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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Do original francês La Nuit des Temps
Copyright 1968 by Presses de La Cité
Copyright 1971 da edição em português Editora Artenova S.A. Terceira edição brasileira
em abril de 1975

Traduzido por Marisa Murray


Revisão: Salvador Pittaro
Capa de Salvio Negreiros/Studio Artenova

Reservados todos os direitos desta tradução. Proibida a reprodução, mesmo sem expressa
autorização da Editora Artenova S.A.

Editora Artenova S.A


Composto e impresso no Brasil — Printed in Brazil
A André Cayatte, pai desta aventura, inspirador deste livro, com a minha amizade.
R.B.
1

MINHA BEM AMADA, minha abandonada, eu te deixei lá no fim do mundo, voltei para
meu quarto de homem da cidade com seus móveis familiares sobre os quais tantas vezes
pousei minhas mãos que os amavam, com os seus livros que me alimentaram, com sua velha
cama de cerejeira onde dormi minha infância e onde, esta noite, procurei em vão encontrar
o sono. E todo este cenário que me viu crescer, desenvolver, tornar-me eu, hoje me parece
estranho, impossível Este mundo que não é o teu tornou-se um mundo falso, no qual meu
lugar jamais existiu.
E no entanto é meu pais, eu o conheci...
Vai ser preciso reconhecê-lo, aprender novamente a nele respirar, a nele fazer o meu
trabalho de homem no meio dos homens. Serei capaz disso?
Cheguei ontem à noite pelo jato australiano. No aeroporto de Paris-Nord, um bando de
jornalistas me esperava, com seus microfones, suas câmaras, suas inúmeras perguntas. Que
poderia eu responder?
Todos eles te conheciam, todos eles haviam visto sobre suas telas a cor dos teus olhos, a
incrível distância do teu olhar, as formas perturbadoras do teu rosto e do teu corpo. Mesmo
aqueles que te viram apenas uma vez não puderam te esquecer. Eu os sentia, por trás dos
reflexos de sua curiosidade profissional, secretamente mudos, agitados, magoados. Mas
talvez fosse a minha própria dor que eu projetava sobre o rosto deles, minha própria ferida
que sangrava quando eles pronunciavam o teu nome...
Voltei para meu quarto. Não o reconheci. A noite passou e não dormi. Através da parede
de vidro, o céu, que era negro, tornava-se pálido. As trinta torres da Defesa se tingiam de
cor-de-rosa. A Torre Eiffel e a Torre Montparnasse enfiavam seus pés na bruma. O Sacré-
Coeur parecia uma maquete de gesso pousada no algodão, sobre esta bruma envenenada
por suas fadigas de ontem, milhões de homens acordam já extenuados de hoje. Do lado de
Courbevoie, uma chaminé alta joga uma fumaça negra que tenta reter a noite. Sobre o Sena,
um rebocador solta seu grito de monstro melancólico.
Estremeço. Nunca mais, nunca mais sentirei calor no meu sangue nem na minha carne...

O Dr. Simon, as mãos nos bolsos, a testa apoiada na parede de vidro de seu quarto, olha
Paris, sobre a qual o dia se levanta. É um homem de 32 anos, grande, magro, moreno.
Veste um suéter grosso de gola roulé, cor de pão queimado, um pouco deformado, gasto
nos cotovelos, e calça de veludo negro. Sobre o tapete, seus pés estão descalços. Seu rosto é
coberto por anéis de barba castanha, curta, barba de alguém que a deixou crescer por
necessidade. Por causa dos óculos que usou durante o verão polar, o côncavo dos olhos
parece claro e frágil, vulnerável como a pele cicatrizada de um ferimento. Sua testa é larga,
meio escondida pela nascente dos cabelos curtos, um pouco tombada em cima dos olhos e
cortada por uma profunda ruga. Suas pálpebras estão inchadas, o branco de seus olhos é
estriado de vermelho. Não pode dormir, não pode mais chorar, não pode esquecer, é
impossível...
A aventura começou com uma missão de simples rotina, das mais banais. Havia anos que o
trabalho sobre o continente antártico não era mais feito pelos corajosos, mas sim por sábios
organizados. Havia todo o material necessário para lutar contra os inconvenientes do clima e
da distância, para conhecer o que procuravam saber, para assegurar aos pesquisadores um
conforto equivalente ao de um hotel de luxo. Todo o pessoal da equipe possuía os
conhecimentos indispensáveis à missão. Quando o vento soprava forte demais, fechavam-se e
deixavam-no soprar; quando se acalmava, todos saíam e cada um fazia o que tinha a fazer.
Sobre o recortado mapa daquele continente, na Base Paul-Emile Victor, a missão francesa
permanente debruçava-se sobre a fatia que lhe coubera, dividia-a em pequenos quadrados e
trapézios e os explorava sistematicamente um após outro. Sabia que não havia mais nada a ser
encontrado a não ser gelo, neve e vento, vento, gelo e neve. E, abaixo, rochas e terra, como em
toda parte. Não havia nisso nada de excitante, mas mesmo assim aquilo os apaixonava, porque
eles estavam longe do óxido de carbono e dos engarrafamentos, porque cada um dava a si
próprio uma pequena ilusão de ser um pouco de herói explorador, enfrentando grandes
perigos, e principalmente porque estavam no meio de amigos.
A missão acabara de fazer a exploração do trapézio 381, a documentação estava
encerrada, uma cópia tinha sido enviada à sede em Paris. Restava-nos passar à tarefa seguinte.
Burocraticamente, do 381, deveríamos ter saltado para o 382, mas nem sempre as coisas
aconteciam assim. Havia as circunstâncias, os imprevistos e a necessidade de um mínimo de
variedade.
A missão acabava de receber um novo aparelho de sondagem subglacial de concepção
revolucionária, que, segundo seu construtor, era capaz de descobrir os menores detalhes do
solo sob vários quilômetros de gelo. Louis Grey, o glaciólogo, 37 anos, agregado de
Geografia, estava ardendo de impaciência para pô-lo à prova, comparar o seu trabalho com o
das sondas clássicas. Foi então decidido que um grupo iria fazer um levantamento do solo
subglacial no quadrado 612, que se situava a algumas centenas de quilômetros do Polo Sul.
Em duas viagens, o pesado helicóptero depositou os homens, seus veículos, e todo o
material sobre o local de operação.
O lugar já havia sido bastante sondado pelos métodos e engenhos habituais. Sabia-se que
profundidades de 800 a 1.000 metros de gelo terminavam em abismos de mais de 4.000
metros. Aos olhos de Louis Grey, o local constituía um campo de experiência ideal para testar
o novo aparelho. Era, acreditava ele, o que havia motivado sua escolha. Hoje em dia, ninguém
ousa acreditar.
Com tudo o que foi revelado depois, como se poderia pensar ainda que tinha sido só o
acaso, ou uma razão qualquer, que fizera vir esses homens com todo o material necessário
exatamente a este ponto do continente, ao invés de a qualquer outro ponto desse deserto de
gelo maior que a Europa e os Estados Unidos juntos?
Muitos espíritos sérios acreditam agora que Louis Grey e seus companheiros tenham sido
"chamados". De que maneira? Isso não foi esclarecido com os acontecimentos seguintes. E
nem mesmo se tratou disso. Havia problemas bem maiores e mais urgentes a elucidar. Mas a
verdade é que Louis Grey e mais onze homens, levados em três snowdoggs, se colocaram
exatamente no lugar certo.
E, dois dias depois, todos estes homens sabiam que tinham vindo ao encontro de um
acontecimento inimaginável. Dois dias...
Como falar aqui de dias e de noites? Estávamos no princípio de dezembro, quer dizer em
pleno verão austral. O sol não se punha. Girava sobre os homens e os caminhões, em volta do
seu mundo redondo, como para vigiar de longe e por todos os lados. Mais ou menos às 9 horas
da noite, passava atrás de uma montanha de gelo, reaparecia às 10 do outro lado dessa
montanha, lá pela meia-noite parecia a ponto de sucumbir e desaparecer sob o horizonte que
começava a engoli-lo. Então se defendia, crescendo, deformando-se, tornando-se vermelho.
Ganhava a batalha e recomeçava lentamente a percorrer suas distâncias e sua ronda de
sentinela, iluminando ao redor da missão um imenso disco branco e azul de frio e solidão. Por
outro lado, muito além desses limites longínquos sobre os quais montava guarda, atrás dele
havia a Terra, as cidades e as multidões, os campos com suas vacas, as ervas, as árvores e os
passarinhos.
O Dr. Simon estava nostálgico. Acabava uma permanência de três anos, quase ininterrupta,
nas diferentes bases francesas da Antártida, e estava mais do que cansado.
Após esse estágio, deveria ter tomado o avião para Sidney. Ficou, porém, a pedido do seu
amigo Louis Grey, para acompanhar sua missão, pois o Dr. Jaillon, seu substituto, estava
ocupado na base atacada por uma epidemia de rubéola.
Essa rubéola era inverossímil. Quase nunca se veem moléstias na Antártida, dir-se-ia até
que os micróbios têm medo do frio. Os médicos só têm que cuidar de acidentes e, às vezes, de
frieiras dos recém-chegados, que não deixam de cometer imprudências. Por outro lado, a
rubéola quase que desapareceu da face da Terra depois que inventaram a vacina bucal que
todos os recém-nascidos tomam nas suas primeiras mamadeiras. Apesar dessas evidências,
havia rubéola na Base Victor. Um homem em cada quatro ardia de febre em sua cama, a pele
transformada num tecido de bolinhas.
Louis Grey juntou um grupo ainda ileso, em meio do qual estava o Dr. Simon, e embarcou-
o a toda pressa para o ponto 612, desejando ardentemente que o vírus não os seguisse.
Se não tivesse sido a rubéola...

*Snowdoggs: caminhão-tanque montado em esteiras e colchões de ar.

Se naquele dia, ao invés de subir no helicóptero, eu tivesse embarcado no avião para


Sidney, se do alto da sua decolagem vertical, antes que ele se lançasse rugindo em direção
às terras quentes, eu tivesse dito adeus para sempre à base, ao gelo, ao monstruoso
continente frio, que teria acontecido?
Quem teria estado perto de ti, minha bem-amada, no momento terrível? Quem teria
visto em meu lugar? Quem teria sabido?
Alguém teria gritado, berrado o nome? Eu, eu não disse nada. Nada...
E tudo se consumou...
Desde então, repito a mim mesmo que era tarde demais, que se eu tivesse gritado isso
não teria mudado nada, e eu teria simplesmente ficado arrasado sob o peso de um
desespero inexpiável.
Durante aqueles poucos segundos, não teria havido bastante horror no mundo para
encher teu coração.
Eis o que me repito sem cessar, desde aquele dia, desde aquela hora: "Muito tarde...
muito tarde... muito tarde..."
Mas talvez seja uma mentira que eu mastigo e torno a mastigar, e da qual tenha de me
alimentar para viver...

Sentado numa esteira do snowdogg, o Dr. Simon sonhava com um croissant molhado num
café cremoso. Molhado, sumarento, para ser comido aos pequenos pedaços, mastigando
devagar, à maneira dos bons parisienses. Era um prazer que lhe trazia as melhores lembranças,
aquele de entrar no bistrot, aproximar-se do balcão, aspirando o cheiro do café expresso, os
pés sobre a serragem, lado a lado com os rabugentos da manhã, compartilhando do seu
primeiro prazer do dia, talvez o maior, o de se encontrar neste lugar de primeiro encontro com
os outros homens, sentindo o calor e as correntes de ar.
Não podia mais com todo este gelo e este vento, um vento que não cessava jamais de
fustigá-lo, de fustigar todos os homens da Antártida, metidos naquele deserto glacial.
Empurrava-os sem cessar, a eles e a suas barracas, antenas e caminhões, para que se
fossem, abandonassem o continente, e os deixassem, ele e a neve mortal, consumar a sós,
eternamente na solidão, suas monstruosas bodas ultrageladas...
Era preciso ser verdadeiramente obstinado para suportar aquela vida. Simon tinha
chegado ao auge de sua obstinação. Antes de sentar-se, havia colocado uma coberta dobrada
em quatro sobre a esteira do snowdogg, a fim de que suas nádegas ficassem melhor
protegidas.
Estava com o rosto voltado para o sol e esfregava as faces, escondidas pela barba,
tentando convencer-se de que o sol o esquentava, se bem que lhe fornecesse mais ou menos
tantas calorias quanto uma lanterna a óleo a três quilômetros de distância. O vento tentava
virar o seu nariz em direção a sua orelha esquerda. Virou a cabeça para receber o vento do
outro lado. Pensava na brisa do mar à noite em Collioure, tão quente, mas que achavam fresca
porque fazia muito calor durante o dia. Pensava no indescritível prazer de se despir, de
mergulhar na água sem se transformar em gelo, de se deitar sobre as areias quentes...
— Quentes! Isso lhe pareceu tão inverossímil que ele riu.
— Você agora ri sozinho? — disse Brivaux. — Estamos bem... Você estará com rubéola?
Brivaux estava por trás dele, a sonda a tiracolo, pendurada numa larga correia de pele de
lobo que passava por trás do seu pescoço.
Estava pensando nos lugares do mundo onde faz calor — disse Simon.
— Não é rubéola, é meningite... Fique sentado assim, e você vai gelar até a alma...
Olhe, venha ver um pouco isto aqui... Apontou-lhe o mostrador da sonda, com sua folha
registradora já em parte enrolada. Era um modelo comum como qual ele acabava de
prospectar o setor que lhe tinha sido designado.
Simon levantou-se e olhou. Não entendia muito da parte técnica. O mecanismo do corpo
humano lhe era mais familiar do que o de um simples isqueiro a gás. Mas tivera tempo, depois
de três anos, de se familiarizar com os desenhos que traçava, sobre o papel magnético, a
grafite das sondas portáteis. Pareciam, em geral, com o corte de um terreno vago, ou de um
montão de ruínas, ou de não importa o quê, que não se parecesse com coisa alguma. Ora, o que
lhe mostrava Brivaux parecia com qualquer coisa...
Com quê?
Com nada de conhecido, nada de familiar, mas...
Seu espírito, habituado a fazer a síntese dos sintomas para apresentar um diagnóstico,
compreendeu de repente o que havia de incomum nesse relevo do solo glacial. A linha reta
não existe na natureza bruta. A linha curva regular também não. O solo brutalizado, áspero,
misturado no decorrer das idades geológicas, pelas formidáveis forças da Terra, é sempre
totalmente irregular. Ora, o que a sonda de Brivaux havia inscrito sobre o papel era uma
sucessão de curvas e de retas. Interrompidas e quebradas, mas perfeitamente regulares. Que o
solo pudesse apresentar um tal perfil, era totalmente improvável e mesmo impossível. Simon
tirou a conclusão mais evidente:
— Há qualquer coisa errada nesse negócio...
— E você, você tem qualquer coisa errada aí dentro? — Brivaux bateu com o dedo
enluvado na sua cabeça.
— Este aparelho funciona com perfeição. Gostaria de funcionar tão bem quanto ele até o
meu último dia. Mas lá embaixo há qualquer coisa que não está bem...
Bateu na superfície do gelo com o salto da sua bota forrada.
—Um perfil assim, não é possível — continuou Simon.
— Eu sei, isto não parece ser verdade.
— E os outros? O que encontraram?
— Não sei de nada, vou dar um toque de cometa para chamá-los... Subiu no laboratório do
caminhão, e, três segundos depois, soava a sirena chamando os membros da missão de volta
ao acampamento.
Aliás, eles já estavam prestes a voltar. Primeiro as duas equipes a pé, com suas sondas
clássicas. Depois o snowdogg, que tinha na frente o transmissor-receptor da nova sonda, uma
armadura metálica entre suas duas lagartas. Um cabo vermelho o ligava ao posto de comando
e ao registrador, no interior do veículo. Estava também, no veículo, o mecânico Eloi, Louis
Grey, impaciente para ver funcionar o novo instrumento, e um engenheiro da fábrica que tinha
vindo para mostrar o seu funcionamento.
Era um rapaz alto e magro, mais para louro, e de maneiras delicadas. Dava a impressão,
por sua elegância natural, de ter feito cortar seus trajes polares numa casa de alta costura. Os
veteranos não podiam deixar de sorrir ao olhá-lo. Eloi o havia chamado de "Cornexquis" o
que lhe assentava com perfeição.
Desceu do caminhão em silêncio, escutando com um ar reservado as apreciações de Grey
sobre seu "utensílio". Segundo a opinião do glaciólogo, a nova sonda falhara completamente.
Ele nunca havia visto, nem mesmo no aparelho mais antigo, ser traçado um perfil igual àquele.
— Mas o mistério não acaba aí... — disse Brivaux, que esperava junto ao caminhão-
laboratório. — Foi você que chamou?
— Fui eu, velhinho...
— O que é que está acontecendo?
— Entre e verá... E eles viram...
Eles viram os quatro levantamentos, os quatro perfis, todos estranhos e semelhantes entre
si. O da nova sonda estava inscrito num filme de 3mm. Grey o havia seguido sobre a tela de
controle. Os outros membros da missão o viram sobre a tela do laboratório.
O que as outras três sondas tinham deixado supor, o novo aparelho mostrava com
evidência. Fazia desfilar sobre a tela, com uma nitidez que não deixava lugar a nenhuma
dúvida, perfis de escadas derrubadas, muros quebrados, cúpulas arrebentadas, rampas
helicoidais torcidas, todos os detalhes de uma arquitetura que uma mão gigantesca parecia ter
deslocado e destruído.
— Ruínas!... — disse Brivaux.
— Não é possível... — disse Grey, com uma voz que ousava apenas se fazer ouvir.
— E por quê? — indagou Brivaux, tranquilamente. Brivaux era filho de um pequeno
camponês da Alta-Savoia, o último de sua cidadezinha a continuar a criar vacas ao invés de
seguir os parisienses acumulados a dez por metro quadrado de neve ou de grama seca. O
velho Brivaux havia cercado seu pedaço de montanha de moirões e de arame-farpado —
"É proibida a entrada" —e nessa prisão vivia em liberdade.
O filho tinha herdado os olhos azul-claro, os cabelos negros e a barba avermelhada, além
do humor sempre igual e o senso de equilíbrio. Ele via as ruínas, como todos os que ali
estavam e sabiam interpretar um perfil. A diferença é que os outros não acreditavam, mas ele
acreditava porque os via. Se tivesse visto seu próprio pai lá no gelo, teria ficado espantado
durante um segundo, depois teria dito "olha aí meu pai..."
Mas os membros da missão não podiam deixar de se render à evidência. Os quatro
levantamentos se assemelhavam e se confirmavam uns aos outros. O desenhista Bernard foi
encarregado de fazer a síntese. Uma hora mais tarde, apresentava seu primeiro esboço. Não
parecia com nada que se conhecesse: era uma arquitetura gigantesca, destruída por alguma
força titânica, descomunal.
— A que profundidade estão estas coisas? — perguntou Elói.
— Entre novecentos e mil metros! — disse Grey com ar furioso, como se fosse
responsável pela enormidade do acontecimento.
— Isso significa que elas estão lá há quanto tempo?
— Não se pode saber... Nunca perfuramos tão profundamente.
— Mas os americanos já o fizeram — disse calmamente Brivaux.
— Sim... os russos também... — acrescentou Simon, para depois perguntar: — Eles teriam
podido datar suas amostras?
— Pode-se sempre... isso não quer dizer que seja exato.
— Exato ou não, eles dataram de quando?
Grey levantou os ombros diante do absurdo que ia dizer.
— Aproximadamente novecentos mil anos, há alguns séculos... Houve exclamações e
depois um silêncio estupefato.
Os homens reunidos no caminhão olhavam sucessivamente o esboço de Bernard e as
últimas linhas do perfil, imóveis sobre a tela. Acabavam de tomar consciência, de repente, da
imensidão da sua própria ignorância.
— Não pode ser — disse Elói... — Foram homens que fabricaram isso. Há novecentos mil
anos, não havia homens, só havia macacos.
— Quem lhe disse isso, meu caro? — disse Brivaux.
— O nosso conhecimento da história dos homens e da evolução da vida sobre a Terra —
observou Simon — não é maior do que um cocô de pulga na Praça da Concórdia...
— E então? — disse Elói.
— Sr. Lancieux, peço desculpas ao seu aparelho — disse Grey. Lancieux. Cornexquis.
Ninguém mais tinha vontade de chamá-lo assim, nem mesmo mentalmente. Não havia mais
lugar na cabeça desses homens para as brincadeiras de colegiais que os ajudavam
normalmente a suportar o frio e a lentidão do tempo. Lancieux mesmo não parecia mais com o
seu apelido. Seus olhos estavam cansados, suas faces encovadas, tragava seu cigarro apagado
e retorcido, e escutava Grey, sacudindo a cabeça com ar ausente.
— É uma mecânica sensacional — dizia o glaciólogo. — Mas há uma outra coisa...
Ninguém prestou atenção. Mostre-lhes... E diga-lhes o que você pensa...
Lancieux apertou o botão de rebobinagem, depois o botão vermelho, e a tela se iluminou,
mostrando novamente o lento desfile do perfil das ruínas.
— É ali que se deve observar — disse Grey.
Seu dedo mostrava, no alto da tela, embaixo do traçado tormentoso do subsolo, uma linha
retilínea apenas visível, finamente ondulada, de uma regularidade perfeita.
Efetivamente, ninguém havia prestado atenção, pensando talvez que fosse uma linha de
referência, um reparo, ou outro sinal qualquer, mas nada de significativo.
— Diga-lhes... — repetiu Grey. — Diga-lhes o que você me disse! No ponto em que
estamos...
— Preferiria — disse Lancieux com voz um pouco aflita — fazer primeiro uma
contraprova. Nenhuma das outras sondas registrou...
Grey cortou-lhe a palavra:
— Elas não são bastante sensíveis!
— Talvez — disse Lancieux com sua voz suave. — Mas não é certo... Talvez seja porque
elas não estejam na frequência exata...
Lançou-se, juntamente com Brivaux, numa discussão, à qual se juntaram logo os outros
técnicos do grupo, cada um sugerindo quais as modificações que, em sua opinião, convinha
fazer nas sondas.
O Dr. Simon encheu seu cachimbo e saiu.

Não sou um técnico. Não me debruço sobre meus doentes: faço isso o menos possível.
Antes procuro compreendê-los. Para agir assim é preciso poder. Mas eu sou um
privilegiado... Meu pai, que era médico em Puteaux, via desfilar mais de cinquenta clientes
por dia no seu gabinete. Como saber o que eles são, o que eles têm? Cinco minutos de
exame, a pinça para perfurar, o cartão, a máquina de diagnóstico, a receita impressa, o selo
de imposto, está pronto, pode se vestir, o seguinte. Ele detestava sua profissão tal como ele
e seus colegas eram obrigados a exercer. Quando se apresentou para mim a ocasião de vir
para cá, ele me empurrou pelos ombros com todas as suas forças: "Vai!
Vai! Você terá um punhado de homens para tratar. Uma cidade! Você poderá conhecê-
los..."
Ele morreu no ano passado, esgotado. Seu coração lhe falhou. Não tive nem tempo para
ir lá.
Ele nunca pensou em perfurar seu cartão pessoal e colocá-lo na fenda do seu médico
eletrônico. Mas pensou em me ensinar umas tantas coisas que havia aprendido com seu pai,
médico em Auvergne.
Por exemplo, a tatear o pulso, olhar uma língua e o branco dos olhos. É prodigioso o
que o pulso pode revelar sobre o interior de um homem. Não somente sobre o estado
momentâneo de sua saúde, mas sobre suas tendências habituais, seu temperamento, e
mesmo seu caráter, se ele é superficial ou profundo, agressivo ou suscetível, sedoso ou
áspero. Há o pulso do saudável e o do doente, há também o pulso da caça e o do caçador.
Tenho também, como todos os médicos, um diagnosticador e pequenos cartões. Que
médico não os tem? Só os uso para confortar aqueles que têm mais confiança na máquina
do que no homem.
Aqui, felizmente, eles não são muito numerosos. Aqui, o homem conta.

Quando Brivaux deixou a fazenda de seu pai, para fazer em Grenoble os estudos que o
apaixonavam, havia calmamente dado uma olhada no programa e transposto todos os
obstáculos. Tendo saído em primeiro lugar da escola eletrônica com um ano adiantado, pôde
transformar seu diploma de engenheiro numa ponte de ouro para qualquer grande indústria do
mundo. Mas escolheu a Base Victor. "Porque — explicava ele ao Dr. Simon, seu amigo —
tratar de eletrônica aqui, é divertido... Estamos a dois dedos do polo magnético, em pleno
vaivém das partículas ionizadas, em pleno sopro do vento solar, e mais uma quantidade
enorme de coisas que não se conhecem. Isso faz uma salada interessante. Pode-se fazer
"misérias"...
Ele abria os braços horizontalmente e agitava os dedos, como se convidasse as correntes
misteriosas da Criação a penetrar no seu corpo e a percorrê-lo. Simon sorria, imaginando-o
um Netuno da eletrônica, em pé sobre o polo, os cabelos plantados nas trevas do céu, sua
barba vermelha mergulhada nas chamas da Terra, seus braços estendidos no vento perpétuo
dos elétrons, distribuindo à Natureza os fluxos e refluxos vivos do planeta-mãe. Mas era
nessas "misérias" que ele manifestava uma espécie de gênio.
Seus grossos dedos cabeludos eram incrivelmente hábeis, e sua ciência, associada a um
instinto infalível, lhe dizia exatamente o que devia fazer. Ele sentia essas correntes assim
como os bichos sentem a água. E seus dedos hábeis começavam a agir. Três pontas de fio, um
circuito, três metais granulados semicondutores, que ele virava, juntava, colava, ligava.
Uma fumacinha, um cheiro de resina - e pronto, um quadrante começava a viver, um
arabesco palpitava na espessura da tela.
O problema que Lancieux lhe formulou não era um problema para ele. Em menos de uma
hora havia trocado as três sondas clássicas e as equipes se repartiam. O que iam procurar era
tão espantoso que todos estavam convencidos de que iam voltar, sem haver conseguido nada.
Afora Lancieux, que conhecia bem seu aparelho, os demais pensavam que a pequena linha
ondulada era efeito de um capricho da nova sonda. Um "fantasma", como dizem os técnicos de
televisão.
O sol se escondia por trás de uma montanha de gelo quando eles voltaram. Tudo estava
azul, o céu, as nuvens, o gelo, os rostos e o vapor que saía de suas narinas. O casaco vermelho
de Bernard estava cor de abóbora. Eles não tinham voltado sem nada conseguir.
A linha ondulada estava gravada em suas fitas registradoras, sob a forma de uma linha
reta. Menos detalhada, ela havia perdido sua pequena ondulação, mas ela estava lá. Bem que
haviam encontrado o que tinham ido procurar.
Comparando seus levantamentos e o de Lancieux, Grey pôde localizar um ponto certo do
solo subglacial. Projetou o perfil sobre a tela do snowdogg. Aquilo parecia representar um
pedaço gigantesco de escada, virado e quebrado.
— Meus filhos — disse Grey com uma voz controlada — lá... lá tem... Na mão esquerda,
segurava uma folha de papel que tremia. Calou-se, pigarreou. Sua voz não conseguia mais sair.
Batia na tela com seu papel que se amassava.
Engoliu a saliva, explodiu:
— Meu Deus, isso é loucura! Mas existe! As quatro sondas não podem ter enlouquecido
exatamente da mesma maneira! Não há somente ruínas, no meio dessa camada, lá, nesse lugar
aí, justamente aí, há um emissor de ultrassons que funciona!
Seria a pequena linha misteriosa o registro de um sinal enviado por um emissor que
funcionava, segundo toda lógica, há mais de novecentos mil anos? Tal suposição ultrapassava
a história e a pré-história, derrubava todos os credos científicos, não estava no alcance
daquilo que aqueles homens sabiam. O único que aceitava o acontecimento com calma era
Brivaux, o único nascido e educado no campo. Os outros, nas cidades, tinham crescido no
meio do provisório, do efêmero, do que se constrói, se queima, se desmorona e se transforma.
Ele, na vizinhança das rochas alpinas, tinha aprendido a ver a grandeza e a perscrutar a
eternidade das coisas.
— Vão pensar que estamos loucos — disse Grey.
Chamou a base pelo rádio e pediu o helicóptero com urgência para ir buscar o grupo.
Mas havia esquecido da rubéola. O último piloto disponível acabara de cair de cama. —
Tem o André que está melhorzinho — disse o rádio da base — dentro de três ou quatro dias
poderemos mandá-lo. Mas por que é que vocês querem voltar? O que foi que aconteceu?
Pegou fogo nas geleiras?
Grey cortou. Enfim, essa brincadeira boba adiantara de certo modo.
Dez minutos mais tarde, o chefe da base, Pontailler, chamava outra vez, muito preocupado.
Queria saber qual a razão da missão querer voltar. Grey tranquilizou-o, porém recusou-se a
dizer o que quer que fosse.
— Não bastará que eu lhe diga, é preciso que lhe mostre — disse — senão você vai
pensar que ficamos todos malucos. Mande-nos buscar logo que for possível.
E desligou.
Quando o helicóptero chegou ao ponto 612, cinco dias mais tarde, Pontailler estava nele e
foi o primeiro a saltar em terra.
Os homens de Grey haviam passado aqueles cinco dias numa excitação e numa alegria
crescentes. Acabado o estupor devido ao choque inicial, eles haviam aceito as ruínas, aceito o
emissor, e os haviam adotado. O próprio mistério e sua inverossimilhança os exaltavam assim
como crianças que entram numa floresta onde as fadas existem de verdade. Haviam acumulado
os levantamentos E os registros. Bernard, baseado nas coordenadas fornecidas pelos
aparelhos, trabalhava numa espécie de plano piloto, cheio de lapsos e de partes em branco,
mas que já tomava o aspecto de uma paisagem fantástica, mineral, deserta, desconhecida,
porém humana.
Brivaux havia trazido um magnetofone e o havia acoplado ao registrador da sonda nova.
Obteve uma fita magnética e convidou seus amigos para escutá-la. Eles não ouviram ruído
nenhum, nada de nada.
— Esse seu "troço" deve estar meio esburacado! — resmungou Elói...
Brivaux sorriu.
— Está tudo em silêncio — disse ele. — Vocês não podem ouvir os ultra-sons.
Mas eles estão lá, isso eu garanto. Para ouvi-los, seria preciso um redutor de frequência.
Eu não tenho. Na base também não há. Seria preciso ir a Paris.
Seria preciso ir a Paris. Esta foi também a conclusão de Pontailler que a princípio havia
recusado para depois aceitar a evidência da descoberta. Não se podia nem mesmo falar sobre
isso pelo rádio, com todos os ouvidos do mundo atentos noite e dia ao menor segredo. Era
preciso levar todos os documentos à sede em Paris. O chefe das Expedições Polares decidiria
o que e a quem comunicar. Enquanto esperavam, todos deviam ficar calados. Como dizia Elói,
"isso poderia ser algo de diferente".

Peguei o avião para Sidney, com duas semanas de atraso, e o desejo de voltar o mais
depressa possível. Não estava mais atormentado por aquele desejo de café creme. Nem um
pouco. Havia lá, embaixo do gelo, qualquer coisa de bem mais excitante que o odor dos
cafés parisienses.
O avião ganhou velocidade na pista, subiu no ar como uma bolinha de plástico sobre
um repuxo, virou um pouco no mesmo lugar à procura da sua direção; depois, com um ruído
ensurdecedor, atirou-se rumo ao norte e para cima, a 50 graus de inclinação. Apesar das
cadeiras reclinadas e acolchoadas como amas de leite, é engraçada a sensação que dá ao
subir, com tal inclinação e muita velocidade. O avião levava somente viajantes
experimentados e não corria o risco de quebrar as janelas por conta do bang. Então os
pilotos pouco ligavam para o resto...
Ele me levava com minhas valises e minha pasta, que continha, além da escova de
dentes e o pijama, os microfilmes dos levantamentos e do plano piloto de Bernard, a fita
magnética, as cartas de Grey e de Pontailler autenticando tudo isso.
Eu levava também, sem saber, o vírus da rubéola, que iria dar a volta ao mundo sob o
nome de rubéola australiana. Os laboratórios farmacêuticos fabricaram a toda pressa uma
nova vacina e ganharam muito dinheiro.
Só cheguei a Paris dois dias depois da minha partida. Ignorava que tinha se tornado
muito difícil atravessar os oceanos. No nosso isolamento de gelo, havíamos esquecido os
ódios estúpidos do mundo, que haviam crescido mais e se ramificado durante esses três
anos. A estupidez generalizada evocava para mim a ideia de cães enormes acorrentados uns
diante dos outros, cada um forçando a sua corrente, não pensando senão em rompê-la para
ir abocanhar o cão que estava à sua frente. Sem razão. Simplesmente porque é um outro
cão. Ou talvez porque esteja com medo...
Li os jornais australianos. Havia pequenos incêndios espalhados pelo mundo inteiro.
Eles haviam crescido depois da minha partida para a Antártida. E haviam-se multiplicado.
Em todas as fronteiras, à medida que se tiram as barreiras alfandegárias, barreiras
policiais as substituem.
Desembarcado no aeroporto de Sidney, não fui autorizado nem a sair nem a partir
novamente.
Faltava não sei qual visto militar no meu passaporte. Foram-me necessárias 36 horas
de discussão furiosa para finalmente poder pegar o jato com destino a Paris. Eu tremia com
a ideia de que eles pudessem meter o nariz nos meus microfilmes. Que teriam imaginado?
Porém ninguém me pediu para abrir a pasta. Poderia muito bem estar transportando os
planos das bases atômicas. Mas isso não os interessava. Precisavam do visto, nada mais.
Era a estupidez. Era o mundo organizado.
Logo que Simon lhe entregou o conteúdo de sua pasta, Rochefoux, chefe das Expedições
Polares Francesas, tomou-o na mão com sua energia habitual. Ele tinha quase 80 anos, o que
não impedia de passar todos os anos algumas semanas na proximidade de um ou de outro polo.
Seu rosto era cor de tijolo, seus cabelos curtos de um branco brilhante, seus olhos azul-
celeste, seu sorriso otimista, tornavam-no idealmente fotogênico para a televisão, que não
perdia uma oportunidade de entrevistá-lo, de preferência em primeiro plano.
Naquele dia, ele as havia convocado todas, as do mundo inteiro e toda a imprensa, no fim
da reunião da Comissão da UNESCO. Ele havia decidido que o segredo já havia sido
guardado durante, bastante tempo, e tinha a intenção de sacudir a UNESCO, como um fox-
terrier sacode um rato, a fim de poder obter toda a ajuda necessária, imediatamente.
Num grande escritório do 7º andar, os operadores do Centro Nacional de Pesquisas
Científicas acabavam de instalar seus aparelhos sob a direção de um engenheiro. Rochefoux e
Simon de pé diante da grande janela, olhavam os dois oficiais trotar seus cavalos alazões na
perspectiva retangular do pátio da Escola Militar.
A Praça Fontenoy estava cheia de jogadores de pelanque que sopravam nos dedos antes
de jogar as pesadas bolas.
Rochefoux pigarreou e virou-se. Não gostava nem dos ociosos nem dos militares. O
engenheiro informou que tudo estava pronto. Os membros da Comissão começaram a chegar e
a tomar lugar ao longo da mesa, diante dos instrumentos. Eram dois negros, dois amarelos,
quatro brancos e três mulatos. Mas o sangue de todos eles misturados, formaria um só sangue
bem vermelho. No momento em que Rochefoux começou a falar, a atenção e emoção deles
foram únicas.
Duas horas mais tarde, eles sabiam tudo, haviam visto tudo, haviam feito cem perguntas a
Simon. Rochefoux concluiu, mostrando sobre a tela um ponto do mapa que ali estava
projetado:
— La no ponto 612 do continente antártico, sobre o paralelo 88, sob 980 metros de gelo,
há os retos de qualquer coisa que foi construída por uma inteligência e há milênios emite um
sinal. Há novecentos mil anos, este sinal diz: "Estou aqui, eu os estou chamando, venham..."
Pela primeira vez, os homens vieram a ouvi-lo. Vamos hesitar? Nós salvamos os templos do
vale do Nilo. Mas a água sempre crescente da barragem de Assuã nos jogava para trás. Aqui,
evidentemente, não há necessidade, não há urgência! Mas há qualquer coisa de bem maior: há
o dever de conhecer, de saber. Chamam-nos. É preciso ir! Isto exige de nós meios
consideráveis. A França não pode fazer tudo. Ela fará a sua parte. E pede às outras nações
para se juntarem a ela. O delegado americano desejava alguns detalhes.
Rochefoux pediu-lhe que tivesse paciência, e continuou:
— Esse sinal, vocês o viram sob a forma de uma simples linha escrita sobre um
quadrilátero. Agora, graças aos meus amigos do Centre National de Recherches Scientifiques,
que o ouviram de todas as maneiras possíveis, vou fazê-los ouvir...
Fez sinal ao engenheiro, que colocou um novo circuito sob tensão. No começo, urgiu na
tela do osciloscópio uma linha reta luminosa como o mi de um violão, enquanto que se ouvia
um assobio superagudo que fez Simon caretear. O negro mais negro passou a língua sobre os
lábios ressequidos. O branco mais louro colocou seu dedo indicador no ouvido e agitou-o
violentamente. Os dois amarelos fecharam completamente a brecha dos seus olhos. O
engenheiro do CNRS apertou lentamente um botão. O som superagudo tornou-se agudo. Os
músculos se distenderam. Os maxilares se relaxaram. O agudo baixou, o assobio tornou-se um
trinado. Começaram a tossir e a limpar a garganta. Sobre a tela do osciloscópio a linha reta
tinha-se tornado ondulada.
Lentamente, lentamente, a mão do engenheiro fazia descer o sinal, do agudo ao grave, em
toda a escala das frequências. Quando chegou ao limite dos infrassons, foi como uma massa de
feltro batendo na pele de um tambor gigantesco. E cada batida fazia tremer os ossos, a carne,
os móveis, os muros da UNESCO até suas raízes. Era semelhante às batidas de um coração
enorme, o coração de um animal inimaginável, o coração da própria Terra.
No dia seguinte, lia-se nos títulos da imprensa francesa: "A maior descoberta de todos os
tempos", "Uma civilização congelada", "A UNESCO vai derreter o Polo Sul".
Um jornal inglês perguntava em sua manchete principal: "Quem ou quê?"
Em redor de uma mesa em forma de meia-lua estão os Vignont, família francesa: o pai, a
mãe e um casal de filhos. Na tela da tevê, penduradas na parede diante deles veem o jornal
televisionado, enquanto jantam. Os pais dirigem uma loja da União Europeia de Calçados. A
filha segue um curso na Escola de Artes Decorativas. O filho se arrasta entre o segundo e o
terceiro ano do ginásio.
Na tela assiste-se à entrevista de uma etnóloga russa, transmitida diretamente pelo satélite.
Ela fala em russo, com tradução simultânea.
— A senhora pediu para fazer parte da expedição encarregada de elucidar o que se chama
o mistério do Polo Sul. A senhora espera encontrar traços humanos sob mil metros de gelo?
A etnóloga sorri.
— Se existe uma cidade, ela não foi construída por pinguins...
Não existem pinguins no Sul. Só existem m anchots. Mas uma etnóloga não é obrigada a
saber disso.
O Secretário Geral da UNESCO anuncia que os Estados Unidos, a URSS, a Inglaterra, a
China, o Japão, a União Africana, a Itália, a Alemanha, e outras nações fizeram saber que
dariam todo o seu apoio material à empreitada de degelo do ponto 612. Os preparativos vão
ser apressados. Tudo estará pronto em princípio do próximo verão polar.
A televisão fazia entrevistas com populares:
—Você sabe onde é o Polo Sul?
— Bem... eu...
— E você?
— Ora... é lá em baixo...
— E você?
— É ao sul!
— Bravos. Você gostaria de ir lá?
— Eu não, bolas.
— Por quê?
— Bem, deve fazer muito frio.
— Na mesa em forma de meia-lua, a mãe Vignont sacudiu a cabeça: — Como eles são
bobos de fazer essas perguntas assim! Refletiu um segundo e depois acrescentou:
— É claro que lá não deve fazer calor... O pai Vignont replicou: — Imagine só o que isso
vai custar em dinheiro! Seria muito melhor que eles construíssem parqueamentos...
Na tela apareceu o plano piloto de Bernard.
— Mas mesmo assim é um bocado gozado encontrar isto naquele lugar — disse a mãe.
— Não é novo — disse a filha - é pré-colombiano...
O filho nem olhou. Enquanto comia, lia as historinhas de aventuras de Billy Kid. Sua irmã
o sacudiu.
— Olha um pouco! Não é gozado? Ele sacudiu os ombros.
—Besteiras — disse ele.
Um engenho monstruoso afundava-se no flanco da montanha de gelo, projetando atrás de si
uma nuvem de fragmentos transparentes que o sol atravessava e coloria com um arco-íris.
A montanha já estava cortada por umas trinta galerias em volta das quais haviam instalado,
no coração vivo do gelo, os entrepostos e os emissores de rádio e televisão da EP1 —
Expedição Polar Internacional. A cidade na montanha chamava-se EPI-1 e a que estava
abrigada sob o gelo no platô 612 chamava-se EPI-2. Esta compreendia todas as outras
instalações e a pilha atômica que fornecia a força, a luz e o calor às duas cidades protegidas e
a EPI-3, a cidade da superfície composta dos hangares, dos veículos e de todas as máquinas
que atacavam gelo de todas as maneiras que a técnica podia imaginar.
Jamais uma empreitada internacional desse tamanho fora realizada. Parecia que os homens
haviam encontrado, com alívio, a tão sonhada ocasião de esquecer ódios, de confraternizar
num esforço totalmente desinteressado.
A França era a potência que convidara, o francês tinha sido escolhido como língua de
trabalho. Mas para tornar as relações mais fáceis, o Japão havia instalado na EPI-2 uma
máquina tradutora de ondas curtas. Ela traduzia imediatamente discursos, os diálogos que lhe
eram transmitidos, e emitia a tradução em dezessete línguas sobre dezessete ondas diferentes.
Cada sábio, cada chefe de equipe e técnico importante, havia recebido um receptor adesivo,
que não era maior que uma ervilha, no comprimento de onda da sua língua materna, que e
mantinha permanentemente no ouvido, e um emissor-alfinete que levava geralmente preso à
lapela ou ao ombro. O manipulador de bolso, da espessura de uma moeda, lhe permitia se
isolar do barulho das mil conversas quando dezessete traduções se misturavam no éter, numa
confusão de Babel, e permitia lecionar o diálogo do qual se desejava participar.
A pilha atômica era americana, os helicópteros pesados eram russos, as roupas
acolchoadas eram chinesas, as botas finlandesas, o uísque escocês e a cozinha francesa.
Havia máquinas e aparelhos ingleses, alemães, italianos, canadenses, carne da Argentina e
frutos de Israel. O condicionamento de temperatura e o conforto no interior do EPI-1 e 2 eram
americanos. E eram tão perfeitos que poderiam receber visita de mulheres.
Um poço se afundava no gelo translúcido, partindo numa linha vertical do ponto onde
havia sido localizado o emissor do sinal. Tinha onze metros de diâmetro. Uma torre de ferro
semelhante a um derrick o dominava, trepidante de motores, fumegante de vapores, que o
vento transformava em echarpes de neve. Dois elevadores levavam para as profundezas os
homens e o matéria" que se afundavam cada dia um pouco, rumo ao coração do mistério.
A 917 metros, os mineiros do frio encontraram um pássaro no gelo. Era vermelho, com o
peito branco, as patas alaranjadas, uma crista da mesma cor, o bico amarelo, largo,
entreaberto, o olho ruço e preto, brilhante. Tinha as asas meio abertas, distorcidas, a cauda em
leque, as patas bem abertas como se tentasse frear, dando a impressão de se debater numa
rajada de vento que o pegara por trás. Estava eriçado como uma chama.
Recortaram ao seu redor um cubo de gelo e ele foi enviado para a superfície...
O comitê diretor da expedição decidiu deixá-lo em sua embalagem natural. Foi colocado
num refrigerador transparente, e os sábios começaram a discutir sobre o seu sexo e sua
espécie. A tevê tornou sua imagem conhecida no mundo inteiro.
Quinze dias mais tarde, em plumas, em pelúcia, de seda, de lã, de plástico, de madeira e
de penas, ele inundava a moda e as lojas de brinquedos. No fundo do poço os entalhadores de
gelo tinham atingido as ruínas.
O Professor João de Aguiar, delegado do Brasil, presidente em exercício da UNESCO,
subiu à tribuna e virou-se para a assistência. Estava de casaca. Na grande sala de
conferências, havia naquela tarde não somente sábios, diplomatas e jornalistas, mas também o
tout-Paris muito parisiense e o tout-Paris internacional.
Acima da cabeça do Professor Aguiar, a maior tela de tevê do mundo ocupava quase toda
a parede do fundo. Ela ia receber e mostrar em relevo holográfico a emissão vinda do fundo
do poço, emitida pela antena do EPI-1 e retransmitida pelo satélite Trio.
A tela iluminou-se. O busto gigantesco do presidente apareceu, em cores pastéis, um pouco
enfeitadoras, em relevo perfeito.
Os dois presidentes, o pequeno em carne e osso e sua grande imagem, ergueram a mão
direita num gesto amigável e falaram. Isto durou sete minutos. Concluiu informando: "Uma
sala pôde ser talhada no gelo, no meio das ruínas extraordinárias. Salvo alguns heroicos
pioneiros da ciência humana que cruzaram o poço com sua técnica e sua coragem, ninguém
ainda no mundo as viu. E o mundo inteiro vai, dentro de um instante, descobri-las. Quando eu
apertar este botão, graças ao milagre das ondas, lá, do outro lado do mundo, os projetores se
iluminarão e a imagem daquilo que talvez tenha sido a primeira civilização do mundo, á
enviada a todos os lares da civilização de hoje..."
Na sua pequena cabina, o realizador vigiava na tela de controle a imagem do presidente.
Os dois abaixaram o dedo polegar ao mesmo tempo. Nos confins do mundo a sala de gelo
iluminou-se.
O que logo viram todos os espectadores foi um cavalo branco. Ele estava de pé, por trás
da superfície de gelo. Magro, grande, alongado, parecia prestes a cair de lado, relinchando de
medo, os lábios arreganhados sobre os dentes, sua crina e sua cauda flutuavam, imóveis, há
novecentos mil anos.
O tronco partido de uma árvore gigantesca estava caído e atravessado atrás dele. Nas
palmas de sua folhagem, no teto da sala, aparecia a goela aberta de um tubarão. Um lance de
escadas enormes, ou de pequenos degraus amarelos, descendo da noite, se perdiam na
escuridão.
Em frente, uma flor flamejante, grande como uma rosácea de catedral, espalhava três
quartos de suas pétalas púrpuras. À sua direita, erguia-se um trecho destruído de muro cor-de-
rosa, de uma matéria desconhecida, que não era completamente opaca. Aí se abria uma
espécie de porta, ou de janela, através da qual se viam, imóveis, um pequeno roedor com a
cauda em pé, as patas para o ar, e um bando de ouriços azuis. Mais abaixo, notava-se o pico
de uma larga pista helicoidal feita de um metal que parecia com o aço. Tudo envolto na bruma
de um mundo gelado.
A segunda operação começou. Uma mangueira de ar foi dirigida para a parede onde estava
um pedaço de muro. Aos olhos do mundo inteiro, o primeiro fragmento do passado
embalsamado ia ser libertado da sua canga.
O ar quente jorrou, afundando-se no gelo que começou a derreter. Uma mangueira de
sucção aspirava a lama que se formava, uma outra engolia a água da fonte e tornava a enviá-la
à superfície.
A parede de gelo começou a diminuir, recuar, até que o muro verde apareceu. E sobre as
telas, a imagem distorcida, deformada pelas gotas que escorriam das câmaras blindadas,
mostrou esse fenômeno inacreditável: o muro fundiu ao mesmo tempo que o gelo...
Os ouriços e o roedor de patas para o ar derreteram-se e sumiram. O ar quente havia
invadido toda a sala. Todas as paredes se fundiam. Do teto, cataratas corriam sobre os homens
de escafandros. As palmas da árvore se derreteram. A goela do tubarão derreteu-se como um
chocolate. Duas das pernas do cavalo e o seu flanco se derreteram. O interior do seu corpo
apareceu, vermelho e fresco. A flor vermelha transformou-se em água sangrenta.
O ar morno atingiu o alto da pista helicoidal de aço, e o aço se fundiu.
Os jornais exploraram com sensacionalismo o assunto. As suas manchetes diziam: "A
maior decepção do século". "A cidade embalsamada não era senão um fantasma". "Milhões
engolidos por uma miragem".
Uma entrevista televisionada de Rochefoux colocou as coisas no lugar. Ele explicou que a
enorme pressão sofrida durante milênios havia dissociado os corpos mais resistentes até suas
moléculas. Mas o gelo mantinha na sua forma primitiva a poeira impalpável na qual eles se
tinham transformado. Ao fundirem-se, a poeira os libertava e eram arrastados pela água.
— Vamos adotar uma nova técnica — acrescentou Rochefoux. — Recortaremos o gelo
com os objetos que ele contém. Não renunciamos a descobrir o segredo dessa civilização que
nos vem da noite dos tempos. O transmissor de ultra-sons continua a emitir seu sinal.
Nós continuamos a descer em sua direção...
A 978 metros abaixo da superfície do gelo, o poço atingiu o solo do continente. Mas o
sinal emitido vinha do subsolo.
Depois de ter se enfiado no gelo, o poço afundou-se mais dentro da terra, e depois dentro
da rocha. Em seguida, esta apareceu muito dura, vitrificada, como se tivesse sido cozida e
comprimida, e que depois se enrijecesse cada vez mais. Sua consistência deixou os geólogos
desconcertados. Ela apresentava uma dureza, uma compacidade desconhecida em qualquer
outro ponto do globo. Era uma espécie de granito, mas as moléculas que o compunham
pareciam ter sido ordenadas e arrumadas para ocupar um mínimo de lugar possível e oferecer
um máximo de coesão. Depois de ter quebrado uma quantidade de ferramentas mecânicas,
chegamos finalmente ao fim da rocha, e a 107 metros abaixo do gelo, encontramos areia. Esta
areia era um absurdo geológico. Não poderia ser encontrada aí. Rochefoux, sempre otimista,
dizia que ela deveria ter sido trazida para aquele lugar. Isto era uma prova de que estávamos
no bom caminho.
O sinal continuava chamando, cada vez mais para o fundo. Era preciso continuar
descendo.
Continuamos.
2

APÓS ATINGIRMOS A AREIA, fomos obrigados a fechar o poço antes mesmo de tê-lo
cavado, enfiando um invólucro metálico na areia, tão seco e móvel quanto a de uma ampulheta
e que escorria como água.
A dezesseis metros abaixo da rocha, um mineiro seguro pelas cordas começou a fazer
gestos frenéticos e a gritar qualquer coisa que sua máscara contra poeira tornava
incompreensível. O que ele queria dizer é que sentia qualquer coisa dura sob seus pés.
O aspirador, enfiado na areia, subitamente começou a fazer barulho e a vibrar até que seu
tubo achatou-se. Higgins, o engenheiro, que do alto da plataforma supervisionava os trabalhos,
desligou o motor. Juntou-se aos mineiros, e começou a escavar com precaução, primeiro com
a pá, depois com a mão, depois com uma vassoura.
Quando Rochefoux desceu, acompanhado de Simon, de Brivaux, da atraente antropologa
Leonova, chefe da delegação russa, e do químico Hoover, chefe da delegação americana,
encontraram no fundo do poço, já limpa de toda a areia fina, uma superfície metálica,
ligeiramente convexa, unida, de cor amarela.
Hoover pediu que parassem os motores, mesmo o da ventilação, e que todos se
abstivessem de falar ou de mexer.
Houve então um silêncio extraordinário, protegido dos barulhos da Terra por cem metros
de rocha e um quilômetro de gelo. Hoover ajoelhou-se e o seu joelho esquerdo estalou. Com o
dedo indicador dobrado, ele bateu na superfície do metal. Ouviu-se somente um barulho
frágil: aquele da carne frágil de um homem de encontro a um obstáculo maciço.
Houver tirou um martelo de cobre da sua maleta e bateu no metal, primeiro suavemente,
depois com grandes golpes. Não houve nenhuma ressonância.
Hoover resmungou e inclinou-se para examinar a superfície. Não tinha marca nenhuma dos
golpes. Tentou ver se tirava uma amostra. Mas sua tesoura de tungstênio escorregou sobre a
superfície e não conseguiu prendê-la.
Então jogou diferentes ácidos que logo examinava com espectroscópio portátil.
Levantou-se. Estava perplexo.
— Não compreendo o que o torna tão duro. Ele é praticamente puro.
— Ele, por que ele? Que metal é este? — Leonova perguntou irritada.
Hoover era um gigante avermelhado, barrigudo e bonachão, com movimentos lentos.
Leonova era miúda e morena, nervosa. Era a mulher mais bonita da expedição. Hoover
olhou-a sorridente.
— O quê! Você não reconheceu? Você, uma mulher?... É ouro!...
Brivaux tinha feito seu aparelho registrador funcionar. O papel se desenrolava. A delgada
linha registradora aparecia sem um colchete, sem uma interrupção.
O sinal vinha do interior do ouro.
Parecia que o poço tinha atingido uma grande esfera, não exatamente no seu cimo, mas um
pouco do lado. Uma grande parte da superfície fora limpa, mas pelos lados tudo parecia
afundado em areia.
Limparam o ponto mais alto da esfera e o transpuseram. Logo depois fizeram a primeira
descoberta reveladora. No metal aparecia uma série de círculos concêntricos, o maior tendo
mais ou menos três metros de diâmetro. Esses círculos eram compostos de uma fileira de
dentes agudos e baixos inclinados como para funcionar no sentido de uma rotação.
— Isto parece a extremidade de uma escavadora — disse Hoover. — Para fazer um
buraco! Para sair de lá de dentro!...
— Você acredita que seja oco e que exista alguém lá dentro? — disse Leonova.
Hoover fez uma careta.
— Talvez...
Ele acrescentou:
— Antes de pensar em sair, foi preciso que eles entrassem. Em algum lugar deve existir
uma porta!...
Duas semanas depois do primeiro contato com o objeto de ouro, os diversos instrumentos
de sondagem haviam fornecido bastantes conhecimentos para que pudessem tirar conclusões
provisórias:
O objeto parecia ser uma esfera pousada sobre um pedestal, o todo colocado num bolso
cheio de areia e afundado numa rocha artificialmente endurecida A areia serviria sem dúvida
para isolar o objeto dos abalos sísmicos e de todos os movimentos terrestres. A esfera e seu
pedestal pareciam estar solidários e formar um só bloco. A esfera tinha 27 metros e 42 de
diâmetro e era oca. A espessura de sua parede era de 2m92.
Resolveu-se começar por tirar toda a areia e a esvaziar o bolso rochoso para soltar o
objeto de ouro, pelo menos até a metade.

A letra A marca a porção do bolso rochoso desembaraçada de areia. A letra B indica a


porção ainda cheia de areia. Na letra C inicia-se a extremidade do poço. O E designa a esfera
e o P o pedestal. Continuávamos a chamar assim a este último, embora ficasse depois evidente
que ele não servia de maneira nenhuma de suporte para a esfera. A sondagem havia revelado
que ele era oco como esta última.
Um desenho mostra a realidade, os números são inexpressivos. Para materializar o que
representavam os 27 metros de diâmetro da esfera, é preciso se dizer que é a altura de um
prédio de dez andares. E, tomando em consideração a espessura da sua parede, restava ainda
lugar, no interior, para um prédio de oito andares.
O número 1 marca o lugar da cabeça da máquina de perfurar.
O número 2 marca o lugar da porta. Pelo menos supunha-se que se tratasse de uma porta.
Era um círculo de um diâmetro um pouco superior ao da mão de um homem, desenhado na
parede pelo que parecia ter sido uma solda.
Do momento em que descobrimos a porta, uma ponte provisória foi colocada na areia para
receber sábios e técnicos que desciam numa espécie de caixa improvisada e que podia ser
dirigida.
Brivaux fez com que seu pequeno aparelho de quadrantes passeasse ao longo de toda a
circunferência.
— Está soldada por todos os lados — disse ele — em toda a sua espessura.
— Dê-nos a espessura do centro — pediu Leonova.
Colocou seu aparelho no centro do círculo e leu o número sobre o quadrante:2m92.
Era a largura geral da parede da esfera.
— Uma vez a marmita cheia, soldaram a tampa — disse Hoover. — Isto dá mais a ideia
de um túmulo do que de um abrigo.
— E a perfuratriz? — disse Leonova. — É para fazer sair o quê? O gato?
— Vai ver que naquele tempo nem existia gato, minha bonequinha —disse Hoover.
Com a sua cordial má educação americana, que tinha sido agravada pelos inúmeros anos
vividos em Paris, no Quartier Latin e em Montparnasse, ele quis passar seu dedo indicador
sob o queixo dela.
Seu dedo tinha o tamanho e a cor de um salsichão, com manchas de sardas coberto de
pelos ruivos.
Furiosa, Leonova deu um tapa na mão que subia em direção ao seu rosto — Ela morde! —
disse Hoover sorrindo. — Ora, boneca, vamos subir. Passe primeiro...
A caixa podia levar duas pessoas, mas Hoover contava por três. Ele ergueu Leonova como
uma pluma e colocou-a sobre um banquinho de ferro. Gritou — Puxem!
A caixa começou a subir. Ouviu-se um barulho e gritos. Alguma coisa atingiu Hoover na
altura das canelas, ele caiu para trás e sua cabeça bateu contra um obstáculo duro. Ouviu um
estalo no interior do seu crânio e desmaiou. Acordou num leito da enfermaria. Simon,
inclinado sobre ele, olhava-o com um sorriso otimista. Hoover bateu duas ou três vezes as
pálpebras para sair daquela espécie de inconsciência e perguntou bruscamente: — E a moça?
Simon sacudiu a cabeça com uma careta tranquilizadora.
— O que foi que aconteceu? — perguntou Hoover.
— Um desmoronamento. Toda a parede acima do corredor caiu.
— Há feridos?
— Dois mortos...
Simon havia pronunciado estas palavras em voz baixa, como se tivesse vergonha de fazê-
lo. Os dois primeiros mortos da expedição... Um mineiro do agrupamento e um marceneiro
francês. Companheiros do dever, que trabalhavam no cofre. Houve também quatro feridos,
entre os quais um eletricista japonês em estado grave.
O corredor está designado no desenho pela letra D.
Na parede de rocha desenhava-se uma abertura que deve ter sido retangular e que
cumulava uma mistura caótica de pedaços de rocha, de uma espécie de cimento e de formas
metálicas retorcidas e devolvidas à sua origem mineral Entre essa abertura e a porta da esfera,
haviam encontrado na areia a mesma espécie de destroços, que eles haviam cuidadosamente
embrulhado e enviado à superfície, para exame e análise.
O corredor tinha sido chamado assim porque os sábios pensavam que ele fosse o fim de
uma passagem, mas suas proporções faziam crer mais num esboço de uma sala bastante ampla.
Fosse como fosse, era sem dúvida a partir de lá que os homens do passado — se se tratassem
de homens, mas o que mais poderia ser? — tinham atravessado e endurecido a rocha, trazido a
areia e construído a esfera. Era o cordão umbilical a partir de que esta se desenvolvia na sua
placenta rochosa. Era claro que o corredor vinha de alguma parte e podia para lá nos
conduzir. Íamos abrir passagem através dele, mas antes tínhamos de explorar a esfera,
conforme havia decidido a assembleia de sábios.
— E eu, o que é que tenho?
Hoover quis apalpar seu crânio, mas os dedos não chegavam até lá: sua cabeça estava
envolta numa espessa atadura.
— Está quebrada? — perguntou Hoover.
— Não. O couro cabeludo se abriu, houve uma contusão no osso, e um pequeno pedaço de
granito enfiou-se no occipital. Já o extraí, não estava muito fundo. Está tudo bem agora.
— Brrruu... — fez Hoover.
Relaxou-se e afundou-se com prazer no travesseiro.
No dia seguinte, ele já assistia à reunião de informação, na Sala das Conferências.
Quando subiu ao pódio para tomar lugar à mesa do comitê diretor do EPI percebeu
primeiro uma onda de risos. Havia saído do leito para vir, e havia simplesmente enfiado seu
robe de chambre cor de framboesa amassada com pequenas meias-luas azuis e verdes.
Seu ventre volumoso erguia a faixa da cintura e uma das pontas caía até suas botas de pele
de urso branco, que usava para andar dentro de casa. Sua atadura redonda em forma de
turbante acabava de lhe dar um ar extravagante, que provocava risos à primeira vista,
Rochefoux, que presidia a sessão, levantou-se e abraçou-o. Uma onda de aplausos cobriu a
onda de risos. Todo mundo gostava de Hoover, e todos sabiam que ele tinha sido vítima de um
acidente.
A sala estava cheia. Havia lá, além dos sábios e dos técnicos vindos de todas as
fronteiras, uma dúzia de jornalistas representando as maiores agências do mundo, que
dispunham, na tribuna da imprensa, de receptores individuais de tradução.
Sobre uma grande tela, atrás do pódio, apareceu uma vista geral do bolso rochoso
iluminado pelos projetores.
Uns trinta homens ali trabalhavam ativamente, vestidos de vermelho ou laranja, capacetes
na cabeça e máscara pendurada no pescoço, pronta para ser utilizada imediatamente. A metade
superior da esfera, emergindo da areia e do solo, brilhava suavemente, enorme e tranquila,
ameaçadora também por causa do seu volume, do seu mistério, e pelo desconhecido que
encerrava.
Com uma voz cantante, um pouco monótona, Leonova fez o resumo dos trabalhos, e a
tradutora começou a cochichar em todos os ouvidos, em dezessete línguas diferentes.
Leonova calou-se, ficou um instante sonhadora, e recomeçou:
— Não sei o que lhes sugere a vista dessa esfera, mas a mim ela faz pensar num grão.
Na primavera, o grão devia germinar. A perfuratriz telescópica, é a haste que deveria se
desenvolver e abrir caminho até a luz, e o pedestal oco estava lá para receber os entulhos...
Mas o verão não veio e o inverno dura desde novecentos mil anos... No entanto, eu não
quero, eu não posso acreditar que o grão esteja morto!...
Fez uma pausa, observou a plateia e disse em voz alta:
— Existe o sinal!
Um jornalista levantou-se e perguntou no mesmo tom veemente:
— Então o que é que vocês estão esperando para abrir a porta? Leonova, espantada, olhou
e respondeu num tom que havia se tornado glacial:
— Nós não a abriremos.
Um murmúrio de surpresa percorreu a assistência. Rochefoux levantou-se sorrindo e
colocou os pontos nos ii.
— Nós não abriremos a porta — disse ele — pois é possível que a ela esteja ligado algum
dispositivo de segurança ou de destruição. Iremos abrir aqui.
Com uma vara de bambu ele tocou na imagem, apontando um lugar situado no alto da
esfera.
— Mas há uma dificuldade. Nossas perfuratrizes quebraram os dentes sobre este metal.
Ele também não se funde com maçarico oxídrico. Ou melhor, ele se funde mas torna a se
fechar em seguida. Como se alguém abrisse a carne com um escalpelo, e que a carne
cicatrizasse imediatamente depois da lâmina, passar. É um fenômeno cujo mecanismo nós não
compreendemos, mas que se passa na escala molecular. Devemos, para poder abrir caminho
nesse metal atacá-lo ao nível das moléculas, dissociá-las. Esperamos um novo maçarico que
usa ao mesmo tempo o laser e o plasma. Logo que nós o tivermos recebido, começaremos a
operação A: Abertura...
O poço de gelo e rocha conduzia a um poço de ouro. Um buraco de dois metros de
diâmetro afunda-se na crosta da esfera. No fundo do buraco, dentro de uma luz dourada, um
cavaleiro de branco ataca um metal com uma lança de luz. Vestido de amianto, com uma
máscara de vidro e de aço, é o engenheiro inglês Lister munido do seu plaser. Uma voz
explica que a palavra plaser foi formada pela conjunção das duas palavras plasma e laser, e
que este maravilhoso e gigantesco maçarico foi construído graças à colaboração das
indústrias inglesa e japonesa.
Sobre a tela de tevê a imagem recua descobrindo a parte de cima do poço de ouro.
Sobre a plataforma que o cerca, técnicos de laranja e de vermelho seguram os cabos,
dirigem câmaras ou projetores. O calor que sobe do buraco faz com que seus rostos
transpirem abundantemente.
A tela da tevê é dobrável e está pendurada sobre um guarda-sol à beira de uma piscina em
Miami. Um homem gordo e congestionado, vestido de um calção muito curto, estirado sobre
uma rede que se balança ao sopro de um ventilador, suspira e passa sobre o peito um
guardanapo esponjoso. Ele acha que é desumano mostrar um tal espetáculo a alguém que já
esteja sentindo tanta dor.
O comentador recorda as dificuldades a que tiveram de se sujeitar os sábios do EPI.
Em particular, as dificuldades climatéricas. Em seguida, a câmara focaliza a superfície do
local das pesquisas.
Sobre a tela, uma tempestade terrível assola o EP1-3. Fantasmas de veículos que
transportam dum edifício ao outro suas silhuetas amarelas, a coberta batida pela neve que o
vento leva horizontalmente, a duzentos e quarenta quilômetros a hora. O termômetro marca 52°
abaixo de zero.
O homem gordo congestionado torna-se lívido, embrulha-se na toalha batendo do os
dentes.
Numa casa japonesa a tela substituiu, sobre a parede de papel, a gravura tradicional.
A dona da casa, ajoelhada, serve o chá. O comentador fala calmamente te. Diz ele que o
fundo do poço não tem mais que alguns centímetros de espessura e que um buraco vai ser feito
para permitir a introdução de uma câmara de tevê em seu interior. Dentro de alguns instantes
os espectadores do mundo inteiro vão penetrar na esfera junto com a câmara e conhecer
finalmente o seu mistério.
Leonova, dentro de uma roupa de amianto, juntou-se a Lister no fundo do poço.
Hoover, muito grandalhão, teve que ficar em cima com os técnicos. Deitou-se de barriga
na beira do buraco e gritou recomendações a Leonova que não o entendeu.
Ela está ajoelhada ao lado de Lister. Uma espécie de escudo blindado colocado diante das
suas coxas os protege. A língua de fogo penetra no ouro que derrete e se transforma em ondas
de luz.
De repente, ouve-se um grito superagudo. A chama, as faíscas, a fumaça são violentamente
aspiradas para baixo. O pesado escudo cai no chão de ouro, Leonova oscila, Hoover grita e
xinga, Lister agarra-se ao plaser. Um técnico já cortou a corrente. O berro transforma-se num
assobio que passa do agudo ao grave e para. Leonova põe-se de pé, tira sua máscara e fala no
seu microfone. Anuncia calmamente que a esfera está furada.
Contrariamente ao que todos poderiam crer, fazia mais frio no interior do que no exterior,
o que provocou esta violenta sucção de ar. Agora, o equilíbrio está estabelecido. Iam então
arredondar o buraco e descer a câmara.
Simon está em cima da esfera ao lado de Hoover e de Lanson, engenheiro inglês de tevê
que dirige a descida do cabo mais grosso. A extremidade do cabo estava atravessada por duas
lentes superpostas: a de um projetor em miniatura e a de uma mini câmara.
No fundo do poço Leonova agarrou o cabo com suas duas mãos enluvadas e o introduziu
no buraco negro. Depois de deixá-lo penetrar mais ou menos um metro, ela ergueu os braços.
Lanson parou a progressão do cabo. Está tudo preparado — disse ele a Hoover.
— Esperem-me — disse Leonova.
Ela subiu para a plataforma, para olhar junto com todos os homens presentes a tela do
receptor de controle colocada na borda do poço.
— Comece! — disse Hoover. Lanson virou-se para um técnico:
— Luz!
Sobre o assoalho de ouro o olho do projetor se ilumina, o da câmara olha. A imagem sobe
ao longo do cabo, atravessa a tempestade, jorra do alto da antena do EP1-1 em direção ao
satélite Trio imóvel no grande vazio negro do espaço, ricocheteia nos outros satélites e cai em
forma de chuva em todas as telas do mundo.
A imagem aparece sobre a tela de controle. Não há nada. Nada além de um lento
torvelinho acinzentado que a luz do mini projetos tenta em vão perfurar. Isto parece com um
inútil esforço de uma lanterna de carroça dentro de uma forte neblina londrina.
— Poeira! — disse Hoover. — Poeira horrível!...
A poeira provocada pela corrente de ar causara esses turbilhões...
— Mas como a danada dessa poeira pôde entrar na esfera tão hermeticamente fechada? —
perguntou Lanson, com ar de espanto.
Um transmissor lhe responde. É Rochefoux que fala da Sala de Conferências.
— Faça saltar rapidamente o fundo da caixa — disse ele. — E vá ver.
O fundo do poço estava aberto. Sobre a plataforma, a equipe estava pronta, para descer.
Ela se compunha de Higgins, Hoover, Leonova, Lanson e suas câmeras sem filme, o africano
Shanga, o chinês Lao, o japonês Hoi-To, o alemão Henckel e Simon.
Era muita gente, perigosamente gente demais. Mas era necessário dar uma satisfação à
suscetibilidade das delegações.
Rochefoux que se sentia muito cansado, havia cedido seu lugar a Simon. A presença de um
médico aliás poderia ser útil.
Simon, sendo o mais jovem, solicitou e obteve licença para descer em primeiro lugar.
Estava vestido com um macacão aquecido, cor de limão, com botas de feltro cinza e um
chapéu de astracã. Um termômetro de exploração havia revelado que a temperatura no interior
era de 37 graus positivos.
Ele levava uma lâmpada frontal, uma máscara de oxigênio pendurada no pescoço e à
cintura um revolver que tinha tentado recusar, mas que Rochefoux o havia obrigado a aceitar:
não se sabia o que se ia encontrar ao descer.
Uma escada metálica que serviria de antena estava fixada na borda do poço e pendurada
no desconhecido. Simon colocou seu capacete e começou a descer. Viram-no desaparecer na
claridade dourada, e depois na escuridão.
— O que é que você está vendo? — gritou Hoover. Houve um silêncio, depois o
transmissor disse:
— Pisei firme! Aqui tem um assoalho...
— Mas, por favor, o que é que você está vendo? — perguntou Hoover — Nada... não há
nada para ver...
— Vou descer! — disse Hoover.
Agarrou-se à escada metálica. Seu macacão era cor-de-rosa. Ele usava um boné de lã
grossa verde, de tricô, encimado por um pompom colorido.
— Você vai quebrar tudo! — disse Leonova.
— Não peso nada — disse ele. — Sou como um grande floco... Ajustou sua máscara e
sumiu. Lanson, sorrindo, dirigiu a câmara na sua direção.

