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Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias

NEFI

Coleção
Teses e Dissertações

Volume V

I
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Reitor: Ruy Garcia Marques
Vice-Reitora: Maria Georgina Muniz Washington
Sub-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Egberto Gaspar de Moura
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd)
Coordenador: José Gondra
Vice-Coordenadora: Lígia Aquino
Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Coordenador: Walter Omar Kohan
Conselho Editorial
Alejandro Ariel Cerletti, Universidad de Buenos Aires
Carlos Bernardo Skliar, FLACSO, Argentina
César Donizetti Leite, UNESP - Rio Claro
Gregorio Valera-Villegas, Universidad Experimental Simón Rodríguez, Venezuela
Gustavo Fischman, Arizona State University
Juliana Merçon, Universidad Veracruzana, México
Junot Cornelio Matos, UFPE
Karin Murris, Cape Town University
Marina Santi, Università degli Studi di Padova, Italia
Maximiliano Durán, UERJ
Olga Grau, Universidad de Chile
Paula Ramos de Oliveira, UNESP, Araraquara
Pedro Pagni, UNESP, Marília
Rosana Fernandes, UFRGS
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo, UNICAMP
Wanderson Flor do Nascimento, UnB
Equipe de redação (NEFI/UERJ)
Alessandra Lopes
Allan Rodrigues
Fabiana Martins
Marcelly Custodio
Simone Berle
Capa: Marcelly Custodio de Souza
Diagramação: Simone Berle e Marcelly Custodio de Souza
Revisão Técnica: Simone Berle
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Daniel Gaivota Contage

Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-


Viagem. / Daniel Gaivota Contage. – 1 ed – Rio de Janeiro: NEFI, 2017 –
(Coleção: Teses e Dissertações; 5).

ISBN: 978-85-93057-09-0

1. Escola-viagem. 2. Filosofia. 3. Deslocamento. 4. Nomadismo. I. Título. II


Série.

CDD 370.1
Índice para catálogo sistemático:
1. Educação: Filosofia 370.1

© 2017 Daniel Gaivota Contage


© 2017 Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI/UERJ)
Site: www.filoeduc.org
Email: publicacoesnefi@gmail.com

II
Daniel Gaivota

POÉTICA DO DESLOCAMENTO:
NOMADISMO, DIFERENÇA E NARRATIVA NA ESCOLA-

VIAGEM

Coleção
Teses e Dissertações

Rio de Janeiro,
NEFI, 2017

III
Coleção
Teses e Dissertações

Beatriz Fabiana Olarieta


Gestos de Escrita: pesquisar a partir de uma experiência de filosofia na escola.
(2016.Volume I)

Maria Reilta Dantas Cirino


Filosofia com crianças: cenas de experiência em Caicó (RN), Rio de Janeiro (RJ) e La Plata (Argentina).
(2016.Volume II)

Maria Jacintha Vargas Netto


Gestos tecnológicos: o que pensa o YouTube em um curso de formação de professores de uma universidade
pública na cidade do Rio de Janeiro?
(2016.Volume III)

Vinicius Bertoncini Vicenzi


Fala, gesto, silêncio: uma questão pedagógica. A discussão entre sofistas e filósofos pelo sentido e poder de
ensinar
(2017.Volume IV)

Daniel Gaivota Contage


Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
(2017. Volume V)

IV
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO

O Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias da Universidade do Estado do


Rio de Janeiro (NEFI/UERJ) experimenta o que qualquer grupo de trabalho de
uma universidade pública faz: ensinar, pesquisar e estender a universidade fora dos
seus muros. Seu foco temático são as relações entre infância, educação e filosofia,
tanto no que diz respeito a experiências filosóficas com crianças e à formação de
professoras em escolas públicas quanto ao estudo e o exercício mais amplos
possíveis da categoria de infância. Desde 2003 o NEFI tem estabelecido parcerias
de trabalho com grupos de distintos países e acolhido as mais diversas pesquisas
com muitas formas institucionais: trabalhos de fim de curso, ou seja, monografias,
dissertações e teses de estudantes da UERJ, missões de estudo e de trabalho com
outras instituições nacionais e internacionais; pesquisadores visitantes; estâncias de
pós-doutorado… devido às exigências do mundo editorial, relativamente poucas
dessas pesquisas têm visto a luz em forma de livro. Eis a razão principal do
nascimento dessa Coleção “Teses e Dissertações” aqui inaugurada pelo NEFI:
trata-se de possibilitar que os trabalhos por ele acolhidos possam tomar, de forma
mais notória, estado público. Para isso, periodicamente, o NEFI abrirá uma
chamada e os trabalhos candidatados serão julgados por uma comissão específica de
seu Conselho Editor Internacional que determinará a ordem em que os trabalhos
considerados aptos serão publicados. Os livros serão publicados nos formatos papel
e e-book. Esperamos que a coleção “Teses e Dissertações” contribua não apenas
para o crescimento acadêmico dos seus autores mas para a consolidação de um
campo que, talvez, possa nos fazer encontrar uma outra infância: a infância de uma
nova educação.

Walter Omar Kohan


Coordenador do NEFI
Rio de Janeiro, Setembro de 2016

V
VI
Em nó, em nós. À espera.

VII
VIII
AGRADECIMENTOS

Às gaivotas, que me ensinaram como e por que escrever.

E aos animais anômalos que ocupam a borda de seus territórios, agindo como
pontas de desterritorialização e (se/me) permitindo todos os devires. Se eles são
anomalias nas matilhas, bandos e multiplicidades aos quais pertencem, formam para
mim uma espécie de “matilha fronteiriça”, um des-território, mancha intensiva no
meu mapa de afecções.
São eles:
Uma aranha que, com calma, multitateia vários pontos, ao mesmo tempo (e
simultaneamente anda de bicicleta, traduz, cozinha, joga futebol, briga, ensina...),
que sonha em fiar, e fia, uma teia impossível – mas que se torna mestre, aí,
justamente pela capacidade de permitir sonhar e de fiar junto, com-fiar.
Um casal de pássaros que não cessa de cantar na minha janela, um amarelo e
outro azul, bem-te-vi e beija-flor, um solar e outro lunar, me lembrando,
respectivamente, que o dia sempre amanhece e que ele é sempre belo.
Uma minhoca que tem mais corações que pernas, que não pode ver direito o
que há em frente, mas segue, pois deixando um coração em cada lugar, policárdia,
re-corda.
Um animal marinho (um peixe? um golfinho? uma tartaruga?) que, por não
poder caminhar, ocupa oculto os subterrâneos da cidade, e, com ouvido muito
atento, se faz caminhante com o outro, através do carinho – que é quase caminho.
Um rato. Ou melhor, uma rata cantora, Josefina do povo dos ratos,
observadora tímida de um mundo que lhe pertence; que ao se alimentar de pura
intensidade, escapa do presente, transformando todo momento em aventura.
Uma prolífica vespa, cujo ferrão, embora pronto para atacar, funciona mais
como polinizador: tocando pouco a pouco centenas de botões de flores e trocando
partículas entre eles e entre si própria, faz vibrar a flora rizomática do pensar e do
saber, fazendo proliferar e proliferando fazer.

IX
Um animal desértico, resistente, que ao decidir abandonar sua condição de
camelo, passa a perseguir sua nova forma de lagarto ígneo, de dragão – de animal
que, por mais raro que seja, não vê o próprio valor através dos olhos dos curiosos,
mas na capacidade de esperar, tranquilo, o sol nascer através dos seus.
Uma lagosta-boxeadora, cuja maior força não são as pinças que se recusa a
usar, mas os olhos, capazes de ver centenas de cores inexistentes para a maioria dos
outros olhos. Seu segredo é simples: olhar demoradamente, como se ver fosse mais
do domínio do tempo que do espaço.
Um társio inquieto, impossível de manter em cativeiro, cuja música de
liberdade acorda e ativa todos os elementos, e cuja velocidade faz com que escape de
todas as redes de captura – mas se entregue, em compensação, às de pesca.
Agradeço também:
À matilha mais antinômica que já houve, na qual – como não pode deixar de
ser numa amizade – os animais são todos anômalos, cada um separado dos outros
por seu elemento – deserto, mar, céu, centro da terra – mas unidos eternamente por
um macaco caolho.
Ao bando de pássaros que, mesmo sendo de diferentes espécies, aprenderam
a voar juntos e piar em sintonia, a ocupar os fios e árvores dos aparelhos do Estado,
como uma intensa e feroz máquina de guerra ornitomórfica.
À panapaná vibrante que coloriu este trabalho, do início ao fim (se é possível
encontrá-los), com a vivência intensa de línguas ainda por escrever, infâncias,
americanidades, sabores, sorrisos e que, em sua constante e inevitável migração,
alterna-se sempre entre hospitaleiro e hospita-lar.
E às alcateias, cardumes, enxames, manadas, miríades, rebanhos, cáfilas e
chafardéis de animais-alunos que me fizeram multiplicidade e que me tornaram
educador. A cada um destes devoradores famintos que saboreiam o mundo comigo
nas salas de aula que acontecem através do mundo.
Aqui, muito especialmente, agradeço aos seguintes:
Uma libélula admirada, que flutua pelo ar com seus mil olhos e seus mil
pousos, prestando atenção e libertando os elementos;

X
Um avestruz, que no afã de voar, tropeça – mas cuja queda, como tudo o que
vem do impossível, é tão bela que, do alto, é invejado pelos que não sabem cair;
Uma píton, que habita o mundo de maneira tão verdadeira que seu veneno
lhe seria inútil – mas que em contrapartida, ao abraçar, retém eternamente;
Um lobo de poder que, tendo sido abandonado outrora, hoje alimenta
dezenas de Rômulos e Remos;
Uma anti-tartaruga, que no seu desejo íntimo de tartarugar, ganha sempre
ainda mais velocidade;
Um bicho sonolento (ora preguiça, ora gato, ora morcego), que por ser do
reino dos sonhos entende a lorota como parte importante da história;
Uma vaca, que, ao compreender que precisa transformar o mundo, decide
alimentá-lo de diferença, distribuindo todo o saber, sabor e amor que produz;
Um urso que, em sua meditação, por poder compreender diversos lados de
diversas situações, acha que fica louco, apesar de ser o animal mais são;
Um cavalo-marinho, que pensa que faz escolhas atento à beleza das opções,
mas não entende que é justamente ao escolher que produz toda a beleza do mundo;
Um leão azul que, apesar de não ter tempo a perder, deita ao sol de barriga
pra cima e aproveita o momento, porque acha que só viveu aquilo de que lembra;
E outro leão, vermelho, que sacode a juba rúbia e esconde a fraqueza, que
ruge alto e intimida a savana, mas que tem de mais vermelho mesmo o coração;
E outro leão ainda, da cor do sol, apolíneo e visionário, líder dominador e
independente – mas que no fim do dia, deitado para dormir, ronrona como um gato;
Um lobo que à noite se transforma em unicórnio – ou um unicórnio que de
dia vira lobo, seria impossível dizer;
Uma andorinha, que ao fazer seu ninho, em vez de se isolar, se aproxima, que
ao proteger seu filhote, o ex-põe, que é mãe como pássaro, pelo ar;
Um elefante companheiro, que, na sua ideia de ir mais devagar para não
abandonar ninguém da manada pra trás, tornou a “frente” o lugar menos
importante;
Um passarinho migrante para o qual a migração não tem tanto a ver com
conhecer o mundo, mas com a possibilidade de ser conhecido por ele;

XI
Um camaleão que compreendeu que a verdadeira mudança é aquela mais
difícil de perceber;
Um segundo camaleão, que aceita as mudanças que sofre ao entender que
você só se transforma no que você é;
Um cavalo-marinho, que pode finalmente perceber a própria beleza ao
conviver com um outro que a perceba também.
Um filhote de falcão, que sonha feliz com o dia que voará mais alto que todos;
Uma pantera, que mais que sensual ou incisiva, é noturna e oculta, seus
olhos passando por vaga-lumes nas sombras para qualquer animal menos atento;
Um peixe Limpa-fundo de água doce, que encontra, na limpeza do mundo
dos outros, a clareza dos próprios olhos, a busca de outros caminhos;
Um gato-do-mato, que quase nunca se vê (embora esteja sempre ali,
camuflado), mas ao aparecer, altera a cena e transforma as relações;
Uma coruja por oposição a si própria, que por não ser, acaba sendo – afinal as
corujas nunca se parecem exatamente com corujas;
Um macaco de sítio, que sonha em, na selva profunda, subir galhos e comer;
Um bicho-de-pé ou bicho geográfico, que encontra na superfície do que está
próximo todo um mapa-mundi de meridianos, horizontes, linhas, possibilidades do
que está longe;
Um piolho, que, vivendo de intensidades, não consegue se definir a não ser
por sua relação com os outros animais;
Um besouro, que debaixo da carapaça esconde o segredo de saber voar;
Um corvo, que aprendeu a falar diversas línguas, se comunicar com todos os
animais, mas que na verdade passa seu tempo mais observando que falando;
Um lupino-docente, que, ao contrário, encontra sua felicidade em passar
adiante o que sabe, preparando para a floresta diversos pequenos Mowglis;
Um coala que pode parecer lento a quem olha de fora, mas que está só
esperando para fazer seu ataque... às folhas de um eucalipto;
Um ouriço, difícil de abraçar, mas ao mesmo tempo tão fácil...;
Uma formiga-rainha que até parece querer escravizar a outra, mas no fundo
tem um profundo desejo de amor;

XII
Uma borboleta que não cansa de ser lagarta nem casulo e a eles retorna para
retornar borboleta, pois descobriu que a verdadeira beleza está na transformação;
Um bicho-preguiça que, aos próprios olhos, sente dor como uma arara;
Um outro lobo, que descobriu na docilidade e no sorriso seu lugar na
alcatéia;
Uma serpente que, a cada troca de pele, se torna menor e menor, mas cada
vez mais perto de ser deus – ou seja, nada;
Uma coruja que, noturna, sempre pareceu distante, mas só até olhar o fundo
dos seus olhos amarelos de quem nunca esteve em outro lugar;
Um peixe de aquário solto no mar, que não deixa de achar incrível (e
experimentar novas profundidades) estar debaixo de tanta água e nunca se afogar;
Um animal que, de tanto sentir, esqueceu que sente e acha ser humano – mas
que vai descobrir que a razão só existe como uma pequena parte da emoção;
Um castor que, sem aviso, pouco a pouco, dos restos de uma floresta que
caiu, constrói seu mundo, nos limites entre os elementos;
Uma girafa que não sabe se é galho ou um macaco que se pendura num
pescoço, sendo ao mesmo tempo o que é e o que não sabe que é;
Uma maria-farinha, que escondida em sua timidez, percorre todo um
território arenoso impossível só pra poder reaparecer e dar uma voltinha na
superfície.
Um pato insular, de andar engraçado e lento, mas cujo voo é o mais alto e
longínquo de todas as aves deste bestiário;
Uma pequena águia que, irrequieta, ocupa os fios dos postes da cidade,
fazendo voarem os pássaros próximos, esperando seu dia de partir;
Um bugio filósofo, que, ao invés de sussurrar preposições, as grita;
Um urso atento aos próprios sentidos e aos próprios prazeres, mas mais
atento ainda aos dos outros e do mundo;
Uma outra coruja ainda, mas diurna, subversiva, enfrentamento da coruja
noturna, aparecimento luminoso daquilo que deveria estar em outro tempo;
Um tatu que ocupa os buracos como um verdadeiro escavador, criando tocas
cujas entradas são sempre, paradoxalmente, saídas;

XIII
Um albatroz, que ao demorar anos aprendendo sua dança do acasalamento,
compreendeu que a viagem mais importante é sempre a de volta – ou seja, o amor;
E outro albatroz, que pelo contrário, aprendeu a viajar sozinho, também por
amor, mas aos elementos – água, terra, ar...
E, é claro, aos nem um pouco domésticos cães e gatos:
Um gato, mas não daqueles que volta para casa, ou seja, que só sabe sair;
Um gato que desconfia do desconhecido, e por isso lida ferozmente com ele;
Um gato que se faz é gato na felina relação com outros gatos;
Um gato com os sentidos vivos, sempre pronto para uma (pergunta)
surpresa;
Um gato preto, que, como todos sabem, tem poderes mágicos;
Um cão transparente, que não precisa esconder o que sente e vive verdade;
Um cão-espelho, que quanto mais amor lhe dão, mais amor devolve;
Um cão confiante, que apesar de confiar tem uma pulga atrás da orelha;
Um cão que luta para não guardar rancor, mas guarda mesmo é memória;
Um cão beagle, que precisa saber que.... o quê mesmo?
Um cão, que, mesmo arrependido por ter seguido seus instintos, lembra de
tudo com alegria;

E, por fim, ao Pancho, que no seu devir-Daniel, todos os dias me faz devir-
Gaivota.

XIV
15
16
PRÓLOGO
Viajando com Daniel: escolas em movimento?

Viajar supõe, então, a recusa do emprego do tempo laborioso da


civilização em proveito do lazer inventivo e alegre.
(ONFRAY, 2007, p. 15)

Estamos já acostumados aos discursos catastrofistas sobre a escola, aqueles


que decretam sua falência e anunciam que ela já não tem lugar no mundo
contemporâneo, pois já não responde às necessidades formativas deste tempo e
desta configuração social. Alguns alardeiam estes discursos, como profetas de um
novo tempo; outros o combatem com todas as suas forças, defendendo a instituição
escolar contra os ataques. Já estamos preparados para tudo isso, para ouvir os
ataques e as defesas, para tomar partido por um lado ou por outro. Mas estaremos
preparados para pensar e fazer escola de modos diferentes e diferenciais? Não para
atacá-la ou defendê-la, não para decretar sua falência ou salvá-la de tudo e de todos,
mas para, na inocência de uma mirada infantil, pensá-la com olhos nus, sem
preconceitos ou ideias prontas, capazes de ver novas possibilidades e caminhos?
Este é o convite que encontramos neste trabalho de Daniel Gaivota: uma
escola-viagem que é deslocamento, transformação, mudança constante, lugar de
experiência e experimentação. Estaremos preparados para pensar e viver uma
escola-viagem? Penso que a maioria de nós não o está, e aí está uma das grandezas
deste livro: abrir olhos, abrir caminhos, abrir cabeças ou, ao menos, desafiar a
pensar de outros modos.
Como afirmou Michel Onfray na frase citada em epígrafe, a viagem nos
convoca e nos remete para um outro tempo. Aquele que viaja e se mantém nas
ondas do Cronos dominador, não se deixando “perder tempo” não viaja, de fato,
apenas se desloca. E hoje sabemos ser possível viajar (deslocar-se) por todo o
mundo “sentindo-se em casa”: estar em hotéis impessoais que são os mesmos
espaços internos em qualquer lugar do mundo, não importa o que haja do lado de
fora da janela (e, algumas vezes, nem mesmo há um “fora” da janela...); se sai do

17
Sílvio Gallo

hotel e entra-se em um carro, trem, avião, sem experimentar qualquer estranheza;


se ouve e se fala uma “língua universal” com todos e com qualquer um; se come a
mesma comida com os mesmos sabores em qualquer fast food da vida, não importa
onde se esteja... Permanece-se numa “homocronia” e numa “homotopia”: sem
deslocar-se, sem experimentar um tempo outro, não se viaja.
A escola tal como a conhecemos é afirmação de um topos e de um tempo.
Haverá algo mais institucionalizado do que uma escola? Haverá espaço mais
estriado do que uma escola? Haverá tempos mais organizados e cronometrados que
os tempos escolares? A escola, tal como a vivemos em nossos cotidianos, é a mais
sedentária possível. Escola: lugar onde se aprende a seguir a ditadura do tempo.
Escola que nos prepara para um não deslocamento.
Mas, sabe-se, as coisas nem sempre foram assim... Masschelein e Simons, que
saíram “Em defesa da escola”, resgatam seu sentido público: skholé como tempo
livre, o tempo do lazer e da alegria de que fala também Onfray; se nos remetemos
ao romantismo alemão, redescobrimos as narrativas de viagem e seus aspectos
formativos: aprende-se a viver no mundo, deslocando-se por ele, experimentando
suas dobras, desdobras e redobras, não encerrado entre quatro paredes. Daniel, nas
asas da gaivota, nos convoca a outras percepções; não a voltar a estas experiências,
mas a inventar novas possibilidades, a viajar na escola.
E aqui encontro outra ressonância com esse belo pequeno livro que Onfray
escreveu sobre a viagem:
Na escola da poesia, acusa-se uma familiaridade com o acaso
objetivo caro a André Breton: estar disponível aos acontecimentos
para suscitar e solicitar o porvir, pôr-se a disposição do mundo para
que advenha um signo e que surja uma epifania pagã, abrir-se ao
real para penetrá-lo à maneira de uma fruta decidida a dar-se,
convencida da necessidade de se oferecer. Disposto, este viajante
tocado pela graça coloca seu corpo à disposição do inefável e do
indizível que, metamorfoseados em impulsões, em emoções, devêm
em seguida sentidos e terminam em palavras, em imagens, em
ícones, em desenhos, em cores, em características – em traço que
transfigura a efervescência de uma experiência em incandescência
expressiva. (ONFRAY, 2007, p. 66)
A escola-viagem pensada e vivida por Daniel é esta abertura, esta construção
do porvir. Estar na escola é viajar, experimentar, deixar-se levar pelos

18
Prólogo

acontecimentos que nos guiam para lugares sequer imaginados, ser atravessado
pelas forças do fora, transfigurando-se em novas expressões.
Leiamos Daniel, viajemos, nos deixemos levar por suas ideias para praias
desconhecidas – ou talvez muito familiares. Nas asas da gaivota, tenhamos a
coragem de olhar a escola de outros modos: e talvez vejamos coisas das quais não
poderíamos suspeitar...

Sílvio Gallo

Referência
ONFRAY, Michel. Théorie du Voyage – poétique de la géographie. Paris: Le Livre de
Poche: 2007.

19
20
EXÓRDIO

Normalmente, neste lugar, neste locus dos textos tradicionais de livros, se


encontraria o que costuma se chamar de Introdução. É a parte que faz com que o
leitor entre no texto, se acostume com a linguagem e compreenda a ideia que
encontrará nas páginas que seguem. Introduzir significa, literalmente, “levar para
dentro”, vem do latim intro- (para dentro) e ducere (levar, liderar, guiar). É o que
fazemos ao ler um texto: penetramos nele, como se fosse um bloco rígido ou ao
menos gelatinoso, nos introduzimos em sua lógica, com mais ou menos dificuldade,
mergulhamos em seu significado. É um esforço, e por isso se faz necessário,
primeiro, uma prévia, um “primeiro nível” da mecânica, uma prova do texto, para
que decidamos se a matéria na qual estamos prestes a nos lançar é densa demais, se
vamos penetrar ali com facilidade ou se vamos quebrar o nariz por ir rápido demais;
e segundo, se aquilo do qual se falará vale a pena ser escutado. Se o tempo gasto
desbravando os signos, observando as frases, relacionando os conceitos será bem
aproveitado ou se é melhor ler outra coisa ou ver um filme ou ir à praia, que é um
mergulho garantido. A introdução do texto tem, enfim, um certo papel de seduzir o
leitor, afirmar a importância ou ao menos a promessa de sabor que há naquele
saber.
Por isso, esse texto se dá o direito de se privar de uma. Sem mais delongas, é
um texto sobre viagem, e inevitavelmente é um texto que pretende oferecer ao
leitor uma espécie de viagem, ou seja, fazer com que, ao ler, devenha viajante. Para
tanto, é preciso entender que este não é um texto comum. A cada página, a cada
capítulo, diferente de trazer o leitor-viajante para dentro da trama de significados e
conceitos que se formará – ou deformará –, este texto criará linhas de fuga, vetores
para fora, que não respeitem a tradicional e hierárquica relação entre leitor e livro.
O objetivo não é que o leitor compreenda o livro ou que o livro seja compreendido
pelo leitor. Isto seria estabelecer uma hierarquia, uma genealogia do saber, uma
relação de dependência. Não é o caso também de ser um texto “aberto à
interpretação”; isto gera do mesmo modo uma ordem, uma dualidade passivo-ativo

21
Daniel Gaivota

na qual o livro é submisso à disposição do seu leitor. Não há nada de bretoniano


neste texto – a não ser, talvez, a relação com o sonho (que também é proust-
deleuzeana).
Tampouco o objetivo aqui é dar uma prévia para o leitor. Um texto que
devenha viagem é um texto desconhecido. Só se pode viajar realmente se não se
conhece o destino. Se a segurança é garantida, se todos os passos já são antevistos,
se é certo que se atingirá o objetivo final, não há viagem. A matéria da viagem é o
imprevisto, e um texto-viagem precisa ter o mesmo sentido. Aqueles que se
aventurarem em seguir a leitura o farão sem conhecer os caminhos. É preciso
coragem para viajar, é preciso se lançar, se permitir estar em terreno desconhecido.
É assim que se percebe as bordas do próprio território, e encontrar as bordas é o
primeiro passo para se desterritorializar. Assim, a relação com estas palavras não
será a mesma daqueles textos que se introduzem. O leitor vai precisar tatear,
encontrar caminhos, ler como se não pudesse ver.
Ser um texto que gera vetores para fora, e não necessariamente para dentro,
significa acreditar que há na leitura outros agenciamentos além da lógica binária
que liga homem e palavra. É pensar o livro de uma maneira não significante, não
mimética: o livro não é um decalque do mundo, não o reproduz nem o facilita de
modo que alguém possa se apropriar dele,
não é a imagem do mundo segundo uma crença enraizada. Ele faz
rizoma com o mundo, há evolução aparalela do livro e do mundo, o
livro assegura a desterritorialização do mundo, mas o mundo opera
uma reterritorialização do livro, que se desterritorializa por sua vez
em si mesmo no mundo. (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 28).
Pensar assim significa escapar de uma lógica dual, binária, que hierarquiza e
reduz as relações (masculino-feminino, trabalho-lazer, adulto-criança…). Assim, o
que está em jogo aqui não é simplesmente a relação de quem lê com o que está
escrito, mas, muito além, as possibilidades de externalização de si, de fuga, que
essas duas partes podem ter. Fugir, para Deleuze, não tem a ver com uma recusa ou
uma passividade; pelo contrário.
Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o
contrário do imaginário. É também fazer fugir, não
necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um
sistema vazar como se fura um cano. [...]. Fugir é traçar uma linha,
linhas, toda uma cartografia. (DELEUZE; PARNET, 1998, p.49).

22
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Este texto, portanto, é um texto que pretende fugir, que pretende fazer fugir.
E por isso, nada seria mais incoerente que começá-lo com uma introdução. Esse
“membro” do corpo que estamos a criar, que não serve para introduzir, para fazer
entrar, mas pelo contrário, para fazer sair, poderia ser chamado de diversas
maneiras. Escolhemos “exórdio” apesar do peso que a palavra carrega por ser um
termo típico da retórica; nos discursos retóricos, o exórdio tem o papel inverso do
que sugerimos: ele ganha a simpatia do público e apresenta o tema. Ou seja, é uma
introdução. Exórdio, entretanto, é uma palavra que em sua origem etimológica
significa “começar para fora”, do Latim ex-, (para fora), mais ordiri, (começar).
Parece equivocado que os juristas e retóricos se apropriem dela para se referir ao
que já tem um nome bem apropriado, ou seja, uma “introdução”. Por isso,
retomamos a palavra, a tomamos de volta, e a resignificamos aqui, num verdadeiro
“começar para fora”, que é uma importante e mais pertinente forma de começar para
este texto.
Portanto, nossa opção pelo ex-, em detrimento do in- é uma escolha pela fuga
sobre o acolhimento, e nossa opção pelo ordiri, e não pelo ducere, presentes em
‘exórdio’ e ‘introdução’, respectivamente, mostra o apreço pelo começo, pelo novo,
mais que pela condução. Podemos pensar que essa oposição é análoga à oposição
apontada por Larrosa (2014) entre experiência e informação. Não é coincidência que
os prefixos das palavras, novamente, gerem um conflito. O que parece estar em
questão, nas duas comparações, é a possibilidade do movimento e a certeza da
fixidez; a liberdade do êxtase e a segurança da internação. Para fora e para dentro.
Sobre a relação entre experiência e informação, Larrosa diz:
O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo
buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante
informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado,
porém com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber
não no sentido de "sabedoria", mas no sentido de "estar
informado") o que consegue é que nada lhe aconteça. A primeira
coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é necessário
separá-la da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber de
experiência é que é necessário separá-lo de saber coisas tal como se
sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se está
informado. É a língua mesma que nos dá essa possibilidade. Depois
de assistir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido um
livro ou uma informação, depois de ter feito uma viagem ou de ter

23
Daniel Gaivota

visitado uma escola, podemos dizer que sabemos coisas que antes
não sabíamos, que temos mais informação sobre alguma coisa, mas,
ao mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos aconteceu,
que nada nos tocou, que com tudo o que aprendemos nada nos
sucedeu ou nos aconteceu. (2014, p. 19).
O autor precisa separar a informação do acontecimento. Ao afirmar que
podemos dizer que sabemos ou aprendemos, mas ao mesmo tempo que nada nos
aconteceu, o que Larrosa faz é afirmar que a matéria dos acontecimentos é a
experiência, não a informação. Curiosamente, ele usa como exemplos tanto um livro
quanto uma viagem. Sobre a escrita, portanto, poderíamos dizer com Larrosa que
um texto simplesmente informativo não configura uma experiência, que nada
acontece a partir dele. E o que é a informação? Novamente nos encontramos com o
prefixo in- (para dentro), mais o radical forma (aspecto, forma), ou seja, informar é
“formar dentro”. Informar segue o mesmo vetor de introduzir: a internalização, a
interiorização. Por outro lado, a palavra experiência é muito mais complicada. É
evidente que a palavra tem a ver com um movimento para fora, a partir do prefixo
ex-, mas o termo não se esgota na sua etimologia. “A experiência não é uma
realidade, uma coisa, um fato, não é fácil de definir nem de identificar, não pode ser
objetivada, não pode ser produzida. E tampouco é um conceito, uma ideia clara e
distinta” (LARROSA, 2014, p.10). Se pensarmos no radical periri ou peritus,
podemos observar a experiência como prática, traduzi-la como um testar, repetir
várias vezes algo. Essa possibilidade traz a experiência para o campo da
materialidade, ou seja, para a esfera do real, do fazer, da práxis. Experimentar algo
tem a ver com viver esse algo, uma e outra vez, encontrar repetidamente a coisa.
Essa concepção contrapõe-se fortemente à ideia de forma presente na palavra
informação. Forma é o modo latino para o grego idea, e fundamenta o pensamento
idealista, que afirma o mundo a partir de objetos não mundanos, não
experienciáveis, transcendentais. É claro que podemos também pensar em outros
significados para esta palavra, e não deixaremos de fazê-lo.
Mas o outro exemplo de Larrosa é a viagem. Ele diz que podemos ter feito
uma viagem e, ao mesmo tempo, afirmar que nada nos aconteceu. Curiosamente, a
palavra experiência parece muito ligada à ideia da viagem. Ela contém a partícula
per-, que dá o sentido de atravessamento, perpassamento, como na palavra

24
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

‘percurso’. Nas línguas germânicas, a palavra para experiência, erfahrung, contém


em si o verbo fahren, que significa viajar, percorrer uma região durante uma viagem
(ou, em outros contextos, guiar), ou seja, a experiência está intimamente ligada à
ideia do percurso, da experiência de percorrê-lo, da errância – ou seja, da viagem
(GAGNEBIN, 1994, p.58). Parece mesmo que uma experiência contém uma espécie
de viagem, e que uma viagem é sempre continente de uma experiência; não parecem
dissociáveis esses conceitos. Também da partícula fara, do antigo alto-alemão,
deriva Gefahr, perigo, e gefährden, pôr em perigo (LARROSA, 2014, p. 27). A
palavra em português também compartilha raízes etimológicas com a palavra
perigo, cujo radical está presente em experiri, experiência. Ex-periri parece significar,
ao pé da letra, “ir, sair de encontro a, passar pelo perigo”. O que parece uma
definição bastante interessante para a viagem, também: sair, num vetor contrário à
segurança do lar sedentário, em direção ao desconhecido, em busca de encontros
que coloquem em risco a continuidade do que se é.
Poderíamos apostar ainda nesta outra etimologia, entendendo que a palavra
experiência contém em si a partícula peri-, que também está presente em palavras
como perímetro ou periferia, e quer dizer “ao redor” ou “em torno”. Dizemos que
algo está em torno de outra coisa porque, se seguirmos o caminho que ela faz,
tornaremos a encontrar o ponto inicial. Assim, a ideia de “em torno”, tem a ver,
também, com a repetição. E a viagem, por sua vez, tem a ver com o re-torno
também. A viagem não é um abandono. Viaja-se sempre com destino ao ponto de
partida, que se mostrará para o viajante sempre como um novo solo nativo, uma
territorialidade ao mesmo tempo conhecida e mudada. Onfray parece concordar ao
dizer que
Não há viagem sem reencontro com Ítaca, que dá sentido ao
deslocamento. Um exercício perpétuo de nomadismo sairia dos
limites da viagem para entrar na errância permanente, na
vagabundagem. Os próprios nômades praticam um tipo de
sedentarismo, pois percorrem trajetos habituais, se instalam na
rotina de um deslocamento, sempre o mesmo, servem-se das
mesmas referências, ramagens secas, montes de pedras, linhas e
rastros feitos por animais, leem sempre do mesmo modo o mapa
das estrelas ou dos movimentos do sol, mas também porque vão a
lugares onde têm seus hábitos, suas práticas tribais e rituais na arte
de ocupar os solos. (ONFRAY, 2009, p.82)

25
Daniel Gaivota

Assim, retornar é importante. Principalmente para poder re-conhecer o


próprio deslocamento, encontrar consigo novamente, viajar de novo. É na repetição
que se encontra a diferença. É ao retornar que se percebe que algo aconteceu e que
se pode, então, narrar. Ao longo desse texto o leitor atento vai ouvir muitos ecos,
gaguejos, balbucios. Deleuze afirma que escrever é fazer a língua gaguejar.
Gaguejar é hesitar, é pronunciar com esforço, e no esforço, falar de novo, repetir,
reiterar. Gerar suspensões, pontos vazios, deformar a língua (DELEUZE, 1997,
p.122). Esse texto é uma tentativa de viagem, e talvez seja preciso gaguejar – ou
tropeçar – quando se viaja.
Pode a viagem, portanto, não ser uma experiência? Se nada acontece, de fato
viajamos? Se ao terminar de ler esse texto nada ocorrer, nenhum deslocamento se
operar, faz sentido afirmar que a pretensão de fazer o leitor devir viajante foi
concretizada? Se respondemos que não a essas perguntas, precisamos afirmar que a
viagem não tem a ver com a informação, assim como não tem a ver com a
introdução (e a propósito, podemos perguntar se o objetivo de uma introdução não
é, em última análise, informar). Mas a viagem tem a ver com a experiência. O
exemplo de Larrosa não é o melhor, portanto: não parece ser possível viajar sem
que nada nos aconteça, sem que a viagem seja experiência. Ao menos não se
admitimos sua ideia de experiência.
A experiência é algo que (nos) acontece e que às vezes treme, ou
vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar,
algo que luta pela expressão, e que às vezes, algumas vezes, quando
cai em mãos de alguém capaz de dar forma a esse tremor, então,
somente então, se converte em canto. E esse canto atravessa o
tempo e o espaço. E ressoa em outras experiências e em outros
tremores e em outros cantos. (LARROSA, 2014, p.10).
É possível ser o mesmo depois de viajar? Deleuze também admite, ao
diminuir o papel da viagem física, pelo mundo, uma posição com a qual não
podemos concordar. Nem toda viagem é uma ruptura, concordaríamos, mas
deslocar o corpo transforma o mundo. E o mundo também deixa de ser o mesmo ao
ser viajado. Assim, um texto que se pretende uma espécie de viagem, um texto que
não tem a intenção de garantir a segurança e a lealdade do leitor, um texto que gera
vetores para fora de si e que assim se desterritorializa, mas ao mesmo tempo se
reterritorializa ao ser lido, desterritorializando o mundo, um texto que não

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

pretende conduzir, mas sim gerar acontecimentos, não seria esse texto uma
experiência? E se a experiência é algo que nos acontece, é possível ser o mesmo
após ler esse texto?
Não podemos dizer que o texto também deixa de ser o mesmo ao ser lido? A
relação rizomática que surge a partir do livro e do eu que o lê põe o leitor em um
devir-livro, mas faz também o livro devir-leitor. Assim, a melhor maneira de ler
esse texto, de experimentá-lo, de se entregar aos devires liberados pelo texto é
compreendendo que não é possível ler de maneira estanque, não é possível
permanecer. O preço para continuar os caminhos que se abrem é o próprio eu. É
preciso se abrir para abrir o texto, é preciso se deixar tremer, vibrar.
Poderíamos ter chamado essa não-introdução de Abertura, também. Porque
ela, além de começar, abre. Torna o texto aberto, pois não o define nem delimita,
mas também torna aberto o leitor. E, afinal, começa a abrir o mundo. O objetivo de
todo texto é abrir o mundo, torná-lo público, fazê-lo acontecimento, e esse
movimento nunca é para dentro, é sempre para fora. Um texto não pode ser
introduzido, pois o que se introduz torna-se oculto, interior. Um texto precisa
externar, precisa cantar. Precisa fugir, que quer dizer fazer fugir. Precisa abrir, que
quer dizer, no fim – ou no início –, fazer abrir.



Cabe ainda, aqui, pensar neste texto em relação ao seu lugar. Falar sobre a
viagem é, inevitavelmente, falar sobre lugares, sobre territórios, sobre
deslocamentos e movimentos, mesmo que se pretenda no fim negar ou desvincular
o movimento dos locais. Por isso parece importante, para se entregar a esta
experiência, para que de fato se possa abrir o mundo a partir desse lugar, pensar
sobre que lugar é esse, de onde esse texto fala, por que (ou por onde) esse texto
pensa. Este é ou se pretende um texto de filosofia da educação. Isso o coloca em
uma zona flutuante, entre um texto filosófico e pedagógico. A filosofia e a educação
são esferas historicamente ligadas e ao mesmo tempo epistemologicamente muito
distintas. Porque a filosofia parece, numa simplificação, ter a ver com um esvaziar-

27
Daniel Gaivota

se, ao passo que a educação carrega uma fantasmagórica1 alcunha preenchedora,


sendo vista pelo senso comum como uma atividade de completar os indivíduos,
torná-los prontos.
O fato é que a filosofia (ocidental), depois da revolução da escrita alfabética
na Grécia Antiga, só pôde resistir graças à escola, a casa segura que a abrigaria do
mundo pragmático e funcional. Masschelein e Simons afirmam que a invenção da
escola é muito mais abrangente e revolucionária que a filosofia, e se precisassem
apostar em qual dessas invenções estaria mais presente na vida das pessoas adultas
dois mil anos depois, teriam acertado (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p.153).
Mas isto não torna a escola mais abrangente que a filosofia. Outro argumento para
supor a maior abrangência da escola pode ser admitir que há outras coisas
acontecendo na escola além de filosofia, mas afirmá-lo faz necessário que pensemos
melhor, que nos aproximemos com mais cuidado dos conceitos de filosofia e de
educação.
A escola parece ser um lugar separado, suspenso do mundo, do modo de
funcionamento segmentário e cronológico da sociedade em que está situada. Um
lugar seguro, afirmam os autores, para que se possa revelar, abrir o mundo. É na
escola que os objetos se tornam vivos, reais, onde podemos nos relacionar com eles
deslocados de suas funções pré-estabelecidas pela sociedade.
Queremos enfatizar, mais uma vez, que isso torna possível para a
escola, na medida em que consegue fazê-lo, abrir o mundo para o
aluno. [...] Quando algo se torna parte do mundo, isso não significa
que se torna um objeto de conhecimento (algo que sabemos sobre o
mundo), que é, de alguma forma, somado à nossa base de
conhecimento, mas sim que se torna parte do mundo em que/pelo
qual estamos diretamente envolvidos, interessados, curiosos [...].
Poderíamos dizer que não é mais um “objeto” (inanimado), mas
uma “coisa” (viva). (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, pp.49-50).
Assim, a escola, para estes autores, tem a ver com a possibilidade de uma
nova maneira de observar o mundo, e não tanto com a possibilidade de sabê-lo,
conhecê-lo. O que está em jogo na escola não é o que se aprende, mas o interesse, a
atenção para com o mundo.

1 Dizemos “fantasmagórica”, pois compreendemos que nem tanto a filosofia se trata simplesmente de retirar
(pois percebemos nela um caráter criador, poético) e claramente nem a educação tem por fim preencher ou
completar (pelo contrário, e-ducar nos aparece como um movimento para fora de si).

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

A filosofia, por sua vez, aparece em sua forma mais reconhecida, em sua
intensidade politicamente transformadora com Sócrates. Em sua defesa pública
contra as acusações de Meleto, redigida por Platão na Apologia de Sócrates, o filósofo
afirma o pensamento como modo de vida, como cuidado de si e dos outros. A
filosofia parte de uma afirmação do não-saber, de uma ignorância. É necessário
esvaziar-se de saber para permitir lugar ao pensar. Assim, tampouco aqui o que está
em jogo é o que se aprende, o conhecimento, os saberes.
Pelo fato de cada um deles conhecer a fundo determinada profissão,
julgavam-se também proficientes nas questões mais abstrusas,
donde estragar esse defeito fundamental de todos a sabedoria de
cada um. Daí ter perguntado a mim mesmo, com referência ao
oráculo, o que fora preferível: ser como era, sem participar da
sabedoria e da ignorância de todos ou ser como eles, sob ambos os
aspectos? A resposta dada a mim mesmo e ao oráculo foi que era
melhor ser o que sou realmente. (22d-e)
A filosofia parte de uma afirmação do não-saber, de uma ignorância. Assim,
tampouco aqui o que está em jogo é o que se aprende, o conhecimento, os saberes. É
antes sobre esvaziar-se de saber para permitir lugar ao pensar. E esvaziar-se
significa olhar de uma maneira diferente, específica. Esvaziar-se significa esvaziar o
olhar. Descobri o que era filosofia ao observar minha prima mais nova
experimentar uma tangerina pela primeira vez. Seu nome é Clara, e na época não
devia ter mais de quatro anos. Ao me ver aproximando com a fruta, já olhou com os
olhos de quem acredita na beleza do mundo, olhos que desejam olhar. E ao olhar a
tangerina, com sua superfície inusitada, cor brilhante, ao sentir seu cheiro
marcante, largou o que quer que estivesse fazendo e se debruçou sobre ela. Eu, que
já me preparava para abrir mecanicamente a casca e engolir os gomos, quase sem
mastigar, resolvi observá-las (a menina e a fruta – ou a menina-fruta ou a fruta-
menina). Clara manuseou a tangerina com cuidado, explorando toda a superfície
com seus muitos sentidos, e eu, a observando, observando com ela, meta-
observando, comecei a pensar também na estranheza daquela casca. Resolvi avançar
um nível, e abri a casca, revelando o interior da tangerina. A surpresa da menina ao
perceber que outra realidade se escondia sob a crosta acabou me surpreendendo. O
que era tão incrível ali? Mas conforme Clara explorava o interior da tangerina, de
olhos bem abertos, comecei a pensar no absurdo de a natureza produzir uma fruta

29
Daniel Gaivota

segmentada: que processos naturais fizeram esta espécie separada em gomos, e não
seus primos mais holísticos, sobreviver?
A esta altura, já estava debruçado, também, observando cuidadosamente e
me questionando o que fazia com que os gomos permanecessem unidos, de modo
que, uma vez separados, não se colassem mais. Então lembrei da melhor coisa em
relação à tangerina, e mostrei a Clara que ela podia, claro, comer os gomos. A
epifania nos olhos da criança refletiu-se no sabor daquele gomo, e não lembro de ter
comido algo mais saboroso, não lembro de um saber mais intenso, de um sabor mais
intrigante. A tangerina era, afinal, incrível, e eu percebi que tinha esquecido
completamente disso. Foi preciso que eu entrasse num devir criança, que eu
aprendesse com aquela infância, Clara, que as coisas são incríveis, se olhadas bem. O
mundo ficou mais claro, e eu me tornei filósofo.
A filosofia se trata de abrir o mundo. Abrir o mundo como Clara abriu aquela
tangerina para mim, e para que isso aconteça, é preciso esquecer o que se sabe ou se
acredita saber sobre as coisas. Sócrates morreu um dia para que eu pudesse saber
disso hoje, mas foi uma criança curiosa e atenta, e não um livro de Platão, que me
ensinou o que é filosofia. A filosofia é uma experiência, não um saber; um modo de
vida, não uma disciplina; é um acontecimento, um movimento.
Não parece então que, em vista dessa concepção de filosofia que nasce da
admiração, que acontece na abertura do mundo, ela possa estar fora da escola
defendida por Masschelein e Simons. “Quando algo [...] se torna parte do mundo
em que/pelo qual estamos diretamente envolvidos, interessados, curiosos”
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, pp.49-50), afirmam os autores sobre os objetos
da escola. A filosofia só sobreviveu através da história por encontrar esse ambiente
seguro, protegido do mundo do trabalho, da família e da sociedade. Mas talvez a
escola só possa ser transformadora, só possa exercer seu papel pelo seu caráter
intimamente filosófico. Não se trata de observar a escola e a filosofia em uma
relação hierárquica e nem genealógica, mas rizomática. Só há escola por que esta
devém filosofia, e só há filosofia na medida em que ela devém educação. Isolada, sem
um caráter educacional, de relação com o outro e o mundo, a filosofia definha e se
torna um conhecimento analítico, frio, perde sua conexão com as coisas do mundo.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Sem um caráter filosófico, por sua vez, a educação se torna metodológica,


burocrática, embrutecedora.
Este é o lugar deste texto, e este é o lugar da viagem: no meio, no indefinido.
Este livro se encontra no ponto onde a educação devém filosofia e a filosofia devém
educação, e se propõe pensar a escola em e a partir desta tensão. Não é um manual,
suas discussões não são metodológicas e suas perguntas não começam com “como?”,
afastando-se do clichê do discurso pedagógico2, mas também não é um texto
metafísico, sobre conceitos transcendentais e suas perguntas não começam com “o
que”, afastando-se do clichê de certa filosofia. Pensar a escola nesse intermeio é um
deslocamento tanto do texto de educação quanto do texto filosófico. É preciso
pensar a educação de maneira filosófica, e é preciso pensar a filosofia de um ponto
de vista pedagógico.
Aí está o nascimento da escola, nesse encontro de potências que permite que
o mundo se abra como uma tangerina, esvaziando pessoas para que possam tremer,
vibrar, e mesmo que olhando para algo que já viram, ver sempre o novo. Vibrar,
que quer dizer fazer vibrar. Abrir, que quer dizer fazer abrir. Des-locar. Talvez seja
o que a escola precise: ser pensada em deslocamento.

2 Sobre a diferença entre a pedagogia e a educação, não afirmaremos uma hierarquia ou um termo preferido.

Por educação compreenderemos ao longo do texto, de acordo com sua etimologia, o processo maior pelo qual
se movimenta para fora de si. O pedagogo (pais + agogos), por sua vez, era o escravo que conduzia a criança à
escola. Ou seja, na invenção da escola, o pedagogo e o educador ocupavam funções diferentes. Aqui, na falta
de tempo e espaço para aprofundar esta discussão, limitamo-nos a compreender o pedagógico como o
conjunto de práticas escolares através das quais é possível deslocar, ou seja, gerar o movimento necessário
para que se e-duque.

