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NEFI
Coleção
Teses e Dissertações
Volume V
I
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Reitor: Ruy Garcia Marques
Vice-Reitora: Maria Georgina Muniz Washington
Sub-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Egberto Gaspar de Moura
Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPEd)
Coordenador: José Gondra
Vice-Coordenadora: Lígia Aquino
Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI)
Coordenador: Walter Omar Kohan
Conselho Editorial
Alejandro Ariel Cerletti, Universidad de Buenos Aires
Carlos Bernardo Skliar, FLACSO, Argentina
César Donizetti Leite, UNESP - Rio Claro
Gregorio Valera-Villegas, Universidad Experimental Simón Rodríguez, Venezuela
Gustavo Fischman, Arizona State University
Juliana Merçon, Universidad Veracruzana, México
Junot Cornelio Matos, UFPE
Karin Murris, Cape Town University
Marina Santi, Università degli Studi di Padova, Italia
Maximiliano Durán, UERJ
Olga Grau, Universidad de Chile
Paula Ramos de Oliveira, UNESP, Araraquara
Pedro Pagni, UNESP, Marília
Rosana Fernandes, UFRGS
Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo, UNICAMP
Wanderson Flor do Nascimento, UnB
Equipe de redação (NEFI/UERJ)
Alessandra Lopes
Allan Rodrigues
Fabiana Martins
Marcelly Custodio
Simone Berle
Capa: Marcelly Custodio de Souza
Diagramação: Simone Berle e Marcelly Custodio de Souza
Revisão Técnica: Simone Berle
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Daniel Gaivota Contage
ISBN: 978-85-93057-09-0
CDD 370.1
Índice para catálogo sistemático:
1. Educação: Filosofia 370.1
II
Daniel Gaivota
POÉTICA DO DESLOCAMENTO:
NOMADISMO, DIFERENÇA E NARRATIVA NA ESCOLA-
VIAGEM
Coleção
Teses e Dissertações
Rio de Janeiro,
NEFI, 2017
III
Coleção
Teses e Dissertações
IV
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO
V
VI
Em nó, em nós. À espera.
VII
VIII
AGRADECIMENTOS
E aos animais anômalos que ocupam a borda de seus territórios, agindo como
pontas de desterritorialização e (se/me) permitindo todos os devires. Se eles são
anomalias nas matilhas, bandos e multiplicidades aos quais pertencem, formam para
mim uma espécie de “matilha fronteiriça”, um des-território, mancha intensiva no
meu mapa de afecções.
São eles:
Uma aranha que, com calma, multitateia vários pontos, ao mesmo tempo (e
simultaneamente anda de bicicleta, traduz, cozinha, joga futebol, briga, ensina...),
que sonha em fiar, e fia, uma teia impossível – mas que se torna mestre, aí,
justamente pela capacidade de permitir sonhar e de fiar junto, com-fiar.
Um casal de pássaros que não cessa de cantar na minha janela, um amarelo e
outro azul, bem-te-vi e beija-flor, um solar e outro lunar, me lembrando,
respectivamente, que o dia sempre amanhece e que ele é sempre belo.
Uma minhoca que tem mais corações que pernas, que não pode ver direito o
que há em frente, mas segue, pois deixando um coração em cada lugar, policárdia,
re-corda.
Um animal marinho (um peixe? um golfinho? uma tartaruga?) que, por não
poder caminhar, ocupa oculto os subterrâneos da cidade, e, com ouvido muito
atento, se faz caminhante com o outro, através do carinho – que é quase caminho.
Um rato. Ou melhor, uma rata cantora, Josefina do povo dos ratos,
observadora tímida de um mundo que lhe pertence; que ao se alimentar de pura
intensidade, escapa do presente, transformando todo momento em aventura.
Uma prolífica vespa, cujo ferrão, embora pronto para atacar, funciona mais
como polinizador: tocando pouco a pouco centenas de botões de flores e trocando
partículas entre eles e entre si própria, faz vibrar a flora rizomática do pensar e do
saber, fazendo proliferar e proliferando fazer.
IX
Um animal desértico, resistente, que ao decidir abandonar sua condição de
camelo, passa a perseguir sua nova forma de lagarto ígneo, de dragão – de animal
que, por mais raro que seja, não vê o próprio valor através dos olhos dos curiosos,
mas na capacidade de esperar, tranquilo, o sol nascer através dos seus.
Uma lagosta-boxeadora, cuja maior força não são as pinças que se recusa a
usar, mas os olhos, capazes de ver centenas de cores inexistentes para a maioria dos
outros olhos. Seu segredo é simples: olhar demoradamente, como se ver fosse mais
do domínio do tempo que do espaço.