Eu estava de pé sobre o assoalho de ouro, na peça redonda e vazia. Uma poeira ligeira
espalhava seus véus ao longo do muro de ouro circular, atravessado por milhões de
alvéolos que pareciam jeitos para conter alguma coisa e que não continham nada.
Os outros desciam, olhavam e se calavam. A poeira quase invisível velara o feixe das
lâmpadas frontais, e enfeitava com uma auréola nossas silhuetas mascaradas.
Depois vieram os dois eletricistas com seus projetores de bateria. A grande claridade
transformou a peça no que ela era: simplesmente uma peça vazia. Diante de mim, uma
parte do muro era lisa, sem alvéolo. Tinha a forma trapezoidal, um pouco mais larga em
cima do que em baixo, com um ligeiro estrangulamento na metade. Pensei que isso podia
ser uma porta e dirigi-me para ela.
Foi assim que dei meus primeiros passos na lua direção.
Não havia nenhuma maneira visível de abrir aquela porta, se é que era porta. Nem
maçaneta nem fechadura. Simon ergueu sua mão direita enluvada, colocou-a de encontro à
porta, perto da beirada, à direita, e empurrou. A borda direita da porta separou-se do muro e
entreabriu-se. Simon tirou a mão. Sem barulho e sem clique, a porta voltou exatamente ao seu
lugar.
— E então, o que estamos esperando? — disse Hoover. — Vamos... Como ele estava à
esquerda de Simon, instantaneamente ergueu sua mão esquerda e pousou-a sobre a borda
esquerda da porta. E a porta abriu-se à esquerda.
Sem se demorar a admirar essa porta ambivalente, Hoover empurrou-a mais
profundamente. Ela permaneceu aberta. Simon com um gesto chamou um eletricista que levou
seu projetor e o fixou na abertura.
Era como um corredor longo de vários metros de comprimento. O solo era de ouro, e os
muros de uma matéria de cor verde que parecia porosa. Uma porta azul da mesma matéria
fechava o fundo do corredor. Duas outras estavam à direita e uma à esquerda.Simon entrou
seguido de Hoover, de Higgins e dos outros atrás dele. Quando chegou à primeira porta,
parou, ergueu a mão e empurrou.
Sua mão enluvada afastou a porta e passou para o outro lado...
Hoover pigarreou de surpresa e fez um movimento para se aproximar. Seu corpo enorme
roçou em Higgins que para conservar o equilíbrio, apoiou-se contra a parede.
Higgins passou através da parede. Gritou, e a tradutora reproduziu o mesmo grito em todos
os microfones de ouvido. Houve um baque surdo alguns metros mais abaixo e a voz de
Higgins calou-se.
O choque havia abalado as paredes. Viram-nas tremer, se dobrar, se abater e desmoronar
suavemente em camadas de poeira, descobrindo um abismo de escuridão mostrado pelos
projetores, onde outras paredes caíam sem barulho, revelando todo um mundo à beira de
desaparecer. Móveis, máquinas, animais imóveis, silhuetas vestidas, espelhos, formas
desconhecidas que se deformavam, escorregando sobre o assoalho que balançava e trepidava.
Do fundo da esfera, onde se encontravam todas essas coisas, subiam rolos cinzas e
espessos de cúmulos de poeira. Os sábios e os técnicos tiveram tempo de perceber Higgins lá
em baixo com os braços em cruz, o peito atravessado por uma estaca de ouro. Depois a nuvem
o envolveu e continuou a subir.
— Máscaras! — gritou Hoover.
Apenas tinham colocado suas máscaras, a nuvem os atingiu, envolveu-os e encheu toda a
esfera. Ficaram parados no lugar, não ousando se mexer. Não viam mais nada.
Estavam numa passarela sem balaustrada, acima de oito andares de vazio, envolvidos por
uma neblina impenetrável.
— Ajoelhem-se! Devagar! — disse Hoover. — Fiquem de quatro!...
Foi assim que voltaram lentamente, tateando as bordas da passarela, a sala redonda, e
depois para o exterior da esfera. Emergiram um a um, trazendo com eles farrapos e echarpes
de poeira. O poço de ouro fumegava.
Dois escafandristas presos por cordas desceram para procurar o corpo de Higgins.
Um pastor celebrou um serviço fúnebre numa igreja debaixo do gelo. Uma cruz de luz
abria-se para o céu, recortada na abóbada translúcida.
Depois o corpo de Higgins fez a longa e silenciosa viagem de volta à Cidade do Cabo, sua
terra natal.
A imprensa deleitou-se: "A esfera maldita ataca de novo", "O túmulo do Polo Sul matará
mais sábios do que o de Tutankhamon?" No restaurante do EPI-2, os jornais acabavam de
chegar pelo último avião, e passavam de mão em mão. Leonova olhava com desprezo um
hebdomadário inglês cujo título era o seguinte: "Que fantasma assassino toma conta da esfera
de ouro?"
— A imprensa capitalista delira — comentou.
Hoover, sentado diante dela, espalhava um quarto de litro de creme sobre o seu prato de
milho.
— Sabemos bem que os marxistas não acreditam no sobrenatural — respondeu ele — mas
espere até que o fantasma venha lhe fazer cócegas na sola dos pés, de noite...
Engoliu sem mastigar mais uma colherada de milho, e prosseguiu:
— Houve alguma coisa que empurrou Higgins através da parede, não?
— Foi sua barriga que o empurrou!... Você não tem vergonha de transportar tamanho
horror diante de si? Ela não é somente inútil, mas também perigosa!
Ele bateu carinhosamente na sua pança.
— Toda a minha inteligência está aqui. Quando eu emagreço me torno triste e tão bobo
quanto qualquer outra pessoa... Estou desolado por Higgins... Não gostaria de morrer como
ele, sem ver a continuação...
Haviam introduzido no interior da esfera um enorme tubo de ar que a aspirava há uma
semana.
O ar lançado para a superfície era recebido dentro de sacos e a poeira recolhida era
enviada para os laboratórios que, no mundo inteiro, trabalhavam para a expedição.
Quando os sacos não recolheram mais nada, a primeira equipe penetrou novamente na
esfera. Havia projetores assentados em todas as direções, na atmosfera interior que havia se
tornado transparente. Sua luminosidade refletida, quebrada, difundida em todas as partes pelo
mesmo metal, inundava com reflexo de ouro uma arquitetura abstrata e fantástica.
No desmoronamento do muro fechado, tudo que era composto da mesma liga da parede
externa havia subsistido. Assoalhos sem muro, escadas sem rampas, rampas que não levavam
a lugar nenhum, porta se abrindo sobre o vazio, peças fechadas suspensas, ligadas umas às
outras, sustentadas, escoradas por vigas abertas ou arcos bastante frágeis, compunham um
esqueleto de ouro leve, incrivelmente belo.
Quase no centro da esfera, uma coluna a atravessava verticalmente de lado a lado. Era ela,
ou continha a perfuratriz. Aos seus pés, apoiada contra ela, ou talvez ligada a ela, erguia-se
uma construção de mais ou menos nove metros de altura, hermeticamente fechada, em forma de
ovo, com a ponta para cima.
— Encontramos o grão, eis aqui o gérmen — murmurou Leonova.
Uma escada, cujos degraus de ouro pareciam se manter no ar sozinhos, partia do lugar da
porta na parede da esfera, atravessava o ar como um sonho de arquiteto e terminava no ovo, a
três quartos da sua altura. Logicamente nesse lugar deveria se encontrar a abertura.
De assoalho em passarela e em escada, por caminhos aéreos, os exploradores desceram
em direção ao ovo. E aí encontraram a porta no lugar onde esperavam encontrá-la. Era de
forma ovoide, mais larga para baixo. Estava bem fechada e não apresentava nenhum
dispositivo de abertura. Embora não fosse soldada, resistiu a todas as pressões.
Simon, como um moleque, tirou um canivete do bolso e tentou introduzir a lâmina na
abertura quase invisível. A lâmina escorregou sem penetrar. A fechadura era de um
hermetismo total. Hoover pegou seu martelo de cobre e bateu. Assim como na parede da
esfera, o som era oco.
Fizeram descer Brivaux com seu registrador. A linha de ultra-sons inscreveu-se sobre o
papel.
O sinal vinha do interior do ovo.
Na Sala de Conferências, sábios e jornalistas seguiam sobre as telas o trabalho das
equipes no interior da esfera. Os carpinteiros do dever instalavam passarelas escoravam
escadas.Hoover e Lanson, assistidos por eletricistas, se ocupavam com a porta do ovo.
Leonova e Simon acabavam de atingir com uma escada uma sala de ouro suspensa no
vácuo.
A atmosfera estava clara. Ninguém mais usava máscara. Com mil precauções Leonova
empurrou a porta metálica da sala redonda, que se abriu lentamente Leonova entrou e afastou-
se para deixar passar Simon. Ambos se viraram para o interior da sala e olharam.
A sala não estava iluminada senão pelos reflexos que deixava entrar a porta entreaberta.
Nessa penumbra de ouro encontravam-se seis seres humanos. Dois estavam de pé e os
olhavam entrar. O da direita num gesto móvel os convidava a sentar sobre uma espécie de
banco horizontal cujo suporte não se percebia. O da esquerda abriu os braços como se fosse
dar um abraço cordial.
Todos dois estavam vestidos de uma pesada e larga capa vermelha que caía até o solo e
escondia-lhes os pés.
Um pequeno boné vermelho lhes cobria a cabeça. Cabelos lisos, castanho num e louro no
outro, caíam até a altura dos seus ombros.
Atrás deles, dois homens quase nus sentados face a face sobre um móvel branco
entrelaçavam os dedos da. mão esquerda e erguiam a direita com o dedo indicador esticado.
Talvez fosse um jogo.
Leonova pegou seu aparelho fotográfico e apertou a claridade dupla do raio laser.
Toda a cena foi violentamente iluminada durante um milésimo de segundo.
Simon teve tempo de vislumbrar mais dois personagens, mas a imagem apagou-se, na sua
retina. E a cena apagou-se ao mesmo tempo. Como se o choque da claridade tivesse sido
muito violento para eles, as roupas, depois as substâncias dos personagens se desprenderam e
resvalaram transformando-se em poeira, descobrindo uma série de motores e de bolsos
metálicos. Depois esses esqueletos por sua vez se desmancharam lentamente. Em poucos
segundos não restou do grupo, na poeira que subia, senão alguns arabescos de fios de ouro,
sustentando, aqui e ali, uma plaqueta, um círculo, uma espiral suspensos...
Leonova e Simon se apressaram a sair e a fechar a porta da peça sobre a nuvem de poeira
que a enchia. Estavam frustrados como quando a gente acorda no meio de um sonho e sabe que
nunca mais o verá.
De pé sobre a porta do ovo, Hoover dava informações sobre os trabalhos da sua equipe.
Na sala de Conferências, os jornalistas olhavam para a grande tela e tomavam notas.
Conseguimos perfurar — disse Hoover. — Eis aqui o buraco... — Seu polegar gordo
pousou sobre a porta, perto de um orifício negro no qual se ajustava perfeitamente.
— Não houve nenhum movimento de ar, nem numa direção nem na outra. O equilíbrio das
pressões externa e interna não pode ser obra de um acaso. Nalgum lugar deve existir um
dispositivo que conhece a pressão externa e age sobre a pressão interna.
Onde está ele? Como funciona? Vocês gostariam de saber? Eu também...
— Rochefoux falou no microfone da mesa do conselho.
— Qual é a espessura da porta?
— Cento e noventa e dois milímetros de camadas alternadas de metal e de uma outra
matéria que parece ser um isolante térmico. Há pelo menos umas cinquenta camadas, um
verdadeiro folheado! Vamos medir a temperatura interior.
Um técnico introduziu no orifício um longo tubo metálico, que terminava, no lado exterior,
por um quadrante. Hoover deu uma olhada neste último, bruscamente assumiu um ar
interessado e não despregou mais seus olhos.
— Pois bem, crianças! Está descendo!... está descendo!... Ainda... mais... estamos a menos
80 graus, 100... menos 120...
Deixou de enumerar os números e pôs-se a assobiar espantado. A máquina tradutora
assobiou dentro de dezessete ouvidos...
— Menos 180 graus centígrados! — disse a imagem de Hoover em primeiro plano. — É
quase a temperatura do ar líquido!
Louis Deville, representante da Europress, que fumava um charuto longo e fino, disse com
seu belo sotaque meridional:
— Puxa! é um frigorífico! Vamos encontrar aí petit-pois congelado! Hoover continuava:
— Estamos tentando introduzir um gancho de aço no buraco e puxar para cima, a fim de abrir
a porta. Mas com o frio que faz lá dentro, o gancho vai se quebrar como um fósforo. É preciso
encontrar uma outra maneira...
Esta outra maneira foram três ventosas pneumáticas, grandes como um prato, aplicadas
sobre a porta, ligadas a um macaco-trator fixado a uma armação de ferro armada em torno do
ovo. Uma bomba sugava o ar das ventosas até quase o vácuo, com uma pressão capaz de
levantar uma locomotiva.
Hoover começou a fazer girar o volante do macaco.
Na Sala de Conferência, um jornalista inglês perguntou a Rochefoux: O senhor não tem
medo de que aí dentro haja um dispositivo de destruição?
— Não havia nada atrás da porta da esfera. Nós só soubemos disto depois que estávamos
lá dentro. Portanto não há razão para que haja um aqui.
O comitê estava todo reunido diante da tela, de onde se podia ver, bem melhor do que no
próprio local, o que se passava lá embaixo. A sala estava cheia e agitada. Mesmo aqueles que
tinham outras coisas para fazer fora dali, vinham olhar rapidamente como iam correndo os
trabalhos e depois partiam para suas obrigações.
Sozinha, Leonova, muito impaciente para ficar olhando de longe, havia acompanhado
Hoover e seus técnicos. Simon estava perto deles, com duas enfermeiras, pronto a intervir em
caso de acidente.
Sobre a tela, a imagem de Hoover virou a cabeça em direção dos seus colegas do comitê.
— Já dei vinte voltas ao volante — disse ele. — Isso representa 10 milímetros de tração.
A porta não mexeu nada. Se eu prossigo, ela vai se deformar os se arrebentar.
Continuo?
— As ventosas não correm o risco de cair? — perguntou Ionescu, físico romeno.
— Era mais fácil elas arrancarem o Polo Sul.
— É necessário que essa porta seja aberta de uma maneira ou de outra - disse Rochefoux.
Virou-se para os membros do Conselho.
— O que é que vocês pensam? Votamos?
— É preciso continuar — disse Shanga, levantando a mão.
Todas as mãos se levantaram, Rochefoux falou à imagem. — Continue, Joe — disse ele.
— O.K. — disse Hoover.
Com as duas mãos retomou o volante do macaco.
Na cabina de tevê, Lanson ligou a antena emissora. Atrás de um compartimento de vidro à
prova de som, um jornalista alemão comentava. Na tribuna da imprensa, Louis Deville
levantou-se:
— Posso fazer uma pergunta ao Sr. Hoover? — solicitou.
— Aproxime-se — disse Rochefoux.
Deville subiu ao pódio e inclinou-se para o microfone direto.
— Sr. Hoover, o senhor me ouve?
Hoover assentiu com um gesto de cabeça.
—Bem — prosseguiu Deville — o senhor fez um buraco no gelo, encontrou um grão. Fez
um buraco no grão, encontrou um ovo. Hoje o que acha que vai encontrar?
Hoover virou-se e apresentou um sorriso encantador no seu rosto gordo.
— Nuts! — disse, empregando gíria americana.
A máquina tradutora, depois de um milésimo de segundo de hesitação traduziu nos
microfones franceses como:
— Nozes.
Não se deve pedir demais a um cérebro eletrônico... Para exprimir corretamente a ideia o
cérebro do homem traduziria o termo por "bolas".
Deville voltou para seu lugar esfregando as mãos. Ele tinha uma boa notícia para esta
tarde, mesmo se...
— Atenção! — disse Hoover — creio que chegamos... Bruscamente houve no emissor um
barulho semelhante ao de algumas toneladas de veludo sendo rasgadas. Na parte de baixo da
porta apareceu uma fresta escura.
— Ela abre por baixo! — disse Hoover. — Descolem a número 1 e a número 2. Rápido!
As duas ventosas superiores cheias de ar caíram no fim das suas correntes Só ficaram as
da parte de baixo. Hoover virava o volante a toda pressa. Houve um arpejo lancinante como
se todas as cordas de um piano se arrebentassem uma após as outras. Depois a porta não
resistiu mais.
Ao cabo de alguns minutos as suas bordas cederam. Leonova e Simon vestiram macacões
de astronautas, os únicos capazes de proteger contra o frio que reinava no ovo.
Tinham sido trazidos a jato da Estação Rockefeller, a base americana de partida para a
Lua.
Esperavam os dos russos e dos europeus. Mas no momento só havia esses dois. Hoover
teve que renunciar a se meter dentro de um deles. Pela primeira vez, depois de ter passado dos
cem quilos, lamentava o seu volume. Colocou luvas de amianto, introduziu sua mão pela
fresta, por baixo do último degrau da escada, e puxou a porta, que se ergueu como uma tampa.
Entrei. E te vi.
E fui logo tomado pela vontade louca, mortal, de afastar, de destruir todos aqueles que
lá, atrás de mim, na esfera, sobre o gelo, diante de suas telas no mundo inteiro, esperavam
saber e ver. E que iam te ver, como eu te via.
Entretanto, eu queria também que eles te vissem. Queria que o mundo inteiro soubesse
como eras maravilhosa e incrivelmente bela.
Mostrar-te ao universo no tempo de um relâmpago, depois de encerrar-me contigo,
sozinho, e olhar-te durante a eternidade.

Uma luz azulada vinha do interior do ovo. Simon entrou primeiro e, por causa desta
claridade, não acendeu sua lanterna. A escada prosseguia no interior e parecia acabar no azul.
Seus últimos degraus se recortavam em silhuetas negras, e paravam mais ou menos na metade
da altura do ovo. Mais abaixo, um grande anel metálico horizontal estava suspenso no vazio.
Era aquilo que emitia a breve claridade, ou melhor, essa luminescência suficiente para
iluminar à sua volta uma quantidade de aparelhos cujas formas eram estranhas, desconhecidas.
Hastes e fios se ligavam entre si e todos estavam de uma certa maneira virados para o anel,
como se para receber alguma coisa.
O grande anel azul estava suspenso no ar sustentado por nada, em contato com coisa
alguma. Todo o resto estava rigorosamente em ordem. Ele girava, mas era tão liso o seu
movimento, tão perfeitamente realizado em torno de si mesmo, que Simon o adivinhou mais
que o viu, e não pôde ter certeza se girava muito lentamente ou a uma velocidade
considerável.
Do exterior, Lanson que tinha descido da Sala de Conferências para supervisionar as
câmaras, acendeu um projetor. Seus mil watts sorveram a luminescência azul, fizeram
desaparecer a mecânica fantasmagórica, revelaram em seu lugar uma laje transparente que,
agora, refletia a claridade viva e não deixava mais distinguir o que havia embaixo dela.
Simon continuava em pé na escada, cinco degraus abaixo do solo transparente te, e
Leonova dois degraus abaixo dele. Juntos pararam de olhar o chão a seus pés, ergueram a
cabeça e viram o que havia diante deles.
O pico do ovo se constituía de uma sala em cúpula. Sobre o solo, diante da escada, duas
bases de ouro de forma alongada. Sobre cada uma dessas bases repousava um bloco de
matéria transparente, semelhante ao gelo, extremamente clara. Em cada um desses blocos se
encontrava deitado um ser humano, com os pés em direção à porta.
Uma mulher à esquerda. A direita, um homem. Não havia nenhuma dúvida pois eles
estavam nus. O sexo do homem estava ereto, como um avião ao decolar. Sua mão esquerda
fechada repousava sobre o peito. A mão direita estava erguida obliquamente e o dedo
indicador em riste. As pernas da mulher estavam juntas. Suas mãos abertas descansavam uma
sobre a outra, logo abaixo do busto. Seus seios eram a própria imagem da perfeição.
As curvas de suas ancas eram como as de uma duna que o vento tivesse levado um século
para moldar com suas carícias. Suas coxas eram redondas e longas, um desenho perfeito. O
ninho discreto do sexo era coberto de pelos dourados curtos e crespos. Dos ombros aos pés,
semelhantes a flores, seu corpo era uma harmonia em que cada nota, milagrosamente justa, se
encontrava em completo acordo com o conjunto.
Não se via o seu rosto. O do homem estava coberto, até o queixo, por um capacete de
ouro, com traços estilizados, de uma beleza grave.
A matéria transparente que os envolvia, tanto a um como a outro, era tão fria que o ar, ao
seu contato, tornava-se líquido e escorria, franjando os dois blocos de uma renda que
dançava, se despegava, caía e se evaporava antes de tocar no chão.
Estendidos nesses cofres de claridade movediça, estavam pela sua própria nudez
revestidos de um esplendor de inocência. Suas peles lisas como uma pedra polida tinham uma
cor clara, indefinida.
Embora fosse menos perfeito que o da mulher, o corpo do homem dava a mesma impressão
de uma extraordinária juventude nunca dantes vista. Não era a mocidade de um homem e de
uma mulher, mas a da espécie. Estes dois seres eram novos, conservados intactos desde a
infância humana.
Simon, lentamente, estendeu a mão para a frente. Entre todos os homens que naquele
momento olhavam nas suas telas a imagem dessa mulher, que viam esses meigos ombros
perfeitos, esses braços redondos encerrando numa cesta os frutos ligeiros dos seios, e a curva
dessas ancas onde corria a beleza total da criação, quantos não desejaram impedir sua mão de
se estender para pousar ali?
E entre as mulheres que olhavam este homem, quantas não foram queimadas pelo desejo
irrealizável de se deitar sobre ele, de nele se plantar e de nele morrer?
Houve no mundo inteiro um instante de estupor e de silêncio. Mesmo os velhos e as
crianças se calaram. Depois as imagens do ponto 612 se apagaram, e a vida normal
recomeçou um pouco mais irritada, um pouco mais amarga. A humanidade, através de um
pouco mais de barulho, esforçava-se para esquecer o que vinha de compreender olhando
aqueles dois que jaziam no Polo: a que ponto ela era antiga, cansada, mesmo nos seus mais
belos adolescentes.
Leonova fechou os olhos e sacudiu a cabeça dentro do seu capacete. Quando ergueu as
pálpebras, não olhava mais na direção do homem. Desceu, empurrou Simon com seu joelho.
Tirou da sua sacola um pequeno instrumento, deu alguns passos, e colocou-o em contato com o
bloco que continha a mulher. Ela olhou
O quadrante e disse numa voz neutra ao seu microfone:
— Temperatura na superfície do bloco: menos 272 graus centígrados.
Houve entre os sábios reunidos na Sala de Conferências murmúrios de espanto. Era quase
o zero absoluto.
Louis Deville, esquecendo o microfone, levantou-se para gritar sua pergunta: — Pode
perguntar ao Dr. Simon, enquanto os olha, falando como médico, se acredita que eles estejam
vivos?
— Não fiquem na proximidade dos blocos — disse a voz traduzida de Hoover nos
aparelhos de escuta de Simon e de Leonova. — Recuem! Mais!
—As roupas que vocês usam não foram feitas para um frio igual a este!...
Recuaram para a parte debaixo da escada. Simon recebeu a pergunta de Deville. Esta
pergunta, ele fazia a si mesmo, há alguns momentos, com angústia.
Primeiro ele não tinha tido dúvida nenhuma: esta mulher estava viva, não podia estar
senão viva... Mas era um desejo, não uma convicção. E agora procurava razões objetivas para
acreditar ou duvidar. Informou no seu microfone, falando principalmente para si mesmo.
— Estavam vivos quando o frio os atingiu. O estado do homem comprova isto.
Estendeu seu braço forrado em direção ao sexo oblíquo do homem.
— Um fenômeno que já havia sido constatado em certos enforcados. Prova uma congestão
brutal de fluxo sanguíneo, em direção à parte inferior do corpo. Daí vem a lenda da
Mandrágora, aquela raiz mágica, de forma humana, que nascia sob os patíbulos na terra que
tinha sido inundada pelo esperma dos enforcados. Pode ser que uma congestão análoga tenha
se produzido no processo de um resfriamento rápido. Ela não pode ser produzida senão num
corpo ainda com vida. Mas é possível que num instante mais tarde a morte tenha se dado.
E mesmo se esses dois seres estavam num estado de vida que tinha sido parado, mas de vida
possível depois da sua congelação, como podemos a saber em que estado eles estarão hoje,
novecentos mil anos depois da sua congelação?
O emissor da Sala de Conferências, que transmitia diretamente a voz de Simon, traiu
nessas últimas palavras a angústia do jovem médico, e calou-se.
O físico japonês, Hoi-To, sentado à mesa do Conselho, fez notar o seguinte: — É preciso
saber a que temperatura eles se encontram. Nossa civilização nunca conseguiu obter o zero
absoluto. Mas parece que essas pessoas dispunham de uma técnica superior. Eles chegaram
lá... Esse zero absoluto é a imobilidade total das moléculas. Quer dizer que nenhuma outra
modificação química e possível. Nenhuma transformação mesmo infinitesimal... Ora, a morte é
uma transformação. Se no centro desses blocos reina o frio absoluto* este homem e esta
mulher se encontram exatamente no mesmo estado que estavam no momento em que aí foram
mergulhados. E poderiam ficar assim durante a eternidade.
— Há uma maneira bem simples de saber se estão mortos ou vivos - disse a voz de Simon
no emissor. — E como médico, creio que é nosso dever: é preciso tentar reanimá-los...
A emoção no mundo foi considerável. Os jornais gritavam em letras enormes coloridas:
"Acordem-nos!" Ou então: "Deixem-nos dormir!"
Segundo a opinião de uns, havia o dever imperioso de tentar chamá-los à vida. Outros
opinavam que não se tinha absolutamente o direito de perturbar a paz daqueles que lá
repousavam a um tempo inacreditável.
A pedido do delegado do Panamá, a Assembleia das Nações Unidas foi convocada para
deliberar.
Novos macacões espaciais tinham chegado ao 612 mas nenhum era do tamanho de Hoover.
Ele teve que mandar fazer um sob medida. Esperando sua chegada, ele assistia, impotente e
furioso, do alto da escada de ouro, aos trabalhos de seus colegas, que se locomoviam no ovo
com imperícia, as pernas abertas e os braços duros. A umidade da esfera penetrava no ovo e
se condensava logo numa neblina composta de flocos imperceptíveis. Uma geada tinha se
formado sobre toda a superfície interna do muro e uma coberta de neve pulverizada, imóvel
como a poeira, cobria o chão.
Apesar dos seus macacões, os homens que desciam no ovo podiam ficar aí durante um
tempo muito curto, o que tornava difícil a continuação das pesquisas. Tinham podido analisar
a matéria transparente que envolvia os que 1á jaziam. Era hélio sólido, isto é, um corpo que os
físicos nunca tinham conseguido obter, e sobre o qual pensavam até mesmo que, teoricamente,
ele não podia existir.
* Isto é, 273,15 graus centígrados abaixo de zero.

O nevoeiro gelado que enchia o ovo tirava era parte o homem e a mulher nus da vista das
equipes que trabalhavam a seus lados. Eles pareciam se esconder atrás dessa tumba, tomar de
novo suas distâncias, se afastar no fundo dos tempos, longe dos homens que tinham querido
encontrá-los. Mas o mundo não os esquecia.
Os paleontólogos esbravejavam. O que haviam encontrado no Polo não podia ser verdade.
Ou então os laboratórios que haviam feito as medidas das datas tinham se enganado.
Tinham examinado a lama fundida das ruínas, os restos de ouro e a poeira da esfera.
Através de todos os métodos conhecidos tinham determinado a sua antiguidade. Mais de
cem laboratórios de todos os continentes tinham feito cada um mais de cem medidas, chegando
a mais de dez mil resultados concordantes que confirmavam os 900 mil anos aproximativos de
antiguidade da descoberta subglacial.
Esta unanimidade não incluía a convicção dos paleontólogos, pois estes gritavam que era
uma fraude, um erro, uma distorção da verdade. Para eles, não havia dúvida: menos de 900
mil anos, era mais ou menos o começo do pleistoceno. Nesta época, tudo o que podia existir
de espécie de homens, era a australopiteca, ou seja, uma espécie de primata minável junto do
qual um chimpanzé teria feito a figura de um ilustre civilizado.
Estas instalações e esses indivíduos que haviam sido encontrados sob o gelo, ou bem eram
falsas, ou bem mais recentes, ou então vinham de outro lugar. Aquilo não podia ser verdade.
Era impossível!
Respostas dos transeuntes interrogados à saída do metrô, em Saint-Germain-en-Laye: O
repórter da tevê — O senhor acha que é verdade ou não o que foi encontrado?
Um senhor bem vestido — O que é que não é verdade?
O repórter da tevê — Aquele negócio lá, embaixo do gelo, lá, no Polo...
O senhor — Oh! sabe, eu... só vendo!...
O repórter da tevê — E a senhora, madame?
Uma velhinha maravilhada — Eles são lindos! Eles são tão lindos! É claro que são
verdadeiros!
Um senhor magro, moreno, sentindo frio, irritado, apossou-se do microfone — Eu, acho
o seguinte: Por que os sábios querem sempre que os nossos ancestrais sejam medonhos? Cro-
Magnon e seus companheiros, gênero orangotango? Os bisões que vimos nas grutas de
Altamira e de Lascaux eram mais lindos que a vaca normanda, não é mesmo?
E por que nós também não? Na ONU, a Assembleia desinteressou-se subitamente dos dois
seres cuja sorte havia motivado sua convocação. O delegado do Paquistão acabara de subir à
tribuna e fizera uma declaração sensacional.
Os técnicos do seu país tinham calculado qual deveria ser a quantidade de ouro constituída
pela esfera, seu pedestal e suas instalações internas. Tinham chegado a uma cifra fantástica.
Havia, lá embaixo do gelo, perto de duzentas mil toneladas de ouro!
Significava uma soma de ouro maior do que a contida em todas as reservas nacionais, em
todos os bancos particulares e em todos os haveres individuais e clandestinos! Mais que todo
o ouro do mundo!
Por que haviam escondido esta verdade da opinião? Que preparavam as grandes
potências? Será que tinham feito um acordo para dividir entre si esta riqueza fabulosa como já
dividiam todas as outras? Esse volume de ouro era o fim da miséria para a metade da
humanidade que sofria ainda de fome e que tinha necessidade de tudo. As nações pobres, as
nações esfomeadas exigiam que esse ouro fosse tirado, dividido, repartido entre elas
proporcionalmente ao número da sua população.
Os negros, os amarelos, os verdes, os cinzentos e alguns brancos juntaram-se e aplaudiram
freneticamente o paquistanês. As nações pobres formavam na ONU uma grande maioria que a
habilidade e direito de veto das grandes potências controlava com uma dificuldade sempre
crescente.
O delegado dos Estados Unidos pediu e obteve a palavra.
Era um homem alto e magro que com um ar cansado carregava a hereditariedade de uma
das famílias mais distintas e antigas de Massachusetts.
Numa voz sem paixões, um pouco velada, declarou que compreendia a emoção do seu
colega, que os técnicos dos Estados Unidos tinham chegado às mesmas conclusões que
aqueles do Paquistão, e que ele se apressava justamente a fazer uma declaração a esse
respeito.
Mas, acrescentou, outros técnicos examinando as amostras do ouro do Polo, tinham
chegado a uma outra conclusão: este ouro não era um ouro natural, era um metal sintético,
fabricado por um processo do qual eles não podiam fazer a menor ideia. Os físicos atômicos,
esclareceram, fabricam um ouro artificial, através da transmutação dos átomos.
Mas somente em pequena quantidade e a um preço que o tornava proibitivo.
O verdadeiro tesouro escondido sob o gelo, não era que tal ou qual quantidade de ouro
fosse considerável mas sim os conhecimentos encerrados no cérebro daquele homem ou
daquela mulher, ou talvez dos dois. Quer dizer, não somente o segredo da fabricação do ouro,
do zero absoluto, do moto perpétuo, mas sem dúvida uma quantidade de outras coisas ainda
bem mais importantes.
— O que encontramos no ponto 612 — prosseguiu o orador — na verdade permite supor
que uma civilização muito adiantada, sentindo-se ameaçada por um cataclismo que ameaçava
destruí-la inteiramente, colocou num abrigo, com luxo de precauções que talvez tenham
esgotado todas as suas riquezas, um homem e uma mulher suscetíveis de fazer renascer a vida
depois da passagem do flagelo. Não é lógico pensar que este casal tenha sido escolhido
unicamente por suas qualidades físicas. Um ou outro, ou os dois, devem possuir bastante
ciência para fazer renascer uma civilização equivalente àquela da qual eles faziam parte. É
esta ciência que o mundo de hoje deve sonhar em dividir, antes de qualquer outra coisa. É por
isso que é preciso que se reanimem aqueles que a possuem e dar-lhes um lugar entre nós.
— Se eles ainda estiverem vivos — disse o delegado chinês.
O delegado americano fez um gesto ligeiro com a mão esquerda e esboçou um sorriso que
revelava certo desprezo:
— É claro...
Olhou toda a Assembleia com ar ausente e aborrecido e prosseguiu: — A Universidade de
Columbia está perfeitamente equipada em matéria de sábios e aparelhos para realizar essa
reanimação. Os Estados Unidos se propõem então, com o vosso acordo, ir buscar no ponto
612 o homem e a mulher dentro dos seus blocos de gelo, transportá-los com todas as
precauções necessárias e no menor tempo possível, até os laboratórios de Columbia. Lá então,
serão despertados do longo sono e acolhidos em nome de toda a humanidade.
O delegado russo levantou-se sorridente e disse que não duvidava da boa vontade
americana, nem da competência dos seus sábios. Mas a URSS possuía igualmente, em
Akademgorodok, os técnicos, os teóricos e aparelhagem necessários. Ela podia, também,
encarregar-se da operação de reanimação. Mas não se tratava nesse momento capital do futuro
da humanidade de fazer a grande pesquisa científica e de disputar um jogo que pertencia a
todos os povos do mundo. A URSS propunha então dividir o casal, ela se encarregaria de um
dos dois indivíduos e os Estados Unidos se ocupariam do outro.
O delegado paquistanês explodiu. O complô das grandes potências estourava à luz do dia!
Desde o primeiro momento elas tinham decidido atribuir a si mesmas o tesouro do 612, fosse
um tesouro monetário, ou um tesouro científico. E, dividindo entre elas o segredo do passado,
dividiam a supremacia do futuro, como já possuíam a do presente. As nações que adquirissem
o monopólio dos conhecimentos submersos sob o ponto 612, possuiriam um domínio total e
absoluto do mundo. Nenhum outro país poderia jamais esperar se subtrair à sua hegemonia. As
nações pobres deveriam se opor com todas as suas forças à realização desse abominável
ensejo, nem que para isso os dois seres vindos do passado tivessem que ficar para sempre
dentro da sua carapaça de hélio!
O delegado francês que tinha ido telefonar a seu Governo, pediu, por sua vez, a palavra.
Fez pacificamente notar que o ponto 612 encontrava-se no interior de uma fatia do continente
antártico atribuído à França, isto é, em território francês. E, daí, tudo o que pudesse vir a ser
descoberto era propriedade francesa...
Formou-se uma enorme confusão. Delegados de grandes e pequenas nações encontravam-
se desta vez de acordo para protestar, ironizar, ou simplesmente fazer uma cara divertida
segundo o seu grau de civilização.
O delegado francês sorriu e fez um gesto pacificador. Quando a calma voltou, declarou
que a França, diante do interesse universal da descoberta, renunciava aos seus direitos
nacionais, e mesmo aos direitos de "inventor", e depunha tudo o que tinha sido encontrado e
tudo o que ainda poderia ser encontrado no ponto 612 sobre o altar das Nações Unidas.
Agora eram aplausos polidos que o seu gesto se esforçava para fazer cessar. Mas... mas
sem comungar dos temores do Paquistão, a França pensava que era necessário tudo fazer para
impedi-los de se tornarem justificados, por menores que fossem. Não havia senão a Columbia
e a Akademgorodok que tinham equipes de reanimação. Podiam se encontrar especialistas
eminentes na Iugoslávia, na Holanda, nas Índias, sem falar da Universidade Árabe e da equipe
muito competente do Dr. Lebeau, do Hospital de Vaugirard, em Paris.
A França não afastava as equipes russas e americanas. Pedia somente que a escolha fosse
feita pela Assembleia inteira e sancionada por um voto...
O delegado americano riu-se logo dessa proposta. Para deixar às candidaturas
competentes o tempo de se manifestar, pediu que transferissem o debate para o dia seguinte, o
que foi decidido. Os regateios e as negociatas secretas iam começar imediatamente.
Por uma vez, a tevê funcionou em sentido contrário. O satélite Trio, de alto do éter, enviou
para a antena do EPI-1 as imagens da ONU. Na sala de Conferências, os sábios que não
tinham se ocupado de suas missões mais urgentes tinham seguido os debates em companhia
dos jornalistas. Quando tudo terminou, Hoover, com um gesto do seu polegar, apagou a grande
tela e olhou seus colegas fazendo uma careta.
— Creio — disse ele — que nós também teremos que deliberar. — Pediu aos jornalistas
que tivessem a fineza de se retirar, e lançou pelos aparelhos emissores um apelo geral a todos
os sábios, técnicos, operários e trabalhadores da Expedição para uma reunião imediata.
3
NO DIA SEGUINTE, no momento em que se abria a reunião da Assembleia da ONU, um
comunicado proveniente do ponto 612 foi entregue ao presidente. O seu texto difundido para o
mundo inteiro através de todos os meios de informação era o seguinte: Os membros da
Expedição Polar Internacional decidiram por unanimidade o que se segue:
1.º — Negam a toda nação, seja ela rica ou pobre, o direito de reivindicar para uso
lucrativo, o menor fragmento de ouro da esfera e de seus acessórios.
2.º — Sugerem, se isso pode ser útil à Humanidade, que uma moeda internacional seja
criada e afiançada por este ouro, à condição que ele fique onde está, considerando que ele não
será nem mais útil nem mais "congelado" sob um quilômetro de gelo do que nos cofres dos
bancos nacionais.
3.º — Não reconhecem a competência da ONU, organismo político, no que concerne à
decisão, de ordem médica e científica, de tomar a si a responsabilidade do casal em
hibernação.
4.º — Não confiarão esse casal a nenhuma nação em particular.
5.º — Colocarão à disposição da humanidade inteira o conjunto de informações científicas
ou de qualquer outra ordem que possam ser recolhidos pela Expedição.
6.º — Convidam Forster, de Columbia, Moissov, de Akademgorodok, Zabrec, de
Belgrado, Van Houcke, de Haia, Haman, de Beirute, e Lebeau, de Paris, a se reunir com eles,
no ponto 612, com urgência, trazendo todo o material necessário para proceder à reanimação.
O manifesto foi como uma ducha fria nas discussões da ONU. Os vidros do palácio
tremeram até o último andar. O delegado do Paquistão estigmatizou, em nome das crianças que
morreriam de fome, o orgulho dos sábios que queriam colocar-se acima da humanidade e com
isso se distanciavam daquele problema, Falou de "ditadura de cérebros", declarou que tudo
era inadmissível e pediu sanções.
Depois de um debate apaixonado, a Assembleia votou o envio imediato de uma força
militar representativa ao ponto 612 para tomar posse, em nome das nações, de tudo o que ali
se encontrava.
Duas horas mais tarde, a antena do EPI-1 pedia e obtinha um corredor internacional.
Todos os postos particulares e nacionais interromperam suas emissões para darem lugar às
imagens vindas do Polo. Foi o rosto de Hoover que apareceu. O rosto de um homem gordo,
sempre pronto a sorrir, fosse qual fosse a emoção que ele tentasse exprimir. Mas a gravidade
do seu olhar era ta1 que fez esquecer suas faces rosadas e gordas e seus cabelos vermelhos
mal penteados. Hoover iniciou:
— Estamos chocados. Chocados porém decididos.
Virou-se para a direita e para a esquerda e fez um sinal. A câmara recuou para permitir
aos que se aproximavam de surgirem na imagem. Era Leonova, Rochefoux, Shanga, Lao
Tchang. Vieram se colocar ao lado de Hoover, dando-lhe a caução de suas presenças. Atrás
deles a luz dos projetores revelava os rostos dos sábios de todas as nacionalidades que há
meses se batiam contra o gelo para lhe arrancar seu segredo. Hoover recomeçou:
- Vocês veem, estamos todos aqui. E todos decididos. Jamais permitiremos as
mancomunações privadas, nacionais ou internacionais, não deixaremos que ponham a mão
sobre bens do qual depende talvez a felicidade dos homens de hoje e de amanhã. De todos os
homens, e não somente de alguns e de tais ou quais categorias.
Passou a mão na testa, deu um pigarro e continuou:
— Não temos confiança na ONU. Não temos confiança em sua representação militar.
Se soldados desembarcarem no 612, deixaremos cair a pilha atômica dentro do poço e o
faremos explodir!...
Ficou imóvel durante um instante, silencioso, para dar tempo aos ouvintes de digerirem a
enormidade da decisão tomada. Depois a sua imagem apagou-se e surgiu a de Leonova.
O seu queixo tremia. Ela abriu a boca e não conseguiu falar. A mão gorda de Hoover
apoiou-se sobre o seu ombro. Leonova fechou os olhos, respirou fundo, e encontrou um pouco
de calma.
— Nós queremos trabalhar aqui para todos os homens — disse ela. — É fácil nos impedir.
Não dispomos de um parafuso ou de uma migalha de pão que não seja enviado por uma ou
outra nação. Basta nos cortar a remessa de víveres. Ou simplesmente usarem de má vontade.
Nosso sucesso, até o momento, foi o resultado de um esforço concentrado e desinteressado
das nações. É preciso que esse esforço continue com a mesma intensidade.
Vocês podem obter, vocês que nos escutam. Não é aos governos, nem aos políticos que eu
me dirijo. É aos homens, às mulheres, aos povos, a todos os povos. Escrevam aos vossos
governos, aos chefes de Estado, aos ministros, aos sovietes. Escrevam imediatamente,
escrevam todos! Vocês ainda podem salvar tudo!
Ela transpirava. A câmara mostrou-a mais de perto. Via-se o suor banhar o seu rosto.
Uma mão entrou na imagem, alcançando-lhe um lenço de papel cor de ouro. Ela o pegou e
apalpou sobre a testa e sobre os lados do nariz. Prosseguiu:
— Se temos que renunciar, não abandonaremos, seja aquém for, as possibilidades de
conhecimentos, que, mal empregados, poderiam acarretar para o mundo uma infelicidade
irreparável. Se nos obrigam a partir, não deixaremos nada atrás de nós.
Virou-se e passou o lenço nos olhos. Ela chorava.
Em quase todos os lugares onde a televisão era um monopólio do Estado a transmissão do
apelo dos sábios tinha sido cortada antes do fim. Mas durante doze horas, a antena de EPI-1
continuava a bombardear o satélite Trio com as imagens de Hoover e de Leonova. E Trio,
objeto científico perfeitamente desligado de opinião, as transmitiu durante doze horas a seus
gêmeos e seus primos que circulavam no globo todo. Quase dois terços dentre eles emitiam
com grande potência para serem captados diretamente em receptores particulares. Cada vez
que as imagens recomeçavam, a máquina traduzia as palavras em uma língua diferente. E no
fim apareciam os dois seres do passado, na sua beleza e na sua imobilidade total, tal como as
telas os haviam mostrado a primeira vez.
A emissão se superpunha aos programas previstos, embaralhava tudo, e acabava por
passar por trechos diferentes e por ser compreendida por aqueles que queriam compreender.
Durante o meio dia que se seguiu, todos os serviços de rádio foram brutalmente
controlados. Nas menores cidades de Auvergne ou Béloutchistan, as caixas de correio
transbordavam. Desde os primeiros centros de reagrupamento das malas postais, as salas de
recepção estavam cheias até o teto. No escalão acima, era a submersão total. Os poderes
públicos e as companhias privadas negaram-se a transportar este correio mais longe. Não era
necessário lê-lo Sua abundância era sem significado. Pela primeira vez, os povos
manifestavam, acima de suas línguas, suas fronteiras, suas diferenças e suas divisões, uma
vontade comum. Nenhum governo podia ir contra sentimento de tamanha amplidão.
Novas instruções foram dadas aos delegados da ONU.
Uma moção foi votada em meio ao entusiasmo e à unanimidade, anulando o envio da tropa,
e exprimindo a confiança das nações nos sábios do EPI para conduzir ao bem... etc, para o
maior bem... etc, a fraternidade dos povos... etc, do presente e do passado, ponto final.
Os reanimadores aos quais o comunicado dos sábios havia feito um apelo tinham chegado
com suas equipes e seu material.
Sob a orientação de Lebeau, os técnicos e operários construíram uma sala de reanimação
no interior da esfera, acima do ovo.
Um problema grave apresentou-se aos responsáveis: por quem começar? Pe1o homem ou
pela mulher?
O primeiro a ser reanimado, forçosamente teria que correr riscos. O segundo, ao contrário,
se beneficiaria da experiência. Era preciso começar pelo menos precioso. Mas qual era ele?
Para o árabe, não havia dúvida. O único que contava era o homem. Para o americano, era
em torno da mulher que deveriam tomar a mais respeitosa das precauções, e até mesmo
arriscar por ela a vida do homem. O holandês não tinha opinião; o iugoslavo e o francês,
embora evitassem opinar, a tendência deles era para o lado masculino.
— Meus caros colegas — disse Lebeau no curso de uma das reuniões — vocês sabem tão
bem quanto eu, que os cérebros masculinos são superiores em volume e peso aos cérebros
femininos. Se é o cérebro que nos interessa, parece-me então que é o homem que nós devemos
reservar para a segunda intervenção.
— Mas pessoalmente — acrescentou ele sorrindo — depois de ter visto a mulher, teria
facilmente uma tendência maior em pensar que uma tal beleza tem mais importância que o
saber, por maior que ele seja...
— Não há razão — disse Moissov — para que tratemos um antes do outro. Os direitos são
iguais. Proponho que formemos duas equipes e que operemos ao mesmo tempo sobre os dois.
Era generoso, porém impossível. Não havia bastante espaço, nem bastante material. E os
conhecimentos dos dez sábios não seriam demais, juntando-os todos, para fazer a luz nos
momentos difíceis. Quanto ao raciocínio de Lebeau, ele era válido para os cérebros de hoje.
Mas quem podia afirmar que na época de onde tinham vindo estes dois seres a diferença de
peso e de volume existia? E se existia, quem sabe, naquele momento, ela não seria ao
contrário a favor dos cérebros femininos? As máscaras de ouro que escondiam as duas
cabeças não permitiam mesmo fazer uma comparação aproximativa do seu volume, e, por
dedução, dos seus conteúdos...
O holandês Van Houcke era especialista notável em hibernação de focas. Mantinha uma
congelada há doze anos. Aquecia-a, despertava-a todo ano, na entrada da primavera.
Fazia com que ela se regalasse com alguns arenques, e depois que ela os havia digerido,
ele a recongelava.
Mas, afora essa especialidade, era um homem muito esperto. Confiou aos jornalistas as
dúvidas dos seus colegas, e pediu-lhes conselho.
Pelo Trio, os jornalistas encantados expuseram a situação à opinião mundial e fizeram uma
pergunta: "Por quem se deve começar? Pelo homem ou pela mulher?".
Hoover havia finalmente recebido o seu macacão. Vestiu-o e desceu no ovo.
Desapareceu no nevoeiro. Quando voltou, pediu ao conselho para se reunir com os
reanimadores.
— É preciso se decidir — disse ele. — Os blocos de hélio estão diminuindo. O
mecanismo que transmitia o frio continua a funcionar, mas nossa intrusão no ovo tirou-lhe uma
parte de sua eficiência. Se vocês permitirem, vou dar a minha opinião. Acabo de ver de perto
o homem e a mulher... Meu Deus, como ela é bela!... Mas não é esta a questão. Ela pareceu-me
estar em melhor estado do que ele. Ele apresenta no peito e em diversos lugares do corpo,
pequenas alterações de cor na pele, que talvez sejam sinais de lesões epidérmicas
superficiais. Ou talvez não sejam nada, eu não sei. Mas creio — digo francamente que creio, é
uma impressão, não uma convicção — que ela é mais forte que ele, mais capaz de suportar os
vossos pequenos erros, se é que vocês o farão. Vocês são médicos, olhem-nos de novo,
examinem o homem pensando no que eu acabo de dizer, e decidam. Na minha opinião, é pela
mulher que se deve começar.
Eles nem desceram no ovo. Era preciso começar por qualquer um. Basearam-se na opinião
de Hoover.

Assim, enquanto a opinião pública se apaixonava, enquanto a metade masculina e a metade


feminina da humanidade investiam uma contra a outra, as disputas estouravam em todas as
famílias, entre todos os casais, entre os colegiais e estudantes que se entregavam a discussões
ferozes, os seis reanimadores decidiram começar pela mulher.
Como poderiam saber que cometeriam um erro trágico se tivessem escolhido começar
pelo homem?
A mangueira de ar foi dirigida para o bloco da esquerda, e começou a lançar ar na
temperatura da superfície, que era de menos 32 graus. O bloco de hélio desmanchou-se em
alguns instantes. Passou diretamente do estado sólido ao estado gasoso e desapareceu,
deixando a mulher intacta dentro do seu caixão. Os quatro homens de macacão que a olhavam
estremeceram. Parecia-lhes que agora, toda nua dentro deste caixão de metal, envolvida pelo
turbilhão de bruma gelada, ela deveria sentir frio mortal. Todavia, ela estava sensivelmente
mais aquecida.
Simon estava entre os quatro. Lebeau lhe havia pedido, em virtude dos seus conhecimentos
de problemas polares, e de tudo o que ele já sabia da esfera, de ovo e do casal, para que se
juntasse à equipe de reanimação.
Ele deu a volta no caixão. Segurava sem jeito, numa das suas luvas de astronauta, um
grande par de pinças cortantes. A um sinal de Lebeau inclinou-se, e cortou o canudo metálico
que ligava a máscara de ouro à parte de trás do caixão. Lebeau, com uma delicadeza infinita,
tentou erguer a máscara, mas não o conseguiu. Parecia estar soldada na cabeça da mulher,
embora fosse visivelmente separada por um espaço de pelo menos um centímetro.
Lebeau endireitou-se, fez um sinal de renúncia, e dirigiu-se para a escada de ouro. Os
outros o seguiram.
Eles não podiam ficar lá muito tempo. O frio entrava por dentro de suas vestes protetoras.
E não podiam levar a mulher pois, na temperatura em que ela ainda estava, arriscavam-se a
quebrá-la como a um vidro.
A mangueira de ar, teleguiada da sala de reanimação, continuava passeando lentamente ao
redor dela, banhando-a com uma corrente de ar com uma temperatura aproximada de 20 graus.
Algumas horas mais tarde os quatro desceram novamente. Sincronizando seus movimentos,
escorregaram suas mãos enluvadas por baixo da mulher congelada e a separaram do caixão.
Lebeau tinha medo de que ela ficasse colada ao metal pelo gelo. Mas isso não aconteceu e as
oito mãos a ergueram, rija como uma estátua, e a carregaram acima dos ombros. Depois os
quatro homens começaram a andar lentamente, com um medo enorme de dar um passo em
falso. A neve pulverulenta batia-lhe nas pernas e afastava-se diante deles como a água.
Grotescos dentro dos seus macacões com capuz, meio apagados pela bruma eles tinham um ar
de personagem de pesadelo, levando para outro mundo a mulher que o atormentava em sonhos.
Subiram a escadaria de ouro e saíram pelo buraco luminoso da porta. A mangueira de ar foi
retirada e o bloco transparente onde o homem permaneceu, que havia diminuído bastante no
decorrer da operação, parou de se reduzir.
Os quatro entraram na sala de operação e depositaram a mulher sobre a mesa de
reanimação. Daquele momento em diante nada mais podia parar o desenvolvimento fatal dos
acontecimentos.
Na superfície, a entrada do poço tinha sido cercada por uma construção de enormes blocos
de gelo que o seu próprio peso ligava uns aos outros. Pesada porta sobre trilhos fechava o
acesso. No interior se encontravam as instalações de foles, o relais da tevê, do telefone, da
máquina tradutora, da corrente de força e luz, os motores dos elevadores, dos monta-cargas e
suas estações de saída, baterias, e acumuladores de socorro a eletrólise seca.
Diante das portas dos elevadores, Rochefoux enfrentava uma multidão de jornalistas.
Ele havia fechado as portas e colocado as chaves no bolso. Os jornalistas protestavam
violentamente, em todas as línguas. Queriam ver a mulher, assistir ao seu despertar.
Rochefoux, sorrindo, declarou-lhes que isto não era possível. A parte o pessoal da equipe
médica, ninguém, nem ele mesmo, seria admitido na sala de operações.
Conseguiu acalmá-los prometendo-lhes que veriam tudo pela televisão interna, na grande
tela da Sala das Conferências.
Simon e os seis reanimadores, vestidos de blusas verde-claras com chapéus e mascaras de
cirurgião, botas de algodão branco, luvas de látex rosa, rodeavam a mesa de reanimação.
Uma coberta aquecedora envolvia a mulher até a altura o queixo. A máscara de ouro
continuava cobrindo o seu rosto. Pelas frestas a coberta saíam fios multicores que se ligavam
a aparelhos de medida, correias, eletrodos, ventosa, apalpadores aplicados em diferentes
lugares do seu corpo gelado.
Nove técnicos, vestidos de blusas amarelas, mascarados como os cirurgiões, não tiravam
os olhos dos quadrantes dos aparelhos. Quatro enfermeiras e três enfermeiros de azul ficavam
próximos de cada médico, prontos a obedecer imediatamente.
Lebeau, reconhecível por causa de suas enormes sobrancelhas grisalhas, inclinou-se em
direção à mesa, e, mais uma vez, tentou arrancar a máscara. A proteção se mexeu, mas parecia
esta presa por uma espécie de haste central.
— Temperatura? — perguntou Lebeau. Um homem amarelo respondeu: — Fole. Cinco
positivos. — Uma mulher azul estendeu a extremidade de um tubo macio, que Lebeau
introduziu entre a máscara e o queixo.
— Pressão cem gramas, temperatura quinze.
Um homem amarelo virou dois pequenos volantes e repetiu os números.
— Mande — ordenou Lebeau.
Um assobio fraquinho fez-se ouvir. O ar a quinze graus correu entre a máscara e o rosto da
moça. Lebeau endireitou-se e olhou para os seus colegas. Seu olhar estava sério, no limite da
ansiedade. Uma mulher de azul, com uma compressa de gaze, enxugou-lhe as têmporas onde o
suor escorria.
— Experimente — falou Forster.
— Alguns minutos — disse Lebeau. — Atenção à parte de cima... De cima! Foram minutos
intermináveis. Os vinte e três homens e mulheres presentes na sala esperavam, em pé. Eles
ouviam seus corações martelando dentro do peito e sentiam o peso dos seus corpos enrijecer
os músculos de suas pernas como uma pedra. A câmara n° 1 virada para a máscara de ouro
enviava a imagem gigantesca sobre a grande tela. Um silêncio total reinava na Sala de
Conferências, mais uma vez cheia até o limite. O difusor fazia ouvir as respirações agitadas
por trás das máscaras de algodão, e o longo sopro de ar sob a máscara de ouro.
— Quanto tempo? — perguntou Lebeau.
— Três minutos e dezessete segundos — disse um homem amarelo.
— Vou experimentar — disse Lebeau.
Inclinou-se de novo para a mulher, introduziu a ponta dos seus dedos sob a máscara e
apoiou suavemente a ponta do queixo, que cedeu com lentidão. A boca da mulher que não se
podia ver, deveria estar aberta. Lebeau pegou a máscara com as duas mãos e, mais uma vez,
muito lentamente, tentou erguê-la. Não houve mais resistência...
Lebeau suspirou e sob as grossas sobrancelhas seus olhos sorriram. Com o mesmo
movimento, sem pressa, ele continuou a levantar a máscara.
— Era exatamente o que pensávamos: máscara de ar ou de oxigênio. Ela estava com uma
ponteira na boca...
Ergueu totalmente a máscara e tirou-a. Efetivamente, no lugar da boca encontrava-se uma
saliência orlada de uma borda, de matéria translúcida que parecia elástica.
— Vejam! — disse a seus colegas, mostrando-lhes o interior da máscara. Mas ninguém
olhou. Todos admiravam o rosto da mulher.

Primeiro vi a tua boca entreaberta. À tua boca entreaberta, o recorte quase


transparente dos dentes delicados que apareciam em cima e embaixo, ultrapassando apenas
a borda dos teus lábios pálidos. Comecei a tremer. Via demais dessas bocas entreabertas no
hospital, as bocas dos corpos que a seiva da vida acabara de abandonar, deixando de um só
golpe todas as células, e que, bruscamente, não são mais do que carne vazia, exposta à
gravidade.
Porém Moissov colocou sua mão em concha sob teu queixo, carinhosamente fechou tua
boca, esperou um segundo, e retirou a mão. E tua boca ficou fechada...