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GUIA DE VIAGEM

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GUIA DE VIAGEM

Que é um guia de viagem? Não raro se recorre, ao se planejar uma viagem


ou ao se ver nela, a esses livros coloridos que nos dizem tudo sobre o lugar a que
pretendemos ir, com detalhes tão precisos que um viajante desavisado poderia
pensar que nem é mais necessário ir. Guias de viagem contêm mapas, endereços,
preços e descrições de pontos de interesse, monumentos, lugares para comer, para
dormir, para ouvir música, para observar paisagens, para ir embora. A função
última do guia de viagem, portanto, é evitar que o viajante se perca. E não se perder
traduz-se por saber os caminhos que deve seguir, economizar tempo, não ter que
lidar com imprevistos. Os escritores de guias de viagem talvez ainda não tenham
percebido (e isso pode se dar pelo fato de que eles, para que pudessem escrever
esses tão coloridos e informativos livros, tenham precisado viajar sem um guia de
viagem), mas esses guias anulam qualquer possibilidade real de uma viagem de fato.
O texto que segue parte do princípio que as palavras são importantes. Como
Larrosa, acreditamos que pensamos com palavras, e por isso são as palavras que
produzem sentidos e criam realidades. É com palavras que podemos pensar a escola,
a nós e ao mundo, e por isso é importante escolher bem as palavras que se usa.
(LARROSA, 2014, p.17). Por isso, para pensar sobre o guia de viagem talvez seja
importante pensarmos no que signifique dizer viagem, e também investigar o que
seria um guia. Sabemos que um guia serve para que não nos percamos, para que não
erremos o caminho, e pensar no que estas coisas significam também pode nos
ajudar a compreender o que é realmente um guia de viagem e quais problemas isso
pode levantar. E, mais importante: o que isso tem a ver com a escola?
Toda viagem tem uma meta. Passar uma semana em uma cidade, visitar
determinado ponto turístico, ir a um parque, chegar ao topo da montanha… Mas o
que faz a viagem não é a meta, e sim o caminho. Basta lembrar das histórias que se
guarda de alguma viagem e perceberemos que elas geralmente se iniciam com um
problema, um imprevisto, um percalço. “Viajar pressupõe a confusão de todos os
sentidos”. (ONFRAY, 2009, p.27). A viagem, observada por esta ótica, configura-se

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Daniel Gaivota

não como uma linha que vai até o destino, mas como uma série de encontros, uma
coleção de problemas a resolver – seja o funcionamento do chuveiro ou uma língua
desconhecida. Ou de novos problemas por traçar. Tem a ver com experimentar o
caminho mais do que alcançar o objetivo. Mais a ver com confundir os sentidos que
orientá-los. Tem a ver com afastar-se da meta, mais do que se aproximar dela.
Deleuze reserva um espaço amplo em seus escritos com Guattari para o
deslocamento, o nomadismo, o movimento. Mas é breve em suas colocações sobre a
viagem, não desenvolvendo nenhum conceito mais profundo e nem mesmo
defendendo sua potência. Para Deleuze, a viagem é desconfortável, evitável.
Talvez toda a reflexão sobre a viagem passe por quatro
observações, uma das quais encontramos em Fitzgerald, a segunda
em Toynbee, a terceira em Beckett, e a última em Proust. A
primeira verifica que a viagem, até mesmo nas Ilhas ou nos grandes
espaços, nunca opera uma verdadeira ‘ruptura’, enquanto levarmos
a nossa Bíblia conosco, as nossas recordações de infância e o nosso
discurso habitual. A segunda é que a viagem persegue um ideal
nómada, mas como voto irrisório, porque o nómada pelo contrário
é aquele que não se mexe, que não quer partir e se agarra à sua
terra deserdada, região central […]. Segundo a terceira
observação, a mais profunda ou a de Beckett, ‘não viajamos pelo
prazer de viajar, que eu saiba somos estúpidos, mas não a esse
ponto’. Então, que razão poderá em última instância haver, se não
for a de verificar, de ir verificar alguma coisa, alguma coisa de
inexprimível que vem da alma, de um sonho ou de um pesadelo, que
mais não seja saber se os chineses são tão amarelos como se diz, ou
se certa cor improvável, um raio verde, certa atmosfera azulada e
purpúrea, existe de facto algures, lá longe. O verdadeiro sonhador,
dizia Proust, é o que vai verificar alguma coisa. (DELEUZE, 1996,
p.100)
É sobre essas três observações que esta área do texto3, este guia de viagem,
se fundará. Deleuze faz três críticas à viagem – que ela não provoca uma verdadeira
ruptura, que ela não tem a ver com o nomadismo, que não faz sentido viajar por
prazer. Analisaremos mais profundamente estas três possibilidades enquanto
expomos os conceitos principais para nossa concepção de escola-viagem. Por ora, o
que parece interessante é perceber que Deleuze, apesar de querer negar a viagem, a
afirma, ao menos enquanto uma verificação. E não só uma verificação de um dado,
mas de algo “inexprimível”, ou seja, a busca pelos objetos da viagem é a busca por

3Nos referimos aos capítulos A escola e o devir-viagem e Poética do Deslocamento, sequencialmente nas
páginas 41 e 61 deste livro. O texto retornará em muitos outros momentos a essas três ou quatro
observações de Deleuze.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

algo que se vê, mas que não se pode dizer. É a busca pela experiência que não se
pode dar enquanto não se move, que nem mesmo o sonho pode dar conta de fazer
imagem. Viaja-se em busca de acontecimentos.
Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias,
imagens, livro ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés,
para entender o que é seu. Para um dia plantar suas próprias
árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar do calor. E
o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o
próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não
conhece, para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo
como imaginamos e não simplesmente como ele é ou pode ser. Que
nos faz professores e doutores do que não vimos, quando
deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver... Il faut aller voir – é
preciso ir ver! É preciso questionar o que se aprendeu. É preciso ir
tocá-lo. (KLINK, 2000, p.77).
Amyr Klink pode parecer discordar de Deleuze, pois afirma uma viagem “por
conta própria”, ou seja, um deslocamento real em oposição aos deslocamentos “sem
sair do lugar” (DELEUZE, 2001) do filósofo. Mas Deleuze não parece simpático a
uma teoria da viagem Proustiana, em que se viaja para verificar o mundo? O
viajante do Proust deleuziano, nesse sentido, não compartilha elementos com o
viajante de Amyr Klink, que navega em direção ao desconhecido para “ver mais”, ou
ver o mundo em sua imanência ou sua potência – e não como imaginamos ou como
ele deve ser, de maneira transcendente? De certa maneira os dois discursos podem
talvez se opor, é verdade, mas ambos contribuem com vetores para pensarmos no
conceito de guia de viagem. A palavra guia provavelmente tem sua origem na
palavra *witan, do frânico, que significa “mostrar o caminho”, mas pode ter surgido
a partir de *widan, do gótico, que quer dizer “juntar-se”. As duas tentativas de
etimologia permitem pensar no guia como alguém que se junta ao viajante, ou seja,
que se torna também parte da viagem ou como alguém que se junta ao lugar
viajado, ou seja, que não só observa, separado do objeto. Talvez um guia permita
que o viajante guiado torne-se o lugar, ou, se quisermos pensar com Deleuze, devenha
o lugar. Um guia não pretende, portanto, listar destinos, muito menos evitar
percalços (visto que o caminho é feito dos obstáculos e o guia mostra o caminho,
não o não-caminho; ensina a caminhar, não a evitar o percurso).
Um guia de viagem, nesse sentido, deveria nos permitir percorrer o sentido
do que é uma viagem, nos colocar em contato com os perigos e problemas deste

37
Daniel Gaivota

caminho. “É preciso ir tocá-lo”. Um guia de viagem seria o oposto de um guia de


turismo, esses livros coloridos que nos dizem onde ir e como evitar viajar. Todo
viajante, portanto, deveria fazer uso de um guia de viagem. Ou inventar um. E é o
caso, aqui, já que pretendemos começar uma espécie de viagem, que inventemos o
nosso. Este texto, portanto, pode ser considerado pelo leitor um guia, um
movimento de tornar-se caminho, de devir-viajante.

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A ESCOLA E O DEVIR-VIAGEM
(OU SOBRE A LÁGRIMA DE ULISSES
E A MÁQUINA DE GUERRA)

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A ESCOLA E O DEVIR-VIAGEM
(OU SOBRE A LÁGRIMA DE ULISSES E A MÁQUINA DE GUERRA)

Prefiro pensar que a gente não aprende a ser estrangeiro; na verdade, a gente
desaprende. Ser estrangeiro pra mim é saber lidar com a diferença, estar aberto a
novas culturas, novos movimentos, novas experiências. Se você é estrangeiro e não
está, antes de tudo, aberto pra essas coisas, a experiência de estar em um lugar
diferente perde o valor – Rhebeca

Por que viajamos? Por que, sendo livres, senhores de nossas ações, e tendo à
disposição ambientes seguros e controlados para nos recolhermos ao menor sinal
de perigo, lançamo-nos na direção oposta, rumo ao que não conhecemos, desafiando
o mundo, colocando-nos em perigo, expondo nossa carne às intempéries e nossa
inteligência ao não-saber? Por que, mesmo enquanto estamos aninhados em
segurança em nossos quartos, certos de que nenhum mal nos poderá acontecer,
viajamos com os olhos ou os ouvidos através de livros e filmes sobre ilhas desertas,
aventuras e buscas perigosas, nos pondo em perigo sem saber (pois o mastro ao qual
nos amarramos para não sucumbir a esse canto é frágil, como veremos)? Por que
viajamos?
A história humana, que supostamente tem início com os primeiros registros,
é mais recente que a prática da viagem. Os primeiros registros de cada povo, os
textos primeiros de diversas culturas relatam viagens, o que pode nos fazer pensar
sobre o ser humano como um ser naturalmente viajante (mais que um ser histórico).
A epopeia de Gilgamesh, os poemas de Homero e Hesíodo, a Eneida, a saga dos
Nibelungos, o Lebor Gabala Erren da mitologia celta, o livro do Gênese (e na
verdade todo o primeiro testamento – e talvez mesmo toda a bíblia cristã, se
observarmos bem), o Mahābhārata e mesmo narrativas mais recentes, mas
fundadoras como Beowulf, Orlando Furioso, os Lusíadas, o Cantar de Mio Cid, a
canção de Rolando, todos estes textos primeiros são, finalmente, textos sobre
viagens. Que há na viagem que tanto fascina, que impressiona os homens a ponto de
fundarem suas culturas em tais relatos? O que torna aqueles que partem ao seu
encontro dignos de lembrança, de serem narrados? Ou é justamente por serem

41
Daniel Gaivota

heróis que as figuras icônicas destas narrativas teriam sido capazes de enfrentar os
perigos da viagem? A viagem é o que confere valor aos homens ou é justamente sua
provação?
Michel Onfray afirma que cedo ou tarde todos nos descobrimos nômades ou
sedentários (ONFRAY, 2009, p.5). É uma afirmação categórica, estruturante. A
diferença entre o sedentário e o nômade é antiga, arquetípica, está presente nos
mitos originários, figura nas imagens de Caim e Abel, o agricultor e o pastor –
aquele que necessita do solo, da raiz, do permanecer no mesmo lugar para gerar
frutos; e aquele que precisa seguir, encontrar novos pastos, caminhar com os
animais para viver. Uma divisão deste tipo separaria pessoas com uma verdadeira
natureza móvel, figuras inquietas, incapazes de criar raízes, daquelas outras
silenciosas, estáveis, incapazes de deixar para trás suas construções. O maior castigo
para um sedentário é ter que caminhar, como podemos constatar na história dos
dois irmãos, no castigo que Caim, o agricultor, recebe após assassinar o irmão: é
condenado a errar pelo mundo. Se fosse o contrário e fosse Abel o fraticida, teria ele
sido condenado a passar o resto da vida no mesmo lugar, imóvel?
Compreender sedentarismo e nomadismo como atributos humanos, tipos de
personalidade, entretanto, configura uma redução. O viajante não viaja porque
nasceu viajante, nômade ou pastor de ovelhas. A força que impulsiona o viajante não
vem de dentro. Onde está esta força que nos faz viajar, que nos faz sair, nos
tornarmos outros quando é tão mais fácil permanecermos os mesmos?
Quando nos pomos em viagem, algo nos acontece. Toda viagem pressupõe
um encontro, um ponto de contato entre duas esferas que, enquanto não nos
movemos, permanecem separadas: o que somos e o que não somos. O que é igual a
nós mesmos e o que é diferente de nós. O mesmo e o outro. Em situação estática, o
mesmo e o outro encontram-se separados, intocados – como água e óleo em um
copo, talvez? O que a viagem faz conosco é, primariamente, confundir essa
separação. Ao nos separarmos do comum, do ordinário, do diário, do previsível e do
já sabido, entramos em território desconhecido, e o que é desconhecido é sempre
estranho ao eu, é estrangeiro. Não é simples dizer se é nossa subjetividade que
penetra no território do que é outro ou se a alteridade é que desliza para dentro do

42
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

que é eu. Talvez porque nenhuma dessas coisas aconteça, talvez porque o que
somos e o que não somos não estejam separados em um copo, para começo de
conversa.
O outro é um conceito externalizante em si. Compreender que há outro é o
mesmo que perceber uma ausência de si em uma presença objetiva. Há uma
distância infinita, intransponível, entre o outro e eu, mas ao mesmo tempo,
apreendemos o outro em nossa percepção, fazendo presente essa ausência absoluta.
O outro é uma contradição, é um absurdo, é o impossível. É através dessa
impossibilidade, dessa confusão que é possível deixar de ser o que estivemos sendo e
nos tornar o que tendemos sempre a ser, num movimento que é devir.
É bom que partamos de uma concepção potente de devir, que nos permita
mover, sem carregar pedras na bagagem – afinal, toda a filosofia de Deleuze, através
da qual pensaremos a Escola-Viagem neste texto, gira em torno do conceito de
devir. Devir não é tornar-se, nem imitar, mas experimentar a vida em suas forças
intensas, múltiplas, que se encontram, se separam e dão lugar a outras. É, em
oposição ao mapa de individualidades que carregamos para compreender o mundo
em suas divisões e segmentaridades, um real composto de muitos fluxos que se
atravessam ao mesmo tempo. Pensar o devir significa pensar uma realidade de
coisas que são e não são simultaneamente. Ou seja, dá outro sentido às oposições – não
se trata mais de pensar eu e o outro, isto ou aquilo, e sim deixar-se afetar por isto e
aquilo como linhas que nos compõem. Passa-se a ser eu e outro; isto e aquilo, pois
cada indivíduo, alma e corpo, possui uma infinidade de partes que
lhe pertencem sob uma certa relação mais ou menos composta.
Cada indivíduo, também, é composto de indivíduos de ordem
inferior, e entra na composição de indivíduos de ordem superior
[...] Eles se afetam uns aos outros, à medida que a relação que
constitui cada um forma um grau de potência, um poder de ser
afetado. (DELEUZE; PARNET, 1998, p.73).
Ou seja, o indivíduo que pensamos ser é atravessado por todos os outros, é o
próprio atravessamento, tem sua própria segmentaridade interna, é multiplicidade.
O mundo (imanente), portanto, é o plano onde todas estas forças, todos estes afetos
estão em jogo. Entrar no devir é “encontrar uma zona de indiscernibilidade ou de
indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma mulher, de um
animal ou de uma molécula..” (DELEUZE, 1997, p.21). É despir-se, “retirar essa

43
Daniel Gaivota

roupa ridícula de homem” que usamos e nos entregar aos afetos que perpassam a
realidade.
Os corpos em seus contatos produzem os mais diferentes tipos de
efeitos. Como fagulhas que se desprendem de olhos que se olham,
os afetos não apenas passam de um sujeito para o outro, mas criam
uma zona de indiferenciação onde um torna-se o outro. Assim, é
possível se experimentar um fluxo enorme de sensações que mal
cabem no corpo tornando-se, por alguns instantes, pleno de vida.
(OLIVEIRA, 2000, p.91).
Assim, para além de uma experiência de outro, existe uma experiência mais
importante para a multiplicidade e os devires que é a experiência do fora, do lado de
fora, conceito trabalhado antes de Foucault e Deleuze por Blanchot, que pensou a
literatura e a arte como experiências do fora. Experimentar o fora significa entrar
em contato com uma violência que nos retira do campo da cognição e nos coloca
diante do caos, do acaso, onde não podemos prever os acontecimentos e onde nossas
relações com o comum são rompidas (LEVY, 2011, p.100). Em seu livro sobre
Foucault, Deleuze analisa o fora como o domínio das forças, da virtualidade
selvagem, em oposição a uma subjetivação. É o domínio onde o devir pode aparecer.
“Esse lado de fora informe é uma batalha, é como uma zona de turbulência e de
furacão, onde se agitam os pontos singulares, e relações de força entre esses
pontos”. (DELEUZE, 2005, p.129).
Deleuze não faz essa correspondência, mas as linhas que compõem este
conceito de fora parecem contornar e compor também o que é um plano de
imanência4. Se não podemos dizer que imanência e fora sejam um único conceito,
podemos ao menos compreender que se conectam por infinitas linhas. É em busca
desse fora que escrevemos este texto – e também parece ser em busca dele que
viajamos e educamos.
Continuamos a perguntar: por que viajamos? O encontro com o exterior não
parece se dar somente na viagem. Encontramos alteridade em todo objeto singular
e até mesmo em nosso próprio corpo e mesmo em nossas ideias ou memórias.
Outrem5 povoa meu campo perceptivo todo o tempo, dado que toda experiência é
experiência de um mundo exterior, de exterioridades que podemos ver e sobre as

4 Sobre o conceito de imanência, conferir capítulo Poética do deslocamento, página 61 deste livro.
5 Idem, sobre o conceito de Outrem.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

quais podemos falar. Mas isto não é o fora de Blanchot. Não é simplesmente para
encontrar objetos a partir de nossa subjetividade perceptiva que viajamos. Na
viagem, mais que este encontro com a exterioridade, há um encontro do viajante
com o fora, com o que está para além das bordas de seu território, como um corte
no caos.
É preciso distinguir a exterioridade e o lado de fora. A
exterioridade é ainda uma forma, como na Arqueologia do Saber, e
mesmo duas formas exteriores uma à outra, pois o saber é feito
desses dois meios, luz e linguagem, ver e falar. Mas o lado de fora
diz respeito à força: se a força está sempre em relação com outras
forças, as forças remetem necessariamente a um lado de fora
irredutível, que não tem mais sequer forma, feito de distâncias
indecomponíveis através das quais uma força age sobre outra ou
recebe a ação de outra. (DELEUZE, 2005, p. 93).
O fora parece ser um plano que não ocupa o limite da distância extensa, mas
pelo contrário, que intensamente separa o eu da própria subjetividade, ou seja, que
des-loca de um campo de posições na qual umas são exteriores às outras para um
plano de imanência, onde todas as multiplicidades ocupam a mesma dimensão e se
afetam mutuamente, inorganicamente, como tempestade, rizoma, matilha 6. “Há,
então, um devir das forças que não se confunde com a história das formas, já que
opera em outra dimensão. Um lado de fora mais longínquo que todo o mundo exterior
e mesmo que toda forma de exterioridade, portanto infinitamente mais próximo”.
(DELEUZE, 2005, p. 93, grifo do autor)
O fora é o plano que violenta a percepção, e é isso que se faz ao viajar, em
primeiro lugar. Mais que encontrar uma língua estranha, costumes
incompreensíveis, formas bizarras e funcionamentos diferentes do que estamos
acostumados, o viajante encontra forças desterritorializantes, que o transformam. É
através do encontro com um fora que violenta, que desestrutura, que o pensamento
pode ser forçado a pensar. “Se ver e falar são formas da exterioridade, pensar se
dirige a um lado de fora que não tem forma. Pensar é chegar ao não-estratificado
[...]; pensar cabe ao lado de fora, na medida em que este, “tempestade abstrata”,
mergulha no interstício entre ver e falar”. (DELEUZE, 2005, p.94). Assim, entre o
que o viajante experimenta no caminho e o que ele conta em sua narrativa, há um

6 Sobre essa forma animal de caos, conferir capitulo O (des)território da Escola-Viagem, página 115 deste

livro.

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Daniel Gaivota

intermeio, uma deriva composta de intensidades, de forças que o abalam, que fazem
com que algo aconteça.
Compreender esse encontro com o fora significa assumir que pensar não
depende de uma bela interioridade que reúna o visível e o enunciável, ou seja, de um
conjunto de informações ordenadas de maneira inteligível. Pensar tem a ver com o
encontro com o indizível, com o intenso, com se entregar para uma exterioridade
que ocupa as bordas do território e que avança em forma de contágio 7. Com o
tempo e o espaço vetoriais, onde o devir pode aparecer, como vamos analisar e
pensar ao longo deste texto-viagem.
Temos aqui, portanto, alguns elementos que podem ajudar a entender o que
é a viagem e sua importância para pensar a educação: o devir, a multiplicidade, a
estranheza, o caos, conceitos que remetem à ausência ou à destruição de uma
estrutura. É preciso desestruturar, violentar, ocupar espaços não-estratificados para
ser capaz de pensar o mundo e se relacionar com ele e seus devires. Estas ideias
orbitam o que Deleuze e Guattari (1995) chamam de uma máquina de guerra,em
oposição a um aparelho de Estado. A máquina de guerra é uma máquina nômade, no
sentido de que não cria estática, de que é uma máquina de movimento. O
nomadismo como conceito deleuziano não se refere a uma forma de abandono. A
segunda questão de Deleuze sobre viagens é relevante aqui: o nomadismo implica
um amor à terra que se está deixando, um gosto pelas origens e uma necessidade de
pertencer. A viagem não é um abandono do eu, mas uma busca por ele, uma viagem
para o ponto de partida, que será sempre revelado ao viajante como um novo solo
nativo, um território conhecido e mudado. Onfray parece concordar com Deleuze
sobre a fenomenologia do nomadismo quando diz: "Não há viagem sem reencontro
com Ítaca, que dá sentido ao deslocamento. Um exercício perpétuo de nomadismo
sairia dos limites da viagem para entrar na errância permanente, na
vagabundagem" (ONFRAY, 2009, p.82). Parece, portanto, que há uma forma de
viagem que é, como diz Deleuze, uma descoberta "real" em oposição a uma "falsa".
A viagem pode ser entendida, e parece ser o que Deleuze chama de nomadismo, não

7 Também no capítulo O (des)território da Escola-Viagem, página 115 deste livro, é possível ler sobre
territórios e proliferação por contágio.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

como simples movimento geográfico, mas como a constante desapropriação de si


mesmo através do encontro com o estrangeiro.
Esta máquina de guerra nômade, portanto, é a própria exteriorização, o
conjunto que produz linhas de fuga, o que significa criar vetores de externalização,
possibilidades de craqueamento de sistemas de controle, quebrar estruturas e
revelar espaços abertos. Enquanto o aparelho de Estado constrói espaços estriados,
isto é, espaços regulados, marcados, onde sujeitos e objetos são estabelecidos e
funções, nomes e cargos são definidos (em suma, um espaço idealista,
transcendente) máquinas de guerra criam o que Deleuze e Guattari chamam de
espaço liso.
Um espaço liso parece ser o que Deleuze quer definir como um plano de
imanência8. Em oposição ao espaço estriado, onde a subjetivação, a cronologia e as
posições são marcadas em uma estrutura, o espaço liso é um plano não estruturado,
em que as coisas não são marcadas pela hierarquia, relações maior-menor ou
representação. O espaço liso é o plano em que o mundo pode ser visto e pensado
não de forma extensa, mas como uma grade de intensidades, num plano de forças
que se relacionam mutuamente, simultaneamente e sem mediação – à maneira de
um rizoma. A maneira como essas máquinas minam o Estado é através do exercício
do poder difuso para rachar os poderes concentrados, através da substituição do
espaço estriado com espaço liso, ou melhor: desafiando, negando ou destruindo
alguma estrutura. A máquina de guerra, assim, é um motor de diferença, é um
choque nômade, vertiginoso contra os estados, um gerador de movimento, uma
máquina de desterritorialização.
Deleuze e Guattari, com base na sua leitura da análise de Georges Dumézil
sobre as mitologias indo-europeias e suas estruturas, afirmam que todas as
estruturas do Estado se baseiam em dois arquétipos, ou seja, que
a soberania política, ou dominação, possuía duas cabeças: a do rei-
mago, a do sacerdote-jurista. Rex e flamen, raj e Brahma, Rômulo e
Numa, Varuna e Mitra, o déspota e o legislador, o ceifeiro e o
organizador. E, sem dúvida, esses dois polos opõem-se termo a
termo, como o escuro e o claro, o violento e o calmo, o rápido e o
grave, o terrível e o regrado, o "liame" e o "pacto", etc. Mas sua
oposição é apenas relativa; funcionam em dupla, em alternância,

8 Cf. capítulo Poética do deslocamento, página 61 deste livro.

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Daniel Gaivota

como se exprimissem uma divisão do Uno ou compusessem, eles


mesmos, uma unidade soberana. (DUMÉZIL, 2012d, p.12).
Além disso, afirmam:
[...] ambos, por si sós, esgotam o campo da função. São os
elementos principais de um aparelho de Estado que procede por
Um-Dois, distribui as distinções binárias e forma um meio de
interioridade. É uma dupla articulação que faz do aparelho de
Estado um estrato. (DUMÉZIL, 2012d, p.12).
O aparelho de Estado, portanto, funciona como uma máquina num sentido
mais literal (assumindo que a "máquina" presente no conceito de máquina de
guerra não se refere a uma engrenagem literal, mas a um agenciamento, a uma
combinação de forças ou elementos), sendo ela própria uma estrutura e gerando
espaço e tempo assim estruturados. É importante observar que a afirmação das
estruturas deve ser composta por esses dois poderes que Dumézil aponta: o motor e
as regras, a força que mantém a ordem e a lógica que organiza o poder. Deleuze e
Guattari usam o xadrez como um exemplo para uma estrutura declarada (em
oposição ao jogo Go): cada peça no xadrez tem sua função, sua maneira correta de
se mover; elas se movem sobre uma mesa estriada onde todos os movimentos
(embora existam muitas possibilidades) são previsíveis, onde você pode entender,
controlar, prever os movimentos.
O xadrez é um jogo de Estado, ou de corte; o imperador da China o
praticava. As peças do xadrez são codificadas, têm uma natureza
interior ou propriedades intrínsecas, de onde decorrem seus
movimentos, suas posições, seus afrontamentos. Elas são
qualificadas, o cavaleiro é sempre um cavaleiro, o infante um
infante, o fuzileiro, um fuzileiro. Cada uma é como um sujeito de
enunciação, dotado de um poder relativo. (DELEUZE;
GUATTARI, 2012d, p.13).
O xadrez tem, como todas as estruturas de Estado, um "mágico-rei" e um
"jurista-sacerdote": a força que mantém os jogadores no jogo, que os fazem
permanecer nas regras é a possibilidade (e o desejo) de vencer. O "Varuna" do
Xadrez é a vitória. Deleuze e Guattari dizem que este primeiro polo do Estado
opera por captura imediata: liga, e isso é tudo. Por outro lado, as regras do jogo
assumem o papel de "Mitra", a ordem, o jurista, o polo que submete um exército à
lógica institucional e converte-o em uma peça do aparelho.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Por isso é importante retornar à diferença entre o turista e o viajante. Fazer


turismo pressupõe uma organização do deslocamento muito específica. O turista
disseca, separa, nomeia e cronometra o espaço e o tempo pelos quais se move,
estruturando e enquadrando as forças que permeiam o deslocamento – anulando-as
ou ao menos as infertilizando. O turista realiza um movimento sedentário, na
medida em que torna o movimento um aparelho de Estado. Não há deslocamento
verdadeiro no movimento do turista, pois não há encontro, vertigem, não há espaço
para o outro, para o novo ou para o inesperado. Pode-se antever os movimentos do
turista da mesma maneira que os movimentos do xadrez. O turismo é estatal. Já o
viajante penetra na alteridade do lugar pelo qual viaja, entrega-se, torna-se o lugar.
O viajante busca abolir as fronteiras, as marcações e os pontos que separam não só
os espaços que ele deveria ocupar daqueles que não deveria, mas mais que isso,
extingue as linhas que o separam do movimento que realiza.
Viajar supõe, portanto, recusar o emprego do tempo laborioso da
civilização em proveito do lazer inventivo e alegre. A arte da
viagem induz uma ética lúdica, uma declaração de guerra ao espaço
quadriculado e à cronometragem da existência. A cidade obriga ao
sedentarismo através de uma abscissa espacial e de uma ordenada
temporal: estar sempre num determinado lugar num momento
preciso. Assim o indivíduo é controlado e facilmente identificado
por uma autoridade. Já o nômade recusa essa lógica que permite
transformar o tempo em dinheiro, e a energia singular, único bem
de que dispõe, em moeda sonante e legal. (ONFRAY, 2009, p.13).
Viajar é, portanto, uma atividade de experimentar o fora, de encontrar o
outro, mas enquanto tornando-se estrangeiro, assumir seu lugar como outro do
mundo, ou seja, tornar também o mundo estrangeiro, outro, diferente.
Desterritorializar-se através do mundo estranho, mas ao mesmo tempo
reterritorializar-se, como estrangeiro. Viajar é fazer rizoma com o mundo.
Assim, um viajante é um vir-a-ser estrangeiro, um devir-outro, um vetor de
alteridade, que embaça as linhas limítrofes que separam o eu do mundo. O
estrangeiro é um transformador, um desorganizador, uma máquina de guerra.
Recebemos o estrangeiro com estranheza – porque somos seu estranho por
oposição –, que quer dizer ao mesmo tempo com apreensão, com receio, mas
também com desejo, curiosidade. As palavras hospitalidade e hostilidade têm a
mesma origem, derivam ambas da mesma palavra latina hostis – que significa

49
Daniel Gaivota

hóspede, mas também inimigo (DERRIDA, 2003, p.6). Quando Sócrates, no início
de sua defesa perante o tribunal, pede que lhe tratem como a um estrangeiro – por
não falar a mesma "língua" que seus acusadores, ou seja, a retórica, a língua dos
tribunais, a fala rebuscada dos juristas profissionais, em última análise uma fala que
não é atravessada por uma techné – o que pede não é só compreensão em relação ao
seu linguajar. Sócrates é um concidadão, e não um estrangeiro, mas ali assume o
papel de um, fala como um estrangeiro. É preciso que sua fala seja recebida não só
com o estranhamento que é esperado de uma escuta estrangeira, mas também com
a curiosidade, a atenção e a hospitalidade que também se espera desse tipo de
escuta.
O estrangeiro é digno de atenção9. Na presença de um corpo estranho,
diferente, as lógicas automáticas suspendem-se, o tempo assume uma outra
característica e o pensamento é forçado a pensar. O estrangeiro, que fala de maneira
estrangeira, força o nativo a ouvir de maneira estrangeira. Para relacionar-se com o
fora é preciso devir-fora, devir-outro, externalizar-se, desterritorializar-se. É
preciso deixar de ser o que se esteve sendo para se deixar fugir. Anne
Dufourmantelle, no seu convite a Derrida, corrobora esta posição:
Quando uma palavra faz parte da "noite", ela nos faz entender as
palavras de outra maneira. Assim, falar "do próximo, do exilado, do
estrangeiro, do visitante, do sentir-se em casa na casa de outro",
impede conceitos como "eu e o outro" ou "o sujeito e o objeto" de
se apresentarem sob uma lei perpetuamente dual. O que Derrida
nos faz compreender é que ao próximo não se opõe o algures, mas
uma outra figura do próximo. (DERRIDA, 2003, p.50).
O que Derrida, Dufourmantelle e Sócrates estão tentando dizer é que o
estranho merece atenção. E o dizem pelas mesmas razões pelas quais Blanchot se
debruça sobre o fora. A realidade não é simples como os sistemas de objetivação
transcendentais sugerem. A relação entre eu e o outro, a barreira que nos separa do
que não somos é uma arbitrariedade. Ela só pode fazer qualquer sentido dentro de
um tipo muito específico de pensamento, de olhar, de um esquadrinhamento do
mundo, de um olhar separador, dissecador. Se compreendemos que, ao se colocar em
um estado imanente, ao se pôr em relação rizomática com o mundo, ao estabelecer

9 Sobre a fala do estrangeiro e o relato de viagem, cf. capítulo A narrativa na Escola-Viagem, página 147

deste livro.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

com o fora uma relação vetorial, o "eu" que se relaciona com os objetos passa a não
ter lugar (já que sem as delimitações do tempo e do espaço nada tem lugar),
compreendemos que ele (o “eu”) não é diferente do outro – ou melhor, é a pura
diferença, torna-se outro. Dufourmantelle parece concordar, colocando em questão o
território do eu que pergunta, do eu que pensa; talvez somente possa ser a partir do
mover-se, do não estar, de não ter uma terra:
E esta geografia conduz meu sentido, ao longo do seminário, à
revelação da questão "onde?" como sendo a questão do homem.
Questão que tem em comum com aquela da esfinge o
endereçamento a um homem que caminha, que não tem outro lugar
que não o estar a caminho, rumo a um destino que lhe é
desconhecido, mas que de sua sombra o precede. A questão "onde?"
não tem idade; transitiva, ela dá como essencial a relação com o
lugar; com a morada, com o sem-lugar; e recusa por sua própria
função o pensamento em sua relação de compreensão do objeto. A
verdade está no movimento que a descobre e no rastro que a
nomeia. Trata-se menos de definir, de explicar, de compreender,
que de medir-se com o objeto pensado descobrindo nesse
enfrentamento o território no qual a questão se inscreve; sua
justeza. É por isso que "a fronteira, o limite, o limiar, o passo
adiante nesse limiar" frequentemente retomam à linguagem de
Derrida, como se a impossibilidade de delimitar um território
estável em que o pensamento pudesse estabelecer-se fosse
provocadora do próprio pensamento. "Para oferecer hospitalidade",
pergunta-se ele, "é preciso partir da existência segura de uma
morada ou apenas a partir do deslocamento do sem-abrigo, do sem-
teto, que pode se abrir para a autenticidade da hospitalidade?
Talvez apenas aquele que suporta a experiência da privação da casa
pode oferecer a hospitalidade."
"Onde?" quer dizer que a questão primeira não é aquela do sujeito
como "ipse", mas, mais radicalmente, aquela do próprio movimento
da questão a partir da qual o sujeito advém. Ela traduz a
impotência de se ter uma terra para si, já que a questão volta para o
próprio lugar que se acreditava assegurado para poder começar a
falar. Ela coloca a questão do começo, ou, antes, da impossibilidade
do começo, de uma origem primeira incontestada em que o logos se
inscreveria. (DERRIDA, 2003, pp.50-56).
Talvez só seja possível uma verdadeira relação com o outro a partir de um
abandono do eu – não de uma maneira ascética, negativa, não uma depreciação de si
ou do corpo (é o oposto disso!), mas de maneira afirmativa, compreendendo (como o
estrangeiro do Sofista de Platão) que o não-ser é, e o ser, de certa maneira, não é.
Se tornar estrangeiro, portanto, significa compreender que mesmo e outro
não são água e óleo em um copo, mas uma construção linguística. Compreender-se

51
Daniel Gaivota

outro significa tornar-se uma linha de fuga, uma válvula de escape às estruturas
através das quais o pensamento se acorrenta. Tornar-se um viajante é devir
estrangeiro, é devir a própria viagem, ocupar um tempo e um espaço de uma
maneira intensa e desestruturante, tornar-se máquina de guerra. O viajante é um
vetor de exteriorização, o que não é o mesmo que dizer que ele foge; significa que o
viajante faz fugir. É uma linha de fuga, uma abertura.
Então é preciso gaguejar, tropeçar, retornar: por que o viajante viaja?
A terceira afirmação de Deleuze, fundada em uma citação de Beckett, pode
ser confrontada aqui. O Filósofo se mostra desconfortável em relação às viagens
por muitos motivos, mas afirma que a justificativa mais estúpida é a de que se viaja
por prazer. Novamente é preciso lidar com um obstáculo (são eles a condição de
possibilidade de qualquer viagem), pois se por um lado afirma-se que a justificativa
da viagem é o prazer, por outro, nega-se o prazer da viagem. Novamente não parece
tão simples assim viajar.
De fato, a viagem feita em busca de prazer parece configurar mais
provavelmente um tipo de turismo: planeja-se cada passo com o intuito de não
haver incômodos, problemas ou complicações. Uma viagem pelo prazer é uma
viagem que se opõe ao pensamento: o viajante hedonista não pretende ter que
pensar em nada durante a viagem. Não parece exatamente o tipo de viagem-ruptura
que viemos defendendo, e talvez Deleuze esteja realmente correto ao afirmá-lo. Mas
esse tipo de viagem turística é relativamente recente. A história humana parece ser
contemporânea à história das viagens, como já observamos. Nenhuma delas,
entretanto, conta uma história turística.
Viajar sempre foi perigoso. Navegar era um ato de ousadia, e não era raro
haver deuses marinhos para os quais rogar durante as aventuras. Atravessar um
oceano era, há algum tempo, o maior deslocamento que se poderia fazer. Cruzar o
Atlântico alguns séculos atrás definitivamente não era algum tipo de turismo, uma
vez que o que estava esperando do outro lado era sempre o desconhecido. Um salto
para o incerto, um deslocamento imprevisível (esta definição de viagem certamente
parece ser o tipo de que Deleuze gostaria mais). Hoje em dia nós meio que sabemos
o que nos espera do outro lado – um aeroporto, a alfândega, esperar sua bagagem,

52
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

tirar algumas fotos de alguns lugares. Portanto, temos ainda de olhar melhor para
encontrar o lugar de diferença nas viagens. Para começar, nós normalmente não
cruzamos mais o oceano de barco.
O voo é um deslocamento muito especial, porque para nós humanos é
antinatural, portanto, é sempre vertiginoso. Neste ponto temos que fazer um
esforço para fazer uma relação: tudo que é não-natural provoca vertigem? Não
parece ser assim. Parece fazer mais sentido que a vertigem seja causada, criada ou
gerada pela diferença. É a sensação de algo fora do seu lugar, algo que não obedece à
nossa ordem pré-estabelecida do mundo que se manifesta diante de nós, que nos
obriga a pensar, como afirmam Foucault e Deleuze.
"Que violência deve ser exercida sobre o pensamento para que possamos
tornar-nos capazes de pensar; que violência de um movimento infinito que, ao
mesmo tempo, tira de nós o nosso poder de dizer ‘eu’?" (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p.55). Em outras palavras, o que faz o pensamento pensar? Algo que o força,
um encontro imprevisível, algum golpe violento que provoca estranheza. Isso
significa que, para que possamos pensar filosoficamente, é preciso estar em
vertigem, e para isso, é preciso ser surpreendido, encontrar com algo inesperado, ou
em outros termos, é preciso desafiar ou negar ou destruir alguma estrutura. E esse
encontro acontece no corpo. O corpo do viajante é, portanto, um corpo em
vertigem10.
Por isso podemos pensar sobre a ideia de Deleuze de que é possível viajar
com o corpo imóvel. Compreendemos a crítica do filósofo a uma viagem puramente
extensiva em oposição às intensidades que podem acontecer de maneira imóvel, mas
enquanto assumimos a possibilidade de um devir-viajante (que não é um tornar-se
viajante, portanto), ou seja, de uma força que pode atravessar as pessoas e as coisas
que se abrem a ela, que promova um deslocamento intensivo. Esta é a maneira de
deslocamento mais interessante à Escola-Viagem, na medida em que o que se está
propondo ou explorando aqui não é a ideia de uma escola que – literalmente – se
mova pelo espaço. Mas é preciso afirmar o valor do movimento real, do movimento

10 O conceito de vertigem é extensamente (ou melhor, intensamente) explorado no capítulo O tempo da

Escola-Viagem, página 91 deste livro.

53
Daniel Gaivota

do corpo11. Ao sair do lugar, o corpo se afeta: deixa uma parte sua pelos caminhos e
leva consigo partes do caminho. Mesmo que o movimento do corpo seja lento ou
rápido, quando é vertiginoso, o desterritorializa, o transforma. Nosso corpo não é
externo a nós, o corpo é imanente. Deslocar-se a si não é diferente de deslocar o
corpo.12
Assim, retornando à questão do fora, Deleuze situa novamente o pensamento
em um vetor de força que nos tira do lugar, que não é metrificável (e por isso é
infinito), admitindo como condição do pensamento uma violência, que não só nos
aflige, machuca, mas que “tira de nós nosso poder de dizer ‘eu’”, o que parece ser o
tipo mais grave de violência. Assim, é ao nos retirar de um plano transcendente no
qual os limites do eu estão bem definidos que o pensamento é violentado e forçado a
pensar. É a partir do encontro com o outro, com o estrangeiro, mas principalmente
com esse campo de forças que se encontra do lado de fora que somos forçados a
experimentar a desestrutura.
Ora, talvez, e só talvez, essa coisa, evento ou objeto estranho, essa força,
embora provavelmente desconfortável, possa ser um objeto de prazer. Na verdade, a
vertigem não parece ter uma relação direta com o prazer ou a dor, mas temos uma
tendência a – de maneira ilógica, olhando bem – tornar o tempo do prazer um
momento imóvel, preso e estanque. Imaginamos uma distância entre o prazer e o
pensar, como se sentir-se bem fosse suficiente, ou como se, para desfrutar de um
momento, tivéssemos de parar de pensar – opomos o pensamento ao sentimento.
Infelizmente, ao pensar o prazer dessa maneira – e isso é fruto de um modo
de pensar platônico, dualista e transcendente –, desperdiçamos a oportunidade de
desfrutar o prazer da maneira mais intensa. Admitir que uma boa refeição, uma boa
música, um filme emocionante – mas mais do que isso: um profundo silêncio, um
sorriso bonito, um novo sabor, a sensação de finalizar um trabalho (ou desistir dele),
uma cor nunca antes vista, etc. – podem ser objetos de estranheza, de espanto, isso
significa dizer que esses prazeres podem ser vertiginosos, podem nos fazer mover.

11 Ler mais sobre a relação do tato e da experiência no interlúdio Garantindo as passagens, página 85 deste

livro.
12 Sobre o corpo, seu movimento lúdico e sua relação "literária" na escola - ou seja, menor, cf. a dissertação de

Osvaldo Luiz da Silva, companheiro do NEFI: O corpo do educador da Educação Infantil lido como uma
Literatura Menor, 2012, disponível no banco de teses e dissertações do ProPEd.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Mas é importante não os deixar se tornar usuais, comuns. O desagradável é


mais frequentemente causa de algum deslocamento porque nos obriga a mover, a
resolvê-lo, porque queremos que ele vá embora. Quando se trata de prazer,
preferimos estancar, ficar ali, parar. Para apreciar as coisas em sua intensidade,
então, é importante estranhar o prazer. Torná-lo desestruturado, inesperado. Não
aceitar o prazer tão facilmente. Não se trata de negar o prazer ou o corpo – é
precisamente contra esse pensamento que escrevemos –, mas evitar transformar
isso (ou desejá-lo) em uma rotina, um hábito. Ou seja, desfrutar momentos em sua
singularidade, em vez de tentar colocá-los em uma estrutura – da mesma forma que
lutamos contra nossas dores.
Assim, não é o prazer que torna a viagem improfícua, estanque. Esta
conclusão só é possível dentro de uma determinada relação que temos com o prazer,
que é imobilizante, estruturante. Uma relação de intensidade, de estrangeiridade
com o prazer pode fazer com que a relação entre viagem e prazer não configure um
problema. Mas a despeito dessa relação não-problemática, ela ainda não se mostra
causal. Ou seja, concordamos com Deleuze e Beckett quando dizem que o prazer
não parece mesmo uma causa suficiente, o motor da viagem, apesar de não
precisarmos necessariamente retirar o prazer da equação. Mas continuamos a
perguntar: Por que, então, viajamos?

Ao viajar, somos capazes de ir ao encontro de outras pessoas. É uma


experiência singular, visto que muitas vezes não encontramos hospitalidade em
nossas cidades ou locais de origem, mas sim em estranhos. Enquanto viajantes
somos recebidos com alegria, com olhos marejados como se fôssemos filhos que
partiram no passado e que retornam à casa. Na sala, em torno da mesa, nossas
palavras são ouvidas com atenção, não à espera de verdades, mas a espera de
lembranças. Estaria Deleuze correto ao afirmar que embarcamos em uma falsa
busca por um pai que não tivemos ao viajar? (DELEUZE, 2001). Não. Não é uma
relação familiar a que se estabelece entre o hóspede e o anfitrião. Não são as

55
Daniel Gaivota

recordações13 de nossa infância nem de uma infância que não tivemos que contamos
quando viajamos.

O dono da casa "espera com ansiedade sobre a soleira de sua casa o


estrangeiro que ele verá despontar no horizonte como um
libertador. E do mais longe que ele o vir chegando, o senhor se
apressará em gritar-lhe: 'Entre rápido, porque tenho medo de
minha felicidade'". (DERRIDA, 2003, p.107).
Por que se espera com ansiedade o viajante, esse ser estranho? Por que se
deseja tanto sua palavra? O estrangeiro é uma figura assustadora, também.
Perigosa. É uma máquina de guerra, que desestrutura e liberta os lugares por onde
passa. O sedentário tem medo dessa intensidade, não porque ela é dolorosa, não
porque ela lhe fará mal, mas porque sabe que ali ele pode observar, ter um relance
rápido de sua felicidade. Mas o preço dessa felicidade é deixar de ser, é o próprio eu.
Por isso o dono da casa abriga o viajante, o observa, escuta, como observaria um
espelho mágico que mostra o que poderia ter sido, o que ainda pode, que faz ver.
A presença do viajante é a presença de Ulisses14. A Odisséia, que é
claramente uma história de viagens, tem como episódio central a chegada do
estrangeiro Ulisses na Feácia, país maravilhoso e misterioso no qual visitantes não
são bem-vindos, e onde não se “acolhem amavelmente os que vem de fora”, segundo
Atená. Ulisses, ao se mostrar, entretanto, a Arete, Nausica e Alcinoo, os nobres
governantes do lugar e contar as recentes atribulações pelas quais passara no mar
(mas sem revelar sua identidade), é recebido com hospitalidade, e não só é acolhido
no palácio como a ele é oferecido um banquete, jogos são organizados em sua
homenagem e até a mão da princesa, se o viajante decidir por ficar ali. A narrativa
da Odisseia é apresentada no dia seguinte, quando, durante os jogos, o aedo
Demódoco, cego como Homero, conta as façanhas da guerra de Tróia na presença
do próprio Ulisses, que não suporta e chora. Ao percebê-lo, Alcino pergunta então
quem é o estrangeiro, que revela sua identidade contando sua história, continuando
a narrativa de Demódoco, narrando sua viagem. O que sabemos sobre Circe, as
Sereias, os Cíclopes e os Lotófagos nos é contado pelo próprio Ulisses, estrangeiro
recebido em casa, viajante que nos confronta com sua outridade, com seu vetor de

13Sobre memória e relato, cf. o capítulo Onirodinia e relato, página 169 deste livro.
14Sobre a relação de Ulisses, Penélope e a narrativa de viagem, cf. capítulo A Narrativa na Escola-Viagem,
página 147 deste livro.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

externalização. Ulisses traz consigo o fora, e nesse sentido, todo viajante é


Ulisses15.
O dono da casa espera o estrangeiro na soleira de sua porta porque ele traz
a possibilidade de viajar; ele carrega não só um corpo ou palavras, mas traz consigo
o movimento que realiza. O estrangeiro é uma linha de fuga, que não é uma linha
que foge, mas que faz fugir. Nas traduções mais utilizadas em inglês, a expressão
Deleuziano para linha de fuga é “line of flight”, que se traduz como “linha de voo” –
ou seja, não uma força que voa, mas que faz voar. O viajante traz consigo a
vertigem, o estranhamento, o outro. É através do viajante estrangeiro que o dono
da casa, sedentário, pode viajar.
"Entre rápido", rápido, quer dizer, sem demora e sem esperar. O
desejo é a espera daquele que não espera. O hóspede deve apressar-
se. O desejo mede o tempo desde sua anulação no movimento de
entrada do estrangeiro: o estrangeiro – aqui, o hóspede esperado –
não é apenas qualquer um a quem se diz "venha", mas "entre",
entre sem esperar, faça uma parada entre nós sem esperar, apressa-
te em entrar, "venha para dentro", "venha a mim", não apenas para
mim, mas em mim: ocupa-me, toma lugar em mim, o que também
significa tome o meu lugar, não te satisfaças em vir ao meu
encontro ou "estar comigo". Passar a soleira é entrar e não apenas
aproximar-se ou vir. Estranha lógica, mas tão esclarecedora, essa
de um senhor impaciente que espera seu hóspede como um
libertador, seu emancipador. É como se o estrangeiro tivesse as
chaves. [...] como se o estrangeiro, então, pudesse salvar o senhor e
libertar o poder de seu hóspede; é como se o senhor estivesse,
enquanto senhor, prisioneiro de seu lugar e de seu poder, de sua
ipseidade, de sua subjetividade (sua subjetividade é refém). É
mesmo o senhor, o convidador, o hospedeiro convidador que se
toma refém – que sempre o terá sido, na verdade. E o hóspede, o
refém convidado (guest), torna-se convidador do convidador, o
senhor do hospedeiro (host). O hospedeiro torna-se hóspede do
hóspede. O hóspede (guest) torna-se hospedeiro (host) do
hospedeiro (host). (DERRIDA, 2003, pp.107-109).
Assim, a hospitalidade, como sugere Derrida, torna-se uma relação
rizomática: o hóspede torna-se viajante na sua relação de estrangeiro, como Ulisses,
mas desterritorializa-se na estrangeiridade do senhor, do dono da casa, que, por sua

15 É preciso tomar cuidado com essa afirmação, entretanto. Como Voltaire ironiza, Ulisses atravessa vinte

anos de provações, mas permanece o mesmo, como se não envelhecesse. A jornada da Odisseia pode ser
interpretada por alguns pensadores da viagem como uma ”jornada para permanecer”, o que de nenhum modo
é nossa intenção defender. Assim, a afirmação “todo viajante é Ulisses” deve ser entendida neste sentido
muito particular de que ele movimenta os vetores de força e força os limites dos territórios daqueles que
encontra, dos “donos da casa”.

