simplesmente usarem de má vontade.
Nosso sucesso, até o momento, foi o resultado de um esforço concentrado e desinteressado
das nações. É preciso que esse esforço continue com a mesma intensidade.
Vocês podem obter, vocês que nos escutam. Não é aos governos, nem aos políticos que eu
me dirijo. É aos homens, às mulheres, aos povos, a todos os povos. Escrevam aos vossos
governos, aos chefes de Estado, aos ministros, aos sovietes. Escrevam imediatamente,
escrevam todos! Vocês ainda podem salvar tudo!
Ela transpirava. A câmara mostrou-a mais de perto. Via-se o suor banhar o seu rosto.
Uma mão entrou na imagem, alcançando-lhe um lenço de papel cor de ouro. Ela o pegou e
apalpou sobre a testa e sobre os lados do nariz. Prosseguiu:
— Se temos que renunciar, não abandonaremos, seja aquém for, as possibilidades de
conhecimentos, que, mal empregados, poderiam acarretar para o mundo uma infelicidade
irreparável. Se nos obrigam a partir, não deixaremos nada atrás de nós.
Virou-se e passou o lenço nos olhos. Ela chorava.
Em quase todos os lugares onde a televisão era um monopólio do Estado a transmissão do
apelo dos sábios tinha sido cortada antes do fim. Mas durante doze horas, a antena de EPI-1
continuava a bombardear o satélite Trio com as imagens de Hoover e de Leonova. E Trio,
objeto científico perfeitamente desligado de opinião, as transmitiu durante doze horas a seus
gêmeos e seus primos que circulavam no globo todo. Quase dois terços dentre eles emitiam
com grande potência para serem captados diretamente em receptores particulares. Cada vez
que as imagens recomeçavam, a máquina traduzia as palavras em uma língua diferente. E no
fim apareciam os dois seres do passado, na sua beleza e na sua imobilidade total, tal como as
telas os haviam mostrado a primeira vez.
A emissão se superpunha aos programas previstos, embaralhava tudo, e acabava por
passar por trechos diferentes e por ser compreendida por aqueles que queriam compreender.
Durante o meio dia que se seguiu, todos os serviços de rádio foram brutalmente
controlados. Nas menores cidades de Auvergne ou Béloutchistan, as caixas de correio
transbordavam. Desde os primeiros centros de reagrupamento das malas postais, as salas de
recepção estavam cheias até o teto. No escalão acima, era a submersão total. Os poderes
públicos e as companhias privadas negaram-se a transportar este correio mais longe. Não era
necessário lê-lo Sua abundância era sem significado. Pela primeira vez, os povos
manifestavam, acima de suas línguas, suas fronteiras, suas diferenças e suas divisões, uma
vontade comum. Nenhum governo podia ir contra sentimento de tamanha amplidão.
Novas instruções foram dadas aos delegados da ONU.
Uma moção foi votada em meio ao entusiasmo e à unanimidade, anulando o envio da tropa,
e exprimindo a confiança das nações nos sábios do EPI para conduzir ao bem... etc, para o
maior bem... etc, a fraternidade dos povos... etc, do presente e do passado, ponto final.
Os reanimadores aos quais o comunicado dos sábios havia feito um apelo tinham chegado
com suas equipes e seu material.
Sob a orientação de Lebeau, os técnicos e operários construíram uma sala de reanimação
no interior da esfera, acima do ovo.
Um problema grave apresentou-se aos responsáveis: por quem começar? Pe1o homem ou
pela mulher?
O primeiro a ser reanimado, forçosamente teria que correr riscos. O segundo, ao contrário,
se beneficiaria da experiência. Era preciso começar pelo menos precioso. Mas qual era ele?
Para o árabe, não havia dúvida. O único que contava era o homem. Para o americano, era
em torno da mulher que deveriam tomar a mais respeitosa das precauções, e até mesmo
arriscar por ela a vida do homem. O holandês não tinha opinião; o iugoslavo e o francês,
embora evitassem opinar, a tendência deles era para o lado masculino.
— Meus caros colegas — disse Lebeau no curso de uma das reuniões — vocês sabem tão
bem quanto eu, que os cérebros masculinos são superiores em volume e peso aos cérebros
femininos. Se é o cérebro que nos interessa, parece-me então que é o homem que nós devemos
reservar para a segunda intervenção.
— Mas pessoalmente — acrescentou ele sorrindo — depois de ter visto a mulher, teria
facilmente uma tendência maior em pensar que uma tal beleza tem mais importância que o
saber, por maior que ele seja...
— Não há razão — disse Moissov — para que tratemos um antes do outro. Os direitos são
iguais. Proponho que formemos duas equipes e que operemos ao mesmo tempo sobre os dois.
Era generoso, porém impossível. Não havia bastante espaço, nem bastante material. E os
conhecimentos dos dez sábios não seriam demais, juntando-os todos, para fazer a luz nos
momentos difíceis. Quanto ao raciocínio de Lebeau, ele era válido para os cérebros de hoje.
Mas quem podia afirmar que na época de onde tinham vindo estes dois seres a diferença de
peso e de volume existia? E se existia, quem sabe, naquele momento, ela não seria ao
contrário a favor dos cérebros femininos? As máscaras de ouro que escondiam as duas
cabeças não permitiam mesmo fazer uma comparação aproximativa do seu volume, e, por
dedução, dos seus conteúdos...
O holandês Van Houcke era especialista notável em hibernação de focas. Mantinha uma
congelada há doze anos. Aquecia-a, despertava-a todo ano, na entrada da primavera.
Fazia com que ela se regalasse com alguns arenques, e depois que ela os havia digerido,
ele a recongelava.
Mas, afora essa especialidade, era um homem muito esperto. Confiou aos jornalistas as
dúvidas dos seus colegas, e pediu-lhes conselho.
Pelo Trio, os jornalistas encantados expuseram a situação à opinião mundial e fizeram uma
pergunta: "Por quem se deve começar? Pelo homem ou pela mulher?".
Hoover havia finalmente recebido o seu macacão. Vestiu-o e desceu no ovo.
Desapareceu no nevoeiro. Quando voltou, pediu ao conselho para se reunir com os
reanimadores.
— É preciso se decidir — disse ele. — Os blocos de hélio estão diminuindo. O
mecanismo que transmitia o frio continua a funcionar, mas nossa intrusão no ovo tirou-lhe uma
parte de sua eficiência. Se vocês permitirem, vou dar a minha opinião. Acabo de ver de perto
o homem e a mulher... Meu Deus, como ela é bela!... Mas não é esta a questão. Ela pareceu-me
estar em melhor estado do que ele. Ele apresenta no peito e em diversos lugares do corpo,
pequenas alterações de cor na pele, que talvez sejam sinais de lesões epidérmicas
superficiais. Ou talvez não sejam nada, eu não sei. Mas creio — digo francamente que creio, é
uma impressão, não uma convicção — que ela é mais forte que ele, mais capaz de suportar os
vossos pequenos erros, se é que vocês o farão. Vocês são médicos, olhem-nos de novo,
examinem o homem pensando no que eu acabo de dizer, e decidam. Na minha opinião, é pela
mulher que se deve começar.
Eles nem desceram no ovo. Era preciso começar por qualquer um. Basearam-se na opinião
de Hoover.
Sua boca fechada — nacarada pelo frio e pelo sangue retirado — era como o debrum de
uma concha frágil. Suas pálpebras eram duas longas folhas sobre as quais os cílios e as
sobrancelhas desenhavam o contorno sombreado de dourado. Seu nariz era pequeno, bem
feito, suas narinas ligeiramente acesas e bem desenhadas. Seus cabelos de um castanho quente,
como batidos por uma luz de ouro, rodeavam sua cabeça com pequenas ondas de raios de sol
e escondiam parte da testa e das faces. Das orelhas apareciam somente o lóbulo da esquerda,
como uma pétala engastada num brinco.
Houve um grande suspiro, por parte do homem, ao microfone o qual a máquina tradutora
não soube reproduzir. Haman inclinou-se, afastou os cabelos da mulher e começou a instalar
os eletrodos do encefalógrafo.
Na cave do Hotel Internacional de Londres — à prova de bomba A, mas não da bomba H;
de desmoronamentos, mas não de um golpe direto bastante sólido para dar segurança a uma
clientela rica que exigia esta segurança ao lado do conforto — suficientemente e visivelmente
blindada para inspirar confiança, mas não para assegurar proteção — ninguém, nada poderia
proteger nada nem ninguém —, a cave do Internacional de Londres, por sua arquitetura, sua
calefação e sua betonagem, reunia as condições ideais para se transformar num shaker.