Sua boca fechada — nacarada pelo frio e pelo sangue retirado — era como o debrum de
uma concha frágil. Suas pálpebras eram duas longas folhas sobre as quais os cílios e as
sobrancelhas desenhavam o contorno sombreado de dourado. Seu nariz era pequeno, bem
feito, suas narinas ligeiramente acesas e bem desenhadas. Seus cabelos de um castanho quente,
como batidos por uma luz de ouro, rodeavam sua cabeça com pequenas ondas de raios de sol
e escondiam parte da testa e das faces. Das orelhas apareciam somente o lóbulo da esquerda,
como uma pétala engastada num brinco.
Houve um grande suspiro, por parte do homem, ao microfone o qual a máquina tradutora
não soube reproduzir. Haman inclinou-se, afastou os cabelos da mulher e começou a instalar
os eletrodos do encefalógrafo.
Na cave do Hotel Internacional de Londres — à prova de bomba A, mas não da bomba H;
de desmoronamentos, mas não de um golpe direto bastante sólido para dar segurança a uma
clientela rica que exigia esta segurança ao lado do conforto — suficientemente e visivelmente
blindada para inspirar confiança, mas não para assegurar proteção — ninguém, nada poderia
proteger nada nem ninguém —, a cave do Internacional de Londres, por sua arquitetura, sua
calefação e sua betonagem, reunia as condições ideais para se transformar num shaker.
Era assim que se chamavam as salas, cada vez maiores, onde se reuniam rapazes e moças
de todas as classes, para aí se entregar em comum a danças frenéticas. Pressionados por seus
instintos dirigidos para uma nova concepção de vida, os jovens se encerravam ali, sacudidos
por pulsações sonoras e perdiam os últimos vestígios de preconceitos e de convenções que
ainda lhes acossavam. A cave do Internacional de Londres era o mais vasto shaker da Europa.
E também um dos mais quentes.
Seis mil rapazes e moças. Uma só orquestra, porém doze alto-falantes iônicos sem
membrana que faziam vibrar o ar da cave como o interior de um sax-tenor. E mais Yuni, o
brasa de Londres, dezesseis anos, cabelos raspados, óculos de fundo de garrafa, um olho
vesgo, o outro esbugalhado, yuni que convencera a administração do hotel a lhe alugar a cave.
Nenhuma nota musical chegava aos ouvidos dos hóspedes que ocupavam os andares.
Às vezes, alguns desciam para "balançar o esqueleto" e subiam maravilhados — e
apavorados — pelo espetáculo dessa juventude em estado primitivo e efervescente.
Yuni, diante de um teclado, na cadeira de alumínio presa ao muro acima da orquestra, uma
orelha escondida por um enorme aparelho de escuta em feitio de couve-flor, escutava todas as
orquestras e, quando encontrava uma música quente, ligava-a nos alto-falantes mais próximos.
De olhos fechados, ele escutava. Num ouvido o barulho enorme da cave, no outro, três
medidas, duas medidas, vinte medidas colhidas no inatingível. Em intervalos, sem abrir o
olho, soltava um grito agudo e longo, que ressoava acima do barulho do fundo.
De repente arregalou os olhos, cortou o som e gritou:
— Ouçam! Ouçam!
A orquestra calou-se. Seis mil corpos suados ficaram repentinamente no silêncio e na
imobilidade. Enquanto que por trás do estupor a consciência começava a renascer neles, Yuni
continuava:
— Notícia sobre a moça congelada!
Assobios, xingamentos. Bolas! Se dane! Vá lá você esquentá-la! Que é que eu tenho com
isso!
Yuni gritou: — Cambada de ratos! Escutem!
Ligou na BBC. Nos doze alto-falantes soou a voz do speaker de serviço. Ela encheu o ar
da cave com uma vibração forte e bem marcada:
— Difundimos pela segunda vez o documento que nos chegou do ponto 612. Isto constitui
certamente a mais importante notícia do dia...
Pigarros. Silêncio. O céu penetrou na cave com o ruído indizível da multidão que caminha
pela noite cósmica: o barulho das estrelas. Depois a voz de Hoover. Como se estivesse
ofegante. Talvez estivesse com asma. Ou o coração envolvido por uma grande emoção.
— Aqui é EPI. Ponto 612. Hoover falando. Estou feliz... muito feliz... de vos ler o
comunicado seguinte chegado da sala de operações: "O processo de reanimação prossegue
normalmente. Hoje, 17 de novembro, às 14h52m, hora local, o coração da jovem mulher
recomeçou a bater..."
A cave explodiu num grito. Yuni, visivelmente contrariado, berrou mais forte: — Calem a
boca! Vocês são uns burros! Vocês não têm alma! Escutem! Obedeceram.
Obedeciam tanto à voz como à música. Contanto que esta fosse mais forte. Feito silêncio,
ouviu-se de novo a voz de Hoover:
— As primeiras batidas do coração dessa mulher foram registradas. O órgão não batia há
mais de novecentos mil anos. Escutem... Desta vez, verdadeiramente, todos se calaram.
Yuni fechou os olhos, o rosto iluminado. Ouvia a mesma coisa nos seus dois ouvidos.
Escutava:
Silêncio.
Uma batida surda: bum... Uma só.
Silêncio... silêncio... silêncio... Bum...
Silêncio... silêncio... Bum... Silêncio... Bum... bum... Silêncio...
Bum... bum... bum... bum, bum, bum...
O bateria da orquestra respondeu, suavemente, em contraponto, com o pé na caixa.
Depois acrescentou a ponta dos dedos. Yuni superpôs a orquestra e as ondas. O
contrabaixo uniu-se à bateria e ao coração. O clarinete gritou uma longa nota, depois terminou
numa improvisação alegre. Os seis violões elétricos e os dois violões de aço desandaram a
tocar. O baterista batia por sua vez em todas as peles... Yuni gritou como um minarete:
— Ela está acordada! Bum! Bum! Bum! Os seis mil cantavam:
— Ela está acordada!... Ela está acordada!...
Seis mil cantavam, dançavam, no ritmo do coração que acabava de renascer. Assim nasceu
o wake, a dança do despertar... Aqueles que queriam dançar, dancem. Aqueles que podem
acordar, acordem.
Não, ela não estava acordada. Suas longas pálpebras ainda estavam abaixadas sobre o
sono interminável. Mas seu coração batia com uma potência tranquila, seus pulmões
respiravam calmamente, sua temperatura subia pouco a pouco em direção à vida.
Atenção: — disse Lebeau, inclinado sobre o encefalograma. — Pulsações irregulares...
Ela sonha!
Ela sonhava! Um sonho que a havia acompanhado, enroscado, gelado dentro de alguma
parte da sua cabeça, e agora aquecido vinha a florescer. Florescer em que espantosas
imagens? Azuis ou negras? Sonho ou pesadelo? As pulsações do coração subiram bruscamente
de 30 para 45, a pressão sanguínea atingiu o limite, a respiração acelerou-se e tornou-se
regular, a temperatura subiu para 36 graus.
— Atenção! — exclamou Lebeau. — Pulsações do pré-despertar. Ela vai acordar! Ela
acorda! Tirem o oxigênio!
Simon ergueu o inalador e estendeu-o para a enfermeira. As pálpebras da moça tremeram.
Uma pequena sombra de dúvida apareceu na parte de baixo das suas pálpebras.
— Nós vamos lhe meter medo! — disse Simon.
Arrancou a máscara de cirurgião que lhe cobria a parte inferior do rosto. Todos os
médicos o imitaram.
Lentamente, as pálpebras se ergueram, os olhos apareceram, incrivelmente grandes. O
branco era muito claro, muito puro. A íris larga, um pouco eclipsada pela pálpebra superior,
era de um azul de céu em noite de verão, semeado de lantejoulas de ouro.
Seus olhos estavam fixos no teto, que certamente não viam. Depois piscaram vezes
seguidas, suas sobrancelhas se ergueram, seus olhos mexeram, olharam e viram. Viram
primeiro Simon, depois Moissov, Lebeau, os enfermeiros, todo mundo. Uma expressão de
espanto invadiu seu rosto de mulher. Tentou falar, abriu a boca, mas não chegou a ter o
comando dos músculos da língua nem da garganta. Emitiu uma espécie de estertor. Fez um
esforço enorme para erguer um pouco a cabeça e olhar tudo. Ela não compreendia onde
estava, tinha medo, e ninguém podia fazer nada para dar-lhe confiança. Moissov sorriu-lhe.
Simon tremia de emoção. Lebeau começou a falar muito carinhosamente. Recitou dois
versos de Racine, as palavras mais harmoniosas que alguma língua já pôde reunir: Ariane,
minha irmã, de que amor ferida...
Era a canção do verbo perfeito e acariciante. Mas a mulher não escutava. Via-se que o
horror a dominava. Mais uma vez ela tentou falar, sem conseguir. Seu queixo começou a
tremer. Ela fechou os olhos e deixou a cabeça cair para trás.
— Oxigênio! — ordenou Lebeau. — E o coração?
— Normal! Cinquenta e dois... — disse um homem amarelo.
— Desmaiou... — observou Van Houcke. — Nós lhe metemos um medo enorme... O que
ela esperava encontrar?
— Bem, é como se você fizesse sua filha dormir e ela acordasse no meio de um bando de
feiticeiros... — disse Forster.
Os médicos decidiram aproveitar do seu desmaio para carregá-la para a superfície, onde
uma sala mais confortável a esperava na enfermaria. Ela foi introduzida numa espécie de caixa
plástica transparente, com a parede dupla isolante, alimentada por uma bomba de ar. Quatro
homens carregaram-na ate o elevador. Todos os fotógrafos da imprensa deixaram a sala do
Conselho para se precipitar ao seu encontro. Os jornalistas estavam já nas cabinas de rádio, a
telefonar para o mundo inteiro sobre aquilo que eles haviam visto e que não haviam visto. A
grande tela mostrava os homens amarelos retirando suas máscaras do rosto e se
desembaraçando dos seus aparelhos. Lanson apagou a imagem da sala de trabalho e substituiu-
a pela que enviava a câmara de controle do interior do ovo.
Leonova levantou-se bruscamente:
— Olhe! — disse ela apontando seu dedo em direção à tela. — Sr. Lanson, focalize sobre
o pedestal da esquerda.
A imagem do pedestal com o caixão vazio apareceu, cresceu e fez-se ver atrás de um
ligeiro véu de bruma. Repararam então que faltava um dos seus lados. Toda uma parede
vertical havia se afundado no solo, aparecendo uma espécie de estante com prateleiras
metálicas sobre as quais estavam colocados objetos de formas desconhecidas.
Quando a mulher deixou a sala de operação, os objetos achados na prateleira a substituíam
sobre a mesa de reanimação. Voltavam a sua temperatura normal.
Constituíam, de certa maneira, a "bagagem" da viajante adormecida.
Agora não eram mais os médicos que rodeavam a mesa, eram os sábios, s mais
suscetíveis, por sua especialidade, de compreender o uso, e o funcionamento desses objetos.
Leonova pegou com toda a precaução alguma coisa que parecia ser uma roupa dobrada e a
desdobrou. Era algo que não era papel nem fazenda, de cor alaranjada, com desenhos
amarelos e vermelhos. O frio absoluto o havia guardado num estado de conservação perfeita.
Era leve, fino e parecia sólido, avia vários, de cores, formas e dimensões diferentes. Sem
nenhuma manga, em abertura de espécie alguma, nem botões, nem fechos, nem nada, nenhuma
maneira de os colocar ou de fixá-los.
Foram pesados, medidos, numerados, fotografados, e tiraram-lhes amostras microscópicas
para análises. Depois passaram ao objeto seguinte.
Era um cubo com os cantos arredondados, com 22 centímetros de aresta. Comportava,
grudado numa de suas faces, um tubo oco e disposto em posição diagonal. O todo era
compacto, feito de uma matéria sólida e leve, de um cinza muito claro. O físico Hoi-To
segurou-o na mão, olhou-o longamente e olhou os outros objetos.
Havia uma caixa sem tampa que continha varinhas octogonais de cores diferentes.
Pegou uma e introduziu-a no tubo oco colado ao cubo. Logo, uma luz nasceu dentro do
objeto e iluminou-o suavemente.
E o objeto suspirou... Hoi-To teve um pequeno sorriso. Suas mãos delicadas botaram o
cubo de volta sobre a mesa branca.
Agora o objeto falava. Uma voz feminina falava em voz baixa, numa língua desconhecida.
Nasceu uma música, semelhante ao sopro de um vento ligeiro numa floresta povoada de
pássaros e de harpas eólias. E sobre a face superior do cubo, como projetada do interior, uma
imagem surgiu: o rosto da moça que falava. Parecia com aquele que tinham encontrado dentro
do ovo. Mas não era ela. Sorriu e apagou-se, substituída por uma flor estranha, que por sua
vez derreteu-se numa cor movediça. A voz da mulher continuava. Não era uma canção, não era
uma poesia, era ao mesmo tempo um e outro, era coisa simples e natural como o barulho de
um riacho ou de chuva. E todas as faces do cubo se iluminavam simultaneamente, mostrando
uma mão, uma flor, um sexo, um pássaro, um seio, um rosto, um objeto que mudava de forma e
de cor, uma forma sem objeto, uma cor sem forma.
4
TODOS OLHAVAM e escutavam, interessados. Era o desconhecido, o inesperado, e os
tocava profundamente, como se esse conjunto de imagens e de sons tivesse sido composto
especialmente para cada um, segundo suas aspirações mais secretas e profundas,
ultrapassando todas as convenções e barreiras.
Hoover sacudiu a cabeça, pigarreou e tossiu.
— Que transistor mais gozado — disse ele. — Desligue esse troço. Hoi-To retirou a
varinha do tubo. O tubo apagou-se e silenciou.
No quarto da enfermaria, aquecido a 30 graus, a mulher, nua, jazia estendida sobre um
leito estreito.
Elétrodos, placas, pulseiras fixadas nos seus pulsos, nas suas têmporas, em seus pés, nos
seus braços, ligavam-na por meio de espirais e de ziguezagues aos fios dos aparelhos de
observação.
Duas enfermeiras massageavam os músculos de suas coxas. Um massagista friccionava os
músculos dos seus maxilares. Uma outra enfermeira passava sobre o seu pescoço um aparelho
de infravermelho. Van Houcke apalpava-lhe suavemente a parede do ventre. Os médicos, as
enfermeiras, os técnicos, transpiravam na atmosfera superaquecida, irritados com esse
desmaio que se prolongava. Trocavam olhares, esperavam, davam sua opinião em voz baixa.
Simon olhava a mulher, olhava aqueles que a cercavam, que a tocavam. Apertou os punhos e
os maxilares.
— Seus músculos respondem — disse Van Houcke. — Diríamos que ela está consciente...
Moissov veio para a cabeceira do leito, inclinou-se sobre a moça, ergueu uma pálpebra,
depois a outra...
— Ela está consciente! — disse ele. — Ela fecha os olhos voluntariamente... não está mais
nem desmaiada nem adormecida...
— Por que então ela fecha os olhos? — perguntou Forster. Simon explodiu: — Porque ela
está com medo! Se queremos parar de lhe meter medo, é preciso parar de tratá-la como um
animal de laboratório!
Fez um gesto brusco em direção às cinco pessoas reunidas ao redor do leito.
— Saiam daí! Deixem-na tranquila! Van Houcke protestou. Lebeau interveio: — Ele talvez
tenha razão... Estudou psicoterapia durante dois anos com Pèrier...
Talvez esteja mais capacitado que nós; vamos! Tirem tudo isso daí...
Moissov no mesmo momento retirou os eletrodos do encefalograma. As enfermeiras
desembaraçaram o corpo estendido de todos os outros fios que partiam dele como de uma teia
de aranha. Simon pegou um lençol que estava enrolado nos pés da cama e ergueu-o
delicadamente até os ombros da moça, deixando os seus braços de fora. Ela usava no dedo
maior um grande anel de ouro que tinha a forma de uma pirâmide truncada. Simon pegou a
outra mão entre as suas, a mão esquerda, a mão nua, e a segurou como se segura um passarinho
perdido ao qual se queira infundir confiança.
Lebeau, sem barulho, fez sair as enfermeiras e os técnicos. Trouxe uma cadeira para perto
de Simon, recuou até a parede e fez sinal aos outros médicos para que o imitassem.
Van Houcke sacudiu os ombros e saiu.
Simon sentou-se, deixou sobre o leito suas mãos que seguravam sempre a da mulher, e
começou a falar. Muito carinhosamente, quase cochichando. Muito docemente, muito
ardentemente, muito calmamente, como a uma criança doente que necessita de carinho durante
os pesadelos da febre.
— Nós somos amigos... — disse ele. — Você não compreende o que eu lhe digo, mas você
compreende que eu lhe falo como um amigo... somos amigos... Você pode abrir os olhos...
você pode olhar nossos rostos... nós queremos o seu bem... tudo vai bem... Você vai ver... você
pode acordar... nós somos seus amigos... queremos fazê-la feliz... nós a amamos...
Ela abriu os olhos e olhou-o.
Lá embaixo tinham examinado, pesado, medido, fotografado diversos objetos cujo uso não
havia sido compreendido. Era agora a vez de uma espécie de luva de três dedos. O polegar, o
indicador e um buraco maior para o dedo grande, anular e o mínimo juntos.
Hoover ergueu o objeto.
— Luva para a mão esquerda — disse ele, apresentando à objetiva da câmara
registradora.
Procurou com os olhos a luva da mão direita. Não a via.
— Retificação — acrescentou em tom brincalhão. — Luva para um maneta!...
Colocou sua mão esquerda no interior da luva, e quis dobrar os dedos. O indicador
permaneceu duro, tirou o polegar, os três outros dedos solidários dobraram-se em direção à
palma. Houve um choque abafado, luminoso e sonoro, e um berro. O romeno Ionescu, que
trabalhava diante de Hoover, voava no ar os braços abertos, as pernas retorcidas, como
projetado por uma força enorme e foi estatelar-se contra os aparelhos, despedaçando-os.
Hoover, estupefato, ergueu sua mão para olhá-la. Com um estrondo enorme a parte
superior da parede que estava diante dele e a metade do teto ficaram pulverizados.
Ele teve então o reflexo certo. Pouco antes de fazer saltar o resto do teto e sua própria
cabeça: desdobrou os dedos...
O ar deixou de ficar vermelho.
— Bem... vejam só! — disse Hoover. Segurava com o braço esticado, como se fosse um
objeto estranho e horrível, sua mão enluvada.
Ela tremia.
— A weapon!... — exclamou. A máquina traduziu em dezessete línguas; — Uma arma!...
Ela havia fechado os olhos, porém não mais para se esconder, mas sim por cansaço.
Parecia dominada por uma fadiga infinita:
— Será preciso alimentá-la — disse Lebeau. — Mas como é que vamos saber o que eles
comiam?
— Vocês todos já a viram bastante para saber que ela é mamífera! acrescentou Simon,
furioso. — Deem-lhe leite.
De súbito Simon estacou. Todos prestaram atenção. Ela falava.
Seus lábios se moviam. Falava com uma voz muito fraca. Parava. Recomeçava.
Adivinhavam que estivesse repetindo sempre a mesma frase. Abriu seus olhos azuis e
parecia que o céu havia entrado no quarto. Olhou para Simon e repetiu a frase. Diante da
evidência de que não tinha a menor possibilidade de se fazer compreender, ela fechou os
olhos e calou-se.
Uma enfermeira trouxe uma tigela de leite quente. Simon pegou-a, e encostou
cuidadosamente seu calor nas costas da mão que repousava sobre o lençol. Ela olhou. A
enfermeira ergueu-lhe o busto e sustentou-a. Ela quis segurar a tigela, porém os músculos
delicados das suas mãos ainda não haviam readquirido as forças. Simon levantou a tigela para
ela. Quando o odor lhe chegou às narinas, ela sobressaltou-se, fez uma careta de nojo e
recuou. Olhou à sua volta e repetiu a mesma frase antiga. Tentava visivelmente indicar alguma
coisa...
— É água! Ela quer água! — disse Simon, percebendo, subitamente a evidência.
Era exatamente o que ela queria. Tomou um copo e mais a metade de um segundo.
Depois que se deitou novamente, Simon colocou a mão sobre o seu próprio peito e disse
carinhosamente o seu nome:
— Simon...
Repetiu duas vezes a palavra e o gesto. Ela compreendeu. Olhando Simon, ergueu sua mão
esquerda, colocou-a na sua própria testa e disse:
— Eléa...
Sem parar de olhá-lo, ela recomeçou seu gesto e disse novamente: — Eléa...
Os homens que haviam ido buscar o corpo de Ionescu para o transportar tiveram a
impressão de pegar um invólucro de borracha cheio de areia e cascalho. Ele tinha só um
pouco de sangue nas narinas e nos cantos da boca, porém todos os seus ossos estavam
quebrados e o interior do seu corpo reduzido a farinha.
Já haviam se passado vários dias desde o acidente, mas Hoover ainda se surpreendia
examinando furtivamente sua mão esquerda e a baixar os três dedos na direção da palma, o
indicador e o polegar esticados. Se ele se encontrava nas proximidades de uma garrafa de
scotch, ou mesmo de qualquer brandy, apressava-se em buscar nelas o conforto do qual tinha
grande necessidade. Era preciso uma gigantesca força de caráter para suportar a fatalidade
que o havia tornado duas vezes, em algumas semanas, num assassino. Ele não tinha, bem
entendido, até então morto ninguém, não havia nem mesmo matado nada, nem um coelho na
caça, nem um peixe na pesca, absolutamente nada.
A arma e os objetos ainda não examinados tinham sido recolocados, prudentemente, na
estante onde haviam sido encontrados. Os operários reconstruíam a sala de reanimação e os
técnicos consertavam o que podiam. Mas vários aparelhos estavam inteiramente destruídos.
Fizera-se necessário esperar que fossem substituídos para iniciarem as operações sobre o
segundo ocupante do ovo.
Eléa — esse era provavelmente o seu nome — recusava todos os alimentos. Tentaram
introduzir por intermédio de uma sonda, um pouco de caldo no seu estômago. Ela se debateu
tão violentamente que tiveram que amarrá-la. Mas não chegaram a conseguir que ela abrisse
os maxilares. Foi necessário fazer a sonda penetrar por uma narina. Apenas o caldo penetrou
no seu estômago, ela o vomitou.
Simon a princípio havia protestado contra estas violências. Depois se conformara. O
resultado convenceu-o de que ele tinha razão e de que este não era um método certo.
Enquanto os seus colegas chegavam à conclusão de que o sistema digestivo da mulher do
passado não era feito para digerir os alimentos do presente, e analisavam o caldo rejeitado na
esperança de neles encontrar ensinamentos sobre o seu suco gástrico, Simon repetia para si
próprio a única pergunta que, na sua opinião, tinha valor: — Como, como comunicar?
Comunicar, escutá-la, compreendê-la, saber de que tinha ela necessidade. Como, como
fazê-lo?
Presa dentro de uma camisola, os braços e as coxas mantidos por correias, ela não reagia
mais. Imóvel, as pálpebras novamente fechadas sobre o imenso céu dos seus olhos, ela
parecia estar no auge do medo e da resignação. Uma agulha fina enfiada na veia do seu braço
direito injetava-lhe o soro alimentador contido numa ampola suspensa na cabeceira do leito.
Simon olhava com raiva esse apetrecho bárbaro, atroz, que era, no entanto, o único meio de
prolongar momento em que ela iria morrer de fome. Ele não suportava mais aquilo. Era
necessário...
Saiu bruscamente do quarto, atravessou a enfermaria e penetrou num corredor de onze
metros de largura e de trezentos metros de comprimento, que servia coluna vertebral ao EPI-2.
Tinham-lhe dado o nome de Avenida Amundsen, em homenagem ao primeiro homem que
tinha estado no Polo Sul. Primeiro, pelo menos ao que se supunha. Ruas pequenas e portas de
edifício se abriam à esquerda e à direita Algumas pequenas plataformas elétricas baixas, com
pneus grossos amarelos serviam para transportar o material, segundo a necessidade. Simon
saltou nutria delas abandonada perto da porta da enfermaria, e se apoiou sobre a manivela, O
veículo arrancou ronronando como um gato.
Alcançando a superfície, Simon saltou sobre o gelo áspero e começou a correr. A máquina
tradutora estava quase na extremidade da avenida. A pilha atômica vinha a seguir, depois de
uma curva de cento e vinte graus.
Entrou no complexo da tradutora, abriu seis portas antes de encontrar a certa, respondendo
com um gesto irritado as perguntas feitas, parou finalmente numa peça estreita cujo muro no
fundo, um muro mais alto, era forrado de borracha, plástico e coberto de lã. Havia outro muro
de vidro e um terceiro, de metal. Diante deste corriam um consolo de quadrantes, de
mosaicos, botões, manivelas, visores, microfones, botões para ligar instrumentos, cordões.
Diante do consolo, uma cadeira com rodas e, sobre a cadeira, Lukos, o filólogo turco.
Era uma inteligência de gênio num corpo de estivador. Dava, mesmo sentado, a impressão
de uma força prodigiosa. A cadeira desaparecia sob a massa de músculos das suas nádegas.
Ele parecia capaz de carregar nas costas um cavalo ou um boi, ou quem sabe os dois ao
mesmo tempo.
Fora ele que concebera o cérebro da máquina tradutora. Os americanos não tinham
acreditado, os europeus não tinham podido, os russos tinham desconfiado, e afinal, os
japoneses o tinham ajudado e fornecido todos os meios.
O exemplar do EPI-2 era o décimo segundo posto em serviço nos últimos três anos, e o
mais aperfeiçoado. Traduzia dezessete línguas, mas Lukos conhecia, ele próprio, dez vezes ou
talvez vinte vezes mais. Possuía o gênio do poliglotismo assim como Mozart tinha o gênio da
música. Diante de uma língua nova, bastava-lhe um documento, uma referência permitindo-lhe
uma comparação, e algumas horas, para ele, por deduções e analogias, começar a
compreender sua estrutura e logo considerar o vocabulário como familiar. E no entanto ele
emudecia diante do idioma de "Eléa".
Dispunha de dois elementos de trabalho que lá estavam, colocados diante dele: o cubo
cantante, e um outro objeto que não era maior que um livro de bolso. Sobre um dos lados do
prato desenrolava-se uma fita luminosa coberta de linhas regulares: cada linha era composta
de uma série de sinais que pareciam constituir uma escrita. Imagens, visíveis em três
dimensões, representando pessoas em ação, acabavam de fazer este objeto análogo a um livro
ilustrado.
— E então? — perguntou Simon.
Lukos sacudiu os ombros. Há dois dias que ele desenhava sobre a tela do registrador da
tradutora grupos de sinais que pareciam não ter nenhuma relação uns com os outros.
Esta linha estranha parecia ser composta de palavras completamente diferentes e que não
se repetiam jamais.
— Há qualquer coisa que me escapa — resmungou ele. — E a ela também. Bateu com sua
mão pesada no metal do consolo, depois escorregou uma varinha de madeira para dentro do
cubo musical. Desta vez foi uma voz de homem que começou a falar, e o rosto que apareceu
era o de um homem imberbe, com dois olhos grandes azuis bem claros, cabelos negros, caindo
até os ombros.
— A solução talvez esteja aí — disse Lukos. — A máquina gravou todas as varetas.
São quarenta e sete. Cada uma comporta milhares de sons. A escrita tem mais de dez mil
palavras diferentes. Se é que são palavras!... Quando eu acabar de fazê-la engolir tudo, será
preciso que ela os compare um a um, e por grupos, a cada som e cada grupo de sons, até que
encontre uma ideia geral, uma regra, um caminho, alguma coisa para ser seguida.
Ajudarei, é claro, examinando suas hipóteses e propondo-lhe outras. As imagens ajudarão
a nós dois...
— Dentro de quanto tempo você espera alcançar resultado — perguntou Simon com
ansiedade.
— Dentro de alguns dias... algumas semanas, isto depende.
— Estará morta! — gritou Simon. — Ou então louca! É preciso conseguir depressa!
Hoje! Amanhã, dentro de algumas horas! Sacuda sua máquina! Mobilize toda a base! Há
bastantes técnicos aqui!
Lukos olhou como Menuhin teria olhado alguém que lhe pedisse para "sacudir" seu
Stradivarius para lhe fazer tocar "mais depressa" um prestíssimo de Paganini.
— Minha máquina faz o que ela sabe fazer — disse ele. — Não é de técnicos que ela
precisa. Isto ela tem o suficiente. O que ela precisa é de cérebros...
—Cérebros? Mas não há um lugar no mundo onde você possa encontrar melhores do que
os que estão aqui! Vou pedir uma reunião imediata do Conselho. Você exporá o problema...
—São cérebros pequenos, senhor doutor, são cérebros pequenos de homens. Seria-lhes
necessário séculos de discussão antes de ficarem de acordo sobre a direção de uma vírgula...
Quando digo cérebro, é no dela que eu penso. — Mais uma vez acariciou a beira do consolo
acrescentou:
— No dela e no dos seus semelhantes.
— Um novo SOS partiu da antena do EPI-1. Pedia a colaboração imediata.
As respostas chegaram rapidamente de todos os cantos. Todos os computadores
disponíveis foram colocados a serviço de Lukos e de sua equipe. Mas aqueles que estavam
disponíveis não eram evidentemente nem os maiores nem os melhores. Destes obtiveram
promessas: quando tivessem um instante livre, entre dois programas, não se poderia exigir
mais do que isso. Fariam o impossível,diziam.
Simon fez entrar três câmaras no quarto de Eléa. Uma focalizava a agulha enfiada no braço
a fim de dar-lhe o soro, último recurso para salvar a mulher. A outra sobre o rosto, filmando
as faces que tinham se tornado encovadas. A terceira era dirigida ao corpo desnudo, e
tragicamente emagrecido.
Fez essas imagens serem enviadas pela antena do EPI-3, através do satélite Trio, para todo
o mundo. E falou:
— Ela vai morrer. Vai morrer porque nós não a compreendemos. Morre de fome, e nós a
deixamos morrer porque não a compreendemos quando ela nos diz com o que poderíamos
nutri-la. Vai morrer porque aqueles que poderiam nos ajudar a entendê-la não querem nos
transferir um minuto do tempo dos seus preciosos computadores, ocupados a comparar o
preço do custo líquido de um cano de cabeça octogonal com o de um de cabeça hexagonal ou a
calcular a melhor divisão dos pontos de venda de lenços de papel, segundo o sexo, a idade e a
cor dos habitantes! Olhem-na, olhem-na bem, vocês não a verão mais, ela vai morrer... Nós, os
homens de hoje, mobilizamos uma potência enorme, e as maiores inteligências do nosso
tempo, para ir buscá-la no seu sono no fundo do gelo, para depois matá-la. Vergonha, vergonha
para nós.
Calou-se um instante, e repetiu suavemente, com uma voz arrastada: — Vergonha para
nós...
John Gartner, diretor-presidente da Mecânica e Eletrônica Intercontinental, viu a emissão a
bordo do seu jato particular. Estava indo de Detroit para Bruxelas. Dava suas instruções aos
colaboradores que o acompanhavam e aos que recebiam, ao longe, sua mensagem codificada.
A trinta mil metros acima dos Açores, tomava seu café da manhã: acabava de sorver com um
canudinho a gema de um ovo preparado num envelope esterilizado transparente. Agora tomava
seu suco de laranja com uísque.
— This boy is right* — disse. — Vergonha para nós se não fizermos alguma coisa.

* Este rapaz tem razão. (Em inglês no original.) (N. do T.)

Deu ordem de pôr imediatamente à disposição de EPI-1 todos os grandes calculadores do


seu truste, que possuía sete na América, nove na Europa, três na Ásia, e um na África.
Seus colaboradores desesperados expuseram-lhe as perturbações horríveis que isto iria
causar em todos os domínios da atividade de sua firma. Depois ele iria precisar de meses para
se reorganizar novamente. E haveria o desgaste que ninguém poderia consertar.
— Não tem importância — disse ele. — Vergonha para nós se não fizermos nada.
John Gartner agia naquela hora, acima de tudo, como ser humano mas também fazia valer
seu tato de grande homem de negócios. Deu instruções para que sua decisão fosse levada ao
conhecimento do mundo inteiro, por todos os meios, o mais depressa possível.
No domínio dos negócios a popularidade e as vendas da Mecânica e Eletrônica
Intercontinental aumentaram de dezessete por cento.
Por outro lado, a decisão do presidente da M.E.I. despertou uma reação em cadeia.
Todos os grandes trustes mundiais, os centros de pesquisas, as universidades, os
Ministérios, o próprio Pentágono, e o Centro Russo de Balística fizeram Lukos saber, nas
horas que se seguiram, que seus cérebros eletrônicos estavam à sua disposição. A única coisa
que pediam, se fosse possível, era que ele se apressasse em requisitá-los.
Era uma recomendação irrisória. Todos no 612 sabiam que se lutava contra a morte.
Eléa enfraquecia de hora em hora. Aceitara experimentar outros alimentos mas seu
estômago não os retinha. E ela repetia sempre a mesma sequência de sons que parecia compor
duas palavras, talvez três. Compreender estas palavras, era para isso que trabalhava a
totalidade da mais apurada técnica de todas as nações.
Lá nos confins da Terra, Lukos tentou e conseguiu a mais fantástica associação.
Baseado em suas indicações, todos os grandes calculadores foram ligados uns aos outros,
por fio, sem fio, ondas-imagem e ondas-som, com r elais em todos os satélites estacionários.
Durante algumas horas, os grandes cérebros a serviço de firmas concorrentes, estados-
maiores inimigos, ideologias opostas, de raças que se detestavam, uniram-se numa só imensa
inteligência que circundava a Terra inteira e o céu em volta dela com a rede de suas
comunicações nervosas. Trabalhavam com toda a sua capacidade inimaginável com o único e
desinteressado objetivo de compreender três palavras...
Para entender essas três palavras, era necessário compreender a língua completamente
desconhecida. Extenuados, sujos, os olhos vermelhos de sono, os técnicos nos emissores e
receptores de EPI-1 lutavam contra o tempo e contra o impossível. Sem cessar, injetavam nos
circuitos da máquina novas fornadas de cálculos e de problemas, tudo aquilo que a tradutora
já havia examinado, além das novas hipóteses de Lukos. O cérebro genial do poliglota turco
parecia ter-se dilatado, à proporção do seu imenso homólogo eletrônico. Comunicava-se com
ele numa velocidade incrível, freada somente pelos embaraços dos emissores e dos relais
contra os quais tomava-se de cólera furiosa. Parecia-lhe que poderia passar sem eles, e
entender-se diretamente com a mulher. Essas duas inteligências extraordinárias, a que vivia e
a que parecia viver, faziam mais do que comunicar, estavam niveladas e muito acima dos
demais. Elas se compreendiam.
Simon ia da enfermaria para a tradutora, da tradutora para a enfermaria, impaciente,
aborrecendo os técnicos extenuados que o mandavam passear, e a Lukos, que não lhe
respondia mais.
Enfim, houve um momento em que, bruscamente, tudo se tornou claro. Entre milhares de
combinações, o cérebro encontrou uma lógica e tirou conclusões com a rapidez da luz,
combinou-as, experimentou-as e, em menos de dezessete segundos, entregou à tradutora todos
os segredos da língua desconhecida. Depois disso, o cérebro entrou em pane. Os relais
enfraqueceram, as ligações caíram, a rede nervosa que envolvia o mundo rompeu-se e se
reabsorveu. Do Grande Cérebro não restou nada a não ser seus gânglios independentes que
voltaram a ser o que eram antes, socialistas ou capitalistas, comerciantes ou militares, ou ao
serviço de interesses e de desconfianças.
Entre as quatro paredes de alumínio da grande sala da máquina tradutora reinava o mais
absoluto silêncio. Os dois técnicos de serviço dos armários registrares olhavam Lukos que
pousava sobre a platina receptora a pequena bobina onde estavam registradas as três palavras
de Eléa. Um microfone as havia recolhido tal como ela as pronunciava, cada vez com menos
força, cada vez com menos frequência...
Houve um pequeno clique seco quando foi colocada no lugar. Simon, as duas mãos
apoiadas nas costas da cadeira de Lukos, impacientou-se mais uma vez.
— E então?...
Lukos abaixou o comutador de partida. A bobina pareceu fazer um quarto de volta, mas ela
já estava vazia e o impressor fazia ruído. Lukos estendeu a mão e arrancou a folha sobre a
qual a máquina tradutora acabara de imprimir, num microssegundo, a tradução do mistério.
Ele dava um olhar rápido no texto quando Simon arrancou-o de sua mão e leu a tradução
francesa. Consternado, balançou a cabeça e olhou para Lukos, que tinha tido tempo de ler em
albanês, inglês, alemão e árabe...
Retomou a folha e leu a continuação. Era a mesma coisa. O mesmo absurdo em dezessete
línguas. Isto não fazia mais sentido em espanhol do que russo ou chinês. Em francês dava o
seguinte:
DE COMER MÁQUINA.
Simon não tinha mais força para falar em voz alta.
— Estes cérebros... — sua voz era quase um murmúrio. — Estes grandes cérebros... de
merda...
A cabeça baixa, os ombros caídos, arrastou os pés em direção à parede mais próxima,
ajoelhou-se, estendeu-se, virou as costas para a luz e dormiu, com o nariz enfiado na parede
de alumínio.
Dormiu nove minutos. Acordou bruscamente e levantou-se gritando: — Lukos!
Lukos estava lá, introduzindo na máquina tradutora novos testes, para ler e de decifrar as
traduções dadas pelo impressor.
Eram pedaços de uma história num estilo surpreendente, que se desenrolava num mundo
tão estranho que parecia fantástico.
— Lukos — disse Simon —, será que você fez isso tudo por nada?
— Não — respondeu Lukos —, olhe... Estendeu-lhe as folhas impressas.
— É um texto, isso não são garatujas! O cérebro não é idiota, ele compreendeu bem a
língua e a tradutora e assimilou muito bem! Vela, ela traduziu... fielmente... exatamente...: de
comer máquina.
— De comer máquina...
— Isto quer dizer alguma coisa!... ela traduziu palavras que significam alguma coisa!...
Não compreendemos porque nós é que somos idiotas!
— Pode ser... pode ser... — disse Simon. — Escute...
De repente, na esperança que renascia, começou a tratá-lo como a um irmão...
— Você pode incluir esta língua dentro de um dos seus comprimentos de onda? Não tenho
nenhum livre...
— Libere um! Suprima uma língua!
— Qual?
— Qualquer uma! O coreano, o tcheco, o sudanês ou o francês!
— Eles ficarão furiosos!
— Azar, azar, AZAR para as suas raivas! Você acha que é o momento da gente se
preocupar por criar uma raiva nacional?
— Ionescu!
— O quê?
— Ionescu... Ele morreu... era o único que falava o romeno. Suprima o romeno e eu pego a
sua onda.
Lukos levantou-se, sua cadeira de aço pareceu gemer de alegria.
— Alô!
O gigante turco gritava no interfone, à meia parede:
— Alô, Haka! Você está dormindo, bom Deus!
Berrou e começou a insultar em turco. Uma voz sonolenta respondeu. Lukos deu-lhe
instruções em inglês e depois virou-se para Simon:
— Estará pronto dentro de dois minutos... Simon atirou-se em direção à porta.
— Espere! — disse Lukos.
Abriu um armário, pegou uma caixinha com um emissor e um auscultador de orelha, com
as cores romenas e deu-o a Simon.
— Leve para ela...
Simon apanhou os dois instrumentos minúsculos.
— Preste atenção — disse ele — para que a sua maquininha não comece a berrar dentro
dos tímpanos dela.
— Eu prometo - retrucou Lukos. — Supervisionarei... um sussurro... nada mais que um
sussurro...
Pegou nas suas mãos duras como tijolos as mãos daquele que tinha se tornado seu amigo
durante essas últimas horas comuns de esforços monstruosos e apertou-as carinhosamente.
— Eu prometo... Pode ir.
Alguns minutos mais tarde, Simon entrava no quarto de Eléa, depois de ter alertado
Lebeau que fora por sua vez chamar Hoover e Leonova.
A enfermeira que estava sentada à cabeceira de Eléa, lia um romance da coleção
sentimental. Levantou-se vendo a porta abrir e fez sinal a Simon para entrar em silêncio.
Tomou um ar profissional preocupado para olhar o rosto de Eléa. Na realidade ela pouco
se importava, estava ainda pensando no seu livro, a confissão desesperada de uma mulher
abandonada pela terceira vez; sofria junto com a heroína da novela e maldizia os homens,
inclusive aquele que acabava de entrar.
Simon inclinou-se para Eléa cujo rosto abatido pela desnutrição havia se tornado muito
pálido. Suas narinas estavam quase translúcidas. Seus olhos fechados. A respiração apenas
erguia o peito. Chamou docemente pelo seu nome.
— Eléa... Eléa...
Suas pálpebras tremeram ligeiramente. Ela estava consciente. Ela o ouvia.
Leonova entrou seguida de Lebeau e de Hoover que tinha uma pilha de fotografias
ampliadas. Mostrou-as de longe a Simon. Este fez um gesto de aquiescência com a cabeça, e
pareceu dar novamente toda a sua atenção a Eléa. Colocou um microemissor sobre o lençol
azul, bem perto do cabelo, descobrindo a orelha esquerda semelhante a uma flor pálida, e
introduziu delicadamente o aparelho de escutar dentro da sombra rosa do conduto auditivo.
Ela esboçou um reflexo para sacudir a cabeça e rejeitar o que lhe parecia ser o prenúncio
de uma nova tortura. Mas desistiu, esgotada.
Simon logo falou, para acalmá-la. Disse muito baixo, em francês: — Você me
compreende... Agora você me compreende!...
E no ouvido de Eléa soou uma voz masculina que cochichava no seu ouvido: — Agora
você me compreende... você me compreende... e eu posso compreendê-la...
Aqueles que a olhavam viram sua respiração parar, depois recomeçar. Leonova, cheia de
compaixão, aproximou-se do leito, pegou a mão de Eléa e começou a falar-lhe em russo com
todo o calor do seu coração.
Simon ergueu a cabeça, olhou-a com olhos ferozes, e fez um sinal para que ela se
afastasse. Leonova obedeceu, um pouco espantada. Simon estendeu a mão para as fotografias.
Hoover alcançou-as.
Percorreu o ouvido esquerdo de Eléa num tom suave de compaixão recitado a toda
velocidade por uma voz feminina que ela compreendia. No seu ouvido direito uma torrente
pedregosa que ela não compreendia; depois, o silêncio. E em seguida a voz masculina
recomeçou:
— Você pode abrir os olhos?... Você pode abrir os olhos?... Tente... Ele calou-se. Eles a
olharam. Suas pálpebras tremiam.
— Tente... mais uma vez... somos seus amigos... coragem... E os olhos se abriram.
Não conseguiram se acostumar. Não era possível se acostumar. Nunca haviam visto olhos
tão grandes, de um azul tão profundo. Tinham empalidecido um pouco, não era mais aquele
azul do fundo da noite, mas sim um azul de depois do crepúsculo, do lado onde a noite vem,
depois da tempestade, quando o grande vento lava o céu com suas vagas. E os peixes de ouro
aí ficaram presos.
— Olhe!... olhe!... — dizia a voz. — Onde está a máquina de comer? Diante de seus olhos,
duas mãos seguravam uma imagem, substituíam-na por uma outra, uma outra...
Eram imagens reproduzidas dos objetos que lhe eram familiares.
— Máquina de comer?... onde está a máquina de comer? Comer? viver? Por quê? Para
quê?
— Olhe!... olhe!... onde está a máquina de comer?... onde está a máquina de comer?
Dormir... esquecer... morrer.
— Não! Não feche os olhos! Olhe!... olhe mais uma vez... são os objetos que encontramos
com você... um deles deve ser a máquina de comer... Olhe!... Vou mostrá-los mais uma vez...
se você vir a máquina de comer, feche os olhos e depois abra-os...
Na sexta fotografia ela fechou os olhos e os reabriu.
— Rápido! — disse Simon.
Estendeu a fotografia a Hoover que se precipitou para fora do quarto com a velocidade de
um raio.
Era um dos objetos que ainda não tinham sido examinados e havia sido guardado nas
prateleiras ao lado da arma.
É bom explicar rapidamente o que tornou tão difícil decifrar e compreender a língua de
Eléa. É que na realidade não era uma língua — e sim duas: a língua feminina e a língua
masculina, totalmente diferentes uma da outra tanto na sua sintaxe quanto no vocabulário.
Bem entendido, os homens e as mulheres compreendiam uma e outra, mas os homens
falavam a língua masculina que possuía gêneros próprios e as mulheres falavam a língua
feminina que tinha, por sua vez, feminino e masculino distintos. E na escrita, às vezes a língua
masculina e às vezes a língua feminina eram empregadas segundo a hora, a estação ou o lugar
onde se passava a ação, segundo também a cor, a agitação, a temperatura, a calma, a montanha
ou o mar. Outras vezes as duas línguas se misturavam no seu emprego.
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É DIFÍCIL DAR UM EXEMPLO DA DIFERENÇA entre a língua masculina e a língua
feminina, visto que dois terços equivalentes não podiam ser traduzidos a não ser pela mesma
palavra.
O homem diria: "Que será sem espinhos", a mulher diria: "pétalas do sol poente" e um e
outro compreenderiam que se tratava de uma rosa. É um exemplo aproximativo: no tempo de
Eléa os homens ainda não haviam inventado a rosa.
"De comer máquina". Eram três palavras, mas, segundo a lógica da língua de Eléa, era
também uma só palavra, o que em gramática portuguesa seria chamada de um "substantivo" e
que servia para designar "o-que-é-o-produto-da-máquina-de-comer". A máquina de comer era
a-máquina-que-produz-o-que-se-come.
A máquina estava pousada sobre o leito, diante de Eléa, que haviam ajudado a sentar e que
se sustentava apoiada em travesseiros. Haviam lhe dado "roupas" encontradas nas prateleiras,
mas ela não tinha tido força para vesti-las. Uma enfermeira tinha querido vestir-lhe um suéter,
mas ela teve um gesto de recuo e no seu rosto surgiu uma tal expressão de repulsa que não
haviam insistido. Tinham-na deixado nua. Seu busto emagrecido, seus pequenos seios
apontados para o céu, eram de uma beleza quase espiritual, sobrenatural.
Para que ela não tivesse frio, Simon havia aumentado a temperatura do quarto. Hoover
transpirava como um bloco de gelo sobre uma grelha. Já havia molhado sua camisa, mas as
camisas dos outros também estavam prontas para ser torcidas. Uma enfermeira distribuiu
guardanapos brancos para enxugar os rostos. As câmaras estavam lá. Uma delas mostrou em
primeiro plano a máquina de comer.
Era uma espécie de meia-esfera verde, salpicada de um grande número de botões
coloridos, dispostos em espiral, indo do cimo até a base, e que reproduziam, em várias
centenas de nuances diferentes, todas as cores do espectro. No alto encontrava-se um botão
branco. A base repousava sobre um pedestal em forma de cilindro pequeno. O conjunto tinha o
volume e o peso de uma metade de melancia. Eléa tentou erguer sua mão esquerda.
Não conseguiu. Uma enfermeira quis ajudá-la. Simon afastou-a e tomou a mão de Eléa na
sua.
Grande primeiro plano da mão de Simon segurando a mão de Eléa e conduzindo-a em
direção da máquina-de-comer.
Primeiro plano do rosto de Eléa. Seus olhos. Lanson não podia se desviar. Tinha sempre
uma ou outra de suas câmaras obedecendo a seu impulso semi inconsciente, voltando a se fixar
sobre a insondável noite desses olhos de outros tempos. Ele não os enviava para a antena.
Guardava-os numa tela de controle. Só para ele.
A mão de Eléa pousou no cimo da esfera. Simon a guiava como a um pássaro. Ela tinha
vontade, mas não tinha força. Ele sentia onde ela queria ir, e o que queria fazer. Ela o guiava,
ele a conduzia. O longo dedo indicador pousou sobre o botão branco, depois tocou os botões
de cor, daqui, dali, de cima, de baixo, do meio...
Hoover anotava as cores num envelope úmido tirado do seu bolso. Mas não tinha nem um
nome para diferenciar os três tons de amarelo que ela tocou um após o outro.
Desistiu.
Ela voltou para o botão branco. Descansou aí, quis apoiar-se, não conseguiu. Simon
ajudou-a. Mal o botão afundou-se, houve um ligeiro barulho, e pela abertura um pequeno prato
de ouro retangular caiu. Continha cinco esférulas de matéria translúcida, vagamente rosada,
um minúsculo garfo de ouro, com dois dentes.
Simon pegou o garfo e espetou uma das pequenas esferas. Esta ofereceu ligeira resistência,
depois se deixou traspassar como uma cereja. Ele levou-a para os lábios de Eléa...
Ela abriu a boca com esforço. Foi sacrifício fechá-la sobre o alimento. Não fez nenhum
movimento de mastigação. Adivinhou-se que a esfera devia estar se fundindo na sua boca.
Depois a laringe subiu e desceu, visível na garganta emagrecida.
Simon enxugou o rosto, alcançou-lhe a segunda esférula...
Alguns minutos mais tarde, ela utilizou sem ajuda a máquina-de-comer. Tocou levemente
alguns botões diferentes, obteve esferas azuis, absorveu-as rapidamente, repousou alguns
minutos, depois acionou novamente a máquina.
Recuperava as forças com uma rapidez incrível. Parecia que ela pedia à máquina mais do
que alimento: o que era necessário para tirá-la imediatamente do estado de fraqueza no qual se
encontrava. Tocava em botões diferentes, obtendo de cada vez um número diferente de esferas
de cores variadas. Ela as absorvia, bebia água, respirava profundamente, descansava alguns
minutos e recomeçava.
Todos os que estavam no quarto, e aqueles que seguiam a cena sobre a tela da Sala de
Conferências, viam literalmente a vida refluir, seu busto desabrochar seu rosto se encher, seus
olhos retomarem a antiga cor profunda.
Máquina-de-comer: era uma máquina para dar comida. Talvez fosse também uma máquina
para curar.
Os sábios de todas as categorias ferviam de impaciência. As duas amostras da civilização
antiga, que eles tinham visto se manifestar — a arma e a máquina-de-comer — excitavam
loucamente sua imaginação. Ardiam de impaciência para interrogar Eléa e abrir esta máquina,
que, pelo menos ela, não era perigosa.
Quanto aos jornalistas, depois da morte de Ionescu que lhes havia fornecido sensação para
todas as ondas e todos os jornais, eles viam com encantamento, a máquina de comer e seus
efeitos sobre Eléa, como uma nova fonte de informação não menos extraordinária, porém desta
vez mais otimista. Sempre o inesperado, o branco depois do negro; esta expedição era
decididamente um bom negócio jornalístico.
Eléa, enfim, afastou a máquina, e olhou todos aqueles que a cercavam. Fez um esforço
para falar. Este foi apenas audível. Recomeçou e cada um ouviu na sua própria língua: —
Vocês me compreendem?
— Sim, oui, yes, da...
Eles balançavam a cabeça — sim, sim — eles compreendiam.
— Quem são vocês?
— Amigos — disse Simon.
Mas Leonova não se aguentou. Ela pensava numa distribuição geral de máquinas-de-comer
aos povos pobres, às crianças esfomeadas. Perguntou vivamente: — Como funciona isto? O
que que você põe lá dentro?
Eléa pareceu não compreender, ou então considerar essas perguntas como um barulho feito
por crianças. Seguiu seu próprio raciocínio. Perguntou: — Nós devíamos ser dois no abrigo.
Eu estava sozinha?
— Não — disse Simon —, vocês eram dois. Você e um homem.
— Onde está ele? Está morto?
— Não, ainda não foi reanimado. Começamos por você.
Eléa calou-se um instante. Parecia que a notícia em vez de alegrá-la despertava-lhe certa
tristeza.
Ela respirou profundamente e disse:
— Ele é Coban. Eu sou Eléa. Perguntou de novo:
— Vocês... quem são vocês?
E Simon não encontrou outra coisa para responder:
— Somos amigos...
— De onde vocês vêm?
— Do mundo inteiro... Isto pareceu surpreendê-la.
Do mundo inteiro? Não compreendo. Vocês são de Gondawa?
— Não.
De Enisorai?
— Não.
— De onde vocês vêm?
— Eu venho da França, ela da Rússia, ele da América, ele da França, ele da Holanda e...
— Não compreendo... Agora será que existe a paz?
— Hum — fez Hoover.
— Não! — disse Leonova — os imperialistas...
— Cale a boca! — ordenou Simon.
— Somos obrigados — disse Hoover — a nos defender contra.
— Saiam! Saiam! Deixem-nos sozinhos, nós os médicos!... Hoover desculpou-se: —
Somos uns estúpidos!... desculpe... mas eu fico... Simon virou-se para Eléa: — O que eles
disseram não quer dizer nada. Sim, agora reina a paz... estamos em paz, você está em paz.
Você não tem nada a temer...
Eléa deu um profundo suspiro de alívio. Mas foi com certa apreensão visível que formulou
a pergunta seguinte:
— Vocês têm notícias... notícias dos Grandes Abrigos? Eles aguentaram? Simon
respondeu:
— Não sabemos. Não temos notícias.
Eléa o olhou com atenção para ter certeza de que ele não mentia. Simon compreendeu que
não poderia jamais lhe dizer outra coisa senão a verdade.
Ela começou uma sílaba, depois parou. Queria fazer uma pergunta mas não ousava, porque
tinha medo da resposta.
Olhou para todos, depois para Simon sozinho e perguntou, muito docemente: — Paikan?
Houve um curto silêncio, depois um clique nas orelhas e a voz neutra da tradutora —
aquela que não era nem voz de homem nem voz de mulher — falou em dezessete línguas nos
dezessete canais:
— A palavra Paikan não figura no vocabulário que me foi injetado e não corresponde a
nenhuma possibilidade lógica de neologismo. Tomo a liberdade de supor que se trate de um
nome.
Eléa ouviu também, na sua língua.
— Mas é claro que é um nome — disse ela. — Onde está ele? Vocês têm notícias dele?
Simon olhou-a gravemente.
— Não temos notícias dele... Quanto tempo pensa que dormiu? Ela olhou-o com
inquietação.
— Alguns dias — respondeu ela.
— Mais... — disse Simon.
De novo, o olhar de Eléa examinou a decoração ao redor e os personagens que a
cercavam. Encontrou o expatriamento do seu primeiro acordar, tudo insólito, como um
pesadelo. Mas ela não podia aceitar a explicação inverossímil. Devia haver uma outra.
Tentou apegar-se ao impossível.
— Dormi quanto tempo?... Semanas?... Meses?...
A voz neutra da tradutora interveio novamente:
— Traduzo aqui aproximadamente. A não ser o dia e o ano, as medidas de tempo que me
foram injetadas são totalmente diferentes das nossas. São igualmente diferentes para os
homens e para as mulheres. Diferentes para o cálculo e para a vida normal, diferentes segundo
as estações, e diferentes segundo a vida e o sono.
— Mais... — disse Simon — muito mais... Você dormiu durante...
— Atenção, Simon! — gritou Lebeau.
Simon parou e refletiu alguns segundos, preocupado, olhando Eléa. Depois virou-se para
Lebeau:
— Você pensa?
— Tenho medo... — disse Lebeau. Eléa, ansiosa, repetiu sua pergunta: — Dormi durante
quanto tempo? Você compreende a minha pergunta?... Desejo saber quanto tempo dormi...
desejo saber...
— Nós compreendemos — respondeu Simon. Ela calou-se.
— Você dormiu...
Lebeau interrompeu novamente:
— Não estou de acordo!
Colocou a mão sobre o seu microfone para que as palavras não chegassem até a tradutora
e sua tradução aos ouvidos de Eléa.
— Você vai lhe dar um choque terrível. É melhor dizer-lhe pouco a pouco... Simon estava
sério. Franzia as sobrancelhas com ar de teimosia.
— Não sou contra o choque — disse ele também fechando o seu microfone com a palma
da mão. — Em psicoterapia preferimos o choque e nunca a mentira que envenena. E creio que
ela agora está bastante forte...
— Desejo saber... — recomeçou Eléa.
Simon virou-se para ela. Disse-lhe abruptamente:
— Você dormiu durante novecentos mil anos.
Ela o olhou com estupefação. Simon não lhe deu tempo para refletir.
— Isto pode lhe parecer extraordinário. A nós também. Mas no entanto é a verdade. A
enfermeira lerá para você o relatório da nossa expedição, que a encontrou no fundo de um
continente gelado, e o dos laboratórios que mediram, através de diversos métodos, o tempo
em que você aí passou...
Ele falava num tom diferente, escolar, militar, e a voz da tradutora calcava-se na sua,
calma, indiferente no fundo do ouvido esquerdo de Eléa.
— Esta quantidade de tempo não tem medida comum com a duração da vida de um homem,
e mesmo de uma civilização. Não resta nada do mundo em que você viveu. Nem mesmo sua
lembrança. É como se você tivesse sido transportada a outro extremo do Universo. Você deve
aceitar essa ideia, aceitar os fatos, aceitar o mundo onde você acordou, e onde tem somente
amigos.
Mas ela não o ouvia mais. Ela tinha se afastado. Separado da voz no seu ouvido, desse
rosto que lhe falava, desses rostos que a olhavam, desse mundo que a acolhia. Tudo isto se
afastava, se apagava, desaparecia. Restava apenas a abominável certeza — mas ela sabia que
ele não tinha mentido — a certeza do abismo através do qual ela tinha sido projetada, longe de
TUDO o que era a sua própria vida. Longe de...
— PAIKAN!...
Berrando seu nome, ela endireitou-se na cama, nua, selvagem, soberba e tensa como uma
fera acossada.
As enfermeiras e Simon tentaram retê-la. Ela lhes escapou, saltou do leito gritando: —
PAIKAN!...
Correu em direção à porta, passando no meio dos médicos: Zabre tentou segurá-la,
recebeu uma cotovelada no estômago e a deixou partir enquanto ele cuspia sangue. Hoover foi
empurrado contra a parede; Forster recebeu, no seu braço esticado em direção a ela, um golpe
tão duro que pensou que tivesse um osso quebrado. Ela abriu a porta e saiu.
Os jornalistas que seguiam a cena sobre a tela da Sala de Conferências, correram para a
Avenida Amundsen. Viram a porta da enfermaria se abrir bruscamente e Eléa correr como uma
louca, como um antílope que vai ser agarrado por um leão, em direção a eles.
Fizeram uma barreira. Ela chegou sem vê-los. Gritava uma palavra que eles não
compreendiam. As lâmpadas duplas dos flashes de laser espocaram em toda a linha dos
fotógrafos. Ela passou através, derrubando três homens com seus aparelhos. Corria em
direção à saída. Chegou aí antes que alguém a segurasse, no momento em que a porta de correr
se abria para deixar entrar um carregamento de alimentos, conduzido por um chofer de
macacão forrado da cabeça aos pés.
Do lado de fora, havia uma tempestade branca, um nevoeiro denso. Louca de angústia,
cega, nua, atirou-se nas navalhas do vento. O vento enfiou-se na sua carne, ergueu-a e levou-a
nos seus braços para a morte. Ela se debateu, retomou pé, bateu no vento com seus punhos e
com sua cabeça, arrancou-o do seu peito gritando mais forte que a tempestade. O vento e a
neve entraram-lhe na boca e apagaram-lhe o grito que nascia na sua garganta.
Ela caiu.
Os homens a recolheram um segundo depois e a transportaram.
— Eu bem que havia dito — disse Lebeau a Simon, com uma severidade que temperava à
satisfação de ter tido razão.
Simon, triste, olhava ás enfermeiras agindo, friccionando Eléa inconsciente.
— Paikan... — murmurou.
— Ela deve estar apaixonada — disse Leonova. Hoover caçoou:
— De um homem que ela deixou a novecentos mil anos!...
— Que ela deixou ontem... — disse Simon. — O sono não tem duração... e durante a curta
noite, a eternidade interpôs-se entre eles!
— Infeliz... — murmurou Leonova.
— Eu não podia saber — disse Simon baixinho.
— Meu filho — acrescentou Lebeau —, em medicina, aquilo que não sabemos devemos
supor...

Compreendi tudo.
Olhando para os teus lábios, notei que eles estremeceram de amor à passagem daquele
nome.
Então eu quis te separar dele, o mais breve possível, brutalmente. Quis que soubesses
que ele estava acabado, que nada restava dele, nem mesmo um grão de poeira, mil vezes
levado pelos mares e pelos ventos, nada mais dele e nem do teu passado. Nada de nada...
Que as tuas lembranças eram tiradas do vazio. Que atrás de ti havia somente escuridão;
que a luz, a esperança e a vida estavam no nosso presente, conosco. Destruí todo o teu
passado de um só golpe. Eu te fiz mal.
Mas tu, pronunciando aquele nome, tu foste a primeira a destruir. Destruías o meu
coração.

Os médicos esperavam que ela fosse atacada por uma pneumonia ou alguma outra
consequência da ação do frio. Mas Eléa não teve nada. Nem tosse, nem febre, nem a menor
vermelhidão sobre a pele.
Quando voltou a ficar, consciente, viram que havia assimilado o choque e superado todas
as suas emoções. Não havia mais sobre o seu rosto aquela expressão petrificada de uma
indiferença total, semelhante a de um condenado à prisão perpétua, no momento em que entra
na cela da qual sabe que não sairá jamais. Ela sabia que lhe haviam dito a verdade. Portanto
quis ter provas. Pediu para ouvir o relatório da Expedição e quando a enfermeira começou a
lê-lo, fez um gesto com a mão para afastá-la, dizendo: — Simon...
Simon não estava no quarto.
Depois da sua intervenção brutal, que tinha terminado de maneira tão desastrosa, os
reanimadores julgaram-no perigoso e o proibiram de se ocupar de Eléa.
— Simon... Simon... — repetia ela.
Procurava com o olhar por todos os cantos da peça. Desde que abrira os olhos, ela o havia
sempre visto ao seu lado, estava acostumada com seu rosto, com sua voz, com o cuidado dos
seus gestos. E era ele quem lhe havia dito a verdade. Neste mundo desconhecido, no fim desta
viagem apavorante, ele era um elemento já familiar, um apoio contra o medo que a assaltava.
— Simon...
— Creio que é melhor mandar buscá-lo — disse Moissov.
Simon veio e começou a ler. Depois chegou no momento da descoberta o casal em
hibernação, ela ergueu a mão para que ele se calasse, e disse: — Eu sou Eléa, ele é Coban. É
o maior sábio de Gondawa. Ele sabe tudo. Gondawa é o nosso país.
Calou-se um instante. Depois acrescentou com uma voz muito baixa, que a tradutora mal
pôde ouvir:
— Gostaria de morrer em Gondawa.
Durante o desmaio de Eléa, Hoover, sem o menor escrúpulo, havia manipulado a máquina
de comer. Ele também estava, bem como todos aqueles que a viram funcionar sobre a tela,
ansioso para saber a partir de quais matérias-primas ela fabricava as diferentes espécies de
alimentos que, em pouco tempo, haviam dada a Eléa forças para lutar contra uma dúzia de
homens, a fim de se precipitar na tempestade.
Sobre a superfície lisa da esfera e do cilindro, havia somente uma saída possível, um só
ponto de comando e de manipulação: o botão branco do centro.
Sob os olhos horrorizados de Leonova, Hoover o havia pressionado, virado para a
esquerda, para a direita, puxado para cima e outra vez para a esquerda.
O que ele esperava aconteceu: a calota da semiesfera ergueu-se como uma campânula de
queijo, descobrindo o interior da máquina.
Esta, colocada sobre uma pequena mesa sanitária, revelou seu mistério aos olhos de todos,
e, todavia, tornou-se ainda mais misteriosa. Pois todo o interior da meia-esfera era ocupado
por um mecanismo incompreensível que não se parecia com nenhuma outra montagem
mecânica ou eletrônica. Dava mais a impressão de uma maquete de metal do sistema nervoso.
E em parte alguma havia lugar para a menor matéria-prima, fosse ela em pedaços, em grão, em
poeira ou líquido.
Hoover ergueu a máquina, sacudiu-a, olhou-a sob todos os ângulos, fez a luz bater em
cheio naquele emaranhado de ouro e de aço. Em seguida, passou-a a Leonova e Rochefoux que
a olharam por sua vez de todas as maneiras possíveis que se olha um objeto aberto, tal um
despertador sem sua caixa. Não havia em parte alguma, qualquer vestígio de lugar que
comportasse sais minerais, açúcar, pimenta, carne e peixe. Visivelmente, logicamente,
absurdamente, esta máquina fabricava alimentos a partir do nada...
Hoover, tendo recolocado a calota hemisférica no lugar, fez os mesmos gestos que havia
visto Eléa fazer e obteve o mesmo resultado: uma pequena gaveta se abriu e ofereceu esférulas
verde-claras. Hoover hesitou um instante, depois pegou o garfo de ouro, picou uma esfera e
colocou-a na boca. Esperava uma surpresa extraordinária. Ficou desapontado: não tinha gosto
definido e não era particularmente agradável. Fazia pensar em leite coalhado no qual teriam
mergulhado uma limalha de ferro. Ofereceu a Leonova, que recusou.
— Seria melhor — disse ela — você mandar examiná-las.
Era o bom senso científico que falava por sua boca. Envoltas numa folha de plástico, as
esférulas foram enviadas para o laboratório de análise.
Veio o primeiro resultado, que não revelou nada de extraordinário. Havia proteínas,
corpos gordurosos, glicose, uma quantidade de sais minerais, vitaminas e oligoelementos
misturados nas moléculas semelhantes às do amido.
Depois houve uma retificação. Uma análise mais profunda havia descoberto algumas
moléculas quase do tamanho das existentes nas células. Depois uma segunda retificação: essas
moléculas se reproduziam!
Portanto, a partir do nada, a máquina de comer fabricava não somente a matéria nutritiva,
mas também a matéria análoga à da matéria viva.
Tudo aquilo era incrível!
Logo que Eléa aceitou esclarecer suas dúvidas, os cientistas se acotovelaram em torno
dela e a crivaram de perguntas:
— Como funciona a máquina de comer?
— Vocês viram.
— Mas, no interior?
— No interior ela fabrica o alimento.
— Fabrica com quê?
— Com o Todo.
— O Todo? O que é o Todo?
— Vocês bem sabem... é isto que vocês fabricam também...
— O Todo... o Todo... não há outro nome para o Todo?
Eléa pronunciou três nomes e se ouviu em seguida a voz impessoal da máquina tradutora:
— "As palavras que acabam de ser pronunciadas no canal onze não figuram no
vocabulário que me foi programado. No entanto, por analogia, creio poder propor a tradução
aproximativa seguinte: energia universal. Ou talvez: essência universal. Ou ainda: vida
universal. Mas estas duas últimas ideias me parecem um pouco abstratas. A primeira é sem
dúvida a mais próxima do sentido original. Seria necessário, para ser justo, nela incluir as
duas outras".
Energia!... A máquina fabricava a matéria a partir da energia! Não era impossível admitir
isso, no estado atual dos conhecimentos científicos e da técnica. Mas seria necessário
mobilizar uma quantidade fabulosa de eletricidade para obter uma partícula invisível,
intocável e que despareceria logo que surgisse.
Entretanto, aquela estranha máquina, que tinha a aparência de um brinquedo de criança,
tirava do nada, com a maior simplicidade, o alimento que lhe fosse pedido.
Lebeau teve que acalmar a impaciência dos sábios, cujas perguntas se multiplicavam no
cérebro da tradutora.
— Você conhece o mecanismo de funcionamento?