57
Daniel Gaivota

vez de desterritorializa também, devém viajante, mas ao receber o estrangeiro


remarca seu território sedentário, reterritorializando-se. É por isso que viajamos, e
não por prazer, por conhecimento ou como maneira de alcançar um destino ou um
propósito (e assim, essas não podem também embasar a Escola-Viagem). Não
viajamos por nós, mas pelo mundo. É ao viajar que podemos fazer viajar, é ao nos
abrir que podemos fazer abrir (o mundo) e é ao fugir que podemos fazer fugir (ou
voar). Viajamos para que se encontrem o móvel e o imóvel, para que o mundo de
ambos estremeça, pois é nesse encontro entre sedentário e nômade, entre Caim e
Abel, entre anfitrião e hóspede, entre dono da casa e viajante, é neste acontecimento
que estas duas forças, ambas estrangeiras, outras entre si, garantem a possibilidade
das lágrimas de Ulisses.

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POÉTICA DO DESLOCAMENTO
(OU SOBRE INSULARIZAR O MUNDO)

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POÉTICA DO DESLOCAMENTO
(OU SOBRE INSULARIZAR O MUNDO)

Acho que a escola me proporcionou um encanto - não como uma


propaganda, mas como um cientista apaixonado. Acho que a escola me
tornou estrangeiro do mundo ao me desafiar a descobrir e a criar. Acho
que tudo tem a ver com a experiência de descobrir e criar - que são muito
parecidas e talvez iguais. – Tobias

Admitir o deslocamento como conceito principal para pensar a educação


significa, antes de qualquer reflexão, compreender que a tarefa da educação não é
estabelecer saberes, cristalizar verdades, definir estados, mas, pelo contrário, gerar
movimento. Podemos prosseguir como Deleuze em sua posição sobre a viagem
compreendendo que não é de um movimento literal que falamos, não é do
deslocamento extensivo que a escola se forma e a partir do qual trabalha, mas de
um outro tipo de movimento.16
A palavra deslocamento parte de uma ideia de locus, de um lugar. A opção por
defender uma educação que desfaça um locus, e não de um ubi ou de um topos, que
são palavras com significado etimológico parecido, não se dá por acaso. Ubi é um
radical latino que tem um significado relacionado a lugar (presente em palavras
como ubiquidade – estar presente em todos os lugares), mas é usado como adverbio,
como por exemplo em “Ubi oculus ibi amor” – “onde está o olhar, aí está o amor”.
Pode ser melhor traduzido como “onde?”. É uma palavra interrogativa, e, portanto,
não é nosso interesse negar esta possibilidade, que é dinâmica e relacional. Já a
diferença entre o topos e o locus tem outra proporção, pois ambos substantivos,
significam em grego e latim, respectivamente, a mesma palavra “lugar”.

16 Sobre a possibilidade de uma pesquisa em educação em deslocamento, que seja viajante, como trilha,
viagem, presença em diferentes cenários, cf. o livro de Maria Reilta Dantas Cirino, companheira do NEFI:
Filosofia com crianças: cenas de experiência em Caicó (RN), Rio de Janeiro (RJ) e La Plata (Argentina), 2016,
Edições NEFI.

61
Daniel Gaivota

Locus é uma das possíveis origens etimológicas menos distantes17 das


palavras da língua portuguesa ‘lugar’ e ‘local’. Em latim, a palavra é usada para
designar lugares ocupados por determinadas coisas. Segundo o Online Etymology
Dictionary, tem um sentido pontual: "‘a place, spot; appointed place, position;
locality, region, country; degree, rank, order; topic, subject,’ from Old Latin stlocus,
literally ‘where something is placed’, from PIE root *st(h)el- ‘to cause to stand, to
place’". Este radical tem a ver, portanto, com situar coisas em locais imóveis, de
modo a ordená-las, subjetiva-las, imobilizá-las em sua pontualidade categorizável.
Já topos aparece no dicionário simplesmente como “‘place, region, space’, also
‘subject of a speech’, a word of uncertain origin. The broad semantic range
renders etymologizing difficult". É uma palavra mais obscura, mas ao significar
“região” ou “espaço” (ou mesmo talvez “alguém que fala”), escapa de um lugar
pontual e específico para afirmar um campo, um plano. O poeta Charles Olson
prefere nem traduzir a palavra grega, mas ao falar do “topos como universo
humano”, em sua releitura de Moby Dick18, afirma: “space is the central fact to men
born in America”, traduzindo também topos em um espaço (NICHOLS, 2012, p.31).
A partir dessa separação significante entre “local” e “espaço”, podemos
pensar na reflexão de Michel de Certeau sobre o lugar. O autor faz uma diferença
pertinente para compreender ainda melhor nossa opção por atacar o locus e não o
topos:
Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem
elementos nas relações de coexistência. Aí se acha portanto
excluída a possibilidade, para duas coisas, de ocuparem o mesmo
lugar. Aí impera a lei do “próprio”: os elementos considerados se
acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar “próprio”
e distinto que define. Um lugar é portanto uma configuração
instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade.
(CERTEAU, 1998, p.201).

17 Podemos ir mais atrás em uma busca etimológica, atrás de radicais indoarábicos, por exemplo, e ainda
mais, progressivamente, por termos e origens que penetram e afetam a língua através de múltiplas entradas;
em numa regressão absurda, essa busca uma hora ou outra nos levaria a balbucios e gritos – o que nos leva a
pensar que talvez, em última análise, o que fazemos todo o tempo é balbuciar e gritar de uma maneira mais
(?) sofisticada ou estruturada.
18 Confira os capítulos deste livro O tempo da Escola-Viagem e O (des)território da Escola-Viagem,

sequencialmente nas páginas 91 e 115 deste livro, para mais informações sobre Moby Dick.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Entretanto, mais a frente, dá uma segunda definição, para explicar o que é o


“espaço”, em comparação ao “lugar”:
Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção,
quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um
cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos
movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas
operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o
levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais
ou de proximidades contratuais. [...] Diversamente do lugar, não
tem portanto nem a univocidade nem a estabilidade de um
“próprio”. (CERTEAU, 1998, p.202).
É um erro, entretanto, considerar os dois conceitos como opostos ou
contrários. Não é como se a ideia de locus negasse a de topos, mas mais como se as
duas estivessem em constante relação, uma desterritorializando a outra e
territorializando-se aí. Talvez o ato de alocar, localizar ou locar seja uma invasão,
uma força do locus sobre o topos. E talvez deslocar seja o mesmo que tornar algum
locus específico um lugar tópico.
Em suma, o espaço é um lugar praticado. Assim a rua
geometricamente definida por um urbanismo é transformada em
espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço
produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de
signos – um escrito. (CERTEAU, 1998, p.202).
É a ocupação do lugar, do local como espaço que pode gerar des-locamento.
Não é possível destruir o locus, esta força segmentária e subjetivante, este ponto que
insiste em ser marco19, em ser. É possível, entretanto, alisar o plano, tornar os
pontos em linhas, vetorizá-los, fazer com que sejam percebidos mais por seu
movimento que pela sua identidade, ou seja, desestruturar o campo no qual é
possível situar esses locais.
Assim, uma prática pedagógica do deslocamento tem a ver com uma
educação desestruturante, com um movimento que tem pouco a ver com o mover do
corpo, extensivo, e mais com um encontro com a diferença, com um deixar-de-ser.
Por isso, configura sempre um movimento antinatural – no sentido de que nunca é
espontâneo, é sempre um encontro com algo de fora do nosso campo.
Dizemos desta maneira – “antinatural” – para confrontar a sabedoria comum
de que a natureza é composta espontaneamente, sem razão, enquanto a ação

19 Sobre pontos, marcos e nomadismo, confira capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.

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Daniel Gaivota

humana, por oposição a essa natureza inconsciente, tem vontade própria. Esta
separação entre o racional e o natural ou o ideal e o material já é antiga na história
do pensamento, e pensadores da imanência como Nietzsche e Spinoza a enfrentaram
com vigor. A ideia de um mundo dual, onde as formas e os objetos metafísicos
estejam separados da realidade concreta (ou pior, onde estes objetos é que
representem a realidade concreta) configura grande parte do problema no
pensamento e na educação.
Pensar em um movimento que se des-loque no mundo significa compreender
que o deslocamento não é uma saída do mundo nem um mover-se pelo mundo, mas
um mover-se através do mundo, saltar de um plano em que o ser é possível como eidos,
como ideia transcendente, para um plano em que todas as multiplicidades sejam
concomitantes, em que o ser estável não é possível na medida em que as definições,
limites, estados, nomes e relações são apenas cristalizações de uma verdade
arbitrária. Ou seja, um plano vetorial, um plano de imanência. O mundo é múltiplo,
e o movimento que provoca uma verdadeira ruptura é um deslocamento através
dessa multiplicidade, um deslocamento nômade20.
Há diversas maneiras de se deslocar, de viajar com as quais podemos fazer
relação para pensar o deslocamento operado na Escola-Viagem. A viagem solitária,
com amigos, a caminhada, a peregrinação, a exploração, a viagem do mensageiro, a
fuga, a migração, o deslocamento transumante, o turismo, o nomadismo. Mas a
mais potente para se pensar o conceito de deslocamento – por ser a mais antinatural
– é o exílio. O exílio é sempre uma violência, sempre um deslocamento brusco. A
canção de Caetano Veloso, escrita em seu exílio em Londres, denota o que acontece
quando somos exilados de nosso território:

I'm wandering round and round, nowhere to go


I'm lonely in London, London is lovely so
I cross the streets without fear
Everybody keeps the way clear
I know I know no one here to say hello
I know they keep the way clear
I am lonely in London without fear
I'm wandering round and round here, nowhere to go

20 Sobre o deslocamento nômade, consultar também o capítulo O (des)território da Escola-Viagem, página

115 deste livro.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

While my eyes go looking for flying saucers in the sky

Oh Sunday, Monday, Autumn pass by me


And people hurry on so peacefully
A group approaches a policeman
He seems so pleased to please them
It's good, at least, to live and I agree
He seems so pleased, at least
And it's so good to live in peace
And Sunday, Monday, years, and I agree

While my eyes go looking for flying saucers in the sky


(VELOSO, 1971)
O espaço torna-se extremamente desconhecido, limpo de suas referências; o
exilado caminha, mas não tem para onde ir, não tem fim. Está à deriva. Não há
lugar, locus que o suporte, que o acolha. Toda familiaridade está suspensa. O tempo
passa de outra maneira; as horas, os dias, os meses, as estações se sucedem sem que
possamos ter qualquer controle, tão incontroláveis quanto as pessoas que passam –
mas que não são reais, não é possível nem mesmo lhes dar “olá”. Entretanto, o
exilado observa. Atento, à espera de um disco voador ou um acontecimento em sua
errância21, percebe minúcias como pequenos gestos e microrrelações 22. O exílio é a
desterritorialização em seu nível mais austero, mais intenso. No exílio,
permanecemos sempre como que suspensos do mundo. Talvez a escola seja uma
forma de exílio.
É possível pensar, se observarmos com cuidado, a alegoria platônica como
uma narrativa de exílio. A princípio parece que não, pois o retorno do homem que
sai ao mundo externo à caverna é uma escolha, e o exílio é sempre uma violência.
Mas se voltamos ao texto platônico n’A República, observamos Sócrates afirmar
que o prisioneiro liberto preferiria “viver empregado em trabalhos do campo, sob
um senhor sem recursos, e vir a sofrer o que for a voltar para [as] ilusões e viver a
antiga vida”. (VII, 517d). E Glauco, logo depois, dizer que “aguentaria tudo para
não voltar a viver daquele jeito” (VII, 517e). Por que, ainda assim, eles insistem em

21 Sobre a errância, pode ser interessante considerar o interlúdio Garantindo as passagens e o capítulo O
tempo da Escola-Viagem, sequencialmente nas páginas 85 e 91 deste livro.
22 Sobre a potência interruptora, profanadora, de desnude dos gestos singulares e sua importância para

pensar a escola e a experiência, cf. o livro de Beatriz Fabiana Olarieta, companheira do NEFI: Gestos de
escrita: pesquisar a partir de uma experiência de filosofia na escola, 2016, Edições Nefi.

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Daniel Gaivota

analisar a hipótese de o prisioneiro liberto voltar às trevas? Não parece que ele seja
de certa forma impelido a retornar, a partir do conhecimento do bem que
encontrou? Ou, em outras palavras: existe mesmo para Platão a possibilidade de o
prisioneiro não retornar? E se não existe, ele não se torna uma espécie de exilado
em sua caverna natal?
Durante muito tempo a imagem do filósofo permaneceu cristalizada como a
do sujeito que caminha em direção à luz, deixando para trás as trevas. A alegoria,
entretanto, contribui para uma visão dual, transcendente do mundo, que acaba se
mostrando muito problemática, pois esvazia o mundo de suas forças, de sua
intensidade e importância, e desvaloriza a relação entre as coisas e as pessoas.
Pensar a educação através dessa ótica contribui para a afirmação de dispositivos e
estruturas de poder e dominação, além de despotencializar o pensamento e os
encontros.
Jan Masschelein, em uma apresentação de seus conceitos (informação
verbal)23, em resposta, utiliza a metáfora da caverna para inverter a reflexão
platônica e contrapor a pedagogia à filosofia, de certa maneira. A escola, assim
como a caverna, é um lugar suspenso, separado da vida cotidiana, onde não há o
tempo cronológico nem o tempo como clima (não é possível saber se é dia ou noite,
se chove ou faz sol, se é primavera ou outono de dentro da caverna). A caverna é um
lugar sem luz, mas que, ao contrário da imagem platônica de uma luz ideal que já
existe e deve ser buscada, necessita de uma luz artificial, uma luz que seja criada por
seus habitantes. A parede da caverna, segundo a análise de Masschelein, é o lugar
onde o homem pode imprimir sua mão com tinta e ao observá-la pela primeira vez
pode observar-se não como uma ferramenta, mas como um ser a ser pensado. Pela
primeira vez o homem olha para seu corpo enquanto um objeto externo à própria
subjetividade. Na caverna é possível observar-se fora de si. Devir-outro.
Mas a caverna é um ambiente, em um sentido específico, estático. Por mais
que ali se dê uma espécie de deslocamento, ela não permite uma experiência muito

23 Apresentação de Masschelein no ECS Forum (Education, Culture and Society Forum) da Universidade de

Leuven, onde leciona. A apresentação citada aconteceu em 13/03/2015 sob o título de “Education,
philosophy and … caves”. O vídeo pode ser acessado através do site da universidade, neste link:
https://blog.associatie.kuleuven.be/ecs/jan-masschelein-education-philosophy-and-caves-video-recording/

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

específica, que é pôr-se em perigo (ou melhor pôr o Eu em perigo). Embora seja
preciso, como afirma Masschelein, coragem para entrar na caverna, ela oferece um
tipo de segurança que é diferente do conforto da casa, mas que ainda imobiliza, que
ainda permite um se deixar estar. A caverna não é como a toca dos animais, que tem
várias saídas, mas uma só entrada e uma longa extensão silenciosa. Sem a presença
humana, não há movimento nas cavernas (salvo a presença ocasional de algum
animal, mas não de uma proliferação).
A escola, por sua vez, tem a ver com um descobrir (a-létheia) que ao mesmo
tempo seja um criar24. Não se trata ali de ocupar um lugar silencioso ou imóvel, ou
um tempo que seja sempre presente (num sentido de um agora que se prolonga). A
imagem da caverna evoca um espaço onde, por não estarmos afetados pelas linhas
de força do mundo, do hábito, da sociedade, possamos colocar objetos em evidência,
deslocados de suas funções habituais, e olhar para eles com atenção. Ou seja,
segundo Masschelein, olhar outra vez, uma segunda vez; “oferece a possibilidade de
um 'segundo começo' [...]: um olhar liberado, libertado por si próprio da sombra de
uma existência bruta, por aprender a ver o mundo como um reflexo de sua própria
imagem” (2015, tradução nossa, grifo do autor). Ou seja, a possibilidade de observar
o mundo em suas forças, um espaço imanente. Entretanto, esse outro mundo vazio
no fundo funciona como uma separação, uma segmentação das forças que acabam
tornando-se objetos de um sujeito – que se interessa e presta atenção, mas que
ainda é um sujeito. Ali está a parede onde se pode ver o cavalo, desprendido de sua
função atribuída, separado de sua relação simbólica religiosa e casual; é um cavalo
“puro”, mas é ainda um cavalo para mim.
Por isso, talvez a escola não deva se parecer com a caverna, apesar de
certamente ter algo a ver com um exílio (é na escola que as crianças são separadas
de suas famílias, é na escola que se encontram longe das expectativas dos pais e da
sociedade e das regras econômicas e sociais que regem o mundo fora dela). Assim, a
caverna é uma metáfora bonita para uma reflexão sobre a escola: ela representa
"uma separação para com o mundo da vida cotidiana e do eterno ciclo da vida
natural, os ritmos do dia e da noite e as estações. É um lugar de outra experiência
24 Esta relação entre a descoberta, a verdade e a criação é explorada no capítulo A narrativa na Escola-

Viagem, página 147 deste livro.

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Daniel Gaivota

espacial e temporal, sobre o que testemunham os traços nas paredes. Um lugar, por
assim dizer, sem lugar” (MASSCHELEIN, 2015, tradução nossa). Por isso, não
queremos negar a caverna como uma imagem potente para pensar a educação e a
escola, mas encontrar nossa própria. A Escola-Viagem não é exatamente um “lugar
sem lugar”, ou seja, o lugar que está fora do mundo, mas antes o lugar onde está o
fora do mundo. Como fazer com que, na escola, o que esteja em jogo não seja meu
campo perceptivo (ainda que a luz do fogo que o garanta seja criada por mim e não
buscada)? Como fazer com que seja possível me relacionar com o mundo não como
coleção de objetos outros em relação a um “eu” que percebe, mas sim mover para
um fora (que não está literalmente “fora”, como o que está fora da caverna de
Platão, mas que é imanente) intensivo, “tempestade selvagem”? Talvez para pensar
em uma escola que seja viagem precisemos de uma outra forma de caverna, um
outro tipo de exílio. Menos através de uma noção de campo (cognitivo, de visão, de
percepção) que através de uma noção de plano (de imanência, de intensidades). Ou
melhor, talvez seja melhor pensar a escola fora do jogo luz-sombra e buscar como
acessar o mundo em sua “fosforescência”. O exílio proporcionado pela escola,
portanto, talvez seja mais semelhante ou talvez compartilhe mais partículas e
elementos moleculares25 com a ilha deserta.
A ilha deserta não é uma imagem recente no imaginário popular. Inúmeras
narrativas e mitos têm como arquétipo a ilha deserta – talvez por sermos uma
cultura cujo berço se deu em uma nação predominantemente insular26 –, como lugar
de perigo, mistério, tesouro e santuário. Mas sempre como um lugar que abarca o
desconhecido, o estranho, o diferente. Por que se viaja para uma ilha deserta? Por
que é tão atraente o deslocamento desde a segurança do continente, da estrutura já
mapeada de um território conhecido para um local obscuro, sem guia, perigoso?
A ilha é, por natureza, um ambiente separado do mundo. É um ambiente em
suspensão (como observa Darwin, a evolução animal segue de forma paralela nas
ilhas intocadas), assim como a caverna, que também é um outro mundo, mas além

25 Sobre a dupla conceitual molar-molecular em Deleuze, ler capítulo O (des)território da Escola-Viagem,

página 115 deste livro.


26 Para ler sobre a relação entre as narrativas fundadoras e as ilhas na Odisséia, conferir capítulo A escola e

o devir-viagem, página 41 deste livro.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

que isso, parece ser antes um mundo-outro. A caverna tem uma entrada, que
normalmente funciona de saída. As ilhas, rodeadas de deserto marítimo, encontram-
se, não diferente do náufrago, à deriva. Há múltiplas entradas e saídas. Ilha-rizoma,
em relação à caverna-alvéolo. Suas praias são fustigadas, a todo momento, por
ondas, e sua própria topografia e zootopia parece se organizar ondularmente a
partir desta praia, desta borda que funciona ao mesmo tempo como porto seguro e
golpeadora violenta. A ilha existe em função de suas bordas, e de fato todo o espaço
é tão próximo delas que arrisca-se dizer que todo o espaço da ilha é fronteiriço, é
borda. A ilha deserta é, mais que tudo, um espaço inabitado. Do mesmo modo que o
deserto ou o mar, mas com a diferença de ser habitável. Assim, habitável mas
inabitada, a ilha oferece o mínimo necessário para um re-começo, para uma
recriação. Ela se torna este vetor de transformação ao ser interferida por um
pequeno elemento: o náufrago.
O náufrago é um exilado, antes de tudo. O exílio é uma forma de viagem
violenta, porque é compulsório. O exilado não tem escolha a não ser adaptar-se ao
novo mundo que a ele se impõe, descobrir, geralmente sozinho, os novos
mecanismos segundo os quais ele pode interferir e sobreviver naquela realidade. É
lançado sem preparo a um lugar estranho, e é preciso recriar a si e ao espaço para
poder estar ali. O náufrago começa seu exílio sempre à deriva. No meio do mar,
começa seu processo de insularização: o mar é um plano inconstante, sem marcas,
sem direções, um espaço liso, um não-lugar. Estar no mar é estar entre. É preciso,
então, nadar com seu próprio corpo, enfrentar as forças do mundo com as forças dos
braços e pernas, mas não para chegar em algum lugar. Não é para isso que o
náufrago à deriva nada, embora talvez ele o pense. É preciso nadar no mar pois ao
estar em um intermezzo, num espaço de transição, liso, não há outra coisa senão
movimento.



Talvez a história mais conhecida da literatura ocidental sobre ilhas desertas


seja a de Robinson Crusoé, personagem de Daniel Defoe que naufraga e é forçado a

69
Daniel Gaivota

sobreviver em uma ilha desconhecida. Robinson se vê num ambiente desprovido de


todas as essências, separações, funções estabelecidas e verdades a que estava
acostumado em sua vida continental. Mas, face a esse ambiente selvagem, Robinson
resgata o que pode dos restos do navio, começando a construir sua própria
sociedade de um homem só na ilha. Estabelece uma rotina de trabalho e é
recompensado por ela, recria um mundo econômico análogo ao seu mundo anterior.
Robinson salva um nativo de ser devorado por canibais e este passa a servi-lo,
contente em ser escravo e obediente às ordens. Ensina-lhe bons costumes, a ler a
Bíblia e este se torna seu criado quando consegue finalmente sair da ilha e voltar à
Inglaterra. O Robinson Crusoé de Defoe é um náufrago que recusa a deriva. O
naufrágio o obriga a estar em um espaço liso, mas Robinson insiste em estriá-lo.
Não é possível para Robinson Crusoé viver fora das estruturas de Estado. Ao
resgatar Sexta-feira e dois espanhóis, ele afirma para si: "Minha ilha estava agora
povoada, e eu pensei que era o homem mais rico dali, afinal estavam todos sob meus
domínios. Eu era o Rei e tinha três súditos" (DEFOE, 1997, p.74).
Uma outra história sobre Robinson Crusoé, que recria o mito do náufrago é
Sexta-feira ou Os Limbos do Pacífico, de Michel Tournier. Nela, um jovem Robinson
Crusoé naufraga e vai parar em uma ilha deserta (que chama a princípio de Ilha da
Desolação, mas mais tarde nomeia Speranza27) e se percebe só. Diferente do
Robinson de Defoe, este náufrago se recusa a se estabelecer na ilha, à espera de
salvação. Come o que consegue pegar, espera na praia por um barco dia e noite.
Como não recebe nenhuma resposta do horizonte, e com medo da insanidade,
decide construir um barco. Trabalha nele ferozmente, sem se preocupar com a hora
de acordar, dormir, comer, fazer as necessidades, foca tão-somente sua atenção na
tarefa de construir um grande barco, que batiza de Evasão. Não se sabe quantos
dias, semanas, meses, anos se passam durante este processo (quase como Caetano
em Londres), já que Robinson não se preocupa em organizar um calendário ou
medir seu tempo28: entrega sua alma totalmente à tarefa de evadir, à Evasão. Mas ao

27 Há no capítulo Onirodinia e relato, página 169 deste livro, uma reflexão sobre a escola, as ilhas e a
esperança que pode ser interessante para pensar no nome que Robinson dá a sua ilha da desolação.
28 Sobre a suspensão do tempo cronológico, cf. capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

finalizar seu trabalho, depara-se com uma questão mais complicada: não dispõe de
meios para levar o pesado barco à água.
Robinson entrega-se então a outro tipo de neurose, abandonando por
completo qualquer perspectiva de futuro: passa a viver uma vida estática,
verminosa. Aos poucos, vai se tornando um animal rastejante, letárgico. Adota
como prática submergir por completo, somente deixando a boca e o nariz para fora
de um lamaçal pantanoso onde os porcos da ilha chafurdavam. Torna-se limo,
torna-se a lama.
Os Limbos do Pacífico é um livro, segundo analisa Deleuze, sobre o papel do
Outrem (1974, p.314). O próprio Robinson, em seu diário, faz anotações filosóficas e
tenta explicar o que acontece a um homem privado disto, que não se apresenta
como sujeito nem objeto, mas como condição de possibilidade da relação de
subjetividade que temos. Segundo a teoria do próprio náufrago, “Outrem é para nós
um poderoso fator de distração, não apenas porque nos perturba constantemente e
nos arranca ao pensamento atual, mais ainda porque a simples possibilidade do seu
aparecimento lança um vago luar sobre um universo de objetos situados à margem
de nossa atenção mas capaz a todo momento de se lhe tornar o centro”
(TOURNIER, 1985, p.32). Ou seja, assumimos que as coisas que não percebemos
são reais porque são percebidos por outrem – ou ao menos podem ser. Outrem não é
uma estrutura como outras no campo de percepção, mas a própria estrutura que
organiza o conjunto do campo.
Em suma, outrem assegura as margens e transições no mundo. Ele
é a doçura das contiguidades e das semelhanças. Ele regula as
transformações da forma e do fundo, as variações de profundidade.
Ele impede os assaltos por trás. Povoa o mundo de um rumor
benevolente. [...] Ele relativiza o não-sabido, o não percebido; pois
outrem introduz o signo do não-percebido no que eu percebo
determinando-me a apreender o que não percebo como perceptível
para outrem. Em todos esses sentidos é sempre por outrem que
passa meu desejo e que meu desejo recebe um objeto. Eu não desejo
nada que não seja visto, pensado, possuído por um outrem possível.
(DELEUZE, 1974, p.315).
O que acontece a Robinson ao longo de sua longa estadia na ilha é a
avassaladora experiência de, progressivamente, sentir desaparecer em si a estrutura
Outrem, ou seja, sentir desaparecer em si a possibilidade de um mundo em que a

71
Daniel Gaivota

existência dos objetos é garantida pela existência dos sujeitos. Ele pouco a pouco
compreende que esta estrutura, outrem, nada mais é que a expressão de um mundo
possível, subjetivo. Ao encontrar, depois de muitos anos de isolamento, marinheiros
ingleses, Robinson percebe que
cada um desses homens era um mundo possível, bastante coerente,
com seus valores, os seus focos de atração e de repulsa, o seu centro
de gravidade. Por diferentes que fossem uns dos outros, estes
possíveis tinham em comum, atualmente, uma pequena imagem de
Speranza – tão sumária e superficial! – à volta da qual se
organizavam, e num ponto da qual encontravam um náufrago
chamado Robinson e o seu servo mestiço. Mas, por muito central
que esta imagem fosse, ela estava, em cada um deles, marcada pelo
signo do provisório, do efêmero, condenada a voltar, num curto
prazo, ao nada donde a tinha tirado o desvio acidental do
Whitebird. E cada um destes mundos possíveis proclamava
ingenuamente a sua realidade. O outrem era isto: um possível que
se obstina em passar por real. (TOURNIER, 1985, p.208)
Robinson pensa a percepção através da imagem de um estranho entrando em
sua casa. O estranho detém sua atenção sobre determinados objetos e sobre outros,
não. Mas esta observação só faz sentido através da própria percepção dele,
Robinson Crusoé, observador da cena, conhecedor dos objetos. É um estágio
secundário do conhecimento. Num estado primário, sem essa multificação
alteritária, sem que tentemos descrever o eu a partir de outrem, a consciência do
objeto é o próprio objeto, sem alguém que conheça.
Não devemos falar aqui de uma vela que projeta um raio luminoso
sobre as coisas. Tal imagem deve ser substituída por outra: a dos
objetos fosforescentes por si próprios, sem algo exterior a iluminá-
los. Há nesse estádio ingênuo, que é o nosso modo normal de
existência, uma feliz solidão do conhecido, uma virgindade das
coisas que, todas elas, possuem em si próprias, como outros tantos
atributos da sua última essência – cor, odor, sabor e forma. Então
Robinson é Speranza. (TOURNIER, 1985, p.87)
O abandono forçado do Outrem faz com que Robinson, na ilha, pouco a
pouco passe a compreender Speranza não como um objeto dos sentidos, mas a
considerar a ilha cada vez mais de-subjetivada, em sua própria “fosforescência”. Não
porque outrem não está lá para verificar o que se acredita ver, e sim porque,
faltando, deixa a consciência colar ou coincidir com o objeto. Mas se, num primeiro
momento, essa condição faz com que Robinson entre em desespero, que se dilua no
barco que constrói ou no chiqueiro lamacento dos porcos, não parece ser para

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

anular-se como sujeito, mas pelo contrário, para submeter Speranza à sua natureza,
fazê-la se impregnar de Robinson – enquanto está submerso no chiqueiro, ele escuta
os ecos de seu passado, de seu pai, sua irmã, perscruta-se em sua imersão –, fazer a
ilha devir-homem. Mas Deleuze já anunciava: o devir-homem não existe.
Robinson abandona o chiqueiro, então, e encontra outra maneira de
compensar a falta de elementos com que compor sua estrutura Outrem (“sei agora
que, se a presença de outrem é um elemento fundamental do indivíduo humano,
nem por tal motivo é ela insubstituível”), mas que mantenha o hábito que outrem
dava às coisas: o trabalho, a ordem. Passa a construir, como o Robinson Crusoé de
Defoe, uma estruturação extensiva da ilha. Vai aos destroços do navio do qual
naufragou e recolhe pólvora, grãos, papel, começa a domesticar as cabras da ilha, a
plantar e colher trigo e cevada; passa de coletor-caçador a agricultor-pecuarista.
Erige um templo, onde passa a ler a Bíblia que encontra no navio, e passa a escrever
um diário. Elabora também as leis da ilha e as punições decorrentes de seu não-
cumprimento. Não só isso, mas desenha um mapa da ilha, divide-a em quadrantes,
nomeia suas partes e estabelece fronteiras entre elas. Cria também um calendário e
uma clepsidra para marcar o tempo29, e distribui suas atividades numa rotina e num
espaço delimitado. Ou seja, ordena e estrutura espacialmente, temporalmente e
moralmente seu mundo. Mas o faz repovoando este mundo de outros que não
existem, estabelecendo múltiplas funções, produzindo muito além do necessário,
criando rituais de coletividade.
Robinson tenta manter com isso os efeitos da presença de outrem, ainda
numa tentativa de preencher essa estrutura, mas pouco a pouco percebendo-a se
dissolver. Torna Speranza uma cidade estruturada, e por extensão, torna-se
estruturado também. Cria uma analogia distorcida do mundo de onde veio, e atém-
se a essa organização sem concessões. Não entra na cabana principal senão asseado
e com roupas solenes, cumpre sua rotina como se alguém o supervisionasse (e de
fato há essa tarefa, que ele próprio ocupa). Mas ele encontra brechas nesse tempo e
espaço, parando a clepsidra e penetrando numa caverna, onde ocupa um alvéolo
sem tomar conta do tempo ou do espaço externos, numa experiência suspensa.

29Mesmo que agora, depois de sua primeira fase na ilha – que não se sabe quanto durou –, ele não possa mais
se situar no tempo externo à ilha. Cf. o capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.

73
Daniel Gaivota

Nestas duas primeiras fases, Robinson ocupa a ilha reagindo à falta de


outrem de maneiras diferentes e gerando consequências diferentes para si e para
seu mundo. Estas são as duas formas pelas quais a Escola-Viagem evitará se
insularizar. Tanto o abandono do viajante às forças puras da natureza, à mercê das
forças turbilhonares, quanto o esquadrinhamento do tempo e do espaço. As duas
maneiras de estar na ilha refletem uma tentativa do homem de domar a escola, de
insistir na empreitada impossível de fazê-la e fazer o mundo que ela cria devir-
homem. Robinson insiste (in-sistere – estar dentro) no seu projeto de fazer com que
Speranza reflita sua imagem, de se fazer ali existente (ex-sistere – estar fora). “O que
não ex-siste in-siste. Insiste para existir”. Mas enquanto Robinson não se
desvencilhar de sua subjetividade dominadora, não carregará mais que uma vela em
um quarto escuro (ou uma caverna?) – em que nenhum objeto nas trevas existe de
fato, a não ser como possibilidade em seu próprio mundo.
É verdade que em alguns momentos, como quando interrompe a clepsidra ou
quando entra na gruta, Robinson entrevê uma “outra ilha” que atravessa a ilha
ordenada que inventou. Mas ele não se permite abandonar as estruturas nas quais
se engendrou, pois isso segundo ele significaria voltar ao chiqueiro. Ele não
consegue perceber um terceiro caminho, nem mesmo quando escapa do mundo na
caverna em que mergulha. Este é o problema da caverna, em oposição à ilha
deserta. Robinson pode, ao se isolar na caverna, perceber as coisas fora de seu uso
habitual. Mas não pode, ali, se relacionar com elas a não ser através de sua
subjetividade. Sua experiência na caverna é diferente da ilha administrada e do
chiqueiro, mas ainda tem como base a relação entre sujeito e objeto. É por isso que
ele não pode se entregar à “outra ilha” que entrevê: relacionar-se com ela na
condição de sujeito significaria de fato ser engolido por ela, como no chiqueiro.
Robinson vai precisar encontrar outro modo de lidar com o real, não se separando
do mundo para poder percebê-lo, mas pelo contrário, não podendo mais conceber
esta separação. Não levando o “eu” para um lugar fora do mundo, mas livrando-se
desse “eu”.
Tudo muda, entretanto, com a chegada de um mestiço na ilha, que Robinson
chama de Sexta-feira. O chama dessa maneira para não lhe dar um nome cristão,

74
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

pois ele “não é, de todo, um ser humano”. Também não acha decente dar-lhe um
nome de coisa. Sexta-feira, portanto, “não é nome de pessoa, nem um nome vulgar,
está a meio-caminho entre os dois, o de uma entidade meio viva meio abstrata,
fortemente marcada pelo seu caráter temporal, fortuito e como que episódico”
(TOURNIER, 1985, pp.130-131). Ao mesmo tempo, Deleuze e Guattari afirmam:
Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data têm uma
individualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se
confunda com a individualidade de uma coisa ou sujeito. São
hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento e de
repouso entre as moléculas e as partículas, poder de afetar e ser
afetado. [...] Não é absolutamente uma individualidade pelo
instante, que se oporia às individualidades das permanências ou das
durações. (2012c, p.50)
Sexta-feira é, de fato, mais que um indivíduo. O livro, como o título indica, é
mais sobre ele que sobre o náufrago. Ele aparece na ilha como uma hecceidade; seu
nome lhe faz justiça, sem que Robinson possa ainda saber. Ele se insere na ordem
construída pelo governador de Speranza e mina, destrói suas estruturas
completamente. Ri dos ritos, destrói as construções, infringe as regras e aceita
divertido as punições e os trabalhos que Robinson lhe impele como a um escravo.
Não como o Sexta-feira de Defoe, que aceita sua condição de subordinado segundo
a ordem de seu patrão. Sexta-feira aqui faz o que lhe é ordenado, mas
subversivamente. Até cava buracos inúteis por ordem de Robinson, mas ao fazê-lo,
faz com prazer, o faz como se estivesse a penetrar Speranza sexualmente,
provocando o ódio do patrão. Mais grave que tudo, Sexta-feira parece interagir de
maneira muito mais intensa com os animais, as plantas, a ilha. A natureza que
Robinson acreditava ter dominado, compreendido, de quem passara a se considerar
um pai ordenador, se dobra e acolhe fraternalmente Sexta-feira, recém-chegado.
Após a destruição de tudo o que fora construído, portanto, Robinson passa a
observar em Sexta-feira algo que não pudera perceber antes. “Robinson debate-se
interiormente com esta dúvida. Pela primeira vez, entrevê nitidamente, no mestiço
grosseiro e estúpido que o irrita, a possível existência de um outro Sexta-feira – tal
como outrora pressentira, antes de descobrir a gruta e o combo, uma outra ilha,
escondida na ilha administrada” (TOURNIER, 1985, pp.160-161). Sexta-feira age,
portanto, como uma força violenta que faz com que Robinson passe a ver. Força-o a

75
Daniel Gaivota

ver o que não podia. É o encontro que movimenta todo deslocamento, o


acontecimento. Sexta-feira é um acontecimento. É a partir dele que, pela primeira
vez na ilha, Robinson pode devir-outro (o que precisa para poder habitar “outra
ilha” da qual tem constantes vislumbres). Mas é importante compreender que
Sexta-feira não funciona como o reencontro de um outrem. Não é possível sê-lo
pois a estrutura Outrem já não existe em Robinson. Ele aparece como um animal ou
um objeto, ou em outros momentos como uma força devastadora e ameaçadora.
A diferença é essencial. Pois outrem, no seu funcionamento normal,
exprime um mundo possível; mas este mundo possível existe em
nosso mundo e, se não é desenvolvido ou realizado sem mudar a
qualidade de nosso mundo, ele o é, pelo menos segundo leis que
constituem a ordem do real em geral e a sucessão de tempo.
(DELEUZE, 1974, p.326)
Paradoxalmente, o outrem só pode ser apreendido como uma parte de si
próprio, um outro possível que in-siste em ex-sistir, o que não configura de fato um
encontro. Assim, em uma multidão no meio de uma cidade encontramo-nos tão
presos à nossa subjetividade quanto estaríamos exilados numa ilha deserta, se
permanecemos a olhar o mundo admitindo a alteridade na estrutura do Outrem.
Sexta-feira, para Robinson, atua de maneira muito diferente, sendo ele um outro
mundo verdadeiro. Não um outrem, mas um outro do outrem. Um encontro, uma ex-
sistência. Assim, só é possível para Robinson Crusoé, náufrago, experimentar um
encontro depois de se deixar afetar pelas forças que evoca Sexta-feira.
A primeira aparição animal da ilha é um bode, que por nunca ter encontrado
um ser humano antes, estaca, atônito e é morto por Robinson em seu primeiro dia
na ilha. Robinson se esforça, desde este primeiro evento, para entrar em seu devir-
animal. Não logra fazê-lo na sua primeira fase, pois ainda se relaciona com o animal
como humano. Não trata o animal como um animal (DELEUZE, 2001), mesma
razão pela qual também não pode devir-cachorro em sua relação com Tenn, o cão
que também sobreviveu ao naufrágio. Sua tentativa de devir-animal continua
fracassando ao domesticar as cabras, ao beber seu leite e a untar seu corpo com ele.
Sua raiva de Sexta-feira se deve em grande parte pelo fato de que o selvagem se
encontra em relação rizomática com os elementos da ilha desde sua chegada (Sexta-
feira como homem-planta, Sexta-feira e um escudo de tartaruga, Sexta-feira a

76
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

dormir com Tenn). E é ele que fará Robinson entrar em seu devir-bode, finalmente,
na batalha final com Andoar, o bode mais forte da ilha.30.
É com a morte de Andoar que morre Robinson Crusoé – ou melhor, que troca
de elemento, que passa de um Robinson terreno para um Robinson solar, eólico.
Sexta-feira dá seu último golpe na desestruturação – Sexta-feira é portanto uma
máquina de guerra31 – que fará com que Robinson mude de elemento. “Estás
satisfeito comigo, ó Sol? Olha-me. A minha metamorfose caminha no sentido da tua
chama? A minha barba, cujos pelos, como outras tantas radículas geotrópicas,
vegetam em direção da terra, desapareceu. Em compensação, a minha cabeleira
retorce os caracóis ardentes como um braseiro dirigido para o céu. Sou uma flecha
arremessada contra a tua fornalha”. (TOURNIER, 1985, p.190). Barba-radícula (de
bode?) em oposição a cabeleira-rizoma; céu em oposição à terra. Robinson
desterrado, desterritorializado.



A Escola-Viagem, finalmente, é uma ilha deserta. É um lugar inóspito,


suspenso do mundo cotidiano, onde se operam distâncias e onde se está separado de
tudo o que é familiar. Este plano de suspensão é habitado, portanto, através da
criação. Não é preciso criar todo um novo mundo, pois a própria ilha conta com um
rico bestiário e uma fauna prolífica. Mas esse mundo é estranho, estrangeiro, não é
familiar, e é preciso construir as próprias ferramentas para explorá-lo. A
consequência de habitá-la não é perder-se, diluir-se na natureza como uma gota
d’água no mar, engolido pelas forças avassaladoras do universo, mas também não é
um domínio esclarecido dela, proporcionando um saber técnico, estruturante, que
permita administrá-la ou ter sobre ela poder. Habitar Speranza tem como efeito em
seus náufragos a da capacidade de encontros reais. A Escola-Viagem permite o
encontro com hecceidades – Sextas-feiras – minando as estruturas de Outrem, que

30 Ler mais sobre o devir-animal no capítulo O (des)território da Escola-Viagem, página 115 deste livro.
31 Sobre o conceito de Máquina de Guerra, conferir capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste
livro.

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Daniel Gaivota

fazem com que a relação com o outro se dê sempre como possibilidades virtuais na
própria subjetividade.
O verdadeiro deslocamento não é a ida à ilha nem o naufrágio. É na Escola-
Viagem que se torna possível fazer o deslocamento que se operou em Robinson em
seu tempo na ilha, uma “troca de elementos”, uma liberação dos elementos antes
presos pelo embaixador que é Outrem. É então que se pode encontrar com o outro
que não é eu, que não é outrem da própria subjetividade. Sexta-feira troca o
elemento de Andoar quando afirma que vai fazê-lo voar e cantar. Trata, então, de
seu couro para depois amarrá-lo em uma estrutura de varas e produzir um papagaio
que plana. A seu crânio, ata fios de tripa que se o transformam em uma harpa eólica,
que produz som quando o vento passa. O animal da terra se torna animal do ar. É
este o verdadeiro deslocamento que se opera na ilha deserta. Quando se liberam os
elementos desta estrutura, é possível se relacionar com o mundo intensamente,
apreender e ressignificar seus vetores e forças. O sol não mais é uma luz que se
busca passivamente, mas um encontro, um acontecimento32.
Este libertar dos elementos significa, a partir da desestrutura do Outrem e
da subjetividade como parâmetro de relação com o outro, uma passagem a um plano
de imanência. É a partir desta libertação, desta metamorfose eólica que se tornam
possíveis os devires, as linhas de fuga, a experiência da multiplicidade. É a partir daí
que se fará possível se relacionar de forma imanente com o tempo e o espaço.
O conceito de plano de imanência em Deleuze e Guattari talvez seja o mais
importante (muito embora os autores sugiram em algum momento ser o de
ritornelo33) para se relacionar com essa fauna e flora conceitual que abre um novo
mundo – mas que se encontra numa espécie de ilha deserta. Ao fazer uma relação
entre o imanente e transcendente, os autores negam a visão de mundo que separa
os objetos de suas essências que estariam em um plano suprassensível ou mesmo de
suas relações de subjetividade e afirmam que tudo está aqui, em um plano ocupado ao

32Sobre o conceito de acontecimento, conferir o capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.
33Que não será trabalhado aqui, mas que encontra-se profundamente explorado, bem como toda uma relação
da música como forma de pensamento e do pensamento como uma espécie de música, na tese de Pablo de
Vargas Guimarães, companheiro do NEFI: Pensamento musical na escola obrigatória: do ensino de música ao
devir-música da educação, 2013, disponível no banco de teses e dissertações do ProPEd.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

mesmo tempo por todas as multiplicidades34, ou onde as forças se afetam


mutuamente, de forma desestruturada e desestruturante. Tudo é força, tudo é
intensidade, as relações entre as coisas são relações de forças, encontros vetoriais. O
conceito de plano de imanência é criado para substituir o de campo transcendental que
Deleuze observa na fenomenologia, especialmente do pensamento de Kant e
Husserl. É plano em oposição a campo porque não mais o sujeito se encontra fora
do campo, submetendo-o (como quando se fala em um campo de percepção ou
campo de visão), além de que tudo o que ocupa esse plano se conecta
horizontalmente, nas bordas, sendo toda a superfície do plano composta de
movimento, de vetores, intensidades; e é de imanência, e não transcendental
(embora seja transcendental a sujeitos ou objetos, por exemplo) porque não existe a
priori, ou melhor, não antecede o que nele se encontra. A imanência não é imanente
a, mas “é em si mesma: não está em alguma coisa, não é imanência a alguma coisa,
não depende de um objeto e não pertence a um sujeito”. (DELEUZE, 2002, p.12).
Se constrói na e como própria relação entre as forças que se entrelaçam.
A questão para Deleuze é que há caos. Não tanto como a ausência de
determinações, mas como pontos que se ligam aleatoriamente e em velocidade
infinita (ou melhor: vertiginosa35), que impede o tempo e o espaço de serem
apreendidos coerentemente. Esta desmedida do afluxo de dados ao qual estamos
sujeitos é vertiginosa demais, e para não sermos obrigados a nos deslocar para o
chiqueiro como Robinson, inventamos, como ele também, códigos e esquemas para
nos proteger desse caos. Por isso criamos todas as estruturas pelas quais ordenamos
o tempo, o espaço e o pensamento – ou seja, nossa percepção do mundo –, e só
temos acesso aos dados através dessas estruturas e esquemas que nos informam
(inclusive o outro e sua alteridade), muito embora isso nos distancie do mundo
concreto – da “outra ilha” que Robinson vê ao parar sua clepsidra. Ou seja, é preciso
que inventemos um outro plano que recupere o caos, mas dando a ele um sentido (e
não uma ordem). Dar consistência ao caos sem nada perder do infinito. É preciso

34 Podemos afirmar o plano de imanência como o espaço de coexistência virtual de todos os planos, mas é

importante ressaltar que, embora ele seja sempre único, há vários planos de imanência, que se sobrepõem e
que se afetam mutuamente.
35 Para ler mais sobre vertigem, consulte o capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.

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Daniel Gaivota

que sejamos devastados por uma máquina de guerra para que nosso espaço se alise,
mas então é possível realizar um corte no caos, um enfrentamento (no sentido de se
pôr de frente a ele, como o Robinson solar passa a fazer na última parte do livro).
Estar de frente para o abismo, que é nosso limite, se pôr em limite, ocupar nosso
limite, a borda. É abrir-se ao próprio devir, e torna-lo inseparável das linhas
descontínuas que emergem do caos, linhas de fuga, desterritorializantes, liberando
assim os elementos (tornando-os de terrestres em eólicos) e tornando-se capaz de
sentir, pensar e de compreender o outro como outro mundo, como outro território
fronteiriço (e não como outrem à minha subjetividade). É isso que Robinson
aprende com Sexta-feira na ilha; a grande Saúde do terceiro Robinson é a
imanência. Este é o verdadeiro deslocamento: não do mundo nem pelo mundo, mas
através. Mas só é possível realizar esse através, esse corte no caos a partir de uma
força desestruturante, de uma violência, de um exílio de si para a abertura de um
mundo, não um que esteja fora de sua subjetividade, mas um mundo que seja seu
fora.
Ou seja, esse deslocamento, é preciso produzi-lo, forçá-lo. É preciso
naufragar (e o naufrágio é a obra do professor?36) para perder-se, é preciso perder-
se para se deslocar. O viajante que não se perde, que permanece em caminhos
conhecidos, não aprende a conhecer o outro (e este é o verdadeiro deslocamento),
mas continua passo a passo movimentando-se em torno de si próprio. Entretanto o
naufrágio é traumático, é difícil experimentar o exílio insular que nos faz perceber
que sempre estivemos sozinhos, mesmo no continente. O verdadeiro encontro com
o outro tem como preço o abandono da subjetividade como fundamento conhecedor,
e abandonar o eu talvez seja a tarefa mais difícil que alguém pode se prestar a fazer.
E por isso é preciso produzir essa experiência. O deslocamento é sempre
antinatural, sempre uma desestrutura, um re-começo, e nesse sentido a Escola-
Viagem precisa produzir este deslocamento. É necessária uma poética do
deslocamento, portanto, ou seja, uma poiesis, um fazer surgir, uma construção. O
deslocamento se faz, se produz.

36 Cf. capítulo Onirodinia e relato, página 169 deste livro.

80
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

O des-locamento da Escola-Viagem não é um movimento a outro lugar, mas,


como a palavra sugere mais fielmente, a uma desestruturação dos lugares, uma
retirada do estado de locus das coisas, palavras, lugares e objetos, ou seja, uma
insularização delas. O objetivo desta Escola é, enfim, tornar todas as coisas do
mundo em Speranza, e todos os sujeitos em Robinson. Não para que estes
colonizem aquelas, mas para que seja possível em cada coisa, em cada objeto, se
desterritorializar, liberar seus elementos, deslocar-se de si. Para que as peles de
bode que usamos possam virar pipas e os chifres que carregamos possam virar
harpas.