Era assim que se chamavam as salas, cada vez maiores, onde se reuniam rapazes e moças
de todas as classes, para aí se entregar em comum a danças frenéticas. Pressionados por seus
instintos dirigidos para uma nova concepção de vida, os jovens se encerravam ali, sacudidos
por pulsações sonoras e perdiam os últimos vestígios de preconceitos e de convenções que
ainda lhes acossavam. A cave do Internacional de Londres era o mais vasto shaker da Europa.
E também um dos mais quentes.
Seis mil rapazes e moças. Uma só orquestra, porém doze alto-falantes iônicos sem
membrana que faziam vibrar o ar da cave como o interior de um sax-tenor. E mais Yuni, o
brasa de Londres, dezesseis anos, cabelos raspados, óculos de fundo de garrafa, um olho
vesgo, o outro esbugalhado, yuni que convencera a administração do hotel a lhe alugar a cave.
Nenhuma nota musical chegava aos ouvidos dos hóspedes que ocupavam os andares.
Às vezes, alguns desciam para "balançar o esqueleto" e subiam maravilhados — e
apavorados — pelo espetáculo dessa juventude em estado primitivo e efervescente.
Yuni, diante de um teclado, na cadeira de alumínio presa ao muro acima da orquestra, uma
orelha escondida por um enorme aparelho de escuta em feitio de couve-flor, escutava todas as
orquestras e, quando encontrava uma música quente, ligava-a nos alto-falantes mais próximos.
De olhos fechados, ele escutava. Num ouvido o barulho enorme da cave, no outro, três
medidas, duas medidas, vinte medidas colhidas no inatingível. Em intervalos, sem abrir o
olho, soltava um grito agudo e longo, que ressoava acima do barulho do fundo.
De repente arregalou os olhos, cortou o som e gritou:
— Ouçam! Ouçam!
A orquestra calou-se. Seis mil corpos suados ficaram repentinamente no silêncio e na
imobilidade. Enquanto que por trás do estupor a consciência começava a renascer neles, Yuni
continuava:
— Notícia sobre a moça congelada!
Assobios, xingamentos. Bolas! Se dane! Vá lá você esquentá-la! Que é que eu tenho com
isso!
Yuni gritou: — Cambada de ratos! Escutem!
Ligou na BBC. Nos doze alto-falantes soou a voz do speaker de serviço. Ela encheu o ar
da cave com uma vibração forte e bem marcada:
— Difundimos pela segunda vez o documento que nos chegou do ponto 612. Isto constitui
certamente a mais importante notícia do dia...
Pigarros. Silêncio. O céu penetrou na cave com o ruído indizível da multidão que caminha
pela noite cósmica: o barulho das estrelas. Depois a voz de Hoover. Como se estivesse
ofegante. Talvez estivesse com asma. Ou o coração envolvido por uma grande emoção.
— Aqui é EPI. Ponto 612. Hoover falando. Estou feliz... muito feliz... de vos ler o
comunicado seguinte chegado da sala de operações: "O processo de reanimação prossegue
normalmente. Hoje, 17 de novembro, às 14h52m, hora local, o coração da jovem mulher
recomeçou a bater..."
A cave explodiu num grito. Yuni, visivelmente contrariado, berrou mais forte: — Calem a
boca! Vocês são uns burros! Vocês não têm alma! Escutem! Obedeceram.
Obedeciam tanto à voz como à música. Contanto que esta fosse mais forte. Feito silêncio,
ouviu-se de novo a voz de Hoover:
— As primeiras batidas do coração dessa mulher foram registradas. O órgão não batia há
mais de novecentos mil anos. Escutem... Desta vez, verdadeiramente, todos se calaram.
Yuni fechou os olhos, o rosto iluminado. Ouvia a mesma coisa nos seus dois ouvidos.
Escutava:
Silêncio.
Uma batida surda: bum... Uma só.
Silêncio... silêncio... silêncio... Bum...
Silêncio... silêncio... Bum... Silêncio... Bum... bum... Silêncio...
Bum... bum... bum... bum, bum, bum...
O bateria da orquestra respondeu, suavemente, em contraponto, com o pé na caixa.
Depois acrescentou a ponta dos dedos. Yuni superpôs a orquestra e as ondas. O
contrabaixo uniu-se à bateria e ao coração. O clarinete gritou uma longa nota, depois terminou
numa improvisação alegre. Os seis violões elétricos e os dois violões de aço desandaram a
tocar. O baterista batia por sua vez em todas as peles... Yuni gritou como um minarete:
— Ela está acordada! Bum! Bum! Bum! Os seis mil cantavam:
— Ela está acordada!... Ela está acordada!...
Seis mil cantavam, dançavam, no ritmo do coração que acabava de renascer. Assim nasceu
o wake, a dança do despertar... Aqueles que queriam dançar, dancem. Aqueles que podem
acordar, acordem.
Não, ela não estava acordada. Suas longas pálpebras ainda estavam abaixadas sobre o
sono interminável. Mas seu coração batia com uma potência tranquila, seus pulmões
respiravam calmamente, sua temperatura subia pouco a pouco em direção à vida.
Atenção: — disse Lebeau, inclinado sobre o encefalograma. — Pulsações irregulares...
Ela sonha!
Ela sonhava! Um sonho que a havia acompanhado, enroscado, gelado dentro de alguma
parte da sua cabeça, e agora aquecido vinha a florescer. Florescer em que espantosas
imagens? Azuis ou negras? Sonho ou pesadelo? As pulsações do coração subiram bruscamente
de 30 para 45, a pressão sanguínea atingiu o limite, a respiração acelerou-se e tornou-se
regular, a temperatura subiu para 36 graus.
— Atenção! — exclamou Lebeau. — Pulsações do pré-despertar. Ela vai acordar! Ela
acorda! Tirem o oxigênio!
Simon ergueu o inalador e estendeu-o para a enfermeira. As pálpebras da moça tremeram.
Uma pequena sombra de dúvida apareceu na parte de baixo das suas pálpebras.
— Nós vamos lhe meter medo! — disse Simon.
Arrancou a máscara de cirurgião que lhe cobria a parte inferior do rosto. Todos os
médicos o imitaram.
Lentamente, as pálpebras se ergueram, os olhos apareceram, incrivelmente grandes. O
branco era muito claro, muito puro. A íris larga, um pouco eclipsada pela pálpebra superior,
era de um azul de céu em noite de verão, semeado de lantejoulas de ouro.
Seus olhos estavam fixos no teto, que certamente não viam. Depois piscaram vezes
seguidas, suas sobrancelhas se ergueram, seus olhos mexeram, olharam e viram. Viram
primeiro Simon, depois Moissov, Lebeau, os enfermeiros, todo mundo. Uma expressão de
espanto invadiu seu rosto de mulher. Tentou falar, abriu a boca, mas não chegou a ter o
comando dos músculos da língua nem da garganta. Emitiu uma espécie de estertor. Fez um
esforço enorme para erguer um pouco a cabeça e olhar tudo. Ela não compreendia onde
estava, tinha medo, e ninguém podia fazer nada para dar-lhe confiança. Moissov sorriu-lhe.
Simon tremia de emoção. Lebeau começou a falar muito carinhosamente. Recitou dois
versos de Racine, as palavras mais harmoniosas que alguma língua já pôde reunir: Ariane,
minha irmã, de que amor ferida...
Era a canção do verbo perfeito e acariciante. Mas a mulher não escutava. Via-se que o
horror a dominava. Mais uma vez ela tentou falar, sem conseguir. Seu queixo começou a
tremer. Ela fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás.
— Oxigênio! — ordenou Lebeau. — E o coração?
— Normal! Cinquenta e dois... — disse um homem amarelo.
— Desmaiou... — observou Van Houcke. — Nós lhe metemos um medo enorme... O que
ela esperava encontrar?
— Bem, é como se você fizesse sua filha dormir e ela acordasse no meio de um bando de
feiticeiros... — disse Forster.