— Não. Coban sabe.


— Você conhece ao menos o princípio?
— Seu funcionamento é baseado na equação universal de Zoran...
Com os olhos ela procurava alguma coisa que pudesse ajudá-la a explicar melhor o que
queria dizer. Viu Hoover que tomava notas nas margens de um jornal. Estendeu-lhe a mão.
Hoover alcançou-lhe o jornal e a caneta. Leonova, adiantando-se, substituiu o jornal por um
bloco de papel virgem.
Com a mão esquerda, Eléa tentou escrever, desenhar, traçar alguma coisa. Não conseguiu.
Irritou-se. Jogou a caneta e pediu à enfermeira:
— Dê-me o seu... seu...
Imitava o gesto que ela havia visto fazer várias vezes, o de passar um batom nos lábios.
Espantada, a enfermeira o estendeu.
Então com um só traço leve, Eléa desenhou sobre o papel um elemento em espiral, que
cortava uma reta vertical e que continha dois traços curtos. Estendeu o papel a Hoover.
— Isto é a equação de Zoran, que se lê de duas maneiras. É lida em linguagem corrente e
em termos de matemática universal.
— Você pode lê-la? — perguntou Leonova.
— Em linguagem corrente significa: "O que não existe existe".
— E da outra maneira?
— Eu não sei. Coban sabe.
Conforme o compromisso assumido, os sábios do EPI comunicaram a todas as nações do
mundo o que haviam conseguido e ainda tudo aquilo que esperavam saber. A língua gonda já
eslava sendo estudada em numerosas universidades, e a humanidade inteira sabia que estava
às vésperas de uma transformação extraordinária. O homem adormecido e que ia ser acordado
explicaria a equação de Zoran que permitiria retirar do seio da energia universal os meios
para vestir aqueles que estavam nus e alimentar os que tinham fome.
Não haveria mais conflitos por causa de matérias-primas, nem mais guerra do petróleo,
nem mais batalhas pelas regiões férteis. O Todo ia resolver tudo graças à equação de Zoran.
O sábio Coban ia acordar e indicar o que era necessário fazer para que a miséria, a fome e
a tristeza dos homens desaparecessem para sempre.
Os trabalhos de reanimação foram marcados para o dia seguinte. A sala de operação tinha
sido reconstruída, os últimos aparelhos acabaram de chegar, substituindo os que haviam sido
destruídos. A equipe de técnicos apressava-se a pô-los no lugar e a testá-los.
A tempestade tinha acalmado. O vento soprava ainda, mas sem a fúria anterior.
Naquela latitude ele sopra sempre, e quando não ultrapassa 150 quilômetros a hora, é uma
brisa carinhosa. No céu sem nuvens, cor azul-ardósia, o sol vermelho arrastava-se no
horizonte. Estrelas enormes, afiadas pelo vento, furavam a cúpula celeste.
Dois homens que tinham trabalhado até tarde na esfera, saíram do elevador. Eram Brivaux
e seu assistente. Estavam exaustos, desejavam ir descansar e dormir. Tinham sido os últimos a
subir. Não havia mais ninguém lá embaixo.
Brivaux fechou a porta do elevador a chave. Saíram do edifício de muros de neve e
blasfemando enfiaram-se no vento.
No prédio vazio e negro, uma mancha redonda de luz acendeu-se. Por trás da pilha de
caixas de onde haviam retirado os últimos aparelhos recém-chegados, um homem agachado
endireitou-se, batendo os dentes. Na sua mão a lanterna elétrica tremia. Ele estava lá há mais
de uma hora, esperando a subida dos últimos técnicos, e, apesar do seu macacão polar, estava
mordido pelo frio até os ossos.
Dirigiu-se até o elevador, tirou do bolso um pequeno molho de chaves achatadas e
começou a experimentá-las uma a uma. Não conseguiu nada, tremia demais. Descalçou as
luvas, soprou seus dedos entorpecidos, bateu no corpo com os braços e deu alguns pulos sobre
o mesmo lugar. O sangue começou a circular. Retomou o molho de chaves.
Encontrou finalmente a chave certa. Entrou no elevador e apertou o botão de descida.
Na enfermaria, Simon olhava Eléa dormir. Não a deixava mais. No momento em que ele se
afastava, ela o reclamava. À indiferença glacial em que ela se havia instalado, se juntava,
quando ele não estava presente, uma ansiedade física da qual ela exigia ser imediatamente
libertada.
Ele estava lá, ela podia dormir. A enfermeira de plantão dormia também, numa cama
flexível. De uma lâmpada azul, acima da porta, vinha uma claridade muito suave. Nessa quase
noite apenas luminosa, Simon olhava Eléa dormir. Seus braços repousavam estendidos sobre a
coberta. Ela tinha acabado por aceitar vestir um pijama de flanela, meio grande porém
confortável. Sua respiração era calma e lenta, seu rosto sério. Simon inclinou-se, aproximou
seus lábios a longa mão de longos dedos, quase a tocou.
Depois foi para o leito vazio, estendeu-se, puxou sobre si uma coberta, suspirou de
felicidade, e adormeceu.
O homem havia entrado na sala de reanimação. Foi direto para um pequeno armário
metálico, e o abriu. Sobre uma prateleira encontravam-se os papéis. Folheou-os, arrancando
de passagem algumas páginas que fotografou com um aparelho que trazia preso ao ombro e
colocou-os de volta no lugar. Depois dirigiu-se para o aparelho receptor de tevê que montava
guarda no local. Sua tela mostrava permanentemente o interior do ovo. A nova câmara,
sensível aos infravermelho, iluminava a bruma. Ele viu muito claramente o homem no seu
bloco de hélio quase intacto e o pedestal que havia sustentado Eléa. O lado do pedestal
continuava aberto, e sobre as prateleiras repousavam ainda alguns objetos que Eléa não havia
reclamado.
O homem acionou os botões de telecomando da câmara. Conseguiu que o pedestal aberto
ficasse bem dentro do quarto. Acionou o zoom e finalmente reconheceu, em primeiro plano, o
que ele procurava: a arma.
Sorriu de satisfação e resolveu descer ao interior do ovo. Sabia que lá reinava um frio
perigoso. Não tinha podido procurar um macacão de astronauta, por isso teria que fazer tudo
muito rapidamente. Saiu da sala de operação. À sua volta, o interior da esfera, fracamente
iluminado, parecia o esqueleto de um gigante pássaro surrealista, meio afogado na noite do
inconsciente. A fim de afastar a ameaça do silêncio total, o homem voluntariamente tossiu. O
barulho da sua tosse encheu a esfera como um relâmpago, rasgou-se nas bordas das traves e
dos arcos, chocou-se no casulo, e voltou para ele em milhares de fragmentos de ruídos agudos,
agressivos.
Afundou bruscamente seu capacete até as orelhas, envolveu o pescoço numa grossa
êcharpes e calçou suas luvas forradas enquanto descia a escada de ouro. Um dispositivo
elétrico permitia-lhe ver a porta do ovo, que se levantou como uma concha quando ele apertou
o botão. Escorregou para o interior. A porta se fechou atrás dele.
Ficou surpreendido pela bruma que a câmara infravermelha não lhe havia mostrado.
Ela era tingida de um azul irreal pela luz que subia do motor imóvel através do solo
transparente e da coberta de neve fofa e azulada. De lanterna na mão, precedido por um
círculo de luz branca e opaca, desceu com precaução a escada. Sentiu, à medida que descia, o
frio atroz a lhe morder as canelas, a barriga das pernas, o joelho, as coxas, o ventre, o peito, a
garganta, o crânio...
Era preciso andar depressa, depressa. Seu pé direito atingiu o solo coberto de neve.
Firmando-se com os pés, deu um passo à esquerda, e inspirou pela primeira vez. Seus
pulmões gelaram em bloco, transformados em pedra. Quis gritar, abriu a boca. Sua língua
gelou, seus dentes caíram. O interior dos seus olhos se dilatou e tornou-se sólido, empurrando
as íris para fora. Ainda teve tempo, antes de morrer, de sentir o frio esmagar-lhe os testículos,
e seu cérebro gelar. A lanterna apagou-se. Tudo tornou-se silêncio, ele caiu para frente, na
neve azul. Ao tocar o solo, seu nariz se quebrou. A poeira da neve, erguida durante um instante
numa nuvem ligeira e luminosa, recaiu e o cobriu.
De manhã, o operador de câmara que se aproximou do receptor da sala operatória,
espantou-se de encontrar sobre a tela, em vez do plano geral do ovo, a arma em primeiro
plano.
— Por aqui andou algum cara metendo a mão no meu pudim! — disse ele. - Vai ver que
são esses eletricistas! Vou dar uns bons trancos quando eles descerem, esses idiotas!
Sempre resmungando, manipulou os comandos para trazer de volta o plano geral. Foi
assim que ele viu entrar, por baixo da tela, uma mão enluvada que saía da neve, os dedos
separados.
Quando os homens de capacetes, vestidos com seus macacões espaciais, tiraram o cadáver
para fora do seu caixão de neve fina, apesar de todas as precauções seu braço direito partiu-se
em pedaços, como uma folha seca.
— Estou desolado — disse Rochefoux aos jornalistas e fotógrafos reunidos na Sala de
Conferências — de ter que lhes participar a morte trágica de Juan Fernandez, fotógrafo do La
Nación, de Buenos Aires. Ele se meteu clandestinamente dentro do ovo, sem dúvida para tirar
fotografias de Coban, e o frio o matou antes que tivesse tempo de dar três passos. — Fez uma
pausa e prosseguiu: — Nunca seria demais lhes recomendar prudência. Não lhes escondemos
nada. Nosso maior desejo é que vocês saibam tudo e que propaguem por todo o mundo. Peço-
lhes que não tomem mais tais iniciativas que não são somente perigosas para vocês, mas que
arriscam a comprometer gravemente o êxito das operações delicadas cujo sucesso pode
transformar inteiramente a sorte da humanidade.
Mas um telegrama do La Nación, transmitido pelo Trio, fez saber que esse jornal ignorava
tudo sobre Juan Fernandez, e que este nunca fizera parte do seu pessoal. Então se lembraram
do testemunho do operador que havia visto em primeiro plano a imagem da arma. Remexeram
no quarto de Fernandez. Lá encontraram três aparelhos fotográficos, um americano, um tcheco,
um japonês, além de um emissor de rádio alemão e um revólver italiano.
Os responsáveis do EPI e os reanimadores se reuniram, longe da curiosidade dos
jornalistas. Estavam consternados.
— É um desses cretinos dos serviços secretos — disse Moissov. — De qual serviço
secreto? Eu não sei, nem vocês, nunca saberemos. Eles têm em comum a estupidez e a
ineficiência. Mostram uma engenhosidade prodigiosa para conseguir resultados que não são
maiores que um cocô de mosca. A única coisa que eles conseguem é a catástrofe. É preciso
nos proteger contra esses ratos.
— Eles são uma merda! — acrescentou Hoover, em francês.
— Não é a mesma palavra em russo — disse Moissov — porém é a mesma matéria.
Infelizmente vou ser obrigado a utilizar palavras menos expressivas e mais vagas, de que
não gosto porque são pretensiosas. Mas é preciso falar com as palavras que se têm.
— Continue, continue — aparteou Hoover — não faça tanto rodeio. Este Pequeno
macabeu nos deixou na merda de qualquer maneira.
— Sou médico — retrucou Moissov. — Você, você é... é o quê?
— Engenheiro químico e eletrônico... Mas o que é que você tem com isto? Aqui tem de
tudo.
—Sim — disse Moissov — e no entanto nós somos todos iguais... Temos qualquer coisa
em comum que é mais forte que as nossas diferenças: a necessidade e saber. A literatura
chama isso de amor pela ciência. Eu chamo de curiosidade.
Quando ela é servida pela inteligência, é a maior qualidade do homem. Pertencemos a
todas as disciplinas científicas, a todas as nações e a todas as ideologias. Você pode não
gostar de um russo comunista. Eu não aprecio que vocês sejam pequenos capitalistas,
imperialistas estúpidos, enfiados no visgo de um passado social em vias de apodrecer. —
Abrandou o tom de voz para prosseguir:
— Mas sei e vocês todos sabem que isto já está superado pela nossa curiosidade.
Vocês e eu queremos saber. Queremos conhecer o Universo em todos os seus segredos, os
maiores e os menores. E já sabemos ao menos alguma coisa: que o homem é maravilhoso, mas
que os homens são dignos de piedade; que cada um do nosso lado, no nosso campo de
conhecimento e no nosso nacionalismo miserável, trabalha em favor do homem. O que há para
conhecer aqui é fantástico. E o que nós podemos tirar de proveito para todos os homens é
inimaginável. Mas se deixarmos intervir nossas nações, com sua cretinice secular, seus
generais, seus ministros e seus espiões, tudo está perdido!
— Vê-se bem — replicou Hoover — que você seguiu os cursos noturnos do marxismo...
Você tem sempre um discurso na ponta da língua. Mas é claro, você tem razão.
Você é meu irmão. Você é minha irmãzinha — acrescentou, dando um tapa nas nádegas de
Leonova.
— Você é um porco gordo e sujo — disse ela.
— Permitam à Europa — falou Rochefoux sorrindo — fazer ouvir sua voz. Nós temos o
ouro, aquele que nós cortamos ao perfurar a casca da esfera. Pesa cerca de 20 toneladas.
Com isso podemos comprar armas e mercenários.
Shanga, o africano, levantou-se rapidamente.
— Sou contra os mercenários! — bradou.
— Eu também — disse o alemão Henckel. — Não pelas mesmas razões. Acho
simplesmente que eles serão espiões canalhas. Devemos organizar nós mesmos nossa polícia
e nossa defesa. Quero dizer, a defesa do que está dentro da esfera. A arma e, principalmente,
Coban. Enquanto ele estiver no frio, não corre risco nenhum. Mas as operações de reanimação
vão começar. A tentação de raptá-lo será grande, antes que possamos comunicar seus
conhecimentos a todos. Não há uma nação que não tentará o impossível para assegurar a
exclusividade do que ele tem dentro da cabeça. Os Estados Unidos, por exemplo...
— Claro, claro — disse Hoover.
— A URSS... Leonova explodiu:
— A URSS! Sempre a URSS! Por que a URSS? A China também: A Alemanha! A
Inglaterra! A França!
— Isto!... — disse Rochefoux sorrindo. — Até mesmo a Suíça...
— Metralhadoras, revólveres, minas — adiantou Lukos — posso encontrar ali.
— Eu também — disse Henckel.
Partiram naquele mesmo dia para a Europa. Shanga e Garret, o assistente de Hoover,
uniram-se a eles. Estava entendido que eles não se separariam nunca. Assim a lealdade de
cada um, da qual ninguém duvidava, seria garantida pela presença dos outros.
Com os revólveres e fuzis de caça que já se encontravam na base, organizaram um rodízio
de vigilância de dia e noite perto do elevador e do quarto de Eléa.
Dois homens, técnicos ou sábios, se revezavam. Um ocidental e um oriental. Essas
medidas foram tomadas por unanimidade, sem discussão. Diante da enormidade do que estava
em jogo, ninguém tinha confiança em ninguém, nem mesmo em si próprio.
Dois projetores iluminam o ovo, envolto na bruma.
A mangueira de ar está dirigida para o bloco de Coban, que se encolhe, se deforma, se
reabsorve, desaparece como um halo que se apaga. Na sala de trabalho, os reanimadores
passam, um por um, pela esterilização. Enfiam-lhes luvas e blusas assépticas, e amarram-lhes
as botas de algodão.
Simon não está com eles, está perto de Eléa, na Sala de Conferências, sentado sozinho
com ela sobre o pódio. Diante dele, sobre a mesa, o revólver que lhe confiaram. Seu olhar
vigia sem cessar a assistência. Está pronto a defender Eléa contra seja o que for. Diante dela
estão espalhados os diversos objetos da prateleira que ela havia pedido. Está calma, imóvel.
As ondas dos seus cabelos castanhos com reflexos dourados são como um mar calmo. Ela
vestiu as estranhas roupas encontradas na prateleira. Na altura dos quadris colocou quatro
retângulos avermelhados de uma matéria sedosa que parecia uma fazenda fina, fluida e pesada.
Caíam-lhe até os joelhos e, quando ela andava, se dobravam e se desdobravam, cobrindo e
descobrindo a pele, como asas, como o movimento das ondas ao sol. Enrolou à altura do busto
uma faixa longa da mesma cor, que modelava seu corpo e seus ombros, deixando adivinhar
sob a fazenda seus seios livres como pássaros.
Tudo isso preso por um nó, por uma argola ou trespassado ora por cima ora por baixo, por
um milagre. Era à primeira vista muito complicado, mas tão natural que poderia se pensar que
ela havia nascido assim. Diante dela, sentia-se a horrível impressão de se estar vestido com
sacos de farinha.
Ela aceitara responder a todas as perguntas. Então organizaram a primeira reunião de
trabalho destinada a informar aos homens de hoje sobre a sua civilização.
O rosto de Eléa estava gelado, seus olhos pareciam portas abertas sobre a noite. Ela
estava silenciosa e seu silêncio dominava toda a assistência. Hoover fez um barulho enorme
com a garganta.
— Hum... que tal começarmos?... O melhor seria começar pelo início... você nos dizer
primeiro quem é, qual sua idade, profissão, situação de família etc Em poucas palavras...
Mil metros mais abaixo, o homem nu perdeu sua carapaça transparente atingiu uma
temperatura que permitia a sua locomoção. Dentro da bruma brilhante, quatro homens vestidos
de vermelho, embotados, com capacetes esféricos de plástico, se aproximaram lentamente do
corpo inerte e se colocam ao lado de seu caixão. Na porta do ovo dois homens vigiavam de
metralhadora na mão. Os quatro homens se abaixaram, escorregaram por baixo do homem nu
suas mãos enluvadas de pele, de couro e de amianto, aguardaram um instante.
Diante da tela do posto da sala de trabalhos, Forster, atento, olha a imagem. Tudo
preparado, ele ordena:
— Tenham cuidado! Atenção! Um, dois, três, já!
Em quatro idiomas diferentes a ordem chega ao mesmo tempo aos quatro capacetes
esféricos. Os homens se erguem lentamente.
Uma claridade azul fulgurante, mil vezes mais forte que a dos projetores, estoura sob seus
pés, queima-lhes os olhos, enche o ovo como uma explosão, jorra pela porta aberta, invade a
esfera, sobe pelo poço como um gêiser...
Depois se apaga.
Não houve nenhum barulho. Não era senão claridade. Sobre o solo do ovo, a neve não está
mais azul. O motor que desde a noite dos tempos fabricava o frio para manter intactos os dois
seres vivos que lhe tinham sido confiados, no mesmo segundo em que lhe tiraram sua última
razão de ser, parou e destruiu-se.
— Eu sou Eléa — disse a mulher. — Meu número é 3-19-07-91. Eis aqui minha chave,...
Mostrou a mão direita com os dedos dobrados, o médio separado e curvado para fazer
sobressair o engaste do seu anel, em forma de pirâmide truncada. Pareceu hesitar, depois
perguntou:
— Vocês não têm chave?
— Claro que sim! — respondeu Simon. — Mas creio que não é a mesma coisa...
Tirou o chaveiro do seu bolso, agitou-o, colocando-o depois diante de Eléa. Ela o olhou
sem tocar, com uma espécie de inquietação misturada à incompreensão. Em seguida fez um
gesto que pareceu de pouco caso e continuou:
— Nasci no Abrigo da Quinta Profundidade, dois anos depois da Terceira Guerra.
— O quê? — perguntou Leonova.
— Que guerra?
— Entre que países?
— Onde era o seu país?
— Quem era o inimigo?
As perguntas espocavam de todos os cantos da sala. Simon levantou-se, furioso. Eléa
colocou suas mãos sobre os ouvidos, fez uma cara de dor, e arrancou o aparelho de escuta.
— Perfeito! Muito bem! Vocês conseguiram! — gritou Simon. Estendeu sua mão aberta
para Eléa. Ela aí colocou o auscultador. Ele fez sinal a Leonova: — Venha — chamou.
Leonova subiu ao pódio. Pegou um grande globo terrestre colocado sobre o chão e
pousou-o sobre a mesa.
— Vocês bem sabem que Eléa não pode manipular o isolador — disse Simon aos sábios.
— Ela recebe todas as vossas perguntas de uma vez! Vocês o sabem!
Já tínhamos previsto! Se vocês não podem respeitar um pouco a disciplina, serei obrigado,
falando como o médico responsável, a proibir essas sessões! Peço-lhes deixar Madame
Leonova falar por todos vocês e fazer as primeiras perguntas. Depois um outro tomará seu
lugar e fará suas perguntas e assim por diante. De acordo?
— Tem razão, rapaz — disse Hoover. — Vá lá que seja, que a linda bonequinha fale por
nós...
Simon virou-se para Eléa e, de mão estendida, ofereceu-lhe o auscultador. Eléa ficou
imóvel um instante, depois pegou o aparelho e colocou-o no ouvido.
O homem está estendido sobre a mesa operatória. Ainda está nu. Os médicos e os técnicos
se agitam ao seu redor, fixam-lhe os eletrodos, as pulseiras, as braçadeiras, as correias de
colocar nas pernas, todos os contatos que o ligam aos aparelhos. Travesseiros são colocados
sob o seu braço direito, ainda pesado como ferro, meio erguido e no qual o dedo médio
ostenta um anel semelhante ao de Eléa.
Van Houcke, com precauções de babá, envolveu em pequenos pedaços de algodão o
precioso sexo ereto. Apesar desses cuidados, ele quebrou uma mecha de pelos. Praguejou em
holandês.
— Não tem importância — disse Zabrec. — Isto, isto crescerá outra vez... enquanto que o
resto...
— Olhe! — disse de repente Moissov, apontando um lugar da parede abdominal.
— Olhe aí... O peito...
— E aí!
— O bíceps esquerdo!...
— Merda! — gritou Lebeau.
Eléa olha o globo e o faz girar com perplexidade. Dir-se-ia que ela não o reconhecia.
Sem dúvida as convenções geográficas do seu tempo não eram as mesmas que as nossas.
Os oceanos azuis, por exemplo, talvez ela não compreenda o que representam, se, nos
mapas da sua época, eles figurassem em vermelho ou em branco... Talvez o norte fosse em
baixo, ou à esquerda, ou à direita...
Eléa hesita, pensa, estica o braço, faz girar o globo, e sobre o seu rosto adivinha-se que
ela, enfim, reconhece e que também vê a diferença...
Pegou o globo pelo pé e o inclinou.
— Assim — diz ela. — Ele era assim...
Apesar da promessa, os sábios não puderam conter exclamações abafadas. Lanson dirigiu
a boca da câmara para o globo e sua imagem apareceu na grande tela. O globo inclinado por
Eléa tinha seu norte em cima e seu sul embaixo, mas deslocados quase 40 graus.
Olofsen, o geógrafo dinamarquês, exultou. Ele havia sempre sustentado a teoria muito
controvertida de uma inclinação do globo terrestre. Havia trazido mil provas, que eram
refutadas uma a uma. Agora detalhes estavam aí, ele tinha razão! Não havia mais necessidade
de provas discutíveis: havia uma testemunha!
Um dedo de Eléa pousou sobre o continente antártico e sua voz disse: — Gondawa!...
Sobre o globo que Leonova segurava na posição que Eléa havia lhe dado Gondawa
ocupava um lugar a meio caminho do Polo e do Equador, em plena zona temperada quente,
quase tropical!
Eis o que explica essa flora exuberante, esses pássaros de fogo encontrados no gelo.
Um cataclismo brutal fez virar a Terra sobre um eixo equatorial, misturando os climas em
algumas horas, talvez minutos, queimando o que era frio, gelando o que era quente, e
submergindo os continentes com massas enormes de águas oceânicas arrancadas à sua inércia.
— Enisorai... Enisorai... — disse Eléa.
Procurou no globo alguma coisa que não encontrou.
— Enisorai... Enisorai...
Fez girar o globo entre as mãos de Leonova. A grande imagem do globo girou sobre a tela.
— Enisorai, o inimigo!...
Seus olhos procuraram em vão alguma referência no globo.
— Enisorai... Enisorai... Ah!...
A imagem parou. As duas Américas ocuparam a tela. Mas a inclinação do globo colocou-
as numa posição estranha: o norte virado para baixo e o sul para cima: — Ali! — disse Eléa.
— Ali falta...
Sua mão apareceu na imagem segurando uma vareta que Simon lhe tinha dado. A ponta de
grafite pousou na extremidade do Canadá, atravessou a Terra Nova, riscando um largo traço
vermelho que avançava até o meio do Atlântico, indo encontrar-se, num desenho acidentado,
com a ponta mais avançada do Brasil. Depois Eléa cobriu com riscos vermelhos todo o
espaço percorrido, preenchendo o imenso golfo que separa as duas Américas e as
transformando num só continente maciço cujo centro ocupava metade do Atlântico Norte.
Deixou cair a vareta, pousou sua mão sobre a Grande América que acabava de criar, e disse:
— Enisorai...
Leonova pousou o globo. Uma onda de excitação vibrou novamente na sala. Como tal
fenda poderia ter sido aberta no Continente? Teria sido o mesmo cataclismo que provocara o
desaparecimento de Enisorai central e deslocara o eixo da Terra?
A todas essas perguntas Eléa respondeu:
— Eu não sei... Coban sabe... Coban tinha medo... Foi por isso que ele fez construir o
abrigo onde vocês nos encontraram...
— Coban tinha medo do quê?
— Não sei... Coban sabe... Mas posso lhes mostrar...
Estendeu a mão para os objetos colocados diante dela. Escolheu um círculo de ouro,
tomou-o com as duas mãos e o colocou na cabeça. Duas pequenas placas ficaram aplicadas às
suas têmporas. Uma outra cobriu a fronte logo acima dos olhos. Em seguida apanhou um outro
círculo.
— Simon... — disse.
O médico virou-se em sua direção. Ela colocou o segundo círculo na cabeça dele e, com
um gesto do polegar, abaixou a placa frontal, que se transformou numa máscara sobre os olhos
do jovem médico.
— Calma — balbuciou.
Apoiou seus cotovelos sobre a mesa e pôs a cabeça entre as mãos. A placa frontal ficou
levantada. Ela fechou lentamente as pálpebras.
Todos os olhares, todas as câmaras focalizaram Eléa e Simon, sentados lado a lado, ela
com os cotovelos na mesa, ele sentado na sua cadeira, os ombros apoiados no encosto, os
olhos cobertos pela máscara de ouro.
O silêncio era tão grande que se ouviria cair um floco de neve.
De repente Simon teve um sobressalto. Viram-no colocando as mãos abertas diante de si,
como se quisesse se assegurar da realidade de alguma coisa. Levantou-se lentamente e
murmurou qualquer coisa que a tradutora repetiu num sussurro: — Eu vejo!... Eu ouço... Gritou
bem alto:
— EU VEJO! É o apocalipse! Uma planície imensa, queimada... viva... vitrificada!...
Exércitos caem do céu... as armas cospem a morte e destroem tudo!... Ainda caem mais!
Como mil nuvens de gafanhotos! Eles cobrem o solo... se afundam!... A planície se abre!...
se abre em duas!... de um pedaço a outro do horizonte... O sol sobe e cai!... Os exércitos estão
desaparecidos!
Alguma coisa sai da terra... algo gigantesco! Uma máquina... uma máquina monstruosa,
uma planície de vidro e de aço... ela se separa da terra, se levanta, voa, se desdobra... dilata-
se... enche o céu todo!... Ah!... um rosto... um rosto encobre o céu... ele está perto... de mim!...
inclina-se sobre mim... ele me olha! É um rosto de homem... seus olhos estão cheios de
desespero...
— Paikan! — geme Eléa.
A cabeça de Simon escorrega de suas mãos, seu corpo cai sobre a mesa. A visão
desaparece do cérebro do médico.
Coban sabe. Ele sabe o melhor e o pior. Ele sabe qual é essa máquina monstruosa dê
guerra que enchia o céu. Ele sabe como tirar do nada tudo aquilo que falta aos homens.
Coban sabe. Mas poderá ele dizer aquilo que sabe?
Os médicos encontraram lesões sobre quase toda a superfície do seu torso, dos seus
braços e, em menos quantidade, sobre suas costas. Pensaram que se tratava de erupções de
pele causadas pelo frio. Mas quando retiraram sua máscara, descobriram uma cabeça na qual
todos os cabelos, cílios e sobrancelhas estavam queimados até a raiz. Não eram simples
erupções, mas sim visíveis sinais de queimadura. Ou ambas as coisas, talvez.
Perguntaram se Eléa sabia como ele havia se queimado. Ela não sabia. Quando Coban
adormeceu, estava a seu lado, saudável e intacto...
Os médicos o envolveram dos pés à cabeça com ataduras com preparado antinecrose, a
fim de impedir que a pele ficasse destruída quando retomasse sua temperatura normal e de
ajudar a reconstituição dos tecidos.
Coban sabe. Ele por enquanto não é senão uma múmia fria envolvida em faixas amarelas.
Dois tubos transparentes, enfiados nas suas narinas, saem das ataduras. Fios de todas as cores
surgem das espirais amarelas em todas as alturas do seu corpo e o ligam aos instrumentos.
Lentamente, lentamente, os médicos continuam a aquecê-los.
A guarda do elevador foi dobrada através de um dispositivo tipo armadilha posto à
entrada da esfera. Lukos aí colocou duas minas eletrônicas que havia trazido da sua missão, e
que havia aperfeiçoado. Ninguém poderia se aproximar sem as fazer ir pelos ares. Para entrar
na esfera, era preciso, chegando embaixo do poço, se apresentar aos homens que montavam
guarda na saída do elevador. Os guardas se comunicavam com o interior onde três médicos e
várias enfermeiras e técnicos velavam permanentemente em torno de Coban.
Um deles baixava o interruptor. Uma luz vermelha deixava de piscar e então as minas se
tornavam inertes como chumbo. Podia-se descer à esfera.
— Coban sabe... Vocês acham que esse homem representa perigo para a humanidade ou,
ao contrário, ele vai trazer a possibilidade de fazer da Terra um novo Éden?
— Para mim, o Éden, ora... nós nunca fomos lá!... e nem sabemos se era assim tão
formidável!...
— E o senhor?
— Bem, sabe, é meio difícil de dizer...
— E a senhora?
— Bem, eu acho que é apaixonante! Este homem e esta mulher que vêm de tão longe e que
se amam!
— A senhora acredita que eles se amam?
— Claro, sem dúvida!... Ela diz o tempo todo o nome dele!... Balkan!... Balkan!...
—Acho que a senhora está fazendo uma pequena confusão, mas em todo o caso a senhora
tem razão, é apaixonante tudo isto!... E o senhor; o senhor também acha que é assim
apaixonante?
— Não posso dizer nada, visto que sou estrangeiro...
O Sr. e Senhora Vignon, seu filho e sua filha comem batatas com açúcar, na mesa em feitio
de lua diante da tela. É uma receita da cozinha nutritiva.
— É uma bobagem fazer perguntas como essas — comenta a mãe.
— Esse sujeito — diz a filha — eu o mandaria de volta para o frigorífico. A gente vive
muito bem sem ele...
— Oh! Hum! hum... — replica a mãe. — Não se pode fazer isso.
Sua voz está um pouco rouca. Ela pensa num certo detalhe. E em seu marido que já não é
mais tão... Recordações lhe rasgam o ventre. Uma grande tristeza enche seus olhos de
lágrimas. Assoa o nariz.
— Acho que estou mais uma vez resfriada...
Por este lado, a filha está em paz. Ela tem amigos na Arte e Decorações que são" talvez
menos agraciados do que este tipo, mas sob um certo detalhe eles lhe equivalem. Enfim, talvez
não seja bem assim... Mas eles, ao menos não estão gelados!...
— Não podem colocá-lo de novo no gelo — diz o pai — depois de todo o dinheiro que já
gastaram. Isto representa um investimento...
— Por mim ele pode se danar! — resmunga o filho.
Não diz mais nada. Pensa em Eléa toda nua. Sonha com ela de noite, e, quando não está
dormindo, é pior ainda.
Eléa, com indiferença, havia deixado que os sábios examinassem os dois círculos de ouro.
Brivaux tentou encontrar dentro deles um circuito, conexão, alguma coisa. Nada. Os dois
círculos com as duas placas temporais fixas e a placa frontal móvel eram feitos de um metal
sólido, sem qualquer mecanismo interno ou externo.
— É preciso não se enganar — disse Brivaux. — Trata-se de eletrônica molecular. Esse
negócio é tão complicado quanto um emissor e receptor de tevê reunidos e tão simples quanto
uma agulha de tricô! Está tudo nas moléculas! É formidável! A meu ver, isto funciona assim:
quando você o põe ao redor da cabeça, ele recebe as ondas do seu cérebro, transforma-as em
ondas eletromagnéticas e as emite. Quando se põe o outro círculo na cabeça, a placa é puxada
para baixo e funciona em sentido contrário. Recebe então as ondas eletromagnéticas que são
enviadas, transformando-as em ondas, que transmite a outro cérebro.
Compreendeu? A meu ver, acho que poderíamos ligar isso à tevê...
— O quê?
— Não é feitiçaria... captar as ondas no momento em que elas estão eletromagnéticas,
amplificá-las e injetá-las no receptor de tevê. Isto certamente dará alguma coisa. Talvez uma
confusão... talvez uma surpresa... vamos experimentar. Ou é possível ou não... De qualquer
maneira não é difícil tentar.
Brivaux e sua equipe trabalharam apenas a metade de um dia. Depois Goncelin, seu
assistente, colocou na cabeça o capacete emissor. E constataram, entre surpresos e confusos,
imagens sem continuação nem ligação, às vezes sem formas precisas. Uma construção mental
tão instável quanto a areia nas mãos de uma criança.
Não tente "pensar" — disse Eléa. — Pensar é muito difícil. Os pensamentos se fazem e se
desfazem. Quem os faz, quem os desfaz? Não é quem os Pensa... É preciso se lembrar.
Memória, somente memória. O cérebro registra tudo, mesmo se os sentidos não prestam
atenção. É preciso se lembrar. Recordar uma imagem precisa no instante preciso. E depois
deixar fazer, o resto vem sozinho...
Vamos ver! Ponha isso sobre a sua cabecinha! — disse Brivaux a Odile, a secretária do
escritório técnico que taquigrafava as peripécias dos ensaios.
— Feche os olhos e lembre-se do seu primeiro beijo.
— Oh! Senhor Brivaux!
—Não se faça de boba!
Ela tinha 45 anos e parecia um inspetor de trânsito às vésperas de se aposentar. Havia sido
escolhida entre outras porque já havia feito grandes marchas, tinha vocação de líder e não
temia o mau tempo.
— E então, chegou lá?
— Sim, Monsieur Brivaux!
— Vamos! Feche os olhos! Lembre-se!
— Houve na tela-testemunha uma explosão vermelha. Depois mais nada.
— Curto-circuito! — disse Goncelin.
— Emoção demais — disse Eléa. — É preciso recordar a imagem, mas se esquecer...
— Tente mais uma vez.
Tentaram. E conseguiram.
Para a segunda sessão de trabalho, além de Leonova e de Hoover, Brivaux e seu assistente
Goncelin haviam tomado lugar ao lado de Eléa e de Simon.
Brivaux estava sentado perto de Eléa. Ele manipulava uma montagem complicada pouco
maior que um cubo de gelo e que estava encimada por um buquê de antenas da altura de um
dedo mínimo e tão complexo como as antenas de um inseto.
A montagem estava ligada a uma mesa de controle colocada à frente de Goncelin. Um cabo
partia dessa mesa para a cabina de Lanson.
— A terceira guerra durou uma hora — disse Eléa. — Depois Enisorai teve medo. E nós
também, é claro. Paramos. Havia oitocentos milhões de mortos. Principalmente de Enisorai. A
população de Gondawa era menos numerosa, mas bem protegida nos abrigos.
Na superfície do nosso continente não restava mais nada e os sobreviventes não podiam
subir, por causa das irradiações mortais.
— Irradiações? Que armas eles haviam utilizado?
— As bombas terrestres.
— Você conhece o funcionamento delas?
— Não. Coban conhece.
— E conhece o princípio?
— Elas eram fabricadas com um metal tirado da terra e que queimava, destruía e
envenenava muito tempo depois da explosão.
Ouviu-se a voz impessoal da máquina tradutora: "traduzo exatamente as palavras gondas, e
isso dá bem "bomba terrestre". No entanto, ao mesmo tempo, substituirei este termo pelo seu
equivalente: "bomba atômica".
— Nasci — continuou Eléa — na 5ª Profundidade. Subi à Superfície pela primeira vez
quando tinha sete anos, no dia seguinte da minha Designação. Eu não podia subir enquanto não
tivesse recebido minha chave Hoover:
— Mas enfim que diabo de chave é essa? Para que serve?
Voz impessoal da tradutora: "Não posso traduzir "diabo de chave". A palavra
"diabo" neste sentido articular não tem equivalente no vocabulário que me foi programado."
— Esta máquina é uma verdadeira sarna! — disse Hoover.
A mão direita de Eléa descansava sobre a mesa, os dedos alongados. Lanson focalizou a
câmara dois sobre a mão e aumentou ainda mais a imagem. A pequena pirâmide apareceu
sobre a grande tela, ocupando-a. Ela era de ouro, e, nesta escala, podia-se ver que sua
superfície era estriada e entalhada de sulcos minúsculos e de cavidades de formas irregulares,
estranhas.
— A chave serve para tudo — prosseguiu Eléa. — Ela é estabelecida no nascimento de
cada um. Todas as chaves têm a mesma forma, mas elas são tão diferentes quanto os
indivíduos. A disposição interna de seus...
A voz impessoal da tradutora interrompeu:
"A última palavra pronunciada não figura no vocabulário que me foi programado.
Mas aí encontro a mesma consoante que..."
— Deixe-nos em paz! — gritou Hoover. — Diga aquilo que sabe e, quanto ao resto, não
aborreça mais...
Calou-se, antes de deixar escapar o palavrão que lhe subia aos lábios, e terminou mais
calmamente:
— Não nos faça transpirar!
— Sou uma tradutora — replicou a máquina —, não sou um aquecedor. Toda a sala riu-se
a bandeiras despregadas. Hoover sorriu e virou-se para Lukos.
— Dou-lhe os parabéns, sua filha tem espírito, mas ela é um pouco enjoada, não?
— Ela é meticulosa, é seu dever...
Eléa escutava, sem procurar compreender essas brincadeiras dos selvagens que jogavam
com as palavras como crianças com as pedrinhas das praias subterrâneas. Que rissem, que
chorassem, que se irritassem, tudo isso para ela era indiferente. Também lhe era indiferente
continuar quando lhe pediram. Explicou que a chave levava, inscrita na sua substância, toda a
bagagem hereditária do indivíduo e suas características físicas e mentais.
Era enviada ao computador central que a classificava e a modificava cada seis meses,
depois de um novo exame da criança. Aos sete anos, o indivíduo já se tinha definido. A chave
também. Então se dava a Designação.
A designação, o que é isto? — perguntou Leonova. O computador central possui todas as
chaves de todos os seres vivos de Gondawa, e também dos seus antepassados. Aquelas que
nós levamos são apenas cópias. Cada dia, o computador compara, entre elas, as chaves de
sete anos. Conhece tudo de todos. Sabe quem eu sou e também o que serei. Encontra entre os
rapazes aqueles que são e que serão, o que me convém, aquele que me falta, aquele do qual
precisarei, aquele que eu desejo. E entre esses rapazes encontra aquele para o qual eu sou e
serei o que lhe falta, o que ele precisa o que ele necessitará e o que ele desejará.
Então, ele nos designa um ao outro. Fez uma ligeira pausa e continuou: — O rapaz e eu, eu
e o rapaz, nós somos como um seixo que tenha sido partido ao meio e que tenha sido lançado
entre todos os seixos partidos do mundo. O computador encontra as duas metades e as une.
— É razoável — disse Leonova.
— Pequeno comentário da formiguinha — acrescentou Hoover.
— Deixem-na continuar... — interferiu Lukos.
Eléa, indiferente, recomeçou a falar, sem olhar para ninguém.
— São educados juntos. Ora na família de um, ora na família do outro. Juntos têm o
mesmo gosto, os mesmos hábitos. Aprendem juntos a ter as mesmas alegrias. Conhecem juntos
como é o mundo, como é a menina, como é o menino. Quando vem o momento em que os sexos
florescem, há união pelo sexo e o seixo reunido torna a soldar-se numa só matéria.
— Soberbo! — disse Hoover. — E isto sempre tem sucesso? Seu computador não se
engana jamais?
— O computador não pode errar. Às vezes um rapaz ou uma moça mudam, ou se
desenvolvem de uma maneira imprevista. Então os dois pedaços de seixo não são mais a
metade. E um se afasta do outro.
— Eles se separam?
— Sim.
— E aqueles que ficam juntos são muito felizes?
— Nem todo o mundo é capaz de ser feliz. Há casais que, simplesmente, não são infelizes.
Há aqueles que são felizes e os que são muito felizes. E há alguns que a Designação obteve um
sucesso absoluto, e cuja união parece ter começado no início da vida do mundo. Para estes, a
palavra felicidade não é suficiente. Eles são...
A voz impessoal da tradutora declarou em todas as línguas que ela conhecia: — Não há
palavra na sua língua para traduzir a palavra que foi pronunciada.
— E você — perguntou Hoover —, você não era infeliz, feliz, muito feliz, ou bem...
bolas... isso inexprimível?
A voz de Eléa estancou, tornou-se dura como metal.
— Eu não era — disse ela. — Nós éramos...
Os detectores imersos ao largo da costa do Alasca, anunciaram ao Estado-Maior
americano que 23 submarinos atômicos da frota polar russa haviam ultrapassado o estreito de
Behring, dirigindo-se para o sul. Não houve reação americana.
As redes de observações fizeram saber ao Estado-Maior russo que a sétima esquadra
americana de satélites estratégicos modificara sua órbita de espera e inclinara-se para o sul.
Não houve reação russa.
O porta-aviões submarino europeu Netuno-I, em cruzeiro nas costas da África ocidental,
mergulhou e tomou a direção do sul.
As ondas chinesas começaram a gritar, revelando à opinião mundial esses movimentos que
todo o mundo ignorava ainda e denunciando a aliança dos imperialistas que vagavam de
comum acordo em direção ao continente antártico para aí destruir a maior esperança da
Humanidade.
6
ALIANÇA, NÃO ERA A PALAVRA EXATA. Acordo teria sido mais justo. Os governos
dos países ricos tinham concordado, fora das Nações Unidas, em proteger os seus sábios e os
seus maravilhosos e ameaçados tesouros, contra um ataque possível do mais poderoso dos
países pobres, cuja população acabara de ultrapassar o bilhão. Eles nos protegeriam mesmo
de um país menos poderoso, menos armado e menos decidido. Mesmo a Suíça, havia dito
Rochefoux. Não, claro, não a Suíça. Era a nação mais rica: a paz a enriquecia, a guerra a
enriquecia, ameaça de guerra ou de paz a tornava rica. Talvez, isso sim, contra algum tirano
negro, árabe ou oriental, reinando pela força sobre a miséria, que intentasse contra a EPI um
golpe de força desesperado para apoderar-se de Coban ou para matá-lo.
O acordo secreto tinha chegado até os estados-maiores. Um plano comum havia sido
redigido. As esquadras da Marinha, submarinos e porta-aviões se dirigiam para o círculo
polar austral para construir um conjunto, ao largo do ponto 612, um bloco defensivo e, se
necessário, ofensivo.
Os generais e almirantes pensavam com desprezo nesses sábios ridículos e suas pequenas
metralhadoras. Cada chefe de esquadra tinha como instrução não deixar, por preço algum, este
Coban passar-se para o seu vizinho. Para isto, o melhor não era estarem lá todos juntos e se
vigiarem?
Havia outras instruções mais secretas, que não vinham nem dos governos nem dos estados-
maiores.
A energia universal, energia que há em toda a parte, que não custa nada e que fabrica tudo,
era a ruína dos trustes do petróleo, do urânio, de todas as matérias-primas. Era o fim dos
empresários!
Essas instruções mais secretas não foram os chefes de esquadra que as haviam recebido, e
sim alguns homens anônimos, misturados entre as tripulações.
Diziam, elas também, que não era possível deixar Coban ir para o vizinho.
Acrescentavam que ele não devia ir a lugar algum.
— Você é um bruto! — disse Simon a Hoover. — Abstenha-se de fazer perguntas pessoais.
— Uma pergunta sobre sua felicidade, não pensava...
— Sim! Você pensava! — retrucou Leonova. — Mas você gosta de fazer sofrer!
— Quer fazer o favor de se calar? — pediu Simon. Virou-se para Eléa e perguntou-lhe se
ela desejava continuar.
— Sim — disse Eléa, com sua indiferença costumeira. — Vou-lhes mostrar minha
Designação. Essa cerimônia tem lugar uma vez por ano, na árvore-e-o-Espelho. Há uma
Árvore-e-o-Espelho em cada profundidade. Fui designada para a Quinta Profundidade, onde
eu tinha nascido... Pegou o círculo de ouro colocado diante dela, levou-o acima de sua cabeça,
colocou-o.
Lanson cortou as câmaras, desligou o cabo do pódio e ligou o canal-som sobre a tradutora.
Eléa, a cabeça entre as mãos, fechou os olhos.
Uma onda violenta invadiu a grande tela, afastada e substituída por uma chama laranja.
Uma imagem confusa e ilegível tentou aparecer. As ondas a rasgaram. A tela tornou-se de cor
vermelha e começou a palpitar como um coração desesperado. Eléa não conseguia dominar
suas emoções. Viram-na esticar o busto sem abrir os olhos, inspirar profundamente e retomar a
posição. Bruscamente, apareceu na tela um casal de crianças.
Eram vistos de costas e de frente para um imenso espelho que refletia uma árvore.
Entre o espelho e a árvore, sob esta última, havia uma multidão. E em frente ao espelho,
distantes alguns metros uns dos outros, havia uns vinte casais de crianças. Todos de pé o dorso
nu, com coroas e pulseiras de flores azuis, vestidos com uma roupa azul curta e calçados de
sandálias. Sobre cada um de seus tenros dedos e nos lóbulos de suas orelhas estava colada
uma leve, delicada e dourada pluma de pássaro.
A menina no primeiro plano, a mais bela de todas, era Eléa, reconhecível mas diferente.
Diferente não por causa da idade e sim da paz e da alegria que iluminava seu rosto. O menino
que estava a seu lado olhava-a, e ela lhe retribuía o olhar. Ele era louro como o trigo maduro
ao sol. Seus cabelos lisos caíam-lhe retos em volta do rosto até os ombros finos onde os
músculos já começavam a mostrar seu garbo. Seus olhos amendoados fixavam o espelho de
onde os olhos azuis de Eléa lhe sorriam.
Eléa, adulta, fala, e a máquina traduz:
— Quando a Designação é perfeita, no momento em que as duas crianças designadas se
veem pela primeira vez, se reconhecem...
Eléa na infância trocara olhares com o menino. Eram felizes e belos. Eles se reconheciam
como se tivessem andado sempre à procura um do outro, sem pressa e tranquilos com a
certeza de que iam-se encontrar. Chegado o momento do encontro, estavam juntos e se
olhavam, se descobriam, felizes e maravilhados.
Atrás de cada casal de crianças estavam as duas famílias. Outras crianças com suas
famílias esperavam atrás deles. A árvore tinha um tronco castanho cujos primeiros galhos
quase tocavam no chão e os mais altos escondiam O teto, se é que havia algum. Suas folhas
espessas, de um verde vivo estriadas de vermelho, poderiam esconder um homem da cabeça
aos pés. Um grande número de adultos e de crianças descansavam deitados ou sentados sobre
os tralhos, ou sobre suas folhas que se arrastavam sobre o solo. Crianças saltavam de um
galho para outro, como pássaros. Os adultos usavam roupas de cores diversas, alguns
inteiramente vestidos, outros — mulheres ou homens — somente dos quadris aos joelhos.
Outros levavam apenas uma faixa leve ao redor das cadeiras. Havia mulheres inteiramente
nuas, mas os homens, todos, estavam vestidos. Nem todos os rostos eram belos, mas todos os
corpos eram harmoniosos e sadios. De modo geral tinham, com ligeira diferença, a mesma cor
de pele. Havia um pouco mais de variedade nos cabelos, que iam do ouro puro ao ruivo e ao
castanho-dourado. Alguns casais adultos se davam a mão.
No fundo do espelho apareceu um homem vestido com uma roupa vermelha que lhe caía
até os pés. Aproximou-se do casal de crianças, parecia se entregar a uma cerimônia leve.
Depois mandou-as de volta, de mãos dadas. Duas outras crianças vieram substituí-las.
Outros homens de vermelho apareceram à beira do espelho, se dirigiram para os outros
casais de crianças que esperavam, e que partiram alguns instantes mais tarde, de mãos dadas.
Um homem de vermelho chegou à beira do espelho e aproximou-se de Eléa. Ela o olhou no
espelho. Ele lhe sorriu, colocou-se por detrás dela, consultou uma espécie de disco que estava
na sua mão direita e pousou sua mão esquerda sobre o ombro de Eléa.
— Sua mãe lhe deu o nome de Eléa — disse ele. — Hoje, você foi Designada. Seu
número é 3-19-07-91. Repita.
— 3-19-07-91 — disse Eléa menina.
— Você vai receber sua chave. Estenda sua mão.
Ela estendeu a mão esquerda, aberta, a palma para cima. A extremidade dos seus dedos
veio tocar sobre o espelho a extremidade de sua imagem.
— Diga quem é você. Diga seu nome e seu número.
— Sou Eléa. 3-19-07-91.
A imagem da mão no espelho palpitou e se abriu, descobrindo uma claridade logo apagada
e fechou-se de novo, de onde caiu um objeto na palma da mão que estava estendida. Era um
anel. Um anel para um dedo de criança, encimado por uma pirâmide truncada, cujo volume
não excedia um terço do que usava Eléa adulta.
O homem de vermelho pegou-o e colocou-o no dedo médio da mão direita.
— Não o tire nunca. Ele crescerá com você. Cresça com ele.
Depois veio se colocar atrás do menino. Eléa olhava o homem e o menino-rapaz com
olhos imensos, cada um contendo a metade da aurora. Seu rosto grave estava iluminado de
confiança e de entusiasmo. Ele era semelhante a uma planta nova cheia de mocidade e de vida,
que acaba de brotar no solo curo e estende para a claridade a confiança perfeita e tenra da sua
primeira folha, com a certeza de que breve, folha após folha, ela atingirá o sol...
O homem consultou seu disco, pousou sua mão esquerda sobre o ombro esquerdo do
menino e disse:
— Sua mãe lhe deu o nome de Paikan...
Uma explosão vermelha rasgou a imagem, invadiu a tela, cobriu o rosto de Eléa menina,
apagou o céu dos seus olhos, sua esperança, e sua alegria. A tela extinguiu-se. No pódio, Eléa
acabara de arrancar de sua cabeça o círculo de ouro.
— Continuamos não sabendo para o que serve o diabo dessa chave — resmungou Hoover.

Tentei te chamar para o nosso mundo. Embora tenhas aceitado colaborar conosco,
talvez por isso mesmo, eu te via um pouco mais cada dia recuar no passado, para um
abismo. Não havia passarela para atravessar o despenhadeiro. Não havia nada atrás de ti,
senão a morte.
Fiz trazerem do Cabo, para ti, cerejas e pêssegos.
Fiz trazer um carneiro do qual o nosso chefe tirou, para te oferecer, algumas costeletas
acompanhadas de folhas de alface romana, tenras como uma polpa de fruto. Olhaste as
costeletas com horror. E me disse:
— É um pedaço cortado de um bicho?
Nunca tinha pensado nisso. Até aquele dia, para mim, uma costeleta não era senão uma
costeleta. Respondi meio sem jeito:
— Sim.
Olhaste a carne, a salada, as frutas e me disseste:
— Você come bicho!... você come mato!... você come árvore!... Tentei sorrir. Respondi:
— Nós somos bárbaros...
Mandei buscar rosas. Você pensou que isto também nós comêssemos...

A chave continha a explicação de tudo, dissera Eléa.