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GARANTINDO AS PASSAGENS

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GARANTINDO AS PASSAGENS

Já compreendemos que nem todo movimento é viagem, que nem todo


percurso configura um deslocamento e que nem todo caminhante é um nômade.
Sabemos que viajar pressupõe menos a vontade de estar em algum lugar que a
vontade de ir, menos a linha contínua que as curvas descontínuas. Mas quando é
possível afirmar que alguém abandonou sua imobilidade e se tornou de fato
viajante? Quando começa uma viagem? Quando decidimos sair de casa? Viajamos já
ao escolher o lugar, ao eleger um destino? Onfray responde essa pergunta dizendo
que
A vontade, o desejo, a leitura, certamente tudo isso define o projeto;
mas a viagem mesma, quando se pode dizer que começou? É
quando decidimos partir para um lugar e não um outro? Quando
fechamos a mala, afivelamos a mochila? Não. Pois há um momento
singular, identificável, uma data de nascimento evidente, um gesto
signatário do começo: é quando giramos a chave na fechadura da
porta de casa, quando fechamos e deixamos para trás nosso
domicílio, nosso porto de matrícula. Nesse instante preciso começa
a viagem propriamente dita. (ONFRAY, 2009, p.31)
Girar a chave na porta já nos faz viajantes? Com frequência, ao fazer estas
perguntas, lembro do conto de Léon Bloy, Os Cativos de Longjumeau, em que um
casal apaixonado por viagens, os recém-casados Fourmi, se muda para uma mansão.
A cada dia acordam para uma nova lua-de-mel, mas por diferentes razões são
obrigados a permanecer na cidade; ora a carroça quebra, ora esquecem a carteira,
são impedidos por uma tempestade ou caem em um espinhadeiro.
Inexplicavelmente, nunca conseguem pegar o trem ou chegar aos limites do
povoado. Em meio a planisférios, globos terrestres e atlas, de malas sempre
prontas, os Fourmi se encontram condenados por forças invisíveis a nunca mais se
deslocar. A eles não falta a vontade, o planejamento, o espírito aventureiro, a
decisão e nem mesmo a tentativa. O que não é permitido aos Fourmi é passar. Ao
viajar, nos referimos aos bilhetes ou lugares nos meios de transporte pela palavra
passagem. É ali que nos permitimos dar os primeiros passos, caminhar. Deleuze, na
mesma entrevista em que demonstra seu incômodo em relação às viagens, afirma

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Daniel Gaivota

seu gosto pelo caminhar (marcher). Caminhar ou passear coloca o caminhante


necessariamente no meio, entre o ponto de partida e de chegada – ou seja,
despontifica, vetoriza, imerge a imagem do eu único na multiplicidade. Caminhar
nomadiza. O caminho é um não-lugar, o caminho é a passagem. Passar, passear, dar
passos, é sempre andar para longe de si.
A autoridade do caminho não nos conduz à terra prometida, mas
podemos nos dizer que nos empurra. Não nos diz aonde
deveríamos ir, mas puxa-nos, fazendo-nos sair de onde estamos
(nos afasta de quem somos e do que pensamos) [...] Caminhar é ao
mesmo tempo percorrer um caminho e permitir que o caminho
submeta a alma. Poderíamos dizer que a caminhada é uma atividade
física que move ou desloca o olhar (ou seja, faz com que ele
abandone sua posição, a ex-põe). (MASSCHELEIN; SIMONS,
2014, pp.45-46)
Masschelein e Simons não trazem o caminhar para o jogo do pensamento
simplesmente porque caminhar envolve um deslocamento. Poderiam tratar do
deslocamento a partir de um avião ou de um cavalo ou de uma máquina de guerra.
Eles trazem o caminhar porque há no caminhar uma autoria. Traçar o caminho com
os próprios pés tem a ver com “estar lá”. É um deslocamento do olhar a partir da
experiência (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p.45). Quando Amyr Klink afirma
ser preciso “viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu”, dialoga
com estes autores; caminhar parece uma experiência diferente de sobrevoar o
caminho. Dizemos de alguém que anda por um determinado trajeto que a pessoa
“faz o caminho” (como quem decide “fazer o caminho de Santiago de Compostela”),
e a expressão não poderia ser mais adequada – o caminho se faz sempre pelos
passos de quem nele pisa.
Assim, o caminho e o caminhante estão em relação rizomática: o caminhante
se desterritorializa ao submeter-se ao caminho, mas se reterritorializa por trilhá-lo,
pelas passadas que dá; o caminho, por sua vez, se desterritorializa moldado pelos
novos passos que recebe, mas ao mesmo tempo se reterritorializa por ser
caminhado. “Uma submissão passiva (receber ordens do caminho) e, ao mesmo
tempo, um esboço (ativo) do caminho”. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p.43).
“Passar”, é um verbo com muitos significados. Atravessar, ir, mover-se, pular,
alcançar, transcorrer, tornar-se passado, mudar (passar a), superar, caminhar,
transmitir, acontecer. O que passa é o que acontece, e portanto é o passar o lugar da

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

experiência. Larrosa (2014, p. 18) dá uma atenção especial a esse verbo (em
espanhol ainda mais ligado ao sentido de “acontecer”) ao afirmar que “a experiência
é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo
tempo, quase nada nos acontece [nos pasa].” É interessante a palavra tocar, pois
acompanhando a crise da experiência há também uma crise do toque. É incrível o
esforço das pessoas na rua, nas relações diárias e nos serviços para evitarem se
tocar. Vivemos uma crise do tato.
E a crise do tato amplia e agrava a crise da experiência, já que não é mais
somente o odor da doce primavera (aquele de Baudelaire) que não se sente, mas
também a textura de grama molhada ou de lama nos pés no verão. Deixar de tocar
o mundo é resultado de uma redução do passar: é ao passarmos pelas coisas e pelas
pessoas que esbarramos, tocamos, que as sentimos. O tato talvez seja o sentido mais
importante para um viajante, mais que a visão. Afinal, é preciso viajar como se não se
pudesse ver. Aos Fourmi é vedado tocar, com o corpo, o ambiente fora do perímetro
ao qual estão amaldiçoados. E por isso precisamos defender, a despeito da
implicância de Deleuze, esta viagem tátil, que se faça com o corpo, um tropegar que
esbarre em tudo, que toque a multiplicidade e que marque o mundo com sua pele,
como se, mais que conhecê-lo através dos dedos, digitalmente, o mundo é que
passasse a conhecer ali o viajante.
Portanto, caminhar, marcher, passar parece concernir à viagem na medida em
que a consideramos uma poética do deslocamento. E por isso não podem ser
negados, a um viajante, seus passos. Talvez a viagem comece no momento em que
nossos passos estão garantidos. Caso contrário, se não temos a certeza de que
nossas passadas nos conduzirão para algum lugar (diferente do que já ocupamos ou
acreditamos ocupar), seremos cativos, como o casal de Longjumeau. Garantir
passagem é parte importante de uma viagem-pensamento. Se não nos permitimos
mover, se não compreendemos as condições para nosso deslocamento, não há
caminhar. Por isso observaremos o tempo e o espaço na e da escola-viagem.
Observaremos, pois precisamos garantir seus passos, e o leitor que pisá-los estará
fazendo o que faz o caminhante, o viajante, ao caminho: traçando. Observaremos

87
Daniel Gaivota

como quem caminha pelas ruas de uma cidade, não só com atenção aos arcos, as
pedras e as calçadas, mas compreendendo que só é possível estar nesta rua porque
ela existe sob nossos pés; ela é o caminho (e grafar o substantivo da mesma maneira
que o verbo é aqui muito significativo!). Caminhar é percorrer o caminho e ao
mesmo tempo permitir se submeter a ele, se tornar caminho. Ou seja, observar o
tempo e o território da escola e da viagem significa, aqui, garantir suas próprias
condições de possibilidade. Garantir sua passagem.

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O TEMPO DA ESCOLA-VIAGEM
(OU SOBRE VERTIGEM E AVENTURA)

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O TEMPO DA ESCOLA-VIAGEM
(OU SOBRE VERTIGEM E AVENTURA)

[...] acredito que não é possível aprender a ser estrangeiro, pois o estranho
está intimamente relacionado com descoberta com algo que está por vir. –
Isa

Os alunos, ansiosos, observam a professora levantar e se encaminhar em


direção a um objeto estranho. O objeto, escondido, se mostra como um mistério, um
segredo a ser revelado, descoberto. Uma tangerina a espera de ser aberta. Os
segundos que Julia leva para alcançar a enorme ampulheta que repousa sobre o
armário não podem ser contados por nenhum relógio presente. No meio do
caminho, lhe advirto: “Cuidado com isso!”. Vanise, a outra professora, corrobora:
“Tem certeza que você vai fazer isso?”. A turma toda observa, suspensa, à espera do
que pode acontecer a partir daquele ato aparentemente ousado que é pegar a
ampulheta.
Os alunos da turma 50337 se lançam então, em direção a ela, a perscrutando,
tentando descobri-la. Percebem que ela serve de alguma maneira para marcar o
tempo, mas ao longo da discussão percebem que não estão mais falando dos
números que aparecem no relógio, mas de seus parentes que já não estão mais
vivos, das pessoas falecidas que gostariam de conhecer, do jogo de futebol, da aula
e, principalmente, da vida. O que mede a ampulheta? As crianças, ao se depararem
com o tempo como uma questão pública, aberta, fazem dele pensamento. Afirmam,
sem nunca terem lido Bergson ou os estóicos, uma temporalidade diferente do
tempo quantificado, um tempo da intensidade. A aluna Sarah afirma: “O relógio, ele
pode até parar, mas a vida vai andando. O tempo, ele vai parar o tempo do relógio, mas
não pode parar o tempo da vida”.

37 Turma de quinto ano da E.M Joaquim da Silva Pessanha (cf. Anexo I). Sobre a experiência intensa de um

projeto de filosofia com crianças na escola pública, capaz de fazer ver o invisível e tentar o impossível, cf. a
dissertação de Vanise de Cássia de Araujo Dutra Gomes, companheira do NEFI: Filosofia com crianças na
escola pública: possibilidade de experimentar, pensar e ser de outra(s) maneira(s)?, 2011, disponível no banco de
teses e dissertações do ProPEd.

91
Daniel Gaivota

Como já observamos anteriormente, a escola e a viagem estão marcados por


um sentimento comum, uma disposição e uma percepção das coisas que não
corresponde ao estado normal ou cotidiano. Tanto na escola como na viagem o
mundo se apresenta de maneira diferente, e consequentemente as pessoas, que estão
em relação rizomática38 com esse mundo, se deslocam. Qual é a diferença do mundo
cotidiano para os mundos da viagem e da escola? O que modifica a experiência tão
drasticamente a ponto de nos sentirmos estrangeiros em nosso próprio mundo, em
nosso próprio corpo? Certamente não estamos falando aqui de uma mudança de
lugar físico – como ir da casa para a praia ou ir da rua para a sala de aula. O
deslocamento no espaço não é de todo irrelevante, mas há movimentos pela Terra
que não provocam um deslocamento de fato, que não interrompem a continuidade
do ser, que não fazem fugir da reprodução. Assim como há verdadeiras viagens que
envolvem pouco ou talvez nenhum deslocamento físico, como Deleuze faz questão
de assinalar:
As intensidades se distribuem no espaço ou em outros sistemas que
não precisam ser espaços externos. Garanto que, quando leio um
livro que acho bonito, ou quando ouço uma música que acho bonita,
tenho a sensação de passar por emoções que nenhuma viagem me
permitiu conhecer. Por que iria buscar estas emoções em um
sistema que não me convém quando posso obtê-las em um sistema
imóvel, como a música ou a filosofia? Há uma geo-música, uma
geo-filosofia. São países profundos. São os meus países.
(DELEUZE, 2001)
E já que estamos pensando a relação entre a escola e a viagem, e ao menos
em princípio não estamos falando de uma escola que literalmente viaje, uma escola
itinerante, mas de uma escola situada, imóvel, somos forçados a pensar que essa
viagem de que falamos não significa necessariamente sair fisicamente do lugar. O
que se desloca então?
Masschelein e Simons (2013) apontam que a escola ou o escolar, a essência
da escola seja uma temporalidade diferente. Nas palavras dos autores,
Em outras palavras, a escola fornecia tempo livre, isto é, tempo não
produtivo, para aqueles que por seu nascimento e seu lugar na
sociedade (sua “posição”) não tinham direito legítimo de reivindicá-
lo. Ou, dito ainda de outra forma, o que a escola fez foi estabelecer
um tempo e espaço que estava, em certo sentido, separado do

38 Cf. capítulo O (des)território da Escola-Viagem, página 115 deste livro.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

tempo e espaço tanto da sociedade [...] quanto da família.


(MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p.26).
Ou seja, “a escola [...] surge como a materialização e espacialização concreta
do tempo que, literalmente, separa ou retira os alunos para fora da (desigual) ordem
social e econômica [...] e para dentro do fluxo de um tempo igualitário.”
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p.29).
Para eles, portanto, a experiência escolar é a experiência de uma temporalidade
alternativa ao tempo do mundo cotidiano, do tempo da sociedade, do tempo do trabalho –
ou seja, um tempo suspenso do mundo, que por ser suspenso pode permitir todas as
categorias do escolar que os autores propõem, como a igualdade, profanação e atenção.
Seja como for, parece que a escola tem menos a ver com um espaço físico onde esses
processos acontecem que com um tempo próprio da experiência escolar. Deslocar os
alunos através da escola, portanto, é, segundo os autores, deslocá-los no tempo ou deslocar
o tempo neles.
Se tentamos observar a viagem pelas óticas de Masschelein e Simons, podemos
perceber que ali também se opera uma diferença de temporalidade. A viagem também
consiste em experimentar um tempo diferente, não-cronológico, um tempo compreensível
menos pela via mecânica, lógica, funcional que da intensidade. Poderíamos traduzir o
tempo livre a que os autores se referem (da palavra grega scholé) por ócio, apesar do perigo
que o histórico da palavra traz. Entendemos comumente ócio por uma falta de ação, um
momento onde não se faz nada, embora estar vivo e não fazer nada seja muito difícil ou
impossível. Um tempo ocioso parece significar, portanto, apropriando-se da visão destes
autores, um tempo onde não se produz nada. Um tempo que não é da lógica do trabalho, um
tempo que tem valor em si mesmo. Um tempo autônomo, que não serve (não é servo) a
nada a não ser a si. O viajante também é alguém que se retira do tempo da sociedade, que
se retira do tempo do trabalho e experimenta uma espécie de tempo livre. Não se trata de
um tempo de lazer, como havíamos dito, e também não um tempo em que não se faz nada
(pelo contrário, é um tempo em que de fato se faz coisas), mas um tempo necessariamente
deslocado. Assim, a escola-viagem não pode dar passos, não pode obter passagem, se não
compreendermos que deslocamento é esse. Deslocamos o tempo do trabalho para que
momento-tempo? Qual é o tempo da escola, e qual é o tempo da viagem?
Masschelein e Simons propõem que a escola esteja historicamente perdendo sua
essência, deixando de ser escola porque cada vez mais se pauta em uma preparação dos
alunos para o mundo do trabalho, para o mundo social. Ao serem questionados sobre o

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Daniel Gaivota

papel da escola ou o porquê de estarem ali, os alunos da E.M. Joaquim da Silva Peçanha
respondem, prontamente: “Estou aqui para ser alguém na vida”. A resposta, pronta e
automática, mesmo que seja uma repetição, é sintomática. A afirmação de que não se é
alguém retira o eu do presente e o coloca no futuro. “Um dia, serei”. A escola não raro é
definida como um lugar de formação ou de preparação “para a vida”39, assumindo que a
vida, o eu, o mundo vêm sempre depois. As pessoas que habitam a escola a compreendem
como uma ferramenta, uma ponte para alguma outra coisa posterior, e se é assim, a escola
não pode ser definida como uma temporalidade livre ou suspensa. Na verdade, parece
operar o oposto – um tempo comprometido, um tempo que tem seu valor em outra coisa, a
negação do ócio; um neg-ócio.
Ao mesmo tempo que uma escola para o futuro não parece fazer sentido para os
autores, também não parece que levar o passado para dentro da escola contribua com seu
caráter escolar (ou seja, de suspensão, profanação, atenção, igualdade). Trazer o passado
dos jovens para a escola significa inserir ali uma série de substratos sociais, preconceitos,
hierarquias pré-construidas que impediriam que se alcançasse, de fato, uma situação de
suspensão real ou de igualdade.
A escola cria igualdade precisamente na medida em que constrói o
tempo livre, isto é, na medida em que consegue, temporariamente,
suspender ou adiar o passado e o futuro, criando, assim, uma brecha
no tempo linear. [...] Romper com esse tempo e lógica se resume a
isso: a escola chama os jovens para o tempo presente [...] e os
libera tanto da carga potencial de seu passado quanto da pressão
potencial de um futuro pretendido planejado (ou já perdido).
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p.36)
Os autores, portanto, se lançam em uma defesa da escola, e uma defesa do
tempo da escola como o tempo presente. Para os autores a função dos processos e
tecnologias escolares, o que a escola realmente faz, não é preparar os alunos para
algo que está fora da escola. A demanda da empregabilidade, da especialização e da
educação voltada para um “desenvolvimento das habilidades” nega o que há de mais
escolar, e o fracasso desse caminho, antes de apontar a necessidade de uma reforma
ainda maior da escola no sentido da instrumentalização dos alunos, deveria ser o
ponto de partida para repensar os fundamentos da escola, para criar uma nova
teoria da escola que permitisse que ela voltasse a fazer o que lhe é próprio, que é
trazer os alunos para o presente.

39Acerca de outras possibilidades para o conceito de formação, cf. capítulo Onirodinia e relato, página 169
deste livro.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Masschelein e Simons defendem o tempo presente das ameaças do passado e


do futuro, por assim dizer. Protegem a escola de uma tentativa progressista coletiva
e social. Assim, suspender a escola do tempo cronológico, afastar as expectativas e
as demandas sociais da esfera escolar é, como defendemos, operar um deslocamento.
Deslocar o momento-tempo da escola (que para os autores está atualmente situado
no futuro) para o presente.
Uma outra contribuição, com a qual Masschelein e Simons se relacionam de
maneira intensiva, é o pensamento de Hannah Arendt sobre a educação. A autora
pensa a educação em uma relação estreita com a política. Acusa, primeiramente, as
noções de educação descendentes do projeto platônico – que na tentativa de criar
uma nova realidade, um novo mundo, assumindo que os adultos não podem ser
reeducados, educa as crianças para adequarem-se à utopia. Arendt observa que essa
ideia de construção de mundo toma a educação como ferramenta do autoritarismo,
que violenta os envolvidos e que não os respeita como agentes nem como
pensantes.
Mas mesmo às crianças que se quer educar para que sejam cidadãos
de um amanhã utópico é negado, de fato, seu próprio papel futuro
no organismo político, pois, do ponto de vista dos mais novos, o que
quer que o mundo adulto possa propor de novo é necessariamente
mais velho do que eles mesmos. Pertence à própria natureza da
condição humana o fato de que cada geração se transforma em um
mundo antigo, de tal modo que preparar uma nova geração para
um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos
dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo.
(ARENDT, 1997, pp.225-226)
Para Hannah Arendt, a educação não se trata de tomar os processos políticos
e epistemológicos para si, de modo a garantir um futuro melhor para aqueles que se
educa. Também não significa acreditar que, sozinhos, eles construirão um mundo
melhor que o que os antecede. É claro que a educação se faz no presente, mas parece
que os deslocamentos que a escola opera, para a autora, são em direção, ao mesmo
tempo, do passado e do futuro. “A crise da autoridade na educação guarda a mais
estreita conexão com a crise da tradição, ou será, com a crise de nossa atitude face
ao âmbito do Passado.” (ARENDT, 1997, p.243). Mas é “exatamente em benefício
daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser
conservadora” (ARENDT, 1997, p.243). Ainda que o que Arendt esteja querendo

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Daniel Gaivota

dizer seja que, na escola, por ser ela este espaço de intercessão entre o antigo e o
vindouro, os objetos não pertençam realmente nem ao novo e nem ao velho – ou
seja, que sejam públicos, livres, desconectados do uso que a geração velha faz deles,
mas ainda não apropriados pela nova –, este espaço só pode existir graças à tensão
entre estes dois tempos. A escola existe no presente, mas é um presente que se faz
entre passado e futuro.
Assim, portanto, temos aqui algumas defesas (não tanto) diferentes e
igualmente potentes sobre qual deva ser o momento-tempo da escola ou da
educação. Vejamos. Lembremos primeiro das já menos relevantes posturas
tradicionalistas (e não estamos falando do conservadorismo apontado por Arendt,
mas de uma escola pautada na tradição, na manutenção de velhas práticas, de velhas
lógicas, de um velho mundo) e das posturas progressistas e da educação para o
trabalho – estas que parecem ser as iniciativas priorizadas pelos governos
contemporâneos no Brasil e nas américas –, sendo elas respectivamente as defesas
do passado e do futuro como os momentos-tempo para o qual a escola desloca sua
temporalidade. Depois, de maneira mais relevante aqui, temos as ideias de
Masschelein e Simons de uma escola suspensa do tempo cotidiano, cuja função é
deslocar a temporalidade da escola para o presente; e a visão crítica de Arendt, que
assume a educação como um processo de revezamento de responsabilidade pelo
mundo entre as gerações, assumindo que a temporalidade da escola é deslocada
para uma suspensão gerada por uma tensão entre os momentos-tempo passado e
futuro simultaneamente.
Qual é o momento-tempo da escola-viagem, então? Em que medida a viagem
está relacionada com esses três momentos (passado, presente e futuro)? É verdade
que o viajante parte de algum lugar, ruma para algum outro. Poderíamos ensaiar
dizer que o caminho, as escolhas de direção, a força dos passos têm a ver com o
passado do viajante. Ou que o que há na mochila, na bagagem, modifica, de alguma
maneira, a viagem. Mas ao mesmo tempo, se assumimos que o viajante devém
nômade, percebemos que seu deslocamento pouco tem a ver com uma vontade de
abandonar um lugar – ou mesmo com a própria noção de lugar pontual, como

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

locus40. Tampouco o destino importa ao viajante. Como pensamos em outro


momento41, a viagem – ao contrário do turismo – não se delineia a partir do fim, do
objetivo, mas de maneira difusa, apontual. Assim, o antes e o depois, o ponto de
partida e o de chegada, o passado e o futuro servem à viagem, de certo modo. Não
como temporalidade, mas para tornar possível dizer que ela não se dá aí; se dá no
meio, no espaço intermediário onde tudo é caminho, tudo é processo.
E nesse meio, a viagem se pauta pelo movimento, que mostramos não
precisar ser físico, mas sempre um movimento de ruptura, de errância; “errante é
aquele que não se conforma com um estado de coisas, o alguém para quem as coisas
não têm estado fixo, mas que busca interromper e tornar impossível a continuidade
do que está sendo” (KOHAN, 2012, p.39). Por isso, parece estranho à ideia de uma
escola-viagem, que tem como características principais sua relação com o
deslocamento, o nomadismo, a errância, que seu momento-tempo seja o presente. O
presente pode se tornar um conceito perigoso quando se define pelo estado de
coisas atual, pela imobilidade do mundo em sua presença ontológica, pelo ser das
coisas. Enquanto o viajante se interessa pelo movimento, a inconstância, o devir.
Por isso, também não é para este presente42 que a escola-viagem desloca sua
temporalidade.
É preciso, portanto, pensar em um outro momento-tempo, fora da tríade
passado-presente-futuro, que permita a temporalidade própria de uma escola que
devenha viagem. Esse momento precisa ser apontual, de maneira que seja uma
espécie de não-momento, para assim poder relacionar-se com os devires ali
presentes. Para encontrar essa temporalidade, é preciso ter viajado. É preciso
compreender, a partir de uma lógica temporal, onde está o tempo da viagem.
Vejamos alguns relatos de viagens, reais e ficcionais. Primeiro, um dos favoritos de
Deleuze:
Naquela noite, durante a vigília da meia-noite, quando o velho –
como era por vezes seu costume – se afastou da escotilha onde se

40 Sobre esta definição, cf. capítulo Poética do deslocamento, página 61 deste livro.
41 Cf. capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste livro.
42 Compreendemos, entretanto, que há outras maneiras de pensar o presente, inclusive em Masschelein,

Simons, Deleuze e Guattari. Nossa tentativa de criar um outro conceito para a temporalidade da escola se dá
justamente nesta tentativa de pensar o presente de uma maneira potente, mas talvez a palavra ‘presente’ não
permaneça sendo a melhor possível para dar conta da ideia que perseguimos.

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Daniel Gaivota

inclinava e seguiu para seu buraco de sustentação, lançou o rosto


para a frente de súbito, farejando a brisa marítima como faria um
cão de bordo sagaz, ao aproximar-se de uma ilha selvagem.
Declarou que alguma baleia devia estar por perto. Em breve aquele
cheiro peculiar, por vezes exalado a grande distância pelo cachalote
vivo, tornava-se perceptível a toda a vigília; e nenhum marinheiro
se surpreendeu quando, depois de inspecionar a bússola e a grimpa,
e de verificar com a precisão possível a direção do cheiro, Ahab
ordenou rapidamente que a rota do navio fosse levemente alterada
e as velas reduzidas. A extrema prudência com que ditara esses
movimentos foi suficientemente provada ao amanhecer, mediante a
aparição, bem perpendicular à proa, de uma longa faixa lustrosa no
mar, acetinada como óleo, e que lembrava, pelas pregas plissadas
das águas que a bordejavam, a lisa superfície, como que metálica, de
alguma veloz racha de maré na foz de um rio profundo e veloz. “Aos
topos de mastro! Chamai todos os marinheiros!” Tonitruando no
convés do castelo de proa, com as extremidades de três alavancas
agrupadas, Daggoo acordou os que dormiam com tal estrondo de
Juízo Final, que eles pareceram evaporar da escotilha, tão depressa
apareceram com as roupas na mão. “Que vedes?”, gritou Ahab,
levando o rosto ao céu. “Nada, nada, senhor!”, foi o grito que veio
de cima como resposta. “Içar os joanetes! – Cutelos! Em cima,
embaixo e dos dois lados!” Com todas as velas desfraldadas, ele
desprendeu a corda de segurança, destinada a suspendê-lo até a
gávea do mastaréu do sobrejoanete; e em poucos momentos
estavam a içá-lo para lá, quando, a dois terços do caminho para
cima, enquanto olhava para o espaço vazio entre a gávea do mastro
grande e a vela de joanete, ele alteou um grito de gaivota no ar: “Lá
ela sopra! – lá ela sopra! Uma corcova como uma colina de neve! É
Moby Dick!”. (MELVILLE, 2002, p.511).
Em Moby Dick, de Herman Melville, o capitão Ahab, em sua obsessão pelo
cachalote branco, se lança em uma viagem pelo mar atrás de sua presa. Como um
ser vivo no meio do mar não é um ponto fixo, é preciso ao capitão e sua tripulação
elaborar outras maneiras de se localizar. Não é possível através de uma ordem
lógica ou de uma hierarquia (homem > animal) alcançar Moby Dick. Somente o
capitão Ahab pode caçar a traiçoeira baleia branca porque ele devém baleia. Ao caçá-
la, ao navegar, ao rastreá-la em seu território, Ahab percorre as bordas de seu
próprio território, nas bordas que o separam do território da baleia, e avança,
desterritorializa-se e trata o animal como um animal43 (DELEUZE, 2001). É o
movimento análogo ao da escola que devém viagem. Ser uma escola-viagem
significa percorrer as bordas do território escolar e as bordas do território da

43 É importante inserir o conceito de devir-animal neste pensamento. Conferir capítulo O (des)território da

Escola-Viagem, página 115 deste livro.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

viagem, tateá-las e avançar, desterritorializar. Poderíamos ter citado o trecho da


batalha (“Em direção a ti eu me jogo, baleia que tudo destrói, mas nada conquista”),
mas talvez o tempo da escola não esteja no encontro final – afinal, a viagem se faz
de percurso.
Um último exemplo de narrativa de viagem pode lançar luz à questão: em
1985 Miguel Littín, cineasta chileno, exilado político proibido pelo regime militar
de voltar ao Chile, sua terra natal, viaja clandestinamente e faz um filme sobre o
governo Pinochet. Gabriel García Márquez narra essa viagem a partir do relato do
próprio Littín em A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile. Segue um trecho
da narração:
Quando o funcionário da alfândega abriu meu passaporte, tive o
presságio nítido de que se batesse os olhos nos meus ia perceber o
truque. Havia três guichês, todos com homens sem uniforme, e eu
tinha decidido pelo mais jovem, que me pareceu o mais rápido.
Elena meteu-se numa fila diferente, como se não nos
conhecêssemos, porque se um dos dois tivesse problemas, o outro
sairia do aeroporto para dar o alarma. [...] As malas estavam
saindo com uma rapidez que teria parecido insólita em qualquer
outro aeroporto do mundo, porque todos os funcionários queriam
chegar em casa antes do toque de recolher. Peguei a minha. Depois
peguei a de Elena – pois tínhamos combinado que eu sairia
primeiro com a bagagem para ganhar tempo. [...] O fiscal estava
tão apressado como os passageiros por causa do toque de recolher,
e em vez de revistar as malas pedia aos passageiros que saíssem
depressa. Comecei a pôr as minhas no balcão quando ele me
perguntou:
– Viaja sozinho?
Disse que sim. Ele deu uma olhada rápida nas malas e ordenou com
voz urgente: “Já, vai indo, vai”. Mas uma supervisora que eu não
tinha visto até aquele momento [...] gritou lá do fundo: “Examina
esse aí”. Só naquele momento percebi: não poderia explicar porque
levava uma bagagem com roupas de mulher. (GARCÍA
MÁRQUEZ, 2014, p.20)
Os dois relatos tratam de um momento essencial às viagens: o imprevisto.
Em um caso, o imprevisto vem a calhar, no segundo não. Um imprevisto não é
necessariamente bom ou ruim, proveitoso ou inútil, mas define um acontecimento.
É só a partir dos acontecimentos, da experiência, que se os devires podem se
manifestar em uma viagem. O capitão Ahab só pode devir baleia quando, no meio
do oceano, não se sabe para que lado navegar; Miguel Littín, disfarçado para não

99
Daniel Gaivota

ser reconhecido só pode devir-outro num espaço onde há a ameaça de ser


reconhecido como ele mesmo. E ser encontrado com roupas que não poderiam ser
suas, na situação, é o ápice de sua condição de travestido. É aí que se dá o
acontecimento e a experiência. Não no momento em que o navio alcança Moby
Dick, não no momento em que Littín é descoberto (ou que engana os fiscais – seria
necessário continuar a ler para saber). É no suspense, no tempo que não pertence a
nenhum momento que se dá a verdadeira viagem. Este é o momento-tempo da
viagem, este entre-momento, este extra-momento. É no que está por vir que se dá a
viagem, que se devém viajante. É nesse vetor que aponta para o desconhecido, que
suspende o olhar e volta toda a atenção para a pura potencialidade de destino, aí é
que se viaja.
Gabriel García Márquez não poderia ter nomeado melhor a experiência de
Miguel Littín ao entrar clandestinamente em seu próprio território. Pois é isso que
se opera na Escola-Viagem. É essa parcela do imponderável, essa mínima incerteza
quanto ao momento que virá que faz com que os acontecimentos sejam intensos,
que faz com que possamos experimentar a aventura. Aventura vem do latim ad-
ventura, ou seja, o que está por vir. (CARDOSO, 1987, p.8). Essa temporalidade que
chamaremos de Aventura não tem a ver com o presente, pois não tem a ver com o
estado em que as coisas se encontram, nem com o futuro, pois não é um desejo ou
uma expectativa em relação ao estado que as coisas tomarão. O foco da Aventura é
o porvir, o que ainda é desconhecido, mas já digno de atenção. O tempo da viagem é
marcado pelo aventurar-se; é por querer saber o que vai acontecer quando o Pequod
alcançar (ou não) o cachalote branco ou o que vai acontecer quando a fiscal
inquisidora alcançar Miguel Littín com sua mala de sutiãs que nos interessamos
pelos relatos, pelos trajetos. É através esse vetor de força que aponta para lugar
nenhum ou para os não-lugares que viajamos com Ahab e com Littín. E por nós
mesmos. É para esse não-momento-tempo que a escola viagem precisa deslocar sua
temporalidade, pois a matéria da qual uma viagem é feita é, finalmente, a Aventura.



100
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Entretanto, definir o momento-tempo da escola-viagem não parece esgotar a


discussão sobre a temporalidade da escola. O tempo da Aventura dá um primeiro
passo na direção de entender o tempo fora da lógica pontual (como vimos, a
Aventura é um não-ponto, um não-momento). Mas é preciso pensar que a viagem
tem como característica principal o deslocamento. Se já admitimos que esse
deslocamento não é necessariamente um deslocamento espacial, é preciso pensar
como ele pode se dar temporalmente.
Deleuze, quando fala sobre a viagem, mais especificamente quando trata do
nomadismo, parece admitir que o deslocamento que lhe concerne não é relativo à
extensão, à superfície, mas de outra ordem44. O nômade é alguém que vive sempre
na passagem, ou seja, entre dois pontos. Não há o ponto de partida ou de chegada; os
pontos do trajeto só existem como parte do caminho, estão subordinados a ele. Um
rio aparece como parte do caminho, mas o caminho não serve para encontrar o rio.
O rio, como tudo o que é passagem, é condenado ao abandono, fica para trás. No
caso do sedentário acontece o inverso: os pontos determinam o trajeto, pois o
trajeto é feito para se deslocar entre um início e um fim do caminho. O caminho
serve aos seus extremos. A estrada leva até o rio e de volta para a morada, e só se
caminha em função da chegada no rio ou na casa. No caso do nômade, o ponto não
define o caminho, mas pelo contrário, é definido por ele. Uma árvore, um lago ou
uma pedra tomam diferentes configurações e funções de acordo com o tipo de
deslocamento, com a distância percorrida, com o número de pessoas e com a
velocidade dos viajantes. Assim, os pontos não configuram os princípios do
deslocamento nômade, mas antes suas consequências (DELEUZE; GUATTARI,
2012d, p.53).
Como pensar o tempo nômade, portanto? O tempo do sedentário é pensado a
partir de sua relação com os pontos – início, fim, metade, saída, chegada, demora…
O tempo numérico depende de uma medição pontual. Posso medir e nomear o
tempo entre ir da minha cabana ao rio buscar água, mas não posso medir ou nomear
o tempo de uma viagem. Se não há pontos ou se esses pontos tomam configurações
diferentes na experiência de deslocamento, eles não servem mais como marcos
44 Conferir a relação do nomadismo com o conceito de Máquina de Guerra, no capítulo A escola e o devir-

viagem, página 41 deste livro.

101
Daniel Gaivota

temporais. Os nômades têm uma geografia, mas não têm uma história (DELEUZE;
GUATTARI, 2012d, p.75). Como contar o tempo nômade? Como contar o tempo de
uma viagem? E como contar o tempo de uma escola-viagem?
Sobre a questão do tempo, Kohan (2004) diferencia os tempos chrónos e aión,
duas maneiras de se referir ao tempo em grego. Chrónos é o tempo linear,
sucessivo, mensurável. É nosso tempo do relógio, que devora e acaba.
Mesmo que chrónos tenha sido a palavra mais bem-sucedida e
comum entre nós, não é a única para designar o tempo. Outra
é [...] Aión que designa, já em seus usos mais antigos, a intensidade
do tempo da vida humana, um destino, uma duração, uma
temporalidade não numerável nem sucessiva, intensiva. (KOHAN,
2004, p.45).
Aión, portanto, é o tempo do devir, da experiência, enquanto Chrónos é o
tempo da história. Deleuze opõe experiência e história; acontecimento e história. O
acontecimento é justamente o que interrompe a história, que faz com que o
continuum histórico seja interferido, é um corte (KOHAN, 2004, p.63). Assim, parece
que é possível que o Aión interrompa o Chrónos, o derrote, de certa maneira. Com
essa oposição, Deleuze e Kohan introduzem a possibilidade de um tempo não
metrificável, um tempo que não se conta. Talvez seja preciso explorar outras
possibilidades de temporalidade para compreender o tempo nômade, o tempo da
viagem e, como se pretende aqui, o tempo da escola.
Por isso, para pensarmos o tempo de uma escola-viagem, é preciso pensá-lo
fora de uma lógica de medição, fora de uma cronologia, mas compreender uma
outra maneira – aiónica – de pensar o tempo. “Tem mais que ver com uma
intensidade que com uma extensão, sua forma se encontra [...] mais no arranque e
na velocidade que no movimento” (KOHAN, 2004, p.39). Como já pensamos, o
movimento não é o que caracteriza o nômade. O movimento é mais essencial ao
migrante, que para o autor abandona o meio que se tornou insuportável. O nômade,
pelo contrário, é aquele que não se move, que não quer se mover, que se faz nômade
justamente para tornar possível o estar. O nômade não se configura pelo
movimento, mas sim pela velocidade.
Por isso é preciso distinguir a velocidade e o movimento: o
movimento pode ser muito rápido, nem por isso é velocidade; a
velocidade pode ser muito lenta, ou mesmo imóvel, ela é, contudo,
velocidade. O movimento é extensivo, a velocidade, intensiva. O

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

movimento designa o caráter relativo de um corpo considerado


como ‘uno’, e que vai de um ponto a outro; a velocidade, ao contrário,
constitui o caráter absoluto de um corpo cujas partes irredutíveis (átomos)
ocupam ou preenchem um espaço liso, à maneira de um turbilhão,
podendo surgir num ponto qualquer” (DELEUZE; GUATTARI,
2012d, p. 55. Grifo dos autores.).
Pensar o tempo sob uma lógica intensiva, portanto, para o nomadismo e para
a escola-viagem, parece fazer necessário investigar a velocidade da viagem e a
velocidade da escola.
Larrosa (2014) aponta como uma das causas da crise da experiência (a
mesma crise que apontou Benjamin no início do século45) a velocidade dos
acontecimentos, ou a falta de tempo. A escola vive essa falta de tempo de maneira
muito cruel, pois isso significa otimizar o tempo disponível. Assim, o tempo se
pauta, se materializa tendo como critério a eficiência, ou seja, a capacidade de gerar
mais resultados em menos voltas do relógio. Cada vez é preciso lidar com os dados
de maneira mais rápida; as notícias precisam ser consumidas o mais rápido possível
sob pena de se tornar “desinformado”, a comunicação precisa ser cada vez mais
instantânea, ou se torna um relapso. Os acontecimentos seguem a lógica do
espetáculo, sendo consumidos como quadros seguidos, estimulantes o suficiente
para superar o quadro anterior, mas menos espantosos do que o próximo. Vivemos
um espetáculo de circo, no qual não há tempo para números mais longos. Há a
necessidade urgente da novidade, que não permite a conexão dos fatos e fenômenos,
não permite a memória, não permite a recordação. Todos os momentos são clímax,
o que no fim faz com que não haja um clímax real. Mas isso não faz com que
tenhamos mais tempo de sobra; pelo contrário, nunca passamos tanto tempo na
escola. Cada vez mais demandas surgem com mais rapidez, com mais urgência. Não
sobra tempo para realmente olhar para nada, não há tempo de experimentar. Não se
pode “perder tempo”, não se pode “ficar para trás”. Por querer seguir este fluxo, por
sentir a necessidade de acompanhar essa velocidade do mundo, acabamos ficando
sem tempo. Achamos que vivemos muita coisa, mas na verdade, nada nos acontece.
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos
toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase

45 Sobre a narrativa e a crise da experiência, cf. capítulo A narrativa na Escola-Viagem, página 147 deste

livro.

103
Daniel Gaivota

impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar
para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais
devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o
juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar
sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros,
cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se
tempo e espaço. (LARROSA, 2014, p.24).
O autor defende, portanto, uma necessidade de alentar o tempo da escola, “aprender
a lentidão”. Se a escola é o tempo da experiência, então é preciso dilatar esse tempo, torná-
lo amplo, para que se possa aproveitar a experiência. Não é possível negar o papel das
novas tecnologias de informação na aceleração do tempo na crítica de Larrosa. A demanda
pelo instantâneo, para o autor, de maneira semelhante à visão de Benjamin, impede a
experiência.
Entretanto, o mundo se (re)organiza em torno de suas possibilidades tecnológicas.
Desse modo, a realidade pré-escrita, pautada na oralidade, tinha uma relação com o tempo
(especialmente no que diz respeito à educação) muito diferente de seus sucessores
alfabetizados. Estes, por sua vez, não mantinham a mesma relação tempo-mundo que os
homens de séculos mais tarde, contemporâneos da invenção de Gutemberg. Da mesma
maneira, talvez seja preciso compreender que a relação com o tempo da época da
comunicação digital instantânea seja intrínseca a seu contexto. É o que sugere Pierre Lévy
ao afirmar que a ecologia dos signos foi alterada graças à cibercultura, e que tal condição
não terá fim, e que por isso deve ser compreendida e dominada (LÉVY, 1999, p.12).
Lévy observa que o modo de registro reflete o modo cultural de estar no mundo de
uma cultura. A oralidade refletia um mundo despolarizado, móvel, em que o tempo era
visto como circular, composto de ciclos de retorno que permitiam à narrativa mnemônica,
repetitível, comunicar o mundo. A escrita é o modo de inscrever signos conveniente ao
camponês e ao cidadão, ao sedentário. “A escrita era o eco, sobre um plano cognitivo, da
invenção sociotécnica do tempo delimitado e do estoque”. (LÉVY, 1993, p.114). E, por
conseguinte, a informática é o registro típico de uma nova temporalidade e uma nova
maneira de habitar o mundo que começa com a revolução industrial: uma mobilidade
constante, uma paixão pelo deslocamento e pelo movimento, uma reorganização constante
dos espaços e dos tempos – mesmo aqueles sedentários (como as cidades e as fronteiras).

104
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Por isso, essa nova temporalidade que as tecnologias virtualizantes trazem demonstram o
mundo, mas são também explicadas por ele46.
A informática é uma forma de registro que trabalha com bancos de dados
inteligentes, isto é: não se mantém o histórico de todos os registros sobre determinado
assunto ou especialidade, como na escrita, que é acumulativa. Segundo Lévy, os sistemas
especialistas não conservam conhecimento, mas evoluem o saber instantaneamente, logo
que alguma variável ou regra é atualizada. Nesse sentido, os estados anteriores do
conhecimento não são armazenados, o que quer dizer que ele só existe em sua versão mais
recente, atual.
A noção de tempo real, inventada pelos informatas, resume bem a
característica principal, o espírito da informática: a condensação no
presente, na operação em andamento. O conhecimento de tipo
operacional fornecido pela informática está em tempo real. Ele
estaria oposto, quarto a isto, aos estilos hermenêuticos e teóricos.
Por analogia com o tempo circular da oralidade primária e o tempo
linear das sociedades históricas, poderíamos falar de uma espécie de
implosão cronológica, de um tempo pontual instaurado pelas redes
de informática. (LÉVY, 1993, p.115)
O autor aponta, portanto, uma outra temporalidade que, em oposição à
imobilidade da escrita, é puramente móvel. Não é circular, como a oralidade, nem
linear. A linha utilizada por Lévy como imagem do tempo da escrita não quer dizer
um vetor, não tem o sentido da linha deleuziana, mas significa uma permanência,
uma perenidade, uma situação que permanece, ad eternum, no mesmo nível,
inalterada. O ponto, imagem do tempo da informática para Lévy, também não é a
imagem de um ponto estático – como sugerem Deleuze e Guattari em seu Tratado
de Nomadologia –, mas a imagem do ápice do movimento, na máxima velocidade: a
instantaneidade.
O tempo pontual não anunciaria o fim da aventura humana, mas
sim sua entrada em um ritmo trevo que não seria mais o da
história. Seria um retorno ao devir sem vestígios, inassinalável, das
sociedades sem escrita? Mas enquanto que o primeiro devir fluía de
uma fonte imemorial, o segundo parece engendrar a si mesmo
instantaneamente, brotando das simulações, dos programas e do
fluxo inesgotável dos dados digitais. O devir da oralidade parecia
ser imóvel, o da informática deixa crer que vai muito depressa,

46 Sobre uma nova ecologia dos gestos tecnológicos como possibilidades narrativas e educativas em um
mundo reconfigurado pela rede, cf o livro de Maria Jacintha Vargas Netto, Maja, companheira do NEFI:
Gestos tecnológicos: o que pensa o YouTube em um curso de formação de professores de uma universidade pública na
cidade do Rio de Janeiro?, 2016, Edições Nefi.

105
Daniel Gaivota

ainda que não queira saber de onde vem e para onde vai. Ele é a
velocidade. (LÉVY, 1993, p.115)
Pierre Lévy acredita que a velocidade da educação deva ser esta, em oposição
a Larrosa. Segundo ele, as distinções entre “ensino a distância” e “ensino presencial”
vão cada vez tornar-se menos claras, pois as tecnologias de comunicação
instantânea estarão cada vez mais presentes (LARROSA, 1999, p.170). “De fato, as
características da aprendizagem aberta à distância são semelhantes às da sociedade
da informação como um todo (sociedade de rede, de velocidade, de personalização,
etc.)”. (LÉVY, 1999, p.170).
Temos aqui, portanto, as defesas da rapidez e da lentidão como velocidades
da temporalidade da escola. Em relação às viagens, tanto a rapidez como a lentidão
são pertinentes. O viajante que caminha com cuidado, que observa o mundo que
pisa, este se desloca; mas também aquele que alça voo e se vê instantaneamente em
lugares distantes, diferentes, estranhos, também ele se desloca. Não parece também
suficiente afirmar que a velocidade do tempo na escola-viagem pode ser lenta ou
rápida, ou que possa ser lenta e rápida ao mesmo tempo. Novamente voltando aos
exemplos citados acima, qual a velocidade do Pequod, navio do capitão Ahab? Qual
a velocidade de Miguel Littín clandestino no Chile? Talvez possamos dizer que o
Pequod se movimenta lentamente, pois demora três dias para alcançar Moby Dick,
que já está no horizonte. Por outro lado, em relação à baleia, o barco se movimenta
veloz – porque a alcança. Miguel Littín se movimenta rápido pelo aeroporto, pois
quer se livrar do risco o mais rápido possível, mas todos os funcionários têm mais
pressa que ele, por estarem sujeitos e acostumados ao toque de recolher. Quem é
mais veloz? A rapidez, nos dois casos, parece ser relativa a uma perspectiva. Faz
sentido pensar na velocidade de um tempo?
Deleuze e Guattari relacionam o nomadismo com a velocidade, e não com o
movimento. O tempo do nômade não tem a ver com seu movimento, mas antes com
a intensidade, com o arranque. Os autores grifam, em seu texto (e se não o tivessem
feito, grifariamos aqui, por considerar um trecho definitivamente importante): “a
velocidade [...] constitui o caráter absoluto de um corpo cujas partes irredutíveis (átomos)
ocupam ou preenchem um espaço liso, à maneira de um turbilhão” (DELEUZE;
GUATTARI, 2012d, p.55). Ocupar ou preencher um espaço liso, em Deleuze e

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Guattari, significa ocupar um plano de imanência, onde se conectam as linhas de


ação da diferença, os fluxos, a lógica do acontecimento, o tempo Aión, os devires.
Quando todas as partes irredutíveis de um corpo se colocam nesse plano, isso
significa que, indiferencialmente, de forma não-identitária ou segmentada, não-
orgânica, ou seja, como um corpo sem órgãos, ele se coloca fora de uma lógica
estriada – ou seja, métrica, homogênea, transcendente ou subjetiva. Isso significa
que a velocidade para Deleuze e Guattari tem a ver com transgredir seu estado
identitário, significante, representativo, e tornar-se vetor. Ou, retomando, de
extenso, devir intenso. E o que significa fazê-lo da maneira de um turbilhão?
Vejamos o barco do capitão Ahab. Ele está se deslocando metricamente pelo
mar: sua extensão é de 200 pés, sua velocidade, 52 nós. Viaja em direção noroeste,
carrega 18 tripulantes. O barco encontra-se em um espaço estriado; é definido pelas
suas relações hierárquicas e genealógicas, é uma construção humana em um mar de
baleias, tem uma missão, um fim, em relação aos outros objetos e em relação aos
sujeitos que o ocupam. Ao farejar Moby Dick, entretanto, o capitão Ahab escapa do
esquadrinhamento que separa humano, mar, barco e baleia. Homem e barco
tornam-se um vetor, uma força marítima, tornam-se baleia, e aí então, por se tornar
presa, a baleia devém humano. Não é mais quantificável a velocidade do barco,
porque ao ocupar esse espaço liso, esse plano de imanência, ela está no sentimento
de aproximação, no vetor que aproxima barco e baleia, humano e monstro,
monstro-humano e baleia-barco, em direção a uma inevitável colisão, como que
arrastados por um redemoinho. À maneira de um turbilhão. O que garante esse
vetor, o que o torna intenso não é a quantidade de movimento, a rapidez ou a
lentidão, mas a vertigem que essa aproximação gera.
É a vertigem que caracteriza a velocidade da viagem, é por ser vertiginoso
que o deslocamento se torna potente, é na vertigem que os devires operam, que os
acontecimentos se intensificam. A vertigem não tem a ver com a rapidez,
necessariamente. A fiscal que caminha lentamente na direção de Miguel Littín no
aeroporto de Santiago do Chile desloca a experiência de maneira turbilhonar; não é
mais o espaço entre os dois ou o tempo que ela levará para chegar que delineiam seu
movimento, que modulam sua velocidade, mas a vertigem. É vertigem o que faz

107
Daniel Gaivota

com que o movimento de Julia em direção à ampulheta na sala de aula seja tão
potente, abra tantos mundos. O movimento, quando vertiginoso, é pura velocidade.