Os médicos decidiram aproveitar do seu desmaio para carregá-la para a superfície, onde
uma sala mais confortável a esperava na enfermaria. Ela foi introduzida numa espécie de caixa
plástica transparente, com a parede dupla isolante, alimentada por uma bomba de ar. Quatro
homens carregaram-na ate o elevador. Todos os fotógrafos da imprensa deixaram a sala do
Conselho para se precipitar ao seu encontro. Os jornalistas estavam já nas cabinas de rádio, a
telefonar para o mundo inteiro sobre aquilo que eles haviam visto e que não haviam visto. A
grande tela mostrava os homens amarelos retirando suas máscaras do rosto e se
desembaraçando dos seus aparelhos. Lanson apagou a imagem da sala de trabalho e substituiu-
a pela que enviava a câmara de controle do interior do ovo.
Leonova levantou-se bruscamente:
— Olhe! — disse ela apontando seu dedo em direção à tela. — Sr. Lanson, focalize sobre
o pedestal da esquerda.
A imagem do pedestal com o caixão vazio apareceu, cresceu e fez-se ver atrás de um
ligeiro véu de bruma. Repararam então que faltava um dos seus lados. Toda uma parede
vertical havia se afundado no solo, aparecendo uma espécie de estante com prateleiras
metálicas sobre as quais estavam colocados objetos de formas desconhecidas.
Quando a mulher deixou a sala de operação, os objetos achados na prateleira a substituíam
sobre a mesa de reanimação. Voltavam a sua temperatura normal.
Constituíam, de certa maneira, a "bagagem" da viajante adormecida.
Agora não eram mais os médicos que rodeavam a mesa, eram os sábios, s mais
suscetíveis, por sua especialidade, de compreender o uso, e o funcionamento desses objetos.
Leonova pegou com toda a precaução alguma coisa que parecia ser uma roupa dobrada e a
desdobrou. Era algo que não era papel nem fazenda, de cor alaranjada, com desenhos
amarelos e vermelhos. O frio absoluto o havia guardado num estado de conservação perfeita.
Era leve, fino e parecia sólido, avia vários, de cores, formas e dimensões diferentes. Sem
nenhuma manga, em abertura de espécie alguma, nem botões, nem fechos, nem nada, nenhuma
maneira de os colocar ou de fixá-los.
Foram pesados, medidos, numerados, fotografados, e tiraram-lhes amostras microscópicas
para análises. Depois passaram ao objeto seguinte.
Era um cubo com os cantos arredondados, com 22 centímetros de aresta. Comportava,
grudado numa de suas faces, um tubo oco e disposto em posição diagonal. O todo era
compacto, feito de uma matéria sólida e leve, de um cinza muito claro. O físico Hoi-To
segurou-o na mão, olhou-o longamente e olhou os outros objetos.
Havia uma caixa sem tampa que continha varinhas octogonais de cores diferentes.
Pegou uma e introduziu-a no tubo oco colado ao cubo. Logo, uma luz nasceu dentro do
objeto e iluminou-o suavemente.
E o objeto suspirou... Hoi-To teve um pequeno sorriso. Suas mãos delicadas botaram o
cubo de volta sobre a mesa branca.
Agora o objeto falava. Uma voz feminina falava em voz baixa, numa língua desconhecida.
Nasceu uma música, semelhante ao sopro de um vento ligeiro numa floresta povoada de
pássaros e de harpas eólias. E sobre a face superior do cubo, como projetada do interior, uma
imagem surgiu: o rosto da moça que falava. Parecia com aquele que tinham encontrado dentro
do ovo. Mas não era ela. Sorriu e apagou-se, substituída por uma flor estranha, que por sua
vez derreteu-se numa cor movediça. A voz da mulher continuava. Não era uma canção, não era
uma poesia, era ao mesmo tempo um e outro, era coisa simples e natural como o barulho de
um riacho ou de chuva. E todas as faces do cubo se iluminavam simultaneamente, mostrando
uma mão, uma flor, um sexo, um pássaro, um seio, um rosto, um objeto que mudava de forma e
de cor, uma forma sem objeto, uma cor sem forma.
4
TODOS OLHAVAM e escutavam, interessados. Era o desconhecido, o inesperado, e os
tocava profundamente, como se esse conjunto de imagens e de sons tivesse sido composto
especialmente para cada um, segundo suas aspirações mais secretas e profundas,
ultrapassando todas as convenções e barreiras.
Hoover sacudiu a cabeça, pigarreou e tossiu.
— Que transistor mais gozado — disse ele. — Desligue esse troço. Hoi-To retirou a
varinha do tubo. O tubo apagou-se e silenciou.
No quarto da enfermaria, aquecido a 30 graus, a mulher, nua, jazia estendida sobre um
leito estreito.
Elétrodos, placas, pulseiras fixadas nos seus pulsos, nas suas têmporas, em seus pés, nos
seus braços, ligavam-na por meio de espirais e de ziguezagues aos fios dos aparelhos de
observação.
Duas enfermeiras massageavam os músculos de suas coxas. Um massagista friccionava os
músculos dos seus maxilares. Uma outra enfermeira passava sobre o seu pescoço um aparelho
de infravermelho. Van Houcke apalpava-lhe suavemente a parede do ventre. Os médicos, as
enfermeiras, os técnicos, transpiravam na atmosfera superaquecida, irritados com esse
desmaio que se prolongava. Trocavam olhares, esperavam, davam sua opinião em voz baixa.
Simon olhava a mulher, olhava aqueles que a cercavam, que a tocavam. Apertou os punhos e
os maxilares.
— Seus músculos respondem — disse Van Houcke. — Diríamos que ela está consciente...
Moissov veio para a cabeceira do leito, inclinou-se sobre a moça, ergueu uma pálpebra,
depois a outra...
— Ela está consciente! — disse ele. — Ela fecha os olhos voluntariamente... não está mais
nem desmaiada nem adormecida...
— Por que então ela fecha os olhos? — perguntou Forster. Simon explodiu: — Porque ela
está com medo! Se queremos parar de lhe meter medo, é preciso parar de tratá-la como um
animal de laboratório!
Fez um gesto brusco em direção às cinco pessoas reunidas ao redor do leito.
— Saiam daí! Deixem-na tranquila! Van Houcke protestou. Lebeau interveio: — Ele talvez
tenha razão... Estudou psicoterapia durante dois anos com Pèrier...
Talvez esteja mais capacitado que nós; vamos! Tirem tudo isso daí...
Moissov no mesmo momento retirou os eletrodos do encefalograma. As enfermeiras
desembaraçaram o corpo estendido de todos os outros fios que partiam dele como de uma teia
de aranha. Simon pegou um lençol que estava enrolado nos pés da cama e ergueu-o
delicadamente até os ombros da moça, deixando os seus braços de fora. Ela usava no dedo
maior um grande anel de ouro que tinha a forma de uma pirâmide truncada. Simon pegou a
outra mão entre as suas, a mão esquerda, a mão nua, e a segurou como se segura um passarinho
perdido ao qual se queira infundir confiança.
Lebeau, sem barulho, fez sair as enfermeiras e os técnicos. Trouxe uma cadeira para perto
de Simon, recuou até a parede e fez sinal aos outros médicos para que o imitassem.
Van Houcke sacudiu os ombros e saiu.
Simon sentou-se, deixou sobre o leito suas mãos que seguravam sempre a da mulher, e
começou a falar. Muito carinhosamente, quase cochichando. Muito docemente, muito
ardentemente, muito calmamente, como a uma criança doente que necessita de carinho durante
os pesadelos da febre.
— Nós somos amigos... — disse ele. — Você não compreende o que eu lhe digo, mas você
compreende que eu lhe falo como um amigo... somos amigos... Você pode abrir os olhos...
você pode olhar nossos rostos... nós queremos o seu bem... tudo vai bem... Você vai ver... você
pode acordar... nós somos seus amigos... queremos fazê-la feliz... nós a amamos...
Ela abriu os olhos e olhou-o.
Lá embaixo tinham examinado, pesado, medido, fotografado diversos objetos cujo uso não
havia sido compreendido. Era agora a vez de uma espécie de luva de três dedos. O polegar, o
indicador e um buraco maior para o dedo grande, anular e o mínimo juntos.
Hoover ergueu o objeto.
— Luva para a mão esquerda — disse ele, apresentando à objetiva da câmara
registradora.
Procurou com os olhos a luva da mão direita. Não a via.
— Retificação — acrescentou em tom brincalhão. — Luva para um maneta!...