Foi esta a conclusão a que os sábios e os jornalistas chegaram, reunidos na Sala de
Conferências, no decorrer das reuniões seguintes. Eléa havia se tornado um pouco mais dona
de suas emoções, e pôde contar e mostrar a sua vida e a de Paikan, a vida de um casal de
crianças que se tornou um casal de adultos, e tomou seu lugar na sociedade.
Depois da guerra de uma hora, o povo de Gondawa tinha ficado enterrado. Os abrigos
haviam demonstrado sua eficiência. Apesar do Tratado de Lampa, ninguém ousava jamais
acreditar que a guerra não recomeçaria. A sabedoria aconselhava a ficar no abrigo e nele
viver. A superfície estava devastada. Era necessário reconstruir tudo. A sabedoria
aconselhava a reconstruir o abrigo.
O subsolo foi ampliado em profundidade e extensão. Sua arrumação englobava cavernas
naturais, os lagos e os rios subterrâneos. A utilização da energia universal permitia-lhes
dispor de uma potência sem limites, e que poderia tomar todas as formas. Era utilizada para
recriar sobre o solo uma vegetação mais rica e mais bela que a que havia sido destruída
embaixo. Numa claridade semelhante à luz do dia, as cidades subterrâneas transformaram-se
em jardins, bosques, florestas. Novas espécies foram criadas, crescendo numa rapidez, na
qual era visível o desenvolvimento de uma planta ou de uma árvore.
Máquinas flexíveis e silenciosas se deslocavam para baixo e em todas as direções,
fazendo desaparecer a terra diante delas, bem como a rocha. Elas se arrastavam pelo chão,
pelas abóbadas e pelas paredes, deixando atrás de si tudo polido e mais duro do que o aço.
A superfície não era senão uma tampa, da qual tiravam partido. Cada parcela que tinha
permanecido intacta, foi preservada, limpa, arrumada para ser um lugar de descanso.
Lá, era um pedaço de floresta que haviam repovoado com animais; mais longe, um curso
d'água de rios preservados, um vale, uma praia sobre o oceano. Aí construíram edifícios para
jogos e para quem quisesse arriscar a vida exterior que a nova geração considerava como uma
aventura.
Embaixo, a vida se organizava e se desenvolvia, dentro da alegria e da razão. As usinas
silenciosas continuavam fabricando tudo de que o homem tinha necessidade. A chave era a
base do sistema de distribuição.
Cada ser vivo de Gondawa recebia anualmente uma parte igual de crédito, calculada
segundo a produção total das usinas silenciosas. Esse crédito estava escrito a seu favor numa
conta gerada pelo computador central. Era mais do que o suficiente para lhes permitir viver e
aproveitar tudo o que a sociedade podia oferecer-lhes. Cada vez que um gonda desejava
qualquer coisa de novo — roupas, uma viagem, objetos — pagava com sua chave. Dobrava o
dedo maior, enfiava sua chave no lugar já previsto para este resultado, e sua conta, no
computador central, era logo diminuída do valor da mercadoria ou serviço pedido.
Alguns cidadãos, de uma qualidade excepcional, como Coban, diretor de uma
universidade, recebia um crédito suplementar. Mas este não lhes servia praticamente para
nada. Um número muito pequeno de gondas chegava a gastar seu crédito anual. Para evitar a
acumulação das possibilidades de pagamento entre as mesmas mãos, o que restava dos
créditos era automaticamente anulado no fim de cada ano. Não havia pobres nem ricos, havia
somente cidadãos que podiam obter todos os bens que desejassem. O sistema da chave
permitia distribuir a riqueza nacional, respeitando ao mesmo tempo a igualdade de direitos
dos gondas e a desigualdade de suas naturezas, cada um gastando seu crédito segundo seu
gosto e suas necessidades.
Uma vez construídas e começando a funcionar, as usinas trabalhavam sem mão de obra e
com seu próprio cérebro, Mas não dispensavam completamente os homens, pois, se
asseguravam a produção, restava sempre alguma coisa em que era necessário a mão e a
inteligência para realizar. Cada gonda tinha que dar ao trabalho a metade de um dia durante os
cinco dias, e este tempo poderia ser repartido em pedaços. Ele podia, se desejasse, trabalhar
mais. Podia, se quisesse, trabalhar menos ou nada. O trabalho não era remunerado. Aquele que
escolhesse trabalhar menos, via seu crédito diminuir. Ao que escolhesse não trabalhar nada,
restava com o que subsistir e se oferecer um mínimo de supérfluo.
As usinas eram colocadas no fundo das cidades, na sua parte mais profunda. Ficavam
reunidas, juntas, ligadas entre si. Cada usina era parte de um conjunto que se ramificava sem
cessar em novas usinas germinantes e que reabsorviam aquelas que não davam mais um
serviço satisfatório.
Os objetos que as usinas fabricavam não eram produtos de conjunto e sim de síntese.
A matéria-prima era a mesma em todo o lugar. Energia universal. A fabricação de um
objeto no interior de uma máquina imóvel, parecia o desenvolvimento, nas entranhas de uma
mulher, do organismo incrivelmente complexo de uma criança a partir desse quase nada, que é
um óvulo fecundado. Mas, nas máquinas, não havia o quase, havia somente o nada. E a partir
desse nada subia para a cidade subterrânea numa onda múltipla, distinta e ininterrupta, tudo o
que era preciso às necessidades e às alegrias da vida. O que não existe existe, concluía-se.
A chave tinha uma outra utilidade, também importante: impedia a fecundação. Para
conceber uma criança, o homem e a mulher deveriam tirar os anéis. Se um dos dois o
conservasse, a fecundação era impossível. A criança não podia nascer senão quando desejada
pelos dois.
A partir do grande dia da Designação, quando ele o recebia, um gonda não podia mais
tirar seu anel. E, no correr dos dias este lhe fornecia tudo o de que ele tinha necessidade, tudo
o que ele desejava. Era a chave da sua vida, e quando a vida terminava, o anel continuava no
seu dedo no momento em que ele entrava na máquina imóvel que devolvia os mortos à energia
universal. O que não existe, existe.
Também o instante em que os dois esposos tiravam o seu anel, antes de se juntarem para
fazer uma criança, era banhado de uma emoção excepcional. Eles se sentiam mais que nus,
como se tivessem tirado ao mesmo tempo que o anel a própria pele. Dos pés à cabeça, eles se
tocavam ao vivo e a fundo. Entravam numa comunhão total. Ele penetrava nela e os dois se
fundiam. Para os dois corpos o espaço tornava-se o mesmo. A criança era concebida numa
única alegria.
A chave era suficiente para manter a população de Gondawa num nível constante.
Enisorai não tinha a chave e não a queria. Enisorai pululava. Enisorai conhecia a equação
de Zoran e sabia utilizar a energia universal, mas servia-se dela para a proliferação e não para
o equilíbrio. Gondawa se organizava, Enisorai e multiplicava. Gondawa era um lago, Enisorai
era um rio. Gondawa era a sabedoria, Enisorai a força. Essa força não podia se desenvolver e
se exercer senão fora dela mesma. Eram os engenhos de Enisorai que se tinham colocado em
primeiro lugar na Lua. Gondawa logo a havia seguido, para não se deixar dominar. Segundo os
cálculos de balística a face leste da Lua convinha perfeitamente à partida dos engenhos de
exploração em direção ao sistema solar. Enisorai aí construiu uma base, Gondawa também. A
terceira guerra acendeu-se neste lugar, de um incidente entre as guarnições das duas bases.
Enisorai queria ser a única sobre a Lua.
O medo pôs fim à guerra. O Tratado de Lampa dividiu a Lua em três zonas, uma gonda,
uma enisor e uma internacional. Esta ficava a leste. As duas nações tinham feito um acordo
para construírem juntas uma base de partida.
Os outros povos não tinham direito à partilha da Lua. Os outros povos viviam à margem,
mas tiravam proveitos. Recebiam de Enisorai ou de Gondawa promessas de produção de suas
máquinas imóveis que supriam as suas necessidades. Os mais hábeis recebiam dos dois lados.
Tinham recebido também, dos dois lados, muitas bombas durante a terceira guerra. Menos de
Gondawa, muito mais de Enisorai.
Enisorai tinha uma população muito numerosa para poder ser abrigada. Porém sua
fecundidade numa geração tinha substituído os mortos.
Pelo Tratado de Lampa, Enisorai e Gondawa tinham prometido não utilizar mais as
"bombas terrestres"; as que restaram foram jogadas no espaço, colocadas em órbita ao redor
do Sol. As duas grandes nações tinham também tomado um outro compromisso, de não
fabricar armas que ultrapassassem em força destrutiva aquelas que acabavam de ser
proscritas.
Mas uma formidável força de expansão desenvolvia-se em Enisorai. Enisorai começou a
fabricar armas individuais utilizando a energia universal. Cada uma dessas armas tinha força
de choque limitado. Mas nada poderia resistir à sua multidão. E cada dia aumentava o número
dos exércitos. O rio impetuoso da vida em expansão enchia de novo seu leito, prestes a
transbordar.
Então o Conselho Diretor de Gondawa decidiu sacrificar a vila central, Gonda-1. Ela foi
evacuada e reabsorvida, e, no seu lugar subterrâneo, as máquinas começaram a trabalhar. E o
Conselho Diretor de Gondawa fez saber ao Conselho do Governo de Enisorai que, se uma
nova guerra estourasse, seria A ÚLTIMA.
Assim, reunião após reunião, através das lembranças diretas de Eléa projetadas sobre a
tela, e pelas múltiplas perguntas que lhe faziam, os sábios da EPI aprenderam a conhecer este
mundo desaparecido, que havia resolvido certos problemas que tanto preocupavam o nosso.
Mas aquele mundo também parecia arrastado de maneira inelutável para disputas que nada de
razoável justificava.
Viu-se logo que não era possível deixar aparecer nas telas da tevê publicamente as
lembranças diretas de Eléa. Era necessário fazer uma escolha, entre as imagens projetadas,
pois ela evocava sem o menor constrangimento os momentos mais íntimos de sua vida com
Paikan. De um lado, ela associava à beleza de Paikan, à sua e à união dos dois o orgulho e a
alegria, jamais a vergonha; de outro lado ela parecia recordar cada vez mais suas lembranças
para si mesma.
Sem se preocupar com a assistência que procurava perscrutar todos os detalhes. Aliás, os
homens de hoje eram tão diferentes dela, tão atrasados, e bizarros na maneira de pensar e no
comportamento, que lhe pareciam tão distantes, ausentes, quanto animais ou objetos.
Eléa evocava os momentos mais importantes de sua existência, os mais felizes, os mais
dramáticos, para revivê-los uma segunda vez. Entregava-se interminavelmente à sua memória,
como a uma droga de ressurreição, e só às vezes as ondas escarlates da emoção conseguiam
tirá-la desse estado. Os sábios descobriram pouco a pouco, em torno dela e de Paikan, o
mundo fabuloso de Gondawa.
No seu cavalo branco de crinas compridas, delgada como um galgo, Eléa galopava rumo à
Floresta Poupada. Adiante de Paikan, corria rindo para ter a felicidade de se deixar alcançar!
Paikan havia escolhido um cavalo azul porque seus olhos tinham a cor dos olhos de Eléa.
Ele galopava logo atrás dela, alcançava-a pouco a pouco, fazia durar a alegria. Seu cavalo
estendia as narinas azuis para a longa cauda branca que flutuava ao vento. A extremidade dos
longos pelos penetrou nas narinas delicadas. O cavalo azul sacudiu sua cabeça, ganhou um
pouco mais de terreno, alcançou o outro com a boca, mordendo-lhe a crina.
O cavalo branco saltou, relinchou, escoiceou. Eléa o segurava firme e o apertava com suas
coxas robustas. Ela ria, saltava, dançava junto com ele...
Paikan acariciou o cavalo azul e o fez largar sua presa. Entraram a passo curto na Floresta,
o branco e o azul, lado a lado, acalmados, maliciosos, se olhando com o canto do olho. Seus
cavaleiros se seguravam pela mão. As árvores imensas, escapadas da terceira guerra, erguiam
em enormes colunas seus troncos couraçados de escamas castanhas. Ao sair do solo, elas
pareciam hesitar, ensaiando uma ligeira curva preguiçosa, mas que era apenas um impulso
para se lançar vertiginosamente num salto vertical e absurdo em direção à luz que suas
próprias folhas repeliam. Muito alto, suas palmas entrelaçadas faziam um teto que o vento
agitava sem cessar, com um barulho longínquo de multidão em marcha, abrindo frestas por
onde o sol se filtrava. As plantas rasteiras cobriam o solo num tapete áspero. As corças
esfregavam as patinhas para descobrir as folhas mais tenras que depois erguiam com a ponta
dos lábios e arrancavam num movimento brusco de pescoço.
O ar quente cheirava a resina e a cogumelo.
Eléa e Paikan chegaram à beira do lago. Deixaram-se escorregar de seus cavalos, que
voltaram para a floresta a galope, se perseguindo como escolares. Havia pouca gente na praia.
Uma tartaruga enorme, exausta, de casco com os bordos gastos, arrastava sua massa pesada na
areia, carregando um menino nu às costas.
Ao longe, na outra margem que a guerra havia destruído, se abria o grande orifício da
Boca. Aí via-se elevar ou descer uma quantidade de bolhas de toda as cores. Eram os
engenhos de mudança a curta ou longa distância que saíam de Gonda pelas chaminés de
partida, ou que para aí voltavam. Alguns passavam a uma altitude baixa em cima do lago,
dando a impressão de fazer um barulho de seda acariciada.
Eléa e Paikan dirigiram-se para os elevadores que atravessavam a areia, extremidade da
praia.
— Atenção! — disse uma voz enorme.
Ela parecia vir ao mesmo tempo da floresta, do lago e do céu.
— Atenção, escutem! Todos os seres vivos de Gondawa receberão a partir de amanhã,
pelo correio, a arma G e o Grão Negro. Haverá sessões para o ensino do uso da arma G em
todos os centros de recreação da Superfície e das Profundezas. Os faltosos verão sua conta
debitada de um cêntimo por dia a partir do décimo primeiro dia da convocação. Escutem bem,
está terminado.
— Estão loucos — disse Eléa. A arma G era para matar; o Grão, para morrer.
Nem Eléa nem Paikan tinham vontade de matar nem de morrer. Depois de terem feito os
mesmos estudos haviam escolhido a mesma carreira. A de Engenheiro do Tempo, a fim de
viveram na superfície. Moravam numa Torre do Tempo acima de Gonda-7.
Para chegarem a casa, teriam que tomar um veículo. Preferiam voltar pela cidade,
escolheram um elevador para dois cujo cone verde brilhava suavemente acima da areia.
Cada um enfiou sua chave na placa de comando e o elevador abriu-se como um fruto
maduro. Entraram no seu interior cor-de-rosa. O cone desapareceu no solo e fechou-se em
cima deles. Saíram na Primeira Profundidade de Gonda-7. Serviram-se novamente de suas
chaves para abrir as portas transparentes de acesso à décima segunda avenida. Era uma
estrada principal. Suas múltiplas pistas de relva florida se deslocavam numa velocidade
crescente do exterior para o centro. Árvores baixas serviam de cadeira e ofereciam o apoio de
seus galhos aos viajantes que preferiam permanecer de pé. Pássaros amarelos semelhantes a
gaivotas voavam velozmente, lutando com a pista central, grasnando de prazer.
Eléa e Paikan saíram na Avenida da Encruzilhada do Lago e tomaram a alameda que
levava ao elevador de sua Torre. Um riacho partia da encruzilhada e corria ao longo do
caminho. Pequenos mamíferos ruivos, de ventre branco, menores do que um gato doméstico,
brincavam na relva ou se escondiam atrás dos tufos para pegar os peixes.
Tinham uma cauda curta e chata e um bolso ventral de onde saía às vezes uma pequenina
cabeça com olhos meigos e maliciosos, que roía uma espinha. Fazendo um ruído sibilante,
vieram brincar entre os pés de Paikan e de Eléa. Ágeis e espertos, se desvencilhavam quando
o bico de uma sandália estava a ponto de pisar-lhe uma pata ou a cauda.
Gonda-7 subterrânea tinha sido feita sobre as ruínas de Gonda-7 da superfície. Da antiga
cidade não restava mais do que as gigantescas ruínas, acima das quais a Torre do Tempo se
erguia como uma flor no meio de destroços.
No cimo da sua longa haste se espalhavam as pétalas do terraço circular, com árvores,
gramados, piscina e um cais de atracação, abrigado do vento, que neste local, soprava do
oeste.
Rodeado pelo terraço, o apartamento abria-se sobre ele por todos os lados. Meias
repartições curvas, mais ou menos altas, interrompidas, o dividiam em peças redondas,
ovoides, irregulares, íntimas e no entanto não separadas. Acima do apartamento, a cúpula
observadora coroava a Torre com uma calota transparente, ligeiramente esfumaçada de azul. O
elevador chegava na peça do centro, perto da fonte baixa.
Ao entrar, Eléa abriu com um gesto todos os vidros. O apartamento formou um só terraço,
e a brisa ligeira da tarde o visitou. Algas multicores se balançavam nas correntes móveis da
piscina. Eléa jogou sua roupa e escorregou para dentro d’água. Um cardume de peixes-agulha,
negros e vermelhos, vieram-lhe beliscar a pele, depois, assustados, despareceram num
arrepio.
Na cúpula, Paikan assegurou-se com um olhar de que tudo estava bem. Aí não havia
aparelhagem complicada, a cúpula em si mesma era um instrumento, obedecendo aos gestos e
aos contatos das mãos de Paikan, trabalhando quando ele lhe ordenava.
Tudo ia bem, o céu estava azul, a cúpula ronronava docemente. Paikan despiu-se e juntou-
se a Eléa na piscina. Vendo-o chegar ela riu-se mergulhou. Ele a encontrou atrás dos véus
irisados de um peixe-cortina preguiçoso que os olhava com um olho redondo, coral.
Paikan ergueu os braços e deixou-se escorregar por trás dela. Ela se apoiou de encontro a
ele, sentada, flutuando, leve. Ele apertou-a contra seu ventre, enlaçou-a com os braços e seu
desejo erguido a penetrou. Reapareceram na superfície como um só corpo. Ele estava atrás
dela, e ela enroscada e apoiada nele, que a pressionava com o braço contra seu peito.
Colocando-a de lado com ele, com o braço esquerdo começou a nadar. Cada tração o
empurrava mais dentro dela, enquanto levava os dois para a margem de areia. Eléa estava
passiva como um destroço quente, numa inércia amorosa. Chegaram à borda e se colocaram
meio fora d'água. Ele a mantinha cercada, encerrada, assediada: havia entrado como o
conquistador desejado diante do qual são abertas todas as portas. E ele percorreu lentamente,
docemente, longamente todos os seus segredos.
Sobre o rosto e ouvido, ela sentia a água morna e a areia subir e descer, descer e subir.
A água vinha acariciar o canto de sua boca entreaberta. Os peixes-agulha arrepiavam a
parte submersa de sua coxa.
No céu onde a noite começava, algumas estrelas se acenderam. Paikan quase não se mexia.
Ele era nela um tronco de árvore liso, duro, palpitante e macio, um tronco de carne bem-
amado, sempre lá, tornado mais forte, mais rijo, mais quente, subitamente queimando, imenso,
abrasado, vermelho, queimando no seu ventre inteiro, toda carne e os ossos incendiando até o
céu. Ela apertou com as suas mãos as mãos fechadas ao redor dos seus seios e gemeu
longamente na noite que chegava.
Uma paz imensa substituiu a claridade. Ela ficou ao redor de Paikan. Ele continuava
sempre dentro dela, duro e sereno. Ela repousou em cima dele como um pássaro que
adormece. Muito lentamente, muito docemente, ele começou a lhe preparar uma nova alegria.
Eles dormiam sobre a grama do seu quarto, tão fina e tão macia quanto pelo do ventre de
um gato. Uma coberta branca, apenas colocada sobre eles, sem peso, morna, adaptava sua
forma e sua temperatura às necessidades de sua quietude. Eléa acordou um instante, procurou
a mão aberta de Paikan e nela colocou seu punho fechado. A mão de Paikan fechou-se sobre
ele. Eléa suspirou de felicidade e tornou a adormecer.
O uivo prolongado de uma sirena fez com que eles se levantassem, espantados.
— O que é? Não é possível! — exclamou Eléa.
Paikan enfiou sua chave na placa de imagem. Diante deles, a parede iluminou-se e se
abriu. O rosto familiar do locutor, de cabelos vermelhos, apareceu no vídeo: — Alarma geral.
Um satélite não identificado dirige-se para Gondawa sem responder às perguntas de
identificação. Vai penetrar no espaço territorial. Se ele continuar não respondendo, nosso
dispositivo de defesa vai entrar em ação. Todos os que se encontram fora devem regressar
imediatamente à cidade. Apaguem todas as luzes. Nossas emissões da superfície vão ser
suspensas. Escutem, está terminado.
A imagem na parede achatou-se, veio colar-se à superfície e desapareceu.
— É preciso descer? — perguntou Eléa.
— Não. Venha por aqui...
Pegou a coberta, embrulhou Eléa e levou-a para o terraço. Meteram-se entre as folhas
baixas de uma palmeira de seda e apoiaram-se à altura da rampa da extremidade.
O céu estava escuro, sem lua. As numerosas estrelas brilhavam com um esplendor
perfeito. As bolas luminosas dos engenhos voadores pareciam maiores ou menores segundo
sua altitude. A certa altura modificaram suas rotas e pareceram ser aspirados por uma corrente
que os levou todos na direção da Boca.
No solo, o sinal de alerta havia acordado os habitantes das casas de repouso amarradas na
planície, ou entre as ruínas, nos limites d'água e do serviço. Seus casulos translúcidos
mostravam na noite a claridade de suas formas: peixe de ouro, flor azul, ouro vermelho, funil
verde, esfera, estrelas, poliedro, gota... Alguns estavam prestes a voar e a tomar o caminho da
Boca. Outros apagaram-se rapidamente. Uma serpente branca continuou acesa iluminando uma
muralha destruída.
— O que é que aqueles lá estão esperando para apagar? — murmurou Eléa.
— De qualquer maneira, é inútil... se é uma arma de ataque, ela terá outros meios de
encontrar seus objetivos.
— Você acredita que seja uma?
— Sozinha, é pouco provável...
Diante deles, de repente, um traço luminoso subiu no horizonte. Depois dois, três, quatro.
— Estão atirando!... — disse Paikan.
Os dois olharam para o céu onde mais nada aparecia senão a indiferença das estrelas no
fundo do infinito. Eléa estremeceu, abriu a coberta e apertou Paikan contra ela. Houve, muito
alto, bruscamente, uma nova estrela, gigantesca, que se rasgou e se espalhou numa cortina
lenta de claridade rósea, ionizada.
— Olhe lá!... Eles não podiam errar!...
— O que você acha que era?
— Não sei, reconhecimento talvez. Ou então simplesmente um cargueiro infeliz cujos
emissores estavam em pane, em todo o caso estavam, não estão mais.
O alarma fez com que eles ficassem novamente sobressaltados. Ninguém se acostumava
com tão horrível barulho. Ao fim do alerta, as casas de repouso voltaram a se acender, umas
depois das outras. Ao longe, um bando de engenhos elevou-se da Boca como um facho de
faíscas.
Na parede do quarto, a imagem renasceu e atravessou o muro. Eléa e Paikan desejavam ter
notícias. Mas depois dessa instrução de absurdo e de horror na doçura da noite, esta lhes
pareceu tão frágil, tão preciosa, que eles não quiseram mais deixá-la. Paikan enfiou sua chave
numa placa da rampa. A imagem desapareceu na parede do quarto e saiu.
Paikan a dirigiu virando a placa móvel e instalou-a na folhagem da palmeira de seda.
Sentou-se no gramado, as costas na rampa, Eléa apertada contra ele. A brisa do oeste,
apenas fresca, soprava em volta da torre e vinha banhar seus rostos. As folhas de seda
estremeciam e flutuavam no vento ligeiro. A imagem estava luminosa e estável nas suas três
dimensões e nas suas cores. O locutor de cabelos vermelhos falava com gravidade, mas não se
entendia nenhuma das palavras que ele pronunciava. Um cubo negro nasceu do fundo da
imagem, invadiu todo o feixe receptor e apagou a imagem. O rosto nervoso de um homem,
muito jovem, apareceu no cubo. Seus olhos castanhos brilhavam de paixão, seus cabelos lisos,
quase negros, caíam-lhe até a altura das orelhas.
— Um estudante! — disse Eléa.*
Ele falava com veemência:
—... a paz! Dê-nos a paz! Nada justifica a guerra! Nunca! Mas nunca ela será mais atroz e
mais absurda do que hoje, no momento em que os homens estão a ponto de ganhar a batalha
contra a morte! Vamos nos massacrar por causa de pratos floridos na Lua? Por causa de
rebanhos em Marte e seus pastores negros? Absurdo! Absurdo! Há outros caminhos para as
estrelas! Deixem os enisores pilharem no espaço! Eles não comerão tudo.
Deixem-nos se baterem contra o infinito! Nós travamos aqui uma batalha, bem mais
importante! Por que o Conselho Diretor vos deixa na ignorância dos trabalhos de Coban?
Digo, em nome de todos aqueles que há anos trabalham a seu lado: ele ganhou! Está
resolvido! No laboratório 17 da universidade, embaixo da campânula 42, uma mosca vive há
545 dias! Seu tempo normal de vida é de 40 dias! Ela vive, está jovem, está soberba. Há um
ano e meio ela bebeu a primeira gota.
O autor faz questão de frisar que esta história foi escrita durante o verão de 66. A revolta
dos estudantes ar já constava. Sua redação definitiva foi terminada no dia 10 de março de 68.
Depois desse dia nada mais foi acrescentado nem retirado. Os episódios nos quais os
estudantes tomaram parte, a concepção da universidade independente, não foram portanto
inspirados pelos acontecimentos de maio de 68, pois lhes são anteriores experimental do soro
universal de Coban! Deixem Coban trabalhar. Seu soro está quase pronto! As máquinas vão
logo poder fabricá-lo! Vocês não envelhecerão mais! A morte será infinitamente distante! A
não ser que os matem! A não ser em caso de guerra! Exijam do Conselho Diretor que recuse a
guerra! Que ele declare a paz com Enisorai! Que ele deixe Coban trabalhar! Que ele...
Com uma piscada, sua imagem reduziu-se ao tamanho de uma noz, e desapareceu. O
homem de cabelos vermelhos foi primeiro um fantasma transparente, depois uma imagem
sólida.
— Queiram desculpar esta emissão pirata...
O cubo absorveu-o num bloco, revelando novamente o menino veemente.
— ... lançados em órbita longínqua, mas inventaram o pior! O Conselho Diretor poderá
nos dizer que arma monstruosa ocupa agora Gonda-1 ? Os enisores são homens como nós! Que
restará de nossas esperanças e de nossas vidas, se estas...
O cubo tornou-se negro, achatou-se em duas dimensões e o busto do locutor retomou seu
lugar.
— O presidente do Conselho Diretor vai falar.
O Presidente Lokan apareceu. Seu rosto magro estava sério e triste. Seus cabelos brancos
caíam até os ombros cujo lado esquerdo estava nu. Sua boca fina, seus olhos de um azul muito
claro fizeram esforço para sorrir enquanto pronunciava as palavras de confiança. Sim, haviam
acontecido incidentes na zona internacional da Lua, sim, os dispositivos de defesa do
continente tinham destruído um satélite suspeito, sim, o Conselho Diretor teve que tomar
medidas, mas nada disto era verdadeiramente grave. Ninguém dava mais importância à paz
que os homens que tinham por dever dirigir os destinos de Gondawa.
Tudo será feito para preservá-la. Coban é meu amigo, quase meu filho. Estou a par dos
seus trabalhos. O conselho espera o resultado de suas experiências sobre o homem para
ordenar, se ele for positivo, a construção da máquina que fabricará o soro universal. E uma
esperança imensa, mas ela não deve nos desviar de nossa vigilância. Quanto àquilo que ocupa
o lugar de Gonda-1, Enisorai sabe e eu vos direi somente o seguinte: é uma arma tão terrífica,
que só a sua existência já é o bastante para garantir a paz.
Paikan colocou a mão sobre a placa de comando, e a imagem desapareceu. O dia nascia.
Um pássaro que parecia com um melro, mas cuja plumagem era azul e a cauda frisada,
começou a cantar do alto da árvore de seda. De todas as árvores do terraço e das moitas
floridas, pássaros de todas as cores lhe responderam. Para eles não havia angústia, nem de dia
nem de noite. Não havia caçadores em Gondawa. Os prados floridos da Lua...
os rebanhos de Marte e seus pastores negros.
Os sábios do EPI pediram explicações. Eléa tinha ido à Lua, numa viagem de recreio com
Paikan. Ela pôde mostrar-lhes. Eles viram os "prados floridos" e as florestas de árvores
frágeis, fracas, de troncos finos intermináveis, se desabrochando em espigas ou em tufos que
as faziam parecer com imensas gramíneas.
Viram Eléa e Paikan, depois de terem descido da nave que os havia levado junto com
outros passageiros, brincar como crianças na pouca gravidade. Tomavam impulso com alguns
passos gigantes, saltavam juntos de mãos dadas, atravessavam os riachos com um salto,
subiam ao cimo das colinas e passavam por cima das árvores, descansavam sobre suas
espigas cobertas de grãos de pólen grandes como laranjas, que sacudiam para fazê-las voar
em nuvens multicores e caírem numa chuva de flocos.
Todos os viajantes faziam a mesma coisa, e a nave parecia ter desembarcado uma carga de
borboletas fugazes que se afastavam dela em todas as direções, pousando aqui e ali, no campo
verde, sob o céu de um azul profundo.
Apesar do pouco esforço de que necessitavam, essas brincadeiras acabam muito rápido,
pois o ar ratificado trazia o cansaço. Os viajantes acalmavam seus corações sentando-se à
beira dos riachos ou caminhando em direção ao horizonte que parecia sempre próximo,
sempre fácil de atingir, e que fugia como todos os horizontes. Mas sua proximidade e sua
curvatura visível proporcionavam aos passeantes uma sensação que as dimensões da Terra
não lhes permitiam experimentar: a sensação ao mesmo tempo excitante e apavorante de
caminhar sobre uma bola perdida no infinito.
Os sábios não viram, em lugar nenhum, nessas imagens, traços de crateras, nem grandes
nem pequenas...
Eléa não conhecia Marte, onde não tinham ido até então senão as naves dos exploradores
ou dos militares. Mas ela havia visto "os pastores negros" E havia reconhecido um, aqui
mesmo, no EPI!
A primeira vez que ela havia encontrado Shanga o africano, havia manifestado sua
surpresa, e o havia designado por palavras que a tradutora havia dado a seguinte
interpretação: "o pastor vindo do nono planeta". Foi preciso um longo diálogo para
compreender primeiro o hábito gonda de contar os planetas não a partir do Sol, mas a partir
do exterior do sistema solar. Em seguida, que o dito sistema não compreendia para eles nove
planetas mas sim doze, ou seja, três planetas além do maléfico e distante Plutão.
Esta novidade lançou os astrônomos do mundo inteiro num abismo de cálculos, de vãs
observações e de discussões amargas. Que esses planetas existissem ou não, o nono, em todo
o caso, no espírito de Eléa, era Marte. Ela afirmou que ele era habitado por uma raça de
homens de pele negra e que os navios gonda e enisores haviam trazido algumas famílias. Antes
disso, não existia na Terra nenhum homem de cor negra. Shanga ficou transtornado, e com ele
todos os negros do mundo, que souberam rapidamente da notícia.
Raça infeliz, sua vida errante não tinha então começado com os mercadores de escravos!
Já do fundo dos tempos seus infelizes ancestrais arrancados da África tinham sido eles
mesmos arrancados de sua pátria no céu. Quando terminaria tanta infelicidade? Os negros
americanos se juntaram nas igrejas e cantaram: "Senhor fazei cessarem as minhas
atribulações! Senhor, levai-me de volta para a minha pátria celeste". Uma nova nostalgia
nascia no grande coração coletivo da raça negra.
Depois de terem se alimentado e se banhado, Eléa e Paikan subiram pela pequena rampa
interna para a cúpula de trabalho. Acima da prateleira horizontal em semicírculo que corria ao
longo da parede transparente, faixas de onda mostravam imagens de nuvens diversas em
evolução. Uma delas inquietou Paikan. Depois de consultar Eléa, chamou a Central do Tempo.
Uma imagem nova iluminou-se acima da mesa. Era o rosto do seu chefe de serviço, Mikan.
Ele parecia cansado. Seus longos cabelos grisalhos estavam sem brilho, despenteados, e seus
olhos vermelhos. Saudou-o.
— Você estava em casa esta noite?
— Sim.
— Você viu aquilo? Lembrou-me coisas muito tristes! É verdade que vocês não tinham
nascido, nem um nem outro. Mas não se pode deixar que eles ajam assim, esses sem-
vergonhas! Por que você me chamou? Alguma novidade?
— Uma turbulência. Olhe!...
Paikan abriu três dedos e fez um gesto. Uma imagem desapareceu, enviada à Central do
Tempo.
— Estou vendo... — disse Mikan. — Não gosto disto... Se a deixarmos agir, ela vai
misturar todo o nosso dispositivo. Quais as possibilidades que você tem nesse setor?
— Posso derivá-la ou apagá-la.
— Então faça, apague, apague, não gosto nada disso...
A imagem de Mikan desapareceu. A Torre do Tempo de Gonda-7 e todas as outras
semelhantes mantinham acima do continente uma rede de condições meteorológicas
controladas, cujo fim era reconstituir o clima transformado pela guerra, a fim de permitir que
renascesse a vegetação.
Um sistema automático assegurava a manutenção das condições previstas. Era muito raro
que Paikan ou Eléa tivessem que intervir. Na ausência de um deles, outra torre teria feito o
necessário para destruir no ovo este pequeno ciclone perturbador.
Uma casa de repouso em forma de cone azul-pálido chegou até a altura da cúpula e foi
pousar perto da autoestrada quebrada, cujas doze pistas arrancadas se espalhavam como um
buquê virado em direção ao céu. Não haviam consertado as autoestradas. As usinas não
fabricavam mais veículos de rodas ou de esteiras. Os transportes enterrados, pistas, avenidas
ou elevadores, eram todos coletivos, e os da superfície todos aéreos...
Podiam sobrevoar o solo a alguns centímetros ou em altitudes consideráveis, a qualquer
velocidade e pousar em qualquer lugar.
Os casais da geração de pós-guerra que utilizavam as casas de repouso não aproveitavam
nada de suas possibilidades. Não ousavam se aventurar mais longe do que as Bocas, que os
pequenos marsupiais longe do bolso materno. Era por essa razão que se viam tantas
concentrações de casas móveis na beira ou mesmo no meio das ruínas das cidades antigas, que
geralmente cobriam as cidades subterrâneas. Os gondas mais idosos, que ainda se lembravam
da vida exterior, percorriam o continente em todos os sentidos, à procura de fragmentos de
superfície ainda vivos, e voltavam a se enterrar com a visão horrível dos espaços vitrificados,
e o pungente pesar de um mundo desaparecido.
Eléa olhou se o correio havia chegado. A caixa transparente continha duas armas G com
seu cinto e duas esferas minúsculas que deviam conter, cada uma, um Grão Negro.
Havia ainda três plaquetas-correio, das quais duas de cor vermelha, a cor das
comunicações oficiais.
Eléa abriu a caixa com sua chave, pegou com repugnância as armas e os grãos, e colocou-
os sobre uma mesa.
— Você vem ouvir o correio? — perguntou a Paikan.
Este deixou a Cúpula continuar sozinha o trabalho e aproximou-se.
Pegou as placas vermelhas, franzindo as sobrancelhas. Uma trazia o seu nome e o selo do
Ministério da Defesa, a outra o nome de Eléa e o selo da universidade.
— O que é isso? — perguntou ele.
Mas Eléa já havia introduzido na fenda de leitura a plaqueta verde sobre a qual havia
reconhecido o retrato de sua mãe. O rosto dela se materializou acima da tela-leitura. Era um
rosto um pouco mais idoso que o de Eléa, e parecia-se muito com ela, com uma qualquer coisa
de mais frívolo.
— Escute, Eléa — disse ela — espero que estejas bem; eu estou. Parto para Gonda-41,
não tenho notícias do seu irmão. Ele foi mobilizado em plena noite para levar um comboio de
tropas para a Lua e não deu mais sinal de vida há oito dias. É claro, tudo isto são histórias
militares. Eles não podem deslocar uma formiga sem fazer um mistério de mamute. Mas Anéa,
está sozinha com seu bebê, e muito inquieta. Eles bem poderiam ter esperado um pouco antes
de tirar suas chaves! Há somente dez anos que foram designados.
Trate de não fazer como eles, vocês tem bastante tempo, agora não é de maneira alguma o
momento de fazer filhos! Enfim, é assim, não há nada a fazer, vou até lá. Mandarei notícias.
Cuide um pouco do seu pai, ele não pode me acompanhar, está mobilizado em seu
trabalho. Creio que o conselho e os militares estão todos loucos! Enfim, não se pode fazer
nada, vá visitá-lo e preste atenção no que ele come, quando ele está sozinho aperta a máquina-
de-comer de qualquer maneira, não presta atenção a nada, é uma criança. Escute, Eléa, está
terminado.
— Forkan mobilizado. Seu pai também! Isto é incrível! O que é que eles estão
preparando?
Nervosamente, Paikan enfiou uma das plaquetas vermelhas no leitor. O emblema da defesa
apareceu acima do quadro: um ouriço redondo cujos espinhos lançavam chamas.
—Escute, Paikan — disse uma voz indiferente...
Era uma ordem de mobilização no local do seu trabalho. A segunda placa vermelha
introduzida no leitor materializou acima do quadro o emblema da universidade, que não era
outro senão o sinal da equação de Zoran.
— Escute, Eléa — disse uma voz grave —, sou Coban!
— Coban!
Seu rosto apareceu no lugar da Equação de Zoran. Todos os seres vivos de Gondawa o
conheciam. Era o homem mais célebre do continente. Tinha dado a seus compatriotas o soro 3
que os tornava refratários a todas as doenças, e o soro 7, que os permitia recuperar tão
rapidamente suas forças depois de qualquer esforço que tivessem feito. Graças a isso o
equivalente da palavra fadiga estava em vias de desaparecer da língua gonda.
No seu rosto magro de faces encovadas, seus grandes olhos negros brilhavam com a chama
do amor universal. Este homem não pensava senão nos outros homens, e, acima dos homens,
na própria vida, nas suas maravilhas e nos seus horrores, contra os quais lutava
permanentemente, com toda a sua inteligência e todas as suas forças. Tinha os cabelos negros
cortados curto, na altura das orelhas. Tinha 32 anos, mas parecia tão jovem quanto seus
estudantes, que o veneravam e copiavam seu corte de cabelo.
— Escute, Eléa, sou Coban. Quis informá-la pessoalmente de que, a meu pedido, você
estará, em caso de mobilização total, convocada para um posto especial na universidade, junto
a mim. Não a conheço e desejo conhecê-la. Peço-lhe que esteja no laboratório 51, o mais cedo
possível. Deve dar seu nome e número e ser trazida à minha presença. Escute, Eléa, eu a
espero.
Eléa e Paikan se entreolharam sem nada compreender. Havia nesta mensagem dois
elementos contraditórios: "Estará convocada a meu pedido" e "não a conheço..." E havia
sobretudo a ameaça de serem mobilizados e postos afastados um do outro. Desde a sua
designação eles nunca mais haviam se separado. E não podiam encarar esta perspectiva.
Isto lhes parecia inimaginável.
— Irei com você ver Coban. Se ele realmente tem necessidade de você, lhe pedirei para
me convocar também. Na torre qualquer um pode me substituir.
Era simples, era possível se Coban quisesse. A universidade era a primeira força do
Estado. Nenhum poder administrativo ou militar imperava sobre ela. Ela possuía seu
orçamento autônomo, sua guarda independente, seus próprios emissores e não tinha que dar
contas a ninguém. Quanto a Coban, embora não ocupasse nenhum posto político, o Conselho
Diretor de Gondawa não tomava decisão grave sem consultá-lo. E se ele tinha necessidade de
Eléa, Paikan, que havia recebido exatamente a mesma educação e a mesma instrução, poderia
também ser-lhe útil.
De qualquer maneira, nada urgia, a ideia mesmo da guerra sendo uma monstruosidade
absurda, não se deveriam deixar dominar pelo nervosismo oficial. Todos esses burocratas
fechados nos seus palácios subterrâneos não tinham mais noção da realidade.
— Eles deveriam subir mais vezes para ver tudo isto — disse Eléa.
O sol da manhã clareava o caos das ruínas dominado a oeste pela massa enorme do
estádio quebrado e revirado. A leste, a autoestrada retorcida afundava-se na planície nos
reflexos de vidro sobre a qual nenhuma graminha tinha conseguido nascer.
Paikan passou seus braços ao redor dos ombros de Eléa e apertou-a contra ele.
— Vamos até a floresta — disse ele.
Enfiou sua chave na placa de comunicação, chamou o parqueamento da Profundidade-1, e
chamou um táxi. Alguns minutos mais tarde uma bolha transparente vinha parar no lugar de
encostar. Passando diante da mesa, Paikan pegou as duas armas e os cintos.
Voltou para informar à Central do Tempo sobre a sua ausência e dizer aonde ia. Não podia
mais se ausentar sem prevenir. Estava mobilizado.
— Perceberam? Eles são todos canhotos! — disse Hoover.
Falava em voz baixa para Leonova, escondendo seu microfone na mão. Leonova
compreendia muito bem o inglês.
Era verdade. Agora que Hoover lhe havia chamado a atenção isto saltava aos seus olhos.
Estava irritada por não ter sido ela a perceber sozinha. Todos os gondas eram canhotos. As
armas encontradas no pedestal de Eléa, e no de Coban que também tinha sido aberto, eram em
forma de luva para a mão esquerda. E a imagem da grande tela, neste momento mesmo,
mostrava Eléa e Paikan treinando com os outros gondas manejar armas semelhantes. Todos
atiravam com a mão esquerda sobre alvos de metal de formas diversas, que surgiam
bruscamente do solo e que ressoavam sob o impacto dos golpes de energia.
Era um exercício de habilidade e principalmente de controle. Sob a pressão exercida
pelos três dedos dobrados, a arma G podia curvar um ramo de grama ou pulverizar um
rochedo, triturar um adversário ou somente derrubá-lo.
Um alvo oval ergueu-se subitamente dez passos diante de Paikan. Era azul, o que
significava que ele deveria atirar com um mínimo de força. Com a rapidez de um raio Paikan
dirigiu sua mão esquerda para a arma presa à sua cintura por uma placa magnética, arrancou-a,
ergueu o braço e atirou. O alvo suspirou como uma corda de harpa atingida e desapareceu.
Paikan começou a rir. Tinha se reconciliado com a arma. Este exercício era uma
brincadeira agradável.
Um alvo vermelho apareceu logo em seguida, ao mesmo tempo que um verde erguia-se à
esquerda de Eléa. Eléa atirou fazendo um quarto de volta. Paikan, surpreso, teve o tempo
exato de atirar antes que os alvos desaparecessem. O vermelho ressoou como uma tempestade,
o verde como um sino. De todas as partes surgiam alvos que recebiam golpes violentos,
piparotes ou carícias. A clareira cantava como um enorme xilofone sob os martelos de um
louco.
Um engenho da universidade sobrevoou o local, abriu um espaço e pousou suavemente
atrás dos atiradores. Era um engenho rápido. Parecia com um ferro de lança tendo na parte de
cima um casulo transparente onde estava cunhada a equação de Zoran.
Daí saíram dois guardas universitários, de peitoral e saias verdes, a arma G do lado
esquerdo do ventre, uma granada S sobre a anca direita, a máscara nasal pendurada como um
colar. Usavam o penteado de guerra, os cabelos trançados atrás, seguros por um grampo
magnético contra o capacete cônico de bordas largas. Foram de um grupo a outro,
interrogando os atiradores que os olhavam com espanto e inquietação: nunca tinham visto
guardas verdes tão bem armados.
Os dois guardas procuravam alguém. Quando chegaram perto de Eléa disseram:
procuramos Eléa 3-19-07-91. Tinham passado pela torre e, encontrando-a vazia, haviam
indagado na Central do Tempo. Coban queria ver Eléa sem demora.
— Vou com ela — disse Paikan.
Os guardas não tinham ordens para se opor. O engenho atravessou o lago como uma flecha
até a Boca e deixou-se cair verticalmente na chaminé verde da universidade.
Diminuiu ao chegar no teto do parqueamento, aproximou-se do solo acima da pista central,
tomou uma pista especial e parou diante da porta dos laboratórios que se abriu e fechou-se
atrás dele.
As ruas e os edifícios da Universidade chamavam a atenção pela sua simplicidade em
contraste com a exuberância vegetal do resto da cidade. Aqui, as paredes eram nuas, os arcos
sem uma flor ou uma folha. Não havia nem um só ornamento nas portas trapezoidais, o menor
riacho no solo da rua branca onde o engenho prosseguia sua corrida, nem um pássaro no ar,
nem um bichinho surpreendido num dobrar de esquina, nenhuma borboleta, nenhum coelho
branco. Era a severidade do conhecimento abstrato. As pistas de transporte tinham cadeiras
fabricadas e rampas metálicas.
Eléa e Paikan ficaram espantados pela atividade anormal que reinava na rua debaixo
deles. Os guardas verdes em roupa de guerra, cabelos trançados e capacetes na cabeça, se
deslocavam em todas as pistas, sem se espantar dever passar acima de suas cabeças esse
engenho para o qual a rua, normalmente, era interditada. Sinais de cor palpitavam acima das
portas, chamadas de nomes e de números ressoavam, laboratoristas em roupa salmão corriam
pelos corredores, seus longos cabelos envolvidos em mantilhas herméticas. Não era o
quarteirão dos estudos mas sim o dos trabalhos e pesquisas. Nenhum estudante passeava por
ali seus pés descalços e seus cabelos curtos.
O engenho pousou sobre a ponta de uma encruzilhada em feitio de estrela. Um dos guardas
conduziu Eléa ao laboratório 51. Paikan seguiu-os.
Foram introduzidos numa peça vazia no meio da qual um homem em roupa salmão,
esperava, de pé. A equação de Zoran, carimbada em vermelho do lado direito do seu peito
indicava que ele era o chefe do laboratório.
— Você é Eléa? — perguntou ele.
— Eu sou Eléa.
— E você?
— Eu sou Paikan.
— Quem é Paikan?
— Eu sou de Eléa — respondeu Paikan.
— Eu sou de Paikan — disse Eléa. O homem pensou um instante.
— Paikan não foi convocado. Coban quer ver Eléa.
— Eu quero ver Coban — replicou Paikan.
—Vou lhe dizer que está aqui. Vai ter que esperar.
— Acompanho Eléa.
— Eu sou de Paikan — disse Eléa.
— Houve um momento de silêncio, depois o homem falou:
— Vou prevenir Coban... Antes de vê-lo, Eléa deve passar pelo teste geral Eis a cabina...
Abriu uma porta translúcida. Eléa reconheceu a cabina padrão na qual todos os seres de
Gondawa tinham que se fechar ao menos uma vez por ano para conhecer sua evolução
fisiológica, e modificar, em caso de necessidade, sua atividade e sua alimentação.
— É preciso? — perguntou ela.
— É preciso.
Ela entrou na cabina e sentou-se na cadeira.
A porta fechou-se. Os instrumentos se acenderam ao redor dela, claridades de cores
saltaram diante de seu rosto, os analisadores ronronaram, o sintetizador estalou. Estava
terminado. Ela levantou-se e empurrou a porta. A porta continuou fechada. Espantada, ela
empurrou com mais força, sem resultado.
Chamou, inquieta:
— Paikan!
Do outro lado da porta Paikan gritou:
— Eléa!
Ela tentou mais uma vez abrir. Adivinhou que havia nesta porta fechada algo de terrível.
Gritou:
— Paikan! A porta!
Ele se atirou. Ela viu sua silhueta estourar contra o material translúcido. A cabina foi
sacudida, os instrumentos quebrados caíram ao chão, mas a porta não cedeu.
Nas costas de Eléa, a divisão da cabina se abriu.
— Venha, Eléa — disse a voz de Coban.
Duas mulheres estavam sentadas diante de Coban. Uma era Eléa. A outra, morena, muito
linda, de formas mais redondas, mais opulenta. Eléa era o equilíbrio dentro da medida
perfeita. A outra era o desequilíbrio que dá o élanra a fecundidade. Enquanto que Eléa
protestava, reclamava Paikan, e exigia ir encontrá-lo, a outra estava calada, olhando-a com
calma e simpatia.
— Espere, Eléa — disse Coban —, espere para saber.
Usava a severa roupa salmão dos laboratoristas. Porém a equação de Zoran, sobre seu
peito, estava impressa em branco. Andava de um lado para outro, pés descalços como um
estudante, entre suas mesas e escrivaninhas e as paredes de alvéolos que continham várias
dezenas de milhares de. bobinas de leitura.
Eléa calou-se, muito positiva para teimar num esforço inútil. Escutou.
— Você não sabe ainda — disse Coban — o que ocupa o lugar de Gondawa.
Vou lhe dizer. É a Arma Solar. Apesar dos meus protestos, o conselho está decidido a
utilizá-la se Enisorai nos atacar. E Enisorai está decidida a nos atacar para destruir a Arma
Solar antes que nós a utilizemos. Visto a complexidade e enormidade de suas dimensões, seria
necessário quase doze horas entre o momento de dar a partida e o momento em que a arma
sairá do seu alojamento. É durante esse meio dia que se jogará a sorte do mundo. Pois se a
arma voa e atinge, será como se o sol mesmo caísse sobre Enisorai. Enisorai queimará,
afundará, desaparecerá... Mas a Terra inteira sofrerá o choque. Que restará de nós depois de
alguns segundos? Que restará da vida?...
Coban calou-se. Seu olhar trágico passava acima das duas mulheres. Murmurou: — Talvez
nada... mais nada...
Recomeçou sua caminhada de animal prisioneiro que procura uma saída.
— E se os enisores conseguirem impedir a partida da arma, eles a destruirão e nos
destruirão também. São dez vezes mais numerosos que nós, e mais agressivos. Não poderemos
resistir à sua multidão. Nossa única defesa contra eles era meter-lhes medo.
Mas nós lhes metemos MEDO DEMAIS!...
Eles vão atacar com todos os meios que possuem e se ganharem não deixarão nada de uma
raça e uma civilização capaz de fabricar a Arma Solar. E é por esta razão que o Grão Negro
foi distribuído aos seres de Gondawa. Para que os prisioneiros escolham, se querem morrer
por suas próprias mãos, ou então nas fogueiras de Enisorai...
Eléa endireitou-se, combativa.
— É absurdo! É horrível! É imundo! Temos que impedir esta guerra! Por que vocês não
fazem alguma coisa, em vez de gemer? Sabotem a arma! Vão a Enisorai! Eles lhe escutarão!
Você é Coban!
Coban parou diante dela, olhou-a gravemente, com satisfação.
— Você foi bem escolhida — disse ele.
— Escolhida por quem? Escolhida para quê? Ele não respondeu a estas perguntas, mas
sim à precedente.
— Eu faço alguma coisa. Tenho emissários em Enisorai que entraram em contato com os
sábios do Distrito de Conhecimento. Eles compreendem os riscos da guerra. Se puderem
assumir o governo, a paz estará salva. Mas resta pouco tempo. Tenho um encontro com o
Presidente Lokan. Vou tentar convencer o conselho a renunciar ao uso da Arma Solar e de
fazer com que Enisorai saiba disso. Mas tenho contra mim os militares, que pensam somente
na destruição do inimigo, e o Ministro Mozran, que construiu a arma e que tem vontade de vê-
la funcionar! Se eu fracassar, vamos tentar uma outra coisa. É por isso que vocês foram
escolhidas, vocês duas e mais três outras mulheres de Gondawa. Eu quero SALVAR A VIDA.
— A vida de quem?
— A vida simplesmente, A VIDA!... Se a Arma Solar funcionar alguns segundos mais do
que o previsto, a Terra será afetada de tal modo, que os oceanos sairão de suas fossas, os
continentes se abrirão, a atmosfera atingirá o calor do aço fundido e queimará tudo, até mesmo
nas profundezas do solo. Não se sabe onde pararão os desastres. Por causa do seu poder
tremendo, Mozran nunca pôde experimentar a arma, mesmo em escala reduzida. Não se sabe,
mas pode-se prever o pior. Foi o que eu fiz...
— Escute, Coban — disse uma voz. — Quer saber as últimas notícias?
— Sim — respondeu Coban.
— Eis aqui: as tropas enisores em guarnição na Lua invadiram a zona internacional.
7
UM COMBOIO MILITAR que partiu de Gonda-3 para a nossa zona lunar foi interceptado
por forças enisores antes de sua alunissagem. Destruiu uma parte dos assaltantes. A batalha
continua. Nossos serviços de observação longínqua têm a prova de que Enisorai mandou
buscar suas bombas nucleares que estavam em órbita ao redor do Sol e as leva para Marte e
para a Lua. Escute Coban, está terminado.
— Está começando... — comentou Coban.
— Quero voltar para perto de Paikan — disse Eléa. — Você não nos dá outra esperança
senão morrer ou morrer. Quero morrer com ele.
— Eu fiz uma coisa — disse Coban. — Fiz um abrigo que resistirá a tudo. Eu o guarneci
com todas as espécies de plantas, óvulos fecundados de todas as espécies de animais e
incubadores para desenvolvê-lo, medi dez mil bobinas de conhecimentos, de máquinas
silenciosas, de instrumento, de móveis, de todas as amostras da nossa civilização, de tudo o
que é necessário para fazer renascer uma semelhante. No centro, colocarei um homem e uma
mulher. O computador escolheu cinco mulheres, por seu equilíbrio psíquico e físico, por sua
saúde e sua beleza perfeita. Elas receberam o número de um a cinco por ordem de perfeição.
A um morreu anteontem em um acidente. A número quatro está em viagem em Enisorai, não
poderá voltar. A número cinco mora em Gonda-62. Mandei buscá-la também. Temo que ela
não esteja aqui a tempo. A número dois é você, Lona, a número três é você, Eléa.
Calou-se durante um segundo, deu uma espécie de sorriso fatigado, virou-se para Lona, e
continuou:
— Naturalmente, não haverá senão uma mulher no abrigo. Será você, Lona. Você viverá...
Lona ergueu-se, mas antes que tivesse tempo de falar, uma voz adiantou-se: — Escutai,
Coban, fiz os testes de Lona n.° 2. Todas as qualidades pedidas presentes ao máximo, mas o
metabolismo em evolução e o período hormonal em vias de perturbação: Lona n.° 2 está
grávida de duas semanas.
— Você sabia? — perguntou Coban.
— Não — respondeu Lona. — Mas esperava. Tiramos nossas chaves na terceira noite da
primavera.
— Tenho pena por você — disse Coban — separando as mãos. Isto a exclui. O homem e a
mulher colocados no abrigo serão postos em hibernação de frio absoluto. É possível que a sua
gravidez atrapalhe o sucesso da operação. Não posso assumir esse risco. Volte para casa.
Peço que não diga nada durante um dia, sobre o que ouviu aqui, mesmo junto ao seu
Designado. Dentro de um dia tudo já terá acontecido.
— Eu me calarei — disse Lona.
— Eu acredito em você. O computador definiu-a da seguinte maneira: sólida, lenta,
calada, defensiva, implacável.
Fez um sinal aos dois guardas verdes que estavam diante da porta. Eles se afastaram para
deixar sair Lona. Coban virou-se para Eléa.
— Então será você — disse ele.
Eléa sentiu-se transformar num bloco de pedra. Depois sua circulação restabeleceu-se
com violência e seu rosto enrubesceu. Controlou-se para ficar calma e sentou-se. Ouviu
novamente a voz de Coban:
— O computador definiu-a assim: equilibrada, rápida, obstinada, ofensiva, eficaz.
Ela se sentiu novamente capaz de falar. Atacou:
— Por que não deixou entrar Paikan? Não irei sem ele para o seu abrigo.
— O computador escolheu as mulheres pela beleza e pela saúde, e também, bem
entendido, pela inteligência. Escolheu os homens pela saúde e pela inteligência, mas antes de
tudo pelos seus conhecimentos. É preciso que o homem que saia do abrigo dentro de alguns
anos, talvez mesmo dentro de um século ou dois seja capaz de compreender tudo aquilo que
está impresso nas bobinas, e mesmo, se possível, saber mais que elas. Seu papel não será
apenas o de fazer filhos. O homem que for escolhido deve ser capaz de fazer renascer o
mundo. Paikan é inteligente, mas seus conhecimentos são limitados. Ele não saberia nem
mesmo interpretar a equação de Zoran.
— Então, quem é o homem?
— O computador escolheu cinco.
— Quem é o número um?
— Sou eu — disse Coban.
— Enisorai já era vocês — disse Leonova a Hoover. — Vocês já eram os americanos
sujos, imperialistas, tentando engolir o mundo inteiro e seus acessórios.
— Minha bela — replicou Hoover —, nós, os americanos de hoje, não somos senão os
europeus deslocados, seus priminhos de viagem... Gostaria bem que Eléa nos mostrasse um
pouco a cara dos primeiros ocupantes da América.
Não vimos senão gondas, até agora. Na próxima sessão, pediremos a Eléa para nos
mostrar os enisores.
Eléa lhes mostrou os enisores. Ela tinha ido com Paikan numa viagem até Diedohu, a
capital de Enisorai Central, para a Festa da Nuvem. Fez aparecer para eles as imagens de sua
memória.
Eles chegaram com Eléa, num transporte de longa distância. No horizonte uma cadeia de
montanhas gigantescas escalava o céu. Quando chegaram mais perto viram que a montanha e a
vila formavam um só bloco. Construída em enormes blocos de pedra, a cidade agarrava-se à
montanha, cobria-a, superava-a apoiava-se nela para projetar para cima sua lança terminal: o
monólito do templo, cujo cimo se perdia numa nuvem eterna.
Viram os enisores trabalhar e se divertir. As necessidades da população eram tão
consideráveis e seu crescimento tão rápido, que, mesmo nesse dia da Festa da Nuvem, não
podiam parar de construir. Sem cessar, incansavelmente, como formigas, os construtores
aumentavam a cidade, abriam ruas, escadas e praças nos flancos ainda virgens da montanha,
construíam rampas, casas e palácios. Não utilizavam outras ferramentas senão suas mãos.
Traziam no peito, um colar de ouro, a efígie da serpente-chama, símbolo enisor da energia
universal. Este não era somente um símbolo, mas principalmente um transformador. Dava a
quem o usasse o poder de controlar simplesmente nas suas mãos todas as forças naturais.
Sobre a grande tela, os sábios do EPI viram os construtores enisores levantarem sem
esforço blocos rochosos que deviam pesar toneladas, colocar uns sobre os outros, ajustá-los
uns aos outros, modelá-los, modificá-los com o gume da mão e alisá-los com a palma. Entre
as mãos dos construtores a matéria, como um betume, tornava-se imponderável, maleável,
dócil. Do momento em que eles paravam de tocá-la a pedra reencontrava sua dureza, sua
consistência de pedra.
Os estrangeiros convidados para assistir à Festa da Nuvem, não estavam autorizados a
pousar. Os seus engenhos ficavam numa estação aérea perto de Diedohu. Suas filas curvas
arrumadas compunham no céu as bancadas multicores de um estranho circo pousado sobre o
vazio.
Diante deles erguia-se o templo, cuja torre, feita de um só bloco de pedra, mais alta que o
mais alto arranha-céu da América contemporânea, enfiava sua ponta na nuvem. Uma escadaria
monumental, talhada na sua massa, contornava em espiral o templo. Sobre essa escadaria,
depois de horas, uma multidão subia em direção ao cimo do edifício. Subia lentamente, todos
vergados sob o próprio peso, enquanto em todos os outros lugares, nas ruas e nas escadarias
da cidade, os enisores se deslocavam com uma leveza e uma rapidez que traíam seu domínio
da gravidade. A multidão na escadaria compunha, pelo colorido de suas roupas, a efígie da
serpente-chama. A cabeça da serpente ondulava sobre a escadaria, à esquerda, à direita, e
continuava a subir. Seu corpo seguia enroscando-se nos degraus ao redor da torre. Devia se
compor de várias centenas de milhares de pessoas, talvez acima do milhão. Através das vigias
abertas dos engenhos entrava a música que ritmava os movimentos da serpente. Era uma
espécie de lento arfar que parecia emanar da montanha e da cidade, e que a multidão, a da
torre a das escadarias e das ruas, a que subia, a que olhava, a que trabalhava, acompanhava
com um ruído gutural de suas bocas semiabertas. Quando a cabeça da serpente atingiu a
nuvem, o sol desaparecia atrás da montanha: a cabeça da serpente entrou na nuvem com o
crepúsculo. A noite caiu em poucos minutos. Projetores, instalados em toda a cidade,
iluminaram a torre e a multidão que a envolvia. O ritmo da música e do canto se aceleraram. E
a torre começou a se mover.
Viram a torre enfiar-se na nuvem, ou a nuvem abaixar-se sobre a torre, se retirar,
recomeçar, cada vez mais depressa, como se fosse uma enorme cópula da Terra com o Céu.
O arfar e a música se aceleravam, aumentavam de força, atingiam os engenhos
estacionados no céu, como ondas, e deslocavam o seu alinhamento.
No solo, todos os trabalhadores abandonavam seus trabalhos. Nos palácios, nas casas, nas
ruas, nas praças, os homens se aproximavam das mulheres e as mulheres dos homens, ao
acaso, simplesmente porque estavam próximos, sem saber se eram bonitos ou feios, velhos ou
jovens e o que ele era e o que ela era, se abraçavam e se apertavam, deitavam-se ali mesmo,
no lugar que encontravam, entravam todos juntos no ritmo único que sacudia a montanha e a
cidade. A torre entrou toda na nuvem, até as suas bases. A montanha estalou, a cidade
levantou-se liberta de seu peso, prestes a se enfiar no céu até o infinito. A nuvem brilhou,
explodiu em toneladas de cataclismos, depois extinguiu e retirou-se. A cidade pesou de novo
sobre a montanha. A torre estava nua. Não havia mais ninguém na grande escadaria de pedra.
Todos os casais deitados se desuniram e se separaram. Homens e mulheres se levantaram,
estonteados e se afastaram. Outros dormiram ali mesmo. Durante alguns instantes de uma
brevidade sufocante, haviam todos participado do mesmo prazer cósmico. Cada uma delas
tinha sido toda a Terra, cada um deles tinha sido todo o Céu. Era assim uma vez por ano, em
todas as cidades de Enisorai. Durante o resto dos dias e das noites, os homens enisores não se
aproximavam das mulheres.
Os sábios de EPI interrogaram Eléa. O que tinha acontecido com a multidão da escadaria?
— A torre a tinha dado à nuvem — disse Eléa. — A nuvem a tinha dado a energia
universal. Todos aqueles que a compunham eram voluntários. Tinham sido escolhidos desde a
sua infância, ou porque apresentassem deficiência de espírito ou de corpo, mesmo ínfima,
seja, ao contrário, porque eram mais inteligentes, mais fortes, mais belos que a média dos
enisores. Educados em função desse sacrifício haviam aprendido a desejá-lo com todo o
corpo e alma. Tinham O direito de se abster, mas um número muito pequeno usava esse
direito. Assim, a raça enisor se mantinha dentro de uma qualidade de nível constante.
Mas este sacrifício, por outro lado, não era suficiente para compensar a natalidade que
provocava. Durante a Festa da Nuvem, eram concebidos vinte vezes mais enisores do que
pereciam sobre todas as torres do continente.
— Mas — disse Hoover — todas estas mulheres vão ter filhos no mesmo dia!
— Não — retrucou Eléa. — O tempo de gravidez, em Enisorai, variava de duas a três
estações, segundo o desejo da mãe e segundo sua idade. Conforme vocês viram, não havia
Designação, e portanto não havia casais, nem famílias. Os homens e mulheres viviam
misturados, em estado de igualdade absoluta de direitos e de deveres, nos palácios comuns ou
nas casas individuais, como desejassem. As crianças eram educadas pelo Estado. Não
conheciam sua mãe e, bem entendido, menos ainda seu pai.
Embora o engenho de Eléa ficasse bem acima da multidão, pela janela próxima os sábios
puderam ver muito detalhadamente um grande número de rostos de enisores. Todos tinham os
cabelos negros e lisos, os olhos amendoados, as maçãs salientes, o nariz arqueado em cima e
achatado em baixo. Incontestavelmente eram os ancestrais comuns dos maias, dos astecas, e de
outros índios da América; talvez também dos japoneses, dos chineses e de todas as raças
mongólicas.
— Eis aí, seus imperialistas — disse Hoover a Leonova. Sorriu, depois acrescentou: —
Espero que nos queiram menos mal, agora, por ter de certa maneira maltratado os seus
descendentes...
— Não é a vida que você quer salvar — disse Eléa —, mas a sua vida. E você fez
procurar, pelo computador, as cinco mais belas mulheres do continente, para escolher aquela
que o acompanhará!
— Olhe - replicou Coban com uma seriedade triste —, quem eu escolheria para salvar
comigo, se tivesse esse direito...
Ele ativou um feixe de ondas. Acima da mesa surgiu a imagem de uma menina que se
parecia extraordinariamente com Coban. De joelhos sobre um gramado perto de um lago da 9ª
Profundidade, acariciava uma corça de olhos pintados. Seus longos cabelos negros de menina
caíam-lhe até os ombros nus. Seus braços graciosos se enroscavam em torno do pescoço do
bicho que lhe mordiscava a orelha.
— É Doa, minha filha — disse Coban. — Tem 12 anos e vive só. Todas as meninas da sua
idade há muito tempo já têm um companheiro. Mas ela é só... Porque é, como eu, uma não
designada... O computador não pôde encontrar uma companheira que pudesse me suportar sem
me irritar pela lentidão do seu espírito. Uma certa vivacidade das faculdades mentais condena
à solidão. Vivi alguns períodos com viúvas, separadas, e não designadas também. A mãe de
Doa era uma. Sua inteligência era grande mas seu gênio atroz. O computador não quis
sobrecarregar homem nenhum. Por causa da sua inteligência, e da sua beleza, eu lhe pedi para
conceber um filho meu. Ela aceitou, na condição de ficar a meu lado para educá-lo. Pensei que
fosse possível. Tiramos nossas chaves. Alguns dias mais tarde tivemos que nos separar. Ela
era bastante inteligente para compreender que não podia encontrar a felicidade perto de
ninguém, nem mesmo junto de seu filho. Quando este nasceu, ela o mandou para mim. Era
Doa...
— Doa, por sua vez, recebeu do computador uma resposta negativa. Seu caráter era meigo,
mas sua inteligência superior à minha. E ela não encontrará seu igual em parte alguma. Se ela
viver...
A voz de Coban calou-se emocionada. Apagou a imagem.
— Não acredita que ame Doa tanto quanto você ama Paikan? Não acredita se eu
obedecesse aos meus motivos egoístas, seria ela quem eu fecharia comigo no abrigo? Ou que
ficaria perto dela, deixando com prazer meu lugar ao número 2? Mas conheço o número 2, sei
o que valem seus conhecimentos e o que valem os meus. O computador teve razão ao me
designar. Não se trata de amor, nem de sentimentos, nem mesmo de nós mesmos. Estamos
diante de um dever que nos supera. Temos, você e eu, que preservar a vida universal e refazer
o mundo.
— Escute bem, Coban — disse Eléa —, estou pouco me incomodando com o mundo, estou
pouco me incomodando com a vida, a dos homens e a do universo. Sem Paikan, não há
universo, não há vida. Dê-me Paikan no abrigo, e eu o bendirei até o fim da eternidade!
— Não posso — respondeu Coban.
— Dê-me Paikan! Fique com sua filha! Não a deixe morrer sozinha abando nada por você!
— Não posso — repetiu Coban em voz baixa.
Seu rosto exprimia ao mesmo tempo uma resolução e uma tristeza infinita. Este homem
estava no fim das forças de um combate que o deixava arrasado. Mas sua decisão estava
tomada de uma vez por todas. Não tinha podido construir um abrigo maior. O governo, todo
absorvido por Gonda-1. o monstro colossal que aí estava, havia se desinteressado do projeto
de Coban, tinha-o deixado agir mas se negara a ajudá-lo. A universidade sozinha havia feito
todo o abrigo. Esta fabricação, esta concepção havia mobilizado toda a sua força energética,
todos os recursos de suas máquinas, dos seus laboratórios, dos seus créditos. Era fruto único
de uma planta enorme... Não conteria senão dois grãos. Um terceiro o condenaria a morrer.
Mesmo pequeno, mesmo Doa. Não podia receber senão um homem e uma mulher.
— Então, escolha outra mulher! — gritou Eléa. — Existem milhões!
— Não — disse Coban —, não há milhões, só existe cinco, e não existe senão você... O
computador escolheu-a porque você é excepcional. Não, não há outra mulher, e nenhum outro
homem. É você e eu! Não falemos mais, Peço-lhe por favor, está decidido.
— Você e eu? — perguntou Eléa. Você e eu! — respondeu Coban.
— Eu o detesto — disse Eléa.
— Eu também não a amo — retrucou Coban. — Isto não importa.
— Escute, Coban — disse uma voz —, o Presidente Lokan quer lhe falar vê-lo.
— Eu o escuto e o vejo — disse Coban.
A imagem de Lokan surgiu num canto da peça. Coban deslocou-a para que ela ficasse à sua
frente, do outro lado da mesa. Lokan parecia arrasado pela angústia.
— Escute, Coban — disse ele. — Onde estão os seus contatos com os homens do Distrito
de Conhecimento de Enisorai?
— Espero uma notícia a qualquer momento.
— Não podemos esperá-los mais! Não é possível. Os enisores bombardeiam nossas
guarnições de Marte e da Lua com bombas nucleares. Os nossos estão a caminho, vamos
responder. Mas, por mais atroz que seja, isto é nada. exército de invasão enisor está em vias
de sair de suas montanhas e de instalar nas bases de partida. Dentro de algumas horas ele vai
cair sobre Gondawa Ao primeiro voo assinalado pelos nossos satélites, tenho que ligar e
deixar partir a Arma Solar! Mas sou como você, Coban, tenho medo desse horror! Ainda é
tempo de salvar a paz! O governo enisor sabe que o envio do seu exército significará a morte
do seu povo. Mas, ou ele não está ligando, ou ele espera destruir a arma antes que ela parta!
Kutiyu está louco! Só os homens do distrito podem tentar convencê-lo ou derrubá-lo!
Não temos nem a metade de um instante a perder, Coban! Suplico-lhe, tente encontrá-los!
— Mas não posso encontrá-los diretamente! Vou chamar Partao em Lamoss. A imagem do
presidente se apagou. Coban enfiou sua chave numa placa — Escute — falou —, quero ver e
falar com Partao em Lamoss.
— Partao em Lamoss — repetiu uma voz. — Chamarei. Coban explicou a Eléa: —
Lamoss é o único país que ficará neutro neste conflito. Por uma vez, não terá tempo para
aproveitar... Partao é o chefe da Universidade Lamo. Ele é o meu contato com os homens do
distrito.
Partao apareceu e disse a Coban que havia contatado Soutako no distrito.
— Ele não pode fazer nada, está desamparado. Vai chamar diretamente. Uma imagem
descorada iluminou-se ao lado da de Partao. Era Soutako, com roupa e toga de professor.
Tinha um ar transtornado, falava fazendo gestos, batia no peito e designava com um dedo
esticado alguma coisa ou alguém ao longe. Não se entendia uma palavra do que ele dizia.
Imagens de cores mutáveis cortaram a sua imagem em pedaços, tremiam, juntavam-se,
afastavam-se. Ele desapareceu.
— Não posso lhes dizer mais nada — disse Partao. — Talvez boa sorte?...
— Desta vez — sussurrou Coban — não haverá sorte para ninguém Chamou Lokan para
pô-lo ao corrente. Lokan pediu-lhe para encontrá-lo no conselho que ia se reunir.
— Eu vou — afirmou Coban.
Virou-se para Eléa que havia assistido à cena sem dizer uma palavra, sem fazer um gesto.
— Eis aí — ele disse com uma voz glacial. — Agora você sabe qual é a situação. Não há
lugar para sentimentos. Esta noite entraremos no abrigo. Meus assistentes vão prepará-la. Você
vai, entre outros cuidados, receber única dose existente do soro universal. Ela foi sintetizada,
molécula por molécula no meu laboratório pessoal, há seis meses. A dose precedente, fui eu
quem a experimentou. Estou pronto. Se por milagre nada acontecer, você e eu ganhamos pois
seremos as primeiras pessoas a gozar da juventude eterna. Neste caso, eu lhe prometo que a
dose seguinte será para Paikan. O soro nos permitirá sem dificuldades através do frio
absoluto. Vou confiá-la a meus homens. Eléa levantou-se e correu para a porta. Com sua mão
esquerda fechada tingiu com um golpe terrível um guarda na têmpora. O homem caiu. O outro
agarrou o punho de Eléa e a derrubou de costas.
— Deixem-na! — gritou Coban. — Proíbo-lhes de tocá-la! Faça o que fizer!
O guarda deixou-a. Ela correu novamente para a porta, mas esta não se abriu.
— Eléa — disse Coban —, se você aceitar o tratamento sem se debater, sem tentar fugir,
autorizarei a que você veja Paikan antes de entrar no abrigo. Ele foi levado de volta à torre e
está informado do que vai lhe acontecer. Espera notícias suas. Eu lhe prometi que ele a veria
novamente. Se você resistir, se você protestar, se você lutar a ponto de comprometer os
preparativos, eu a farei adormecer, e você não o verá jamais.
Ela o olhou um instante em silêncio, respirou profundamente para retomar o controle dos
seus nervos.
— Pode fazer virem seus homens — disse ela. — Não farei nada. Coban apoiou-se sobre
uma placa. Uma parte da parede escorregou, deixando ver um laboratório ocupado por
guardas e laboratoristas, entre os quais Eléa reconheceu o chefe de laboratório que os havia
recebido.
O homem designou-lhe uma cadeira diante dele.
— Venha.
Eléa entrou no laboratório. Antes de deixar o escritório de Coban, virou-se para ele.
— Eu o detesto — disse ela.
— Quando sairmos do abrigo sobre a Terra morta — disse Coban — não haverá mais nem
ódio nem amor. Existirá somente o nosso trabalho que acabara de receber do Japão.
Tratava-se principalmente de projetores de luz coerente com a do meio ambiente com os
quais ele esperava iluminar a sala do motor, através da laje transparente, e fotografá-la. Ao
parar, o motor do fio havia se apagado e a sala embaixo da laje tinha se tornado um bloco
escuro. A temperatura tinha subido rapidamente, a neve e a geada tinham-se fundido, a água
tinha sido aspirada, a parede e o solo secados com ar quente. Enquanto que seus assistentes
suspendiam os projetores em tripés, Hoi-To, maquinalmente, olhava a seu redor. A superfície
da parede pareceu-lhe curiosa, não era polida, não era baça, era meio ondeada. Passou sobre
a superfície a ponta de seus dedos longos e sensíveis e depois as unhas. Elas arranharam.
Assestou um projetor sobre a parede, com luz rasante, olhou por alto, introduziu uma
espécie de microscópio com teleobjetiva e pequenas lentes. Breve não teve mais dúvida: a
superfície da parede estava gravada de inúmeras estrias. E cada uma dessas estrias era uma
linha de escrita gonda. As bobinas de leituras das salas dos alvéolos tinham sido decompostas
pelo tempo, mas o muro do ovo, inteiramente impresso em sinais microscópicos, representava
o equivalente de uma considerável biblioteca.
Hoi-To tirou logo algumas fotografias, ampliou-as ao máximo, em diferentes pontos da
parede, afastadas umas das outras. Uma hora mais tarde, ele as projetava sobre uma grande
tela. Lukos, muito excitado, identificou fragmentos de discursos históricos e tratados
científicos, uma página de dicionário, um poema, um diálogo que talvez fosse uma peça de
teatro ou uma discussão filosófica.
O muro do ovo parecia ser uma verdadeira enciclopédia de conhecimentos de Gondawa.
Um dos clichês projetados comportava numerosos signos isolados, nos quais Lukos
reconheceu símbolos matemáticos, que cercavam o símbolo da equação de Zoran.
Eléa acordou estendida sobre um tapete de peles. Repousava sob uma coberta morna e
macia pousada sobre nada. Flutuava num estado de descanso total.
Havia sido examinada da cabeça aos pés, pesada quase que célula por célula,alimentada,
massageada, impregnada, equilibrada, balanceada até não ser mais que um corpo no peso
exatamente requerido e de uma passividade perfeita. Depois Coban, tendo voltado, explicou-
lhe o mecanismo da abertura e do fechamento do abrigo, ao mesmo tempo que administrava
ele mesmo, em fumaças para respirar, em óleo sobre a língua, em neblina nos olhos, em longas
modulações de infra-sons sobre as têmporas, os diversos elementos do soro universal. Ela
havia sentido uma energia nova, luminosa, invadir todo o seu corpo, limpar todos os recantos
de cansaço, encher até sua pele de um entusiasmo semelhante ao das florestas na primavera.
Ela se sentia tornar dura como uma árvore, forte como um touro, equilibrada como um lago. A
força, o equilíbrio e a paz haviam-na irresistivelmente conduzido ao sono.
Adormecera na poltrona do laboratório, acabava de abrir os olhos sobre este tapete, numa
peça redonda e nua. A única porta encontrava-se diante dela. Diante da porta um guarda verde,
sentado sobre um cubo, olhava-a. Segurava na ponta dos dedos um objeto de vidro feito de
tubos minúsculos entrelaçados em volteios complicados. Os tubos frágeis estavam cheios de
um líquido verde.
Já que a senhora não dorme mais - disse o guarda - vou preveni-la: se tentar sair à força,
abro os dedos, isto cai e quebra, e a senhora dormirá como uma pedra.
Eléa não respondeu. Olhou-o. Mobilizava todos os recursos do seu espírito com um só
fim: sair e encontrar Paikan.
O guarda era grande de ombros largos, cintura grossa. Seus cabelos trançados tinham a cor
do bronze novo. Estava com a cabeça descoberta e sem arma. Seu pescoço grosso era quase
tão largo quanto seu rosto maciço. Constituía um sério obstáculo diante da porta única. Na
ponta do seu braço musculoso, da sua mão rude, segurava esse objeto infinitamente frágil,
obstáculo ainda mais forte.
— Escute, Eléa — disse uma voz. — Paikan pede para lhe falar e vê-la. Nós
permitiremos.
A imagem de Paikan apareceu entre ela e o guarda. Eléa saltou e ficou de pé.
— Eléa!
— Paikan!
Ele estava de pé na cúpula de trabalho. Ela via perto dele um fragmento da mesa e a
imagem de uma nuvem.
— Eléa! Onde está você? Onde? Por que você vai me abandonar?
— Eu recusei! Eu sou sua! Eu não sou deles! Coban obrigou-me! Eles me prenderam!
— Vou buscá-la! Quebrarei tudo! Matarei todos! Sacudiu sua mão esquerda enfiada na
arma.
— Você não pode! Você não sabe onde é que estou!... Eu também não sei! Espere, eu
voltarei! De qualquer maneira!...
— Acredito em você, estou esperando — disse Paikan. A imagem desapareceu.
O guarda, sempre sentado, olhava Eléa. Em pleno centro da peça redonda, ela o olhava e
avaliava. Deu um passo na sua direção. Ele pegou a máscara que estava pendurada como um
colar e ajustou-a sobre o nariz.
— Atenção! — disse com uma voz nasal.
Sacudiu ligeiramente, com todo o cuidado, os entrelaçamentos frágeis dos tubos de vidro.
— Eu o conheço — disse ela. Ele a olhou surpreso.
— Você e seus semelhantes. Vocês são simples, vocês são corajosos. Fazem tudo o que
lhes dizem e não lhes explicam nada.
Ela fez escorregar a extremidade da faixa azul do busto, e começou a desenrolá-la.
— Coban não lhe disse que você ia morrer.
O guarda deu um sorriso pequeno. Ele era guarda. Estava nas profundezas, não acreditava
na sua própria morte.
— Vai haver uma guerra e não haverá sobreviventes. Você sabe que eu digo a verdade:
você vai morrer. Vocês todos vão morrer, exceto eu e Coban.
O guarda soube que ela não mentia. Ela não era daquelas que se rebaixavam a mentir
fossem quais fossem as circunstâncias. Mas ela devia estar enganada, há sempre
sobreviventes. Os outros morrem, eu não, pensou.
Agora sua cintura estava nua e ela começou a soltar a faixa em diagonal do lado do ombro.
— Todo o mundo vai morrer em Gondawa. Coban sabe disso. Ele construiu um abrigo que
nada pode destruir, para nele se encerrar. Encarregou o computador de escolher a mulher que
ele encerraria com ele. Esta mulher sou eu. Você sabe por que o computador me escolheu entre
milhões? Porque sou a mais bela. Você não viu senão meu rosto, olhe.
Ela desnudou seu seio direito. O guarda olhou aquela carne maravilhosa, flor e fruto, e
ouviu o barulho do sangue latejar nos seus ouvidos.
— Você me deseja? — perguntou Eléa.
Ela continuava lentamente a descobrir seu busto. O seio esquerdo ainda estava meio
encoberto pela fazenda.
— Eu sei qual o gênero de mulher que o computador escolheu para você. Ela pesa três
vezes o meu peso. Uma mulher como eu, você nunca viu...
A faixa inteira caiu ao solo, liberando o seio esquerdo. Eléa deixou seus braços caírem ao
longo do corpo, as palmas da mão meio viradas para a frente, os braços um pouco afastados,
oferecendo seu busto nu, o esplendor vindo dos seios bem proporcionados, cheios, macios,
gloriosos.
— Antes de morrer, você me deseja?
Ela ergueu a mão esquerda, e, com um único gesto, fez cair a roupa que estava presa nas
cadeiras.
O guarda levantou-se, pousou sobre o cubo o perigoso, frágil, ameaçador objeto de vidro,
arrancou sua máscara e sua túnica. Conjunto perfeito de músculos equilibrados e fortes, seu
torso nu era magnífico.
— Você é de Paikan — disse ele.
— Eu lhe prometi: de qualquer maneira.
— Eu lhe abrirei a porta e a levarei para fora.
Ele tirou a roupa. Estavam de pé, nus, um diante do outro. Ela recuou lentamente e, quando
sentiu o tapete sob seus pés, agachou-se e deitou-se. Ele se aproximou, poderoso e pesado,
precedido por seu desejo soberbo. Deitou-se sobre ela e ela se abriu.
Ela o sentiu encostar, cruzou suas pernas sobre seus rins e esmagou-o contra ela. Ele a
penetrou como uma lâmina. Ela teve um espasmo de horror.
8
— EU SOU DE PAIKAN — gritou.
E enfiou seus dois polegares ao mesmo tempo nas carótidas dele.
Ele sufocava e se torcia. Mas ela era forte como dez homens e o segurava com seus pés
apertados, seus joelhos, seus cotovelos, seus dedos enfiados nos seus cabelos trançados. E
seus polegares inexoráveis, duro como aço pela vontade de matar, privavam seu cérebro da
menor gota de sangue.
Foi uma luta selvagem: enlaçados, ligados um ao outro e um no outro, rolavam sobre o
solo em todas as direções. As mãos do homem agarravam-se às mãos de Eléa e puxavam,
tentando arrancar a morte que se enfiava no seu pescoço. A parte de baixo do seu ventre ainda
queria viver, viver ainda um pouco, viver o bastante para ir até o fim do seu prazer.
Seus braços e seu torso lutavam para sobreviver, e seus rins e suas coxas lutavam, se
apressavam para ganhar a morte em rapidez, para gozar, gozar antes de morrer.
Uma convulsão terrível o sacudiu. Ele enfiou-se até o fundo da morte enroscada em volta
dele e nela esvaziou, num gozo fulgurante, interminavelmente, toda a sua vida. A luta parou.
Eléa esperou que o homem se tornasse passivo e pesado como um bicho morto.
Então retirou seus polegares enfiados na sua carne mole. Suas unhas estavam cheias de
sangue. Ela abriu suas pernas crispadas e escorregou para fora do peso do homem.
Arquejava de nojo. Teria querido se virar do avesso como uma luva e se lavar toda por
dentro dela mesma até os cabelos. Pegou a túnica do guarda, enxugou com ela seu rosto, o
peito e o ventre, jogou-a longe molhada, e vestiu-se rapidamente.
Aplicou a máscara sobre o nariz, pegou a frágil construção de vidro e, com precaução,
empurrou a porta, que se abriu.
ava sobre o laboratório onde Eléa havia recebido os preparativos. O chefe do laboratório
e dois laboratoristas estavam inclinados sobre uma mesa. Um guarda armado estava em pé
diante de uma porta. Viu Eléa primeiro. Disse:
— Ei!
Ergueu a mão para colocar sua máscara.
Eléa jogou o objeto de vidro a seus pés. Ele se quebrou sem barulho. Instantaneamente a
peça ficou cheia de uma bruma verde. O guarda e os três homens de roupa salmão caíram
sobre eles mesmos.
Eléa dirigiu-se para a porta, e pegou as armas do guarda.