Um társio inquieto, impossível de manter em cativeiro, cuja música de
liberdade acorda e ativa todos os elementos, e cuja velocidade faz com que escape de
todas as redes de captura – mas se entregue, em compensação, às de pesca.
Agradeço também:
À matilha mais antinômica que já houve, na qual – como não pode deixar de
ser numa amizade – os animais são todos anômalos, cada um separado dos outros
por seu elemento – deserto, mar, céu, centro da terra – mas unidos eternamente por
um macaco caolho.
Ao bando de pássaros que, mesmo sendo de diferentes espécies, aprenderam
a voar juntos e piar em sintonia, a ocupar os fios e árvores dos aparelhos do Estado,
como uma intensa e feroz máquina de guerra ornitomórfica.
À panapaná vibrante que coloriu este trabalho, do início ao fim (se é possível
encontrá-los), com a vivência intensa de línguas ainda por escrever, infâncias,
americanidades, sabores, sorrisos e que, em sua constante e inevitável migração,
alterna-se sempre entre hospitaleiro e hospita-lar.
E às alcateias, cardumes, enxames, manadas, miríades, rebanhos, cáfilas e
chafardéis de animais-alunos que me fizeram multiplicidade e que me tornaram
educador. A cada um destes devoradores famintos que saboreiam o mundo comigo
nas salas de aula que acontecem através do mundo.
Aqui, muito especialmente, agradeço aos seguintes:
Uma libélula admirada, que flutua pelo ar com seus mil olhos e seus mil
pousos, prestando atenção e libertando os elementos;
X
Um avestruz, que no afã de voar, tropeça – mas cuja queda, como tudo o que
vem do impossível, é tão bela que, do alto, é invejado pelos que não sabem cair;
Uma píton, que habita o mundo de maneira tão verdadeira que seu veneno
lhe seria inútil – mas que em contrapartida, ao abraçar, retém eternamente;
Um lobo de poder que, tendo sido abandonado outrora, hoje alimenta
dezenas de Rômulos e Remos;
Uma anti-tartaruga, que no seu desejo íntimo de tartarugar, ganha sempre
ainda mais velocidade;
Um bicho sonolento (ora preguiça, ora gato, ora morcego), que por ser do
reino dos sonhos entende a lorota como parte importante da história;
Uma vaca, que, ao compreender que precisa transformar o mundo, decide
alimentá-lo de diferença, distribuindo todo o saber, sabor e amor que produz;
Um urso que, em sua meditação, por poder compreender diversos lados de
diversas situações, acha que fica louco, apesar de ser o animal mais são;
Um cavalo-marinho, que pensa que faz escolhas atento à beleza das opções,
mas não entende que é justamente ao escolher que produz toda a beleza do mundo;
Um leão azul que, apesar de não ter tempo a perder, deita ao sol de barriga
pra cima e aproveita o momento, porque acha que só viveu aquilo de que lembra;
E outro leão, vermelho, que sacode a juba rúbia e esconde a fraqueza, que
ruge alto e intimida a savana, mas que tem de mais vermelho mesmo o coração;
E outro leão ainda, da cor do sol, apolíneo e visionário, líder dominador e
independente – mas que no fim do dia, deitado para dormir, ronrona como um gato;
Um lobo que à noite se transforma em unicórnio – ou um unicórnio que de
dia vira lobo, seria impossível dizer;
Uma andorinha, que ao fazer seu ninho, em vez de se isolar, se aproxima, que
ao proteger seu filhote, o ex-põe, que é mãe como pássaro, pelo ar;
Um elefante companheiro, que, na sua ideia de ir mais devagar para não
abandonar ninguém da manada pra trás, tornou a “frente” o lugar menos
importante;
Um passarinho migrante para o qual a migração não tem tanto a ver com
conhecer o mundo, mas com a possibilidade de ser conhecido por ele;
XI
Um camaleão que compreendeu que a verdadeira mudança é aquela mais
difícil de perceber;
Um segundo camaleão, que aceita as mudanças que sofre ao entender que
você só se transforma no que você é;
Um cavalo-marinho, que pode finalmente perceber a própria beleza ao
conviver com um outro que a perceba também.