Colocou sua mão esquerda no interior da luva, e quis dobrar os dedos. O indicador
permaneceu duro, tirou o polegar, os três outros dedos solidários dobraram-se em direção à
palma. Houve um choque abafado, luminoso e sonoro, e um berro. O romeno Ionescu, que
trabalhava diante de Hoover, voava no ar os braços abertos, as pernas retorcidas, como
projetado por uma força enorme e foi estatelar-se contra os aparelhos, despedaçando-os.
Hoover, estupefato, ergueu sua mão para olhá-la. Com um estrondo enorme a parte
superior da parede que estava diante dele e a metade do teto ficaram pulverizados.
Ele teve então o reflexo certo. Pouco antes de fazer saltar o resto do teto e sua própria
cabeça: desdobrou os dedos...
O ar deixou de ficar vermelho.
— Bem... vejam só! — disse Hoover. Segurava com o braço esticado, como se fosse um
objeto estranho e horrível, sua mão enluvada.
Ela tremia.
— A weapon!... — exclamou. A máquina traduziu em dezessete línguas; — Uma arma!...
Ela havia fechado os olhos, porém não mais para se esconder, mas sim por cansaço.
Parecia dominada por uma fadiga infinita:
— Será preciso alimentá-la — disse Lebeau. — Mas como é que vamos saber o que eles
comiam?
— Vocês todos já a viram bastante para saber que ela é mamífera! acrescentou Simon,
furioso. — Deem-lhe leite.
De súbito Simon estacou. Todos prestaram atenção. Ela falava.
Seus lábios se moviam. Falava com uma voz muito fraca. Parava. Recomeçava.
Adivinhavam que estivesse repetindo sempre a mesma frase. Abriu seus olhos azuis e
parecia que o céu havia entrado no quarto. Olhou para Simon e repetiu a frase. Diante da
evidência de que não tinha a menor possibilidade de se fazer compreender, ela fechou os
olhos e calou-se.
Uma enfermeira trouxe uma tigela de leite quente. Simon pegou-a, e encostou
cuidadosamente seu calor nas costas da mão que repousava sobre o lençol. Ela olhou. A
enfermeira ergueu-lhe o busto e sustentou-a. Ela quis segurar a tigela, porém os músculos
delicados das suas mãos ainda não haviam readquirido as forças. Simon levantou a tigela para
ela. Quando o odor lhe chegou às narinas, ela sobressaltou-se, fez uma careta de nojo e
recuou. Olhou à sua volta e repetiu a mesma frase antiga. Tentava visivelmente indicar alguma
coisa...
— É água! Ela quer água! — disse Simon, percebendo, subitamente a evidência.
Era exatamente o que ela queria. Tomou um copo e mais a metade de um segundo.
Depois que se deitou novamente, Simon colocou a mão sobre o seu próprio peito e disse
carinhosamente o seu nome:
— Simon...
Repetiu duas vezes a palavra e o gesto. Ela compreendeu. Olhando Simon, ergueu sua mão
esquerda, colocou-a na sua própria testa e disse:
— Eléa...
Sem parar de olhá-lo, ela recomeçou seu gesto e disse novamente: — Eléa...
Os homens que haviam ido buscar o corpo de Ionescu para o transportar tiveram a
impressão de pegar um invólucro de borracha cheio de areia e cascalho. Ele tinha só um
pouco de sangue nas narinas e nos cantos da boca, porém todos os seus ossos estavam
quebrados e o interior do seu corpo reduzido a farinha.
Já haviam se passado vários dias desde o acidente, mas Hoover ainda se surpreendia
examinando furtivamente sua mão esquerda e a baixar os três dedos na direção da palma, o
indicador e o polegar esticados. Se ele se encontrava nas proximidades de uma garrafa de
scotch, ou mesmo de qualquer brandy, apressava-se em buscar nelas o conforto do qual tinha
grande necessidade. Era preciso uma gigantesca força de caráter para suportar a fatalidade
que o havia tornado duas vezes, em algumas semanas, num assassino. Ele não tinha, bem
entendido, até então morto ninguém, não havia nem mesmo matado nada, nem um coelho na
caça, nem um peixe na pesca, absolutamente nada.
A arma e os objetos ainda não examinados tinham sido recolocados, prudentemente, na
estante onde haviam sido encontrados. Os operários reconstruíam a sala de reanimação e os
técnicos consertavam o que podiam. Mas vários aparelhos estavam inteiramente destruídos.
Fizera-se necessário esperar que fossem substituídos para iniciarem as operações sobre o
segundo ocupante do ovo.
Eléa — esse era provavelmente o seu nome — recusava todos os alimentos. Tentaram
introduzir por intermédio de uma sonda, um pouco de caldo no seu estômago. Ela se debateu
tão violentamente que tiveram que amarrá-la. Mas não chegaram a conseguir que ela abrisse
os maxilares. Foi necessário fazer a sonda penetrar por uma narina. Apenas o caldo penetrou
no seu estômago, ela o vomitou.
Simon a princípio havia protestado contra estas violências. Depois se conformara. O
resultado convenceu-o de que ele tinha razão e de que este não era um método certo.
Enquanto os seus colegas chegavam à conclusão de que o sistema digestivo da mulher do
passado não era feito para digerir os alimentos do presente, e analisavam o caldo rejeitado na
esperança de neles encontrar ensinamentos sobre o seu suco gástrico, Simon repetia para si
próprio a única pergunta que, na sua opinião, tinha valor: — Como, como comunicar?
Comunicar, escutá-la, compreendê-la, saber de que tinha ela necessidade. Como, como
fazê-lo?
Presa dentro de uma camisola, os braços e as coxas mantidos por correias, ela não reagia
mais. Imóvel, as pálpebras novamente fechadas sobre o imenso céu dos seus olhos, ela
parecia estar no auge do medo e da resignação. Uma agulha fina enfiada na veia do seu braço
direito injetava-lhe o soro alimentador contido numa ampola suspensa na cabeceira do leito.
Simon olhava com raiva esse apetrecho bárbaro, atroz, que era, no entanto, o único meio de
prolongar momento em que ela iria morrer de fome. Ele não suportava mais aquilo. Era
necessário...
Saiu bruscamente do quarto, atravessou a enfermaria e penetrou num corredor de onze
metros de largura e de trezentos metros de comprimento, que servia coluna vertebral ao EPI-2.
Tinham-lhe dado o nome de Avenida Amundsen, em homenagem ao primeiro homem que
tinha estado no Polo Sul. Primeiro, pelo menos ao que se supunha. Ruas pequenas e portas de
edifício se abriam à esquerda e à direita Algumas pequenas plataformas elétricas baixas, com
pneus grossos amarelos serviam para transportar o material, segundo a necessidade. Simon
saltou nutria delas abandonada perto da porta da enfermaria, e se apoiou sobre a manivela, O
veículo arrancou ronronando como um gato.
Alcançando a superfície, Simon saltou sobre o gelo áspero e começou a correr. A máquina
tradutora estava quase na extremidade da avenida. A pilha atômica vinha a seguir, depois de
uma curva de cento e vinte graus.
Entrou no complexo da tradutora, abriu seis portas antes de encontrar a certa, respondendo
com um gesto irritado as perguntas feitas, parou finalmente numa peça estreita cujo muro no
fundo, um muro mais alto, era forrado de borracha, plástico e coberto de lã. Havia outro muro
de vidro e um terceiro, de metal. Diante deste corriam um consolo de quadrantes, de
mosaicos, botões, manivelas, visores, microfones, botões para ligar instrumentos, cordões.
Diante do consolo, uma cadeira com rodas e, sobre a cadeira, Lukos, o filólogo turco.
Era uma inteligência de gênio num corpo de estivador. Dava, mesmo sentado, a impressão
de uma força prodigiosa. A cadeira desaparecia sob a massa de músculos das suas nádegas.
Ele parecia capaz de carregar nas costas um cavalo ou um boi, ou quem sabe os dois ao
mesmo tempo.
Fora ele que concebera o cérebro da máquina tradutora. Os americanos não tinham
acreditado, os europeus não tinham podido, os russos tinham desconfiado, e afinal, os
japoneses o tinham ajudado e fornecido todos os meios.