Não sou um adolescente romântico. Não sou um bruto governado pelo estômago e pelo
sexo.
Sou razoavelmente sensato, sentimental e sensual, capaz de controlar minhas emoções e
meus instintos. Pude rapidamente suportar a visão de tua vida mais intima, pude suportar
ver esse bruto se deitar em cima de ti e penetrar na maravilha do teu corpo. O que me
transtornou foi o que li sobre o teu rosto.
Poderias não ter morto este homem. Ele havia dito que te levaria para fora. Talvez
mentisse, mas não foi para assegurar a tua fuga que tu o mataste, foi porque ele estava no
teu ventre e não podias suportá-lo. Tu o mataste por amor a Paikan. Amor. Esta palavra que
a tradutora utiliza porque não encontra o equivalente, não existe na tua língua. Depois que
te vi viver junto de Paikan, compreendi que era uma palavra insuficiente. Nós dizemos "eu
amo", dizemos da mulher, mas também da fruta que comemos, da gravata que escolhemos, e
a mulher o diz falando sobre o seu batom. Ela diz do seu amante: "ele é meu". Tu dizes o
contrário: "eu sou de Paikan". E Paikan diz "eu sou de Eléa". Tu és dele, és uma parte dele
mesmo. Chegarei eu jamais a te desprender? Tento te interessar no nosso mundo, te fiz
ouvir Mozart e Bach, mostrei-te fotografias de Paris, de Nova Iorque, de Brasília, te falei
da história dos homens, pelo menos da que nós conhecemos e que é o nosso passado, tão
curto ao lado da durabilidade imensa do teu sono. Em vão, tu escutas, olhas, mas nada te
interessa. Estás por trás do muro. Não estás em contato com o nosso tempo. Teu passado te
seguiu no consciente e no subconsciente da tua memória. Não pensas senão em nele
mergulhar de novo, e encontrá-lo, e revivê-lo. O presente para ti é ele.

Um engenho rápido da universidade estava pousado sobre o braço de atracação da torre.