Um filhote de falcão, que sonha feliz com o dia que voará mais alto que todos;
Uma pantera, que mais que sensual ou incisiva, é noturna e oculta, seus
olhos passando por vaga-lumes nas sombras para qualquer animal menos atento;
Um peixe Limpa-fundo de água doce, que encontra, na limpeza do mundo
dos outros, a clareza dos próprios olhos, a busca de outros caminhos;
Um gato-do-mato, que quase nunca se vê (embora esteja sempre ali,
camuflado), mas ao aparecer, altera a cena e transforma as relações;
Uma coruja por oposição a si própria, que por não ser, acaba sendo – afinal as
corujas nunca se parecem exatamente com corujas;
Um macaco de sítio, que sonha em, na selva profunda, subir galhos e comer;
Um bicho-de-pé ou bicho geográfico, que encontra na superfície do que está
próximo todo um mapa-mundi de meridianos, horizontes, linhas, possibilidades do
que está longe;
Um piolho, que, vivendo de intensidades, não consegue se definir a não ser
por sua relação com os outros animais;
Um besouro, que debaixo da carapaça esconde o segredo de saber voar;
Um corvo, que aprendeu a falar diversas línguas, se comunicar com todos os
animais, mas que na verdade passa seu tempo mais observando que falando;
Um lupino-docente, que, ao contrário, encontra sua felicidade em passar
adiante o que sabe, preparando para a floresta diversos pequenos Mowglis;
Um coala que pode parecer lento a quem olha de fora, mas que está só
esperando para fazer seu ataque... às folhas de um eucalipto;
Um ouriço, difícil de abraçar, mas ao mesmo tempo tão fácil...;
Uma formiga-rainha que até parece querer escravizar a outra, mas no fundo
tem um profundo desejo de amor;
XII
Uma borboleta que não cansa de ser lagarta nem casulo e a eles retorna para
retornar borboleta, pois descobriu que a verdadeira beleza está na transformação;
Um bicho-preguiça que, aos próprios olhos, sente dor como uma arara;
Um outro lobo, que descobriu na docilidade e no sorriso seu lugar na
alcatéia;
Uma serpente que, a cada troca de pele, se torna menor e menor, mas cada
vez mais perto de ser deus – ou seja, nada;
Uma coruja que, noturna, sempre pareceu distante, mas só até olhar o fundo
dos seus olhos amarelos de quem nunca esteve em outro lugar;
Um peixe de aquário solto no mar, que não deixa de achar incrível (e
experimentar novas profundidades) estar debaixo de tanta água e nunca se afogar;
Um animal que, de tanto sentir, esqueceu que sente e acha ser humano – mas
que vai descobrir que a razão só existe como uma pequena parte da emoção;
Um castor que, sem aviso, pouco a pouco, dos restos de uma floresta que
caiu, constrói seu mundo, nos limites entre os elementos;
Uma girafa que não sabe se é galho ou um macaco que se pendura num
pescoço, sendo ao mesmo tempo o que é e o que não sabe que é;
Uma maria-farinha, que escondida em sua timidez, percorre todo um
território arenoso impossível só pra poder reaparecer e dar uma voltinha na
superfície.
Um pato insular, de andar engraçado e lento, mas cujo voo é o mais alto e
longínquo de todas as aves deste bestiário;
Uma pequena águia que, irrequieta, ocupa os fios dos postes da cidade,
fazendo voarem os pássaros próximos, esperando seu dia de partir;
Um bugio filósofo, que, ao invés de sussurrar preposições, as grita;
Um urso atento aos próprios sentidos e aos próprios prazeres, mas mais
atento ainda aos dos outros e do mundo;
Uma outra coruja ainda, mas diurna, subversiva, enfrentamento da coruja
noturna, aparecimento luminoso daquilo que deveria estar em outro tempo;
Um tatu que ocupa os buracos como um verdadeiro escavador, criando tocas
cujas entradas são sempre, paradoxalmente, saídas;
XIII
Um albatroz, que ao demorar anos aprendendo sua dança do acasalamento,
compreendeu que a viagem mais importante é sempre a de volta – ou seja, o amor;
E outro albatroz, que pelo contrário, aprendeu a viajar sozinho, também por
amor, mas aos elementos – água, terra, ar...
E, é claro, aos nem um pouco domésticos cães e gatos:
Um gato, mas não daqueles que volta para casa, ou seja, que só sabe sair;
Um gato que desconfia do desconhecido, e por isso lida ferozmente com ele;
Um gato que se faz é gato na felina relação com outros gatos;
Um gato com os sentidos vivos, sempre pronto para uma (pergunta)
surpresa;
Um gato preto, que, como todos sabem, tem poderes mágicos;
Um cão transparente, que não precisa esconder o que sente e vive verdade;
Um cão-espelho, que quanto mais amor lhe dão, mais amor devolve;
Um cão confiante, que apesar de confiar tem uma pulga atrás da orelha;
Um cão que luta para não guardar rancor, mas guarda mesmo é memória;
Um cão beagle, que precisa saber que.... o quê mesmo?