O exemplar do EPI-2 era o décimo segundo posto em serviço nos últimos três anos, e o
mais aperfeiçoado. Traduzia dezessete línguas, mas Lukos conhecia, ele próprio, dez vezes ou
talvez vinte vezes mais. Possuía o gênio do poliglotismo assim como Mozart tinha o gênio da
música. Diante de uma língua nova, bastava-lhe um documento, uma referência permitindo-lhe
uma comparação, e algumas horas, para ele, por deduções e analogias, começar a
compreender sua estrutura e logo considerar o vocabulário como familiar. E no entanto ele
emudecia diante do idioma de "Eléa".
Dispunha de dois elementos de trabalho que lá estavam, colocados diante dele: o cubo
cantante, e um outro objeto que não era maior que um livro de bolso. Sobre um dos lados do
prato desenrolava-se uma fita luminosa coberta de linhas regulares: cada linha era composta
de uma série de sinais que pareciam constituir uma escrita. Imagens, visíveis em três
dimensões, representando pessoas em ação, acabavam de fazer este objeto análogo a um livro
ilustrado.
— E então? — perguntou Simon.
Lukos sacudiu os ombros. Há dois dias que ele desenhava sobre a tela do registrador da
tradutora grupos de sinais que pareciam não ter nenhuma relação uns com os outros.
Esta linha estranha parecia ser composta de palavras completamente diferentes e que não
se repetiam jamais.
— Há qualquer coisa que me escapa — resmungou ele. — E a ela também. Bateu com sua
mão pesada no metal do consolo, depois escorregou uma varinha de madeira para dentro do
cubo musical. Desta vez foi uma voz de homem que começou a falar, e o rosto que apareceu
era o de um homem imberbe, com dois olhos grandes azuis bem claros, cabelos negros, caindo
até os ombros.
— A solução talvez esteja aí — disse Lukos. — A máquina gravou todas as varetas.
São quarenta e sete. Cada uma comporta milhares de sons. A escrita tem mais de dez mil
palavras diferentes. Se é que são palavras!... Quando eu acabar de fazê-la engolir tudo, será
preciso que ela os compare um a um, e por grupos, a cada som e cada grupo de sons, até que
encontre uma ideia geral, uma regra, um caminho, alguma coisa para ser seguida.
Ajudarei, é claro, examinando suas hipóteses e propondo-lhe outras. As imagens ajudarão
a nós dois...
— Dentro de quanto tempo você espera alcançar resultado — perguntou Simon com
ansiedade.
— Dentro de alguns dias... algumas semanas, isto depende.
— Estará morta! — gritou Simon. — Ou então louca! É preciso conseguir depressa!
Hoje! Amanhã, dentro de algumas horas! Sacuda sua máquina! Mobilize toda a base! Há
bastantes técnicos aqui!
Lukos olhou como Menuhin teria olhado alguém que lhe pedisse para "sacudir" seu
Stradivarius para lhe fazer tocar "mais depressa" um prestíssimo de Paganini.
— Minha máquina faz o que ela sabe fazer — disse ele. — Não é de técnicos que ela
precisa. Isto ela tem o suficiente. O que ela precisa é de cérebros...
—Cérebros? Mas não há um lugar no mundo onde você possa encontrar melhores do que
os que estão aqui! Vou pedir uma reunião imediata do Conselho. Você exporá o problema...
—São cérebros pequenos, senhor doutor, são cérebros pequenos de homens. Seria-lhes
necessário séculos de discussão antes de ficarem de acordo sobre a direção de uma vírgula...
Quando digo cérebro, é no dela que eu penso. — Mais uma vez acariciou a beira do consolo
acrescentou:
— No dela e no dos seus semelhantes.
— Um novo SOS partiu da antena do EPI-1. Pedia a colaboração imediata.
As respostas chegaram rapidamente de todos os cantos. Todos os computadores
disponíveis foram colocados a serviço de Lukos e de sua equipe. Mas aqueles que estavam
disponíveis não eram evidentemente nem os maiores nem os melhores. Destes obtiveram
promessas: quando tivessem um instante livre, entre dois programas, não se poderia exigir
mais do que isso. Fariam o impossível,diziam.
Simon fez entrar três câmaras no quarto de Eléa. Uma focalizava a agulha enfiada no braço
a fim de dar-lhe o soro, último recurso para salvar a mulher. A outra sobre o rosto, filmando
as faces que tinham se tornado encovadas. A terceira era dirigida ao corpo desnudo, e
tragicamente emagrecido.
Fez essas imagens serem enviadas pela antena do EPI-3, através do satélite Trio, para todo
o mundo. E falou:
— Ela vai morrer. Vai morrer porque nós não a compreendemos. Morre de fome, e nós a
deixamos morrer porque não a compreendemos quando ela nos diz com o que poderíamos
nutri-la. Vai morrer porque aqueles que poderiam nos ajudar a entendê-la não querem nos
transferir um minuto do tempo dos seus preciosos computadores, ocupados a comparar o
preço do custo líquido de um cano de cabeça octogonal com o de um de cabeça hexagonal ou a
calcular a melhor divisão dos pontos de venda de lenços de papel, segundo o sexo, a idade e a
cor dos habitantes! Olhem-na, olhem-na bem, vocês não a verão mais, ela vai morrer... Nós, os
homens de hoje, mobilizamos uma potência enorme, e as maiores inteligências do nosso
tempo, para ir buscá-la no seu sono no fundo do gelo, para depois matá-la. Vergonha, vergonha
para nós.
Calou-se um instante, e repetiu suavemente, com uma voz arrastada: — Vergonha para
nós...
John Gartner, diretor-presidente da Mecânica e Eletrônica Intercontinental, viu a emissão a
bordo do seu jato particular. Estava indo de Detroit para Bruxelas. Dava suas instruções aos
colaboradores que o acompanhavam e aos que recebiam, ao longe, sua mensagem codificada.
A trinta mil metros acima dos Açores, tomava seu café da manhã: acabava de sorver com um
canudinho a gema de um ovo preparado num envelope esterilizado transparente. Agora tomava
seu suco de laranja com uísque.
— This boy is right* — disse. — Vergonha para nós se não fizermos alguma coisa.
Compreendi tudo.
Olhando para os teus lábios, notei que eles estremeceram de amor à passagem daquele
nome.
Então eu quis te separar dele, o mais breve possível, brutalmente. Quis que soubesses
que ele estava acabado, que nada restava dele, nem mesmo um grão de poeira, mil vezes
levado pelos mares e pelos ventos, nada mais dele e nem do teu passado. Nada de nada...
Que as tuas lembranças eram tiradas do vazio. Que atrás de ti havia somente escuridão;
que a luz, a esperança e a vida estavam no nosso presente, conosco. Destruí todo o teu
passado de um só golpe. Eu te fiz mal.
Mas tu, pronunciando aquele nome, tu foste a primeira a destruir. Destruías o meu
coração.
Os médicos esperavam que ela fosse atacada por uma pneumonia ou alguma outra
consequência da ação do frio. Mas Eléa não teve nada. Nem tosse, nem febre, nem a menor
vermelhidão sobre a pele.
Quando voltou a ficar, consciente, viram que havia assimilado o choque e superado todas
as suas emoções. Não havia mais sobre o seu rosto aquela expressão petrificada de uma
indiferença total, semelhante a de um condenado à prisão perpétua, no momento em que entra
na cela da qual sabe que não sairá jamais. Ela sabia que lhe haviam dito a verdade. Portanto
quis ter provas. Pediu para ouvir o relatório da Expedição e quando a enfermeira começou a
lê-lo, fez um gesto com a mão para afastá-la, dizendo: — Simon...
Simon não estava no quarto.
Depois da sua intervenção brutal, que tinha terminado de maneira tão desastrosa, os
reanimadores julgaram-no perigoso e o proibiram de se ocupar de Eléa.
— Simon... Simon... — repetia ela.
Procurava com o olhar por todos os cantos da peça. Desde que abrira os olhos, ela o havia
sempre visto ao seu lado, estava acostumada com seu rosto, com sua voz, com o cuidado dos
seus gestos. E era ele quem lhe havia dito a verdade. Neste mundo desconhecido, no fim desta
viagem apavorante, ele era um elemento já familiar, um apoio contra o medo que a assaltava.
— Simon...
— Creio que é melhor mandar buscá-lo — disse Moissov.
Simon veio e começou a ler. Depois chegou no momento da descoberta o casal em
hibernação, ela ergueu a mão para que ele se calasse, e disse: — Eu sou Eléa, ele é Coban. É
o maior sábio de Gondawa. Ele sabe tudo. Gondawa é o nosso país.