Assim, após essa extensa (ou intensa?) análise, encontramos para pensar o
tempo da escola-viagem os conceitos de Aventura e Vertigem. O que significa
pensar o tempo a partir dessa dupla conceitual? Afirmamos antes que a escola da
experiência se afirma no plano do acontecimento. Entretanto, a ideia comum de
acontecimento – sempre situado em um ponto do espaço e do tempo – não dá conta
de pensar o acontecimento da escola-viagem, que não se dá pontualmente, não se dá
de forma transcendente, num espaço estriado. Pensar o tempo da escola-viagem a
partir da Aventura e da Vertigem permite que exploremos com mais profundidade
o conceito de acontecimento deleuziano e permite situar um acontecimento em um
plano de imanência, num espaço liso.
O acontecimento, em Deleuze, pertence à linguagem, tem uma relação com a
linguagem, mas não se pode perder de vista que a linguagem é o que se diz das
coisas (DELEUZE, 1974, p.23). O autor se vale de uma premissa estóica, que alerta
para se “não confundir o acontecimento com sua efetuação espaço-temporal num
estado de coisas" (DELEUZE, 1974, p.23). Ou seja, não há sentido num
acontecimento; o acontecimento é o próprio sentido. O interessante é que o
acontecimento deleuziano perpassa essas duas esferas, linguagem e mundo, na
medida em que é exprimível, mas ao mesmo tempo atributo do mundo e de seu
estado de coisas. Ou seja, na linguagem, o acontecimento difere das proposições,
extrapola a sintaxe – Deleuze afirma que se a significação fosse absoluta, se o
mundo fosse transcendente, não seria compreensível; um mundo de essências não
teria sentido, no sentido de que não poderia ser pensado; faltaria sentido como
acontecimento, capaz de tornar as significações sensíveis e assim engendrá-las no
pensamento. Já no mundo, ele difere dos estados fixos das coisas, é o que permite
que o mundo seja envolvido pela linguagem, o que faz devir. Sendo assim, o
acontecimento é o que está entre, é o que dá sentido ao mundo, mas que garante a
possibilidade de significação. Uma aluna da turma 503, durante a experiência da

108
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

ampulheta, parece compreender isso muito bem: ao ser questionada sobre por que
os alunos estavam dizendo que a ampulheta era semelhante a um relógio, ela
respondeu, simplesmente: “Porque ele existe”.47
O acontecimento em Deleuze é o que permite o pensamento, é um encontro
com um fora, uma externalidade que força a pensar. Pensar a escola como um plano
de vetores, pensar numa escola da experiência, e principalmente pensar em uma
escola que devenha-viagem faz com que prestemos atenção ao lugar do
acontecimento nessa escola. Assumindo que a escola é uma espécie de
temporalidade, portanto, cabe pensar no topos48 temporal deste acontecimento.
Em todo acontecimento, há de fato o momento presente da
efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado
de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que é designado
quando se diz: pronto, chegou a hora; e o futuro e o passado do
acontecimento só são julgados em função desse presente definitivo,
do ponto de vista daquele que o encarna. Mas há, por outro lado, o
futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que
esquiva todo presente porque está livre das limitações de um estado
de coisas, sendo impessoal e pré-individual, neutro, nem geral nem
particular, eventum tantum...; ou antes que não tem outro presente
senão o do instante móvel que o representa, sempre desdobrado em
passado-futuro, formando o que convém chamar de contra-
efetuação. Em um dos casos, é minha vida que me parece frágil
demais para mim, que escapa num ponto tornado presente numa
relação determinável comigo. No outro caso, sou eu que sou fraco
demais para a vida, a vida é grande demais para mim, lançando por
toda a parte suas singularidades, sem relação comigo nem com um
momento determinável como presente, salvo com o instante
impessoal que se desdobra em ainda-futuro e já-passado.
(DELEUZE, 1974, p.154).
Deleuze, em sua lógica do sentido, tenta situar o acontecimento na tríade
passado-presente-futuro. O faz porque afirma que não há acontecimento que não se
efetue no espaço e no tempo (apesar de não se resumir a isto). Não é uma tarefa
simples, visto que o acontecimento, como sabemos, não diz respeito a um simples
estado de coisas, mas a uma relação entre um plano ontológico (onde o Ser, a
relação sujeito-objeto e a lógica linguística se aplicam) e um plano vetorial,

47 Para uma análise muito mais profunda sobre o acontecimento em Deleuze, além de uma exploração dos

conceitos de sentido, discurso e linguagem, cf. a dissertação de Maximiliano Valerio López, companheiro do
NEFI: A “filosofia com crianças” desde uma perspectiva trágica, 2006, disponível no banco de teses e dissertações
do ProPEd.
48 Observar a diferença entre este conceito e o de locus no capítulo Poética do deslocamento, página 61

deste livro.

109
Daniel Gaivota

imanente (que não pode ser situado em um momento-tempo cronológico,


metrificado). Para compreender melhor o sentido do acontecimento – e o
acontecimento é o que permite dar sentido à experiência –, e mais: para poder
afirmar o acontecimento em efeito no tempo, como queria Deleuze, é que pensamos
o tempo através da Aventura e da Vertigem. É num deixar-de-ser-presente e num
vir-a-ser-futuro que se dá o acontecimento49. É na Aventura que se torna possível
devir; a Aventura é o terreno do acontecimento.
E parece que a relação que o autor expõe no fim do parágrafo, entre tomar e
ser tomado pela vida, entre ser determinado e determinante, é a mesma da vespa e
da flor, a mesma do barco e da baleia. Essa relação rizomática que permite o devir,
que se dá em turbilhão, acontece na velocidade da Vertigem. É por ser vertiginosa
que ela pode extrapolar o esquadrinhável, o dizível, e assim configurar
acontecimento, configurar experiência.
Através da Aventura e da Vertigem como temporalidades nomádicas é
possível, portanto, pensar o acontecimento na escola-viagem de uma maneira
potente. Mais: se admitimos a relação entre a infância e o nomadismo, precisamos
pensar que também a infância opera nestas temporalidades. A infância não se dá
potencialmente no presente ou no passado, menos ainda no futuro. A infância
enquanto temporalidade também não parece ter a ver com a rapidez ou com a
lentidão. A infância e a viagem têm a ver com o descontínuo, com o espontâneo, e
não é possível enquadrar suas potências numa temporalidade presa à lógica
passado-presente-futuro; não é possível enquadrá-las num tempo cronológico. Por
isso é preciso pensar a infância e a viagem a partir da Aventura e da Vertigem, pois
é através delas que se torna possível (que se garante a passagem) pensar o tempo da
escola como Aión.
Com relação à infância, [...] o próprio da criança não é ser apenas
uma etapa, uma fase numerável ou quantificável da vida humana,
mas um reinado marcado por outra relação – intensiva – com o
movimento. No reino infantil que é o tempo não há sucessão nem
consecutividade, mas a intensidade da duração. Uma força infantil,
sugere Heráclito, que é o tempo aiónico. (KOHAN, 2007, p.87).

49 Cf. o interlúdio O Louco, página 191 deste livro, para uma relação dessa temporalidade outra com o

conceito de devir puro ou devir-louco.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

E se podemos pensar num momento que é aventura e uma velocidade que é


vertigem, podemos pensar em um tempo que é movimento ou que é velocidade.
Podemos pensar uma escola que é deslocamento.
Assim, navegar esse tempo não-cronológico, esse “tempo da vida” que
escorre na ampulheta da escola, faz emergir um espírito nômade, que se movimenta,
inevitavelmente, pelo íntimo desejo de permanecer. Por amor ao lugar, como as
crianças-viajantes da escola (já observamos a intimidade da infância com o
nomadismo). Como a aluna Sarah, quando afirma: “também não sei por que a gente
conta no relógio. Porque eu acho que a gente não deve contar o tempo, pois o que é bom pra
mim, tem que ficar durando”. Como a aluna Kailane, que concorda: “Se eu pudesse parar
o relógio, eu ia fazer ele ficar no meu tempo a vida toda”. Pois sim, se compreendemos a
temporalidade da escola como Aventura e Vertigem, torna-se então possível parar o
relógio! Será que, como Kailane, vamos decidir fazê-lo ficar no nosso tempo? Vamos
ouvir o conselho de Sarah para “não contar o tempo”? Vamos escutar a voz da infância
ou ensurdecer o tempo da vida com o sinal da escola? Os últimos grãos da
ampulheta ameaçam cair, em velocidade vertiginosa. Não se sabe o que acontecerá
quando cair o último – são assim as aventuras. Ouve-se os ecos de nomes que as
crianças dão para a ampulheta (ou para o próprio tempo?): “medidor da vida”,
“infinito”, “marcador da hora/vida”, “espelho”... “Passar no tempo”. A ampulheta mostra
o tempo da vida. Ela (ele) está no centro da sala, mostrando e se mostrando,
abrindo e se abrindo, os últimos grãos prestes a cair. A ampulheta mostra o tempo
da vida. Os alunos esperam o momento, a areia está chegando ao fim. A ampulheta
mostra o tempo da vida. A escola mostra o tempo da vida? O último grão não chega
a cair.

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O (DES)TERRITÓRIO DA ESCOLA-VIAGEM
(OU SOBRE MAPAS, CORPOS E TOCAS)

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O (DES)TERRITÓRIO DA ESCOLA-VIAGEM
(OU SOBRE MAPAS, CORPOS E TOCAS)

Ser estrangeiro está muito além de não ter nação, ou estar em um outro
lugar que não foi o que você nasceu. É estar fora de si também. – Nat

“Eles nunca param de migrar?” – um personagem se assombra ao observar


os pássaros no céu. Eles voam em linhas sinuosas, descontínuas, sobrevoam a
planície marinha tomada pelos humanos. Compõem, no céu, um amálgama
incompreensível, uma superfície sem começo ou fim, sem centro. Do alto, as
gaivotas provavelmente enxergam geometricamente a estrutura quadriculada de
Bodega Bay, uma comunidade pequena no litoral dos Estados Unidos. Marcada com
suas zonas, sua entrada e sua saída, suas construções alinhadas e de portas e janelas
– tão frágeis – a encerrar espaços delimitados. Um dos moradores da cidade se
pergunta como é possível morar em São Francisco (pois a cidade parece um
formigueiro). Uma das gaivotas (que é ao mesmo tempo todas as gaivotas, como a
formiga do formigueiro) percebe um ponto humano deslocado, à deriva, uma
anomalia. Mergulha.
Que se considere o movimento da água, o de um pássaro ao longe e
o de um personagem num barco: eles se confundem em uma
percepção única, um todo tranquilo da natureza humanizada. Mas
eis que o pássaro, uma gaivota comum, avança e vem ferir a pessoa:
os três fluxos se dividem e tornam-se exteriores uns aos outros. O
todo se formará de novo, mas terá mudado: terá se tornado a
consciência única ou a percepção de um todo dos pássaros,
afirmando uma natureza inteiramente passarificada, voltada contra
o homem, numa espera infinita. E se redividirá novamente quando
os pássaros atacarem, de acordo com os modos, os lugares, as
vítimas de seu ataque. E se constituirá de novo graças a uma
trégua, quando o humano e o inumano entrarem numa relação
indecisa. (DELEUZE, 1985, p.32).
Estima-se que há mais de quinhentos bilhões de aves no mundo. E apesar de
a ciência analisar e catalogar, nomear e prever os movimentos dos animais, ainda
olhamos para o bando rizomático ocupando o céu com linhas difusas e,
intimamente, respiramos aliviados por termos bem separados os territórios de cada
espécie. Mas, tão logo o marinheiro baixa os olhos de volta ao mundo terreno, o

115
Daniel Gaivota

mundo eólico ataca. O rizoma ornitológico pousa nas árvores e radículas


humanizadas, nos fios lineares que conectam os dispositivos (elétricos) e espera.
Espera até as séries de humanos se refugiarem em seus cubos, suas repartições, suas
cabines e quartos seguros. Depois, numa intensidade desordenada (como seu voo)
entre movimento e repouso, o bando ocupa as paredes, vidraças, portas e janelas,
todas as bordas de todos os territórios humanos e, de maneira aterrorizante (pois
inexplicável), os invade.



Deleuze constantemente professa sua preferência por animais como a aranha,


a pulga, o carrapato, em oposição a sua implicância com animais domésticos como o
cão e o gato. Para o autor, a relação com os animais domésticos acaba se tornando
uma relação edipiana, vemos nos cães e gatos membros da família, mães, pais,
irmãos, filhos, e não nos relacionamos com eles como animais – castramos sua
animalidade, afirmamos uma relação humana com o animal. Já o carrapato se
relaciona com o mundo de uma maneira diferente, de outra ordem, segundo os
afetos de que é capaz. Segundo Deleuze, o carrapato “atraído pela luz, ergue-se até a
ponta de um galho; sensível ao odor de um mamífero, deixa-se cair quando passa
um mamífero sob o galho; esconde-se sob sua pele, num lugar o menos peludo
possível” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 44). Três afetos apenas, portanto, e a
tudo o mais que acontece ao seu redor, o carrapato está alheio. Sua vida é composta
de três estímulos: um visual, um olfativo e um tátil – vive somente afetivamente,
portanto, somente através de intensidades. Ao dizer isso em sua entrevista a Claire
Parnet, esta lhe pergunta: “É esse seu sonho de vida? É isso o que lhe interessa nos
animais?”, ao que Deleuze responde: “É isso que faz um mundo” (DELEUZE,
2001).
O devir-animal é um conceito importante na filosofia de Deleuze, e atravessa
outros conceitos muito caros à concepção e elaboração de uma Escola-Viagem. O
que pode ter a ver a viagem com os animais? O que o animal tem a ver com a
escola? A relação do animal com o humano é tradicionalmente de oposição à
razoabilidade, estabelecendo o bicho como um ser puramente sensorial. Talvez isso

116
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

configure uma redução, tanto quanto seu oposto, que é compreender os animais por
suas características antropomórficas (canguru-mãe, cão-amigo, preguiça-preguiçosa
etc.). É preciso compreender o que é um animal para podermos nos relacionar com
eles como animais, do modo como o capitão Ahab se relaciona com Moby Dick50.
Antes, é preciso retomar o conceito de devir afastando-o de uma imitação, da
semelhança ou da identificação. O homem não se torna um animal ao devir-animal,
tampouco, obviamente. O devir não produz outra coisa senão ele próprio, e assim,
não é uma transformação no humano que ele gera. O Estado 51 recorrentemente se
apropria das características animais (e suas espécies, gêneros, formas, “funções”)
para classificar e medir os homens e os elementos sociais. A própria ciência, ao lidar
com os animais, o faz a partir de suas características. Não é isso que está em jogo
nos devires-animais. “Interessamo-nos pelos modos de expansão, de propagação, de
ocupação, de contágio, de povoamento. [...] O que seria um lobo sozinho? E uma
baleia, um piolho, um rato, uma mosca?”. (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p.20). A
questão também não é admitir o bando ou a matilha como características destes
animais (os lobos vivem em matilha, mas os ursos, não).
A história da relação humana com os animais passa por diversos perigos e
possibilidades de despotencialização. Ao nos relacionarmos com o animal segundo
uma tentativa de correspondência ou de progressão, infertilizamos essa relação. Ao
compreendermos essa linha que liga animal e homem como sendo de ordem do
imaginário ou do espírito, também a ignoramos. Também não é o devir-animal uma
analogia (do tipo “as brânquias estão para os peixes como os pulmões estão para os
humanos”, ou pior, “aquele nadador é como um peixe” ou “ele é forte como um
urso”). Não, o devir-animal é um rizoma, não uma série ou uma árvore. É possível
ver os animais, portanto, através de três possibilidades: a primeira é a de animais
subjetivados, individuados, familiares, inseridos em uma contemplação narcísica e
egocêntrica do que é animalesco; uma segunda possibilidade é ver os animais como
atributos, classificações, gêneros, que podem ser utilizados pelo Estado ou pela

50Cf. capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro, sobre a relação de Ahab e Moby Dick.
51Para compreender melhor o funcionamento dos aparelhos de Estado, ler o capítulo A escola e o devir-
viagem, página 41 deste livro.

117
Daniel Gaivota

psicanálise para separar e atribuir, para extrair deles modelos ou arquétipos. Esses
dois primeiros tipos de animais não nos interessam aqui.
O terceiro modo de observar o animal é observá-lo como vetor de
intensidades, como modo de proliferação, como matilha. Todo animal é, antes de
mais nada, um bando, uma multiplicidade “É nesse ponto que o homem tem a ver
com o animal. Não devimos animal sem um fascínio pela matilha, pela
multiplicidade”. (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p.21). É buscando os modos de
proliferação e contágio destes devires-animais que poderemos aproximá-los da
viagem e da Escola-Viagem. A linha que separa animal de humano passa pelos
mesmos trajetos que vínhamos trilhando ao tratar do nomadismo. A relação entre o
animal com o território talvez seja a mesma do viajante.
Nem todos os animais estabelecem territórios (assim como nem todos vivem
em bandos), o que é menos importante para essas reflexões – afinal, o devir-animal
não é um devir-animal específico, não uma imitação de hábitos animais, mas, como
atestam Deleuze e Guattari, "o devir pode e deve ser qualificado como devir-animal
sem ter um termo que seria o animal devindo. O devir-animal do homem é real, sem
que seja real o animal que ele devém" (2012c, p.19). Assim, a noção de território é
importante ao devir-animal, mesmo que hajam animais não-territorialistas.
A questão é: o que faz um animal quando estabelece um território? Uma
visão mais rasteira poderia ser a de que o animal cria para si um ambiente de
segurança, um ambiente que conhece, que domina e onde ele tem mais poder que os
outros animais. Seu reino. Seu Estado. Essa visão encontra os ideais tradicionais de
educação perfeitamente – parece mesmo que a escola é um espaço de criar para si
um território de segurança, construir um castelo resistente e seguro de saber, em
que cada quarto, cômodo ou porta seja conhecido, dominado, estruturado, onde a
função de cada conhecimento esteja bem estabelecida e clara, e mais que tudo, que a
função própria do castelo seja estabelecida. Mas o castelo é muito diferente da
toca52. Muitos mamíferos herbívoros, como os tatus, pacas e os coelhos, mas alguns

52 Muito embora, ao falar sobre o Castelo de Kafka, Deleuze e Guattari afirmem que ele “tem entradas
múltiplas” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p.9). Usamos o exemplo de qualquer modo, para marcar que
estas noções se atualizam e que um castelo pode se desterritorializar em toca ou uma toca reterritorializar-se
castelo.

118
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

carnívoros, como os suricates e os lobos também constroem tocas. Há também


peixes, anfíbios, répteis e aves que criam tocas, assim como inúmeros invertebrados
como aranhas, insetos e animais marinhos como a moreia. A toca é um buraco, um
corte na natureza, uma escavação de uma superfície que gera um novo micro-
mundo. As tocas, mais que os ninhos ou os abrigos – que também configuram
formas poéticas de habitar o mundo, mas que se assemelham mais ao castelo – são
como marcas, sulcos através dos quais o animal menos estabelece segurança que
autoridade.
Deleuze faz uma relação mais específica entre o escritor e o animal, no
sentido de que o animal marca o mundo, cava, corta, sulca como se cravavam nas
pedras ou nas tábuas os primeiros signos e letras. Nossa palavra 'estilo' deriva do
latim stilus, que é o nome do instrumento de escrita original, que se compunha,
basicamente, de uma vara de metal cortante; o estilo tem a ver com o modo de
marcar. E é através de marcas no mundo (e a toca é uma maneira animal
surpreendente, pois marca a natureza da mesma maneira que os signos humanos –
de forma que se possa dizer que a escrita é uma espécie formidável de devir-
animal53) que os animais constroem seus territórios. E os constroem da mesma
maneira que o escritor constrói sua obra: margeando, buscando os limites (no caso
do escritor, entre a linguagem e a música, entre a linguagem e o canto, entre a
linguagem e o grito...), buscando as bordas. Assim, o que está em questão na criação
de um território não é tanto seu interior, e por isso definitivamente o objetivo de
um território animal tem pouco ou nada a ver com o objetivo de um castelo.
Um território só faz sentido a partir da possibilidade de sair dele. Não é com
o conhecido, o espaço da segurança que os animais se preocupam. Parece que é mais
para delimitar o não-território que os animais marcam o solo, as árvores, as pedras,
e não o contrário. É fora de seu território que o animal caça, encontra seu cônjuge,
luta, busca alimento. A vida animal – no sentido mais "carrapatesco", acontece fora

53 Sobre uma tentativa de escrita animal, mágica, inquieta, poética, ou melhor, uma escrita-experiência na
escola, cf. a dissertação de Edna Olímpia da Cunha, companheira do NEFI: Suspensões e desvios da escrita:
travessias da filosofia na escola pública, 2014, disponível no banco de teses e dissertações do ProPEd.

119
Daniel Gaivota

dos limites. É uma vida do fora54. Assim, o território serve, antes de tudo, para se
sair dele, mais que para ficar.
[...] construímos um conceito de que gosto muito, o de
desterritorialização. [...] precisamos às vezes inventar uma palavra
bárbara para dar conta de uma noção com pretensão nova. A noção
com pretensão nova é que não há território sem um vetor de saída
do território, e não há saída do território, ou seja,
desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se
reterritorializar em outra parte. (DELEUZE, 2001)
O território de Deleuze e Guattari parece, portanto, não ser dissociável de
seu oposto. Não existe território sem a possibilidade da desterritorialização - que é
não somente o movimento para fora do território, mas também o ato de fazer do
território um fora, ou seja, de fazer com que deixe de ser território. Mas todo
movimento de desterritorialização tem a ver com uma reterritorialização em outro
campo, ou seja, as relações territoriais são relações de movimento, são nômades.
Porque a desterritorialização acontece em forma de rizoma, como devir. A vespa se
desterritorializa na flor, mas se reterritorializa através dela, que é seu alimento. A
flor se desterritorializa ao tornar-se parte da vespa, mas é através da vespa que ela
se afirma flor, que se reproduz, reterritorializando-se. Do mesmo modo um lobo, ao
sair de seu território, desterritorializar-se, participa de outros agenciamentos de
forças, torna-se caçador, presa, ameaça, bebe água, experimenta o limite entre o que
é e o que não é, mas é só através dessa saída - que desterritorializa sua toca (ela se
torna apenas um buraco) - que pode se afirmar de fato que é um lobo.
É claro que não estamos a falar do animal molar, o lobo molar, o sujeito, a
forma lupina. É importante compreender que todo objeto é atravessado por dois
tipos de segmentaridade, uma flexível e outra endurecida, ao mesmo tempo, uma
molecular e uma molar. Há segmentos macro, rígidos e outros micro, mais fluidos.
Os sistemas binários, como as classes sociais ou os sexos, por exemplo, são
agenciamentos molares, mas os dois sexos, por exemplo, remetem a múltiplas
combinações moleculares, milhares de relações que põem em jogo o homem e a
mulher, mas também o homem e a mulher em relação aos objetos, os animais etc. O
mesmo se dá com as classes, que se segmentam de maneira molar, mas não

54 Importante compreender a noção do fora em Blanchot, Foucault e Deleuze; cf. capítulo A escola e o devir-

viagem, página 41 deste livro.

120
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

impedem ao mesmo tempo, molecularmente, todo um mundo de agenciamentos


sociais. Ou seja, um regime molecular de segmentaridade é aquele em que as
unidades quaisquer – partículas – só adquirem qualquer determinação se estiverem
agrupadas em massa, segundo relações de velocidade e lentidão55.
E as próprias classes sociais remetam a "massas" que não têm o
mesmo movimento, nem a mesma repartição, em os mesmos
objetivos, nem as mesmas maneiras de lutar. As tentativas de
distinguir massa e classe tendem efetivamente para este limite: a
noção de massa é uma noção molecular, procedendo por um tipo de
segmentação irredutível à segmentação molar de classe. No
entanto as classes são efetivamente talhadas nas massas, elas as
cristalizam. E as massas não param de vazar, de escoar das classes.
(DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p.99).
Assim, ao falar de um devir-lobo, estamos a falar de um lobo molecular, ou
seja, o conjunto de agenciamentos intensivos que escapam, vazam do lobo, que não
podem reduzir-se à noção molar de lobo - que é o macro lobo, a segmentaridade
dura que cristaliza todas as moléculas do que é lobo. Não é possível devir-lobo
como se mudasse de espécie molar, mas o lobo é um devir do homem, o que significa
que é possível uma vizinhança de moléculas, de partículas emitidas, uma relação
entre velocidades, intensidades, movimentos. Todo devir é, portanto, molecular.
"Ninguém devém-animal a não ser que, através de meios e de elementos quaisquer,
emita corpúsculos que entrem na relação de movimento e repouso das partículas
animais ou, o que dá no mesmo, na zona de vizinhança da molécula animal".
(DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p.70).
Mais importante: é ao sair do território que o próprio animal como entidade
molar devém-animal. Um animal, segundo Deleuze, é "um ser à espreita"
(DELEUZE, 2001). É no movimento de desterritorialização que essa espreita, essa
atenção intensa para o mundo é acionada. Talvez só se possa devir-animal ao sair de
seu território, em sua desterritorialização. E nesse sentido, o animal encontra o
nômade. No Tratado de Nomadologia, Deleuze e Guattari afirmam que o nômade é
o Desterritorializado por excelência, porque "para o nômade [...] é a
desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se
reterritorializa na própria desterritorialização" (DELEUZE; GUATTARI, 2012d,

55 Cf. capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.

121
Daniel Gaivota

p.56). Seu território é o movimento, ele configura uma saída e uma permanência
simultaneamente. É a terra, no movimento do nômade, que se desterritorializa,
portanto: deixa de ser terra, território, e passa a ser somente suporte dos passos,
caminho.
Assim, parecemos chegar a uma falsa bifurcação, um percalço ilusório: o
viajante está em um devir-nômade ou um devir-animal?



Observamos a importância do nomadismo56 enquanto exercício de


alisamento dos espaços, de ocupação dos espaços de maneira intensiva, imanente,
para a Escola-Viagem. Compreendemos que o que acontece nela é, portanto, um
devir-viajante. Podemos observar também como esse devir-viajante se dá no tempo,
através da Aventura e da Vertigem57. Mas é no seu movimento pelo espaço que
precisamos situá-lo. Se é preciso movimentar-se como uma máquina de guerra, de
maneira a alisar os espaços estriados por onde passa, o devir-viajante se dará em um
espaço que, assim como no caso do tempo, não seja extensivo, metrificável,
estratificado, mas vetorial, intensivo. Assim, nos encontramos a princípio com
relações moleculares entre o devir-viajante, o devir-animal e o devir-nômade.
Já compreendemos que o devir-nômade tem a ver com a desterritorialização
como território, desterritorializando em sua passagem a própria terra. É preciso
que ao devir-viajante se produza esse tipo de deslocamento no mundo e no outro,
simultaneamente a produzí-lo em si na viagem. Um viajante que deixa o trajeto
intocado é um espectador, um turista. Ao mesmo tempo, é preciso devir-animal.
Primeiro, no sentido de estar a espreita. O elemento da Escola-Viagem devém
viajante na medida em que está atento ao mundo. Na medida em que presta tanta
atenção ao mundo que se torna incapaz de dizer “eu”. Devir-viajante significa se
lançar ao mundo, se entregar a ele, tornar-se o mundo, da mesma forma que o
animal que sai de seu território. Ocupam-se dele os elementos do redor; um lobo

56 Cf. capítulos A escola e o devir-viagem e O (des)território da Escola-Viagem, sequencialmente nas

páginas 41 e 91 deste livro.


57 Cf. capítulo O Tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.

122
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

não é senão uma máquina sedenta, uma máquina ameaçadora, uma máquina presa
ou predadora. O fora, o des-território é o lugar do rizoma. É preciso que, na Escola-
Viagem se faça rizoma com o mundo, que a espreita, a atenção, torne o viajante o
caminho – para que o caminho possa se tornar parte do viajante. Devir-viajante,
portanto tem a ver com ouvir, ver, tocar, sentir cheiros, gostos, texturas. É uma
espécie de devir-carrapato.
E como se chega a esse mundo, então? Como ultrapassar o limite do
território e desterritorializar? Como se conhece o ponto onde a individualidade, a
subjetividade termina e o fora começa? Não é possível. Porque só faz sentido pensar
em barreiras neste sentido a partir de uma cartografia estriada, esquadrinhada.
Para compreender uma noção de mapa em um plano de imanência é preciso
abandonar as linhas limítrofes, os pontos de referência. Não é de um mapa
extensivo que estamos falando.
O termo “cartografia” utiliza especificidades da geografia para criar
relações de diferença entre “territórios” e dar conta de um “espaço”.
Assim, “Cartografia” é um termo que faz referência à ideia de
“mapa”, contrapondo à topologia quantitativa, que caracteriza o
terreno de forma estática e extensa, uma outra de cunho dinâmico,
que procura capturar intensidades, ou seja, disponível ao registro
do acompanhamento das transformações decorrias no terreno
percorrido e à implicação do sujeito percebedor no mundo
cartografado. (FONSECA; KIRST, 2003, p.92).
A cartografia, para Deleuze, é uma maneira de “desembolar” os dispositivos.
O conceito de dispositivo encontra-se no limiar entre a filosofia de Foucault e
Deleuze. Eles parecem funcionar a partir de linhas de visibilidade e enunciação –
que tornam objetos visíveis ou invisíveis, dizíveis ou indizíveis, permitindo ou não
que ciências, gêneros literários, estados de direito ou movimentos sociais sejam
vistos e ouvidos –, além de linhas de forças, que agem como setas, penetrando e
conduzindo as coisas e as palavras – ou seja, linhas de poder (DELEUZE, 1990,
pp.155-157). Em terceiro lugar, os dispositivos operam através de linhas de
objetivação e subjetivação, como que voltando essas setas de poder para dentro,
para si próprios, de modo a gerar sujeição e objetificação.
O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder,
estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de
saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. É isto, o

123
Daniel Gaivota

dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de


saber e sendo sustentadas por eles. (FOUCAULT, 1984, p.246).
Os dispositivos são anti-máquinas-de-guerra, portanto, são máquinas que
produzem espaço estriado, subjetivam e exercem poder, estabelecendo verdades e
distribuindo legitimação. É importante estarmos muito atentos à constituição de
tais máquinas de poder, especialmente se estamos a elaborar uma escola que seja
máquina de guerra,
porque a modernidade multiplicou e disseminou amplamente esta
maquinaria política complexa e de difícil visibilidade, constituindo
uma rede articulada de dispositivos normalizantes em relação a
problemas diversos, que exercem controle operando de forma fina,
capilar e subjetivante, individualizando sujeitos, marcando seus
corpos em jogos de identidade, de sexualização, normalizando suas
condutas e governando cotidianamente suas vidas. (PRADO
FILHO; TETI, 2013, p.51).
E para nos opormos à influência dos dispositivos de poder é preciso que
desembaralhemos suas linhas, que compreendamos seu amálgama de retificações, de
angulações, para que possamos caminhar sobre as linhas que os compõem,
desemaranha-los como se fossem novelos para que deixem de atuar invisíveis e, em
sua visibilidade, abertos, desmontados, percam sua força. Somos capazes de fazer
isso se entendemos que “as linhas são os elementos constitutivos das coisas e dos
acontecimentos. Por isso cada coisa tem a sua geografia, sua cartografia, seu
diagrama”. (DELEUZE, 1996, p.47). E portanto desemaranhar estes dispositivos
torna-se possível ao fazer mapas, ao cartografá-los; pois a cartografia é da ordem do
rizoma.
É através da cartografia que podemos emaranhar os dispositivos porque
como máquinas muito mais sutis e imperceptíveis que os grandes poderes, eles não
atuam visivelmente, em grandes hierarquias ou esquemas arbóreos, como o Capital,
a Linguagem, a Ciência e as instituições macro, que Foucault analisa e acusa em
Vigiar e Punir e na Ordem do Discurso, por exemplo. Os dispositivos de poder
funcionam, curiosamente (e é por isso que a cartografia é uma estratégia para sua
desmontagem) à maneira do rizoma.
O rizoma, em Deleuze e Guattari, é a estrutura que se opõe à série, à árvore.
O rizoma não parte da diferença entre o um e o múltiplo, mas sim de uma
multiplicidade sem unidades, sem relações de sujeito e objeto. Qualquer ponto do

124
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

rizoma pode e deve ser relacionado com qualquer outro, sem relação hierárquica ou
de série (anulando assim, a própria condição de ponto, portanto, e fazendo com que
no rizoma só haja linhas). O rizoma não pode ser rompido, ou melhor, suas rupturas
não significam a quebra de uma sequência, ordem ou estrutura, pois eles são já
desestruturados – ou seja, a ruptura não só não gera nenhum problema para a
existência do rizoma, como configura componente importante dele.
Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as
quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado,
atribuído, etc.; mas compreende também linhas de
desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no
rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de
fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não
param de se remeter umas às outras. (DELEUZE; GUATTARI,
2012a, pp.25-26).
O que significa que no rizoma, a ideia de separação, fenda, distância e
proximidade assumem um caráter completamente diferente do que significam em
um mapa extensivo, estriado, em um aparelho de Estado, e isso significa também
que em um rizoma, as ideias de início ou fim não fazem sentido, não existem. O
rizoma, acima de tudo, não se propaga por filiação. Não é através de uma
segmentaridade serial que o rizoma cresce, se desloca. Os rizomas, como as ervas
daninhas, os fungos, os tubérculos, os bulbos e cormos se propagam por
proliferação, por contágio. Assim como os bandos, as matilhas.
O devir-animal, para Deleuze e Guattari, relaciona-se com a propagação
rizomática, pelos modos como o animal expande seu território, como habita suas
bordas, os limites, e como pode se alastrar. Não é possível, portanto, devir um lobo,
pois o devir-lobo é compartilhar molecularmente uma multiplicidade, é fazer
rizoma com o lobo e com sua maneira de alastramento, de proliferação.
Assim, temos condições de compreender as relações territoriais do devir-
viajante, observando três processos componentes da Escola-Viagem: a construção de
uma toca, a cartografia das bordas e a linguagem por sobreposição de mapas:
territorialização, desterritorialização e reterritorialização, se quisermos olhar desta
maneira.
Como já dissemos, a toca é um marco territorial poético, que se assemelha
aos marcos humanos de escrita. Para além disso, os animais que constroem tocas

125
Daniel Gaivota

não raro a marcam de outras maneiras (as lontras, por exemplo, esfregam seu pelo e
liberam odor através de glândulas, os lobos marcam seu entorno com urina). Assim,
ciar uma toca é um ato singular de marca, de interferência no mundo. Não é um ato
de subjetivação, individuação58. Estabelecer uma toca é perfurar uma realidade, um
sistema, um plano.
Em princípio a toca parece uma máquina abstrata de rostidade: parece um
processo de criar buraco negro sobre muro branco – o que Deleuze e Guattari
apontam, em oposição a um sistema semiótico de volume-cavidade, como um
sistema superfície-buraco. Para os autores, o rosto surge no entrecruzamento de
dois eixos, duas semióticas bastante diferentes: a da significância, que “não existe
sem um muro branco sobre o qual inscreve seus signos e suas redundâncias”; a da
subjetivação, que “não existe sem um buraco negro onde aloja sua consciência, sua
paixão” (2012b, p.35-36). Mas a toca provoca justamente o contrário, ela é uma
despaisagização, um corte. A toca tridimensiona a superfície (a
desterritorializando), dá vetor de saída ao buraco. “Desfazer o rosto é o mesmo que
atravessar o muro do significante, sair do buraco negro da subjetividade”.
(DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p.64). E é isto, afinal, o que acontece na toca.
A toca normalmente tem múltiplas entradas, não tem início ou fim – é um
rizoma animal. Por ser assim, ela diz respeito a um território ligado muito mais ao
movimento que ao repouso. A toca comporta “uma nítida distinção entre linha de
fuga como corredor de deslocamento e os estratos de reserva ou de habitação”59.
(DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p.30). Assim, mais que construir um
estabelecimento, uma edificação segura, cavar uma toca tem a ver com dar a si
linhas de fuga, caminhos de saída, com compreender os caminhos de escape do
terreno nativo.
Um viajante precisa compreender sua maneira de viajar. Somente ao
compreender que tipo de deslocamento suas pernas são capazes de realizar e sua
pele é capaz de suportar se pode iniciar o caminho. É preciso se dar passagem,

58 Ou ao menos não de uma individuação subjetiva. Há outras maneiras, potentes, de individuação. Talvez

uma toca possa configurar uma hecceidade, por exemplo. Sobre esse conceito de Deleuze e Guattari, cf. o
capítulo Poética do deslocamento, página 61 deste livro.
59 O conceito de linha de fuga pode ser melhor compreendido através da leitura do capítulo A escola e o

devir-viagem, página 41 deste livro.

126
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

garantir os próprios passos. A viagem não segue um estratagema ou um manual,


não há viagens melhores ou piores que outras, desde que inventem uma poética do
deslocamento. Os viajantes que percorrem seus caminhos a pé, como andarilhos,
percebem nesta saída sua linha de fuga. Aqueles que percorrem os seus de barco,
carro ou avião encontram outras intensidades, sempre vertiginosas. Mas todo
viajante cava seu próprio túnel, encontra seus próprios vetores de saída. É isso
cavar uma toca, estabelecer um território a partir de linhas, de possibilidades de
escape. Compreender seu lugar, admitindo um devir que faça minguar, desaparecer
as linhas limítrofes, as barreiras extensivas e estruturais, só pode fazer sentido a
partir do conhecimento dos próprios vetores, das forças que atravessam a si, das
aberturas possíveis.
Mas o viajante necessita mover-se, e para mover-se é preciso compreender
seus próprios limites, encontrar as bordas do território a fim de desterritorializar-
se. Para isso é preciso mapear-se, o que não é diferente de mapear o mundo. Se
admitimos que o devir-viajante se propaga de maneira animal, rizomática, não
podemos compreender esse movimento como um movimento extensivo, mas sim
intensivo – em forma de proliferação, contágio. O viajante da Escola-Viagem
expande seu território mantendo-se na borda dele, compreendendo seus limites,
seus saberes, suas forças, intensidades e distâncias. A Escola-Viagem precisa
escutar, ouvir (como se ouve a um Ulisses ou um viajante em uma noite de
inverno)60, identificar os territórios de seus viajantes para ser capaz de trabalhar em
suas bordas.
Sempre, na borda da multiplicidade, no limite entre as dimensões há o
anômalo. Josefina, a ratinha cantora do povo dos ratos, está sempre em uma posição
privilegiada entre o bando, ou fora dele. A função de Josefina no grupo de ratos não
fica nunca clara. Os ratos não compreendem exatamente por que a escutam cantar –
nem mesmo se ela de fato canta. Algum dos membros desse povo que de fato tivesse
alguma habilidade com o canto seria muito mal visto ao cantar nos momentos em
que Josefina faz questão de uma plateia. Mas ela continua existindo ali, forçando o
limite entre ser rato e devir outra coisa. Moby Dick também é um anômalo, uma
60É interessante, sobre a escuta e sobre o que se diz na escola, conferir os capítulos A narrativa na Escola-
Viagem e Onirodinia e relato, sequencialmente nas páginas 147 e 169 deste livro.

127
Daniel Gaivota

força de externalização da baleia. Ela é a borda entre a baleia e o demônio. Os


meninos na ilha em O Senhor das Moscas só entram em seu devir-animal depois do
encontro de Simon com o Senhor das Moscas. Robinson (ou Sexta-feira) encontra
seu devir-animal no encontro com o bode Andoar. O anômalo é o desigual, o
desestruturante, a ponta de desterritorialização, não é de fato nem indivíduo nem
espécie. O anômalo é um fenômeno de borda.
Eis nossa hipótese: uma multiplicidade se define não pelos
elementos que a compõem em extensão, nem pelas características
que a compõem em compreensão, mas pelas linhas e dimensões que
ela comporta em “intensão”. Se você muda de dimensões, se você
acrescenta ou corta algumas, você muda de multiplicidade. Donde a
existência de uma borda de acordo com cada multiplicidade, que
não é absolutamente um centro, mas é a linha que envolve ou é a
extrema dimensão em função da qual pode-se contar as outras,
todas aquelas que constituem a matilha em tal momento; para além
dela, a multiplicidade mudaria de natureza. (DELEUZE;
GUATTARI, 2012c, p.28).
Não há bando sem fenômeno de borda. E haverá anômalo sempre que um
animal estiver prestes a cruzar a linha que faz com que já não se saiba se ele faz
parte do bando ou não. O anômalo encontra-se contagiado pelo território vizinho, e
recebe dele partículas. Encontra-se no entremeio, no limite, experimenta o não-ser.
Todos os devires acontecem na borda, por contágio. Por isso, ao se propor que o
devir-viajante tenha uma relação com o devir-animal, afirmamos: todo viajante é
um anômalo. Devir-viajante significa ocupar a borda de seu território, mesmo que
esta borda se mova. É sempre ocupar o lugar da anomalia, evocar o diferente, o
estrangeiro, nunca estar claro se faz ou não parte da matilha, e nesse sentido,
contagiar também os ocupantes dos territórios vizinhos, desestruturar as bordas,
agindo como vetor de desterritorialização do outro: devindo-nômade.
Uma cartografia das bordas é a percepção dos diagramas, mapas, das linhas
que perpassam e permeiam a relação entre as forças do ambiente (inclusive
compreendendo a si próprio como uma delas). É estar à espreita. Estar à espreita
das expansões dos dispositivos, que trabalham também por contágio, que fazem
território e forçam as bordas, gerando vetores não para fora, mas para dentro,
proliferando subjetivação, linhas de forças, invisibilizando e ensurdecendo. Uma
cartografia das bordas, neste sentido, é uma espécie de cartografia de si – não uma

128
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

cartografia do eu, que mapeia os limites de uma subjetividade, mas pelo contrário,
um mapeamento das forças que atravessam a percepção, para deixar-se levar por
aquelas que potencializam, que fazem movimentar. Essa cartografia das bordas
torna o (auto)cartógrafo pronto para caminhar sobre as linhas dos dispositivos,
desemaranhando-as, desmontando as relações estruturantes e, num processo
contrário, a avançar sobre elas, a invadir, desterritorializá-las. Cartografia como
máquina de guerra, mapas como espaçamentos lisos. Mas ao mesmo tempo esta
cartografia permite uma segunda espreita (não menos intensiva nem animalesca),
uma abertura, uma disposição a ser contagiado e a trocar intensidades, a fazer pacto
com o demônio, desterritorializando-se, alastrando-se pelas bordas.
E como é possível esse pacto? Como entendem-se esses anômalos, como pode
o capitão Ahab comunicar-se com Moby Dick, entrar em seu próprio devir-baleia?
E Robinson Crusoé devir-bode? Viajar, como dizíamos, tem a ver com o encontro
com a diferença, com o estrangeiro e, mais do que isso, com se tornar o estrangeiro.
É por estar fora, em contato com a estranheza que o pensamento pode emergir.
Essa experiência de borda geralmente envolve mal-entendidos ou, em outras
palavras, não ser capaz de falar alguma língua. Qual é a linguagem da fronteira?
E ainda: o que estamos chamando de linguagem? Aquela imagem que
Deleuze e Guattari trazem para falar sobre o aparelho de Estado ao estabelecer
duas forças constituintes, encarnadas nas figuras de Mitra e Varuna 61, pode ser uma
diretriz para analisar o que acontece quando falamos (e, além disso, quando fazemos
o que comumente chamamos de pensamento). Temos uma noção do que é
linguagem baseada em um mecanismo de compreensão. Para se comunicar com os
outros, é necessário jogar uma espécie de jogo, no que há algumas regras e onde
todos os movimentos se apontam para um acordo, um propósito comum. O nosso
conceito de uma língua, portanto, basicamente, é baseado em um mágico-rei e um
jurista-sacerdote, sendo eles a verdade e o diálogo, respectivamente. O que significa
que aquilo a que chamamos linguagem na verdade é um espaço estriado, é a imagem
do Estado (e vice-versa).

61 O funcionamento dos aparelhos de estado pode ser encontrado na reflexão presente no capítulo A escola e

o devir-viagem, página 41 deste livro.

129
Daniel Gaivota

A linguagem nesse sentido é o que criamos para dar sentido ao mundo.


Tomamos toda a multiplicidade, as linhas e os vetores que tornam possíveis os
eventos, a velocidade infinita, as linhas de fuga, as forças nômades, aiónicas,
selvagens do mundo, os devires e o contágio, e colocamos tudo isso numa estrutura
estatal, num espaço onde há parâmetro e acordo. Isso é o que chamamos de
linguagem, e por extensão, é isso que usamos para falar de pensamento. Essa
maneira de ver a linguagem está relacionada a uma maneira dualista e
transcendente de olhar e pensar sobre o mundo. Basta apenas para pensar em uma
linguagem sedentária, imóvel e estriada, e não serve aos nossos estrangeiros
anômalos na borda de seu território. Se queremos pensar que viajar é uma máquina
de guerra, que o viajante está em ou está criando um plano nômade, liso e imanente,
então é interessante que pensemos sobre como a linguagem e o pensamento
funcionarão nesse plano ou espaço.
Nesse sentido, estar em um território em que se fala uma língua
desconhecida é uma experiência muito interessante para um viajante. Ao contrário
de lugares onde podemos nos comunicar através de nossa língua materna, estar
perdido neste tipo de lugar pode ser uma experiência de imanência. Sem ser capaz
de se comunicar através de uma linguagem estruturada, o ou a viajante está à
deriva, como se ele ou ela estivesse no meio do mar ou no deserto. Em um espaço
liso. Mais importante que isso: o viajante está em um espaço estriado, dentro de
uma estrutura estatal, mas como se ocupasse um espaço liso. O viajante, dessa forma,
suaviza o espaço; torna-se uma máquina de guerra62.
Mas como a linguagem funciona nesse caso, se não é estrutural? Como se
pensa se não de uma forma estruturada? Como funciona um pensamento liso? Bem,
os conceitos que a viagem orbita e suas relações com a educação podem ajudar a
entender esta questão, assumindo que os assuntos que ocupam a escola podem ser
pensados a partir do mesmo aparelho conceitual usado para pensar sobre o corpo
viajante. O corpo de um viajante (lembrando a diferença entre o viajante e o turista)
é um corpo em vertigem, à espreita, sempre transpassado por deslocamento,
experimentando em todos os momentos a diferença. O corpo do viajante está

62 Sobre a Máquina de Guerra, cf. também o capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste livro.

130
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

sempre assumindo a posição de estrangeiro, estranho, sempre num movimento


vertiginoso. É o corpo do animal que se coloca em perigo fora da toca. É Josefina
cantando para uma multidão silenciosa, é Moby Dick enfrentando o arpão. É Aloar
a fustigar Sexta-feira. A vertigem, como afirmamos em outro momento, é o
sentimento que faz com que o corpo experimente as coisas não de uma maneira
extensiva, cronológica, marcada por linhas limítrofes, mas de uma maneira
vetorizada, intensiva e aiónica. No entanto, essa experiência nômade pode ser
aprisionada por uma estrutura, perdendo seu caráter imanente. Temos condição
agora de encontrar um modo de pensar e um modo de linguagem que nos permita
habitar espaços lisos, percorrer as bordas dos territórios. Esta será a linguagem da
escola-viagem.
Vamos voltar para o viajante à deriva63 em uma cidade estrangeira (a cidade
é estrangeira ou o viajante é o estrangeiro?), em um bairro específico onde poucos
falam sua língua. Imaginemos as possibilidades de eventos que podem ocorrer a
este personagem: experimentar alguns doces aleatórios sem nenhuma referência de
sabor; ser abordado por um ladrão e acabar sendo roubado; conhecer uma senhora
idosa através de sinais e expressões faciais; encontrar alguém que conhece seu
destino e pegar uma carona na moto da pessoa; e assim por diante. Agora vamos
imaginar uma situação mais específica: o mesmo viajante, na mesma cidade, vai
visitar um lugar histórico, digamos, por exemplo, o templo de Hefesto, na antiga
Ágora de Atenas. O viajante passou por muitos templos antigos, todos eles em
ruínas, e finalmente descobre que o único que ainda permanece de pé é o templo do
deus construtor. O viajante, então, chora.
O que acontece ao viajante no templo não é estrutural. Ele não poderia
esperar que seu corpo reagiria dessa maneira. É vertiginoso, surpreendente, é uma
afecção. Poderíamos supor, observando essa cena imaginária, que o viajante teria
que saber, estruturalmente, a história de Hefesto e a história do templo para ser
capaz de sentir isso. Neste caso, estaríamos imaginando ou supondo uma reação que
tem a ver com a lógica, a linguagem, com uma relação entre duas informações que

63 Sobre a deriva, cf. capítulo Poética do deslocamento, página 61 deste livro.

131
Daniel Gaivota

fazem sentido dentro dessa estrutura de pensamento que o viajante (e nós também)
está dentro. Mas a questão importante é: por que isso faria alguém chorar?
Parece mais interessante comparar essa experiência com a sensação de comer
aqueles doces, cujos nomes são desconhecidos ao viajante. Porque mesmo não
sabendo os nomes e não lembrando exatamente o gosto deles (porque é muito mais
difícil lembrar de gostos que de imagens ou conceitos), eles são parte do que o
viajante sabe ou pensa sobre a cidade (digamos que a padaria, assim como o ladrão,
a senhora e a moto também se encontrem em Atenas). Mesmo que esse elemento,
que essa intensidade não possa caber em alguma estrutura, ele configura um mapa
de intensidade. Não é como o mapa da cidade no papel, é claro; não se pode apontar
algum lugar como a padaria ou mesmo o templo neste tipo de mapa. Porque não é
um mapa métrico, extensivo.
Mapas extensivos só podem referir-se a espaços estruturados, com fronteiras,
limites e interdições. Mapear um espaço liso ou um plano de imanência se faz a
partir de um mapa de intensidade. Deleuze fala sobre mapeamento ao explorar o
conceito do rizoma com Guattari, mas também encontramos essa discussão em seu
confronto com a análise freudiana da psique humana. Onde o filósofo vê um mapa
de afecções, por exemplo, no caso do pequeno Hans que está impressionado com um
cavalo na rua, Freud vê imagens pálidas do pai e da mãe de Hans. Deleuze aborda a
ideia de um corpo pensante usando esta imagem, ajudando-nos a pensar no tipo de
pensamento de um viajante.
O trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que
percorrem um meio, mas com a subjetividade do próprio meio, uma
vez que este se reflete naqueles que o percorrem. O mapa exprime a
identidade entre o percurso e o percorrido. Confunde-se com seu
objeto quando o próprio objeto é movimento. (DELEUZE, 1997,
p.73).
Estes mapas de que estamos falando são feitos, desenhados pelo corpo.
Através do corpo de um viajante. O corpo, muitas vezes em vertigem, experimenta
intensidades, algumas em formas mais profundas do que outras, e cria afetos, mapas
vetoriais. E são esses mapas que, sobrepostos, formam o território da cartografia de
si. É através do desenho destes mapas que nossas bordas vão aumentando e nossa
multiplicidade se torna sempre outra, com novas bordas a serem exploradas.