Os guardas que dele haviam saído vasculharam o apartamento e a cúpula. No terraço, perto da
árvore de seda, Coban falava a Paikan. Acabava de lhe explicar por que tinha necessidade de
Eléa e lhe comunicava sua evasão.
— Ela destruiu tudo o que a impedia de passar. Homens, portas e paredes! Pude seguir sua
pista como a de um projétil até a rua, onde ela tornou-se um transeunte livre.
Os guardas interromperam Coban para lhe dizer que Eléa não estava no apartamento nem
na cúpula. Ele ordenou-lhes que procurassem no terraço.
— Eu tinha minhas dúvidas de que ela já tivesse chegado — disse ele a Paikan. — Ela
sabia que eu viria diretamente aqui. Mas sei que ela só tem um desejo: o de encontrá-lo.
Virá, ou então fará com que você vá aonde ela estiver, para que se encontrem. Então nós a
prenderemos. É inevitável. Mas vamos perder muito tempo. Se ela o chamar, faça-lhe
compreender, diga-lhe para voltar à universidade.
— Não — disse Paikan.
Coban olhou-o com seriedade e tristeza.
— Você não é um gênio, Paikan, mas você é inteligente. Você é de Eléa?
— Eu sou de Eléa!
— Se ela entrar no abrigo, ela viverá. Se ela não entrar ela morrerá. Ela é inteligente e
resoluta. O computador a escolheu bem, ela acaba de prová-lo. Pode ser que apesar da nossa
vigilância ela consiga encontrá-lo. Então, é você quem tem de convencê-la a voltar para nós.
Comigo, ela viverá; com você ela morrerá. No abrigo é a vida. Fora do abrigo, é a morte,
dentro de alguns dias, talvez dentro de algumas horas. O que é que você prefere?
Que ela viva sem você, ou que ela morra com você?
Abalado, torturado, furioso, Paikan gritou:
— Por que não escolhem uma outra mulher?
— Não é mais possível. Eléa recebeu a única dose disponível de soro universal. Sem esse
soro, nenhum organismo humano poderá atravessar o frio absoluto sem sofrer graves
consequências e talvez até morrer.
Os guardas vieram dizer a Coban que Eléa não estava no terraço.
— Ela está nalgum lugar nas proximidades, espera que partamos. A torre ficará sob
vigilância. Vocês não poderão se encontrar sem que nós o saibamos. Mas se por um milagre
vocês conseguirem fazê-lo, lembre-se de que você tem a escolha entre sua vida e sua morte...
Coban e os guardas voltaram para o engenho que se elevou alguns centímetros acima do
braço de atracação, girou sobre o mesmo lugar e afastou-se na velocidade máxima.
Paikan aproximou-se da rampa e olhou para cima. O engenho com a marca da equação de
Zoran descrevia círculos lentos em volta da vertical da torre.
Paikan ligou a tela de proximidade e dirigiu-a para as casas de repouso colocadas no solo
todas ao redor da torre. Em todas via rostos de guardas que olhavam através de suas próprias
telas.
Entrou no apartamento, abriu o elevador. Um guarda estava de pé na cabina. Fechou a
porta, enraivecido, e subiu para a cúpula. Plantou-se no meio da cúpula transparente, olhou o
céu puro onde o engenho da universidade continuava a girar lentamente, ergueu os braços em
cruz, dedos afastados, e começou a fazer gestos estranhos.
Diante dele, uma pequena nuvem branca cheinha nasceu no azul do céu. Espalhadas pelo
céu perto da torre, nasceram pequenas nuvens brancas encantadoras, que transformavam o azul
num grande prado florido. Rapidamente elas se desenvolveram e se juntaram, formando uma
massa que se tornava mais espessa e negra, e pôs-se a girar em torno dela mesma com seus
trovões represados que ribombavam. O vento curvou as árvores do terraço, atingiu o solo,
gritou ao rasgar-se sobre as ruínas, e sacudiu as casas de repouso.
O rosto do chefe de serviço apareceu em cima da mesa. Parecia perturbado.
— Escute, Paikan! O que é que está acontecendo aí? O que é este furacão? O que é que
você está fazendo? Você está louco?
— Não fiz nada — respondeu Paikan. — A cúpula está bloqueada! Mande-me o engenho
da oficina! Rápido! Isto não é senão um furacão, e vai se tornar um ciclone! Mande rápido.
O chefe de serviço cuspiu palavras desagradáveis e desapareceu.
A nuvem giratória tinha ficado verde, com bruscas iluminações internas púrpuras ou
rosadas. Um barulho terrível, contínuo, caía sobre a Terra, o barulho de mil trovões retidos.
Um feixe de raios arrombou sua superfície e atingiu o engenho da universidade, que
desapareceu numa chama.
Na confusão que se seguiu e atingiu a torre, Paikan desceu correndo para o apartamento e
para o terraço e mergulhou na piscina.
Eléa estava lá, no fundo, enfiada na areia, o rosto recoberto pela máscara e dissimulado
sob as algas. Ela viu chegar Paikan que lhe fazia sinal. Saiu então do esconderijo e subiu com
ele para a superfície. Trombas d'água caíam da nuvem, carregadas pelo vento que sacudia
loucamente as casas de repouso agarradas às suas âncoras. Uma rajada enroscou-se na torre e
tentou arrancá-la. A torre gemeu e resistiu. O vento carregou a árvore de seda que subiu,
descabelada, para a nuvem, e desapareceu numa boca negra.
Paikan havia levado Eléa para a cúpula. A parte de baixo da nuvem acabava de atingi-la e
rasgava-se sobre ela, mistura de vento que uivava, de bruma opaca, de chuva de granizo,
iluminado pela sucessão dos relâmpagos. Ao atingirem uma saída da cúpula, ajustaram suas
armas na cintura. Paikan abriu a porta de uma nave. Dois mecânicos saltaram na torre,
acompanhados dos uivos e do canhoneio do furacão.
— O que é que está acontecendo? — perguntou um deles, espantado.
Em vez de responder, Paikan mergulhou sua mão na arma e atirou na estrutura da cúpula
que ressoou, gemeu e desmoronou. Ele pegou Eléa, empurrou-a em direção ao veículo, entrou
atrás dela e decolou rápido, enquanto ela, com esforço, conseguia fechar o vidro cônico. A
nave desapareceu na espessura da nuvem.
Era um engenho pesado, lento, de pouco manejo, mas que não temia nenhuma forma de
furacão. Paikan quebrou o emissor que assinalava sem cessara posição do aparelho, virou na
nuvem que crepitava ao redor deles, e foi para o centro que se deslocava para oeste, seguindo
o impulso que ele lhe tinha dado. Com a cúpula destruída, seria necessária a intervenção das
outras torres para modificar o curso do furacão e neutralizá-lo. Isto dava bastante tempo para
executar o início do plano que Paikan expunha a Eléa.
A única solução para eles era abandonar Gondawa e ir para Lamoss, a nação neutra.
Para isso, era necessário invadir a pista, pousar, e pegar um engenho de longa distância.
Somente poderiam encontrar um no parqueamento da vila subterrânea.
Os engenhos da universidade não ousariam se arriscar numa tal tempestade, com medo de
ver seu campo de não gravidade perturbado, e cair como pedra. Mas deviam montar uma boa
guarda no local. Teriam portanto de ir ao local de um elevador, ficar camuflados pela nuvem e
protegidos pela ronda da tempestade.
Paikan fez a nave descer até o limite inferior da nuvem. O sol, varrido pelas torrentes de
chuva, brilhava a baixa altura, sobre a claridade dos relâmpagos. Era a grande planície
vitrificada. Os últimos elevadores de Gonda-7 não deveriam estar longe. Eléa viu surgir um
na bruma. Paikan pousou brutalmente. Apenas no chão, saíram correndo e ambos apontaram
para ele suas armas, ao mesmo tempo. O vento zunindo levantava nuvens de poeira.
Era um elevador rápido, que ia diretamente à 5ª Profundidade. Isto não tinha grande
importância. Cada profundidade possuía seus parqueamentos. Foram para a cabina de
serviços expressos. Quando o elevador se abriu para deixá-los passar, estavam secos,
lavados, penteados, escovados. Haviam utilizado para isso suas chaves.
Na avenida de transportes a multidão parecia ao mesmo tempo nervosa e espantada.
Imagens surgiam por todos os lados para dar as últimas noticias. Era preciso enfiar a
chave na placa de som para ouvir as palavras. Apoiados num galho de uma árvore, sobre a
pista de alta velocidade, viram e ouviram o Presidente Lokan fazer declarações
tranquilizadoras.
Não, não era a guerra. Ainda não. O conselho faria todo o possível para evitá-la. Mas
cada habitante de Gondawa não deveria se afastar do seu posto de mobilização. A nação
poderia precisar de todos de um momento para o outro.
A maior parte dos homens e mulheres usava o cinturão com a arma, e, sem dúvida,
dissimulado em alguma parte do seu corpo, o Grão Negro.
Os pássaros não conheciam as notícias: cantavam, pipilando de prazer, batendo em
rapidez a pista central. Eléa sorriu e ergueu o braço esquerdo na vertical, acima de sua
cabeça, o punho fechado, o indicador horizontal. Um pássaro amarelo freou em pleno voo e
pousou sobre o seu dedo estendido. Eléa baixou-o à altura do seu rosto e encostou-o contra
sua face. Era morno macio. Sentia seu coração bater tão rápido que mais parecia uma
vibração. Ela lhe cantou algumas palavras de amizade. Ele respondeu com um assobio agudo,
saltou do dedo de Eléa para sua cabeça, deu-lhe algumas bicadas nos cabelos, bateu as asas e
se deixou conduzir por um bando que passava. Eléa pousou sua mão na de Paikan.
Desceram da Avenida no parqueamento. Era uma floresta em feitio de leque. Os galhos das
árvores se reuniam acima das filas de engenhos estacionados ali As pistas convergiam para a
rampa da chaminé de partida. Da chaminé de chegada, que se abria no centro da floresta,
surgiam engenhos de todos os tamanhos que seguiam nas pistas de volta, para se abrigar sob as
folhas como bichos na hora do repouso depois de uma corrida.
Paikan escolheu um veículo rápido de dois lugares, de longa distância, sentou-se numa das
cadeiras. Eléa a seu lado.
Enfiou sua chave na placa de comando, esperando para indicar sua designação e que se
acendesse um sinal azul na placa que começou a piscar. O sinal não se iluminou.
— O que é que está acontecendo?
Retirou sua chave da placa e enfiou-a novamente. O sinal não respondeu.
— Experimente a sua...
Eléa por sua vez enfiou sua chave no metal elástico, sem mais sucesso.
— Há um enguiço qualquer — disse Paikan. — Um outro, rápido!... No momento em que
ele se preparava para sair, o emissor do engenho começou a falar. A voz fez com que eles
parassem petrificados. Era a de Coban.
— Eléa, Paikan, sabemos onde vocês estão. Não se movam. Vou mandar buscá-los.
Vocês não poderão ir a lugar nenhum,fiz anular suas contas no computador central. Vocês
não obterão mais nada com suas chaves. Elas não poderão mais lhes ajudar. Só vos assinalar.
O que estão esperando ainda? Não se mexam, vou mandar buscá-los...
Eles não tiveram necessidade de se combinarem. Saltaram fora do aparelho e afastaram-se
rapidamente. De mãos dadas, atravessaram uma pista diante do nariz de um aparelho que freou
rápido, e afundaram-se sob as árvores. Milhares de passarinhos cantavam nas folhagens
verdes ou vermelhas, ao redor dos galhos luminosos. Os pios apenas audíveis dos motores
mais lentos compunham um barulho de fundo tranquilizante que incitava a não fazer nada, a
esperar, a se confundir com a alegria dos pássaros e das folhas. Na claridade verde-dourada,
chegaram ao fim de uma longa fila de engenhos de longa distância. O último acabara de pousar
e tomar seu lugar. Um viajante descia. Paikan ergueu sua arma e atirou com potência fraca. O
homem foi projetado ao solo, espantado.
Paikan correu em sua direção, segurou-o sobre os braços, arrastou-o para baixo de um
ramo e ajoelhou-se a seu lado. Teve um trabalho enorme para lhe arrancar sua chave. O
homem era gordo, seu anel ficara afundado na carne. Teve que cuspir nos dedos para
conseguir fazê-lo escorregar. Quando finalmente o anel cedeu, ele estava pronto a cortar o
dedo, a garganta, não importa o que para carregar Eléa para longe de Coban e da guerra.
Subiram para o aparelho ainda quente e Paikan enfiou a chave na placa de comando.
Em vez do sinal azul, foi um sinal amarelo que começou a palpitar. A porta do aparelho
fechou-se batendo e o emissor de bordo começou a gritar: "Chave roubada! chave roubada!"
Do exterior do aparelho um aviso guinchava.
Paikan atirou na porta. Correram para fora e afastaram-se para o abrigo das árvores.
Atrás deles o sinal de alarme continuava a lançar seu grito de apelo: "Chave roubada!
chave roubada!"
Os viajantes que se dirigiam para os outros engenhos ou que saíam prestavam pouca
atenção ao incidente. Preocupações mais graves faziam com que eles se apressassem.
Acima da entrada das Treze Ruas, uma enorme imagem mostrava a batalha da Lua. Os dois
campos a bombardeavam com suas armas nucleares, arrepiando-a com cogumelos, abrindo
gigantescas crateras, fissurando seus continentes, vaporizando seus mares, dispersando sua
atmosfera no vazio. Os passantes paravam, olhavam um instante, e saíam mais depressa.
Cada família tinha um amigo ou um parente nas guarnições da Lua ou de Marte.
No momento em que Eléa e Paikan entravam na décima primeira rua, a chaminé de
chegada do parqueamento abriu passagem para uma frota de aparelhos da universidade que se
dirigiram para todas as pistas e todas as entradas.
A décima primeira rua estava cheia de uma multidão febricitante. Grupos se aglomeravam
diante das imagens oficiais que transmitiam as notícias da Lua ou a última declaração do
presidente. De tempos em tempos, alguém que ainda não havia ouvido suas declarações
enfiava sua chave na placa de som e Lokan pronunciava mais uma vez. as mesmas palavras
tranquilizadoras: "Ainda não é a guerra..."
— O que mais que eles querem? — gritou um rapaz magro, de torso nu, cabelos curtos. —
Se vocês aceitam, já é a guerra! Digam que não com os estudantes! Não para a guerra! Não!
Não! Não!
Seu protesto não ergueu eco nenhum. As pessoas que estavam mais próximas dele se
afastaram e se dispersaram isoladas ou de mãos dadas. Tinham consciência de que gritar não
ou sim ou qualquer outra palavra, no momento não adiantava mais, fosse para o que fosse.
Eléa e Paikan se apressaram em direção à porta do elevador comum, esperando se
misturar no meio da multidão a fim de chegar à superfície. Uma vez lá fora, eles combinariam.
Agora, não tinham tempo para pensar. Os guardas verdes surgiram no fim da rua. Eles fizeram
uma fila tripla em toda a largura da rua e avançavam verificando a identidade de cada um. A
multidão se inquietava e se irritava.
— O que é que estão procurando?
— Um espião!
— Um enisor!
— Tem um enisor na 5ª Profundidade!
— Todo um destacamento de enisores! Sabotadores!
— Atenção! Escutem e vejam!
A imagem de Coban acabava de surgir no meio da rua. Ela se repetia em cada 50
metros, dominando a multidão e as árvores, repetindo os mesmos gestos e pronunciando as
mesmas palavras.
— Escutem e vejam. Sou Coban. Procuro Eléa 3-19-07-91. Eis aqui seu rosto.
Um retrato de Eléa tomado algumas horas antes no laboratório surgiu no lugar de Coban.
Eléa virou-se para Paikan e escondeu seu rosto no seu peito.
— Não tenha medo de nada! — disse ele docemente.
Acariciou o seu rosto, escorregou uma mão sobre seu braço, desfez a extremidade da faixa
que passava pelo busto, desnudou-lhe um ombro e, com a parte da faixa assim livre, envolveu-
lhe o pescoço, o queixo, a testa e os cabelos. Era um traje que os homens e as mulheres às
vezes adotavam, que não faria com que ela fosse notada e que lhe dava poucas possibilidades
de ser reconhecida.
— Procuro esta mulher para salvá-la. Se vocês souberem onde ela está, avisem, mas não a
toquem... Escute, Eléa! Sei que você está me ouvindo. Assinale-se com sua chave, enfiando-a
em qualquer placa. Assinale e não se mexa. Escutem e vejam, procuro esta mulher, Eléa 3-19-
0791...
Um homem, um sem-chave, a reconheceu. Reconheceu seus olhos: não havia azul tão azul
nos olhos de outra mulher, nem em Gonda-7, talvez nem em todo o continente. O homem estava
apoiado no muro, entre dois troncos tortos, sobre os galhos de onde pendem máquinas
distribuidoras de água, de alimentos e de mil objetos necessários ou supérfluos que se podem
obter com suas chaves. Ele não podia obter nada. Era um pária, um sem-chave, não tinha mais
conta, só podia viver de mendicância. Estendia a mão, e as pessoas que vinham se servir na
floresta das máquinas multicores, lhe davam um pouco de alimento que ele comia ou guardava
num saco pendurado na cintura. Para esconder a vergonhosa nudez do seu dedo sem anel,
trazia em volta da falange do dedo médio uma fita preta.
Ele viu Eléa esconder o rosto no peito de Paikan, e este dissimular-lhe o rosto. Mas
quando ela ergueu a cabeça para olhar Paikan, viu seus olhos e reconheceu os olhos azuis da,
imagem.
Os guardas verdes se aproximavam lenta e inexoravelmente. Cada pessoa interrogada
enfiava sua chave numa placa fixada no punho do guarda. A de qualquer pessoa procurada aí
ficaria enfiada e fixa, tornando-a prisioneira. Eléa e Paikan se afastaram. O sem-chave os
seguiu.
Eles nunca haviam tomado o elevador comum, frequentado principalmente pelas pessoas
menos-bem-designadas, aqueles que não andavam de mãos dadas e tinham necessidade da
companhia dos outros. Sabiam agora que não o tomaram nunca: as portas de correr não
deixavam passar senão uma pessoa de cada vez, após introduzir a chave na placa...
Não tomariam nem esse elevador ou nenhum outro, nem as avenidas de transporte, nem
alimento, nem bebida. Nada. Não poderiam obter mais nada. Uma imagem gigantesca de Eléa
encheu bruscamente toda a largura da rua.
— A universidade procura esta mulher, Eléa 3-19-07-91. Procura-a para salvá-la. Se você
encontrá-la, não a segure, não a toque. Siga-a e assinale-a. Nós a procuramos para salvá-la.
Escute, Eléa, sei que você está me ouvindo... Assinale sua presença com sua chave!
— Estão me olhando! estão me olhando!
— Não — disse Paikan — não podem reconhecê-la.
— Vocês a reconhecerão — dizia o aviso — pelos seus olhos, seja qual for o disfarce.
Olhem nos olhos desta mulher. Nós a procuramos para salvá-la.
— Abaixe as pálpebras! Olhe para o chão!...
Uma fila tripla de guardas verdes surgiu na encruzilhada da décima primeira rua e da
transversal e avançou ao encontro das outras. Não havia mais escapatória. Paikan olhou ao seu
redor, desesperado.
— Olhem bem os olhos desta mulher...
Cada um dos olhos da imagem era grande como uma árvore, e o azul da íris era uma porta
aberta no céu da noite. Neles, as lantejoulas de ouro brilhavam como fogos. A imagem girava
lentamente para que cada um pudesse vê-la de frente e de perfil. Arrasada por esta presença
dividida dela mesma, Eléa baixava a cabeça, curvava os ombros, crispava sua mão na mão de
Paikan que a dirigia para a porta da avenida, na esperança de aí conseguir se insinuar para a
saída. A imagem intocável barrava-lhes a rua. Chegaram bem perto dela. Eléa parou e ergueu
a cabeça. Do alto do seu rosto gigantesco, seus olhos imensos olharam-na nos olhos.
— Vem... — disse Paikan carinhosamente.
Ele a puxou para si, ela recomeçou a andar. Um nevoeiro de mil cores tremeluzentes
envolveu-a: tinham entrado dentro da imagem. Caíram dentro das portas da avenida. Os
batentes da saída se abriram bruscamente sobre a pressão de uma multidão de estudantes que
corriam. Rapazes e moças, todos tinham o torso nu, extremamente magros. As moças tinham
pintado sobre cada seio um grande X vermelho, para negar sua feminilidade. Não havia mais
nem moças nem rapazes, somente revoltados. Desde o início de sua campanha, que eles
jejuavam um dia em cada dois, sendo que no segundo não comiam senão a ração energética.
Tinham se tornado duros e ágeis como flechas.
Corriam gritando a palavra "Pao" que significava "não" nas duas línguas gondas.
Paikan e Eléa misturaram-se entre eles, contra a onda, para atingir os batentes antes que se
fechassem.
— Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
Os estudantes lhes davam encontrões e os empurravam, eles tornavam a andar para a
frente, Paikan afastando a multidão como um aríete. Os estudantes passavam por eles,
empurravam à esquerda e à direita, pareciam não os ver, alucinados pela fome e pelo grito
repetido.
— Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
Finalmente chegaram à porta. Porém um grupo a encheu e transbordou, fazendo-os recuar
diante deles. Era uma companhia de guardas brancos da polícia do Conselho, de braços
colados, cotovelo com cotovelo, a mão esquerda ar Fria, eficiente, sem emoção, a polícia
branca não aparecia a não ser para agir. Seus membros eram escolhidos pelo computador
antes da idade de Designação. Não recebiam chave, não tinham nem mesmo conta de crédito.
Eram educados e treinados num campo especial, abaixo da 9ª
Profundidade, abaixo mesmo do complexo das máquinas imóveis. Não se mostravam
jamais na superfície. Raramente acima das máquinas. Seu universo era o do Grande Lago
Selvagem, cujas águas se perdiam nas trevas de uma caverna inexplorável. Sobre suas
margens minerais, eles treinavam sem cessar em batalhas impiedosas uns contra os outros.
Lutavam, dormiam, comiam, lutavam, dormiam, comiam. A alimentação que recebiam
transformava em atividades de combate sua energia sexual não empregada. Quando o conselho
tinha necessidade deles, injetava-lhes uma quantidade mais ou menos grande onde a
necessidade se fazia sentir, como um organismo mobiliza seus fagócitos contra o furúnculo e
tudo entrava rapidamente em ordem. Estavam cobertos, da cabeça aos pés, inclusive por um
colante de matéria branca semelhante ao couro, que deixava livres somente o nariz e os olhos.
Ninguém nunca soube qual era o comprimento dos seus cabelos. Carregavam duas armas G,
igualmente de cor branca, uma para a mão esquerda, a outra sobre o ventre, do lado direito.
Eram os únicos a poder atirar com as duas mãos. O conselho os havia soltado na cidade para
liquidar a revolta dos estudantes.
— Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
O grupo dos guardas brancos continuavam a sair compacto pelas portas da avenida e
avançava em direção aos estudantes cujas roupas multicores esvoaçavam na rua, escalavam as
árvores. A multidão, pressentindo chegar o choque, escondia-se em todas as saídas possíveis.
Bloqueada pelos guardas verdes nas duas extremidades da rua, ela refluía para a entrada dos
elevadores da avenida. Uma nova imagem do presidente surgiu na abóbada horizontal, longa
como a rua, acima da multidão, e falou.
Uma imagem falante sem chave era tão excepcional que todo o mundo parou para ouvir,
até mesmo os guardas.
— Escutem e olhem!... Eu vos informo que o conselho decidiu enviar o Conselheiro da
Amizade Internacional a Lamoss, e pedimos ao governo enisor para também enviar seu
ministro equivalente. Nossa finalidade é de tentar acantonar a guerra nos territórios exteriores
e impedir que ela se estenda à Terra. A paz ainda pode ser salva!... Todos os seres vivos das
categorias de 1 a 26 devem se apresentar imediatamente nos seus lugares de mobilização.
A imagem apareceu de corpo inteiro e recomeçou o seu discurso.
— Escutem e olhem!... Quero informar-lhes...
— Pao!... Pao!... Pao!... Pao!...
Os estudantes haviam formado uma pirâmide. No cimo, uma moça com os seios pintados,
ardente de fé, gritava, os braços em cruz:
— Pao! Pao! Não escutem! Não ide aos vossos lugares de mobilização! Recusem a guerra
seja como for! Dizei NÃO! Obriguem o conselho a declarar a paz. Sigam-nos!...
Um guarda branco atirou. A moça atingida desapareceu na face da imagem de Eléa.
— Procuramos esta mulher...
Os guardas continuaram atirando.
— Pao!... Pao!... Pao!... Pao!
A pirâmide desapareceu em pedaços compostos de rapazes e moças mortos. Paikan quis
pegar sua arma, mas ela não estava mais na sua cintura. Ele a havia perdido, sem dúvida, no
momento em que acreditava tê-la colocado no lugar ao saltar do aparelho. A massa compacta
branca dos guardas ia atingi-los, a multidão fugia, os estudantes gritavam seu brado de revolta.
Paikan deitou Eléa no chão e atirou-se por cima dela. Um guarda branco tropeçou nele ao
correr. Paikan pegou no voo a ponta de um pé e virou-o com um golpe seco. O tornozelo
estalou. O guarda caiu sem gritar. Paikan esmagou com seu joelho suas vértebras cervicais e
puxou a cabeça para trás com as duas mãos. As vértebras estalaram. Paikan ergueu a mão
esquerda armada inerte e dobrou bem os dedos enfiados na arma. Um grupo de guardas voou e
chocou-se contra a parede e a parede pulverizada desapareceu numa nuvem. Por trás da
brecha aberta, a pista da avenida apareceu. A multidão meteu-se por ela, gritando. Paikan e
Eléa no meio deles. Paikan carregava a arma do morto. Os guardas brancos, indiferentes,
prosseguiam com calma sua tarefa de exterminação.
Abandonaram a avenida no ponto circular do parqueamento. O parqueamento era a única
esperança, a única saída. Paikan havia pensado numa outra maneira de arranjar um aparelho.
Mas era preciso chegar até ele...
No centro do ponto circular erguiam-se os 12 troncos de uma árvore vermelha.
Unidos pela base, eles se erguiam em corola, segurando-se por seus galhos comuns como
crianças que fazem uma roda. Muito alto, suas folhas vermelhas escondiam a abóbada e se
uniam sobre a multidão das patas e das asas dos pássaros ali escondidos. Em volta do seu pé
corria um riacho de onde pequenas tartarugas luminosas erguiam suas cabeças chatas quase
transparentes para procurar vermes e larvas. Ofegante de sede, Eléa ajoelhou-se à beira do
riacho. Pegou a água na concha de suas mãos e nela mergulhou a boca. Cuspiu-a com horror.
— Ela vem do lago da Primeira Profundidade — disse Paikan. — Você bem sabe...
Ela o sabia, mas estava com sede. Essa maravilhosa água clara era amarga, salgada,
pútrida e morna. Era imbebível, mesmo na hora da morte. Paikan ergueu docemente Eléa e
apertou-a contra ele. Ele estava com sede e com fome; estava mais esgotado do que ela, pois
não tinha para se manter o soro universal. Dos galhos acima deles pendiam mil máquinas que
lhe propunham, em mil cores mutantes, bebidas, alimentos, jogos, prazeres, tudo o que era de
necessidade. Sabia que ele não tinha nem o recurso de quebrar uma ou outra, pois no interior
não havia nada. Cada uma fabricava o que tinha de fabricar a partir do nada. Com a chave.
— Vem — disse carinhosamente Paikan.
De mãos dadas, eles se aproximaram da entrada do parqueamento, que estava barrada por
três filas de guardas verdes. Em cada rua que terminava no ponto circular, uma fila tripla
avançava, empurrando diante dela multidões irritadas, e cada vez mais densas. Paikan afundou
sua mão na arma, tirou-a da cintura, virou-se para a entrada o parqueamento e ergueu o braço.
— Não! — disse Eléa. — Eles têm granadas.
Cada guarda tinha na cintura uma granada S, transparente, frágil, cheia de um líquido
verde. Era suficiente uma só para que toda a multidão ficasse adormecida imediatamente.
Eléa trazia em feitio de colar a máscara que já lhe havia servido na universidade e nas
profundezas da piscina, mas Paikan não tinha.
— Posso ficar dois minutos sem respirar — disse Paikan. — Ponha a máscara, no
momento em que eu atirar, corra.
Um retrato de Eléa iluminou-se bruscamente no meio da árvore vermelha a voz de Coban
elevou-se:
— Vocês não poderão deixar a cidade. Todas as saídas estão guardadas, Eléa onde você
estiver você me ouve. Assinale sua presença com a chave. Paikan, pense nela e não em você.
Comigo é a vida, com você é a morte!
— Atire! — gritou Eléa.
Ele respirou fundo e atirou a meia potência.
Os guardas caíram. Granadas se quebraram. Uma brisa verde encheu de um só golpe o
ponto circular até em cima. A multidão dobrou o joelho, foi escorregando, ficou deitada.
De cima das folhas das doze árvores, dezenas de milhares de pássaros caíram como flocos
de todas as cores velados pela bruma, Paikan já estava puxando Eléa, correndo para o
parqueamento. Corria, saltava corpos estendidos, e substituía pouco a pouco o ar que lhe
enchia os pulmões. Tropeçou contra um joelho erguido. Deu um ai e respirou sem querer.
Adormeceu como uma pedra e, ainda no impulso da corrida, caiu de cabeça sobre uma
barriga deitada. Eléa o virou, segurou-o por baixo dos braços e começou a puxar.
— Não conseguirá nunca sozinha! — disse uma voz anasalada.
Perto dela estava o sem-chave, seu rosto escondido por uma máscara de odeio antigo,
remendada e presa de qualquer maneira. Abaixou-se e segurou os pés de Paikan.
— Por aqui — falou ele.
Conduziu Eléa e seu fardo em direção ao muro, num canto entre dois troncos retorcidos.
Pousou Paikan e olhou ao redor. Não havia nenhum ser vivo diante da porta.
Tirou do seu saco um pedaço de ferro, enfiou-o no buraco do muro, virou e empurrou. O
pedaço de muro entre os dois troncos abriu-se como uma porta.
— Depressa! depressa!...
Um aparelho da universidade estava descendo à entrada do parqueamento. Eles ergueram
Paikan e entraram dentro daquele buraco negro
O despertar era tão brusco quanto a queda no sono. Logo que ficou longe da influência da
bruma verde, Paikan abriu os olhos e viu o rosto de Eléa. Ela estava ajoelhada ao seu lado,
segurava sua mão direita entre suas duas mãos, e o olhava angustiada. Vendo-o despertar,
suspirou de alegria, deu-lhe um sorriso, abandonou suas mãos e afastou-se para que ele
pudesse olhar ao redor.
Ele olhou e só viu cinzento. Paredes cinzas, chão cinza, abóbada cinza. E diante dele a
escadaria cinza. Bastante larga para deixar passar uma multidão, subia, deserta, vazia, nua,
interminavelmente, dentro do cinza e do silêncio e nele desaparecia.
A esquerda, uma outra escadaria tão larga e vazia descia virando no cinza que a absorvia.
Alguns lances mais estreitos de corredores em rampa cruzavam as paredes em todas as
direções, para baixo e para cima. Uma camada de poeira cinzenta cobria, uniformemente, as
paredes, o solo e os arcos.
— A escadaria! — disse Paikan. — Tinha me esquecido.
— Todos a esqueceram — acrescentou o sem-chave.
Paikan levantou-se e olhou o homem. Ele também era cinzento. Suas roupas e seus cabelos
eram cinzentos, sua pele de um rosa acinzentado.
— Foi você que me trouxe aqui?
— Sim, com ela... É ela que estão procurando, não é? Ele falava a meia voz, sem timbre,
sem entonação.
— Sim, sou eu — disse Eléa.
— Eles não pensarão logo na escadaria. Ninguém a utiliza há muito tempo. As portas
foram condenadas e camufladas. E eles terão trabalho para encontrá-las.
Três homens cinzentos surgiram silenciosos num corredor inclinado. Vendo o grupo,
pararam alguns instantes, se aproximaram, olharam Eléa e Paikan, e partiram novamente sem
dizer uma palavra pelos degraus principais para cima. Era um pouco de cinza se movendo no
cinza imóvel. Tornavam-se cada vez menos visíveis, cada vez menores em direção ao alto,
cinza sobre cinza, indiscerníveis. De repente foi possível adivinhá-los porque um deles em
vez de continuar em frente, deu um passo para o lado. Um ponto cinza que mexia sobre cinza
depois mais nada que o cinza que não se mexia. Seus pés sobre os degraus haviam esmagado a
poeira sem deslocá-la. Ela se reagrupava lentamente atrás deles, apagando o vestígio dos seus
passos, de sua passagem, de sua vida. A poeira não era pulverulenta e sim como um feltro,
compacta, solidária. Uma espécie de tapete arejado, frágil e estável, era o forro deste lado do
avesso do mundo.
— Se você quiser subir até a superfície — disse o homem com sua voz que era apenas
suficientemente forte para que o ouvissem — tem trinta mil degraus. Será necessário um dia ou
dois.
Paikan respondeu abafando instintivamente sua voz. O silêncio era como um mata-borrão
no qual tinham medo de ouvir as palavras se enfiarem e desaparecerem.
— O que nós queremos é chegar ao parqueamento.
— O da Quinta Profundidade está cheio de guardas. Seria necessário subir ou descer uma
profundidade. Descer será mais fácil.
O sem-chave mergulhou a mão no bolso, tirou algumas esférulas de alimento e lhes deu.
Enquanto as deixava desmanchar na boca, ele enxugou com as costas da mão a poeira de uma
espécie de cilindro que corria à altura de um homem ao longo da parede, e aí enfiou duas
vezes uma lâmina. Um duplo jato de água começou a correr.
Eléa, a boca aberta, jogou-se sobre a fina coluna transparente. Engasgou-se, tossiu,
espirrou, riu de felicidade. Paikan bebia com suas mãos em concha. Tinham apenas acabado
de matar a sede quando o jato duplo secou: o conduto de água havia reparado seu defeito.
— Vocês beberão novamente mais longe — disse o homem. — Apressemo-nos, são
trezentos degraus para descer a fim de atingir a Sexta Profundidade.
Tomou uma escada à direita. Os dois o seguiram. Ele quase corria sobre os degraus, com
uma segurança nascida na longa frequência da escada e da sua roupa de poeira.
Atravessou um estreito patamar, pegou uma escada perpendicular, depois uma outra, outra,
outra. Depois à esquerda, à direita, bifurcava, ziguezagueava, sem hesitação, descendo de
andar em andar, sempre mais baixo. De mãos dadas, Eléa e Paikan desciam atrás dele,
enfiando-se pela espessura cinza. Às vezes encontravam, cruzavam ou ultrapassavam outros
sem-chave silenciosos, que caminhavam sem pressa, sozinhos ou em grupos pequenos. O
complexo da escadaria era seu universo. Esse corpo abandonado, esvaziado, esse esqueleto
oco, vivia da presença furtiva deles. Haviam feito aberturas clandestinas e reaberto portas
desconhecidas no subsolo: aqueles homens viviam no mundo do barulho e da cor, o tempo
necessário para encontrar o indispensável pela mendicidade ou pelo roubo. Depois voltavam
a penetrar no interior cinzento do qual eles haviam pouco a pouco assimilado a cor. A poeira
do chão engolia o barulho dos passos, a dos muros o barulho das palavras. O silêncio que os
cercava penetrava neles e os fazia calar.
Atordoados, correndo, saltando degraus, Eléa e Paikan seguiam seu guia que se afundava
cada vez mais. O homem lhes explicava tudo, em algumas palavras, pedaços de frases, apenas
falados, quase segredados. Falava da fome quando as pessoas-da-cor não queriam dar. Então
ficavam reduzidos a comer os pássaros-redondos. Mostrou um diante deles que se escondeu.
Era gordo como uma mão fechada, cinzento e não tinha asas. Para atravessar um patamar
corria a toda pressa sobre suas pernas magras. Chegado ao alto dos degraus, atirou-se,
escondeu a cabeça e as patas sob as plumas, e rolou, caindo como uma bola até embaixo.
Viram muitos outros que bicavam o chão e arrancavam com a ponta do bico alguns vermes
cinzentos que habitavam a galeria dentro da camada de poeira e se alimentavam dela.
Eléa conservava suas forças e seu fôlego, mas Paikan teve que parar. Descansaram alguns
instantes, sentados embaixo de um lance de degraus. Num canto do patamar, brilhava uma
pequena chama. Três silenciosos agachados assavam pássaros-redondos, que seguravam pelas
patas acima de um fogo de poeira. O cheiro horrível da carne assada chegou até eles e Paikan
ficou de coração apertado.
— Continuemos — disse ele.
No momento em que se levantava, o barulho de dois golpes ressoou numa das paredes. Os
três silenciosos fugiram levando suas presas meio cruas. Um fragmento do muro voou em
pedaços.
— Rápido! — disse o sem-chave. — Eles a encontraram! É uma antiga porta!...
Empurrou-os na sua frente, para cima. Voltaram a subir o lance de degraus quatro a quatro.
No patamar, um pedaço do muro desmanchou-se, e os guardas verdes entraram.
Os três fugitivos corriam a toda velocidade por um corredor em rampa, enxotando um
bando de pássaros-redondos que rolavam e que para aumentar sua velocidade botavam as
patas para fora e se atiravam de novo, cada vez mais rápido, sem um pio de medo, redondos,
rolantes, silenciosos e cinzentos.
Do fundo do corredor, diante deles, ergueu-se a voz de Coban. Estava abafada,
desencarnada pelos feltros da poeira, parecia próxima e vir, extenuada, do fim do mundo.
— Escute, Eléa, sabemos onde você está. Você vai se perder. Não se mexa. Iremos
encontrá-la. Não se mexa. O tempo urge...
A marcha surda dos guardas vinha da frente deles, por trás deles, acima deles. O sem-
chave parou.
— Eles estão em todos os lados — falou. Paikan enfiou a mão na sua arma.
— Espere! — disse o homem.
Ajoelhou-se, fez um buraco com as mãos no tapete de poeira, colou seu ouvido ao solo e
escutou. Ergue-se com um salto.
— Sim, atire aí!
Veio refugiar-se atrás de Paikan e mostrou o solo desnudo. Paikan atirou, o solo tremeu.
Nuvens de poeira voaram pelo corredor.
— Mais forte!
Paikan atirou de novo. O solo se abriu gemendo.
— Saltem!
O sem-chave deu o exemplo e saltou no abismo de onde se ouvia um barulho de rio.
Eles saltaram atrás, caíram na água amarga e morna. Uma corrente forte os levou. Eléa
voltou à superfície e procurou Paikan. A água era ligeiramente fosforescente, mais brilhante
nos redemoinhos e nos turbilhões. Viu o rosto de Paikan que saía da água. Seus cabelos
brilhavam com uma luz verde. Ele lhe sorriu e estendeu-lhe a mão. O teto em rampa afundava-
se na corrente, que corria como por um sifão. No centro do turbilhão apareceu uma bola
brilhante: a cabeça do sem-chave. Ele ergueu a mão, fez sinal de que mergulhava, e
desapareceu. Eléa e Paikan começaram a rodar sobre si mesmos e foram aspirados pela
profundidade. Mão na mão, pernas largadas, sem peso, afundavam-se na enorme espessura de
um músculo de água palpitante e morno. Caíam a uma velocidade fantástica, giravam
estendidos em volta de suas mãos unidas, faziam viradas que os jogavam contra as paredes
forradas por milhares de pequenas raízes, emergiam no cimo de uma curva, respiravam,
aspirados, carregados, sempre mais para baixo. A água tinha gosto de podridão e de sais
químicos. Era o grande lago corrente, oriundo do lago da Primeira Profundidade. À saída do
lago, ele atravessava uma máquina imóvel, que lhe acrescentava os alimentos reclamados
pelas plantas. Descia em seguida de andar em andar, nas paredes e nos solos e banhava as
raízes de todas as vegetações enterradas.
A queda vertical terminou por uma curva larga e uma subida que os atirou no meio de um
gêiser de bolhas fosforescentes. Encontraram ar na superfície de um lago que corria
lentamente para um pórtico sombrio. Uma quantidade de colunas retorcidas, umas largas como
dez homens, outras finas como um punho de mulher, desciam do teto e se enfiavam na água
onde se ramificavam e desabrochavam. Era um polvo brilhante de raízes.
Sobre uma delas, tortuosa, estava o sem-chave. Gritou-lhes:
— Subam! Rápido!
Eléa ergueu-se até a altura de um tronco quase horizontal e puxou Paikan sobre quem o
cansaço pesava. A água brilhava e corria sobre as longas serpentes vegetais com um barulho
de carícia. Do pórtico sombrio vinha de tempos em tempos o barulho surdo de redemoinhos
mais fortes. Uma claridade pálida subia da água, corria pelas raízes, fria, viscosa, verde. De
todas as partes do lago pontas redondas luminosas, de um rosa vivo corriam em direção ao
redemoinho deixado pelos três fugitivos. Formou-se pouco depois abaixo deles uma ebulição
frenética de claridade rósea. De tempos em tempos, algumas dessas gotas vivas saltavam para
fora da água, como faíscas, tentando colar-se às pernas nuas que pendiam para fora do seu
alcance. Eram peixes minúsculos, quase cortados em dois por sua boca aberta.
— Os peixes-amargos — disse o sem-chave. — Se eles lhe mordem, comem tudo, até os
ossos.
Eléa estremeceu.
— Mas normalmente, o que é que eles comem?
— Raízes mortas, e todos os restos que a corrente traz. São limpadores, quando não há
mais nada, se comem entre si.
Virou-se para Paikan, bateu no teto que se encostava na sua cabeça, e disse: —
Parqueamento!...
As raízes que mergulhavam no lago eram as da floresta do parqueamento da Sexta
Profundidade.
Paikan ergueu sua arma, e atirou entre duas raízes. Uma parte do teto caiu. Pela brecha,
uma árvore gigante desceu lentamente. Seus galhos seguravam um aparelho no qual se
agitavam duas silhuetas claras. Ele caiu no lago, e a árvore inclinada afundou-se e o manteve
embaixo da água. Era um barco de intervenção da polícia do conselho, ocupado por dois
guardas brancos. Num relâmpago cor-de-rosa os milhões de peixes lenticulares caíram sobre
eles e os atacaram pela parte descoberta de seu rosto, entraram pelos olhos para dentro das
suas cabeças e, pelo nariz, para o peito e para o ventre. O aparelho encheu-se de água
vermelha.
Seguidos pelo sem-chave, Eléa e Paikan subiram pelas raízes e galhos, e tomaram pé no
solo do parqueamento. Os estudantes aí lutavam uma batalha sem esperança com os guardas
brancos. Tinham encontrado, num engenho cargueiro bloqueado pela guerra, barras e bolas de
ouro que deviam servir para edificar sobre a Lua máquinas e móveis.
Bombardeavam os policiais e corriam escondendo-se atrás das árvores e dos aparelhos.
Eram armas irrisórias. Às vezes uma delas atingia o alvo e quebrava um crânio num
lampejo de ouro. Mas a maior parte não atingia o alvo.
As filas de policiais avançavam entre as árvores como serpentes brancas e atiravam.
Colhiam os estudantes em plena corrida e os jogavam, deslocados, contra os troncos ou
nas folhagens. Os galhos estalavam e caíam. Aparelhos ficavam despedaçados. Todos os
pássaros do parqueamento haviam abandonado a floresta e voavam sobre a abóbada em
círculo aloucado, acompanhado de pios de pavor. Apresentaram a imagem do conselheiro
militar, de cabelos negros trançados, que anunciava a recusa do governo enisor em enviar um
ministro a Lamoss. Convocava todos os seres de Gondawa para se apresentarem ao seu posto
de mobilização. A imagem sinistrado homem magro apagou-se, reapareceu um pouco mais
longe, recomeçou seu anúncio.
Acima da entrada das doze ruas, uma imagem de Eléa girava. Um quarto para a esquerda,
um quarto para a direita, à esquerda, à direita...
— A universidade procura esta mulher, Eléa 3-19-07-91. Vocês a reconhecerão por causa
de seus olhos. Nós a procuramos para salvá-la. Eléa, assinale sua presença com sua chave...
Na extremidade de uma pista, perto da torre de voo, uma pequena multidão havia
bloqueado um aparelho de forma oblonga, inusitado em Gondawa. Um cidadão de Lamoss,
que o ocupava, dele foi arrancado violentamente. Gritava que não era um enisor, que não era
um espião, que não era um inimigo. Mas a multidão não compreendia a língua lamoss. Via as
roupas diferentes, cabelos curtos, o rosto claro, e gritava: "Espião!" "Morte!"
Começaram a bater. Os estudantes voaram em socorro do homem. Os guardas brancos os
seguiram. O lamoss estava machucado, rasgado, em frangalhos, completamente amassado
pelos pés da multidão enraivecida. Os estudantes furiosos berravam contra o horror e contra a
bobagem. A multidão louca gritou: "Estudantes! Espiões! Vendidos! Morte!" A multidão em
fúria rasgou as roupas dos estudantes, arrancou-lhes os cabelos, as orelhas, os seios, os sexos.
Os guardas-brancos atiraram, limparam todo o local, todo o canto, todo mundo.
O sem-chave deu um sorriso triste, fez um gesto de amizade aos seus dois companheiros, e
afastou-se em direção das doze ruas. Eléa e Paikan apressaram-se para o lado de uma região
mais calma do parqueamento. A segunda fila de aparelhos de longa distância estava quase
deserta, em calma. Um desses aparelhos que acabara de descer procurava vaga. Parou,
pousou, a porta abriu, um homem apareceu. No momento de descer, estancou, surpreso, para
escutar os gritos de violência e o choque surdo das armas.
As árvores o impedi de ver, mas o tumulto chegava até ele. Saltou em terra.
— O que é que está acontecendo? — perguntou a Paikan.
Este, como resposta, ergueu para ele sua mão esquerda enluvada da arma branca, e com a
mão direita arrancou-lhe a arma e jogou-a longe.
— Suba outra vez! Rápido!
Compreendendo cada vez menos, o homem obedeceu. Paikan o fez sentar, legou-lhe a mão
e enfiou sua placa na chapa elástica...
Espera interminável num instante de silêncio. Depois, bruscamente, o mostrador palpitou.
Paikan deu um profundo suspiro e com sua mão direita fechou a boca do homem.
— Destino? — perguntou o emissor.
— Lamoss, primeiro parque.
— Houve um pequeno ronronar seguido de um estalo.
— Crédito suficiente. Destino registrado. Retire sua chave... Partida... Paikan arrancou o
homem de sua cadeira e jogou-o para fora, enquanto lhe gritava seus agradecimentos e suas
desculpas. No mesmo momento a porta fechava-se, o aparelho decolava, girava sobre si
mesmo e ganhava a pista. Pegou a da rampa de saída.
O emissor de bordo falou:
— A universidade procura Eléa 3-19-07-91. Eléa, assinale-se com sua chave...
9
A TORRE DE PARTIDA comandou o engenho que decolou em direção ao alto. Saiu da
boca e subiu na noite exterior.
Depois que viviam na superfície, Eléa e Paikan tinham perdido o hábito da luz
perpetuamente acesa nas vilas enterradas. Era dia quando deixaram o parqueamento.
Pensavam encontrar dia no exterior. Mas a Terra e o Sol tinham continuado seu curso, e a
noite tinha chegado com sua multidão de estrelas. Eles se deitaram lado a lado sobre o leito da
nave, e, de mãos dadas, sem dizer uma palavra, se deixaram invadir pela doçura e pelo
silêncio infinitos. Subiam na noite e na paz em direção ao céu estrelado, esqueciam a Terra e
seus horrores absurdos. Estavam juntos, estavam bem, cada instante de felicidade era uma
eternidade.
Colocaram na cabeça os círculos de ouro com os quais estava munido o leito, e os dois
abaixaram a placa frontal. Tinham adquirido de tal maneira o hábito de se comunicar assim,
que cada um podia receber do outro o conteúdo da sua memória, ao mesmo tempo que, sem ter
necessidade de pensar, contava-lhe o que continha a sua. A troca se efetuava numa velocidade
instantânea. Eles colocavam o círculo, fechavam os olhos, abaixavam a placa, e logo havia
uma só memória, um só passado. Cada um se lembrava das recordações do outro como se
fossem suas. Não eram mais dois seres que creem se conhecer e se enganam, mas um só ser,
sem sombra de dúvida, solidários e sólidos diante do mundo.
Assim Paikan soube tudo do projeto do Abrigo, e de cada instante vivido por Eléa entre o
momento em que se haviam separado e o que ela o havia reencontrado. Assim conheceu ele a
maneira pela qual ela havia recuperado sua liberdade. Sabendo-o por ela mesma, ele sofreu
por ela sem recriminação e sem ciúme. Não havia entre eles lugar para sentimento dessa
ordem, pois cada um, conhecendo tudo do outro, o compreendia completamente.
Tiraram ao mesmo tempo seus círculos de ouro e se sorriram, numa união total, numa
felicidade perfeita por estarem juntos. Eram um único ser e eram dois para dividir e
multiplicar suas alegrias. Como duas mãos do mesmo corpo que acariciam o mesmo objeto,
como dois olhos que dão ao mundo sua profundidade.
O emissário de bordo falou.
— Atingimos o nível 17. Vamos começar o voo horizontal em direção a Lamoss.
Velocidade autorizada: 9 a 17. Que velocidade desejam?
— A máxima — respondeu Paikan.
— Máxima, velocidade 17, registrada. Atenção à aceleração!
Apesar do aviso, o deslocamento horizontal pressionou Eléa contra o alto, e rolou Paikan
por baixo dela. Ela começou a rir, tomou nas suas mãos os longos cabelos louros ainda
úmidos, mordiscou-lhe o nariz, as faces, os lábios.
Não pensavam mais nas suas provas, nas ameaças, nem na guerra. Voavam para um porto
de paz. Talvez momentânea, precária, ilusória, e onde múltiplos problemas se colocariam em
todo o caso diante deles. Mas essas precauções eram para amanhã e não para agora. Viver
antecipadamente as infelicidades é sofrê-las duas vezes. O momento presente era momento de
alegria, era preciso não envenená-lo.
Aquele momento de paz foi cortado bruscamente por um grito de alerta no emissor.
Gelados, se endireitaram. Um sinal vermelho piscava na placa de comando.
— Alerta geral — disse o emissor. — Todos os voos estão cancelados. Voltareis ao
parqueamento pelo caminho mais curto. Deveis ir imediatamente aos vossos locais de
mobilização.
O aparelho virou-se e começou uma descida vertiginosa oblíqua. No solo, através da
carlinga transparente, viam um balé louco de casas de repouso se aproximando a uma
velocidade que aumentava cada vez mais, e o funil da Boca aspirar as bolas luminosas que
giravam em cima dela esperando sua vez.
O aparelho diminuiu e veio tomar seu lugar na roda. Todos os aparelhos na superfície
tinham recebido ordem de voltar. Casas ou engenhos, eles eram milhares a girar em cima da
Boca que aspirava os mais próximos em plena abertura. Sua roda cobria todo o lago e a
floresta.
— Está nos levando de volta para a cidade! Para a armadilha! — gritou Eléa. — É preciso
saltar!
Estavam quase sobrevoando o lago em velocidade reduzida, a uma altura razoável para um
salto. Mas as portas ficavam bloqueadas durante o voo. Logo, deixaram o lago e sobrevoaram
a massa compacta das árvores. Paikan atirou na placa de comando. O aparelho curvou-se e
começou a subir, descer, subir oscilando, perdendo cada vez mais altitude, como uma folha de
outono que cai. Passou rasante sobre o cimo da floresta, subiu mais um pouco, desceu e atingiu
o cimo de um tronco gigante coroado de folhas de palmeiras. Ficou plantado aí como uma
maçã num lápis.
Estavam deitados lado a lado à beira do lago, sobre a grama que descia direção à areia. A
mão de Eléa estava na mão de Paikan. Seus grandes olhos abertos olhavam a noite limpa. A
Boca havia absorvido os últimos retardatários. o céu não oferecia nada além de suas estrelas.
Não viam outra coisa senão elas, prosseguiam no meio delas, na imensa paz indiferente dos
pássaros, sua viagem de esperança interrompida.
Diante deles, ao nível do lago, a lua se erguia em seu último quarto. Estava inchada, como
se estivesse envolta em algodão, deformada, avermelhada. Fulgurações vermelhas iluminavam
sem cessar sua parte sombria. Ela brilhava às vezes inteira num rápido esplendor semelhante
ao do sol. Era a imagem silenciosa da destruição do mundo, proposta aos homens pelos
homens. Aqui mesmo, antes do fim da noite...
Sem se mexerem muito, sem se olhar, enlaçaram os dedos e colaram suas palmas uma
contra outra, bem apertadas.
Atrás deles, na floresta, um cavalo relinchou suavemente como para se queixar. Um
pássaro perturbado no seu sono, pipilou e voltou a dormir. Um pouco de vento ligeiro passou
pelos seus rostos.
Poderíamos partir a cavalo... — murmurou Paikan.
— Ir para onde? - sussurrou Eléa. — Nada mais é possível... Está acabado... Ela sorriu
dentro da noite. Ela estava com ele. Acontecesse o que acontecesse, aconteceria a ele com ela,
e a ela com ele.
Houve um relincho mais próximo, e o barulho abafado das patas do cavalo sobre a erva.
Levantaram-se. O cavalo, branco de lua, veio até eles, parou e sacudiu a cabeça.
Ela enfiou sua mão nos longos pelos e o sentiu tremer.
— Está com medo — disse ela.
— Ele tem razão...
Ela viu a silhueta de seu braço estendido fazer a volta do horizonte. Em todas as direções,
a noite se iluminava de breves claridades, como tempestades distantes.
— A batalha... Gonda-17... Gondawa-41... Enawa... Zenawa... Eles desembarcaram por
todos os lados...
Um ribombar surdo começava a seguir os clarões. Era ininterrupto, provinha de todo o
círculo em redor, do qual eles eram o centro. Tornava o solo sensível sob seus pés.
O ruído acordou os bichos da floresta. Os pássaros voavam, aflitos, aflitos por ainda
encontrar a noite, tentavam voltar para seus ninhos, se chocavam nos galhos e nas folhas.
As corças saíram do bosque e vieram se juntar ao redor do casal humano. Veio também um
cavalo azul, invisível na noite, e os pequenos ursos lentos das árvores com seus coletes
claros, e os coelhos negros de orelhas curtas, cuja cauda branca remexia-se no solo.
— Antes do fim da noite — disse Paikan — não restará mais nada de vivo aqui, nem um
bicho, nem um talo de grama. E aqueles que se creem protegidos lá em baixo, têm somente
uma prorrogação de alguns dias, talvez de algumas horas... Quero que você vá para o abrigo...
Quero que você viva!...
— Viver? Sem você?...
Apoiou-se contra ele e levantou a cabeça. Ele via a noite dos seus olhos refletir as
estrelas.
— Não ficarei sozinha no abrigo. Tem Coban. Você já pensou? Ele sacudiu a cabeça como
para recusar esta imagem.
— Quando acordarmos, deverei lhe dar filhos. Eu que ainda não tive filhos de você...
Eu que esperava... este homem dentro de mim, sem cessar, para me semear filhos, você
não se incomoda?
Ele apertou-a bruscamente contra si, depois reagiu, fez um esforço para ficar calmo.
— Estarei morto... há muito tempo... depois desta noite...
Uma voz imensa e descarnada saiu da floresta. Os pássaros fugiram, chocando-se no seu
voo com todos os obstáculos da noite. Todos os emissores da floresta falavam a voz de
Coban. Ela se misturava e se superpunha a ela mesma, vibrava e ecoava sobre a superfície das
águas. O cavalo azul levantou a cabeça para o céu e soltou um relincho agudo.
— Eléa, Eléa, escute Eléa... Sei que você está no exterior... está em perigo... o exército
invasor desce sem parar... breve ocupará toda a superfície... assinale-se para um elevador
com sua chave... nós iremos buscá-la onde você estiver... não demore mais... Escute Paikan,
pense nela!... Eléa, Eléa, este é o meu último apelo. Antes do fim da noite, o abrigo será
fechado, com ou sem você.
Depois foi o silêncio.
— Eu sou de Paikan — disse Eléa numa voz baixa e grave. Pendurou-se no seu pescoço.
Ele passou seus braços à Volta dela, ergueu-a e deitou-a sobre a coberta macia de grama,
entre os bichos, que se afastaram e fizeram um círculo ao redor deles. Chegavam outros
vindos da floresta, todos os cavalos brancos, cavalos azuis e os cavalos negros, menores, que
não se viam nem mesmo sob a luz da lua. E lentas tartarugas saíam da água para os encontrar.
A claridade dos horizontes palpitava à volta deles até as extremidades do mundo. Estavam
sozinhos no meio de uma praça viva, fortificada pelos bichos que os protegiam e os
confortavam. Ele passou a mão por baixo da faixa que cobria o peito de Eléa e fez florescer
um seio entre duas pregas da fazenda. Pousou sobre ele a palma arredondada da sua mão, e o
acariciou com um gemido de felicidade, de amor, de respeito, de admiração, de ternura, com
um reconhecimento infinito, para a vida que havia criado tanta beleza perfeita e a havia lhe
dado para que ele provasse e sentisse que ela era bela.
E agora, era a última vez.
Colou sobre o seio sua boca entreaberta e sentiu a ponta macia tornar-se dura entre seus
lábios.
— Eu sou sua... — murmurou Eléa.
Ele libertou o outro seio e o apertou carinhosamente, depois desfez a roupa dos quadris.
Sua mão correu ao longo das ancas, ao longo das coxas, e todas as descidas levavam ao
mesmo ponto, ao cimo da pequena floresta dourada, à nascente do vale fechado. Eléa resistia
ao desejo de se abrir. Era a última vez. Era preciso eternizar cada impaciência e cada entrega.
Ela se entreabriu o suficiente para deixar mão dele escorregar, procurar, encontrar, no cimo do
monte e do vale, na confluência de todas as rampas, protegido, escondido, coberto, ah!...
descoberto! O centro abrasador dos seus prazeres.
Ela gemeu e por sua vez colocou suas mãos sobre Paikan.
O horizonte estremeceu. Uma claridade verde ofuscou uma manada de cavalos brancos que
dançavam no local, assustados.
Eléa não via mais nada. Paikan via Eléa, olhava-a com seus olhos, com suas mãos, com
seus lábios, enchia a mente com sua carne e com sua beleza e com o prazer que a percorria,
fazia-a gemer, arrancava-lhe suspiros e gritos. Ela parou de acariciá-lo. Suas mãos sem forças
se desprenderam dele. Os olhos fechados, os braços pendidos, ela não pesava mais, não
pensava mais. Ela era o capim e o lago e o céu, ela era um rio e um sol de prazer. Mas não
eram ainda senão ondas antes da onda única, a grande estrada luminosa múltipla para o único
cimo, o maravilhoso caminho que ela nunca havia tão longamente percorrido, que ele
desenhava e redesenhava com suas mãos e com seus lábios sobre todos os tesouros que ela lhe
dava. Ele lastimava não ter mais mãos, mais lábios para lhe proporcionar no corpo todo mais
prazeres ao mesmo tempo. E no seu coração ele lhe agradecia por ser tão bela e tão feliz.
De repente o céu todo tornou-se vermelho. O rebanho vermelho dos cavalos partiu a
galope em direção à floresta.
Eléa queimava. Ofegante, impaciente, tomou entre suas mãos a cabeça de Paikan com seus
doces cabelos cor de trigo que ela não via, que ela não podia mais ver, aproximou-o de si, sua
boca sobre a boca dele, depois suas mãos desceram novamente e pegaram a árvore amada, a
árvore oferecida, aproximada e recusada e a conduziram para seu vale aberto até a alma.
Quando ele entrou, ela gemeu, morreu, derreteu-se, espalhou-se sobre os bosques, sobre o
lago, sobre a carne da terra. Mas ele, Paikan, estava nela, ele a chamava para si, com longos
apelos poderosos que a transportavam aos píncaros do mundo — Paikan — chamavam-na,
atraíam-na, congregavam-na, condensavam-na, apertavam-na até que o meio de seu ventre
transpassado de chamas — Paikan! — explodisse num gozo prodigioso, indizível, divino,
bem-amado, abrasante, até a extremidade da menor parcela do seu corpo, que a excedia. Seus
rostos calmos repousavam encostados um no outro. O de Eléa estava virado em direção ao céu
vermelho. O de Paikan banhava-se na erva fresca. Ele ainda não queria se retirar dela. Era a
última vez. Ele pesava sobre ela o necessário para tocá-la e senti-la ao longo de sua pele.
Quando ele a deixasse, seria para sempre. Não havia mais amanhã. Nada recomeçaria. Ele
quase se deixou levar pelo desespero, e começou a berrar contra a absurda, atroz e
insuportável separação. O pensamento da sua morte próxima o acalmou. Uma detonação
pesada fez estremecer o solo. Uma parte da floresta afundou-se de um só golpe. Paikan
levantou a cabeça e olhou, na claridade dançante, o rosto de Eléa.
Estava banhada por uma grande doçura, a grande paz que conhecem depois do amor as
mulheres que receberam e deram em toda a sua plenitude. Ela repousava sobre a grama o seu
corpo inteiramente relaxado. Apenas respirava. Estava mais além da vigia e do sonho.
Ela estava toda bem, e ele o sabia. Sem abrir os olhos perguntou muito carinhosamente: —
Você está me olhando?
Ele respondeu:
— Você é bela...
Lentamente a boca e os olhos fechados se transformaram num sorriso.
O céu palpitou e se fendeu. Num urro, uma nuvem de soldados enisores seminus, pintados
de vermelho, montados sobre seus carros de ferro, surgiu nas alturas da noite incandescente, e
correu obliquamente por cima do lago, em direção à Boca. De todas as chaminés, as armas de
defesa atiraram. O exército aéreo foi destroçado, dispersado, desmantelado, mandado de volta
para as estrelas em milhares de cadáveres desconjuntados que tombavam no lago e na floresta.
Os animais corriam em todas as direções, jogavam-se na água, saíam, rodavam ao redor do
casal gritando loucamente. Uma série de explosões terríveis ergueu a floresta incendiada e
atirou-a para todos os lados. Um galho em chamas caiu sobre uma corça que deu um salto
fantástico e mergulhou. Os cavalos em fogo galopavam e escoiceavam. Do céu um novo
exército descia gritando.
Paikan quis erguer Eléa. Ela o segurou. Abriu seus olhos. Olhou-o. Ela estava feliz.
— Vamos morrer juntos — disse ela.
Ele escorregou sua mão dentro da arma abandonada sobre a grama, levantou-se e
endireitou-se. Ela teve tempo de ver a arma apontada em sua direção. Gritou: — Você!
— Você vai viver — disse ele.
E atirou.
O que se seguiu, Eléa descobriu ao mesmo tempo que os sábios da EPI. A arma a havia
atingido mas os seus sentidos tinham continuado a receber impressões, e sua memória
inconsciente as registraram.
Seus ouvidos haviam ouvido, seus olhos entreabertos haviam visto, seu corpo havia
sentido Paikan arrumarem volta dela algumas roupas, tomá-la nos braços e andar em direção
ao elevador no meio daquele inferno desencadeado. Ele havia enfiado sua chave na placa, mas
o elevador não subia. Então ele gritou:
— Coban! Estou chamando! Sou Paikan! Estou lhe trazendo Eléa!... Houve um silêncio.
Ele gritou de novo o nome de Coban e o nome de Eléa. O sinal verde começou a palpitar
abaixo da porta e a voz de Coban ressoou embrulhada, cortada, às vezes abafada, às vezes
vibrante com o som de uma lâmina de aço.
— Tarde... bem tarde... inimigo... penetrou em Gonda-7... seu grupo de
elevadores... isolado... vou tentar... desça... estou enviando um grupo... atacar inimigo... ao seu
encontro... assinale-se... seu anel... todas as placas... repito... envio...
A cabina do elevador chegou e abriu-se.
O solo ergueu-se numa explosão assustadora, a parte de cima do elevador foi pulverizada,
Eléa arrancada dos braços de Paikan, um e outro erguidos, projetados, jogados por terra. Os
olhos de Eléa inconsciente viam o céu vermelho de onde descia sem cessar a nuvem dos
homens vermelhos. E seus ouvidos ouviam seus berros que enchiam a noite em chamas. Seu
corpo sentiu a presença de Paikan. Ele a havia encontrado. Ele a tocava. Seus olhos viram seu
rosto angustiado esconder o céu e inclinar-se sobre ela. Viram sua testa machucada, seus
cabelos louros manchados de sangue. Mas a sua consciência estava ausente e ela não sentiu
emoção nenhuma. Seus ouvidos ouviram sua voz lhe falar para tranquilizá-la.
— Eléa... Eléa... estou aqui... vou levá-la... ao... abrigo... você viverá... Ele a ergueu e a
colocou sobre os ombros.
O busto de Eléa pendia nas costas de Paikan, e seus olhos não viram mais nada. E sua
memória não registrou mais que barulhos, sensações difusas, profundas, que entram no corpo
por toda a superfície e espessura da sua carne, e que a consciência ignora.
Paikan lhe falava, e ela ouvia sua voz no meio das explosões e dos estalos da floresta que
queimava.
— Vou levá-la... Vou descer no elevador... Pela escada... Eu sou eu... Não tenha medo de
nada... Estou com você...
Na grande tela da sala do conselho não havia mais imagens precisas. Na mesa do pódio,
Eléa, os olhos fechados, a cabeça entre as mãos, deixava sua memória se entregar ao que ela
havia registrado. Os emissores estalavam com o barulho dos estrondos, das explosões, dos
gritos horríveis, dos desmoronamentos e tremores de terra. Sobre a tela, o circuito-imagem
mostrava os impulsos recebidos pelos desabamentos de cores gigantescas, quedas
intermináveis em direção ao abismo sulfuroso, das erupções de trevas. Era o retorno de um
mundo fracassado para o caos que precedeu todas as criações.
Depois foi uma sucessão de golpes surdos e abafados, cada vez mais próximos, cada vez
mais fortes.
Eléa ficou pouco à vontade, perturbada. Reabriu os olhos e arrancou o círculo de ouro.
A tela se apagou.
Os golpes surdos continuaram e, de repente, ouviu-se a voz de Lebeau: — Vocês estão
ouvindo? É o seu coração!
Ele falava diretamente da sala de reanimação, através de todos os transmissores.
— Conseguimos! Ele vive! Coban vive!
Hoover levantou-se de um salto, gritou "Bravos!" e pôs-se a aplaudir. Todo mundo o
imitou. Os velhos sábios e mesmo os mais jovens, os homens e também as poucas mulheres
entre eles, disfarçavam por meio de gestos e com grandes gritos e constrangimento que
sentiram ao se encontrarem reunidos a se olhar uns aos outros, depois de terem ouvido e visto
juntos sobre a tela as cenas as mais íntimas evocadas pela memória de Eléa. Fingiam não dar
importância nenhuma, serem calejados, considerá-las dentro de um puro espírito científico, ou
de diversão. Mas cada um estava profundamente perturbado no seu espírito e na sua carne. E,
encontrando-se de repente no mundo de hoje, não ousavam olhar seu vizinho que, por sua vez,
desviava os olhos. Tinham vergonha do seu pudor e vergonha da sua vergonha. A maravilhosa,
a total inocência de Eléa mostrava-lhe a que ponto a civilização cristã tinha — depois de São
Paulo e não depois de Cristo — pervertido ao condenar as alegrias mais belas que Deus dera
ao homem. Todos eles se sentiam, mesmo os mais jovens, semelhantes aos velhos lascivos,
impotentes e tarados. O coração de Coban, ao acordar, vinha poupá-los deste momento de
penoso embaraço coletivo, onde a metade dentre eles começava a enrubescer e a outra metade
a censurar.
O coração de Coban batia, parava, recomeçava, irregular, ameaçado. Os eletrodos de um
estimulador fixado no seu peito por meio de ataduras intervinham automaticamente quando a
parada se prolongava, e a surpresa de um choque elétrico fazia o coração recomeçar, num
sobressalto.
Os médicos ao redor da mesa de reanimação mostravam rostos preocupados.
De repente, o que eles temiam aconteceu. A respiração de Coban tornou-se difícil, e as
ataduras se mancharam de sangue no lugar da boca.
— Coagulante! Soro! Deite-o de lado. Libere a boca. Sonda bucal... Os pulmões
sangravam.
Sem cessar nem por um instante os atenciosos cuidados, acima do corpo que eles
desprendiam, libertavam, manipulavam, aliviavam, os reanimadores fizeram um conselho.
Se a hemorragia não cessava era porque as queimaduras do tecido pulmonar haviam sido
muito graves para cicatrizarem. Nesse caso, seria necessário fazer um transplante de pulmões.
Mas para isso havia as seguintes objeções:
Atraso para fazer virem os pulmões novos (três partes, por medida de segurança) do
Banco Internacional de Órgãos; chamada pelo rádio, embalagem, transporte de avião,
travessia Genebra-Sidney, transbordo, travessia Sidney - EPI: total, 20 horas.
— Não esqueçam as chatices militares... os papéis de alfândega...
— Não vão querer...
— Tudo é possível. Dobre o atraso.
— Quarenta horas.
Manter Coban vivo durante todo esse tempo. Necessidade de sangue para a transfusão.
Teste do sangue de Coban, imediatamente. Grupo e subgrupo vermelhos, grupo e subgrupos
brancos.
Um enfermeiro desamarrou-lhe a mão e sangrou a esquerda.
Mesmo problema para a operação: sangue, em quantidade. Prever o dobro.
Outro problema para a operação: uma equipe cirúrgica especialista em transplante de
órgãos.
Moissov: — Nós temos...
Forster: — Nós podemos...
Zabrec: — No meu país...
Lebeau: — Impossível. Muito arriscado. Nada de mãos novas aqui. Principalmente mãos
armadas de facas. Operaremos nós mesmos, em rede de televisão com as equipes francesa,
americana e do Cabo. Podemos fazê-lo. Pulmões, isto não é um diabo.
Pulmão artificial para nele ramificar os circuitos sanguíneos durante a operações.
Havia um na enfermaria.
Então por que não utilizar logo esse aparelho e deixar repousar os pulmões de Coban e
permitir-lhes cicatrizar?
— Eles não se cicatrizarão se não receberem sangue. Devem continuar a funcionar.
Ficarão bons ou não, é um jogo.
Resultados dos Testes Sanguíneos: Grupos e Subgrupos Desconhecidos. O sangue
testado (Coban) coagula todos os outros sangues.
Surpreendente!
É um sangue fóssil! Não esqueçam que este tipo é um fóssil! Vivo, porém fóssil! Há
novecentos mil anos, o sangue evoluiu, meus filhos.
Sem sangue, nada de operação. A situação está simplificada. Ou ele fica bom ou ele
morre.
— Tem a moça...
— Que moça?
— Eléa... seu sangue talvez servisse!
— Mas nunca o bastante para uma operação! Seria necessário sangrá-la sem saber quanto,
e isto não seria suficiente.
— Talvez. Ligando tudo, e muito rápido. Com o pulmão artificial no circuito logo em
seguida...
— Mas não vamos, por isso, assassinar esta moça!
— Ela suportaria... Vocês viram como ela se recupera...
— É sua alimentação...
— Ou o soro universal...
— Ou os dois...
Eu me oponho! Vocês sabem bem que ela não poderia refabricar seu sangue
suficientemente tão depressa. Estão pedindo que a sacrifiquemos. Eu me recuso a isso!
— Ela é bela, isto é verdade, mas diante do cérebro deste sujeito, ela não tem importância
nenhuma.
Bela ou não, esta não é a questão: ela está viva. Nós somos médicos. Não somos
vampiros.
— Mas pode-se de qualquer maneira testar seu sangue com o de Coban. Isto não nos
compromete em nada. Teremos sem dúvida necessidade de que ela nos dê um pouco, caso ele
continue a sangrar. Sem falar em operação.
— De acordo. Quanto a isso, estou de acordo, completamente de acordo.
No mesmo dia, Coban ressuscitado, Coban em perigo de morte, a equação de Zoran
explicada, ou para sempre perdida. As multidões as mais obtusas compreenderam que alguma
coisa de fabulosamente importante para elas estava em vias de ser jogada perto do Polo Sul,
no interior de um homem que a morte segurava pela mão.
— Tentem compreender o que se passa no interior deste homem. O tecido de seus pulmões
está queimado, em parte até destruído. Para que ele possa recomeçar a respirar novamente, a
sobreviver e viver, é preciso que o que resta desse tecido regenere o que não existe mais. Ele
ainda dorme. Começou a dormir a novecentos mil anos e continua. Mas a carne do seu corpo
está acordada e se defende. E se ele mesmo estivesse acordado isto não mudaria nada. Não é
ele quem comanda. Seu corpo não tem necessidade dele. As células do tecido pulmonar, as
maravilhosas pequenas usinas vivas, estão prestes a fabricar a toda pressa novas usinas que se
lhes assemelhem para substituir aquelas que o frio ou o fogo destruiu. Ao mesmo tempo, elas
fazem seu trabalho comum, múltiplo, incrivelmente complexo no domínio da química, física,
eletrônica, vitalidade. Recebem, escolhem, transformam, fabricam, destroem, seguram,
rejeitam, reservam, dosam, obedecem, ordenam, coordenam com uma segurança e uma
inteligência espantosa. Cada uma delas sabe mais que mil engenheiros, médicos e arquitetos.
São células comuns num corpo vivo.
Somos construídos por milhares delas, milhares de mistérios, milhares de complexos
microscópicos obstinadamente agarrados à sua tarefa fantasticamente complicada. Quem
comanda estas maravilhosas pequenas células? Será você, Vignont?
— Oh! Senhor...
— Não as de Coban, mas as suas? As do seu fígado? Será que é você que lhes ordena para
fazer o seu trabalho de fígado?
— Não, senhor.
— Então, quem comanda suas pequenas células? Quem lhes ordena a fazer o que elas
fazem? Quem as construiu como deveria para que elas pudessem fazê-lo? Quem colocou cada
uma no seu lugar, no seu fígado, no seu pequeno cérebro, na retina dos seus lindos olhos?
Quem? Responda, Vignont, responda!
— Eu não sei, senhor.
— Você não sabe?
— Não, senhor.
— Nem eu, Vignont. O que é que você sabe fora disso?
— Bem...
— Você não sabe nada, Vignont...
— Não, senhor.
— Diga: "Eu não sei nada".
— Eu não sei nada, senhor.
— Bravo! Olhem para ele, os outros, riem, caçoam, pensam saber alguma coisa. O que é
que eles sabem, Vignont?
— Não sei não senhor.
— Eles não sabem nada, Vignont. O que é isto que estou desenhando no quadro, você
reconhece?
— Sim, senhor.
— O que é? Diga.
— É a equação de Zoban, senhor.
—Escute só como riem, esses idiotas só porque você se enganou numa consoante. Você
acredita que eles saibam mais do que você? Pensa que eles sabem lê-la?
— Não, senhor.
— E no entanto eles estão orgulhosos, caçoam, se divertem; acreditam-se inteligentes e
tomam você por um idiota. Será que você é idiota, Vignont?
— Estou pouco me incomodando, senhor.
— Muito bem, Vignont, mas isso não é verdade. Você está inquieto. Você se diz: "Eu talvez
seja um idiota". Eu lhe asseguro: você não é idiota! Você é feito das mesmas pequenas células
que um homem cujos pulmões estão prestes a sangrar no ponto 612, exatamente as mesmas
com que era feito Zoran, o que encontrou a chave do campo universal. Milhares de pequenas
células supremamente inteligentes. Exatamente as mesmas que as minhas, Senhor Vignont, e as
minhas são agregadas de filosofia. Você vê bem que não é um idiota!
— Sim, senhor.
— Olhe, eis aí o idiota: Jules-Jacques Ardillon, primeiro em todas as matérias desde a
sexta classe, cabeça, grande! Pensa que sabe alguma coisa, julga-se inteligente. Você é
inteligente, Sr. Ardillon?
— Bem... eu...
— Sim... você pensa. Pensa que estou brincando e que na realidade acredito e sei que
você é inteligente. Não, Sr. Ardillon, creio e sei que você é um idiota. Será que você sabe ler
a equação de Zoran?
— Não, senhor.
— E se você soubesse, será que saberia o que ela significa?
— Penso que sim, senhor.
— Você pensa!... você pensa!... Que ideia! Você é um Ardillon-pensador! Você teria no
bolso a chave do universo, a chave do bem e do mal, a chave da vida e da morte. O que é que
você faria, Sr. Ardillon-pensador?
— Eu...
— Eis aí, Sr. Ardillon, eis aí...
— General, o senhor ouviu as notícias?
— Sim, Sr. Presidente.
— Este Co... como é mesmo?
— Coban.
— Coban, foi acordado.
— Eles o acordaram...
— Talvez consigam salvá-lo?
— Talvez...
— Estão loucos!
— Estão loucos...
— A equação desse troço, o senhor compreende alguma coisa?
— Eu, sabeis, as equações...
— Mesmo no C.N.R.S.*, eles não compreendem nada!
Centre National de Recherches Scientifiques. (N. do T.)
— Nada!...
— Mas é pior do que a bomba!
— Pior...
— E por outro lado, pode ser bom...
— Pode...
— Mas mesmo esse bom pode ser mau.
— Mau, muito mau...
— Pensai na China!
— Estou pensando.
— Colocai-vos no seu lugar!
— É um pouco grande...
— Fazei um esforço! O que pensaríeis?
— Vós pensaríeis: "São esses sem-vergonhas dos brancos que vão meter a mão nesse
negócio. No momento em que nós ousemos igualar, talvez ultrapassá-los, eles vão novamente
tomar mil anos adiante. Não pode ser. De maneira nenhuma". E eis aí o que pensaríeis se
fosseis a China.
— Evidentemente... acreditais que eles vão sabotar?
— Sabotar, raptar, atacar, massacrar, não sei de nada. Talvez não façam nada mesmo.
Como saber com os chineses?
— Como saber?
— Como! Como saber? É sua obrigação de saber! Vós dirigis os S.I.I Os S.I. são os
Serviços de Informação! Isso é um pouco esquecido! Vigiai a China, general! Vigiai a China!
É de lá que virá...
A força internacional aeronaval estacionada no Norte de Terra Adélia deslocou-se nas três
dimensões em forma de escudo, e ficou em estado de alerta permanente. Tinha dois olhos
virados para o ar e acima do ar, e ouvidos que iam até o fundo do oceano.
Quando os olhos de Eléa viram novamente, o Presidente Lokan estava de pé no centro da
imagem. À esquerda, na direção do olho esquerdo, estava Coban que olhava Lokan e o
escutava. E à direita, metade do rosto de Paikan inclinava-se para ela.
Lokan parecia afogado de cansaço e de pessimismo.
— Eles ocuparam todas as cidades do centro — dizia ele — e Gonda-7 até a 2ª
Profundidade... Nada consegue detê-los. Nós matamos, matamos, suas perdas são fantásticas,
mas seu número é incrível... eles chegam em ondas e mais ondas, sem cessar... agora todas as
suas forças convergem para Gonda-7 a fim de destruir o conselho e a universidade, e se
dirigem para a Arma Solar, na esperança de impedi-la de partir. Destruímos todas as avenidas
que conduzem à arma, mas eles abrem covas de todos os lados, aos milhares, cada um cava
seu pequeno túnel. Não posso acelerar o lançamento. Honestamente, não sei dizer se
conseguiremos pará-los por bastante tempo, ou se eles conseguirão chegar à arma antes que
esta tenha levantado voo.
— Eu o espero! — disse Coban. — Se devemos ser destruídos, ao menos que os outros
vivam! Quem somos nós para condenar à morte a Terra inteira?
— Você é pessimista, Coban, não será assim tão terrível...
— Será pior do que tudo o que possais imaginar, e vós bem o sabeis!...
— Já não sei mais, já não imagino mais, já não penso mais! Fiz tudo o que poderia fazer
sendo o responsável por Gondawa, e agora ninguém pode parar mais nada nem saber o que
fará parar ou não... Estou exausto...
— É o peso da Terra morta que vos esmigalha!
— É fácil, Coban! É fácil dizer as belas frases quando se está fora da ação... Preste
atenção, Coban, eles acabam de desembarcar um novo exército em Gonda. Vão nos atacar com
fúria, nada posso fazer por você, preciso de todas as forças de que disponho. Você tem sua
guarda...
— Ela está no combate — replicou Coban. — Nós os rechaçaremos.
— Adeus, Coban... eu...
Lokan desapareceu. Não era senão uma imagem.
Coban tornou-se o centro da visão e aproximou-se de Eléa. Fez sinal para alguém que ela
não via.
— Escute, Eléa, se você me entende, não tenha medo — disse ele. — Vamos fazê-la beber
um licor de paz, que adormecerá não somente o seu espírito, mas cada parcela de seu corpo, a
fim de que nem uma célula estremeça quando o frio a possuir.
— Estou perto de você — disse Paikan.
O corpo de Eléa sentiu que eles introduziam uma espécie de sonda macia na boca,
garganta, estômago e que aí faziam correr um líquido. Sua revolta foi tão grande que lhe
devolveu a consciência. Quis sentar-se e protestar. Mas de repente não sentiu mais
necessidade disso. Sentia-se bem. Tudo estava bem, maravilhosamente bem. Ela não tinha
mais nem vontade de falar. Não era necessário. Cada um devia compreendê-la como ela
compreendia a cada um e a todos.
— Você está bem? — perguntou Coban. Ela nem o olhou. Sabia que ele sabia.
— Você vai adormecer totalmente, muito suavemente. Não será um sono longo.
Mesmo se você dormir durante alguns séculos, não será mais longo que uma noite.
Uma noite, uma doce noite de sono, de repouso...
— Você entendeu? Nada mais que uma noite... e quando você acordar... estarei morto há
tanto tempo, que você não terá mais pena... estou com você... estou perto de você.
— Dispam-na e levem-na — ordenou Coban aos seus assistentes. Paikan rugiu.
— Não a toquem!
Inclinou-se para ela e tirou-lhe as faixas de roupa que ainda lhe restavam. Depois
espalhou sobre seu corpo um pouco de água morna, lavou-a docemente, com todos os
cuidados de uma mãe pelo seu recém-nascido. Ela sentiu sobre o corpo suas mãos amadas,
estava feliz, Paikan, sou sua, dormir...
Via a sala ao seu redor, estreita, de teto baixo, com uma parede convexa de ouro furada
por uma porta redonda. Ouvia o barulho da batalha que se aproximava na espessura da terra.
Tudo estava bem. A imagem sangrenta do chefe dos guardas apareceu.
Tinha perdido seu capacete e metade da pele da sua cabeça.
— Atravessaram a Terceira Profundidade... dirigem-se para o abrigo...
— Defendam o abrigo! Reúnam todas as forças em volta dele! Abandonem todo o resto!
O guarda verde-vermelho desapareceu. A terra tremia.
— Paikan, carregue-a. Venha comigo.
— Vem, Eléa, vem, eu lhe carrego, você está nos meus braços. Sou eu quem te carrego.
Você vai dormir. Estou com você.
Ela não queria dormir, ainda não, já não, tudo era tão bom ao redor dela, tudo era tão bom
nos braços de Paikan.
Nos seus braços, ela desceu uma escada de ouro e atravessou uma porta de ouro.
Ainda alguns degraus.
— Deite-se aqui, a cabeça na minha direção — disse Coban —, os braços sobre o peito.
Bem... Escute, Moissan, você me ouve?
— Ouço.
— Envie-me a imagem de Gonda-I. Quero ficar a par dos acontecimentos até o fim.
— Vou enviá-la.
A abóbada do abrigo tornou-se uma imensa planície. Do céu de fogo caíam guerreiros
vermelhos. Na sua multidão vertical o choque das armas de defesa abria lacunas enormes,
porém dos céus surgiam outras, outras e outras. Chegados ao solo eles eram atingidos pelos
fogos cruzados das armas enterradas. Os novos cadáveres iam se juntar à multidão dançante
dos mortos, sacudida sem cessar pelos choques das armas. Os que escapavam enfiavam-se
imediatamente no solo, agachados sobre seus assentos que lhes abria caminho.
O solo defendia-se, explodia, erguia-se em molhos, e projetava entre os restos da sua
própria carne seus agressores deslocados.
Eléa pensava que tudo isto estava bem. Tudo estava maravilhosamente bem... bem...
bem...
— Ela começa a dormir — disse Coban. — Vou-lhe colocar a máscara. Diga-lhe adeus.
Ela viu a planície se abrir de uma ponta a outra do horizonte, rejeitando para suas bordas
as quantidades de mortos e de vivos, com os rochedos e com a terra. Uma maravilhosa flor
gigantesca de metal e de vidro saiu da terra aberta e subiu para o céu. O exército que caía do
céu foi afastado e rejeitado como poeira. A flor fantástica subiu e desabrochou, abriu à volta
dela suas pétalas de todas as cores, desvendando seu centro, seu coração mais transparente
que a água mais clara. Encheu o céu, no qual ela continuava a subir e começava a virar
docemente, depois mais depressa, mais depressa, cada vez mais depressa... Estava
maravilhosamente bem, estou bem, vou dormir.
O rosto de Paikan tapou a flor e o céu. Ele a olhava. Ele era belo. Paikan. Não havia senão
ele. Sou de Paikan.
— Eléa... sou seu... você vai dormir... estou com você.
Ela fechou os olhos e sentiu a máscara pousar-se sobre o seu rosto. O bocal respiratório
pousou sobre seus lábios, afastou-os, entrou na sua boca. Ouviu ainda a voz de Paikan...
— Eu não a dou a você, Coban! Eu a trouxe mas eu não a dou! Ela não é sua! Ela nunca
será sua!... Eléa, minha vida, seja paciente... Nada mais que uma noite... estou com você...
para a eternidade.
Ela não ouviu mais nada. Não sentiu mais nada. Sua consciência estava submersa.
Seus sentidos se fecharam. Seu subconsciente desapareceu. Ela não era mais que uma
bruma luminosa, dourada, leve, sem forma e sem fronteiras. Que se apagou...
Eléa havia tirado o círculo de ouro. Seu busto erguido, encostado à cadeira, o olhar fixo
perdido no infinito, apesar do presente, silenciosa, imóvel como uma estátua de pedra,
oferecia um rosto de tal força trágico que ninguém ousava mexer, dizer uma palavra, romper
seu silêncio com um pigarro ou com um ranger de cadeira.
Foi Simon quem se levantou, colocou-se atrás dela, pousou suas mãos sobre seus ombros,
e disse carinhosamente:
— Eléa...
Ela não se mexeu. Ele repetiu:
— Eléa...
Sentiu os ombros dela tremerem sob suas mãos.
— Eléa, venha...
O calor da sua voz, o calor das suas mãos atravessaram as barreiras do horror.
— Descansar...
Ela levantou-se, virou-se para ele e olhou-o como se ele fosse o único ser vivo no meio de
mortos. Ele estendeu-lhe a mão. Ela olhou esta mão estendida, hesitou um instante, depois nela
colocou a sua. A mão de Paikan... uma mão... a única mão no mundo, o único socorro.
Simon fechou lentamente seus dedos ao redor da palma gelada pousada na sua.
Depois começou a andar e levou Eléa.
De mãos dadas, desceram do pódio, atravessaram juntos a sala, seu silêncio e seus
olhares. Henckel, sentado na última fila, ergueu-se e abriu-lhes a porta.
Do momento em que eles saíram, as vozes se ergueram, o zunzum encheu a sala,
discussões nasceram de todos os lados.
Cada um tinha reconhecido as últimas imagens da cena que havia sido transmitida a Simon
quando ele colocara o círculo receptor. E cada um adivinhava o que devia ter se passado em
seguida: Paikan saindo do abrigo, Coban bebendo o licor da paz, despindo-se e estendendo-se
no seu caixão, colocando sobre seu rosto a máscara de ouro, o abrigo se fechando, o motor do
frio começando a funcionar.
Durante aquele tempo, a Arma Solar, prosseguindo sua rota aérea, atingia os limites de
Enisorai e entrava em ação. Qual havia sido exatamente o seu efeito? Não se podia senão
conjeturar. "Como se o sol pousasse sobre Enisorai..." havia dito Coban. Sem dúvida um raio
dessa temperatura fantástica fundindo a terra e as pedras, liquidificando os montes e as
cidades, rasgando continentes até suas raízes, cortando-lhes pedaços, revirando e girando
como uma roda de ferro, e jogando tudo nas águas.
E o que Coban temera havia acontecido: o choque tinha sido tão violento que havia
repercutido sobre a massa terrestre. A Terra tinha perdido o equilíbrio da sua rotação e tinha
enlouquecido como um pião inclinado, antes de encontrar um novo equilíbrio sobre bases
diferentes. Suas mudanças de marcha tinham fendido a crosta, provocando em tudo sismos e
erupções, projetado fora das fossas oceânicas as águas inertes cuja massa fantástica havia
submergido e inundado as terras. Viam sem dúvida nesse acontecimento a origem do mito do
dilúvio que se encontra hoje na tradição de povos de todas as partes do mundo.
As águas se tinham retirado, mas não todas. Gondawa se encontrava colocada, pelo novo
equilíbrio da Terra, ao redor do novo Polo Sul. O gelo havia tomado e imobilizado as águas
dessa elevação súbita que sacudia o continente. E, sobre esse talude, os anos, os séculos, os
milênios haviam acumulado fantásticas espessuras de neve transformadas por sua vez em gelo
pelo seu próprio peso.
Isto, Coban não havia previsto. Seu abrigo devia se reabrir quando as circunstâncias
tivessem tornado a vida novamente possível na superfície. O motor do frio devia parar, a
máscara devia dar respiração e calor aos dois que jaziam ali, a perfuratriz abriria seu caminho
para o ar e para o sol. Mas as circunstâncias não tinham nunca se tornado favoráveis. O abrigo
tinha se tornado um grão perdido no fundo do frio, e que não teria jamais germinado sem o
acaso e a curiosidade dos exploradores. Hoover levantou-se.
— Proponho — disse ele — que rendamos homenagem, numa declaração solene, à
intuição, inteligência e obstinação dos nossos amigos das Expedições Polares Francesas que
souberam não somente interpretar os dados tão diferentes das suas sondas e tirar as
conclusões que vós sabeis, mas sacudir a indiferença e a inércia das nações até que elas se
juntassem e nos enviassem aqui!
A assembleia levantou-se e aprovou Hoover por aclamação.
— É preciso também — lembrou Leonova — render homenagem ao gênio de Coban e ao
seu pessimismo que, conjugado, fizeram-no construir um abrigo à prova da eternidade.
— O.K., minha boneca — replicou Hoover. — Mas ele foi muito pessimista. Foi Lokan
quem tinha razão. A arma solar não destruiu toda a vida terrestre. Visto que estamos aqui!
Houve sobreviventes vegetais, animais, e homens. Poucos sem dúvida, mas era o
suficiente para que tudo recomeçasse. As casas, as fábricas, os motores, a energia
engarrafada, toda a quinquilharia da qual eles viviam tinha sido destruída, fracassada. Os que
se salvaram caíram de bunda no chão! Nus! Eram quantos? Talvez algumas dezenas,
dispersadas pelos cinco continentes. Mais nus do que vermes porque não sabiam fazer nada!
Tinham mãos das quais não sabiam mais se servir! O que é que eu sei fazer com minhas mãos.
eu, Sr.
Hoover cabeça grande? A não ser acender o meu cigarro e dar uma palmada no traseiro
das moças? Nada! Zero. Se eu tivesse que pegar um coelho correndo para poder comer, vocês
vêm o quadro? O que é que eu faria se estivesse no lugar do sobrevivente? Mataria para
encher a barriga com insetos, frutas quando fosse a ocasião, animais mortos quando eu tivesse
a sorte de encontrá-los. E eis aí o que eles fizeram. Eis aí onde eles caíram! Mais baixo que
os primeiros homens que haviam começado tudo para eles, mais baixo do que as bestas. Sua
civilização desaparecida, eles se encontraram como caramujos dos quais um menino quebrou
e tirou a casca para ver como era feito por dentro. Ora, caramujos eles devem ter consumido
muitos, e isso não anda depressa. Espero que tenham encontrado muitos caramujos. Você gosta
de caramujos, boneca? Eles partiram novamente do degrau mais baixo da escada, e refizeram
toda a subida, recaíram no caminho, subiram mais ainda, e recaídos, obstinados e cabeçudos,
e nariz para cima, recomeçavam sempre a subir, e irão até em cima, mais alto ainda, nas
estrelas! E eis aí! Eles estão lá! Eles somos nós! Eles repovoaram o mundo, e são tão trouxas
quanto antes, e prontos a fazer explodir tudo de novo. Não é bonito, isto? É o homem!
Foi um grande dia de exaltação e de sol. Do lado de fora o vento no chão tinha caído na
sua velocidade mínima. Não era mais de que 120 por hora, com momentos de calmaria quase
total, inverossímeis, de uma doçura inesperada. Desencadeava suas fúrias muito alto no céu,
limpava-o da menor mancha de nuvem, do menor grão de poeira e de bruma, fazia-o brilhar de
um azul intenso, todo novo, alegre. E a neve e o gelo estavam quase tão azuis quanto ele. Na
Sala do Conselho, a assembleia fervia. Leonova havia proposto aos sábios prestarem um
juramento solene de consagrar sua vida a lutar contra a guerra e suas formas mais ferozes, a
besteira política e a besteira nacional.
— Abrace-me, pequena irmã vermelha! — aparteara Hoover — e acrescentemos a
besteira ideológica.
Ele a havia apertado de encontro ao seu ventre. Ela havia chorado. Os sábios, de pé,
braços estendidos, haviam jurado em todas as suas línguas e a tradutora havia multiplicado os
juramentos. Hoi-To pusera então os seus colegas ao corrente dos trabalhos de equipe da qual
ele fazia parte com Lukos, e que mostrava o relevo fotográfico dos textos gravados no muro do
abrigo. Tinha acabado o relevo de um texto reparado desde o primeiro dia do qual ela havia
encontrado e traduzido o título: Tratado das Leis Universais e que parecia ser a explicação da
equação de Zoran. Diante da sua importância, Lukos tinha se encarregado ele mesmo de
projetar os duzentos clichês fotográficos na tela analisadora da máquina tradutora.
Era uma notícia de uma importância extraordinária. Mesmo que Coban morresse, podia se
esperar compreender um dia o tratado e decifrar a equação.
Heath levantou-se e pediu a palavra.
— Sou inglês, e feliz por sê-lo. Penso que não seria um homem completo se não fosse
inglês.
Ouviram-se risos e apupos. Heath continuou sem sorrir:
— Alguns continentais pensam que consideramos todos aqueles que não nasceram na ilha
da Inglaterra como macacos apenas descidos de um coqueiro. Os que pensam assim exageram.
Ligeiramente...
Desta vez os risos dominaram.
— É por ser inglês, feliz por ter nascido na ilha da Inglaterra, que posso me permitir fazer-
lhes a seguinte proposta. Escrevamos nós também um tratado, ou melhor uma Declaração da
Lei Universal. A lei do homem universal. Sem demagogia, sem blá-blá como dizem os
franceses, sem palavras ambíguas, sem frases majestosas. Existe a declaração da ONU. Não
passa de uma solene merda. Ninguém liga. Não há um homem em cem mil que conheça sua
existência. Nossa declaração a nós deverá atingir ao coração de todos os homens vivos. Não
terá senão um parágrafo, talvez uma só frase. Será preciso procurar bem, para pôr o menor
número de palavras possível. Ela dirá simplesmente qualquer coisa assim: "Eu homem, sou
inglês ou patagônico, e feliz de sê-lo, mas sou antes de tudo um ser vivo, não quero matar nem
quero que me matem. Recuso a guerra, sejam quais forem as suas razões". É tudo.
Sentou-se e encheu seu cachimbo com tabaco holandês.
— Viva a Inglaterra! — gritou Hoover.
Os sábios riram, se abraçavam, davam-se palmadinhas nas costas. Evoli, físico italiano,
soluçava. Henckel, metodista alemão, propôs uma comissão encarregada de redigir o texto da
Declaração do Homem Universal. No momento em que as vozes começavam a propor nomes,
a de Lebeau surgiu em todos os emissores.
Anunciava que os pulmões de Coban tinham parado de sangrar. O homem estava muito
fraco e ainda inconsciente, seu coração irregular, mas agora tinham esperanças de salvá-lo.
Era verdadeiramente um grande dia. Hoover pediu a Hoi-To se sabia dentro de quanto tempo
Lukos teria acabado de injetar na tradutora as fotos do Tratado das Leis Universais.
— Dentro de algumas horas — respondeu Hoi-To.
— Então, dentro de algumas horas já deveremos saber, em dezessete línguas diferentes, o
que significa a equação de Zoran?
— Não creio — disse Hoi-To com um pequeno sorriso. — Conhecemos os textos de
ligação, o raciocínio e o comentário, mas o significado dos símbolos matemáticos e físicos
nos escapará, como escapa à tradutora. Sem a ajuda de Coban, será necessário um certo tempo
para encontrar o sentido. Mas evidentemente conseguiremos, e sem dúvida bastante rápido,
graças aos computadores.
— Proponho — disse Hoover — anunciar pelo Trio que faremos amanhã uma
comunicação ao mundo inteiro. E prevenir às universidades e centros de pesquisas que eles
terão que gravar um longo texto científico cujas imagens nós transmitiremos em inglês e em
francês, com símbolos originais na língua gonda. Esta difusão geral de um tratado que leva à
compreensão da equação de Zoran tornará de um só golpe impossível a exclusividade do seu
conhecimento. Dentro de poucos instantes ela terá se tornado o bem comum de todos os
pesquisadores do mundo inteiro. Nesse mesmo golpe desaparecerão as ameaças de destruição
e de rapto que pesam sobre Coban, e poderíamos convidar esta repugnante assembleia de
ferragem militar flutuante e voadora que nos supervisiona sob o pretexto de nos proteger a se
dispersar e a voltar para seus covis.
A proposta de Hoover foi adotada por aclamação. Foi um grande dia, um dia longo sem
noite e sem nuvem, com um sol dourado que passeava seu otimismo à volta do horizonte. Na
hora em que ele se eclipsava atrás da montanha de gelo, os sábios e técnicos prolongaram sua
euforia no bar e no restaurante de EP1-2. A provisão de champanha e de vodca da base,
naquela tarde, foi seriamente atingida. E o scotch, e o bourbon, a aquavit e a shlivovitsa
verteram sua ração de otimismo no caldeirão borbulhante da alegria geral.
Irmãzinha — disse Hoover a Leonova —, sou um enorme e aborrecido celibatário, e você
é um horrível cérebro marxista magricela... Não lhe direi que a amo porque seria
abominavelmente ridículo. Mas se você aceitar se tornar minha mulher, prometo-lhe que
perderei minha barriga e que chegarei mesmo a ler O Capital.
— Você é horrível — dizia Leonova soluçando sobre seu ombro — você é horrível...
— Ela tinha bebido champanha. Não estava acostumada.
Simon não tinha se reunido à alegria geral. Havia acompanhado Eléa até a enfermaria e
não a havia deixado. Entrando no quarto, ela veio direta para a máquina de comer, tocou três
botões brancos, e obteve uma esférula cor de sangue que logo engoliu, acompanhada de um
copo d'água. Depois, com sua indiferença habitual à presença de outrem, tinha se despido,
tinha rodado, toda nua, feito sua toalete e se deitado, já meio adormecida, sem dúvida, sob o
efeito da esférula vermelha. Depois que havia tirado seu círculo de ouro, não pronunciara
mais nenhuma palavra. A enfermeira tinha seguido o último episódio da lembrança na Sala de
Conferência. Olhou Eléa com piedade. O rosto da jovem mulher adormecida estava
petrificado numa gravidade trágica que parecia além de todos os sofrimentos...
— Coitadinha... — disse a enfermeira. — Talvez fosse melhor que eu lhe vestisse seu
pijama, ela poderá sentir frio.
Não a toque, ela dorme, está em paz — disse Simon a meia voz. Cubra-a bem e vigie-a.
Vou dormir um pouco, ficarei de guarda à meia-noite. Acorde-me...
Regulou o termostato para aumentar ligeiramente a temperatura do quarto e esticou-se todo
vestido sobre seu leito estreito. Mas do momento em que fechou os olhos, as imagens
começaram a desfilar sob suas pálpebras, Eléa e Paikan, Eléa nua, o céu de fogo, a agitação
dos soldados mortos, Eléa nua, Eléa sem Paikan, o solo esmigalhado, a planície fendida, a
arma no céu, Eléa, Eléa.
Levantou-se bruscamente, consciente de que não poderia dormir.
Soporífero? A máquina de comer estava ali sobre a mesinha, ao alcance de sua mão.
Aflorou os três botões brancos, a gaveta se abriu, ofertando-lhe uma esférula vermelha.
A enfermeira o olhava agir, com ar de reprovação:
— O senhor vai comer isso? Talvez seja veneno!
Ele não respondeu. Se fosse veneno, Eléa o havia tomado, e, se Eléa morresse, ele não
teria mais vontade de viver. Mas não acreditava que fosse. Pegou a esférula entre o polegar e
o indicador e colocou-a na boca. Ela estalou sob seus dentes como uma cereja sem caroço.
Pareceu-lhe que todo o interior de sua boca, de seu nariz, de sua garganta, estava
salpicado de uma ofensiva doçura. Não era doce de gosto, não tinha gosto nenhum. Era como
um veludo líquido, um contato, uma sensação de uma doçura infinita que se espalhava e
penetrava no interior da sua carne, atravessava-lhe as faces e o pescoço para chegar até a pele
e invadir o interior da cabeça. Quando ele engoliu, desceu-lhe pelo corpo todo e o encheu.
Voltou a deitar-se lentamente. Não tinha a impressão de estar com sono. Parecia que poderia
andar até o Himalaia e escalá-lo dando cambalhotas.
A enfermeira o sacudiu.
— Doutor! Depressa! Levante-se depressa!
— O quê? O que é que há?
— Olhou o relógio luminoso. Marcava 23 horas e 37 minutos.
— Bem que eu lhe disse que era veneno! Beba isto, rápido! É ipeca.
Ele afastou o copo que ela lhe estendia. Nunca tinha se sentido tão bem, eufórico,
repousado como se tivesse dormido dez horas.
— Então, se não é veneno, o que é que ela tem? Ela, Eléa.
Ela estava acordada, os olhos abertos, o olhar fixo, os maxilares fechados. Acessos
bruscos de tremura lhe sacudiam todo o corpo. Simon desvestiu-a e tocou-lhe nos músculos
dos braços e das coxas. Estavam crispados, tensos, tetanizados. Passou-lhe a mão diante dos
olhos, que não piscaram. Achou dificilmente seu pulso sob os músculos endurecidos do punho.
Sentiu-o, forte, acelerado.
— O que é isto, doutor? O que é que ela tem?
— Nada — murmurou Simon puxando novamente as cobertas. — Nada... a não ser o
desespero...
— Pobre pequena... o que é que podemos fazer?
— Nada — repetiu Simon — nada...
Tinha guardado a mão gelada de Eléa nas suas mãos. Pôs-se a acariciá-la, massageá-la
docemente, massagear o braço endurecido subindo para o ombro.
— Vou ajudá-lo — disse a enfermeira.
Deu a volta no leito e pegou a outra mão de Eléa. O braço desta recuou sustado.
— Deixe-a — pediu Simon. — Deixe-me com ela. Deixe-nos. Vá dormir o seu quarto...
— O senhor tem certeza?
— Sim... deixe-nos...
A enfermeira juntou suas coisas e saiu lançando a Simon um longo olhar de suspeita.
Ele não se apercebeu. Olhava Eléa, seu rosto endurecido, seus olhos fixos, nos quais a luz
brilhava sobre dois lagos de lágrimas imóveis.
— Eléa... — disse ele muito baixinho. — Eléa, Eléa... estou com você...
Pensou bruscamente que não era sua voz que ela escutava, mas sim a voz estranha da
tradutora. A sua própria voz que chegava no outro ouvido, não era senão um barulho confuso,
estranho, que sua tensão esforçava-se por eliminar.
Com precaução, tirou-lhe o escutador de orelha. Seu microemissor estava preso às suas
roupas pousadas sobre uma cadeira. Tirou o seu, alfinetado num suéter, e enfiou no fundo do
bolso. Agora, não havia mais máquina, mais voz estranha, entre ela e ele.
— Eléa... estou com você... sozinho com você... pela primeira vez... talvez a última... E
você não me compreende... Então posso lhe dizer... Eléa meu amor... minha bem-amada...eu a
amo... meu amor... meu amor... queria estar perto de você... em cima de você... dentro de você
muito docemente... dar-lhe confiança... esquentá-la e acalmá-la... consolá-la... eu a amo... não
sou senão m bárbaro... um selvagem atrasado... eu como bichos... e ervas e árvores... não a
terei nunca... mas eu a amo, amo você... Eléa, meu amor... você é bela... você é bela... você é o
pássaro, a fruta, a flor, o vento do céu... nunca a terei... eu sei, eu sei... mas eu amo você...
As palavras de Simon pousavam sobre ela, sobre seu rosto, sobre seus braços, sobre seus
seios descobertos, pousavam nela como pétalas macias, como uma nuvem de calor. Ele sentia
nas suas mãos a mão dela se amolecer, via seu rosto se distender, seu peito erguer-se mais
calmo e profundamente. Via suas pálpebras se abaixarem muito lentamente sobre os olhos
trágicos e finalmente s lágrimas correrem.
Eléa, Eléa, meu amor... volte do mal, volte da dor... volte, a vida está aqui, eu amo você...
você é bela... nada é tão belo quanto você... a criança nua,... a nuvem... a cor... a corça... a
onda, a folha... a rosa que se abre... o cheiro da pesca e de todo o mar... nada é tão belo como
você... o sol de maio sobre as nossas margaridas... o filhote de leão... os frutos redondos... os
frutos maduros... os frutos quentes ao sol... nada é tão belo quanto você...
Eléa, Eléa, eu amor, minha bem-amada...
Sentiu a mão de Eléa apertar a sua, e viu sua outra mão se erguer, pousar-se sobre o
lençol, tocá-lo, pegá-lo e com um gesto não habitual, um gesto incrível trazê-lo para ela e
cobrir seus seios nus.
Ele se calou.
Ela falou.
Disse, em francês:
— Simon, eu o compreendo...
Houve um curto silêncio, depois ela acrescentou:
— Sou de Paikan...
Dos seus olhos fechados, lágrimas continuavam a rolar.

Tu me compreendes, tu me compreendeste, talvez não todas as palavras, mas o suficiente