Calou-se um instante. Depois acrescentou com uma voz muito baixa, que a tradutora mal
pôde ouvir:
— Gostaria de morrer em Gondawa.
Durante o desmaio de Eléa, Hoover, sem o menor escrúpulo, havia manipulado a máquina
de comer. Ele também estava, bem como todos aqueles que a viram funcionar sobre a tela,
ansioso para saber a partir de quais matérias-primas ela fabricava as diferentes espécies de
alimentos que, em pouco tempo, haviam dada a Eléa forças para lutar contra uma dúzia de
homens, a fim de se precipitar na tempestade.
Sobre a superfície lisa da esfera e do cilindro, havia somente uma saída possível, um só
ponto de comando e de manipulação: o botão branco do centro.
Sob os olhos horrorizados de Leonova, Hoover o havia pressionado, virado para a
esquerda, para a direita, puxado para cima e outra vez para a esquerda.
O que ele esperava aconteceu: a calota da semiesfera ergueu-se como uma campânula de
queijo, descobrindo o interior da máquina.
Esta, colocada sobre uma pequena mesa sanitária, revelou seu mistério aos olhos de todos,
e, todavia, tornou-se ainda mais misteriosa. Pois todo o interior da meia-esfera era ocupado
por um mecanismo incompreensível que não se parecia com nenhuma outra montagem
mecânica ou eletrônica. Dava mais a impressão de uma maquete de metal do sistema nervoso.
E em parte alguma havia lugar para a menor matéria-prima, fosse ela em pedaços, em grão, em
poeira ou líquido.
Hoover ergueu a máquina, sacudiu-a, olhou-a sob todos os ângulos, fez a luz bater em
cheio naquele emaranhado de ouro e de aço. Em seguida, passou-a a Leonova e Rochefoux que
a olharam por sua vez de todas as maneiras possíveis que se olha um objeto aberto, tal um
despertador sem sua caixa. Não havia em parte alguma, qualquer vestígio de lugar que
comportasse sais minerais, açúcar, pimenta, carne e peixe. Visivelmente, logicamente,
absurdamente, esta máquina fabricava alimentos a partir do nada...
Hoover, tendo recolocado a calota hemisférica no lugar, fez os mesmos gestos que havia
visto Eléa fazer e obteve o mesmo resultado: uma pequena gaveta se abriu e ofereceu esférulas
verde-claras. Hoover hesitou um instante, depois pegou o garfo de ouro, picou uma esfera e
colocou-a na boca. Esperava uma surpresa extraordinária. Ficou desapontado: não tinha gosto
definido e não era particularmente agradável. Fazia pensar em leite coalhado no qual teriam
mergulhado uma limalha de ferro. Ofereceu a Leonova, que recusou.
— Seria melhor — disse ela — você mandar examiná-las.
Era o bom senso científico que falava por sua boca. Envoltas numa folha de plástico, as
esférulas foram enviadas para o laboratório de análise.
Veio o primeiro resultado, que não revelou nada de extraordinário. Havia proteínas,
corpos gordurosos, glicose, uma quantidade de sais minerais, vitaminas e oligoelementos
misturados nas moléculas semelhantes às do amido.
Depois houve uma retificação. Uma análise mais profunda havia descoberto algumas
moléculas quase do tamanho das existentes nas células. Depois uma segunda retificação: essas
moléculas se reproduziam!
Portanto, a partir do nada, a máquina de comer fabricava não somente a matéria nutritiva,
mas também a matéria análoga à da matéria viva.
Tudo aquilo era incrível!
Logo que Eléa aceitou esclarecer suas dúvidas, os cientistas se acotovelaram em torno
dela e a crivaram de perguntas:
— Como funciona a máquina de comer?
— Vocês viram.
— Mas, no interior?
— No interior ela fabrica o alimento.
— Fabrica com quê?
— Com o Todo.
— O Todo? O que é o Todo?
— Vocês bem sabem... é isto que vocês fabricam também...
— O Todo... o Todo... não há outro nome para o Todo?
Eléa pronunciou três nomes e se ouviu em seguida a voz impessoal da máquina tradutora:
— "As palavras que acabam de ser pronunciadas no canal onze não figuram no
vocabulário que me foi programado. No entanto, por analogia, creio poder propor a tradução
aproximativa seguinte: energia universal. Ou talvez: essência universal. Ou ainda: vida
universal. Mas estas duas últimas ideias me parecem um pouco abstratas. A primeira é sem
dúvida a mais próxima do sentido original. Seria necessário, para ser justo, nela incluir as
duas outras".
Energia!... A máquina fabricava a matéria a partir da energia! Não era impossível admitir
isso, no estado atual dos conhecimentos científicos e da técnica. Mas seria necessário
mobilizar uma quantidade fabulosa de eletricidade para obter uma partícula invisível,
intocável e que despareceria logo que surgisse.
Entretanto, aquela estranha máquina, que tinha a aparência de um brinquedo de criança,
tirava do nada, com a maior simplicidade, o alimento que lhe fosse pedido.
Lebeau teve que acalmar a impaciência dos sábios, cujas perguntas se multiplicavam no
cérebro da tradutora.
— Você conhece o mecanismo de funcionamento?
Tentei te chamar para o nosso mundo. Embora tenhas aceitado colaborar conosco,
talvez por isso mesmo, eu te via um pouco mais cada dia recuar no passado, para um
abismo. Não havia passarela para atravessar o despenhadeiro. Não havia nada atrás de ti,
senão a morte.
Fiz trazerem do Cabo, para ti, cerejas e pêssegos.
Fiz trazer um carneiro do qual o nosso chefe tirou, para te oferecer, algumas costeletas
acompanhadas de folhas de alface romana, tenras como uma polpa de fruto. Olhaste as
costeletas com horror. E me disse:
— É um pedaço cortado de um bicho?
Nunca tinha pensado nisso. Até aquele dia, para mim, uma costeleta não era senão uma
costeleta. Respondi meio sem jeito:
— Sim.
Olhaste a carne, a salada, as frutas e me disseste:
— Você come bicho!... você come mato!... você come árvore!... Tentei sorrir. Respondi:
— Nós somos bárbaros...
Mandei buscar rosas. Você pensou que isto também nós comêssemos...
Não sou um adolescente romântico. Não sou um bruto governado pelo estômago e pelo
sexo.
Sou razoavelmente sensato, sentimental e sensual, capaz de controlar minhas emoções e
meus instintos. Pude rapidamente suportar a visão de tua vida mais intima, pude suportar
ver esse bruto se deitar em cima de ti e penetrar na maravilha do teu corpo. O que me
transtornou foi o que li sobre o teu rosto.
Poderias não ter morto este homem. Ele havia dito que te levaria para fora. Talvez
mentisse, mas não foi para assegurar a tua fuga que tu o mataste, foi porque ele estava no
teu ventre e não podias suportá-lo. Tu o mataste por amor a Paikan. Amor. Esta palavra que
a tradutora utiliza porque não encontra o equivalente, não existe na tua língua. Depois que
te vi viver junto de Paikan, compreendi que era uma palavra insuficiente. Nós dizemos "eu
amo", dizemos da mulher, mas também da fruta que comemos, da gravata que escolhemos, e
a mulher o diz falando sobre o seu batom. Ela diz do seu amante: "ele é meu". Tu dizes o
contrário: "eu sou de Paikan". E Paikan diz "eu sou de Eléa". Tu és dele, és uma parte dele
mesmo. Chegarei eu jamais a te desprender? Tento te interessar no nosso mundo, te fiz
ouvir Mozart e Bach, mostrei-te fotografias de Paris, de Nova Iorque, de Brasília, te falei
da história dos homens, pelo menos da que nós conhecemos e que é o nosso passado, tão
curto ao lado da durabilidade imensa do teu sono. Em vão, tu escutas, olhas, mas nada te
interessa. Estás por trás do muro. Não estás em contato com o nosso tempo. Teu passado te
seguiu no consciente e no subconsciente da tua memória. Não pensas senão em nele
mergulhar de novo, e encontrá-lo, e revivê-lo. O presente para ti é ele.
Tu ainda podias ouvir. Podias saber. Não tinhas mais forças para manter tuas pálpebras
abertas, tuas têmporas se afundavam, teus dedos se tornavam brancos, tua mão escorregava
e caia da máquina-de-comer, mas ainda estavas presente e compreendias.