132
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Quando se sobrepõem o mapa dos doces sem nome, o mapa do templo de


Hefesto, o mapa do ladrão, o mapa da senhora sorridente, o mapa da carona com um
estranho bem-intencionado e muitos outros mapas, essa pessoa tem o que pode ser
chamado de mapa de Atenas. Um mapa intensivo de Atenas. O viajante ocupa o
limite entre homem e cidade, devém-cidade. Um mapa é diferente de um conceito,
uma vez que não é composto dentro de uma linguagem estruturada (e desse modo,
haverá diversos mapas de Atenas), mas é um modo de pensar, é uma outra forma de
linguagem64. O tipo de pensamento e linguagem que são possíveis em um espaço
liso, em um deslocamento nômade. É através desses mapas sobrepostos que Ahab e
Moby Dick podem alastrar seus territórios até que suas bordas se toquem, e,
finalmente, sobrepor-se, na intensidade última do encontro que faz com que se
devenha-outro.
O que queremos mostrar aqui é como, se assumimos a possibilidade de uma
maneira não estruturada de estar no mundo e de pensar, ela produz diferença. E
nesse sentido, já que essas afecções atravessam o corpo do viajante – assim como de
uma mesma forma aquelas três afecções atravessam o corpo do carrapato –
podemos dizer finalmente que o viajante pensa com o corpo.
Além disso, podemos dizer que esse tipo de pensamento aqui proposto não é
exatamente um pensar sobre algo. Para além disso, esse pensamento nômade, como
Deleuze deixou claro no fragmento sobre o pequeno Hans e seu mapeamento do
cavalo (“o mapa exprime a identidade entre o percurso e o percorrido”), não é uma
espécie de pensamento sobre, acima, em relação às coisas, de uma maneira
transcendente, mas sim de uma maneira imanente. O viajante do evento imaginado
não estaria pensando sobre o templo de Hefesto. O viajante estaria, se permitimos
essa deformação da linguagem, pensando o templo. O que é o mesmo que dizer:
colocando-o em um espaço liso, transformando-o em uma intensidade.
Relacionando-se com ele em um plano imanente. Alastrando-se na forma de
contágio. Como um animal, e ao mesmo tempo como um nômade.

64Que tem mais a ver com a descoberta que com a verdade. São estes mapas que possibilitam o tipo de
narrativa específico da Escola-Viagem, como se desenvolve no capítulo A narrativa na Escola-Viagem,
página 147 deste livro.

133
Daniel Gaivota

E isto é precisamente o que a filosofia faz: percorrer as linhas de


segmentaridade que definem e garantem o aparecimento (material ou linguístico)
de sujeitos e objetos e colocá-los em movimento, deslocá-los, libertando-os destas
estruturas; fazemos isso deslocando-nos, nos tornando abertos, abrindo nossos
corpos para ser espantados, para estar em vertigem, permitindo sermos interferidos
também, contagiados também. E isso não é diferente do que acontece na Escola-
Viagem. A escola tem a capacidade de tornar as coisas pensáveis. Como quando estamos
em uma viagem. É possível portanto pensar a escola em um devir-viagem, e seus
habitantes, em um devir-viajante. Assim, a educação estará fazendo o que é
etimologicamente proposto em sua origem: levar as pessoas e as coisas para fora.



Um dos maiores mistérios do cinema permanece sendo a razão pela qual os


pássaros (especialmente as gaivotas, corvos e os periquitos, em um determinado
momento) passam a atacar os humanos de Bodega Bay em Os Pássaros. Hitchcock
termina o filme sem uma explicação, o que torna tudo mais terrível. Os pássaros
simplesmente destroem toda a ordem e estrutura que existe na cidade, arrancando a
carne dos humanos e a madeira das casas. Mas só vemos os ataques na presença de
Melanie, que passa o filme todo dividida entre ficar na cidade ou voltar para São
Francisco, cidade definida por outro personagem como “um formigueiro”. É em
volta dela que os corvos parecem se aglomerar, é para feri-la que a primeira gaivota
mergulha do céu. Melanie, desde a primeira cena, está prestes a ocupar a borda,
convidada a um devir-animal, mas não pode fazê-lo, pois está preocupada com a
própria subjetividade (todo o desenrolar do filme se dá pelo fato de um
desconhecido conhecer seu nome). É pelo encontro com este desconhecido que ela
se desloca, vertiginosamente, para Bodega Bay.
Ao chegar, ela entra em contato com a família do desconhecido, Mitch. Ele
devém-gaivota desde o primeiro momento, como sua fria, dura e solitária mãe,
empoleirada na cama, devém-corvo. A irmã mais nova, que se põe em relação com
os canários assustadiços desde sua aparição, em seu pânico, devém-periquito. Mas
Melanie se mantém territorializada até os últimos minutos do filme, quando, ao

134
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

ouvir o barulho de asas detrás de uma porta e a abri-la, se entrega a ser devorada
pelos pássaros. A ser penetrada por essa força, ao ter sua subjetividade minada
(processo pelo qual vai passando gradativamente ao longo da narrativa), Melanie
devém-pássaro, desterritorializa-se, assume a natureza passarificada na qual
humano e inumano confundem-se (e confundem-se gradativamente durante todo o
filme, em que assustadores pios de pássaros criados em sintetizadores se ouvem
através das cenas). Os quatro abandonam os limites da casa para encontrar, então,
um mundo tomado por pássaros, contagiado pelo rizoma, desestruturado ao limite.
O filme, após a última cena, não exibe a tela com os dizeres que anunciam o fim.
Talvez a melhor pergunta não seja por que os pássaros atacam os humanos;
tal expressão só pode ser enunciada de um ponto de vista, de uma perspectiva. Mas
se os humanos entram em um devir-pássaro, que outra coisa devém os pássaros
empoleirados nos brinquedos do parquinho? Quão devastador é ter seu território
invadido por uma multiplicidade? Como será uma escrita-pássaro? Que marcas ela
deixará no mundo? Podemos ouvir a voz de um pássaro que não seja inventada,
sintetizada? Podemos ouvir uma voz humana que não o seja? É possível ocupar o
espaço terrestre da maneira eólica das gaivotas? Como pode ser possível, se elas
“nunca param de migrar”?

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RETORNO A ÍTACA

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RETORNO A ÍTACA

Quando termina uma viagem? O que determina este ou aquele momento


como o princípio de um retorno? Ao partir, o viajante já não está começando a
retornar? Se toda viagem tem em si contida seu retorno (assim como sua partida),
nem por isso o retorno significa um fim. Apresentamos neste texto-viagem uma
ideia de viagem que é uma espécie de rizoma, que se mantém sempre no meio, com
múltiplas entradas e saídas, que tenha como princípio a ruptura a-significante, ou
seja, que possa (e deva) ser rompida, mas que se retoma a partir de quaisquer outras
linhas. Assim, não faz sentido pensar no retorno como uma espécie de fim da
viagem. Mais que isso, o retorno é uma parte importante da viagem. É no retorno,
afinal, que é possível contar histórias, que é possível fazer com que outras pessoas
sejam capazes de percorrer sua jornada, caminhar sobre as linhas traçadas com o
corpo e com as palavras.
Ulisses, ao retornar, morre, mas é porque conserva desde o princípio em si a
vontade de permanecer. Viaja com destino ao retorno. O objetivo da viagem talvez
tenha a ver também com uma desmemória, com uma desterritorialização radical, na
qual a origem do viajante, apesar de permanecer de algum modo nele, deixe de
defini-lo, contorna-lo, delimitar seu território. O viajante está em constante
processo de perda de origem, o que não configura de nenhuma maneira um
abandono – pois essa perda é justamente a condição de possibilidade do retorno.
Marco Polo, em suas missões de reconhecimento para o imperador Kublai
Khan, descreve longamente todas as cidades por onde passou, mas nunca fala ao
Khan sobre uma em especial:
– Sire, já falei de todas as cidades que conheço.
– Resta uma que você jamais menciona.
Marco Polo abaixou a cabeça.
– Veneza – disse o Khan.
Marco sorriu.
– E de que outra cidade imagina que eu estava falando?
O imperador não se afetou.
– No entanto, você nunca citou o seu nome.
E Polo:

139
Daniel Gaivota

– Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de


Veneza.
– Quando pergunto das outras cidades, quero que você me fale a
respeito delas. E de Veneza quando pergunto a respeito de Veneza.
– Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de
uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de
Veneza.
– Então você deveria começar a narração de suas viagens do ponto
de partida, descrevendo Veneza inteira, ponto por ponto, sem
omitir nenhuma das recordações que você tem dela.
A água do lago estava encrespada; o reflexo dos ramos do antigo
palácio real dos Sung fragmentava-se em reverberações cintilantes
como folhas que flutuam.
– As margens da memória, uma vez fixadas com palavras,
cancelam-se – disse Polo. – Pode ser que eu tenha medo de
repentinamente perder Veneza, se falar a respeito dela. Ou pode ser
que, falando de outras cidades, já a tenha perdido pouco a pouco.
(CALVINO, 1990, p.82).
Perder Veneza não é o mesmo que abandoná-la. Perder é um verbo
importante para o viajante, pois um dos sentidos principais de todo deslocamento é
justamente perder-se. Por um lado, Marco Polo cultiva de sua cidade natal outro
tipo de memória ao não defini-la, mapeá-la, contorná-la com palavras. Estruturar
uma memória retira dela automaticamente toda a intensidade estética para
resguardar uma informação através de algum artifício mnemônico. Torna-se uma
lembrança. Não é a imagem da casa em Combray ou os nomes da tia, dos vizinhos
ou da avó, nem mesmo a cor dos bolinhos que se apoderam do protagonista da obra
de Proust ao comer a madeleine, mas outra coisa, uma memória verdadeira. A
mesma memória que Marco Polo ainda guarda de Veneza.
Mas é preciso esquecer as lembranças para poder se surpreender com a
memória. Quanto melhor se fixar na mente a lembrança do lugar de origem, menos
sentido fará retornar a ele, mais próximo de cair na armadilha de Ulisses o viajante
estará. Voltar não pode significar o fim de uma viagem, pois ela não comporta este
conceito. Retornar precisa ser sempre um reencontro com uma nova terra nativa. É
preciso voltar para o mesmo lugar e para um outro lugar simultaneamente, pois ao
retornar, o viajante é também mesmo e outro, ocupa a borda de seu território.
Re-tornar é na verdade tornar outra vez, volver, dar novamente meia-volta e
se preparar para continuar – a viagem não termina. Diversas culturas antigas
utilizam como símbolo recorrente a espiral, para falar sobre a vida, o tempo e os

140
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

processos da natureza. A ideia de um tempo linear é assustadora demais, mas um


tempo circular também é aterrorizante. As antigas culturas orais, que se
relacionavam com a natureza de uma maneira que não conseguiremos compreender
totalmente, parecem ter percebido que existem inúmeras maneiras de retornar, mas
nenhuma delas é imobilizante. A espiral está, o tempo todo, em um retorno: é
impossível dizer onde começa sua curva – mas ela nunca volta para o mesmo lugar.
É infinita, um fractal espiralado que reproduz a si própria, gagueja, repete, repete,
repete até ficar diferente.
O erro de interpretação mais comum do eterno retorno nietzschiano é crer
que ele representa um ciclo fechado: a repetição não pode ser encarada como uma
repetição do Mesmo. Zaratustra encontra um anão que afirma que o tempo é um
círculo e fica doente. Afirmar o tempo como círculo é afirmar o retorno do Todo e
do Mesmo, a repetição do Semelhante. É preciso Zaratustra viajar, navegar para que
seja capaz de compreender que não é isso que está em jogo no eterno retorno.
Nem o anão nem o herói, nem Zaratustra doente nem Zaratustra
convalescente retornarão. Não só o eterno retorno não faz com que
tudo retorne, como faz com que pereçam aqueles que não suportam
a prova (e Nietzsche marca com cuidado os dois tipos distintos que
não sobrevivem à prova: o pequeno homem passivo ou o último dos
homens, o grande homem ativo, heróico, tornado o homem "que
quer perecer"). O negativo não retorna. O Idêntico não retorna. O
Mesmo e o Semelhante, o Análogo e o Oposto não retornam. Só a
afirmação retorna, isto é, o Diferente, o Dissimilar. (DELEUZE,
1988, p.280).
Ou seja, o que re-torna é a diferença. E é ao re-tornar, ao se virar, tornar
novamente, dando as costas a nosso (suposto) destino que podemos produzir
sempre deslocamento, sempre devir. Nesse sentido, o eterno retorno aparece como
uma espiral, que não repete eventos, sujeitos, objetos, mas outra coisa. “Com efeito,
repete-se eternamente, mas agora este 'se' designa o mundo das individualidades
impessoais e das singularidades pré-individuais”. (DELEUZE, 1988, p.280). A
viagem funciona como um mundo, como o mundo: não existe a partir de uma ordem
que lhe dê sentido, mas pelo contrário, age através do caos, se afirma nele. É esta
natureza que pode retornar. “O eterno retorno não é o efeito do Idêntico sobre um
mundo tornado semelhante; não é uma ordem exterior imposta ao caos do mundo;

141
Daniel Gaivota

ao contrário, o eterno retorno é a identidade interna do mundo e do caos”.


(DELEUZE, 1988, p.280).
Dada esta compreensão, não podemos entender o presente, passado e futuro
como entidades temporais isoladas, separadas por uma linha. Como Deleuze afirma,
a condição de possibilidade desses tempos é que estejam situados em um paradoxo –
ou seja, que o presente seja, simultaneamente, passado e futuro (fazendo dessa
estrutura uma contradição em termos).
É em vão que se pretende recompor o passado a partir de um dos
presentes que o encerram, seja aquele que ele foi, seja aquele em
relação ao qual ele é agora passado. Não podemos acreditar, com
efeito, que o passado se constitua após ter sido presente nem
porque um novo presente apareça. Se o passado esperasse um novo
presente para constituir-se como passado, jamais o antigo presente
passaria nem o novo chegaria. Nunca um presente passaria se ele
não fosse "ao mesmo tempo" passado e presente; nunca um passado
se constituiria se ele não tivesse sido constituído "ao mesmo
tempo" em que foi presente. Aí está o primeiro paradoxo: o da
contemporaneidade do passado com o presente que ele foi. Ele nos
dá a razão do presente que passa. É porque o passado é
contemporâneo de si como presente que todo presente passa, e
passa em proveito de um novo presente. (DELEUZE, 1988, p.85).
Assim, é preciso compreender que o retorno é ao mesmo tempo a partida. E o
entremeio. Não podemos separar o retorno ou colocá-lo como polo extremo da
viagem, pois a viagem não é uma estrutura linear, não tem uma entrada e uma
saída. Talvez uma viagem seja uma espécie de espiral: é sempre retorno. Por isso é
importante que, sendo sempre retorno e sendo sempre o retorno do diferente, não
se possa nunca voltar ao mesmo lugar. Mesmo que se pise o mesmo caminho, a
mesma cidade, o mesmo território, é preciso, à maneira nômade, desterritorializar a
própria terra.
E para nunca deixar de retornar, é preciso marcar com tinta, corpo e verbo,
os caminhos pelos quais já se caminhou, tanto para que não sejam trilhados outra
vez quanto para que possam ser trilhados infinitas vezes por quem quer ouvir ou
contar a história. Criar memória para poder esquecer. Esquecer para poder voltar.
Ulisses na verdade não morreu ao voltar para Ítaca. Vive mil vezes, em todos
aqueles que ouviram sua história e todos os que a contam novamente, continuando
seu trabalho de narrar a si próprio. Está vivo nestas páginas, que inventam para si

142
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

um novo Ulisses, nunca antes visto ou pensado. Um Ulisses-espiral que revive,


retorna, regressa.
Não é dado ao viajante permanecer. Sua condição é de passagem. Justamente
por isso precisa retornar infinitas vezes, sempre diferente, para que possa assim
renovar o espaço e o tempo por onde espiralam seus caminhos. E ao retornar,
chorar, sim, derramar lágrimas de quem se ausentou e está de volta. Beijar o chão
de sua terra, sabendo que ela é novamente sua. Não sua porque seja sua propriedade
nem porque a conhece, mas porque ela se presenteia mais uma vez como um novo
território a ser explorado, a ser narrado, a ser mapeado. Mas é necessário perder.
Perder Veneza pouco a pouco, para que ao retornar, a lágrima seja ainda e sempre a
lágrima de um viajante.

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A NARRATIVA NA ESCOLA-VIAGEM
(OU SOBRE FOTOGRAFAR, NARRAR, VERIFICAR)

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146
A NARRATIVA NA ESCOLA-VIAGEM
(OU SOBRE FOTOGRAFAR, NARRAR, VERIFICAR)

Quando eu chego num lugar, a primeira coisa que quero saber é sobre a
história local. E onde vamos? Sim, num museu, nos teatros e afins. A
escola é uma espécie de museu. Não daqueles que ficam pra sempre. Nem
dos que tem objetos para ser olhados. Mas sim daqueles que contam
histórias. A escola é isso. Um lugar repleto de histórias. – Milla

Fotografias de viagem. A fotografia digital, mais que a destruição da aura na


obra de arte ou nos próprios objetos fotografados, como afirma Walter Benjamin,
contribui para a destruição cada vez mais acelerada de uma arte já em ruinas: o
relato de viagem. Quando foi que o olho foi substituído pela objetiva, que a
percepção foi substituída pelo ecrã, que a memória foi trocada por imagens pálidas
de um rosto em primeiro plano, de costas para uma paisagem? Nada é tão
desinteressante quanto fotografias de viagem. Os relatos turísticos, destituídos de
qualquer força narrativa, são menos piores que estas imagens sempre
acompanhadas de uma descrição informativa, que acaba por aniquilar qualquer
possibilidade de segredo oculto que a pobre foto pudesse esconder. E que tempo
gastam os turistas a enquadrar, mirar, esperar outros turistas se afastarem. Quanta
experiência se abandona para que se produzam essas imagens tão pálidas, tão
distantes de qualquer objeto real, de qualquer intensidade.
As imagens desenhadas nas descrições enviadas pelos primeiros colonos das
Américas retratavam animais grandes, peludos, com rostos humanos e patas
peladas, ou serpentes finas com um grande calombo no meio do corpo. Os viajantes
desenhavam as coisas que viam, mas era preciso narrar o encontro, dar estatuto de
verdade àqueles delírios, ou de outro modo a imagem passaria como um desenho
livre ou uma invenção própria do desenhista (o que na verdade é sempre o caso, mas
o texto tratava de torna-lo informacional). Já a fotografia de viagem muitas vezes
tem como função comprovar ou verificar uma história, como se as palavras sozinhas
não fossem suficientemente críveis: produz-se a foto para verificar a história, e não

147
Daniel Gaivota

mais o contrário. Sempre que um viajante narra uma história, algum ouvinte lhe
pergunta “mas isso aconteceu de verdade?” A palavra não é mais o bastante. 65
Italo Calvino, em seu livro Cidades Invisíveis, narra essa tentativa de
comunicação desinformativa, de relato de viagem sem fotografias ou imagens. O
viajante Marco Polo traz para o imperador Kublai Khan relatórios das cidades de
seu império, o fazendo viajar de dentro de seu próprio palácio, deslocando-se e
criando mapas66 próprios, não extensivos, mas intensivos, cartografando seu
império através de palavras estrangeiras. Certamente os relatos de Marco Polo não
são os mais exatos que o imperador ouve entre seus mensageiros e diplomatas, mas
talvez sejam eles os mais verdadeiros.
Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo
em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros
certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior
curiosidade e atenção do que a qualquer outro de seus enviados ou
exploradores. [...] Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai
Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres
destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a
ponto de evitar as mordidas dos cupins. (CALVINO, 1990, pp.9-10).
Marco Polo não descreve ao Khan as cidades que viu. Isso seria impossível.
Cada cidade é um mapa de intensidades, um campo de forças que inclui a própria
força do viajante. Os planos de imanência se sobrepõem, apesar de constituírem um
só plano. A dificuldade se encontra em afirmar a viagem sem excluir dela o viajante,
já que o objetivo de gerar um campo liso, desestruturado, é evitar a possibilidade de
um sujeito que ordena o mundo. E mais difícil ainda é conceber uma forma de
narrativa que possa dar conta dessa desestruturação da relação sujeito-objeto.
Deleuze afirma, sobre essa possibilidade, que não se trata de “contar as próprias
lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, sonhos e fantasmas. Pecar por
excesso de realidade ou de imaginação é a mesma coisa” (1997, p.12). A verdadeira

65 Sobre a frágil possibilidade da narração de uma experiência ou de experimentação da narrativa, de

problematizar um texto ou de escrever sobre um problema, cf. a dissertação de José Ricardo Pereira Santiago
Júnior, Zé, companheiro do NEFI: Filosofia com crianças: dos saberes da infância à infância dos saberes, 2013,
disponível no banco de teses e dissertações do ProPEd.
66 A noção de mapa é mais amplamente trabalhada no capítulo O (des)território da Escola-Viagem, página

115 deste livro.

148
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

narrativa de viagem é um deslocamento de si, “só começa quando nasce em nós uma
terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu”. (DELEUZE, 1997, p.13).67
Marco Polo parece fazer este tipo de narrativa de viagem. Kublai Khan a
todo momento tenta encontrar a si próprio ou ao veneziano nas histórias que ouve,
mas se surpreende com elas justamente por não poder encontrar ali esta grade que
separa ouvinte de narrador, história de viajante, cidade de sonho. Entretanto, não é
preciso deixar de ser Marco Polo para narrar. É claro que não é um desprezo por si
próprio o que defendemos com esse ensaio de uma escola imanente. A narrativa do
viajante não é um simples relato desinteressado, objetivo (pois até aí se marca a
diferença entre o sujeito e o objeto). Como é possível, portanto, uma narrativa que
não seja autobiográfica (ou autobiofonética) mas que também não exclua suas
próprias forças como agenciamentos, campos de afecção, mapas de intensidade?
Outro viajante narrador de que temos notícia é Ulisses. O encontro de
Ulisses com seu passado na terra dos Feácios68 faz com que ele compreenda que é
apenas um homem, que por outro lado vive, agora, nas bocas e ouvidos dos outros
homens, pois suas histórias são contadas pelos aedos. Ulisses, ao passar pela ilha das
sereias, amarra-se ao mastro da nau e as ouve cantar enquanto seus subalternos
remam surdos ao canto mágico (imagem que Adorno e Horkheimer utilizarão mais
tarde para pensar a relação entre trabalho, capital e arte), e não escuta delas outra
coisa senão sua própria glória, a narrativa épica do guerreiro grego. Elas cantam:
“vem aqui, decantado Ulisses, ilustre glória dos Aqueus; detém tua nau, para
escutares nossa voz [...]; depois afasta-se maravilhado e conhecedor de muitas
coisas, porque nós sabemos tudo quanto, na extensa Tróade, Argivos e Troianos
sofreram por vontade dos deuses”. (HOMERO, 2002, p.161) Ulisses ouve, de mãos e
braços atados, sua própria história, sua própria glória, traçando uma linha definitiva
entre o presente e o passado, que em qualquer outra situação separaria o homem do
mito. Mas Ulisses, através de sua astúcia, permanece no limiar, permanece em

67 Sobre a tentativa de um "se tornar o que se é", de uma subjetivação que seja potente, singular, a partir na

narrativa e cuidado de si, cf. a tese de Waldênia Leão de Carvalho, companheira do NEFI: Notas para pensar a
educação a partir de Michel Foucault: do humanismo ao cuidado de si, 2012, disponível no banco de teses e
dissertações do ProPEd.
68 Uma descrição desse encontro e a relação de Ulisses com o devir-viagem pode ser conferida no capítulo A

escola e o devir-viagem, página 41 deste livro.

149
Daniel Gaivota

transição. Os navegantes passam pela ilha então, e logo o vento volta a soprar,
retirando o barco da deriva.
O preço de ouvir este canto é a morte, na medida em que Ulisses precisa se
compreender como alguém outro, diferente daquele que guerreou em Tróia. Está
em sua jornada de volta, deixando para trás a glória da era dos heróis para se
tornar um homem do saber, da razão. A Odisséia é a última narrativa épica do povo
grego antigo. Ulisses derrota os monstros, as criaturas mágicas e as forças da
natureza usando a prudência (metis), uma inteligência ardil, uma sagacidade, mais
do que a força ou a coragem. Ao contar sua história para os Feácios, Ulisses está
entre dois mundos: o da viagem, da aventura marinha e dos perigos do mar; e o da
casa, o mundo real onde se planta o trigo e se come o pão. Sua estadia ali, onde pela
última vez é recebido e exerce sua estrangeiridade (xenia), é o ritual fúnebre do
Ulisses viajante. Ele já fora avisado por Circe que, se escutasse o canto das sereias,
sucumbiria. A melodia do canto das sereias era então a terrível experiência do fim
da viagem, do fim do trajeto – a experiência do presente em relação a seu próprio
passado. Ulisses só percebeu muito tarde que o canto de Demódoco percorria a
mesma melodia, e desta vez não havia mastro nem cera de abelhas. Ulisses
sucumbe, ouve o canto do passado e seu choro é o choro de quem se despede. É
enviado pelos feácios em um barco repleto de enfeites e víveres, onde dorme um
sono profundo e acorda em Ítaca, já um homem sedentário, com desafios e
motivações sedentárias. Alguns helenistas veem este episódio como um rito
fúnebre: morre naquele barco – no mar, como todo marinheiro há de morrer – o
Ulisses viajante.
E por isso ele conta sua história. Ulisses compreende, através do canto da
sereia, que não poderá sobreviver de outra maneira. Compreende que há um tempo
cronológico, devorador, do qual fugiu (Ulisses não parece envelhecer em toda a
narrativa) enquanto ocupava outra temporalidade, o tempo da viagem, da Aventura
e da Vertigem69. Agora precisa ocupar outra temporalidade ainda, através da
narrativa de si. Ulisses, herói da metis, é o outro polo de Aquiles: não abraçará a
morte no campo de batalha como maior glória – ao contrário, encontrará sua

69 Sobre estes conceitos, cf. capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.

150
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

própria maneira para não morrer nunca (como demonstra muito bem a imagem de
sua ida e retorno ao Hades). Então, Ulisses mente, engana, dissimula.
A narrativa poética, como a própria palavra sugere, não tinha como
parâmetro para a verdade (universal) a lógica ou a retórica, o logos como via única.
O poeta, aedo ou narrador precisava ser versado na arte de iludir, esconder e
enganar para ser capaz de traduzir a palavra das Musas, divina, de sabedoria total,
para a linguagem humana, através de memória humana. A falta que sua condição
humana causa no canto das sereias deve ser compensada por sua capacidade poética,
ou seja, criadora, construtora, inventora.
Desta ambiguidade fundamental extraem-se duas conclusões. Por
um lado, o “Mestre da verdade” é também um mestre do engodo;
possuir a verdade é ser também capaz de enganar. Por outro lado,
as potências antitéticas Alétheia e Lethe não são contraditórias no
pensamento mítico, os contrários são complementares.
(DETIENNE, 1988, p.43).
Tanto o esquecimento, Lethe (que significa também véu, fazendo do objeto
esquecido, para o grego, algo velado, oculto) quanto a verdade, Alétheia (que
portanto tem o sentido de um desvelar, de um descobrir, mostrar) estão presentes
no ofício do poeta e do narrador. É preciso saber ocultar para dizer a verdade, e é
preciso inventar uma verdade para ocultar. Ulisses é um mestre do engodo, se
observarmos suas façanhas na Odisséia: conta histórias a Calipso e Circe; inventa
um personagem para si (um mendigo estrangeiro) e uma história semelhante à sua
própria, mas fictícia, para apresentar-se em Ítaca para o porqueiro Eumeu; oculta
sua identidade a Alcino e Arete, rei e rainha da Feácia; e claro, conta sua história
longamente a Penélope em sua primeira noite juntos. Ulisses conta histórias sobre o
que não viu e o que não é. Sempre que conta sua origem, modifica um pouco a
história. Narrar a mesma história sempre outra vez é dar a ela um outro caráter de
verdade, uma outra espécie de verdade. É sempre re-tornar. Ulisses só pode ser
verdadeiro, só pode falar de si com fidelidade a partir da mentira, do oculto, ao
“enredar” o ouvinte. Ser verdadeiro aí significa ser sempre outro, de certa maneira.
É assim que, ao enganar Polifemo, o cíclope, ele se apresenta como “Ninguém”
(Outis). Ulisses torna-se “ninguém” ao devir-outro. Se desterritorializa em sua
narração, pois fala de um “outro si”, mas é aí que se reterritorializa como narrador.

151
Daniel Gaivota

Ulisses é o intermediário por excelência. Em sua viagem, faz a


ponte entre o grego e o não-grego, entre o humano e o não-
humano, entre o vivo e o não-vivo. Nos encontros com esses
grandes “outros” (os estrangeiros, os monstros, os deuses, os
mortos – também a natureza e o feminino), Ulisses experimenta o
limite de tais identidades, o meio entre o próprio e o outro. Sua
experiência do “meio” ou do “entre”, que pode ser dita pelo prefixo
grego “metá”, é ilustrada por sua capacidade de “meta-morfose” e
tem como resultado o movimento “meta-linguístico” com o qual
Homero faz de seu herói também narrador, numa “autorreflexão
poética”. (OLIVEIRA, 2015, p.55).
Assim, é possível, apesar do que Deleuze atesta sobre a literatura e a
impossibilidade do Eu, pensar em um tipo de narrativa que seja capaz de algum tipo
de individuação que não seja subjetiva. Ou, em outras palavras: é possível uma
narrativa de si que não seja uma narrativa do “eu”. Ao narrarem suas aventuras,
Marco Polo e Ulisses não estão a afirmar um eu estável, a garantir que se conheça o
homem por trás da história – pois nem mesmo admitem ser verdade o que dizem. A
narrativa de viagem, ao contrário da narrativa histórica e da autobiográfica, não
tem como mote a veracidade ou a demonstração, muito menos ainda a informação:
são narrativas sobre um eu-outro, que fazem daquele que as escuta também um
outro de si. São des-locamentos.
Eu falo, falo – diz Marco –, mas quem me ouve retém somente as
palavras que deseja. Uma é a descrição do mundo à qual você
empresta a sua bondosa atenção, outra é a que correrá os
campanários de descarregadores e gondoleiros às margens do canal
diante da minha casa no dia do meu retorno, outra ainda a que
poderia ditar em idade avançada se fosse aprisionado por piratas
genoveses e colocado aos ferros na mesma cela de um escriba de
romances de aventuras. Quem comanda a narração não é a voz: é o
ouvido. (CALVINO, 1990, p.123).



Mas o que é preciso para narrar? Ou, dito de outra maneira: se as pessoas
hoje viajam mais que no passado, por que a narrativa de viagem é um gênero em
extinção? A fotografia certamente é uma invenção que colaborou muito para esta
crise, na medida em que ela contribui, como afirma Benjamin (1994), para uma crise
da experiência. O autor atribui à invenção da reprodução técnica e maquínica – em
especial a invenção da fotografia e do cinema – a crise da experiência e da obra de

152
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

arte. Segundo ele, a autenticidade, o aqui e agora, espontâneo, a autoridade da obra


se perde ao ser reproduzida tecnicamente. Ou seja, substitui a existência única da
coisa por uma existência serial, repetida. “Fazer as coisas ‘ficarem mais próximas’ é
uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a
superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade”
(BENJAMIN, 1994, p. 170). A fotografia parece, portanto, uma tentativa de
aproximar aquilo que está distante, que está fora. Nesse sentido apontado por
Benjamin, fotografar exerce o vetor oposto ao da viagem e da educação, que, ao
contrário, “levam para fora”. A fotografia vista por este ângulo (com o perdão do
trocadilho) parece tentar fazer do objeto fotografado outrem, inseri-lo como
alteridade dentro de um campo perceptivo que é, no fim das contas completamente
subjetivo70. Assim, parece evidente que ela precise ser explicada, ou seja, que precise
ser desdobrada (ex-plicare – “dobrar para fora”), pois só faz sentido através de uma
subjetividade que a defina, que a complete. O interlocutor da fotografia (deste tipo
especialmente turístico de fotografia, que parece ser também o objeto de análise de
Benjamin) precisa, portanto, ser guiado, precisa ser introduzido para que a foto faça
sentido. “As revistas ilustradas começam a mostrar-lhe indicadores de caminhos –
verdadeiros ou falsos, não importa. Nas revistas, as legendas explicativas se tornam
pela primeira vez obrigatórias”. (BENJAMIN, 1994, p.175).
Evidentemente o que está em jogo não é uma acusação da fotografia, nem a
diminuição de sua importância ou sua expulsão da República por seu caráter
mimético. Há fotografias que afirmam deslocamentos intensos e que podem ser
verdadeiras rupturas estéticas, de modo que não se exclui a possibilidade de um
viajante fotógrafo. Talvez o que este viajante buscasse, entretanto, seria menos
grafar a luz, o aparente, aquilo que se mostra, que o obscuro, o velado, o segredo.
Talvez possa haver uma espécie de viajante escurógrafo, em oposição a um turista
fotógrafo71.

70 Essa discussão sobre o Outrem é mais aprofundada no capítulo Poética do deslocamento, página 61
deste livro.
71 A discussão sobre a fotografia é intencionalmente abordada aqui de maneira pouco profunda. Seu

aprofundamento seria interessante, mas faria necessário um texto maior, talvez um capítulo próprio. Ela
aparece simplesmente em contraste com as formas narrativas verificadoras e enredantes, próprias do viajante
e pertinentes para se pensar a Escola-Viagem.

153
Daniel Gaivota

Mas a narrativa (escurógrafa ou escurófona) de viagem, que perseguimos


para tentar compreender que tipo de palavra queremos que esteja presente na
Escola-Viagem, parece estar muito mais presente em Ulisses ou em Marco Polo.
Segundo Benjamin, a figura do narrador pode ser considerada como uma
interpenetração de dois tipos arcaicos: o que vem de um lugar distante, e por isso
tem muito a contar, e o que vem de uma época distante, e também por isso tem
muito a contar. O narrador encontra-se numa dupla distância espacial e temporal, e
essa distância parece dar-lhe os atributos necessários para contar histórias. Assim,
as figuras do camponês sedentário e do marinheiro comerciante encontram-se, e
num mapa no seio de um rizoma, como vespa e flor, estrangeiros entre si, e geram a
possibilidade de uma história que seja acontecimento72.
O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa
interpenetração. O mestre sedentário e os aprendizes migrantes
trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um
aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pátria ou no
estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros
mestres da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram.
No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes,
trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado,
recolhido pelo trabalhador sedentário. (BENJAMIN, 1994, p.199).
Desta maneira, a narrativa tem sempre a ver com um saber que, por vir de
longe, não pode ser imediatamente verificável. É por sua condição de estrangeiro
que Ulisses pode inventar histórias sobre si, e com elas enredar (que é uma palavra
potente para um marinheiro) seus ouvintes. É por vir de longas viagens que Marco
Polo pode falar das cidades que visita sem precisar prová-las, verificá-las. Talvez aí
esteja o problema da narrativa de viagem acompanhada pela fotografia: a fotografia
traz o objeto da narrativa para perto (ou pretende), retirando a possibilidade poética
da narração. O saber de longe, do fora, dispunha de uma autoridade, mesmo que
recorresse ao fantástico e ao inverossímil para dizer. Por outro lado, uma outra
forma de comunicação mais recente, inventada e consolidada com a invenção da
imprensa pela burguesia europeia no alto capitalismo, ameaça essa autoridade do
fora: a informação.

72 Cf. capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro, sobre esse conceito em Deleuze.

154
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

A informação sobre o que acontece na proximidade hoje recebe muito mais


escuta que a narrativa do que acontece longe. A informação nem sempre é mais
exata ou verdadeira que os relatos de viagem, mas diferente deles, ela é
necessariamente compreensível, plausível, clara e tem validação imediata. A
informação e a narrativa são incompatíveis, opõem-se, anulam-se. Se buscamos uma
causa para o desaparecimento do relato de viagem como gênero narrativo, o
crescente valor da informação (especialmente na escola) é um fator importante.
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto,
somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos
já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras:
quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase
tudo está a serviço da informação. (BENJAMIN, 1994, p.203).
A crise da narrativa e da experiência em relação à informação pode ter
relação com uma outra ainda: a crise da escuta. A crise da escuta nada (ou quase
nada) tem a ver com a rapidez ou a lentidão, como aponta Larrosa (2014), e é um
equívoco considerar que, quando Benjamin sugere que o fim do dom de ouvir
advém do desaparecimento do tédio nas grandes cidades, ele corrobora uma
apologia da lentidão. O tédio nada tem a ver com a lentidão, mas com a condição
necessária para o surgimento da vertigem73. Como diz Benjamin, “o tédio é o
pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens
o assusta” (BENJAMIN, 1994, p.204). Nem toda vertigem é a ruptura do tédio, mas
todo tédio é o ninho de uma vertigem virtual. Por outro lado, é possível entediar-se
a duzentos quilômetros por hora – a velocidade extensiva é muito pouco relevante
para a experiência e o acontecimento. A crise da escuta tem sim a ver com uma
incapacidade de atenção, causada por diversos fatores entre os quais a falta de
vertigem e o excesso de informação tomam parte.
A atenção tem a ver com o tempo, é claro, mas muito mais com uma
dimensão intensiva do tempo, com um descolar-se da cronologia. É por isso que
Penélope fia, tece. Em sua espera, ela precisa desconectar-se do tempo cronológico,
ocupar um tempo suspenso. É nesse tempo que se situa a narrativa de viagem – ou
pelo menos é para este ponto que ela transporta. Mas Penélope não só tece, como a

73 Esta contraposição à dupla rapidez-lentidão em prol de uma velocidade vertiginosa pode ser encontrada no

capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.

155
Daniel Gaivota

cada noite desfaz sua tessitura, desemaranha os fios, assim como Ulisses, do outro
lado do mar, fia e desfia suas histórias. Nenhuma tapeçaria de Penélope é a
verdadeira, a última, a definitiva. Os dois amantes afinal têm o mesmo ofício: fiar
mentiras, tecer a rede que enreda, inventar uma malha de linhas sem começo ou fim
– ou com diversos fins e começos.
Outro exemplo de narrativa como suspensão do tempo cronológico e de
mulher que fia é a história das Mil e Uma Noites. Depois de uma traição de sua
mulher, o rei Shariar da Pérsia decide que nenhuma mulher é digna de sua
confiança, passando a trazer a cada noite uma virgem ao palácio e executando-a no
dia seguinte. Passados muitos anos e execuções, uma jovem, Sheherazade (nome que
provavelmente é formado pelos elementos persas ‫[ شهر‬shahr] – cidade; e ‫[ آزاد‬azad]
– livre, ou seja, a libertadora da cidade), se oferece para ser entregue ao rei, mas
pede que sua irmã, Duniazade (provavelmente derivando de ‫[ ُد ْن َيا‬dunya] – aquilo que
está próximo; e ‫[ آزاد‬azad] – livre; ou seja, aquela que garante a liberdade da irmã), vá
visita-la para se despedir e que peça para a irmã contar uma história. Duniazade o
faz, e Shariar permite. Assim, Sheherazade começa a contar uma história sobre um
mercador e um gênio e o rei acaba se interessando, de modo que, mesmo após
Duniazade adormecer74, continua a narrar. A história se estende ao longo da noite e
pela manhã ainda não terminou, de modo que Shariar adia a execução de
Sheherazade para escutar o final da narrativa. Na noite seguinte, a história termina,
mas acaba por iniciar outra, ainda mais interessante, que adia por mais um dia a
execução. Assim, por mil e uma noites, Sheherazade suspende o tempo, fia e desfia,
tece um engodo e enreda o rei.
A narrativa é um trabalho, como o tear, de artesão. Ela foi aperfeiçoada nas
oficinas dos artífices, como não poderia deixar de ser, e, portanto, configura uma
atividade poética, ou antes, de poiesis. Ela é uma forma de comunicação artesanal;
“não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma
informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele” (BENJAMIN, 1994, p.205). Ou seja, algo do narrador

74 Esta imagem aproxima a narração de Sheherazade do sonho, ou seja, da possibilidade de construção de

mundos através da lógica onírica, noturna, e não de adequação, diurna. Sobre o sonho, cf. capítulo
Onirodinia e relato, página 169 deste livro.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

permanece na história narrada, como uma impressão digital numa escultura de


barro, mas a história nunca é sobre o narrador. O relato de viagem pode dizer algo
sobre o viajante que o narra, mas ele independe da subjetividade que o enuncia, pois
a ignora. Até porque a condição primeira da narrativa é poder ser intercambiada,
trocada – “contar histórias sempre foi a arte de conta-las de novo” (BENJAMIN,
1994, p.205) –, como na cidade de Eufêmia, apresentada por Marco Polo a Kublai
Khan. Em Eufêmia (cujo nome significa, numa tradução livre, “pronuncia de boas
palavras”), a cada solstício e equinócio os mercadores de todas as nações se reúnem
para comprar, vender e trocar mercadorias de suas pátrias. Durante o dia pode-se
passear entre milhares de produtos vindos de todos os lugares. Mas não é
exatamente por isso que os mercadores se encontram ali...
[...] à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados
em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada
palavra que se diz – como ‘lobo’, ‘irmã’, ‘tesouro escondido’,
‘batalha’, ‘sarna’, ‘amantes’ – os outros contam uma história de
lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E
sabem que na longa viagem de retorno [...] o lobo terá se
transformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a
batalha em outras batalhas (CALVINO, 1990, pp.38-39).
O viajante narrador é, portanto, um fundador de Eufêmias. A cada história, a
cada narrativa que conta, ocupa com seus interlocutores um espaço de troca de
experiências. Não é possível dizer como é um lobo, uma batalha ou uma cidade – e
Marco Polo o compreendeu cedo, por ser um viajante verdadeiro –, mas é possível
criar uma história, tecer uma trama cujos fios possam ser desfeitos e fiados
novamente depois, talvez com um desenho diferente, mas segundo outros campos
de força, outros agenciamentos, outras intensidades. E novamente se trocarão os
lobos, irmãs e batalhas, a cada vez que a história for contada. Sempre, e a cada vez
que uma história de viagem for narrada nessas múltiplas Eufêmias, partirão os
mercadores em direções diversas, com suas mercadorias e memórias trocadas.



Simón Rodríguez, professor, viajante, militante republicano e defensor da


educação popular nas Américas, além de tutor, parceiro de viagem e companheiro

157
Daniel Gaivota

político de Bolívar, repete algumas vezes, ao fazer sua retrospectiva pessoal, a


sentença – que poderíamos dizer que é quase uma sentença de morte – “as crianças
e os loucos dizem a verdade”. O faz na medida em que afirma ter sido considerado
louco por ter investido em seus ideais, por ter trabalhado toda uma vida para
construir uma escola realmente pública e revolucionária, ou seja, para todos
(KOHAN, 2016, p.89). A frase diz mais do que parece, entretanto. Ao atribuir a
verdade à palavra dos loucos e das crianças, Rodríguez afirma automaticamente que
a verdade é algo que não quer ser ouvido, que a verdade está velada, coberta por um
véu, e que é preciso retirar esse véu para observá-la – ou seja, a verdade como
Alétheia. Isto significa que, neste sentido, só há verdade, portanto, quando esta é
desvelada, descoberta.
É preciso descobrir a verdade, e isso pode ser feito pelas crianças e pelos
loucos, porque demanda coragem. Demanda coragem porque não é uma tarefa
casual. Descobrir a verdade tem a ver com ignorar uma série de pressupostos,
confrontar uma (ou várias) estrutura(s), colocar seu próprio conhecimento em jogo.
Descobrir a verdade não tem aqui, para Simón Rodríguez, o mesmo significado que
tem para Sócrates – ou pelo menos para o Sócrates platônico –; não se trata de
encontrar uma verdade que está escondida em algum lugar, como se pudéssemos
fazer dela um mapa extensivo, escrever como acha-la, desenhar sua localização.
Trata-se de extrair a verdade de um amálgama de relações e estruturas de poder
que a estabelecem. “Descobrir” a verdade, pensando em Simón Rodríguez, precisa
ter a ver com uma independência da verdade, com uma retirada da verdade do
domínio dos adultos e dos “normais” – pois essa verdade só interessa a poucos, é
uma verdade que separa e gera desigualdade. Trata-se de alcançar uma nova
verdade, que interesse a muitos, a todos, e para alcançar uma verdade nova é
preciso, como fazem as crianças e os loucos, inventá-la.
Esse Simón Rodríguez foucaultiano que evocamos tem, sim, semelhanças
com um Sócrates também inventado por Foucault, na medida em que também
pratica uma coragem da verdade. Foucault apresenta em seu último curso no Collège
de France (em 1983-1984), A Coragem da Verdade – O Governo de si e dos outros II, o
conceito de cuidado de si, que já vem trabalhando durante vários anos em cursos

158
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

anteriores. Trata-se de um conjunto de práticas através das quais o sujeito se


constitui como autor de si próprio, autônomo, sujeito de suas ações sem a
necessidade da interferência de códigos. É reconhecer as forças que o atravessam,
que o perpassam, mas também sua própria vontade de potência, de modo a optar
pelas forças que movimentam, não pelas que estabilizam.
Assim, é possível um pensamento de si que não se restrinja a uma primazia
do “eu”. Entender-se como uma força que atua num campo, horizontalmente, com
todos os vetores difusos, simultaneamente, reconhecer e se permitir ser atravessado
pelos devires não é um esquecimento de si, mas uma outra percepção da realidade
que impossibilita e anula o papel do ego ordenador.
Este sujeito que Foucault aponta como autor de si não se torna
necessariamente responsável pelo outro, mas passa a ter condições de auxiliá-lo a
alcançar sua autonomia também. E parece que quando Rodríguez fala de um
professor que é inventor, que inventa uma verdade – nesse sentido tornando-a
independente de uma ordem de poder vigente e opressora, que funciona através de
grandes estruturas e de dispositivos de poder75 –, coloca em prática aquele cuidado
de si e dos outros que Foucault aponta séculos mais tarde.
Sendo assim, precisamos voltar à sentença “As crianças e os loucos dizem a
verdade” para compreender uma coisa importante: ela equipara, ao menos em
algum sentido, a criança e o louco, a infância e a loucura. Para Foucault, a loucura
também tem a ver com a verdade, com o lugar de poder que o discurso adequado,
domesticado, ortopédico ocupa dentro de uma instituição. O louco é o não
adequado, aquele que não passa pelos crivos construídos pelas instituições para
garantir a manutenção de suas estruturas e por isso é abrigado em uma instituição
específica. Existe uma espécie de vontade de verdade que perpassa os discursos e as
práticas, ou seja, uma necessidade de ser considerado normal, adequado, de ter
poder de ser ouvido. A figura do louco76 é o que está fora, o outsider, o emudecido. O

75 Sobre os dispositivos em Foucault, Deleuze e as formas de “desembolar” suas linhas de força, cf. capítulo O
(des)território da Escola-Viagem, página 91 deste livro.
76 O louco é a figura principal na discussão sobre começos e partidas no interlúdio O Louco, página 191

deste livro.