para saber quanto, quanto eu te amava. Eu te amo, o amor, amor, estas palavras não têm
sentido na tua língua, mas as havia compreendido, sabias o que queriam dizer, o que eu
queria te dizer, e se elas não te trouxeram o esquecimento e a paz, te deram, trouxeram,
colocaram em ti bastante calor para te permitir chorar.
Compreendeste. Como era possível? Não tinha contado, ninguém de nós contava com as
faculdades excepcionais da tua inteligência. Nós nos acreditamos no cimo do progresso
humano, nós somos os mais evoluídos! Os mais afiados! Os mais capazes! O brilhante
resultado extremo da evolução. Depois de nós, haverá talvez, haverá, sem dúvida melhores,
mas antes, vejamos, não é possível! Apesar de todas as realizações de Gondawa que tu nos
mostraste, não podia vir ao nosso espirito que vocês fossem superiores. O sucesso de vocês
não poderia ser senão acidental. Vocês nos eram inferiores, posto que tinham vindo antes.
Esta convicção de que o-homem-enquanto-espécie se aperfeiçoa com o tempo vem sem
dúvida de uma confusão inconsciente com o homem-enquanto-indivíduo. O homem é
primeiro uma criança antes de se tornar um adulto. Nós, homens de hoje, somos adultos. Os
que viveram antes de nós não podiam ser senão crianças.
Mas talvez fosse bom, talvez fosse tempo de se perguntar se a perfeição não está na
infância, se o adulto não é senão uma criança que já começou a apodrecer...
Vocês, as infâncias do homem, vocês novos, puros, vocês não usados, não cansados, não
rasgados, deteriorados, estufados, vocês, o que não podiam com as suas inteligências?
Há semanas que ouves num ouvido as frases da língua desconhecida, a minha, pela
minha voz que te falava, todo o dia de manhã à noite de ti, do momento em que não
dormias, e mesmo quando dormias porque as palavras que eu te dizia eram uma maneira de
estar contigo mais perto de ti meu amor, minha bem-amada.
E no outro ouvido ouvias as mesmas frases traduzidas. O sentido das palavras te
chegava sem cessar ao mesmo tempo que as palavras, e tua maravilhosa inteligência,
consciente, subconsciente, não sei, comparava, classificava, traduzia, compreendia.
Tu me compreendias...
Eu também, eu também, meu amor, compreendi e sabia... Tu eras de Paikan...
Lukos tinha terminado. A tradutora tinha engolido, assimilado e traduzido em dezessete
línguas o texto do tratado de Zoran. Mas obedecendo às instruções dadas por Lukos por
decisão do Conselho, guardou as traduções na sua memória, para imprimi-las ou difundi-las
mais tarde, quando lhe pedissem. Ela havia somente inscrito sobre o fio magnético as imagens
das traduções inglesas e francesas. Os filmes esperavam dentro de um armário o momento da
difusão mundial.
A hora se aproximava. Os jornalistas pediram para visitar a tradutora a fim de poder
descrever aos seus leitores e auditores a maravilha que havia decifrado os segredos da mais
velha ciência humana. Na ausência de Lukos, que prosseguia no ovo, com Hoi-To, o
levantamento fotográfico dos tipos gravados, foi seu adjunto, o engenheiro Mourad, quem os
guiou nos meandros da máquina. Hoover havia insistido para acompanhar e Leonova
acompanhava Hoover. Em alguns momentos, ele segurava sua mão miúda na sua manopla.
Ou então era ela que pendurava seus dedos frágeis a seus enormes dedos. E avançavam
assim, sem prestar atenção, nas salas e nos corredores da tradutora, de mãos dadas como dois
amantes de Gondawa.
— Eis aqui — disse Mourad — o dispositivo que permite inscrever as imagens sobre os
filmes. Sobre esta tela as linhas dos tipos aparecem em caracteres luminosos. Esta câmara de
tevê, as vê, analisa e as transforma em sinais eletromagnéticos que ela inscreve sobre um
filme. Como vocês estão vendo, é muito simples, é o velho sistema de magnetoscópio. O que é
menos simples, é a maneira como se comporta a tradutora para fabricar os caracteres
luminosos. É...
Mourad estava falando em turco e japonês, Hoover havia distribuído aos jornalistas
receptores de orelha, a fim de permitir a cada um entender as explicações na sua própria
língua. E Louis Deville entendeu em francês:
— ... é... merda... que é isso?
Num centésimo de segundo, ele admirou que a tradutora tivesse um conhecimento tão
familiar da língua francesa, e se prometeu perguntar a Mourad qual era a palavra turca
correspondente. Deveria ser sonora e pitoresca. No centésimo de segundo seguinte, ele já não
pensava mais nessas futilidades. Via Mourad falar no ouvido de Hoover, Hoover fazer sinal
de que não compreendia, em seguida Mourad puxar Hoover pela manga e mostrar-lhe qualquer
coisa por trás da câmara registradora de tevê. Alguma coisa que Hoover compreendeu logo e
que os jornalistas mais próximos, que olhavam ao mesmo tempo que ele, não compreenderam.
Hoover virou-se para eles:
— Senhores, tenho necessidade de falar, em particular, com o engenheiro Mourad.
Não posso fazê-lo a não ser por intermédio da tradutora. Não desejo que vocês ouçam
nossa conversa. Peço-lhes que me devolvam vossos receptores de ouvido, e que tenham a
bondade de sair.
Foi uma explosão de protestos, uma tempestade verbal que reboou pela sala. Cortar a
fonte de informação logo no momento onde ela ia talvez se tornar sensacional? De jeito
nenhum! Nunca na vida! Pensavam que eles eram O quê?
Hoover ficou rubro de fúria. Berrou:
— Vocês estão me fazendo perder tempo! Cada segundo talvez tenha uma importância
fantástica! Se vocês discutirem mais, eu os farei embarcar num jato e os mando de volta a
Sidney! Deem-me isto.
Estendeu as mãos em concha.
No estado em que estava, ele, o brincalhão, todos compreenderam que era grave.
— Prometo que os porei ao corrente, logo que tudo estiver resolvido. Todos passaram
diante dele e lhe devolveram as conchas multicores ainda quentes do calor de suas cabeças.
Leonova fechou a porta sobre o último e voltou-se vivamente para Hoover?
— O que é? O que é que está acontecendo?
Os dois homens já estavam inclinados sobre as entranhas da câmara e discutiam
rapidamente em termos técnicos.
— Adulterada! — disse Hoover. — A câmara foi adulterada! Está vendo este fio aqui,
aqui! Não é o do magnetoscópio! Foi acrescentado!
Colado ao do magnestoscópio, confundia-se com ele e o fio clandestino enfiava-se ao
mesmo tempo que ele num buraco da divisão metálica. Rapidamente, Mourad percebeu as
quatro roscas de cabeça cruzada, e puxou em sua direção a placa de alumínio polido. As
entranhas do magnetoscópio apareceram. Eles logo viram um objeto insólito: uma valise de
tamanho médio, de falso couro ordinário, cor de tabaco. Um fio suplementar entrava nela e um
outro saía, subia num esconso, furava o teto, e encontrava sem dúvida, através de um artifício
astucioso, uma massa metálica externa que deveria servir de antena.
— O que é isto? — perguntou novamente Leonova, lamentando-se por ser apenas uma
antropologa ignorante de todas as técnicas.
— Um emissor — respondeu Hoover.
Estava abrindo a valise. Ela revelava um admirável agenciamento de circuitos, de tubos e
de semicondutores: não era um canal radioemissor, mas sim uma verdadeira estação emissora
de televisão, uma obra-prima de miniaturização.
Num rápido olhar, Hoover reconheceu peças japonesas, tchecas, alemãs, americanas,
francesas, e admirava contra a vontade o extraordinário arranjo que conseguia ter em tão
pouco espaço tanta eficiência. O homem que havia construído este emissor era um gênio.
Ele não o havia ligado no circuito eletrônico geral. Uma pilha e um transformador lhe
davam a potência necessária. Isto limitava sua duração e seu alcance. Não poderia ser
recebido além de um raio de mil quilômetros.
Hoover explicou rapidamente tudo isto a Leonova. Testou a pilha. Estava quase vazia.
O emissor já havia funcionado. Incontestavelmente havia emitido para um receptador
situado sobre o continente antártico, ou perto de suas costas, as imagens de tradução inglesa
ou francesa ou talvez as duas. Era absurdo. Por que procurar clandestinamente traduções,
quando elas iam, dentro de algumas horas, ser difundidas no mundo inteiro? A lógica levava
uma resposta aterradora:
Se um grupo, se uma nação esperava se assegurar a exclusividade do conhecimento a
equação de Zoran, ele ou ela tinha que tornar impossível, fosse como fosse, o conhecimento
do Tratado das Leis Universais, ou qualquer outra explicação da fórmula. Para isto, aqueles
que haviam instalado o emissor e expedido para o desconhecido as imagens do tratado,
deveriam igualmente, no momento imediato:
— Destruir os fios magnéticos sobre os quais essas imagens estavam registradas.
—Destruir os filmes originais sobre os quais o texto gravado havia sido fotografado;
Destruir o próprio texto gravado;
— destruir as memórias da tradutora que guardava as dezessete traduções; MATAR
COBAN.
— Nossa Senhora: — exclamou Hoover. — Onde estão os filmes? Mourad os conduziu
rapidamente para a sala dos arquivos, abriu o armário de alumínio, pegou uma dessas caixas
em forma de biscoito, que depois da invenção do cinema servem de receptáculo para os filmes
de todas as espécies, e que são atravancadoras, incômodas, ridículas e que nunca foram
melhoradas. Teve, como se tem sempre, muita dificuldade para abri-la, quebrou uma unha,
blasfemou em turco, e blasfemou uma segunda vez quando conseguiu e viu conteúdo: era uma
papa viscosa de onde subiam fumacinhas.
Haviam jogado ácido dentro de todas as caixas. Filmes originais e magnéticos não eram
mais do que uma pasta malcheirosa que começava a escorrer pelos buracos das caixas cujo
metal, por sua vez, havia sido atacado e destruído.
— Com mil diabos! — exclamou Hoover mais uma vez, em francês. Preferia praguejar em
francês. Sua consciência de americano protestante ficava menos atormentada.
— As memórias? Onde estão as memórias da puta dessa máquina?
Por um longo corredor de trinta metros, cujo muro da direita era de gelo filtrado
acolchoado e o da esquerda constituído por uma grade metálica onde cada malha tinha a
dimensão de um décimo de milésimo de milímetro. Cada cruzamento era uma célula de
memória. Havia dez milhões de milhares. Esta realização da técnica eletrônica, apesar da sua
capacidade prodigiosa era mesmo assim apenas um grão de areia ao lado de um cérebro vivo.
Sua superioridade sobre o vivo era a rapidez. Mas esta capacidade era o finito ao lado do
infinito. Ao entrar, num primeiro olhar, descobriram as incongruências que haviam sido
acrescentadas à obra-prima.
Quatro caixas, redondas, bastante semelhantes com as caixas dos filmes, Quatro minas
semelhantes às que defendiam a entrada da esfera. Quatro monstruosos horrores grudados
contra a parede metálica, seguros a ela por seu campo magnético, e que iam pulverizá-la, com
toda a tradutora, se tentassem arrancá-la, ou talvez mesmo só pelo fato de alguém se
aproximar delas.
— Filho do filho do filho da puta! — gritou Hoover. — Você tem um revólver?
Dirigia-se a Mourad...
—Não.
— Leonova, dê-me o seu!
— Mas...
— Dê! Ora bolas! Você acha que este é o momento de discutir?
Leonova estendeu sua arma a Mourad.
— Feche a porta — disse Hoover. — Fique na frente, não deixe entrar ninguém, e se
insistirem, atire!
— E se isto explodir? — perguntou Mourad.
— Bem, você explodirá junto! E também não será o único... Onde está este cretino do
Lukos?
— No ovo.
— Vem, irmãzinha...
Arrastou-a na velocidade do vento que soprava do lado de fora.
A tempestade tinha se levantado no momento em que o sol estava no ponto mais alto do
horizonte. Nuvens verdes o haviam engolido, e depois ao céu. O vento se batia contra todos os
obstáculos, arrancava a neve do solo para misturá-la com a que ele trazia e fabricar com ela
uma mistura afiada, cortante. Trazia os restos, os lixos, as caixas abandonadas, os tonéis
vazios e cheios, as antenas, os jipes, arrasava tudo.
O guarda da porta impediu-os de sair. Aventurar-se lá fora sem proteção, era morrer.
O vento ia cegá-los, asfixiá-los, quebrá-los, rolá-los, levá-los até o fim do frio e do
branco mortal.
Hoover arrancou o boné do homem e enfiou-o sobre a cabeça de Leonova. Tirou-lhe os
óculos, as luvas, seu capote e envolveu a moça magra, empurrou-a sobre uma plataforma
elétrica carregada de tonéis de cerveja, e apontou seu revólver sobre o guarda.
— Abra!
O homem, aturdido, apertou o botão de abrir. A porta correu. O vento lançou um clamor de
neve turbilhonante até o fundo do corredor. A plataforma paciente e lenta entrou na tormenta.
— Mas você — gritou a voz aguda de Leonova — você não está protegido!
— Eu — respondeu a voz grossa de Hoover no meio da tempestade — tenho minha
barriga!
Na frente e atrás deles tudo era branco. Tudo era branco, à esquerda, à direita, na frente,
atrás, em cima, em baixo. A plataforma afundava num oceano branco que se deslocava
berrando como mil carros de corrida. Hoover sentiu a neve grudar no seu rosto, petrificar-lhes
as orelhas e o nariz. O edifício do elevador estava a trinta metros bem em frente. Trinta vezes
o tempo de se perder e de se deixar levar pela goela do vento. Era preciso manter a
plataforma sob uma trajetória retilínea. Ele não pensava senão nisto, esqueceu seu rosto, suas
orelhas e seu nariz, e a pele do seu crânio que começava a gelar sob seus cabelos cobertos de
neve. Trinta metros. O vento vinha da direita e devia desviá-los. Apoiou em direção ao vento
e de repente pensou que o óleo do seu revólver iria gelar e travá-lo durante horas.
— Agarre-se bem na direção! Com as duas mãos! Assim! Muito bem! Não desvie nem um
milímetro! Segure-se bem!
Pegou nas suas mãos nuas, que quase já não sentia mais, as duas mãos enluvadas de
Leonova, fechou-as sobre a barra da direção, achou tateando seu revólver no estojo pendurado
na sua cintura, tirou-o, conseguiu abrir o fecho da sua calça. Pareceu que uma horda de lobos
mordia-lhe o ventre. Escondeu a arma dentro de sua calça e tentou fechá-la.
O puxador do fecho escapou dos seus dedos inchados, a neve bloqueou os dentes, entrou
pela abertura. O frio tomou conta de suas coxas, indo para seu sexo, para a arma que ele quis
colocar ao abrigo, no lugar mais quente dele mesmo. Apertou-se contra Leonova, comprimiu-a
contra sua barriga, como defesa, como obstáculo, como muralha contra a tempestade.
Envolveu-a com seus braços e pousou suas mãos sobre as dela ao redor da barra da direção.
O vento tentava arrancá-los da sua trajetória para jogá-los não importa aonde, longe de tudo.
Longe de tudo, não eram quilômetros. Alguns metros bastavam para perdê-los fora do mundo
na tormenta sem limite, sem assistência, sem indício, e cujo paroxismo estava em toda parte.
Poderiam ficar gelados a dez passos de uma porta. A do edifício do elevador continuava
sempre invisível. Estaria ela ali, bem perto, na frente, escondida pela espessura da neve
trazida? Ou teriam eles passado e a plataforma estava em vias de enveredar para o deserto
mortal que começava a cada passo.
Hoover teve de repente a certeza de que eles haviam passado da sua meta e que se
continuassem, por menos que fosse, estavam perdidos. Pesou sobre as mãos de Leonova e
freou bruscamente, de frente para o vento.
O vento de pé enfiou-se por baixo da plataforma e ergueu-a. Os tonéis de cerveja e a
barriga de Hoover a jogaram no solo. Leonova aflita, largou a barra. Sentiu-se carregada e
gritou. Hoover agarrou-a e colou-a contra ele. A plataforma abandonada a si mesma ficou
girando, de costas para o vento. Dois barris de cerveja jogados desapareceram rolando na
tempestade branca. O vento enfiava seus ombros sobre o veículo desamparado. Ergueu-o de
novo e virou-o. Hoover rolou sobre o gelo sem largar Leonova. Um barril de cerveja passou a
poucos centímetros do seu crânio. A plataforma revirada, rolada, carregada, desapareceu
como uma folha. O vento rolou Hoover e Leonova agarrada a ele. Bateram brutalmente num
obstáculo que ressoou. Era uma grande superfície vermelha vertical. Era a porta do edifício
do elevador...
O elevador estava aquecido. A neve e o gelo agarrados a todas as dobras de suas roupas
se fundiam. Leonova tirou suas luvas, suas mãos estavam mornas.
Hoover soprava as suas, que continuavam imóveis, azuladas. Ele não sentia nem suas
orelhas nem o seu nariz. Dentro de alguns minutos seria necessário agir. Ele não seria capaz.
— Vire-se — disse ele.
— Por quê?
— Vire-se, por Deus! É preciso sempre que você discuta!
Ela ficou vermelha de raiva, tentou recusar, depois obedeceu cerrando os dentes. Ele por
sua vez virou-lhe as costas, e conseguiu enfiar suas duas mãos dentro da calça, agarrou o
revólver entre suas duas palmas, e tirou-o para fora. Ele escapou-lhe e caiu. Leonova
assustou-se.
— Não se vire!
Empurrou para dentro a fralda de sua camisa, pegou o puxador do fecho entre seus dois
indicadores. Sabia que o segurava, mas não o sentia. Puxou para cima. Ele lhe escapou.
Recomeçou duas vezes, dez vezes, ganhando cada vez alguns dentes do seu fecho.
Finalmente ficou com aspecto mais apresentável. Olhou o indicador de descida. Estavam a
menos 980. Iam chegar.
— Pegue o revólver — disse ele — eu não posso. Ela virou-se para ele, ansiosa.
— Suas mãos...?
— Sim, minhas mãos! Não temos tempo!... Pegue este troço... Você sabe usá-lo?
— Por quem me toma você?
Ela manejava a arma com desembaraço. Era um revólver de repetição de grosso calibre,
uma arma de assassino profissional.
— Tire o trinco de segurança.
— Você acredita que...?
— Não acredito em nada... temo... tudo dependerá talvez de um décimo de segundo.
O elevador freou nos últimos metros e parou. A porta abriu-se.
Era Heath e Shanga que estavam de guarda nas minas. Viram com espanto sair da cabine
Hoover encharcado, hirsuto, levando na ponta dos seus braços suas mãos como pacotes
inertes, e Leonova sacudindo um enorme revólver negro.
— O que é que há? — perguntou Heath.
— Não há tempo!... Dê-me a sala, rápido!
Heath já havia reencontrado sua fleuma. Chamou a sala de reanimação.
— O Sr. Hoover e a Srta. Leonova querem entrar...
— Esperem! — gritou Hoover.
Tentou segurar o aparelho, mas sua mão parecia um pacote de algodão e o instrumento lhe
escapou. Leonova o pegou e segurou diante dos seus lábios.
— Alô! Aqui Hoover. Quem me escuta?
— Moissov escuta — respondeu uma voz em francês.
— Responda! Coban está vivo?
— Sim! Está. Claro.
— Não tire os olhos de cima dele! Controle todo o mundo! Que cada um vigie seu vizinho!
Vigie Coban. ALGUÉM VAI MATÁ-LO!
— Mas...
— Não posso confiar somente em você. Passe-me Forster.
Repetiu seu grilo de alarme a Forster, depois a Lebeau. A cada um ele repetia: —
ALGUÉM VAI MATAR COBAN! Não deixem ninguém se aproximar NÃO IMPORTA QUEM!
Acrescentou:
— O que está acontecendo no ovo? O que é que vocês estão vendo na tela de vigilância?
— Nada — disse Lebeau.
— Nada? Como, nada?
— A câmara está em pane.
— Em pane? Uma ova! Abram as minas. Rápido!
Leonova devolveu o receptor a Heath. O pisca-pisca vermelho apagou-se. O campo de
minas estava desativado. Mas Hoover desconfiava. Levantou o joelho e estendeu sua bota
para Shanga com a displicência causada por vinte gerações de escravatura.
— Tire minha bota, pequeno.
Shanga teve um sobressalto e recuou. Leonova ficou furiosa.
— Não é o momento de se sentir negro! — gritou ela.
Pousou o revólver no chão, pegou a bota com as duas mãos e puxou. Não tentava mais
compreender, depositava confiança total em Hoover, e sabia a que ponto cada fração ínfima de
tempo era essencial.
— Obrigado, irmãzinha. Deitem-se todos!
Deu o exemplo. Shanga, apavorado, imitou-o logo. Heath também, com ar de quem não
entendia nada. Leonova, de joelhos, segurava sempre a bota.
— Jogue-a no buraco!
O buraco era a abertura da escada que ligava o fundo do poço ao acesso da esfera. As
minas estavam na escada, sob os degraus. Leonova jogou a bota. Não aconteceu nada.
— Vamos — disse Hoover. — Tire a outra e tire as suas. Temos que ser silenciosos como
a neve. Heath, não deixe entrar mais ninguém, entendeu? Ninguém.
— Mas o que é que...?
— Daqui a pouquinho...
Os braços afastados do corpo, para que suas mãos dolorosas não tocassem em nada,
enfiou-se pela escada e Leonova atrás dele.
No ovo havia um homem deitado e um homem em pé. O homem deitado tinha uma faca de
neve enfiada no peito, e seu sangue compunha no chão uma pequena poça em forma de balão
de história em quadrinhos. O homem em pé usava um capacete de soldador que lhe escondia o
rosto e pesava sobre seus ombros. Segurava com as duas mãos o cano do plaser, e dirigia o
lança-chamas para o muro gravado. O ouro fundia e escorria.
Leonova segurava o revólver na mão direita. Teve medo de não o fazer bastante
solidamente. Acrescentou sua mão esquerda e atirou. As três primeiras balas arrancaram o
plaser das mãos do homem e a quarta quebrou-lhe um pulso, quase seccionando a mão. O
choque jogou-o por terra, a chama do p laser queimou-lhe um pé. Ele berrou. Hoover se
precipitou e, com o cotovelo, desligou a corrente.
O homem com a faca no peito era Hoi-To.
O homem com a máscara de soldador era Lukos. Hoover e Leonova o haviam reconhecido
logo que o viram. Não havia dois homens com a sua estatura em EPI. Com um chute, Hoover
arrancou-lhe o capacete, descobrindo seu rosto suado e os olhos revirados.
Sob a dor horrível do seu pé reduzido a cinzas, o colosso tinha desmaiado.
— Simon, você que é amigo dele tente! Simon tentou.
Inclinou-se para Lukos deitado numa cama de enfermaria, e pediu-lhe que lhe dissesse
como tirar as minas coladas nas memórias da tradutora, e para quem ele havia feito esse
trabalho insensato, e se ele estava sozinho ou se tinha cúmplices. Lukos não respondeu.
Interrogado sem cessar por Hoover, Evoli, Henckel, Heath, Leonova, depois que havia
recobrado a consciência, ele havia somente confirmado que as minas explodiriam se lhes
tocassem, e que explodiriam igualmente se não lhes tocassem. Mas recusou-se a dizer dentro
de quanto tempo, e recusou-se a responder a qualquer outra pergunta. Inclinado sobre ele,
Simon olhava este rosto inteligente, ossudo, os olhos negros que o encaravam sem medo nem
vergonha, nem bazófia.
— Por que, Lukos? Por que você fez isso?
— Lukos o olhava e não respondia nada.
— Foi por dinheiro? Você não é um fanático? E então?...
Lukos não respondia nada.
Simon evocou a batalha contra o tempo que eles haviam conduzido juntos, que Lukos havia
dirigido, para compreender as três pequenas palavras que permitiriam salvar Eléa.
Este trabalho extenuante, genial, este devotamento totalmente desinteressado, era bem ele,
Lukos, que os havia prodigalizado. Como pode ele, depois, assassinar um homem e conspirar
contra os homens? Como? Por que? Para quem?
Lukos olhava Simon e não respondia nada.
— Estamos perdendo tempo — disse Hoover. — Dê-lhe uma injeção de pentotal. Ele dirá
muito gentilmente tudo o que sabe sem sofrer.
Simon levantou-se. No momento em que ia se afastar, Lukos, com sua mão sã, forte como a
de quatro homens, segurou-o pelo braço, inclinou-o sobre o seu leito, arrancou-lhe seu
revólver enfiado na cintura, apoiou-o contra sua própria cabeça e atirou. O tiro era oblíquo. A
parte de cima do seu crânio se abriu e a metade do seu cérebro fez um feixe rosa que pousou
em oval espalhado sobre o muro. Lukos havia encontrado um meio de se calar antes do
pentotal.
Os responsáveis pelo EPI, no decorrer de uma reunião dramática, decidiram, apesar de
sua repulsa, fazer um apelo à força internacional com base ao largo da costa, para procurar
capturar ou destruir quem ou o que pudesse ter recebido a emissão clandestina.
Se bem que os edifícios mais avançados fossem muito longe para poder recolher as
imagens, era provável que fosse um elemento secreto desligado de uma das frotas que se tinha
aproximado a uma distância suficiente para captar a emissão.
Provavelmente. Mas não certo. Um pequeno submarino ou um anfíbio armado poderia ter
se escondido entre as malhas da rede de vigilância. Mas mesmo que fosse um elemento da
Força Internacional, só a Força mesmo poderia encontrar. Era preciso contar com as
rivalidades nacionais que iam aguçar o zelo das procuras, e da vigilância recíproca.
Rochefoux entabulou com o Almirante Houston, que estava de guarda, um diálogo pelo
rádio que era difícil e grotesco pelas interrupções da tempestade magnética que acompanhava
a tempestade com seus escárnios. Mesmo assim Houston acabou entendendo e alertou toda a
aviação e toda a frota. Mas a aviação nada podia fazer no meio da tempestade branca
desencadeada. Os porta-aviões estavam cobertos por uma camada, em todas as suas
superestruturas acolchoadas de uma espessura dez vezes maior de gelo.
Netuno-I tinha se abrigado mergulhando. Não havia hipótese de trazê-lo à superfície.
Angustiado, Houston compreendeu que não lhe restava outro meio de ação senão a frota de
submarinos soviéticos. Se fosse para eles que Lukos tinha trabalhado, que ironia enviá-los à
caça! E se fosse para nós, se Lukos fosse um agente do F.B.I., e o Pentágono ignorava, não era
horrível largar os turbulentos russos contra pessoas que defendiam o Ocidente e a
Civilização?
E se fosse para os chineses? para os indianos? para os negros? para os judeus? para os
turcos? se fosse, se fosse...
A um militar, por maior que seja seu grau, se oferece sempre o apaziguamento da
disciplina. Houston parou de fazer perguntas a si mesmo, parou de pensar, e aplicou o plano
previsto. Acordou seu colega, o Almirante Voltov. E deixou-o ao corrente da situação. Voltov
não hesitou um segundo. No mesmo instante, deu ordem de alerta. Os 23 submarinos atômicos
e suas 115 vedetes de patrulha rumaram para o sul, aproximaram-se das costas até o limite da
imprudência, e cobriram cada metro de rochedo ou de gelo imersos numa rede de ondas
detetoras. Sob 1.500 quilômetros, nem um tremor de sardinha podia-lhes escapar.
Houve um buraco na tempestade. O vento soprava com a mesma força porém as nuvens e a
neve desapareceram no profundo céu azul. Netuno-I recebeu ordem de entrar em ação. Veio
para a superfície, com lâminas na proa. Os dois primeiros helicópteros saídos do porão foram
jogados ao mar antes mesmo de abrir suas hélices. O almirante alemão Wentz, comandante do
Netuno, empregou sua última arma: dois aviões foguetes acachapados no fundo de seus tubos.
Levavam um rosário de bombas H em miniatura e, sob seu nariz, os dois olhos de uma câmara
estereoscópica emissora. Eles se enfiaram no vento, como balas. Suas câmaras enviavam para
os receptores do Netuno duas fitas contínuas de imagens em cores e em relevo.
Todo o estado-maior do Netuno estava presente na sala de observações. Houston e Voltov
tinham arriscado suas vidas para vir, para ver e para vigiar. Assim como todos os oficiais
presentes, eles não eram capazes de reconhecer o que quer que fosse nas imagens que
desfilavam na tela da esquerda ou da direita, nem de distinguir um albatroz de uma baleia
branca. Porém os detetores eletrônicos, estes, eram capazes. E de repente, duas flechas
brancas apareceram sobre a tela da direita. Duas flechas em ângulo reto que convergiam uma
para outra e designavam o mesmo ponto, e se deslocavam com ele e com a imagem, da
esquerda para a direita da tela.
— Pare — gritou Wentz. — Ampliação máxima.
Sobre a mesa, diante dele, uma tela horizontal iluminou-se. Ele colou seu rosto à lupa
estereoscópica. Viu um pedaço de rio afundar na sua direção, aumentar, aumentar. Viu, numa
pequena enseada dilacerada, no fundo de uma baía, a alguns metros abaixo da água clara e
espumante, um foguete oval, muito regular e muito calmo para ser um peixe...
No minúsculo submarino, dois homens colados um contra o outro se banhavam num odor
úmido de suor e de urina. Não tinham previsto para eles uma bexiga receptora.
Tinham que se controlar. Não tinham podido, por causa da tempestade que os bloqueava há
doze horas, cinco metros abaixo da água. Para sair da enseada, seria preciso passar acima de
um fundo de dois metros. Ir à superfície e navegar rente. Com este vento, era uma manobra
desesperada que tinha tantas chances de êxito quanto uma moeda lançada para o mar tinha de
cair em pé. Mesmo agachado na parte mais profunda do riacho, o pequeno submarino não
estava abrigado. Batia contra as rochas, o fundo se chocava, rangia, gemia.
O precioso receptador que havia registrado as confidências da tradutora ocupava um terço
do volume do submersível. Os dois homens, pés com cabeça, um no comando do engenho,
outro nas manivelas do receptor, não tinham lugar para se virar nem mesmo um pouquinho
sobre eles mesmos. A sede secava-lhes a garganta, a transpiração grudava seus macacões, os
sais da urina lhes afetavam as carnes. O reservatório de oxigênio assobiava suavemente. Não
tinha para mais que duas horas. Decidiram sair desse impasse custasse o que custasse.
Na sala de reanimação, os médicos e as enfermeiras não se aproximavam mais de Coban,
senão dois de cada vez, cada um vigiando o outro.
No ovo, os desgastes causados pela chama do plaser eram consideráveis. O texto do
trabalho havia quase completamente desaparecido. Quase. Restavam ainda alguns trechos.
Talvez o bastante para fornecer a um gênio matemático material para fazer brotar a luz que
iluminava a equação de Zoran. Talvez sim. Talvez não.
E não havia um extrator de minas em nenhum dos prédios da Força Internacional. Um
apelo lançado pelo Trio havia alertado os especialistas dos exércitos russo, americano e
europeu. Três jatos rumaram para EPI, trazendo seus melhores militares especialistas em
minas. Vinham do outro hemisfério, na maior das velocidades. Eles não poderiam pousar
sobre a pista de EPI. Deveriam parar em Sidney e confiar seus ocupantes a jatos menores.
10
MESMO A ESTES ÚLTIMOS, a tempestade opunha dificuldades terríveis. Talvez
pudessem pousar. Talvez não. E dentro de quanto tempo? Muito tempo. Tempo demais. O
engenheiro-chefe da pilha atômica que fornecia energia e luz à base chamava-se Maxwell.
Tinha 31 anos e cabelos grisalhos. Não bebia senão água. Água americana, que chegava
congelada em blocos de 25 libras: os Estados Unidos enviavam para o Polo gelo esterilizado,
vitaminado, adicionado de flúor e de oligoelementos, e de um pouquinho de euforizante.
Maxwell e os outros americanos de EPI consumiam uma grande quantidade, como bebida,
e também para lavar os dentes. Pára a higiene externa toleravam a água da fonte do gelo polar.
Maxwell media um metro e 91 e pesava 69 quilos. Mantinha-se muito ereto e olhava os outros
seres humanos de alto a baixo, através do segundo andar dos seus óculos, sem o menor
desprezo pelo seu tamanho inferior. Prestavam muita atenção a suas opiniões visto que ele
falava pouco.
Veio encontrar Heath, que havia acompanhado Lukos na Europa para a compra das armas,
e perguntou-lhe com desinteresse fatos precisos sobre a potência explosiva das minas coladas
à tradutora. Heath nada podia afirmar, pois tinha sido Lukos quem havia concluído o negócio
com o traficante belga. Mas Lukos havia dito que cada uma dessas minas continha três quilos
de P.N.K.
Maxwell assobiou. Conhecia o novo explosivo americano. Mil vezes mais forte que o
T.N.T. As três bombas correspondiam a nove quilos de P.N.K. e a nove toneladas de T.N.T.
Uma bomba de nove toneladas explodindo dentro da tradutora, quais seriam os seus
efeitos sobre a pilha atômica vizinha, apesar de sua espessa blindagem de betume e de
algumas dezenas de metros de gelo? Em princípio, por trás do escudo de gelo, o betume
deveria aguentar o golpe, mas havia uma probabilidade de que a onda de choque
enfraquecesse a arquitetura da pilha, fizesse saltar as conexões, provocasse rachaduras e
escape de líquido de gás radioativo, e, talvez, estimulasse uma reação incontrolável de
urânio...
— É preciso evacuar EPI-2 e 3 — disse Maxwell sem levantar a voz. — Aliás seria até
mais prudente evacuar a base inteira...
Alguns minutos mais tarde, as sirenas de alerta urgente que nunca haviam funcionado,
berraram nos três EPI. E todos os postes telefônicos, todos os emissores, todos os receptores
de ouvido em todas as línguas pronunciaram as mesmas palavras: "Retirada urgente.
Preparem-se para retirada imediata."
Dar a ordem de preparar, era evidentemente alguma coisa. Mas retirar como?
A tempestade azul continuava. O céu estava claro como uma íris. O vento soprava a 220
km a hora. Mas não trazia a neve a não ser no nível do solo, arrastando-a com tudo que podia
pegar.
Lebeau, que deixara a sala de reanimação há apenas uma hora e havia adormecido, foi
tirado do seu leito por Henckel que o pôs a par da situação. Hirsuto, exausto de cansaço,
telefonou para a sala. Embaixo, na outra ponta do fio, Moissov blasfemava em russo e repetia
em francês:
— Impossível! Você sabe bem! O que é que você está me pedindo? É impossível!
Sim, Lebeau bem o sabia. Retirar Coban. Impossível. Arrancá-lo, no seu estado atual, do
bloco de reanimação, era matá-lo tão certamente como cortando-lhe a garganta.
Mil metros de gelo o colocavam ao abrigo de qualquer explosão, mas se as instalações da
superfície explodissem em dez minutos ele morreria.
Moissov e Lebeau tiveram ambos a mesma ideia. A mesma palavra lhes veio aos lábios ao
mesmo tempo: transfusão. Podiam tentá-la. O teste de sangue de Eléa tinha dado positivo.
Vendo que o estado de Coban se estabilizava, depois melhorava lentamente, os médicos
haviam deixado esta operação para no caso de um agravamento brutal ou de uma necessidade
urgente. Necessidade urgente, era bem o caso. Se tentassem a operação imediatamente, Coban
podia, dentro de alguns quartos de hora, ser transportado.
— E se a pilha queimar antes? — perguntou Moissov. — As minas podem explodir a
qualquer momento, a qualquer segundo!...
— Merda, que explodam! — gritou Lebeau. — Vou ver a moça. Ainda é preciso que ela
aceite...
Ele estava, juntamente com os outros reanimadores, alojado na enfermaria e teve que dar
apenas alguns passos para chegar ao quarto de Eléa.
A enfermeira, apavorada, estava começando a fazer suas malas. Três valises abertas sobre
duas camas, cem objetos e roupas espalhadas que ela pegava, rejeitava, deixava cair, juntava,
com suas mãos trêmulas.
Simon dizia a Eléa:
— Melhor! É monstruoso prendê-la aqui. Você finalmente vai conhecer nosso mundo.
O tempo de hoje não é só um pacote de gelo. Não pretendo que seja um paraíso, mas...
— O paraíso?
— O paraíso é... é muito longe, muito difícil, e de qualquer maneira não é absolutamente
certo, isto é.
— Não compreendo.
— Nem eu. Nem ninguém. Não pense mais. Não vou levá-la ao paraíso. Paris! Paris, é
para onde vou levá-la! Eles dirão o que quiserem, eu vou levá-la a Paris! É, é...
Ele não pensava no perigo. Sabia somente que levaria Eléa para longe do seu túmulo de
gelo, para o mundo vivo. Tinha vontade de cantar. Falava de Paris com gestos, como um
dançarino.
— É... você verá, é Paris... Não tem flores a não ser nas lojas atrás dos vidros, mas tem
também roupas-flores, chapéus-flores, o jardim das lojas, por todos os lados, em todas as
ruas, flores de meias, nylon-pantalonas calcinhas-pétalas, guarda-chuvas de todas as cores,
sapatos arco-íris, margaridas-roupas um pouco-muito-apaixonadamente, jamais, nada de nada,
jamais-jamais o mais belo jardim do mundo para a mulher, ela entra, escolhe, ela mesma é flor
flor florida de outras flores. Paris é a maravilha, é para lá que eu vou levá-la!
— Não compreendo nada.
— Não é preciso compreender. É preciso ver. Paris vai curar você. Paris vai curá-la do
seu passado!
Foi neste momento que Lebeau entrou.
— Você concorda — perguntou ele a Eléa — em dar um pouco do seu sangue a Coban? Só
você poderá salvá-lo. Não é grave nem doloroso. Se você aceitar, nós poderemos transportá-
lo. Se você recusar, ele morrerá. É uma intervenção sem nenhuma gravidade que não lhe fará
mal algum...
Simon explodiu. De jeito nenhum! Ele se opunha! Era monstruoso! Coban que se dane!
Nem uma gota de sangue, nem uma gota perdida, Eléa ia partir no primeiro helicóptero, no
primeiro jato, no primeiro seja lá o que for! Ela já não deveria estar mais lá, ela não voltaria a
descer no poço, vocês são uns monstros, vocês não têm coração, nem tripas, vocês são uns
açougueiros, vocês...
— Aceito — disse Eléa.
Seu rosto estava sério. Ela havia refletido durante alguns segundos, mas seu cérebro ia
mais rápido do que o cérebro lento dos tempos de hoje. Havia refletido e havia decidido.
Aceitava dar seu sangue a Coban, o homem que a havia separado de Paikan e a havia
jogado, ao fim de uma eternidade, num mundo selvagem e frenético. Ela aceitava.
Os dois homens dentro do submarino-de-bolso, pés com cabeça, a cabeça entre os pés do
outro, os pés suando, os pés cheirando, os dois homens, entre eles dois uma rede metálica
acolchoada de espuma sintética, macia, suave, elástica porém transpirável, terrivelmente
transpirável, os dois homens bloqueados no seu suor, na sua urina, a pele queimada, as narinas
queimadas pelo odor, os dois homens arriscavam tudo ou nada. Se ficassem lá, o reservatório
de oxigênio esgotado, não poderiam mais partir, nem mergulhar.
Estavam presos. Impensável, horrível, dizer tudo, confessar, monstruoso. Se não falam,
aplicam pentotal. Mesmo sem pentotal, eles olham, e fazem falar, um chute nas canelas, grito,
insulto, não se pode ficar eternamente sem falar.
Partir, é preciso partir.
Duas horas de oxigênio. Cinco minutos mortais para atravessar a passagem. Resta uma
hora e 55 de mergulho. É uma chance, pequena, estreita. O grande submarino nos engole, ou o
grande avião nos descobre. Salvos. Se eles nos falham, talvez a tempestade pare e nos
possamos continuar na superfície. Não tem outra alternativa. Partir...
Partir. Uma onda jogou-os contra a rocha. Caíram e bateram na rocha defronte.
Voltaram a cair de encontro ao fundo. O choque foi tamanho que o homem-que-tinha-a-
cabeça-virada-para-trás partiu quatro dentes incisivos. Urrou de dor, cuspiu seus dentes e seu
sangue. O outro não viu nada. Nas suas lunetas receptadoras via o horror desencadeado. O
vento arrancava a superfície do mar e a jogava, toda branca, para o azul do céu. No momento
em que ela voltava a cair, ele crispava suas duas mãos sobre o comando de aceleração A parte
de trás do foguete de aço cuspiu um enorme chafariz de fogo e mergulhou nas ondas
propulsado velozmente com sua própria energia.
Porém o jato não estava mais direito. O choque contra as rochas havia torcido o motor de
arranque. O jato desviava para a esquerda e rugia torcido como um saca-rolhas. O submarino
pôs-se a rodar sobre si mesmo, desgovernado, colando os dois homens contra suas paredes,
virou a cem graus e atirou-se contra uma muralha de gelo. Nela penetrou um metro. A barreira
caiu sobre ele e esmigalhou-o. O vento e o mar levaram numa espuma vermelha os restos de
carne e de metal.
As câmaras dos dois aviões-foguetes registraram e expediram a imagem de toda a cena.
A base formigava. Os sábios, os técnicos, os cozinheiros, os varredores, as enfermeiras,
as empregadas haviam arrumado rapidamente seus bens mais preciosos em valises e fugiam de
EPI-2 e 3. Os snowdoggs os recolhiam nas saídas dos prédios e os transportavam até a
entrada de EPI-1. No coração da montanha de gelo eles retomavam fôlego, seu coração se
acalmava, sentiam-se abrigados. Acreditavam-se...
Maxwell sabia bem que não era verdade. Mesmo se a pilha não explodisse, se ficasse
somente fissurada e começasse a cuspir seus líquidos e seus gases mortais, o vento ia trazê-los
e espalhá-los na paisagem até a montanha de gelo que os pararia no seu curso horizontal e
ficaria bloqueado. O vento, aqui, soprava mais ou menos forte. Mas soprava somente na
mesma direção, do centro do continente para o mar. De EPI-2 para EPI-1, inexoravelmente.
Ninguém podia mais sair das galerias da montanha. E, rapidamente, as radiações aí entrariam,
pelo sistema de ventilação que colhia o ar por meio de 23 chaminés.
Seria um prazer colher ao mesmo tempo todas as sujeiras corrosivas cuspidas pela pilha
destroçada.
Maxwell repetiu calmamente:
— É muito simples! É preciso fazer uma retirada...
— Como? Nenhum helicóptero podia levantar voo. Os caminhões, a rigor, podiam se
enfiar na tempestade. Mas havia 17 e era preciso guardar três para Coban, Eléa e as equipes
de reanimadores.
— É melhor quatro. E ficarão lotados.
— Melhor ainda, assim ficam quentes.
— Restam 13.
— Mau número.
— Não sejamos burros...
— Treze, ou então quatorze, com dez pessoas por veículo.
— Colocaremos vinte!
— Bem, vinte.
— Vinte vezes quatorze, isto dá: dá quanto?
— Duzentos e oitenta...
— O efetivo da base, depois do fim dos maiores trabalhos, foi reduzido a 1.749 pessoas.
Isto dá quantas viagens? 1.749 dividido por 280...
— Sete ou oito viagens, digamos dez.
— Bom, é exequível. Organizaremos um comboio, os snowdoggs vão deixar seus
passageiros e voltam para buscar os outros...
— Vão deixá-los onde?
— Como, onde?
— O abrigo mais próximo é a Base Scott. A seiscentos quilômetros. Se não tiverem
problemas, levarão duas semanas para chegar lá. E se os deixam fora de um abrigo, gelarão
em três minutos. A não ser que o vento se acalme...
— Então?
— Então... wait and see...
— Esperar! esperar! Quando isto pode saltar...
— O que é que nós sabemos?
— Como, o que é que nós sabemos?...
— Quem disse que essas minas iam explodir, mesmo se não tocássemos nelas? Foi Lukos.
Quem nos prova que ele disse a verdade? Que elas não explodem a não ser que sejam
tocadas? Nós não a tocaremos! E mesmo que elas explodam, quem nos prova que a pilha
sofrerá seus efeitos? Maxwell, você pode afirmar?
— Claro que não. Afirmo somente que receio. E penso que é preciso fazer a retirada.
— Mas ela talvez nem se mexa! Você não pode fazer alguma coisa? Protegê-la melhor?
Tirar o urânio? Esvaziar o circuito? Fazer alguma coisa, seja o que for?
Maxwell olhou Rochefoux, que lhe fazia esta pergunta, como se perguntasse se ele podia,
levantando o nariz, sem sair de sua cadeira, cuspir na Lua.
— Bom... você não pode, já imaginava isto. Uma pilha é uma pilha... Pois bem,
esperaremos... A calmaria... os desarmadores de minas... eles certamente vão chegar. Mas a
calmaria...
— Onde estão eles, esses diabos de especialistas em minas?
— O mais próximo está a três horas. Mas pousará como?
— Que diz a meteorologia?
— A meteorologia somos nós que fornecemos os detalhes para as suas previsões. Se nós
lhe anunciamos que o vento enfraquece, ela nos dirá que há uma melhora...
Deitada paralela ao longo do corpo do homem embrulhado, Eléa esperava, calma, os
olhos fechados. Seu braço esquerdo estava nu e o braço do homem tinha sido descoberto
alguns centímetros para o lugar da transfusão. Esses poucos centímetros de pele estavam
cheios de placas vermelhas das queimaduras em vias de cicatrizarão. Estavam todos lá, os
seis reanimadores, seus assistentes, enfermeiras, técnicos, e Simon. Ninguém tinha tido
durante um instante a ideia de ir se abrigar na montanha de gelo. Se as minas e a pilha
explodissem o que aconteceria na entrada do poço? Haveria chance de sair? Nem pensavam
nisso. Tinham vindo de todos os horizontes da Terra para dar vida a este homem e a esta
mulher, tinham conseguido com a mulher, tentavam com o homem a operação da última chance
dentro dos limites de um tempo desconhecido. Dispunham talvez de algumas horas, talvez de
alguns minutos, não sabiam, era preciso não perder nem um segundo, era preciso não
comprometer nada se apressando. Estavam todos ligados a Coban pelas cordas do tempo, para
o sucesso ou para o fracasso, ou talvez para a morte.
— Atenção, Eléa — disse Forster —, relaxe-se. Vou espetar seu braço, mas não doerá.
Passou sobre o lugar do braço um algodão embebido em éter e enfiou a agulha pontuda na
veia inchada pela borracha que a manietava. Eléa não tinha estremecido.
Forster tirou a borracha. Moissov começou a transfusão. O sangue de Eléa, vermelho,
quase dourado, apareceu no tubo de plástico. Simon teve um arrepio e sentiu sua pele se
eriçar.
Suas pernas ficaram fracas, seus ouvidos latejaram, e tudo o que ele via tornou-se branco.
Fez um esforço enorme para ficar de pé, para não desmaiar. As cores voltaram ao fundo
dos seus olhos, seu coração falhou e voltou a encontrar seu ritmo.
O emissor estalou e anunciou em francês:
— Aqui Rochefoux. Uma boa notícia. O vento diminuiu. Velocidade da ultima rajada: 208
km a hora. Onde estão vocês?
— Estamos começando — disse Lebeau. — Coban vai receber as primeiras gotas de
sangue dentro de alguns segundos.
Enquanto respondia, libertava as têmporas do homem-múmia, limpava com delicadeza a
pele queimada e colocava-lhe na cabeça o círculo de ouro e estendia o outro a Simon. As
queimaduras profundas do couro cabeludo e da nuca tornavam difícil a aplicação dos
eletrodos do encefalograma. Os círculos de ouro, com um médico na recepção, podiam
substituí-los com vantagem.
— No momento em que o cérebro recomece a funcionar, você o saberá — disse Lebeau.
— O subconsciente acordará antes do consciente, sobre sua forma mais elementar, mais
imóvel, que é a memória. O sonho do pré-despertar virá depois. Logo que você tiver uma
imagem, avise.
Simon sentou-se na cadeira de ferro. Antes de baixar a placa frontal diante de suas
pálpebras, olhou Eléa.
Ela havia aberto os olhos e o olhava e havia no seu olhar como uma mensagem, um calor,
uma comunicação que ele jamais tinha visto. Com... não era piedade, mas compaixão.
Sim, era isto. A piedade pode ser indiferente ou mesmo acompanhar a raiva. A compaixão
reclama uma espécie de amor. Ela parecia querer reconfortá-lo. Dizer-lhe que não era grave e
que ele se curaria Por que um tal olhar num tal momento?
— Então? — perguntou Lebeau, aborrecido.
A última imagem que ele recebeu foi a da mão de Eléa, bela como uma flor, aberta como
um pássaro, que se abria e pousava sobre a máquina-de-comer colocada ao seu alcance a fim
de que pudesse usá-la para o sustento para suas forças.
E depois não houve nada mais do que aquele negro interior da visão fechada, que não é a
escuridão, mas uma claridade adormecida.
— Então? — repetiu Lebeau.
— Nada — respondeu Simon.
— O vento está a 190 — disse o difusor. — Se ele amainar um pouco mais, vamos
começar a retirada. Onde estão vocês?
— Ficaríamos muito gratos se não fôssemos mais interrompidos — disse Moissov.
— Nada — disse Simon.
— Coração?
— Trinta e um.
— Temperatura?
— Trinta e quatro e sete.
— Nada — repetiu Simon.
Um primeiro helicóptero partiu, carregado de mulheres. O vento não ultrapassava mais de
150 km a hora e às vezes caía para 120. Ao mesmo tempo um helicóptero partiu da Base Scott
para vir buscar os passageiros na metade do caminho. Os dois aparelhos tinham encontro
marcado sobre uma geleira que corria num vale bastante abrigado, perpendicular ao vento.
Porém a Base Scott só podia servir de local de espera. Não tinha sido feita para abrigar uma
multidão. Todas as unidades da Força Internacional capazes de se aproximar das costas sem
muito perigo dirigiam-se para o continente. Os porta-aviões americanos e o Netuno lançaram
seus aviões verticais que foram direto para EPI. Três submarinos cargueiros porta-
helicópteros, russos, subiram à superfície ao largo da Base Scott. Um quarto, quando subia,
foi cortado em dois pela proa submersa de um iceberg. Seu motor atômico envolto em cimento
desceu lentamente para o fundo tranquilo das grandes profundidades. Alguns afogados subiram
entre os poucos destroços, foram envolvidos pelas ondas e voltaram a descer.
— Coração, 41.
— Temperatura, 35.
— Nada — disse Simon.
A primeira equipe de desarmadores de minas tinha descido em Sidney e havia continuado
a viagem. Eram os melhores, os ingleses.
— Agora — gritou Simon. — Imagens!
Ouviu a voz furiosa de Moissov e no outro ouvido a tradutora que lhe traduzia para não
gritar. Ouvia ao mesmo tempo no interior da sua cabeça, nascido diretamente no seu cérebro,
sem a intervenção dos nervos acústicos, um ronco surdo, tiros, explosões e vozes apagadas,
como envolvidas de brumas, algodoadas.
As imagens que via estavam embaçadas, desmanchavam-se, deformavam-se
constantemente, pareciam vistas através de um veio de água tinto de leite. Mas como ele já
havia visto os lugares que elas representavam, ele as reconheceu. Era o abrigo, o coração do
abrigo, o ovo.
Tentou dizer o que via em voz alta, porém moderada.
— Que se dane tudo o que você vê! — disse Moissov. — Diga-me simplesmente: "não
nítido", "não nítido", depois "nítido", quando estiver "nítido". E depois fique calado enquanto
sonha. Quando este tiver se tornado delirante, alucinante, não será mais a memória passiva,
será a memória loucura: o sonho. E será o momento antes do acordar.
Faça sinal. Compreendeu?
— Sim.
— Você diz "não nítido" depois "nítido" e depois "sonho". Isto é o bastante.
Compreendeu?
— Compreendi — disse Simon.
E alguns segundos mais tarde, disse:
— Nítido...
Ele via, e ouvia nitidamente. Não compreendia pois não havia circuito para a tradutora
intercalado entre os dois círculos de ouro, e os dois homens que ele via falavam em gonda.
Mas não tinha necessidade de compreender. Estava claro. Havia no primeiro plano Eléa nua
deitada no caixão, a máscara de ouro cobrindo seu rosto, e Paikan que se inclinava para ela, e
Coban que batia no ombro de Paikan e lhe dizia que era hora de partir.
E Paikan virava-se para Coban e o empurrava, jogava-o longe. E inclinava-se novamente
para Eléa, pousava docemente seus lábios sobre suas mãos, sobre seus dedos, pétalas
alongadas, repousadas, douradas, pálidas, flores-de-lis e de rosa-castanha e sobre a ponta dos
seios descansados, apaziguados, doces sob seus lábios como... nenhuma maravilha no mundo
das maravilhas não é assim tão doce e macia e morna sob os lábios... depois colocava sua
face no ventre de seda, acima da relva de ouro discreta, tão proporcional, tão perfeita... no
mundo das maravilhas nenhuma maravilha era tão discreta e justa, de medida e de cor, no seu
lugar e de doçura, na medida da sua mão que ele aí pousou, e sua mão o cobriu e ele se
encaixou na sua palma com a candura de um carneiro, de uma criança. Então Paikan começou
a chorar e suas lágrimas corriam sobre o ventre de ouro e de seda, e o troar surdo da guerra
que esmigalhava a terra ao redor do abrigo entrava pela porta aberta, chegava até ele, pousava
em cima dele, e ele não o ouvia.
Coban voltou na sua direção, falou-lhe e mostrou-lhe a escada e a porta, e Paikan não
compreendia. Coban pegou-o pelo braço e ergueu-o, mostrou-lhe acima do ovo a imagem
monstruosa da Arma, que enchia o negro do espaço e abria novas camadas de pétalas que
cobria as constelações. O barulho da guerra enchia o ovo como o ronco de um ciclone. Era um
barulho que não parava, um barulho de furor contínuo que encerrava o ovo e a esfera e que
fazia um caminho em direção a eles através da terra reduzida a poeira de fogo. Estava na hora,
estava na hora, na hora, na hora de fechar o abrigo. Coban empurrou Paikan para a escadaria
de ouro. Paikan sacudiu seu braço e se libertou. Ergueu sua mão direita à altura do peito, e
com o polegar, fez inclinar a pirâmide do seu anel. A chave. A chave podia se abrir. A
pirâmide girava em volta de um de seus lábios. Na cabeça de Simon ele viu em primeiro
plano, uma imensa figura do anel aberto. E na base libertada, num pequeno receptáculo
retangular, viu o pequeno Grão Negro. Uma pílula. Negra. O Grão Negro. O grão da morte. O
primeiro plano foi varrido pelo gesto de Coban. Coban empurrava Paikan para a escada. Sua
mão segurou o cotovelo de Paikan, a pílula saltou para fora do seu lugar, tornou-se enorme na
cabeça de Simon, encheu todo o campo de sua visão interna, voltou a cair minúscula,
imperceptível, perdida, desaparecida.
Paikan roubado de Eléa, roubado de sua morte, Paikan no auge do desespero, explodiu
num furor incontrolável, cortou o ar com sua mão em feitio de machado e bateu, depois bateu
com a outra mão, depois com as duas mãos, depois a cabeça de Coban caiu.
Um ronco furioso de guerra tornou-se um urro. Paikan ergueu a cabeça. A porta do ovo
estava aberta e, lá em cima da escadaria, a da esfera também estava aberta. Do outro lado do
buraco de ouro, chamas ardiam. Lutava-se no laboratório. Era preciso fechar o abrigo, salvar
Eléa. Coban havia explicado a Eléa todo o funcionamento do abrigo, e toda a memória de Eléa
tinha passado para a de Paikan. Ele sabia como fechar a porta de ouro.
Voou pela escadaria, rápido, furioso, rosnando como um tigre. Quando chegou sobre os
últimos degraus, viu um guerreiro enisor se meter pela entrada da porta. Atirou. O guerreiro
vermelho o viu e atirou quase ao mesmo tempo, atrasado de uma fração de tempo
infinitesimal. Acrescentada a cada dia durante os milhares de séculos, ela não teria dado para
acrescentar um segundo a mais ao fim de um ano. Mas foi o bastante para salvar Paikan. A
arma do homem vermelho soltava uma energia térmica pura. De calor total. Mas quando ele
apoiou sobre o comando, seu dedo não era mais que uma gaze mole que voava para trás com
seu corpo estraçalhado. O ar ao redor de Paikan tornou-se incandescente e apagou-se ao
mesmo tempo. Os cílios, as sobrancelhas, os cabelos, as roupas de Paikan tinham
desaparecido. Um milésimo de segundo a mais e nada teria sobrado dele, nem mesmo um
traço de suas cinzas. A dor da sua pele ainda não tinha atingido seu cérebro e ele já batia com
o punho no comando da porta.
Depois caiu sobre os degraus. O corredor de três metros de ouro fechou-se como um olho
de galinha com mil pálpebras simultâneas.
Simon via e ouvia. Ouviu a imensa explosão provocada pelo fechamento da porta, que
fazia explodir o laboratório e todos os acessos ao abrigo sobre quilômetros, pulverizando os
agressores e defensores e os enterrando na torrente das rochas vitrificadas.
Ouviu as vozes dos técnicos e reanimadores que, de repente, tinham se tornado inquietos:
— Coração, 40...
— Temperatura 34,8.
— Pressão arterial?
— Oito-três-oito-dois-sete-dois-seis-um...
— Meu Deus! O que é que está acontecendo? Ele está decaindo! Está se acabando!
Era a voz de Lebeau.
— Simon, continuam as imagens?
— Sim.
— Nítidas?
— Sim...
Ele via nitidamente Paikan descer outra vez dentro do ovo, inclinar-se sobre Coban,
sacudi-lo em vão, escutar seu coração, compreender que o coração havia parado e Coban
estava morto.
Via Paikan olhar o corpo inerte, olhar Eléa, erguer Coban, carregá-lo, jogá-lo fora do
ovo... Via e compreendia e sentia na sua cabeça o horrível sofrimento enviado pela pele
queimada de Paikan. Via Paikan descer os degraus, titubear até o túmulo vazio e nele se
estender. Viu a luz verde iluminar o ovo, e a porta começar lentamente a se abaixar enquanto
que o anel suspenso aparecia sobre o solo transparente. Viu Paikan, num último esforço, puxar
sobre o seu rosto a máscara de metal.
Simon arrancou o círculo de ouro e gritou:
— Eléa!
Moissov insultou-o em russo. Lebeau, inquieto, furioso, perguntou: — O que que lhe deu?
Ele não respondeu. Ele via...
Ele via a mão de Eléa, bela como uma flor, aberta como uma pássaro, pousar sobre a
máquina-de-comer...
Com o engaste de seu anel inclinado, a pirâmide de ouro deitada de lado, e a pequena
cavidade retangular vazia. Lá, dentro daquele esconderijo, deveria se encontrar o Grão Negro,
o grão da morte. Não estava mais lá, Eléa o havia engolido, levando à sua boca as esférulas
de alimento tiradas da máquina.
Ela havia engolido o Grão Negro para envenenar Coban, dando-lhe seu sangue
envenenado.
Mas era Paikan que ela estava prestes a matar.

Tu ainda podias ouvir. Podias saber. Não tinhas mais forças para manter tuas pálpebras
abertas, tuas têmporas se afundavam, teus dedos se tornavam brancos, tua mão escorregava
e caia da máquina-de-comer, mas ainda estavas presente e compreendias.
Eu teria podido gritar a verdade, gritar o nome de Paikan, terias sabido antes de
morrer que ele estava perto de ti, que vocês morreriam juntos como sempre haviam
desejado. Mas que arrependimentos cruéis, quando vocês poderiam ter vivido! Que horror
de saber que no momento de acordar de um tal sonho, ele morria com o teu sangue que o
poderia salvar...
Gritei teu nome e ia gritar: "É Paikan!", mas vi tua chave aberta, o suor das tuas
têmporas, a morte já pousada sobre ti, pousada sobre ele. A mão abominável da infelicidade
fechou-me a boca...
Se eu tivesse falado...
Se tivesse sabido que o homem perto de ti era Paikan, terias morrido num sobressalto
de desespero? Ou poderias ainda se salvar e a ele contigo? Não conhecias um remédio, não
poderias fabricar com teus toques milagrosos da máquina-de-comer um antídoto que teria
rechaçado a morte para fora de vosso sangue comum, de vossas veias ligadas? Mas te
restavam ainda bastantes forças?
Podias tu somente olhá-la?
Tudo isto, eu me perguntei em alguns instantes, num segundo tão breve e tão longo
quanto o longo sono do qual nós te tiramos. E depois enfim, gritei novamente. Mas não
disse o nome de Paikan. Gritei para esses homens que viam vocês dois morrer e que não
sabiam por que e se afobavam.
Gritei-lhes: "Vocês não veem que ela se envenenou!" E insultei-os, peguei o mais
próximo, já nem sei mais quem era, sacudi-o, bati-lhe, eles não haviam visto nada, tinham
te deixado fazer aquilo, eram imbecis, uns asnos pretensiosos, mas cretinos cegos...
E eles não me compreendiam. Respondiam-me cada um na sua língua, e eu não os
compreendia. Só Lebeau me havia compreendido e arrancava a agulha do braço de Coban.
E ele também gritava, mostrava com o dedo, dava ordens e os outros não compreendiam.
Ao redor de ti e Paikan, imóveis e em paz, era a loucura das vozes e dos gestos, e o balé
das blusas verdes, amarelas, azuis.
Cada um se dirigia a todos, gritava, mostrava, falava e não compreendia. Aquela que
compreendia tudo e que todos compreendiam não falava mais nos ouvidos. Babel tinha
caído novamente sobre nós. A tradutora acabara de explodir.

Moissov, vendo Lebeau arrancar a agulha do braço do homem, pensou que ele havia
enlouquecido ou que queria matá-lo. Segurou-lhe o pulso e bateu-lhe. Lebeau defendeu-se
gritando: "Veneno, veneno!"
Simon, mostrando a chave aberta, a boca de Eléa, dizia: "Veneno! Veneno!"
Forster compreendeu, gritou em inglês para Moissov, arrancando-lhe das mãos o
maltratado Lebeau. Zabrec cessou a transfusão. O sangue de Eléa parou de correr sob os
curativos de Paikan. Depois de alguns minutos de confusão total, a verdade atravessou a
barreira das línguas e de novo todas as atenções convergiram para o mesmo fim: salvar Eléa,
salvar aquele que todos, com exceção de Simon, ainda acreditavam ser Coban.
Mas eles já estavam muito longe na sua viagem, já quase no horizonte.
Simon pegou a mão nua de Eléa e colocou-a na mão do homem enfaixado. Os outros
olhavam com espanto, porém ninguém dizia mais nada. A química analisava o sangue
envenenado.
De mãos dadas, Eléa e Paikan deram seus últimos passos. Os dois corações pararam ao
mesmo tempo.
Quando teve certeza de que Eléa não podia mais ouvi-lo, Simon mostrou com o dedo o
homem deitado e disse:
— Paikan.
Foi nesse momento que as luzes se apagaram. O difusor tinha começado a falar em francês.
Ele havia dito: "A tra..." Calou-se. A tela de tevê que continuava a vigiar o ovo fechou seu
olho cinzento e todos os aparelhos que ronronavam, estalavam, estremeciam, crepitavam, se
calaram. A mil metros sob o gelo, a escuridão total e o silêncio invadiram a sala. Os vivos, de
pé, ficaram pregados nos lugares. Para os dois seres deitados no meio deles, o silêncio e a
escuridão não existiam mais. Mas para os vivos, as trevas que os envolviam de repente na
tumba profunda eram a espessura compreensível da morte. Cada um ouvia o barulho de seu
próprio coração e da respiração dos outros, exclamações contidas, palavras cochichadas, e
acima de tudo a voz de Simon, que tinha se calado, mas que todos continuavam a ouvir:
— Paikan... Eléa e Paikan...
Sua história trágica tinha se prolongado até esse minuto, onde a fatalidade furiosa os havia
atingido pela segunda vez. A noite os havia reunido no fundo do túmulo de gelo e envolvia os
vivos e os mortos, ligava-os num bloco de infelicidade inevitável cujo peso ia afundá-los
juntos até o fundo dos séculos e da terra.
A luz voltou, pálida, amarela palpitante, apagou-se de novo e reacendeu um pouco mais
viva. Eles se olharam, se reconheceram, respiraram, mas sabiam que não eram mais os
mesmos. Voltavam de uma viagem que quase não havia durado, mas todos, agora, eram irmãos
de Orfeu.
— A tradutora explodiu! Toda EPI-2 está nos ares, o muro do hangar está aberto como uma
avenida!
Era a voz de Brivaux que estava de guarda no alto do elevador.
— A eletricidade pifou, a pilha deve ter sofrido um golpe. Eu os liguei no circuito do
poço. Vocês fariam bem de subir o mais depressa possível! Mas não contem com o elevador,
não tem bastante força, é preciso gastar os sapatos na escada. Onde é que vocês estão com os
dois espécimes? Já podem ser transportados?
— Os dois espécimes morreram — respondeu Lebeau com a calma de um homem que
acaba de perder numa catástrofe sua mulher, seus filhos, sua fortuna e sua fé.
— Merda! Depois de tanto trabalho! Bem, agora pensem em vocês! E se apressem antes
que a pilha comece a dançar a bourrée*.
Forster traduzia em inglês para aqueles que não tinham compreendido em francês. Os que
não compreenderam nem uma nem outra, compreenderam os gestos. E aqueles que não
compreenderam nada já tinham compreendido que precisavam sair do buraco. Forster
desligou definitivamente as minas de entrada. Já alguns técnicos subiam em direção à abertura
da esfera. Havia três enfermeiras, entre elas a assistente de Lebeau que tinha cinquenta e três
anos. As outras duas, mais jovens, chegariam sem dúvida lá em cima.
Os médicos não se conformavam com a ideia de deixar Eléa e Paikan.
Moissov fez sinal dando a entender que poderiam amarrá-los nas costas, acrescentou
algumas palavras num inglês horrível que Forster interpretou como querendo dizer: "Cada um
por sua vez."
Mil metros de escada. Dois mortos.
— A pilha está fissurada! — gritou o emissor. — Está rachada, cospe e fuma por todo
canto! Nos retiramos numa confusão total! Apressem-se!
Desta vez, era a voz de Rochefoux.
— Saindo do poço, dirijam-se para o sul, virem as costas ao lugar de EPI-2. O vento leva
as radiações na outra direção. Helicópteros vão recolhê-los. Deixo uma equipe aqui para
esperá-los, mas se isso explodir antes e vocês saírem não se esqueçam: diretamente para o
sul! Vou tratar dos outros. Andem depressa...
Van Houcke falou em holandês e ninguém o compreendeu. Então, repetiu em francês que na
sua opinião deveriam deixá-los lá. Estavam mortos, não se podia fazer mais nada por eles,
nem deles. E encaminhou-se para a porta.
— O mínimo que podemos fazer — disse Simon — é recolocá-los onde os encontramos...
— Também acho — disse Lebeau.
Explicou-se em inglês com Forster e Moissov, que concordaram.
Pegaram primeiro Paikan sobre seus ombros, e fizeram-no descer novamente o caminho
por onde o haviam içado para as suas esperanças, e o colocaram no seu caixão.
Depois foi a vez de Eléa. Os quatro a carregaram, Lebeau, Forster, Moissov e Simon.
Colocaram-na no outro caixão, perto do homem com o qual ela havia dormido durante
novecentos mil anos sem o saber, e com quem ela havia, sem o saber, mergulhado num novo
sono que não teria fim.
No momento em que todo o seu peso descansou no caixão, um brilhante raio azul brotou do
solo transparente, invadiu o ovo e a esfera e atingiu os homens e as mulheres agarrados às
escadas. O anel suspenso recomeçou seu curso imóvel, o motor recomeçou sua tarefa um
instante interrompida: envolver com um frio mortal o fardo que lhe haviam confiado, e guardá-
lo através do tempo interminável.
Rapidamente, pois o frio já os oprimia, Simon desamarrou em parte a cabeça de Paikan,
cortou e tirou as ataduras a fim de que seu rosto ficasse nu ao lado do rosto nu de Eléa.

* Dança rústica francesa. (N. do T.)

O rosto livre apareceu, muito belo. Quase não se percebiam mais suas queimaduras. O
soro universal trazido pelo sangue de Eléa tinha curado sua carne antes que o veneno lhe
tirasse a vida. Eles estavam incrivelmente belos e em paz. Uma névoa gelada invadia o
abrigo. Da sala de reanimação, chegaram pedaços da voz anasalada do difusor: — Alô!...
Alô!... ainda alguém?... Apressem-se!...
Eles não podiam demorar mais. Simon saiu por último, subiu os degraus de costas, apagou
o projetor. Teve primeiro a impressão de uma escuridão profunda, depois seus olhos se
acostumaram à luz azul que banhava novamente o interior do ovo com sua claridade noturna.
Uma estreita faixa transparente começava a envolver os dois rostos nus, que brilhavam como
duas estrelas. Simon saiu e fechou a porta.
Um verdadeiro carrossel tinha se estabelecido entre os porta-aviões, os submarinos, as
bases mais próximas e as costas de EPI. Sem cessar, os helicópteros pousavam, se enchiam e
partiam outra vez. Um funil retalhado, sujo de todas espécies de restos, brilhando de reflexos
de gelo, marcava o lugar do EPI-2. Rolos de fumaça subiam no vento enraivecido que os
colhia no nível do chão e levava para o norte.
Pouco a pouco, todo o pessoal foi evacuado, e a equipe do poço saiu por sua vez e foi
toda recolhida. A enfermeira quinquagenária foi das primeiras a chegar lá em cima. Ela era
magra e escalava os degraus como uma cabra.
Hoover e Leonova embarcaram com os reanimadores, no último voo do último
helicóptero. Hoover, de pé diante de uma escotilha apertava contra ele Leonova que tremia de
desespero. Olhava com horror a base devastada e resmungava baixinho: — Que confusão, meu
Deus, que confusão!...
Os sete membros da Comissão encarregados de redigir a Declaração do Homem Universal
encontravam-se embarcados sobre sete navios diferentes, e não tiveram mais ocasião de se
encontrar. Não tinha mais ninguém em terra. No céu aviões prudentes, em voo muito alto,
rodavam ao longe, conservando EPI-2 dentro do campo de suas câmaras. O vento soprava
novamente numa tempestade furiosa, mais forte a cada segundo. Varria os escombros da base,
carregava os pedaços de qualquer coisa, multicores, para os horizontes brancos, a distâncias
desconhecidas.
A pilha explodiu.
As câmaras viram o cogumelo gigantesco carregado pelo vento, torcido, rasgado,
estripado até o vermelho do seu sangue de inferno, carregado aos pedaços na direção do
oceano e das terras longínquas. A Nova Zelândia, a Austrália, todas as ilhas do Pacífico se
encontravam ameaçadas. E em primeiro lugar os prédios da Força Internacional. Os aviões
voltaram para bordo, os submarinos mergulharam, os navios de superfície deram toda
velocidade contra o vento.
A bordo do Netuno, Simon contou aos sábios e aos jornalistas que aí se encontravam, o
que ele havia visto durante a transfusão, e como Paikan havia tomado o lugar de Coban.
Todas as mulheres do mundo choraram diante das telas. A família Vignont comia à sua
mesa de meia-lua olhando o cogumelo descabelado em serpentes como medusas que marcava
o fim da generosa aventura. A Sra. Vignont havia aberto uma grande lata de ravióli com molho
de tomate, tinha-a aquecido em banho-maria e servido dentro da própria lata, porque assim se
mantinha mais quente, dizia ela, mas na realidade era porque assim andava mais depressa e
não sujava prato.
Depois da explosão, apareceu a cabeça de um homem que assumiu um ar melancólico para
pronunciar palavras de condolências, e passou a outras notícias. Infelizmente, elas não eram
boas. No f ront da Mandchúria esperavam... Na Malásia, uma nova ofensiva... Em Berlim, a
fome devida ao bloqueio... No Pacífico, as duas frotas... No Kuwait, o incêndio dos poços...
No Cabo os bombardeios da aviação negra... Na América do Sul... no Oriente Médio... Todos
os governos faziam o impossível para evitar o pior. Enviados especiais cruzavam os
mediadores em todas as altitudes, em todas as direções. Esperava-se, esperava-se muito. A
mocidade se agitava um pouco em todos os lados. Não se sabia o que ela queria. Ela também
não, é claro. Os estudantes, os jovens trabalhadores, os jovens camponeses, e os bandos cada
vez mais numerosos de jovens que não eram nada e não queriam ser nada se reuniam, se
misturavam, invadiam as ruas das capitais, paravam o trânsito, atacavam a polícia, gritando:
"Não! Não! Não! Não! Em todas as línguas isso se exprime por uma pequena palavra
explosiva, fácil de gritar. Todos eles a gritavam, sabiam disso, sabiam que não queriam. Não
se sabe exatamente quais foram o? que começaram a gritar o "não!" dos estudantes gondas:
"Pao! Pao! Pao! Pao!" mas em poucas horas toda a mocidade do mundo gritava, diante de
todos os policiais.
— Pao! Pao! Pao! Pao!...
Em Pequim, em Tóquio, em Washington, em Moscou, em Praga, em Roma, na Argélia, no
Cairo:
— Pao! Pao! Pao! Pao!...
— Esses moços, eu, eu os poria todos dando duro... — disse o pai.
— O governo se esforça... — falou o rosto na tela.
O filho se levantou, pegou seu prato e atirou-o na imagem, gritando: — Velho burro! Vocês
são todos uns velhos burros! Vocês os deixaram morrer com suas burrices!
O molho escorria sobre o vídeo inquebrável. O rosto triste falava por trás do molho de
tomate.
O pai e a mãe, surpresos, olhavam seu filho transfigurado. A filha não olhava para nada,
não ouvia nada, estava toda ao redor do seu ventre que não parava de se lembrar da noite
precedente passada num hotel da Rua Monge.
— com um espanhol magro. Todas essas palavras, essas palavras, será que adiantam
alguma coisa?
Seu irmão gritava:
— Voltaremos lá. Nós os salvaremos! Encontraremos o contraveneno. Eu, eu sou um
idiota, mas há os que saberão! Nós os tiraremos da morte! Não queremos saber da morte!
Não queremos a guerra! Não queremos as burrices de vocês!
— Pão! Pão! Pão! Pão! — gritava a rua cada vez mais alto.
E os apitos da polícia, os estouros abafados das bombas de gás lacrimogêneo.
— Eu, eu sou um idiota, mas não sou burro!
— As manifestações... — continuava o rosto na tela.
Jogou em cima dele toda a lata de ravióli e saiu. Bateu a porta, gritando: — Pão! Pão!
Ouviram-no na escada, depois ele se confundiu com os outros.
— Como este menino é bobo! — gritou o pai.
—Como é bonito! — disse a mãe.
O AUTOR

René Barjavel

Filho de padeiro, René Barjavel foi o primeiro da família a não exercer uma profissão
manual. Nascido em Nyons (Drome), França, em 1911, começou a escrever com menos de 20
anos, e se levantava às 4 da manhã para trabalhar em seus textos, antes de ir para o trabalho --
fazia então diálogos para filmes, adaptações e crítica de cinema e teatro.
Casou-se em 1936 e nos três anos seguintes chegaram os dois filhos e a guerra.
Desmobilizado em 1942, no ano seguinte lançou seu primeiro romance: Ravage. Depois
publicou, sempre com sucesso, Tarendol (1949), Journal d'un homme simple (1950), Jour de
feu (1957), Le voyageur imprudent (1958), Le diable Vemporte (1959), Colombe de la lune
(1962) e outros.
Seu último livro, Les chemins de Katmandou, foi transformado em filme por André
Cayatte, com diálogos do próprio Barjavel, também autor de um livro de ensaios sobre a
Sétima Arte: Cinema total.

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