Um cão, que, mesmo arrependido por ter seguido seus instintos, lembra de
tudo com alegria;
E, por fim, ao Pancho, que no seu devir-Daniel, todos os dias me faz devir-
Gaivota.
XIV
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PRÓLOGO
Viajando com Daniel: escolas em movimento?
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Sílvio Gallo
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Prólogo
acontecimentos que nos guiam para lugares sequer imaginados, ser atravessado
pelas forças do fora, transfigurando-se em novas expressões.
Leiamos Daniel, viajemos, nos deixemos levar por suas ideias para praias
desconhecidas – ou talvez muito familiares. Nas asas da gaivota, tenhamos a
coragem de olhar a escola de outros modos: e talvez vejamos coisas das quais não
poderíamos suspeitar...
Sílvio Gallo
Referência
ONFRAY, Michel. Théorie du Voyage – poétique de la géographie. Paris: Le Livre de
Poche: 2007.
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EXÓRDIO
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Daniel Gaivota
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
Este texto, portanto, é um texto que pretende fugir, que pretende fazer fugir.
E por isso, nada seria mais incoerente que começá-lo com uma introdução. Esse
“membro” do corpo que estamos a criar, que não serve para introduzir, para fazer
entrar, mas pelo contrário, para fazer sair, poderia ser chamado de diversas
maneiras. Escolhemos “exórdio” apesar do peso que a palavra carrega por ser um
termo típico da retórica; nos discursos retóricos, o exórdio tem o papel inverso do
que sugerimos: ele ganha a simpatia do público e apresenta o tema. Ou seja, é uma
introdução. Exórdio, entretanto, é uma palavra que em sua origem etimológica
significa “começar para fora”, do Latim ex-, (para fora), mais ordiri, (começar).
Parece equivocado que os juristas e retóricos se apropriem dela para se referir ao
que já tem um nome bem apropriado, ou seja, uma “introdução”. Por isso,
retomamos a palavra, a tomamos de volta, e a resignificamos aqui, num verdadeiro
“começar para fora”, que é uma importante e mais pertinente forma de começar para
este texto.
Portanto, nossa opção pelo ex-, em detrimento do in- é uma escolha pela fuga
sobre o acolhimento, e nossa opção pelo ordiri, e não pelo ducere, presentes em
‘exórdio’ e ‘introdução’, respectivamente, mostra o apreço pelo começo, pelo novo,
mais que pela condução. Podemos pensar que essa oposição é análoga à oposição
apontada por Larrosa (2014) entre experiência e informação. Não é coincidência que
os prefixos das palavras, novamente, gerem um conflito. O que parece estar em
questão, nas duas comparações, é a possibilidade do movimento e a certeza da
fixidez; a liberdade do êxtase e a segurança da internação. Para fora e para dentro.
Sobre a relação entre experiência e informação, Larrosa diz:
O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo
buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante
informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado,
porém com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber
não no sentido de "sabedoria", mas no sentido de "estar
informado") o que consegue é que nada lhe aconteça. A primeira
coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é necessário
separá-la da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber de
experiência é que é necessário separá-lo de saber coisas tal como se
sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se está
informado. É a língua mesma que nos dá essa possibilidade. Depois
de assistir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido um
livro ou uma informação, depois de ter feito uma viagem ou de ter
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Daniel Gaivota
visitado uma escola, podemos dizer que sabemos coisas que antes
não sabíamos, que temos mais informação sobre alguma coisa, mas,
ao mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos aconteceu,
que nada nos tocou, que com tudo o que aprendemos nada nos
sucedeu ou nos aconteceu. (2014, p. 19).