159
Daniel Gaivota

que o interlocutor do louco não pode perceber com clareza nesta relação é que não é
o outro que é mudo: ele próprio é que está ensurdecido.
Para assinalar simplesmente não o próprio mecanismo da relação
entre poder, direito e verdade, mas a intensidade da relação e sua
constância, digamos isto: somos forçados a produzir a verdade pelo
poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar,
temos de dizer a verdade, somos coagidos, somos condenados a
confessar a verdade ou encontrá-la. (FOUCAULT, 1999, p.29).
A partir dessas afirmações de Foucault, Simón Rodríguez não poderia ser
levado a sério, pois o que diz ameaça a estrutura que o poderia legitimar. Rodríguez
parece concordar, quando afirma portanto que os loucos dizem a verdade.
Mas ele diz, ainda, que não só os loucos a afirmam, mas também as crianças.
As crianças não parecem representar uma ameaça tão grande às estruturas a que
estão inseridas, mas quando Rodríguez expressa essa sentença, ele coloca as
crianças e os loucos no mesmo patamar político. Afirma a igualdade entre essas
partes. Se já assumimos que o louco é o próprio Simón Rodríguez, poderíamos dizer
que a sentença exprime uma relação de igualdade na escola. O mestre e os alunos
são aqueles que dizem a verdade, que são capazes de escapar das estruturas que
aprisionam o pensamento e o corpo humanos. Que são capazes, portanto, de ignorar
as verdades já existentes e abrir espaço para que se crie uma nova, para que se a
invente.
Neste sentido, o mestre inventor de Simón Rodríguez é também um mestre
ignorante, à maneira de Rancière. Só é possível ao mestre e aos alunos, ao louco e às
crianças, inventar a verdade para enfim dizê-la se puderem ignorar ou derrubar
estruturas, se puderem se tornar independentes. Isto reafirma a necessidade da
igualdade na escola popular de Rodríguez. Se não há a igualdade, isso significa que
uma das partes não ignora – no sentido que Jacques Rancière traz para essa palavra
com seu Mestre Ignorante – as estruturas de poder que impedem a independência,
o cuidado de si, que impedem o caráter público da escola. Inventar uma escola
torna-se possível se ignorarmos essas estruturas, se a tornarmos um espaço liso77,
se apagarmos as linhas que estabelecem os limites. É preciso se tornar louco ou
criança (talvez as duas coisas) para inventar a verdade. As crianças e os loucos

77 Cf. capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste livro.

160
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

dizem a verdade, afirma Simón Rodríguez, sentindo-se criança, admitindo-se louco,


sonhando com uma escola – nesse sentido muito especial – verdadeira. A escola
verdadeira, então, é aquela habitada por crianças e loucos78.
Para fazer isto, entretanto, para inventar esta escola, é preciso encontrar uma
maneira de enunciar, uma forma narrativa que não esteja presa a esta estrutura de
poder e discurso, um outro modo de verdade que seja mais louco, mais infantil, mais
próximo da narrativa que Ulisses faz de si e que Marco Polo faz do mundo. A
narrativa e a verdade na Escola-Viagem precisam ser mais próximas ao relato de
viagem, portanto, o que significa uma narrativa poética. Poética, pois é sempre uma
invenção. A fórmula para produzir verdades não está em Aristóteles, mas em
Manoel de Barros: “tudo que não invento é falso”.
Uma in-venção, ou seja, aquilo que vem (venire) para dentro (in) não deve ser
confundida com uma in-formação. Algo in-ventado, ou seja, que vem de fora, é fruto
de uma abertura do eu, do sujeito, para os vetores do fora. Inventar é estar atento e
aberto ao mundo, e permitir que suas forças e vetores se lhe invadam. É se permitir
ser contagiado, deixar que algo externo se prolifere, avance pelas bordas de nosso
território. É devir. E a poesia tem sempre a ver com um devir-criança ou com um
devir-louco. O próprio Manoel de Barros afirma (entre muitas outras relações da
poesia com a infância), que a “poesia é a loucura das palavras” (BARROS, 2001,
p.26).
A poesia aparece no poeta mato-grossense como uma forma de infantilizar o
mundo, destituí-lo da ordem criada pela adultez e, mais que tudo, criar outros
mundos dentro do Mundo. Tocar o impossível, carregar água em uma peneira.
Mesmo que os adultos afirmem nela um despropósito. Aliás, isto a torna ainda mais
própria a enfrentar uma noção de verdade pautada no poder: zomba dela. A poesia é
uma risada, um descabimento, a possibilidade de libertar a palavra da linguagem e
criar outra língua, intensiva, aberta, nômade. É através dessa outra língua dentro

78 Sobre a relação da infância e da possibilidade de uma escola de educação realmente infantil com a invenção

de mundos, cf. a dissertação de Alessandra de Barros Piedras Lopes, Ale, companheira do NEFI: Habitar o
presente, fazer um mundo: movimentos de crianças e adultos em uma escola de educação infantil, 2015, disponível no
banco de teses e dissertações do ProPEd.

161
Daniel Gaivota

da língua que é possível ao mesmo tempo falar de si sem recorrer ao “eu”. Mas para
isso é preciso des-locar, mover-se, brincar.
A narrativa da Escola-Viagem é, afinal, um brinquedo. Entender que os
conceitos de narrativa e verdade desta escola viajante tenham a ver com os relatos
de viagem significa compreender que ela não está preocupada com uma
verossimilitude ou com a veracidade das informações proferidas; antes, preocupa-se
com uma palavra capaz de mover. Não com o uso prático da palavra, com a
ferramentalização do discurso ou da enunciação, mas com sua libertação, com o uso
livre do verbo para recriar-se a si, ao outro e ao mundo. Como brinquedo. É ao
deformar a língua, ao brincar com ela que se pode criar. Enquanto a narrativa for da
ordem do útil, uma ferramenta (como é o caso da narrativa histórica), as palavras
não aprenderão a dançar nem a viajar. “O poema é antes de tudo um inutensílio”
(BARROS, 2016, p.31), brinca Manoel de Barros.
Temos agora condições de nos confrontar com a quarta afirmação de
Deleuze sobre a viagem, apoiada em Proust:
Então, que razão poderá em última instância haver, se não for a de
verificar, de ir verificar alguma coisa, alguma coisa de inexprimível
que vem da alma, de um sonho ou de um pesadelo, que mais não
seja saber se os chineses são tão amarelos como se diz, ou se certa
cor improvável, um raio verde, certa atmosfera azulada e purpúrea,
existe de facto algures, lá longe. O verdadeiro sonhador, dizia
Proust, é o que vai verificar alguma coisa. (DELEUZE, 1996,
p.100).
Deleuze rechaça três justificativas para a viagem: a de que se viaja em busca
de uma “ruptura”, que não acontece enquanto levarmos nossa Bíblia, recordações de
infância e nosso hábito; a de que se viaja em busca de se tornar nômade; a de que se
viaja por prazer79. Em grande parte, são estas três falsas crenças que geram os
temores e os ataques das instituições e dispositivos à escola – e, em certa medida, à
viagem. O medo de que a escola cause uma ruptura à organização estabelecida, de
que ela desestruture as ordens de poder vigentes e as hierarquias é a causa da
maioria das tentativas de domar a escola. Mas a escola não causará uma verdadeira
ruptura enquanto permanecer como decalque do Estado, enquanto reprodução de

79 Estas afirmações são confrontadas, respectivamente, nos capítulos Poética do deslocamento, O


(des)território da Escola-Viagem e A escola e o devir-viagem, sequencialmente nas páginas 61, 115 e 41
deste livro.

162
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

um aparelho de controle, sujeição e subjetivação. A verdadeira ruptura, entretanto,


é quando a escola devém-ilha, quando o barco naufraga e a tripulação é convertida
em uma vara de porcos ou bodes, e o viajante náufrago, mesmo que tente agarrar-se
aos hábitos e as bíblias, pouco a pouco se torna mais parecido com Sexta-feira que
com Robinson Crusoé. É ao abandonar seus arreios que uma verdadeira ruptura
pode acontecer, que se passa a poder se relacionar com o mundo não como parte de
uma estrutura particular, mas pública, outra, como um lado de fora selvagem e
intenso.
Mas para isso, é preciso ocupar as bordas de seu território, e aí encontramos
o segundo medo: o medo de que, nessa busca por um ideal nômade, nessa errância,
andança, se torne um vagabundo, um eterno andarilho. Este medo é também
injustificado, na medida em que o nomadismo não é um deslocamento de abandono,
mas pelo contrário, um deslocamento que tem por objetivo permanecer no ambiente
hostil (palavra que compartilha origens com “hospitalidade”80); o nômade move-se
para poder permanecer. Por isso, o nomadismo nada tem a ver com abandonar o
território, mas sim com tornar território o próprio deslocamento – assim
territorializando-se no caminho. O que o nômade desterritorializa? O próprio
caminho, a própria terra. O nomadismo é, portanto, mais um des-locamento do
mundo que de si.
E para isso, é preciso compreender que o caminho não tem a ver com a
satisfação pessoal, portanto, e também não a escola. As tentativas de tornar o
ambiente escolar “prazeroso” ou “lúdico” não têm a ver com um movimento de
diferença, ruptura e pensamento, e compartilham dessa mesma ressalva deleuziana
sobre as viagens e o prazer. Enquanto o prazer for a justificativa da permanência,
será preferível a dor. Mas o prazer pode ser objeto de estranhamento, de
movimento. É possível surpreender-se com o prazer, e assim deixar de confundi-lo
com o desejo, o tornando em contrapartida parte de uma exploração do mundo que
nos surpreende sempre, como a tangerina aberta pela criança, como os doces
gregos sem nome: um prazer que seja não uma sensação subjetiva, mas uma força
de fora, que nos força sempre a pensar.

80 Cf. capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste livro.

163
Daniel Gaivota

Contudo, os temores sobre a escola (e a viagem) se esquecem da quarta


justificativa – justamente a mais perigosa delas. Deleuze afirma, com Proust, que a
viagem só pode então ter como justificativa a de verificar. Concordamos com o
filósofo, na medida em que o que a escola faz, a todo momento, é uma poética da
narrativa. O que, pouco a pouco, se constrói em uma escola que devém-viagem é a
percepção de que as verdadeiras histórias nada têm a ver com a veracidade dos fatos
ou com um acúmulo de informação. Na Escola-Viagem a informação assume um
lugar pouquíssimo importante, visto que ela é imóvel, estável, petrifica e imobiliza
tudo o que toca. As descrições dos viajantes progressivamente passam a se esvaziar
do que se supõe que deveriam informar e a se permear por um invisível, um
inaudível concreto, passam a transmitir vazios.
O que Kublai considerava valioso em todos os fatos e notícias
referidos por seu inarticulado informante era o espaço que restava
em torno deles, um vazio não preenchido por palavras. As
descrições das cidades visitadas por Marco Polo tinham esse dom:
era possível percorrê-las com o pensamento, era possível se perder,
parar para tomar ar fresco ou ir embora rapidamente. (CALVINO,
1990, p.41).
O viajante que ocupa o deserto da Escola-Viagem passa a ser capaz de
perceber que a verdade, como a concebemos tradicionalmente, é uma estrutura de
poder, uma arbitrariedade, uma ferramenta de controle e exclusão. E que aquelas
narrativas que se pretendem verossímeis estão inevitavelmente presas aos fios que
manipulam as marionetes – e não aos que tecem os véus. “Porque sólo existe la
verdad al margen de toda forma de poder” (SERRES, 1995, p.170). Assim, o
viajante começa, como Ulisses, Marco Polo, Simón Rodríguez e todas as crianças, a
narrar. Torna-se um narrador, o que significa que aprende a administrar o oculto,
os segredos, o claro e o escuro, ocupa a borda que divide e torna indistinguíveis
Lethe e Alétheia, aprende a dançar a dança dos véus, assim como Sheherazade
quando conta suas histórias. Descobre (a-lethe) como inventar (in-ventus), ou seja,
como escapar das estruturas que o obrigam a dizer a verdade e, finalmente, a criar
verdades. Tornar as coisas, enfim, verificáveis, como queria Deleuze.
Verificar, e não atestar, é o objetivo do viajante narrador. Não verificar no
sentido de supervisionar, mas pelo contrário, subvisionar, intervisionar ou
extravisionar: facere verus, veri-ficar, tornar verdadeiro, real. Só é possível tornar

164
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

real algo que se inventa, só é possível fazer ser o que ainda não é. O material do
narrador viajante é o não-ser, o outro, o fora. A verdade não existe como um outro
plano que dá condição de existência para as coisas: a verdade é sempre uma
invenção, ininterruptamente narrativa. Marco Polo, Sheherazade e Ulisses nada
mais fazem do que criar mundos navegáveis, mesmo que sem qualquer movimento
extensivo. E pouco mais interessa à Escola-Viagem que isto: tecer histórias, fiar
saberes, inventar cidades. A Escola-Viagem, portanto, é uma oficina, um lugar de
formação de artesãos. Mais: de marinheiros, camponeses, mensageiros, mercadores,
exploradores, estalajadeiros, desenhistas, costureiros, pescadores, cartógrafos,
observadores de pássaros. Todos artífices de palavras inverossímeis, mas
arrebatadoramente verdadeiras.

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ONIRODINIA E RELATO
(OU SOBRE AS VOZES, SONHOS
E O PERIGO DO OUTRO)

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ONIRODINIA E RELATO
(OU SOBRE AS VOZES, SONHOS E O PERIGO DO OUTRO)

[...] a diferença está no que colocamos para fora, visto que o sabor que
nos foi sugerido passou pelo nosso saber ao encontrar-se com cada uma
de nossas singulares bocas. A escola, por sua vez, é o garfo. A ferramenta,
meio ou lugar para fazer a viagem acontecer. Um porto-inseguro. O
oposto de um porto: a nave.81

A última prova a que se submete a Escola-Viagem nesta pequena jornada


que iniciamos é a mais antiga, aquela prova pela qual toda escola tem passado ao
longo de todos os deslocamentos e paradas através dos séculos – e pela qual
provavel e desejavelmente continuará passando ao longo de sua existência, pois é da
natureza da escola se expor, correr perigo, e é daí, paradoxalmente, que ela retira
sua maior potência –, uma pergunta que nos coloca à deriva: É mesmo a escola
necessária? Não são poucos os movimentos de desescolarização da sociedade nas
últimas décadas, o que evidencia que essa pergunta se tem feito cada vez mais
poderosa – e é preciso saber perguntá-la para pensar a educação. Por que precisamos
da escola?
A outra pergunta (uma pergunta-outra) que ainda precisa ser feita antes do
final desta caminhada, enquanto ainda nos encontramos em deslocamento, é talvez
a derradeira para compreendermos a possibilidade da Escola-Viagem que tentamos
defender através desse texto: É possível aprender a ser estrangeiro? Tudo o que viemos
dizendo aponta a possibilidade de uma poética do deslocamento, de uma criação de
alteridade, de geração de vertigem, de uma produção de pensamento como mapa de
intensidades, de uma narrativa que seja uma invenção. Mas é realmente possível, na
escola, inventar esse plano imanente onde os alunos e os professores se sintam

81 Fragmento de um texto produzido coletivamente, a quarenta e seis mãos, como exercício de pensamento
durante uma viagem para a Olimpíada de Filosofia do Rio de Janeiro, em 2016. A Olimpíada de Filosofia é
um evento que acontece em âmbito estadual e latino-americano e reúne jovens estudantes, não para competir,
mas para trocar experiências de pensamento e refletir sobre questões e vivências propostas. É organizada de
forma coletiva, embora no Rio de Janeiro seja encabeçada pela amiga e colega Lara Sayão. O nosso grupo em
2016 era formado por 20 alunos e mais três pessoas (professor, oficineira, monitora), comportando assim
muita diferença e muita intensidade.

169
Daniel Gaivota

viajando e se relacionem com o mundo da mesma maneira que em um deslocamento


nômade? Nosso território desterritorializante é a escola, e se é ela nossa Ítaca é
importante a ela retornar, encontrar um novo solo nativo de onde se possa
recomeçar a errar. Assim, é preciso se pôr a escuta, ouvir a escola, como se ouve a
um viajante numa noite de inverno.
Essas duas perguntas foram feitas82 a muitos alunos, de diversas idades, de
diversas escolas, todos meus alunos (ou talvez eu tenha sido professor deles – ou
talvez sejamos só alunos e professores, sem os possessivos). É através da escuta
deles, dos viajantes que a escola supostamente forma, que nesse vetor de retorno
encontro e faço o que sempre fiz: pergunto. Estabeleço um vetor contrário, uma
força oposta, violenta, mas não agressiva. É esse mesmo o papel do professor?
Violentar? Como é possível violentar sem agredir? Ou o perguntar é uma forma de
violentar-se? Talvez perguntar isso seja o mesmo que perguntar por que
precisamos da escola ou se é possível aprender a ser estrangeiro. Hugo, ao ler as
questões, afirma, sobre elas: “acho que pra tentar responder essas perguntas é preciso
viajar“. Por isto elas estão aqui, para que façam o leitor deste texto viajar de carona.
Para que possa caminhar sobre as linhas de força que se desprendem de uma escola
real, que tenta viajar. Se cada capítulo deste texto caminhou sobre os rastros de
alguns autores e conceitos, neste exerceremos uma poética da autoria. Uma das
possíveis origens da palavra autor vem de um verbo em latim que quer dizer
“aumentar”, “fazer crescer”. E são aqueles viajantes que habitam a escola as pessoas
que fazem crescer, que aumentam, fazem com que se alastre, avance pelos lados de
uma escola maior, que fazem proliferar tanto a própria viagem quanto seus
companheiros de caminhada numa escola menor.
Sobre a caminhada e a autoria, Masschelein e Simons (2014) afirmam que a
caminhada desloca o olhar, o que não é o mesmo que permitir ou dar novas
perspectivas. Uma perspectiva é sempre uma subjetivação, uma posição de um

82 As entrevistas foram feitas por texto, via internet, de forma desestruturada e potente. A partir destas
duas perguntas (“É possível aprender a ser estrangeiro?” e “Por que a escola deve existir?”) e de suas respostas, o
diálogo prosseguia (ou não) com outras (na maioria das vezes geradas pelos alunos, não por mim!), para
direções difusas. 58 alunos foram entrevistados e autorizaram a utilização de seus textos e nomes. Ainda
assim, estão citados aqui através de nomes que não são aqueles que estão em seus documentos – mas que
também não podemos dizer que são nomes falsos. Não foi possível citar aqui trechos de todas as entrevistas,
mas todos os 58 estão presentes, como co-autores, neste texto e em minha vida.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

sujeito sobre um objeto. O caminhante põe ambas as coisas em movimento. Nesse


sentido, concede autoridade – nesse sentido mais belo relacionado à autoria, à
construção e “aumento”, e não em relação a um poder que se exerce subjetivamente,
para si (autós) numa hierarquia – ao caminho. Os autores explicam que
caminhar não significa atingir, adotar ou mudar uma perspectiva
[...] nem tampouco adquirir ou modificar um conhecimento
determinado. Tanto no caminhar, quanto na cópia à mão, existe
uma relação diferente com o presente, uma relação em que alguém
entrega seu corpo e se aventura a seguir uma linha arbitrária,
expondo-se à sua autoridade. Essa “autoridade do caminho” abre
um novo olhar sobre nós mesmos e, ao mesmo tempo, sobre longas
distâncias, mirantes, espaços abertos, paisagens, etc.
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p.45).
Isto significa que, ao trazer as falas dos alunos como referências para uma
escuta à escola, não estamos dando voz (pois não é possível dar voz a ninguém, a
voz apenas se escuta) à subjetividade, à individualidade deles enquanto territórios
isolados (ou pior, enquanto objetos de estudo), mas, antes disso, escutamos aos
mirantes, espaços abertos, movimentos, aos ecos do plano de intensidades de que
estes alunos fazem parte na escola. Ou seja, escutá-los, aqui, faz parte de uma
tentativa de perceber, perseguir, encontrar a própria Escola-Viagem, através de
seus caminhos.
“Então, as aulas [são] [...] uma estrada no meio da noite, [em] que você sempre
descobre um caminho diferente, cada vez que você está lá, uma jornada inesperada, na qual
você sempre sai ou satisfeito por ter aprendido algo bom, ou com uma dúvida inquietante”.
Matheus consegue perceber que o que está em jogo na escola é o caminho; mais
ainda, é o caminhar. Nem sempre um caminho claro, mas sempre um caminho
trilhado pelo viajante. Entretanto, o problema é quando a escola não é atenta a essa
autoridade do caminho que apontam Masschelein e Simons, como percebe Maria
Clara: “O colégio dificultava muito a chance de a gente criar nosso próprio caminho.
Quando a gente inventava algo havia sempre uma relutância”.
A ilusão de caminhada que a educação tradicional (ou seja, a que não
compreende o movimento como princípio, mas sim a estabilidade, adequação,
conhecimento...) oferece é a garantia da possibilidade de “trilhar seu próprio
caminho” depois da escola. A escola aparece como uma preparação para o caminho,

171
Daniel Gaivota

um treinamento a partir do qual os alunos poderão fazer suas escolhas e seguir um


percurso (profissional) quando estiverem formados. Mas este é um ideal turístico,
um tipo de escola que ignora o presente e as forças que o atravessam. É uma
educação para nossa própria utopia, para o futuro, uma educação surda. É surda por
não compreender que não é à subjetividade e à função de cada peça estrutural que
se faz uma verdadeira escuta. Não é sobre os desejos pessoais ou as expectativas do
futuro de cada um. “Não [é] associada à sua função social, mas à sua libertação”, como
afirma Diego. Dudu compreende ainda que “a escola é o lugar que faz a gente aprender
a ter o senso coletivo. Sem ele, de nada entenderiam os estrangeiros”83.
Assim, é uma escuta vetorial, e não setorial, segmentada, que pretendemos
ao trazer os diversos autores (tanto os autores canônicos quanto os não tanto, como
os alunos). Essa escuta ao caminho é uma escuta atenta às intensidades que afetam e
geram pensamento. “Viver a escola como uma experiência”, como sugere Jasmine.
Assim, caminhamos mais sobre as linhas de uma possível necessidade da escola, e
sobre entender a possibilidade de “aprender a ser estrangeiro”. É preciso pensar
sobre o que acontece na escola para que seja possível caminhar aí. Masschelein e
Simons defendem uma pedagogia pobre, no sentido de não ter aspiração, não ter
destino final, não ter objetivo, meta, não ensinar, de esvaziar a posição do aluno e a
do professor, de não gerar nenhum conforto (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014,
p.50). Parece que a pedagogia pobre que os autores propõem é muito semelhante a
uma pedagogia do estrangeiro ou do viajante (que normalmente aparece como uma
figura pobre – diferente do turista). Não estabelecendo nenhum sentido, nenhuma
norma, nenhum caminho correto a seguir, sem oferecer um ponto de vista ou uma
perspectiva, ou seja, sem mostrar, o viajante faz ver. O viajante força a olhar, abre
um corte, cria uma linha descontínua impossível de ignorar, mesmo que ela não
conduza a nenhum lugar. Nesse sentido, uma pedagogia viajante parece ser uma
espécie de pedagogia pobre.
Bárbara, confusa, tenta explicar o que acontecia nas aulas de filosofia, e,
titubeante, responde que ali passava a “ver a vida de uma outra forma. E naquele dia eu

83 Sobre a relação da estrangeiridade com a multiplicidade, pode ser interessante observar a discussão

presente no capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste livro.

172
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

pude entender isso porque senti aquela experiência. Eu consegui ‘sentir na pele’. E foi aí que
eu pensei. Que se eu fosse contar para um estrangeiro simplesmente falando em palavras acho
que ele não entenderia a profundidade”. Não se trata de mostrar, como também não foi
mostrado nada a Bárbara. Algo simplesmente a forçou a ver, fez com que fosse
impossível não experimentar alguma coisa.
Deleuze e Guattari, em seu livro sobre Kafka, definem a literatura kafkiana
como uma literatura menor. Eles percebem que o autor, que é judeu em Praga e que
escreve em alemão, se coloca como um estrangeiro dentro de sua própria língua.
Uma literatura menor, entretanto, não tem a ver com um povo menor nem com uma
língua menor. Pelo contrário, tem a ver com um movimento que uma minoria faz
em uma língua maior.
Kafka define nesse sentido o impasse que barra os judeus de Praga
o acesso à escrita, e faz de sua literatura algo de impossível:
impossibilidade de não escrever, impossibilidade de escrever em
alemão, impossibilidade de escrever de outro modo. [...] A
impossibilidade de escrever em alemão é a desterritorialização da
própria população alemã, minoria opressiva que fala uma língua
cortada das massas, como uma “linguagem de papel” ou de artifício;
[...] o alemão de Praga é uma língua desterritorializada, própria a
usos menores. (DELEUZE; GUATTARI, 2014, pp.45-46).
Exatamente por estar nesta posição de estrangeiro que foi possível a Kafka
fazer um uso menor de sua língua, criar uma sintaxe dentro da língua. É por estar
dentro de uma língua maior, opressiva, odiável, que a língua menor pode atacá-la,
fazer cortes, criar linhas de fuga. Produzir uma espécie de língua estrangeira,
que não é bem uma outra língua, nem um dialeto regional
redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa
língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de feitiçaria que
foge ao sistema dominante. Kafka faz o campeão de natação dizer:
falo a mesma língua que você e, no entanto, não compreendo sequer
uma palavra do que você diz. (DELEUZE, 1997, p.15).
Pois assim parece ser com uma pedagogia da viagem. Ser uma pedagogia
estrangeira significa criar uma linha que escape aos sistemas, às estruturas
dominantes da educação. Parece que a pedagogia que estamos buscando aqui é uma
impossibilidade, uma impossibilidade de não se deslocar, impossibilidade de se estar
em uma escola imóvel, impossibilidade de seguir sendo o que temos sido. A
educação que buscamos, mais que procurar estar vazia de objetivos, de diretrizes, de
metas, se faz através de uma pedagogia que possa, dentro de uma educação “maior”,

173
Daniel Gaivota

fazer de si um uso menor, um devir-outro da própria pedagogia ou da própria


educação. Uma pedagogia da viagem é, portanto, mais que uma pedagogia pobre,
uma tentativa de pedagogia menor, e a Escola-Viagem, uma tentativa de escola menor.
Sílvio Gallo, ao fazer o deslocamento deste conceito da literatura para a
educação, aponta a possibilidade (e a necessidade?) de uma educação menor, que,
assim como a literatura menor, provoque ou produza multiplicidades dentro da
maior, totalizante e subjetivante (GALLO, 2002, p.176). A educação menor, para o
autor, assim como a literatura menor, parece ser o lugar dos devires e das linhas de
fuga, conforme afirma:
A educação maior é aquela dos planos decenais e das políticas
públicas de educação, dos parâmetros e das diretrizes, aquela da
constituição e da LDB, pensada e produzida pelas cabeças bem-
pensantes a serviço do poder. A educação maior é aquela instituída
e que quer instituir-se, fazer-se presente, fazer-se acontecer. A
educação maior é aquela dos grandes mapas e projetos.
Uma educação menor é um ato de revolta e de resistência. Revolta
contra os fluxos instituídos, resistência às políticas impostas; sala
de aula como trincheira, como a toca do rato, o buraco do cão. Sala
de aula como espaço a partir do qual traçamos nossas estratégias,
estabelecemos nossa militância, produzindo um presente e um
futuro aquém ou para além de qualquer política educacional. Uma
educação menor é um ato de singularização e de militância.
(GALLO, 2002, p.173).
Mas como fazê-lo? “Como arrancar de sua própria língua uma literatura [ou
escola] menor, capaz de escavar a linguagem [ou a educação], e de fazê-la escoar
seguindo uma linha revolucionária sóbria? Como devir o nômade e o imigrante e o
cigano de sua própria língua?”. (DELEUZE; GUATTARI, 2014, pp.40-41,
interferências nossas). Como entrar em um devir-viajante dentro de uma educação
sedentária? Ora, o que parece acontecer em Kafka é, segundo apontam Deleuze e
Guattari, uma espécie de morte de quem escreve em prol de um povo, uma tomada
do “ele” em detrimento do “eu”84. Uma autoria do caminho? Deleuze chama esse
valor coletivo de “agenciamento coletivo de enunciação”. Esse caminho nos faz
cruzar, aqui, com uma pedagogia (e no caso de Kafka, de uma literatura) do fora, do
outro. Da mesma forma, aqui o que tentamos é criar uma espécie de agenciamento
coletivo de enunciação pedagógica. Assim, neste capítulo, nenhum autor está

84 Lersobre as multiplicidades apresentadas pelas matilhas animais e sobre Josefina, a cantora, no capítulo O
(des)território da Escola-Viagem, página 115 deste livro.

174
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

sozinho. Afinal, “um único ser humano não teria como ser estrangeiro se não existisse
outro(s) para olhar para ele com estranheza”, como afirma Felipe. Assim como não
podemos separar Deleuze e Guattari nem Masschelein e Simons, pois não é a eles que
escutamos, e sim às intensidades que seus encontros produzem, também não é possível
separar o texto do professor e dos alunos. Esse é um livro na primeira pessoa do
plural, como é, necessariamente, toda viagem.



Convivemos com as palavras e nos acostumamos aos sentidos que damos a


elas, assim como nos acostumamos a todas as coisas e cores. A diferença das
palavras é que elas abrem devires, um conjunto de possibilidades que nos permitiria
pensar em qualquer direção além daquela definida. As palavras são máquinas de
guerra. Assim é com a palavra formar. Insistimos em pensar a formação como “dar
forma”, como enformar, fazer com que algo disforme tome uma forma predefinida.
O significado de formar, nesse sentido, corrobora com a nossa ideia tradicional de
escola, que também é uma palavra que pode soprar em uma direção não muito
favorável85.
‘Formar’ compartilha relações etimológicas com a palavra grega morphé, que
quer dizer, entre outras coisas, forma, mas no sentido de modo, e não de modelo; diz
mais respeito às formas possíveis do que o formato definido. Morphé também dá
origem ao nome do personagem mitológico Morfeu, aquele que cria as aparições
( nos sonhos dos homens. Além disso, em muitos mitos de origem, de
formação do mundo, a criação do universo resulta de atividades técnicas como
modelar, tecer. A tecelagem aparece como um símbolo recorrente da criação, da
formação (ELIADE, 1991, p. 112). Nesse sentido a formação como ato de tecer, fiar,
tem a ver com um construir, narrar, que na escola é feito necessariamente com o

85 Sobre uma outra maneira de pensar esse conceito, e pensar a escola como forma em oposição a sua
institucionalização, cf. a dissertação de Fabiana Fernandes Ribeiro Martins, Fabitins, companheira do NEFI:
A escola entre a instituição e a forma: um estudo para pensar uma relação paradoxal, 2014, disponível no banco de
teses e dissertações do ProPEd.

175
Daniel Gaivota

outro86. A formação adquire, portanto, um sentido de fiar junto, fiar com. Daí vem a
palavra confiar, que parece também fazer parte importante do processo de formação
escolar. O diccionario etimológico de Chile afirma ainda que “La etimologia de la palabra
latina [forma] sin embargo, no es clara. Por un lado, podria estar emparentada [...] con
una raiz indoeuropeia *dher-, vinculándola a, pero no derivándola, de firmus (firme, sólido,
fuerte), fretus (confiado, fiado de)”. Há uma relação linguística e genealógica, portanto,
entre a formação e a confiança (com-fiar).
Masschelein e Simons exploram em seu livro uma ideia de escola que
também não é a escola formativa (nesse mau sentido) da qual tentamos nos esquivar
aqui. Formação, para os autores,
[...] consiste, na verdade, em preparação. Isso, certamente, pode
assumir a forma de preparação para coisas muito concretas no
ensino superior ou no mercado de trabalho, mas não é a principal
preocupação da escola. Pelo contrário, é a própria preparação que é
importante. Consiste no estudo e na prática, e para realmente se
qualificar como estudo e prática, a orientação para a produtividade,
eficiência ou empregabilidade deve, pelo menos temporariamente,
ser colocada entre colchetes ou neutralizada. (MASSCHELEIN;
SIMONS, 2013, p.89)
Ou seja, admitem que o objetivo dos processos escolares é menos repassar
uma determinada quantidade de conhecimento ou treinar para o desempenho de
funções específicas do que permitir que se reúnam “pessoas, com a riqueza de
diferenças entre elas”, como define João Pedro, e, nesse encontro, experimentem,
estudem e reelaborem o mundo. A escola abre o mundo, e não o fecha, restringe.
Para Masschelein-Simons (2013, p. 89), essa formação “significa que os jovens
‘adquirem sua forma’ [...] mais exatamente, sempre tomam forma em relação a algo,
isto é, à matéria”. Nesse sentido, está mais ligada às possibilidades do que aos
ideais, e vai ao encontro dessa nova apropriação do termo formar que sugerimos.
Além disso, para Masschelein e Simons, é importante admitir que as pessoas
na escola são capazes de construir saber. O professor não é um provedor de
conhecimento, pois como diz Maia “a relação entre professor e aluno é bem maior do que
ensinar e aprender”, e sim das condições de possibilidade de relacionar-se com o

86 Esta ideia é tecida e fiada (para ser desfiada e tecida outras vezes) no capítulo A narrativa na Escola-

Viagem, página 147 deste livro.

176
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

mundo. Consideram que há potencialidade na escola, e que, desde que partamos de


um ponto comum, de um ambiente de igualdade, todos são capazes de se formar.
A igualdade de cada aluno não é uma posição científica ou um fato
provado, mas um ponto de partida prático que considera que “todo
mundo é capaz” e, portanto, que não há motivos ou razões para
privar alguém da experiência de habilidade, isto é, de “ser capaz
de”. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p.69).
O professor apresenta aos alunos coisas que considera importantes, mas ao
mesmo tempo não pode dizer a eles como usá-las. Ele confia na apropriação que os
alunos farão daquilo que está sendo trabalhado. Ou melhor, o que acontece na escola
é uma exploração do mundo. É como uma viagem ao redor do globo, sem guia. “Nas
aulas, tentamos explorar o mundo e seus habitantes [...], em um único lugar. A sala de aula
transformava-se em uma imensidão de pensamentos, discussões, novos pontos de vista até
então não explorados”, lembra-se Juju.
E ainda, os autores, apesar de afirmarem que o que acontece na escola não é
sobre os alunos, mas sim sobre o mundo, precisam também dizer que a escola é o
ambiente suspenso que deixa de lado todas as expectativas. “Isso significa permitir
que uma criança esqueça os planos e expectativas de seus pais, bem como os dos
empregadores, políticos e líderes religiosos, a fim de possibilitar que ela possa ser
absorvida pelo estudo e pela prática”. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p.101).
Ou seja, apesar de o foco da escola não ser a satisfação dos desejos dos alunos, ela é
vista pelos autores como o espaço onde a criança pode se dedicar a algo que lhe
interesse, que não seja fruto de nenhuma pressão social ou das demandas familiares.
Emanoel, lembrando da escola, pondera: “Acho que faltou um incentivo pros alunos
fazerem mais e viverem mais antes de pensarem em entrar pra faculdade/trabalho”. E
Jasmine, por outro lado, defende a escola, afirmando que ela “tem que existir por ser
esse lugar onde as pessoas podem se encontrar, conhecer de tudo e escolher o que querem pra
si, mesmo que seja lutar contra aquele modelo de escola”. Se quisermos relacionar com a
noção de formação que tentamos estabelecer aqui, podemos dizer que a escola é o
lugar onde há abertura, onde é possível, como com Morfeu, sonhar.
Por isso, e apoiados no texto de Masschelein e Simons, podemos relacionar a
ideia de formação na Escola-Viagem não ao seu significado habitual, de atribuição

177
Daniel Gaivota

de forma, mas a outros mais interessantes e profanos: como valorização das


possibilidades, como prática da confiança e como condição do sonhar.87
Quanto aos dois primeiros, é suficiente dizer que estes significados da
formação escolar estão relacionados aos conceitos que acompanham a viagem como
imagem da escola. Pensar a formação nestes termos significa pensa-la para além de
um formar seriado, arborificado, pensar para além de uma relação professor-
sujeito/aluno-objeto. Numa escola que esteja em seu devir-viagem, viaja-se ao
encontro sempre de novos significados para os objetos, em busca de outras
possibilidades de mundo. Valorizar as possibilidades das coisas significa encontra-
las em sua multiplicidade, como, segundo Julia, “quando a gente é estrangeiro em algum
lugar, tudo chama a atenção, até as coisas simples. Tem aquele estranhamento, tudo é novo, e
a gente tem que aprender como as coisas funcionam no lugar, desde os costumes até a forma
de lidar com as pessoas. Então eu acho que tem como se aprender a ser estrangeiro do lugar
de onde você já é, se você prestar atenção nas coisas que você não liga porque já é do
lugar”88. Assim, esse modo de ver a formação é uma certa maneira de abandonar o
eu, a estrutura subjetiva já construída e cujos mundos possíveis já estão assinalados.
“Porque quanto mais montado e irredutível você for, menos sua cabeça vai estar aberta pra
pensar em vertentes, possibilidades”, como diz Cachu.
A Escola-Viagem também permite que, ao estabelecer uma relação de escuta
atenta a todos – como se escuta ao viajante que vem de longe, numa relação ao
mesmo tempo de estranhamento e hospitalidade89 – se permita uma construção do
conhecimento e uma narrativa do mundo coletiva, agenciamento coletivo de
enunciação. Ou seja, que se teça coletivamente o saber, inventando uma verdade
como se fia um tapete90, com a participação de todos. Fiar juntos, ou seja, confiar.
Quando a verdade é fiada desta maneira, se coloca em questão a subjetividade de
todos. Ao mesmo tempo que o espaço se abre para todos sem seletividade –
tornando todos, de certa maneira, iguais –, “falando como se [eu] fosse alguém que

87 Estas possibilidades tocam os conceitos apresentados em relação à amizade e suas relações com o saber, o

pensar e a philia na dissertação de Julia Ramires Krüger, amiga e companheira do NEFI: O saber da amizade:
entre filosofia e educação, 2016, disponível no banco de teses e dissertações do ProPEd.
88 Como se discute mais profundamente no capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste livro.

89 Sobre a hospitalidade, cf. também o capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste livro.

90 Cf. capítulo A Narrativa na Escola-Viagem, página 147 deste livro.

178
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

tenha passado por algo, mostrar minha experiência”, afirma João Pedro, o espaço coloca
em questão cada sujeito, já que todos se abrem a ser invadidos pela experiência do
outro. Mimi afirma, sobre isso: “eu diria que os nossos encontros (vulgo aulas, hahaha)
foram conversas de bons amigos onde você consegue se conhecer um pouco mais e menos”91.
Assim, ao valorizar as possibilidades e ao praticar a confiança, o que estamos
fazendo é, basicamente, tratar os habitantes da escola como estrangeiros. Esse é um
sentido mais verdadeiro e potente da formação: estrangeirizar. No lugar de “dar
forma”, des-locar. Passar a lidar com o que tradicionalmente compreendemos como
sujeitos de uma nova maneira: como movimentos, forças. Como Milla pôde
perceber: “Aprendi muito sobre onde é o meu lugar e que nem sempre ele é fixo”. Essa
percepção não é simples, e envolve uma insularização da escola, uma percepção-
poética da relação com o mundo que permita um apagamento do eu, em direção do
fora, onde se encontram as forças do mundo. Milla concorda, na sua ressalva,
dizendo que na verdade “não é questão de aprender, mas de se permitir trocar de papel
várias vezes”. É isso; não se trata de se retirar do mundo, mas compreender que o Eu
é apenas uma das forças deste campo. “Aprendemos O QUE É ser estrangeiro, e isso se
comunica, sem dúvida nenhuma, com a nossa própria maneira de ser estrangeiro aos
outros”, diz Felipe. Parece que uma abertura do mundo passa por uma abertura das
pessoas umas às outras e ao mundo – que não são aberturas diferentes. Paula e
Heitor ressaltam a importância dessa abertura do outro: “nossa voz era pedida e não
calada”; “Eles não dão dinheiro, não moram com você, mas usam do tempo deles pra te
escutar”. Já Bruno tenta (deliberadamente!) pensar a estrangeiridade a partir da
relação com a viagem: “somos estrangeiros nas vidas alheias. Só que alguns acabam
tirando a dupla cidadania e ficando, outros visitam, conhecem, curtem, tiram fotos, e se
vão”. Ao ser inquirido sobre qual o papel da escola nesse processo, afirma: “eu acho
que a escola busca ensinar a tirar a dupla cidadania, mas prepara a gente a partir”.
A maioria dos alunos, entretanto, observa como a escola não precisa ensinar a
ser estrangeiro, ou antes, não pode fazê-lo, pois não se trata de um saber, mas de

91 Sobre a possibilidade (ou não) de um espaço escolar pensado a partir do “nós”, da comunidade, do comum,

cf. a dissertação de Ana Corina Salas Correa, Cori, companheira do NEFI: Uma questão de (auto) educação: um
estudo de Cecosesola, uma escola que não é uma escola, 2016, disponível no banco de teses e dissertações do
ProPEd.

179
Daniel Gaivota

uma condição à qual estamos sujeitos. Andressa, ao ouvir a pergunta, retorna: “É


possível aprender a ser estrangeiro? E se vivemos como estrangeiros e nem ao menos sabemos
disso?” Os alunos parecem compreender que não somos sedentários que a escola
ensina a viajar, mas, pelo contrário, somos todos nômades em potencial aprendendo
a permanecer. “Creio que [o] estrangeiro está próximo de um estado que todos temos. No
momento em que somos naturais de algum lugar, somos estrangeiros a todos os outros.
Enquanto estamos em lugares os quais somos naturais e/ou conhecemos, somos nativos. No
momento em que extrapolamos essa bolha nos tornamos estrangeiros. Acho que não dá pra
aprender a ser estrangeiro, mas dá pra aprender a ser nativo”, observa Angellus. A
capacidade de se tornar estrangeiro, portanto é importante, mas é dada, é uma
condição de estar no mundo. Entretanto, nem sempre podemos percebê-la. Tetê,
triste, pensa sobre sua experiência: “Eu já fui um aluno estrangeiro... Mas nunca parei
para pensar sobre isso”. “Somos todos estrangeiros a partir de certo ponto, a questão
importante é como entender o fato de ser estrangeiro”, afirma Rudney, ressaltando,
portanto, a necessidade de uma Escola-Viagem pensar, abrir espaço e permitir um
modo estrangeiro de habitá-la – mais do que ensinar isto.
E para isso talvez a Escola-Viagem tenha de encontrar uma maneira de fazer
as estruturas ruírem, os saberes se perderem, os sentidos se confundirem. Pois
“todos os dias nascemos estrangeiros para uma infinidade de situações que presenciamos. Eu
penso que sei como as coisas vão funcionar, mas na realidade eu não sei”, afirma Chorona.
E Benício conclui: “Acho que aprender a ser estrangeiro, não se aprende. Na verdade, o
que acho que seja possível é desaprender a ser ‘nativo’”. Talvez a Escola-Viagem não seja
mesmo um lugar onde se aprende a ser estrangeiro, e talvez até mesmo possa
ensinar o sedentarismo ou a natividade, mas talvez também tenha o potencial de
abrir espaços e tempos no qual ela se desaprenda, em que se faça impossível a
imobilidade. Talvez mais que fazer das pessoas estrangeiras, ela deva se tornar um
solo estranho, como afirma Churrasqueira: “Talvez o estrangeiro seja eu... E se a escola
for estrangeira?” E logo após, acrescenta: “(aprendi a jogar o jogo da filosofia)”.
Mas por que a escola não é a Escola-Viagem? Por que, como esses alunos
insistem em perceber tão claramente, o que se aprende na escola é o sedentarismo?
Bárbara, hoje estudante de engenharia, afirma em sua entrevista que é forçada todo

180
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

dia a pensar que o mundo funciona maquinalmente, mas que o que aconteceu nas
aulas permite que ela não ceda a esse pensamento. Pergunto a ela se esse saber é
importante para uma engenheira, e ela responde: “Faz eu não virar uma máquina”.
Há uma escola maior, molar, e uma escola que, nas entranhas desta escola aparente,
organizada e estruturada, se movimenta. De qualquer maneira, por mais próxima
de uma viagem, por mais moléculas que a escola compartilhe com esta Escola-
Viagem92, o poder, a individualidade e a segmentaridade sempre estarão se
esgueirando “nas paredes ‘intocáveis’, nos cantos inacessíveis, em certos abusos e em certos
desrespeitos” (como descreve Luiz Carlos). Para fazer força contrária, é preciso
perguntar, como Zero, “Por que essa hierarquia que existe na escola é importante?”
Pouco a pouco percebe-se que as estruturas da escola fazem sentido, “mas só se você
acreditar que cada um pertence a um lugar fixo”, como percebe Paula. Entrar em um
devir-viagem ou habitar uma Escola-Viagem não significa atacar essas estruturas
calorosamente, mostrando (de maneira lógica) por que elas despotencializam a
escola, mas significa sim, de maneira mais potente que essa, por ocupar um espaço
liso, aberto, por poder se relacionar através de brechas e rachaduras com as forças
do fora, simplesmente parar de ver sentido na estruturação. Rir dela. Tobias
sintetiza: “Eu acho que a escola deve existir porque ela liberta”.
A Escola-Viagem, desta maneira, como máquina de guerra, cria linhas de
fuga, ou seja, faz fugir, faz abrir, gera rachaduras por onde o poder pode ser
desmantelado, desembaraçado. É através desses pequenos momentos em que se
vislumbra uma “outra escola”, como a “outra ilha” de Robinson Crusoé, ou a “outra
língua” de Kafka, ou mesmo a “outra verdade” de Ulisses, que é possível escapar das
estruturas. Ao vislumbrar esse “outro”, que na verdade é o fora, o pensamento é
forçado a pensar, e entra em movimento. Irmãzinha relata seu processo, dizendo que
“meu desejo de mudar o mundo, apesar do medo de responsabilidade, começou [ali]. Eu não
sabia exatamente como faria aquilo, mas ele tinha me mostrado de alguma maneira que era
possível, e que não dava pra ficar parada”. Pois a relação de movimento é sempre com o
mundo – não um mundo possível, não uma percepção do mundo fenomenológica ou

92 Que de modo algum deve ser compreendida como um ideal de escola, uma utopia para a qual todas as

escolas “deveriam” rumar ou almejar se transformar. Este caráter de devir da Escola-Viagem é aprofundado
no interlúdio O Louco, página 191 deste livro.

181
Daniel Gaivota

hermenêutica, mas o mundo fora. E ao se perceber parte desse mundo, sentimos


vontade de afetá-lo, participar dele, forçar os limites das linhas que o compõem.
Irmãzinha continua: “minha vida se move pelo desejo de mudar o mundo, e ele me fez
entender que isso também é feito nas pequenas coisas”. A Escola-Viagem, portanto, tem
como característica principal esse gerar movimento, esse fazer escapar – ou seja,
essa poética do deslocamento. Compreendemos com Deleuze e Foucault que deva
haver alguma força do fora que movimente o pensamento e o faça pensar. Um
encontro com a diferença. Mas como fazê-lo? Como fazer a sensação de estranheza
não se perder? Raissa expõe o problema de sua maneira: “O que significa ser
estrangeiro? É alguém que de fato veio de outro lugar? Mas eu também posso me sentir
assim, como se não pertencesse a esse lugar, ou [como] um estranho que todos sabem que não
é dali. Mas e quando eu parar de me sentir assim, quando pertencer a aquele lugar, ainda
vou ser um estrangeiro?”
Essa pergunta se faz potente porque tenciona a outra pergunta que fizemos
no início desse capítulo: Por que a escola deve existir? Parece talvez que a escola
que estamos habituados a habitar, mais que gerar movimento, o impede. Quando
Maria Clara afirma que era difícil “criar o próprio caminho” na escola, completa
dizendo que “talvez aquela ideia louca levasse a gente para algum lugar”. Esta palavra
aparece em mais de uma entrevista: os processos de desestruturação são vistos
(mesmo que em um bom sentido) como processos desencadeados por um “louco”
(como Didático se refere a mim, carinhosamente). Não há outro termo para
designar o que acontece quando alguém desafia as estruturas de um aparelho ou de
um dispositivo. Foucault inclusive se refere à loucura como um processo de controle
do discurso, ou seja, de separação e rejeição do saber não legitimado ou que ameaça
uma ordem de poder estabelecida. Mauricio entende esta rejeição e a estende para a
figura do estrangeiro, muitas vezes tomado por louco: “Acho que aprender a ser
estrangeiro é um caminho de coração, sabe? Você faz sacrifícios pra isso. Eu acho que o que
todo mundo quer é matar o estrangeiro”. Por isso, mais que criar espaços de encontro
com a diferença, é preciso encontrar uma maneira de fazer as pessoas embarcarem,
fazer com que confiem, que aceitem fiar com. Descobrir um modo de “mostrar que

182
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

elas têm medo do novo”, como entende Elaine. Por isso é preciso inventar a
Onirodinia.