Eu teria podido gritar a verdade, gritar o nome de Paikan, terias sabido antes de
morrer que ele estava perto de ti, que vocês morreriam juntos como sempre haviam
desejado. Mas que arrependimentos cruéis, quando vocês poderiam ter vivido! Que horror
de saber que no momento de acordar de um tal sonho, ele morria com o teu sangue que o
poderia salvar...
Gritei teu nome e ia gritar: "É Paikan!", mas vi tua chave aberta, o suor das tuas
têmporas, a morte já pousada sobre ti, pousada sobre ele. A mão abominável da infelicidade
fechou-me a boca...
Se eu tivesse falado...
Se tivesse sabido que o homem perto de ti era Paikan, terias morrido num sobressalto
de desespero? Ou poderias ainda se salvar e a ele contigo? Não conhecias um remédio, não
poderias fabricar com teus toques milagrosos da máquina-de-comer um antídoto que teria
rechaçado a morte para fora de vosso sangue comum, de vossas veias ligadas? Mas te
restavam ainda bastantes forças?
Podias tu somente olhá-la?
Tudo isto, eu me perguntei em alguns instantes, num segundo tão breve e tão longo
quanto o longo sono do qual nós te tiramos. E depois enfim, gritei novamente. Mas não
disse o nome de Paikan. Gritei para esses homens que viam vocês dois morrer e que não
sabiam por que e se afobavam.
Gritei-lhes: "Vocês não veem que ela se envenenou!" E insultei-os, peguei o mais
próximo, já nem sei mais quem era, sacudi-o, bati-lhe, eles não haviam visto nada, tinham
te deixado fazer aquilo, eram imbecis, uns asnos pretensiosos, mas cretinos cegos...
E eles não me compreendiam. Respondiam-me cada um na sua língua, e eu não os
compreendia. Só Lebeau me havia compreendido e arrancava a agulha do braço de Coban.
E ele também gritava, mostrava com o dedo, dava ordens e os outros não compreendiam.
Ao redor de ti e Paikan, imóveis e em paz, era a loucura das vozes e dos gestos, e o balé
das blusas verdes, amarelas, azuis.
Cada um se dirigia a todos, gritava, mostrava, falava e não compreendia. Aquela que
compreendia tudo e que todos compreendiam não falava mais nos ouvidos. Babel tinha
caído novamente sobre nós. A tradutora acabara de explodir.
Moissov, vendo Lebeau arrancar a agulha do braço do homem, pensou que ele havia
enlouquecido ou que queria matá-lo. Segurou-lhe o pulso e bateu-lhe. Lebeau defendeu-se
gritando: "Veneno, veneno!"
Simon, mostrando a chave aberta, a boca de Eléa, dizia: "Veneno! Veneno!"
Forster compreendeu, gritou em inglês para Moissov, arrancando-lhe das mãos o
maltratado Lebeau. Zabrec cessou a transfusão. O sangue de Eléa parou de correr sob os
curativos de Paikan. Depois de alguns minutos de confusão total, a verdade atravessou a
barreira das línguas e de novo todas as atenções convergiram para o mesmo fim: salvar Eléa,
salvar aquele que todos, com exceção de Simon, ainda acreditavam ser Coban.
Mas eles já estavam muito longe na sua viagem, já quase no horizonte.
Simon pegou a mão nua de Eléa e colocou-a na mão do homem enfaixado. Os outros
olhavam com espanto, porém ninguém dizia mais nada. A química analisava o sangue
envenenado.
De mãos dadas, Eléa e Paikan deram seus últimos passos. Os dois corações pararam ao
mesmo tempo.
Quando teve certeza de que Eléa não podia mais ouvi-lo, Simon mostrou com o dedo o
homem deitado e disse:
— Paikan.
Foi nesse momento que as luzes se apagaram. O difusor tinha começado a falar em francês.
Ele havia dito: "A tra..." Calou-se. A tela de tevê que continuava a vigiar o ovo fechou seu
olho cinzento e todos os aparelhos que ronronavam, estalavam, estremeciam, crepitavam, se
calaram. A mil metros sob o gelo, a escuridão total e o silêncio invadiram a sala. Os vivos, de
pé, ficaram pregados nos lugares. Para os dois seres deitados no meio deles, o silêncio e a
escuridão não existiam mais. Mas para os vivos, as trevas que os envolviam de repente na
tumba profunda eram a espessura compreensível da morte. Cada um ouvia o barulho de seu
próprio coração e da respiração dos outros, exclamações contidas, palavras cochichadas, e
acima de tudo a voz de Simon, que tinha se calado, mas que todos continuavam a ouvir:
— Paikan... Eléa e Paikan...
Sua história trágica tinha se prolongado até esse minuto, onde a fatalidade furiosa os havia
atingido pela segunda vez. A noite os havia reunido no fundo do túmulo de gelo e envolvia os
vivos e os mortos, ligava-os num bloco de infelicidade inevitável cujo peso ia afundá-los
juntos até o fundo dos séculos e da terra.
A luz voltou, pálida, amarela palpitante, apagou-se de novo e reacendeu um pouco mais
viva. Eles se olharam, se reconheceram, respiraram, mas sabiam que não eram mais os
mesmos. Voltavam de uma viagem que quase não havia durado, mas todos, agora, eram irmãos
de Orfeu.
— A tradutora explodiu! Toda EPI-2 está nos ares, o muro do hangar está aberto como uma
avenida!
Era a voz de Brivaux que estava de guarda no alto do elevador.
— A eletricidade pifou, a pilha deve ter sofrido um golpe. Eu os liguei no circuito do
poço. Vocês fariam bem de subir o mais depressa possível! Mas não contem com o elevador,
não tem bastante força, é preciso gastar os sapatos na escada. Onde é que vocês estão com os
dois espécimes? Já podem ser transportados?
— Os dois espécimes morreram — respondeu Lebeau com a calma de um homem que
acaba de perder numa catástrofe sua mulher, seus filhos, sua fortuna e sua fé.
— Merda! Depois de tanto trabalho! Bem, agora pensem em vocês! E se apressem antes
que a pilha comece a dançar a bourrée*.
Forster traduzia em inglês para aqueles que não tinham compreendido em francês. Os que
não compreenderam nem uma nem outra, compreenderam os gestos. E aqueles que não
compreenderam nada já tinham compreendido que precisavam sair do buraco. Forster
desligou definitivamente as minas de entrada. Já alguns técnicos subiam em direção à abertura
da esfera. Havia três enfermeiras, entre elas a assistente de Lebeau que tinha cinquenta e três
anos. As outras duas, mais jovens, chegariam sem dúvida lá em cima.
Os médicos não se conformavam com a ideia de deixar Eléa e Paikan.
Moissov fez sinal dando a entender que poderiam amarrá-los nas costas, acrescentou
algumas palavras num inglês horrível que Forster interpretou como querendo dizer: "Cada um
por sua vez."
Mil metros de escada. Dois mortos.
— A pilha está fissurada! — gritou o emissor. — Está rachada, cospe e fuma por todo
canto! Nos retiramos numa confusão total! Apressem-se!
Desta vez, era a voz de Rochefoux.
— Saindo do poço, dirijam-se para o sul, virem as costas ao lugar de EPI-2. O vento leva
as radiações na outra direção. Helicópteros vão recolhê-los. Deixo uma equipe aqui para
esperá-los, mas se isso explodir antes e vocês saírem não se esqueçam: diretamente para o
sul! Vou tratar dos outros. Andem depressa...
Van Houcke falou em holandês e ninguém o compreendeu. Então, repetiu em francês que na
sua opinião deveriam deixá-los lá. Estavam mortos, não se podia fazer mais nada por eles,
nem deles. E encaminhou-se para a porta.
— O mínimo que podemos fazer — disse Simon — é recolocá-los onde os encontramos...
— Também acho — disse Lebeau.
Explicou-se em inglês com Forster e Moissov, que concordaram.
Pegaram primeiro Paikan sobre seus ombros, e fizeram-no descer novamente o caminho
por onde o haviam içado para as suas esperanças, e o colocaram no seu caixão.
Depois foi a vez de Eléa. Os quatro a carregaram, Lebeau, Forster, Moissov e Simon.
Colocaram-na no outro caixão, perto do homem com o qual ela havia dormido durante
novecentos mil anos sem o saber, e com quem ela havia, sem o saber, mergulhado num novo
sono que não teria fim.
No momento em que todo o seu peso descansou no caixão, um brilhante raio azul brotou do
solo transparente, invadiu o ovo e a esfera e atingiu os homens e as mulheres agarrados às
escadas. O anel suspenso recomeçou seu curso imóvel, o motor recomeçou sua tarefa um
instante interrompida: envolver com um frio mortal o fardo que lhe haviam confiado, e guardá-
lo através do tempo interminável.
Rapidamente, pois o frio já os oprimia, Simon desamarrou em parte a cabeça de Paikan,
cortou e tirou as ataduras a fim de que seu rosto ficasse nu ao lado do rosto nu de Eléa.
O rosto livre apareceu, muito belo. Quase não se percebiam mais suas queimaduras. O
soro universal trazido pelo sangue de Eléa tinha curado sua carne antes que o veneno lhe
tirasse a vida. Eles estavam incrivelmente belos e em paz. Uma névoa gelada invadia o
abrigo. Da sala de reanimação, chegaram pedaços da voz anasalada do difusor: — Alô!...
Alô!... ainda alguém?... Apressem-se!...
Eles não podiam demorar mais. Simon saiu por último, subiu os degraus de costas, apagou
o projetor. Teve primeiro a impressão de uma escuridão profunda, depois seus olhos se
acostumaram à luz azul que banhava novamente o interior do ovo com sua claridade noturna.
Uma estreita faixa transparente começava a envolver os dois rostos nus, que brilhavam como
duas estrelas. Simon saiu e fechou a porta.
Um verdadeiro carrossel tinha se estabelecido entre os porta-aviões, os submarinos, as
bases mais próximas e as costas de EPI. Sem cessar, os helicópteros pousavam, se enchiam e
partiam outra vez. Um funil retalhado, sujo de todas espécies de restos, brilhando de reflexos
de gelo, marcava o lugar do EPI-2. Rolos de fumaça subiam no vento enraivecido que os
colhia no nível do chão e levava para o norte.
Pouco a pouco, todo o pessoal foi evacuado, e a equipe do poço saiu por sua vez e foi
toda recolhida. A enfermeira quinquagenária foi das primeiras a chegar lá em cima. Ela era
magra e escalava os degraus como uma cabra.
Hoover e Leonova embarcaram com os reanimadores, no último voo do último
helicóptero. Hoover, de pé diante de uma escotilha apertava contra ele Leonova que tremia de
desespero. Olhava com horror a base devastada e resmungava baixinho: — Que confusão, meu
Deus, que confusão!...
Os sete membros da Comissão encarregados de redigir a Declaração do Homem Universal
encontravam-se embarcados sobre sete navios diferentes, e não tiveram mais ocasião de se
encontrar. Não tinha mais ninguém em terra. No céu aviões prudentes, em voo muito alto,
rodavam ao longe, conservando EPI-2 dentro do campo de suas câmaras. O vento soprava
novamente numa tempestade furiosa, mais forte a cada segundo. Varria os escombros da base,
carregava os pedaços de qualquer coisa, multicores, para os horizontes brancos, a distâncias
desconhecidas.
A pilha explodiu.
As câmaras viram o cogumelo gigantesco carregado pelo vento, torcido, rasgado,
estripado até o vermelho do seu sangue de inferno, carregado aos pedaços na direção do
oceano e das terras longínquas. A Nova Zelândia, a Austrália, todas as ilhas do Pacífico se
encontravam ameaçadas. E em primeiro lugar os prédios da Força Internacional. Os aviões
voltaram para bordo, os submarinos mergulharam, os navios de superfície deram toda
velocidade contra o vento.
A bordo do Netuno, Simon contou aos sábios e aos jornalistas que aí se encontravam, o
que ele havia visto durante a transfusão, e como Paikan havia tomado o lugar de Coban.
Todas as mulheres do mundo choraram diante das telas. A família Vignont comia à sua
mesa de meia-lua olhando o cogumelo descabelado em serpentes como medusas que marcava
o fim da generosa aventura. A Sra. Vignont havia aberto uma grande lata de ravióli com molho
de tomate, tinha-a aquecido em banho-maria e servido dentro da própria lata, porque assim se
mantinha mais quente, dizia ela, mas na realidade era porque assim andava mais depressa e
não sujava prato.
Depois da explosão, apareceu a cabeça de um homem que assumiu um ar melancólico para
pronunciar palavras de condolências, e passou a outras notícias. Infelizmente, elas não eram
boas. No f ront da Mandchúria esperavam... Na Malásia, uma nova ofensiva... Em Berlim, a
fome devida ao bloqueio... No Pacífico, as duas frotas... No Kuwait, o incêndio dos poços...
No Cabo os bombardeios da aviação negra... Na América do Sul... no Oriente Médio... Todos
os governos faziam o impossível para evitar o pior. Enviados especiais cruzavam os
mediadores em todas as altitudes, em todas as direções. Esperava-se, esperava-se muito. A
mocidade se agitava um pouco em todos os lados. Não se sabia o que ela queria. Ela também
não, é claro. Os estudantes, os jovens trabalhadores, os jovens camponeses, e os bandos cada
vez mais numerosos de jovens que não eram nada e não queriam ser nada se reuniam, se
misturavam, invadiam as ruas das capitais, paravam o trânsito, atacavam a polícia, gritando:
"Não! Não! Não! Não! Em todas as línguas isso se exprime por uma pequena palavra
explosiva, fácil de gritar. Todos eles a gritavam, sabiam disso, sabiam que não queriam. Não
se sabe exatamente quais foram o? que começaram a gritar o "não!" dos estudantes gondas:
"Pao! Pao! Pao! Pao!" mas em poucas horas toda a mocidade do mundo gritava, diante de
todos os policiais.
— Pao! Pao! Pao! Pao!...
Em Pequim, em Tóquio, em Washington, em Moscou, em Praga, em Roma, na Argélia, no
Cairo:
— Pao! Pao! Pao! Pao!...
— Esses moços, eu, eu os poria todos dando duro... — disse o pai.
— O governo se esforça... — falou o rosto na tela.
O filho se levantou, pegou seu prato e atirou-o na imagem, gritando: — Velho burro! Vocês
são todos uns velhos burros! Vocês os deixaram morrer com suas burrices!
O molho escorria sobre o vídeo inquebrável. O rosto triste falava por trás do molho de
tomate.
O pai e a mãe, surpresos, olhavam seu filho transfigurado. A filha não olhava para nada,
não ouvia nada, estava toda ao redor do seu ventre que não parava de se lembrar da noite
precedente passada num hotel da Rua Monge.
— com um espanhol magro. Todas essas palavras, essas palavras, será que adiantam
alguma coisa?
Seu irmão gritava:
— Voltaremos lá. Nós os salvaremos! Encontraremos o contraveneno. Eu, eu sou um
idiota, mas há os que saberão! Nós os tiraremos da morte! Não queremos saber da morte!
Não queremos a guerra! Não queremos as burrices de vocês!
— Pão! Pão! Pão! Pão! — gritava a rua cada vez mais alto.
E os apitos da polícia, os estouros abafados das bombas de gás lacrimogêneo.
— Eu, eu sou um idiota, mas não sou burro!
— As manifestações... — continuava o rosto na tela.
Jogou em cima dele toda a lata de ravióli e saiu. Bateu a porta, gritando: — Pão! Pão!
Ouviram-no na escada, depois ele se confundiu com os outros.
— Como este menino é bobo! — gritou o pai.
—Como é bonito! — disse a mãe.
O AUTOR
René Barjavel
Filho de padeiro, René Barjavel foi o primeiro da família a não exercer uma profissão
manual. Nascido em Nyons (Drome), França, em 1911, começou a escrever com menos de 20
anos, e se levantava às 4 da manhã para trabalhar em seus textos, antes de ir para o trabalho --
fazia então diálogos para filmes, adaptações e crítica de cinema e teatro.
Casou-se em 1936 e nos três anos seguintes chegaram os dois filhos e a guerra.
Desmobilizado em 1942, no ano seguinte lançou seu primeiro romance: Ravage. Depois
publicou, sempre com sucesso, Tarendol (1949), Journal d'un homme simple (1950), Jour de
feu (1957), Le voyageur imprudent (1958), Le diable Vemporte (1959), Colombe de la lune
(1962) e outros.
Seu último livro, Les chemins de Katmandou, foi transformado em filme por André
Cayatte, com diálogos do próprio Barjavel, também autor de um livro de ensaios sobre a
Sétima Arte: Cinema total.