A escola não parece ser justamente o lugar onde é possível desafiar a ordem
sem se ferir? Tobias afirma, sobre essa possibilidade: “A escola é pra ser mais livre do
que a vida parece que é. A escola deveria nos exilar dessas estruturas – deveria ser vazia”.
Concordando com ele, podemos pensar que a escola não é um decalque da vida, não
é um espaço análogo, mas também não é uma caverna, uma suspensão absoluta: a
escola configura um espaço e um tempo de fronteira, de borda, difuso. Ali é possível
confundir os sentidos e, em vez de organizar o pensamento, fazer com que o corpo e
os sentimentos possam também pensar, deixar de funcionar organicamente. Julya
não receia em dizer que “entendemos muito melhor apenas sentindo”. Marvyn parece
concordar, ao afirmar que “a escola deve existir pra formar não só a cabeça, mas guiar o
coração”. Ou seja, para criar este espaço de encontro com o fora, onde é possível
“pensar sobre o que está em volta” (Calaza), nas bordas de nosso território, “passando a
ver quase tudo como se fosse uma tangerina” (João Pedro), é preciso, primeiro, se
relacionar de maneira estética com o mundo.
Fazer parte dele de uma maneira poética, ou seja, confundir percepção e
criação. Desta maneira, não é com o mundo “real” que estaremos lidando, mas com
uma invenção de mundo – que torna essas experiências verdadeiras, para além dos
decalques da realidade que fazemos tradicionalmente para fabricar uma relação com
o mundo “verdadeiro”. Ou seja, a potência da Escola-Viagem está mais em fazer
com que se faça parte de um campo de forças intensas e potentes que em uma
apreensão estrutural destas forças. Ao analisar essa possibilidade, Ana Helena
percebe que aquele lugar, “mesmo que participando de algo pequeno, me fez me sentir
viva”. Assim, a escola “concilia a beleza e a verdade. Não torna a verdade igual a beleza
nem vice-versa, não é ser um inocente bobo e não é achar tudo uma obviedade; é uma
experiência saborosa à mente e ao coração. A descoberta encontra a verdade e a beleza numa
coisa só” (Tobias). Essa possibilidade de uma estética da verdade tem a ver com o

183
Daniel Gaivota

terceiro significado de formação explorado aqui e sustentado pelas ideias de


Masschelein e Simons: a formação como condição do sonhar. Construir este
mundo em que a verdade tenha a ver com a beleza, onde as intensidades sejam a
prioridade dos processos, isto significa a produção de um espaço de sonho. No
sentido de que o que se ocupa não é necessariamente o mundo atual, verossímil,
correspondente às expectativas formais e estruturais de uma realidade que se
sustente, mas antes, um mundo com o qual seja possível se relacionar intensamente.
Caio, um dos alunos entrevistados, relatou que, numa época em que eu não
era seu professor, observou pela janela de uma sala de aula uma atividade que não
pôde compreender. Este evento fez com que ele fosse forçado a pensar. “Meu ensino
médio foi marcado por um professor de filosofia que nem me deu aula! Durante um tempo
de aula, ele e os alunos empilharam cadeiras para alguma dinâmica e até hoje, seis anos
depois de formado, eu quero saber o que aconteceu ali!” Caio foi afetado por um corte na
realidade, uma rachadura na estrutura de mundo que formara para si. O não-saber,
o vazio, força o pensamento a pensar, mas é uma violência. Durante a entrevista,
perguntei se ele gostaria de saber então o que aconteceu com as cadeiras, mas ele
recusou a oferta. Agradeci, pois esbarramos em outra questão: como explicar um
sonho para alguém? Como fazer com que aquela experiência que não teve sentido
estrutural possa ser traduzida ao outro? Luiz Carlos acha inclusive “difícil marcar
um ponto de início (mesmo eu tendo noção de quando ingressei lá)”, pois segundo ele, “foi
tudo muito intenso”. E Rhebeca, por outro lado, diz que “diria pra alguém de MUITO
MUITO longe que [a escola é] o lugar pra quem vem de MUITO MUITO longe mesmo.
E que talvez seja um dos poucos lugares onde 5 ou 50000 km são indiferentes“. Ou seja, as
próprias noções de tempo e espaço se perdem ali. É como quando acordamos e
lembramos da sensação de um sonho, mas não podemos colocá-lo em palavras ou
imagens. Chorona fala da escola (ou do sonho?) colocando essa sensação em
palavras, quando diz: “eu sou uma estrangeira todos os dias que acordo, mas com um
passado que não posso ensinar a mais ninguém”.
Assim, talvez não seja possível realmente ensinar ou mostrar a alguém como
ser estrangeiro (Beca afirma essa impossibilidade com um paradoxo formativo: “não
[é] possível aprender a ser estrangeiro em um lugar que você não seja estrangeiro”), mas é

184
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

possível, justamente a partir dessa contradição apontada, fazer com que a escola se
torne um lugar onde, como uma viagem, não seja possível habitar sem se tornar
estrangeiro de si – ou seja, criar um lugar perigoso. E é exatamente ai que o sentido
de formação como condição do sonho pode nos ajudar. O sonho não é uma projeção
para o futuro, um desejo individual. O sonho é esse ambiente espaço-temporal
confuso, difícil de apreender estruturalmente, que é um ambiente suspenso. E é por
ser um ambiente inventado que pode ser possível, nele, estar em perigo – em perigo
real, não simulado – sem a necessidade de ferir. Trata-se de inventar uma
experiência ao mesmo tempo perigosa e segura. Gerar uma dor que ao mesmo
tempo gere o movimento, mas que não violente. Como quando sonhamos que
estamos a sentir dor e ao acordar, nos lembramos da dor, mas nosso corpo está
intacto. Este fenômeno é chamado de onirodinia, a dor onírica. Talvez o que a
Escola-Viagem produza seja exatamente essa espécie de sentimento de dor, esse
perigo inventado. A onirodinia permite que os habitantes da Escola-Viagem se
mantenham sempre em seu devir-viajante, sempre habitando “o lugar novo, o
inabitável, o ambiente a ser descoberto”, como define Marco. A Escola-Viagem é,
portanto, um lugar de sacrifício; um lugar em que nos colocamos voluntariamente
em perigo, em que nos desafiamos e abrimos talhos e cortes – não em nossa pele e
carne, como se dá em uma viagem extensiva, através do mundo, mas em nossa
subjetividade e em nossas certezas.
Juliana afirma sobre os encontros: “A escola é o lugar não só de estar em contato
com diferentes comportamentos, mas também de colocar o nosso à prova”. Assim como na
viagem, encontramos na Escola-Viagem nossa negação, nosso oposto. É a partir
desse encontro que nos tornamos capazes de experimentar o mundo de fora, ou seja,
o mundo imanente, não mais ordenado de dentro, ordenado pela nossa subjetividade
nem por uma estrutura paralela ou superior ao mundo material, que garanta sua
existência (como a lógica, a verdade ou o transcendente). E o exercício dessa
imanência é o sonho. O sonho escapa das linhas estruturantes que aprisionam os
elementos do mundo. “Deve-se reconhecer, uma vez mais, que as forças oníricas são
todo-poderosas. Quando se sonha com toda sinceridade, as linhas de força do sonho
seguem sua disciplina própria” (BACHELARD, 1994, p.47).

185
Daniel Gaivota

Bachelard dá ao sonho um lugar importante na construção do que chama de


imaginação material – ou seja, de uma imaginação diferente da formal, capaz de
construir e criar o mundo. O sonho é o espaço onde o devir, cuja propriedade é
furtar-se ao presente, pode se dar. É no sonho que é possível “puxar nos dois
sentidos ao mesmo tempo” (DELEUZE, 1974, p.1), tornar-se grande e pequeno,
estar antes e depois, estar em perigo e em segurança. É ai que é possível a
onirodinia, ou melhor, sentir dor e não sentir, ao mesmo tempo. É no sonho que se
torna possível imaginar um mundo, inventar uma verdade, produzir um
deslocamento. Não é para isso que viajamos? Não é para isso que viajamos para a
escola?
Aliás, qual é a função psicológica da viagem? Diremos que viajamos
para ver; mas como ver bem sem se deslumbrar diante das
novidades do real, sem um longo preâmbulo de devaneios
familiares? Os grandes viajantes são, antes, em uma longa
adolescência, grandes sonhadores. Para gostar de partir, é preciso
saber se desprender da vida cotidiana. O gosto pelas viagens
decorre do gosto por imaginar. Parece que uma franja de
imaginário é sempre necessária para conferir interesse aos
espetáculos novos. Aliás, é pelo devaneio que narrador e leitor se
comunicam intimamente. Uma descrição seca é inerte quando se
trata de transmitir uma experiência nova. Todo país desconhecido é
evocado, em sua própria realidade, apenas pelas forças do
imaginário. (BACHELARD, 1994, p. 108).
Ou melhor: como ver sem sonhar? É preciso viajar como se não se pudesse ver,
ou seja, guiado pelo que não está aparente. É possível aprender a ser estrangeiro?
Como? Antes, parece ser mais possível ocupar um espaço estrangeiro,
desterritorializar a escola todo o tempo, à maneira do sonho. Manter-se em
desconforto, mas um desconforto onírico, em onirodinia. Em sua viagem, em
determinado momento, Gordon Pym, personagem marinho de Edgar Allan Poe,
permanece trancado num porão de barco, delirante. Experimenta, ai, uma deriva,
um deslocamento do tempo, do espaço e de si, mas sua dor é real?
[...] nas páginas onde Pym relata sua vida no fundo do porão,
devemos ver apenas as simples impressões de um passageiro
clandestino? O narrador é apenas um prisioneiro encurralado entre
mercadorias mal arrumadas? Não, nesse exemplo apesar de preciso,
a narrativa não pertence ao mundo dos fatos. Pertence ao mundo
dos sonhos. É um sonho de labirinto. (BACHELARD, 1994, p. 112).

186
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

O sonho é um espaço fronteiriço, nos põe em contato com esse devir-


labirinto que pode atravessar a realidade, faz com que estejamos o tempo todo em
alerta, à espreita – mesmo que o que se coloque a nossa frente seja sempre um novo
desconhecido, um perigo sempre, há ali algo de familiar, de hospitaleiro. Assim, as
possibilidades de sentido de formação que inventamos se encontram ai: enquanto as
coisas se abrem para outras possibilidades, desconhecidas (e por isso assustadoras),
é possível estabelecer com esse movimento uma confiança. Nos entregamos ao
perigo do novo, do fora, como nos entregamos também aos sonhos, como nos
permitimos experimentar saltar, voar – mesmo que talvez caiamos e nos
machuquemos, afinal, a dor no sonho é apenas onirodinia. A formação, portanto, se
dá na Escola-Viagem à maneira do sonho, de maneira contraditória e impossível –
pois o devir é do campo do contraditório e do impossível. Isa, ao tentar descrever o
que aconteceu com ela nesse processo de formação diz que “foi como chegar a uma
praia onde eu conhecia alguns dos elementos que ali estavam há muito tempo, porém cada
um deles tomou um novo significado”. Isso pode ser uma experiência desoladora, uma
dor, uma espécie de naufrágio, mesmo que aconteça à maneira de um sonho. Como é
possível suportá-la, então? Isa responde, simplesmente, sobre a experiência de
naufragar, que tudo bem, pois “na escola, está todo mundo no mesmo barco”.

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O LOUCO
(OU SOBRE NÃO TERMINAR)

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O LOUCO
(OU SOBRE NÃO TERMINAR)

Existem muitos baralhos de tarô, cada um marcado e forjado nas tradições


nômades dos povos andarilhos do antigo mediterrâneo. As cartas são usadas com
fins divinatórios93, e seus símbolos considerados arquétipos, imagens coletivas – ou
talvez agenciamentos de enunciação coletiva94. A palavra tarô não possui uma
tradução literal, mas sua origem remete a diversas possibilidades igualmente
potentes. Pode vir da palavra árabe turuq, que quer dizer “quatro caminhos” –
significando os quatro elementos e a jornada para libertá-los; pode também vir de
tarach, que significa “rejeito”; ou talvez do italiano tarocco, que pode significar “perda
de valor de mercado, dedução monetária”. De qualquer maneira, o tarô é uma
tradição menor, minoritária dentro de uma cultura maior, e é por isso ela pode tocar
e produzir devires.
Mais que todas as minoridades internas do baralho de tarô, duas cartas
chamam atenção: dos vinte e dois arcanos maiores, sempre numerados e nomeados,
há uma carta sem nome e outra sem número. A carta sem nome, de número treze, é
mais tradicionalmente associada à morte – esta coisa difícil de nomear, de ser falada,
enunciada. A carta sem nome tem a ver com a ciclicidade, a possibilidade dos ciclos
terminarem e recomeçarem. Esta carta evoca a possibilidade de mudar de estado, de
re-começar como outro, como diferença. “Ora, é no momento da morte que o saber
e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que
são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível”
(BENJAMIN, 1994, p.207). Esta carta, portanto, tem a ver com o devir-outro, com

93 No prelúdio de Sexta-feira ou Os limbos do Pacífico, toda a história é contada previamente, por meio de uma

leitura da sorte de Robinson num tarô. Essa estrutura de pré-narrativa onde toda a trama se coloca sobre a
mesa antes do início da história era muito importante para a compreensão dos épicos gregos como a Ilíada e
a Odisséia, onde o fim não era importante (pois já se conhecia desde sempre os episódios narrados), mas os
eventos eram sempre surpreendentes, pois configuravam uma a-ventura. Para ler sobre Sexta-feira ou Os
limbos do Pacífico, cf. capítulo Poética do deslocamento, página 61 deste livro; para mais informações sobre
a Odisséia, cf. caps. A escola e o devir-viagem e A narrativa na Escola-Viagem, sequencialmente nas
páginas 41 e 147 deste livro. Sobre o conceito de aventura, cf. o cap. O tempo da Escola-Viagem.
94 Cf. capítulo Onirodinia e relato, página 169 deste livro.

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Daniel Gaivota

o encontro com o não-ser, e por isso seu significado é muito importante para o
viajante que se aventura em busca de se meta-morfosear.
Mas a carta sem número é ainda mais singular: seu nome é O Louco.
O Louco, como é retratado no tarô de Marselha, que é o baralho mais
utilizado, aparece no alto de uma rocha, ao sabor do vento, sob um grande sol
amarelo, acompanhado de um cachorro e carregando uma pequena trouxa (de
roupas?). Sua imagem poderia bem ser o retrato de Robinson Crusoé na cena final
de Sexta-feira ou Os limbos do Pacífico, totalmente solar, seus elementos livres, eólico
e capaz de experimentar o mundo de fato como fora. O cachorro que o acompanha
afaga o ar, atento às intensidades que o rodeiam, como se estivesse talvez imitando
o humano – mas se repararmos melhor, a carta parece mesmo é mostrar o devir-
animal do homem sobre a rocha, sob o sol. O louco está livre.
É costume situar a carta do Louco antes do arcano número um, que é o
Mago (significando princípio, começo, a busca humana por conhecimento sobre os
elementos e a criação) e depois do vigésimo primeiro, o Mundo (que significa a
sabedoria maior, ampla, sobre todas as coisas, o encontro de um lugar no cosmos).
Por um lado, pode significar que o Louco é ao mesmo tempo aquele que nada sabe,
que está num estágio anterior à própria busca do conhecimento, mas que ao mesmo
tempo sabe tudo, ocupa um lugar posterior ao conhecimento do mundo. Por outro
lado, o Louco é um anômalo, ele não tem lugar, não ocupa um locus. A ausência de
um número pode significar que esta sabedoria que ele carrega não possa ser
encontrada nem no princípio nem no final – e talvez nem mesmo no meio ou na
ciclicidade – mas somente do lado de fora. É por estar fora que o Louco é livre,
desestruturado. Ele é uma linha de fuga, uma carta de intensidade.
Simón Rodríguez, em determinado momento, afirma: “Faz 24 anos que estou
falando, e escrevendo pública e privadamente, sobre o sistema Republicano, e, por
todos os frutos de meus bons ofícios consegui que me tratem como LOUCO” (2016,
p.199). Rodríguez, que claramente ocupa uma posição de fora, de outsider, de
constante estrangeiridade, não pôde ter seu discurso legitimado, pois não escrevia,
falava ou pensava dentro das mesmas estruturas que seus interlocutores. Para além
de uma libertação abstrata da América, pensava praticamente a educação como base

192
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

para a república – “Entre Napoleão e Bolívar, deem-me os meninos pobres”


(RODRÍGUEZ, 2016, p.131). Mas apesar da indignação, considera ser tratado
como louco uma decorrência de seu compromisso com a verdadeira igualdade.
Afirma muitas e repetidas vezes que “os loucos e as crianças dizem a verdade” 95. Os
loucos e as crianças, por não estarem presos às estruturas que se lhes impõem,
podem criar, inventar a verdade, mais que adequar-se a ela. E é por isso que são tão
perigosos e tratados com tanta cautela e silenciamento. O louco é uma máquina de
guerra.
Na imagem da carta de tarô percebe-se que O Louco é claramente um
nômade, ou ao menos um viajante. Sua pouca bagagem a tiracolo evita que
pensemos nele como uma espécie de turista. Ele está em deslocamento, apesar de
não parecer ter pressa. Também o viajante está, mais que no meio, fora. É por estar
fora da lógica princípio-meio-fim que ele pode escapar às estruturas, deslizar por
espaços e tempos intensivos e entrar (ou sair?) nos seus devires. Este texto, que se
propõe que devenha-viagem precisa, portanto, encontrar-se também fora. Assim,
não existe uma maneira de terminá-lo, da mesma maneira que a viagem não
termina, e como ela não começa, também. Por isso é preciso compreender o texto
como uma escrita desordenada, como os platôs de Deleuze e Guattari, em que
nenhum capítulo tem prioridade sobre o outro ou uma ordem específica de leitura.
Um leitor tradicional poderia questionar por que esta observação sobre a
organização do texto não se encontra no início dele, como uma espécie de manual
de leitura, mas a essa altura terá percebido que este não é aquele tipo de texto; estas
presentes (?) palavras não representam uma conclusão. É preciso, a partir delas,
retornar, experimentar esta viagem de outras maneiras, em outras configurações.
Ler em outra ordem, para que não haja ordem. Percorrer os capítulos seguindo
outras linhas, buscando outros caminhos. Cada capítulo está ligado aos outros por
vetores, notas de rodapé rizomáticas96, que não permitem que se possa transformar
o texto em livro, em radícula, em árvore, em série. Todos os pontos se conectam
mutuamente, e só como multiplicidade podem fazer sentido.

95 Sobre a verdade e sobre esta frase de S. Rodríguez, cf. capítulo A narrativa na Escola-Viagem, página

147 deste livro.


96 Sobre o conceito de rizoma, cf. capítulo O (des)território da Escola-Viagem, página 115 deste livro.

193
Daniel Gaivota

Assim, esse texto é como a Escola-Viagem. Um campo de forças que faz com
que seja possível criar, inventar97 deslocamentos. E o faz através de processos
desestruturantes, que dissolvem a subjetivação, a cronologia, a territorialidade, a
verdade. Que confundem os sentidos de quem o percorre. A Escola-Viagem, assim
como esse texto, é a cidade de Zoé, que nas palavras (e gestos, e despalavras e
palavras-gesto) de Marco Polo se desenha para o Khan:
Quem viaja sem saber o que esperar da cidade que encontrará ao final do
caminho, pergunta-se como será o palácio real, a caserna, o moinho, o
teatro, o bazar. Em cada cidade do império, os edifícios são diferentes e
dispostos de maneiras diferentes: mas, assim que o estrangeiro chega à
cidade desconhecida e lança o olhar em meio às cúpulas de pagode e
claraboias e celeiros, seguindo o traçado de canais hortos depósitos de
lixo, logo distingue quais são os palácios dos príncipes, quais são os
templos dos grandes sacerdotes, a taberna, a prisão, a zona. Assim –
dizem alguns – confirma-se a hipótese de que cada pessoa tem em mente
uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e
sem forma, preenchida pelas cidades particulares.
Não é o que acontece em Zoé. Em todos os pontos da cidade,
alternadamente, pode-se dormir, fabricar ferramentas, cozinhar, acumular
moedas de ouro, despir-se, reinar, vender, consultar oráculos. Qualquer
teto em forma de pirâmide pode abrigar tanto o lazareto dos leprosos
quanto as termas das odaliscas. O viajante anda de um lado para o outro e
enche-se de dúvidas: incapaz de distinguir os pontos da cidade, os pontos
que ele conserva distintos na mente se confundem. Chega-se a seguinte
conclusão: se a existência em todos os momentos é uma única, a cidade de
Zoé é o lugar da existência indivisível. Mas então qual é o motivo da
cidade? Qual é a linha que separa a parte de dentro da de fora, o
estampido das rodas do uivo dos lobos? (CALVINO, 1990, pp.34-35).
Zoé é uma cidade desestruturada e por isso desestruturante. A Escola-
Viagem é também uma espécie de cidade onde o viajante enche-se de dúvidas, onde
seus sentidos se confundem, onde não sabe onde ir ou como. É uma cidade que,
como Zoé, devém-viagem. Todos os modelos, estruturas, decalques se mostram
inúteis, pois esta cidade-escola-viagem é uma cidade em que os limites esmaecem,
pouco a pouco tornam-se indistinguíveis, e, sem linhas que estabeleçam os
territórios, a cidade passa a ocupar a borda, o limite entre o dentro e o fora, se
colocando a ponto de ser invadida (por lobos? por pássaros?). É por se perder neste
espaço sem tracejados que o viajante pode, ao mesmo tempo, parar e se
movimentar; estar em um lugar e se des-locar.

97 Sobre a definição de in-ventar, cf. capítulo Onirodinia e relato, página 169 deste livro.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Zoé é o lugar da imanência98, em que todas as forças coexistem, em que “a


existência em todos os momentos é uma única”, em que tudo faz parte de um
mesmo plano e todas as coisas se afetam mutuamente, sem pontos de referência,
centro, entrada ou saída. Ou seja, se existe Zoé, então não existe essa cidade-guia
ou cidade-modelo que o Marco Polo de Calvino sugere, que possa guiar o viajante
em qualquer cidade que visitar. “A imanência não se reporta a um Algo como
unidade superior a todas as coisas, nem a um Sujeito como ato que opera a síntese
das coisas”. (DELEUZE, 2002, p.13). Um plano de imanência é a oposição a
qualquer relação dupla, dual, transcendente entre as coisas, e ainda de um sujeito
capaz de ordenar e estruturar os objetos a partir de uma estrutura suprassensível.
Segundo Deleuze, a imanência não é imanência à vida, mas pelo contrário: “uma
vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência completa”.
Parece mesmo, antes ou depois de tudo isso dito aqui, que estamos a
perseguir ou a buscar no deserto uma cidade invisível, uma escola imaginária, uma
ideia de educação utópica como aquelas que se criticava já no exórdio. Ou talvez, em
algum momento, que acabamos criando uma relação dual, daquelas às quais tanto
nos opusemos ao longo das páginas, em que a escola sedentária é o erro e a Escola-
Viagem é o acerto.
Zoé ou a Escola-Viagem, entretanto, já existe. Este texto não é sobre uma
escola que precisa ser criada, uma escola inexistente, a ser fundada, que abolirá a
escola antiga e resolverá os problemas da educação. A Escola-Viagem é uma força
também, uma intensidade que se forma todos os dias, devagar, virtualmente, no
interior de toda escola maior, dominante, de toda escola-Estado. É feita de
virtualidades, acontecimentos, singularidades.
A Escola-Viagem é uma escola menor, um carrapato à espreita da afecção
própria que lhe faça mover. Às vezes ela espera muito tempo, mas está lá, dentro de
toda instituição escolar, de toda escola-turismo, como um Ulisses na ilha de Circe, à
espera. A Escola-Viagem, quando começa a deslocar, se alastra, contagia a escola
maior como uma proliferação, como um ataque de pássaros, surge como uma

98 Sobre esse importante conceito deleuziano, cf. capítulo Poética do deslocamento, página 61 deste livro.

195
Daniel Gaivota

hecceidade99, contra a qual não se pode lutar, como não se pode lutar contra a chuva
ou o vento ou contra as cinco horas da tarde.
A escola cuja trilha temos perseguido, sobre cujo rastro temos caminhado, é
uma escola de imanência. Isto significa que ela não é definida por nada além, por
nenhum modelo ou forma abstrata ou transcendente. E não é que as vidas dos
viajantes que a perseguem e a movimentam sejam imanentes a ela. A imanência não
é imanente a nada, não existe em algo, não pertence a nenhum sujeito nem depende
de qualquer objeto. É imanência pura e simplesmente. É a co-existência das forças,
assim como são, e não relativas a um Ser ou a um Ato, em um mesmo e único plano.
“Pode-se dizer da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada diferente disso”
(DELEUZE, 2002, p.13). Não cada vida individual, mas uma vida.
Uma vida está em toda parte, em todos os momentos que este ou aquele
sujeito vivo atravessa e que esses objetos vividos medem: vida imanente
que transporta os acontecimentos ou singularidades que não fazem mais
do que se atualizar nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não
tem, ela própria, momentos, por mais próximos que estejam uns dos
outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos. Ela não sobrevém
nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio no qual vemos o
acontecimento ainda por vir e já ocorrido, no absoluto de uma consciência
imediata. (DELEUZE, 2002, p.14).
É quando podemos perceber este plano outro, em que o tempo e o espaço
como concebemos perdem o sentido, a partir do qual fica claro que os processos de
subjetivação e estabelecimento de verdades impedem a verdadeira relação entre as
pessoas, as coisas e as intensidades que perpassam toda a realidade, em que o ser é
imanente, está em permanente devir (ou seja, que não há ser a não ser como
afirmação do devir), este mundo outro – que é este mundo –, quando o percebemos,
quando percebemos o que é essa uma vida, que podemos compreender por que é
urgente devir-viajante. Cada vez que nos agarramos aos universais, cada vez que se
fixa como objetivo uma identidade, perde-se a possibilidade do devir, e perde-se a
possibilidade de se compreender e ao mundo como multiplicidade, de ser
atravessado pelos múltiplos fluxos que compõem a vida.
É preciso, portanto, partir e fazer partir, fugir e fazer fugir, arrumar nossas
trouxinhas e sair, mover, deslocar. Assumir o papel do Louco, carta sem número,
sem lugar, atravessada pelo sol, pelo ar, pelo animal e pela criança. Deleuze afirma

99 Sobre esse conceito em Deleuze e Guattari, cf. capítulo Poética do Deslocamento, página 61 deste livro.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

que em Platão100 aparecem duas dimensões: a primeira é a das coisas limitadas,


medidas, compreensíveis, sejam elas permanentes ou temporárias, mas que são
grandes ou pequenas, que estejam em repouso ou em movimento. A segunda é a de
um “devir puro”, sem medida nem objeto, que não se detém e que aponta para os
dois sentidos ao mesmo tempo. Chama esse devir de devir-louco. Ele escapa ao
presente e, infinitamente móvel, paradoxalmente apresenta identidade infinita – do
mais e do menos, do grande e do pequeno, do antes e do depois, da causa e do efeito.
Esse devir puro retorce a própria linguagem, e permite que seja possível, por
exemplo, a Alice, depois de entrar na toca do coelho 101, crescer e diminuir ao
mesmo tempo. Ou comer geléia ontem e amanhã, mas nunca hoje. Ser punida antes
de errar ou servir o bolo antes de reparti-lo. E a consequência desse devir-louco é a
perda da identidade de Alice.
A perda do nome próprio é a aventura que se repete através de todas as
aventuras de Alice. Pois o nome próprio ou singular é garantido pela
permanência de um saber. Este saber é encarnado em nomes gerais que
designam paradas e repousos, substantivos e adjetivos, com os quais o
próprio conserva uma relação constante. Assim, o eu pessoal tem
necessidade de Deus e do mundo em geral. Mas quando os substantivos e
adjetivos começam a fundir, quando os nomes de parada e repouso são
arrastados pelos verbos de puro devir e deslizam na linguagem dos
acontecimentos, toda identidade se perde para o eu, o mundo e Deus.
(DELEUZE, 1974, p.3).
O país das maravilhas, portanto, é o lugar do devir puro, do devir devastador
que, assim como a carta sem número, recebe a alcunha do Louco. A desestrutura
total, a derrubada de todos os nomes e a inversão de todos os sentidos, a destruição
do bom senso como sentido único e do senso comum como designação de
identidades fixas, é este o vetor para onde aponta também a Escola-Viagem. Só é
possível habitar o País das Maravilhas como estrangeiro, só é possível ser ali em
função dos devires. A Escola-Viagem não é esse mundo nem o mundo através do
espelho, mas pode ser a toca do coelho. É nela que todas as saídas, todas as linhas de
fuga, as tocas e as rachaduras são expostas. Habitar a Escola-Viagem é tornar-se
Alice, ou melhor, deixar de ser Alice. É abandonar pouco a pouco a subjetividade
como forma de se relacionar com o mundo, pouco a pouco ignorar seus nomes
próprios, números próprios e se relacionar com a realidade na forma de Uma vida.

100 Em especial nos diálogos Filebo, Parmênides e Crátilo.


101 A toca é um tema importante no capítulo O (des)território da Escola-Viagem, página 115 deste livro.

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Daniel Gaivota

A Escola-Viagem já existe no seio de todo rizoma, em toda relação de


poderes e forças que constitui cada escola do mundo. Ao passo que é preciso uma
poética do deslocamento e uma invenção da verdade, a Escola-Viagem já é. Dela
temos vislumbres, assim como o Robinson Crusoé de Tournier vislumbrava vez ou
outra sua “outra ilha” dentro da ilha. Podemos vê-la com o canto do olho sempre
que um aluno novo não sabe onde sentar-se, ou ouvi-la como um sussurro quando
um professor não sabe a resposta para uma pergunta. Podemos sentir
definitivamente seu cheiro nos refeitórios, nas quadras, nos banheiros, apesar de não
podermos vê-la ali, e sentir sua umidade no olho inquieto que observa o objeto
estranho sobre a mesa.
Podemos dizer sobre a Escola-Viagem que ela é UMA VIDA. Um só plano
onde tudo se relaciona mutuamente, onde, como na cidade de Zoé, a cidade da
existência indivisível, o lugar das coisas não está claro. Esta escola é a própria Zoé –
palavra que em grego significa nada menos que VIDA –, um tempo e espaço onde
se possa experimentar toda a desestrutura, desconforto e solitude que sofrem os
viajantes – para que se possa como eles exercitar a atenção, a escuta e a
hospitalidade como maneiras de estar no mundo. Um não-lugar, onde nada
permanece e o tempo não se conta. Uma vida, latente e poderosa, oculta em cada
escola, em cada canto mal iluminado, como um animal à espreita, prestes a atacar.
Em cada viajante eólico preso ao chão, em cada carta sem número. Em nó, em nós.
À espera.

Em nó, em nós. À espera.

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

199
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literatura: um passeio por água viva. In: Rev. de Letras - n. 22 - Vol. 1/2 - jan/dez. 2000.
OLIVEIRA, Marcela. Ulisses e o ardil da narração. In: Viso: Cadernos de estética aplicada,
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ONFRAY, Michel. Teoria da viagem: poética da geografia. Porto Alegre: L&PM, 2009.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: O banquete / Apologia de Sócrates. Trad. do grego de
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________. A República. Trad. do grego de Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: Ed.
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PRADO FILHO, Kleber; TETI, Marcela M. A cartografia como método para as ciências
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RODRÍGUEZ, Simón. Inventamos ou erramos. Trad. Cinthia Fernandes. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2016.
SERRES, Michel. Atlas. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995.
TOURNIER, Michel. Sexta-feira ou Os Limbos do Pacífico. Trad. Fernanda Botelho. São
Paulo: DIFEL, 1985.
VELOSO, Caetano. London, London. Londres: Polygram/Phillips, 1971. 1 LP.

202
ANEXO I – Transcrição da experiência da ampulheta

Escola Municipal Joaquim da Silva Peçanha.


Data: 20/06/2015
Turma: 5 ano
Coordenadoras: Edna e Vanise
Bolsista acompanhando a experiência: Priscila Liz Belmont
Relatório e Transcrição feita pela bolsista: Priscila Liz Belmont
Duração do áudio: 00:38:21
Obs: As passagens em negrito e entre parênteses são observações feitas pela transcritora.

Vanise: A Anie quer saber sobre aquele negócio lá! (o objeto que está em cima do armário,
referindo-se a ampulheta).
Os alunos olham em direção ao objeto, muito curiosos e excitados para falar sobre ele. Julia
se direciona ao armário para pegar o objeto.
Daniel: Cuidado com isso.
Vanise: Tem certeza que você vai fazer isso? (Pergunta para Julia quando ela pega o objeto, criando
um suspense na sala).
Aluna: É açúcar que tem aí dentro?
Julia: Não, é areia.
Aluno Gabriel: Quando isso aí acabar a gente vai embora. (Se referindo a areia que começa a se
mover dentro do objeto).
Edna: Por que quando acabar a gente vai embora?
Aluno Matheus: Porque isso aí demora muito.
Aluna: Não!
Aluna: Demora nada.
Aluno: é uma hora!
Professora Maria José: Então quer dizer que você gosta de ficar aqui e quer que demore
bastante?
Vanise propõe que cada um fale por vez para organizar a fala de todos. E pedem para terem
cuidado com o objeto ao jogarem a bola da vez para a pessoa que for falar.
Edna: Achei interessante, que o Gabriel falou assim: “Quando isso acabar, a gente vai embora”. Eu
falei: Por que você acha que a gente tem que sair daqui quando isso aí acabar? O que vai acabar? O
que acaba aí?
Aluno Gabriel: Não sei. O que eu sei, é que vai demorar muito para descer isso, então, enquanto
isso aí vai acontecendo, a gente vai conversando.
Edna: Mas o que acaba então? Você disse que acaba.
Aluno Gabriel: A aula.
Edna: A aula que vai acabar?
Aluno Gabriel: É. Por hoje.
Edna: Quando aquilo ali acabar? (Apontando para o objeto). Eu quero saber o que acaba ali. Eu
entendi o que era da aula que você estava falando. Que quando aquilo ali acaba, a gente ia sair
daqui. E o que acaba ali então? (Se referindo ao objeto).
Professora Maria José: Pergunta a ele o que significa “aquilo”. Você denomina “aquilo” de quê?
Aluno Gabriel: É como se fosse um relógio.
Aluna Luciana: A filosofia só pode acabar, quando o professor de educação sair da escola.
Vanise: A minha pergunta é para todo mundo. Por que o Gabriel falou que aquilo ali é como se
fosse um relógio? Por que ele acha que isso aqui, esse objeto aí é como um relógio?
Aluna: Porque ele existe.
Aluna Luciana: Que eu saiba, esse negócio tem em tempo, um jogo, que tem esse negócio para
marcar o tempo como vocês estão falando.
Aluna Sarah: Eu só acho, isso aí, eu acho que antigamente não existia esses relógios digitais e
modernos que tem hoje em dia.

203
Daniel Gaivota

Vanise: A Luciana disse que esse objeto aí, que a gente não sabe qual é o nome, ela disse que ele
erve para marcar o tempo. Como esse objeto marca o tempo?
Aluno Adriano: Ele marca uma hora.
Julia: E como ele marca?
Aluno Matheus: Tia, eu já sei! Se isso aí marca uma hora, deve quando marcar até no meio ali, é
uma hora. E quando vai ali até a metade, é trinta minutos.
Vanise: Sarah! Como que ali marca o tempo?
Aluna Sarah: Eu acho que quando conforme vai caindo, vai passando os minutos, aí, cai, acho que
são os segundos, não sei. Aí vai passando os segundos e vai passando a hora.
Vanise: Eu queria perguntar. Por que o Gabriel disse que isso aí é como se fosse um relógio, e a
Luciana disse que isso aí marca o tempo? Eu queria saber se tempo e hora são a mesma coisa.
Aluna: Eu acho que sim.
Aluna Sarah: Eu acho que tempo e hora... Eu acho que tempo para mim, é o que a gente está
vivendo neste instante. E hora, para mim, pode ser ou o que vai chegar, ou o que já passou. A hora
não é toda hora.
Os alunos ficam surpresos com a última afirmação de Sarah. “A hora não é toda hora.”, neste
momento ela afirma sorrindo, “Não é toda hora!”. Os alunos querem falar ao mesmo tempo.
Daniel pede calma aos alunos.
Edna: O tempo é agora! É isso que você está falando não é Sarah?
Aluna Sarah: Pra mim, o tempo é agora.
Daniel: E a hora?
Aluna Sarah: Ou é antes, ou é depois.
Daniel: Então, tu achas que ali dentro, esse negócio aqui, ele marca o tempo ou a hora?
Aluna Sarah: Pra mim, ele marca os dois. Porque o tempo ele vai marcando conforme vais
descendo a areia, e a hora quando ele já tiver caído tudo.
Aluno Matheus: Tempo e hora é diferente. Porque tempo pode ter haver com muita coisa, porque
se tá chovendo ou não, o tempo de hora...
Nesse momento em que Matheus fala, os colegas aplaudem sua resposta. Vanise indaga se as
palmas são para prestigiar ou para constrangê-lo. Todos que aplaudiram afirmam que o
fizeram pois gostaram da resposta do Matheus. Julia pede para que ele termine de falar
sobre o que ele achava que era o tempo.
Aluno Matheus: Pode ser o tempo, pode ser até mesmo o tempo de hora, até o futebol tem tempo.
Não pode ser tempo da hora não! A hora você vai ver no relógio, e você só vai ver ela, não tem
outras coisas lá.
Daniel: Pode ser tempo assim também, quando a gente fala: No tempo do meu avô... É um outro
momento.
Vanise: Eu estou inquieta. Como esse objeto, que se chama até agora de “aquilo”, que é tão
pequeno, pode marcar algo tão grande como o tempo lá fora? Isso que está acontecendo agora,
como que consegue marcar esse tempo? Como “aquilo” marca o tempo?
Daniel: Então a gente não sabe ainda o nome desse negócio...
Vanise: Não sabe? É “aquilo”!
Todos dão risadas.
Daniel: Mas aí, a Raquel tá falando, achou que o nome fosse o que estava escrito ali do lado do
objeto, mas não é. Ali do lado está escrito uma palavra em inglês. Tá ligado?
A turma dá risadas
Daniel: Essa palavra em inglês “Living” significa...
Os alunos ficam em silêncio.
Daniel: O que vocês acham que significa?
Edna: Vamos ver quem vai falar. O que você acha que significa a palavra living?
Vanise: Passa a bola aí!
Edna: Todo mundo junto. Vamos tentar imaginar.
Aluna: Ampulheta.
Aluna: Livre.
Aluna: living
Aluna: Relógio

204
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Vanise: Tempo.
Daniel estimula que os alunos não tenham receio de adivinhar o significado da palavra.
Daniel: Chuta aí gente! O que vocês acham? Não é um nome. É uma palavra em inglês que está
escrita aí.
Aluno Matheus: Ling ling (risos).
Daniel: Mas é uma palavra que significa alguma coisa. Essa palavra em inglês, em português
significa alguma coisa.
Vanise: Fala o que ela significa em português.
Daniel: Cada um falou uma coisa, relógio, tempo, ampulheta, produto de cabelo...
Aluno Matheus: Livre.
Daniel: Livre? Ou Living mesmo?
Aluno Matheus: Livre.
Edna: Há de ter alguma coisa com “livre”, eu acho.
Aluna Sarah: Eu não sei falar inglês.
Daniel: Tudo bem. Mas ninguém aqui. O que você acha que “living” é, para estar ao lado desse
negócio? (Escrito no objeto).
Aluna Sarah: Ham, é hora né?
Edna: Eu acho que tem a ver como alguma coisa que eu falei.
Aluno: O que você falou mesmo tia?
Edna: Livre. Eu sei o que significa living, mas eu acho que tem alguma coisa a ver com “ser livre”.
Aluna Isabele: É tempo ou temporizador
Aluno Matheus: Tia, pode falar outra coisa? Ou pode ser alguma coisa de medir.
Edna: Eu lembrei aqui agora, que quando eu tinha uma turma assim com a idade de vocês, pois eu
sou como o Gabriel que gosta muito de poesias. Aí a gente leu alguns poemas de um poeta
chamado Carlos Drummond de Andrade. E sabe o que o menino desenhou? Ele fez uma pintura,
foi pintura no quadro, quando ele leu essa poesia, a poesia se chamava “Para sempre”, e dizia na
poesia que mãe não devia morrer nunca, mãe não devia morrer, poesia linda, depois eu posso trazer
para vocês.
E tem a ver como isso que a gente tá falando. Porque sabe o que ele desenhou? O nome dele é
Leonardo. Ele desenhou no quadro um... lá no final... Tinha uma estrada, um horizonte, e lá no
final do horizonte tinha um relógio, aquele relógio grandão como pino de madeira que vende
nessas casas de coisa antiga. E nesse relógio, sabe o que ele fez? Ele desenhou os ponteiros, e fez
um ponteiro quebrado. Aí eu olhei aquilo dali e falei pra ele assim:
Meu Deus! Por que o ponteiro está quebrado? Aí ele falou assim: Professora, no poema estava
dizendo que mãe não devia morrer nunca, eu acho que não devia morrer nunca mesmo, então, só
parando o tempo pra mãe não morrer.
Aluna Sarah: Isso é a hora!
Edna: Aí, eu lembrei assim: Será que a gente tá falando do tempo? Da hora? Tempo é diferente da
hora?
Então será que a gente pode parar o relógio? Mas a gente consegue parar o tempo? Porque ele
disse que essa era uma forma dele parar o tempo, desenhando o ponteiro quebrado.
Sarah: O relógio, ele pode até parar, mas a vida vai andando. O tempo, ele vai parar o tempo do
relógio, mas não pode parar o tempo da vida.
Aluno Matheus: Porque o tempo do relógio é uma tecnologia, nossa vida não é.
Todos concordam balançando a cabeça.
Aluna Kailane: Se eu pudesse parar o relógio, eu ia fazer ele ficar no meu tempo a vida toda.
Edna: Mas você ouviu o que a Sarah falou? Que a gente pode parar o tempo do relógio, mas a
gente não para o tempo da vida. Então, como é que fica isso?
Aluna: A gente liga a máquina do tempo.
Edna: Caramba! E como é que se liga uma máquina do tempo? Já pensou?
Julia: Qual a diferença do tempo da vida para o tempo do relógio então? Por que durante a nossa
vida, a gente fica contando o tempo do relógio, se é diferente?
Daniel: Se o tempo da vida é diferente, por que a gente conta o tempo da vida?
Julia: É! Eu quero saber.

205
Daniel Gaivota

Aluna Sarah: Então, eu também não sei por que a gente conta no relógio. Porque eu acho que a
gente não deve contar o tempo, pois o que é bom pra mim, tem que ficar durando. Enfim.
Porém, o que for chato pode passar. O que eu quero dizer é que o tempo da vida é o que está
acontecendo agora, no momento agora. E o tempo do relógio, se a gente pegar esse e voltar ele ai
voltar.
Daniel nesse momento pega o objeto e coloca na posição horizontal, para mostrar o que
acontece.
Julia: Parou o tempo!
Ele volta o objeto para a posição anterior e todos dizem que o tempo voltou.
Aluna Sarah: Então, ele parou o objeto, mas a gente continuou vivendo, a gente continuou
brincando. Então, ali vai parar, se o senhor virar ele de lado ele vai parar, mas a gente vai continuar
vivendo. Então, eu acho que não tem nada a ver isso de parar o relógio, parou o relógio, parou. Não
tem como... Mas a gente vai continuar vivendo.
Aluna Matheus: Parar o tempo, concorda comigo? Para algumas pessoas não vai adiantar nada,
pois a minha mãe já morreu.
Vanise: Parar não vai adiantar?
Aluno Matheus: (Balança a cabeça negativamente). A coisa mais importante da minha vida já
passou.
Aluna: Se esse negócio aqui fosse um relógio, como seria esse relógio? Como ele iria virar?
Aluna Kailane: Se eu fosse Deus, eu ia trazer todo mundo da minha família que morreu.
Aluna Sarah: Ainda não aconteceu comigo, (se referindo à morte da mãe), mas uma pessoa muito
querida da minha vida também já se foi, o tempo parou para ela. Mas o que eu puder fazer para me
alegrar e me sentir mais pertinho dela eu vou fazer. Tipo assim, eu não sei se você era amigo dela
(se referindo à mãe de Mateus), mas tipo assim, se você soubesse de alguma coisa assim, que ela
mais gosta, o que você faria? (Pergunta olhando para Matheus).
Aluno Matheus: Ela morreu em março do ano passado. Eu acho que, o que eu tô fazendo aqui, ela
tá feliz, porque ela tá vendo eu, e o que ela queria era ver eu alegre. E no momento eu tô.
Aluno Gabriel: Ela falou sobre essa máquina do tempo, eu penso assim, se existisse essa máquina,
o que cada um aqui voltaria no tempo?
Aluna Kailane: Eu ia querer rever toda a minha família e ajudar muita gente que estivesse
morrendo.
Aluna: Se eu tivesse uma máquina do tempo, eu traria de volta o meu pai e a minha avó.
Aluna Karine: Se existisse a máquina do tempo, eu traria o meu avô de volta.
Aluna Sarah: Eu não gosto de pensar em voltar quem já morreu. Mas eu acho melhor a pessoa
fazer alguma coisa que aquela pessoa que já se foi gostaria que você fizesse. E tipo assim, a pessoa
valorizar o que tem, o que tá agora, pra quando for embora não ficar chorando.
Julia: Um dia eu assisti um filme, que tinha umas pinturas de quarenta mil anos atrás em uma
caverna, e eu queria voltar no tempo, para essa época, para conhecer estas pessoas que viviam com
mamutes, bichos estranhos ou se não bem antes, pois um dia destes eu vi um documentário que há
muitos milhões de anos atrás, aqui na Terra, antes dos dinossauros, tinham os insetos gigantes. E
eu queria estar em um lugar assim, há milhões de anos atrás para saber como era a Terra nessa
época.
Aluna: Eu não conheci meu pai. Quando eu fiz um ano, na verdade, ele morreu antes deu fazer um
ano.
Daniel: O que você está dizendo é que você voltaria no tempo para conhecer ele?
Aluna: (responde balançando a cabeça em sinal de positivo)
Vanise: Eu queria saber se a gente já não tem uma máquina do tempo? Porque se a gente consegue
pensar e lembrar de algumas coisas, se isso não seria uma máquina do tempo?
Aluno Matheus: Eu acho que a máquina do tempo não ia ser suficiente, pois se a gente tivesse a
máquina do tempo, a gente ia voltar, mas não ia tornar a pessoa que morreu imortal, que uma hora
a pessoa ia morrer de novo. Acho que só seria suficiente se as pessoas fossem imortais.
Aluna Sarah: Eu acho que eu tenho a solução!
Vanise: Gente! Falta cinco minutos para terminar a aula, e a outra turma tem que vir. E eu queria
assim, para gente suspender e continuar pensando durante a semana, o que eu queria propor para
vocês é o seguinte... Que se a gente pudesse dar um nome para esse objeto, que nome você daria?

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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem

Daniel: Antes, vamos só ouvir a Sarah, que ela disse que tem uma solução.
Aluna Sarah: A máquina do tempo, ela volta. Mas se você não conhecer uma pessoa, vamos supor:
Eu nasci e minha mãe morreu na mesma hora, tipo assim, a máquina do tempo só vai voltar
naquilo que a gente já vivenciou, então, digo que, se a gente quisesse voltaria a realidade, e se a
gente quisesse um momento com essa pessoa, a gente já deixaria as pessoas imortais.
Daniel: Eu acho que essa máquina do tempo existe, vamos pensar sobre isso. Vocês não acham
interessante a gente falar o que significa aquela palavra ali no objeto? Não é o nome deste objeto,
está escrito uma palavra em inglês, e esta palavra em português significa “vivendo”.
Julia: Eu quero pensar um pouco mais sobre isso, porque ela falou sobre o tempo da vida, o tempo
da morte, e depois a gente ficou falando sobre o imortal. E o imortal é como se fosse viver para
sempre não é? E aí, o que é o tempo para sempre?
Porque quando eu fico assistindo esses documentários, do espaço, do planeta e da Terra essas
coisas, as coisas não têm um tempo, e é tipo, ninguém sabe quando começou nada, é infinito, e nisso
quando vai acabar, eu fico assim... Caramba! É muito doido. O tempo que não tem como contar pois
é muito antigo, e ao mesmo tempo ninguém sabe para quanto tempo mais vai durar. E eu tinha
pensado sobre o infinito, que é a palavra que eu vou dar para este objeto, “infinito”.
Julia passa a bola para os alunos, que começam a dar nomes ao objeto.
Aluno Gabriel: Fim
Aluno Matheus: Medidor da vida
Aluna Sarah: marcador da hora/vida
Aluna Karine: Espelho
Aluna: Passar no tempo
Daniel: Máquina do tempo
Aluna Kailane: Infinito
Vanise: Aquilo

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