O autor precisa separar a informação do acontecimento. Ao afirmar que
podemos dizer que sabemos ou aprendemos, mas ao mesmo tempo que nada nos
aconteceu, o que Larrosa faz é afirmar que a matéria dos acontecimentos é a
experiência, não a informação. Curiosamente, ele usa como exemplos tanto um livro
quanto uma viagem. Sobre a escrita, portanto, poderíamos dizer com Larrosa que
um texto simplesmente informativo não configura uma experiência, que nada
acontece a partir dele. E o que é a informação? Novamente nos encontramos com o
prefixo in- (para dentro), mais o radical forma (aspecto, forma), ou seja, informar é
“formar dentro”. Informar segue o mesmo vetor de introduzir: a internalização, a
interiorização. Por outro lado, a palavra experiência é muito mais complicada. É
evidente que a palavra tem a ver com um movimento para fora, a partir do prefixo
ex-, mas o termo não se esgota na sua etimologia. “A experiência não é uma
realidade, uma coisa, um fato, não é fácil de definir nem de identificar, não pode ser
objetivada, não pode ser produzida. E tampouco é um conceito, uma ideia clara e
distinta” (LARROSA, 2014, p.10). Se pensarmos no radical periri ou peritus,
podemos observar a experiência como prática, traduzi-la como um testar, repetir
várias vezes algo. Essa possibilidade traz a experiência para o campo da
materialidade, ou seja, para a esfera do real, do fazer, da práxis. Experimentar algo
tem a ver com viver esse algo, uma e outra vez, encontrar repetidamente a coisa.
Essa concepção contrapõe-se fortemente à ideia de forma presente na palavra
informação. Forma é o modo latino para o grego idea, e fundamenta o pensamento
idealista, que afirma o mundo a partir de objetos não mundanos, não
experienciáveis, transcendentais. É claro que podemos também pensar em outros
significados para esta palavra, e não deixaremos de fazê-lo.
Mas o outro exemplo de Larrosa é a viagem. Ele diz que podemos ter feito
uma viagem e, ao mesmo tempo, afirmar que nada nos aconteceu. Curiosamente, a
palavra experiência parece muito ligada à ideia da viagem. Ela contém a partícula
per-, que dá o sentido de atravessamento, perpassamento, como na palavra
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
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Daniel Gaivota
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
pretende conduzir, mas sim gerar acontecimentos, não seria esse texto uma
experiência? E se a experiência é algo que nos acontece, é possível ser o mesmo
após ler esse texto?
Não podemos dizer que o texto também deixa de ser o mesmo ao ser lido? A
relação rizomática que surge a partir do livro e do eu que o lê põe o leitor em um
devir-livro, mas faz também o livro devir-leitor. Assim, a melhor maneira de ler
esse texto, de experimentá-lo, de se entregar aos devires liberados pelo texto é
compreendendo que não é possível ler de maneira estanque, não é possível
permanecer. O preço para continuar os caminhos que se abrem é o próprio eu. É
preciso se abrir para abrir o texto, é preciso se deixar tremer, vibrar.
Poderíamos ter chamado essa não-introdução de Abertura, também. Porque
ela, além de começar, abre. Torna o texto aberto, pois não o define nem delimita,
mas também torna aberto o leitor. E, afinal, começa a abrir o mundo. O objetivo de
todo texto é abrir o mundo, torná-lo público, fazê-lo acontecimento, e esse
movimento nunca é para dentro, é sempre para fora. Um texto não pode ser
introduzido, pois o que se introduz torna-se oculto, interior. Um texto precisa
externar, precisa cantar. Precisa fugir, que quer dizer fazer fugir. Precisa abrir, que
quer dizer, no fim – ou no início –, fazer abrir.
Cabe ainda, aqui, pensar neste texto em relação ao seu lugar. Falar sobre a
viagem é, inevitavelmente, falar sobre lugares, sobre territórios, sobre
deslocamentos e movimentos, mesmo que se pretenda no fim negar ou desvincular
o movimento dos locais. Por isso parece importante, para se entregar a esta
experiência, para que de fato se possa abrir o mundo a partir desse lugar, pensar
sobre que lugar é esse, de onde esse texto fala, por que (ou por onde) esse texto
pensa. Este é ou se pretende um texto de filosofia da educação. Isso o coloca em
uma zona flutuante, entre um texto filosófico e pedagógico. A filosofia e a educação
são esferas historicamente ligadas e ao mesmo tempo epistemologicamente muito
distintas. Porque a filosofia parece, numa simplificação, ter a ver com um esvaziar-
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Daniel Gaivota
1 Dizemos “fantasmagórica”, pois compreendemos que nem tanto a filosofia se trata simplesmente de retirar
(pois percebemos nela um caráter criador, poético) e claramente nem a educação tem por fim preencher ou
completar (pelo contrário, e-ducar nos aparece como um movimento para fora de si).
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
A filosofia, por sua vez, aparece em sua forma mais reconhecida, em sua
intensidade politicamente transformadora com Sócrates. Em sua defesa pública
contra as acusações de Meleto, redigida por Platão na Apologia de Sócrates, o filósofo
afirma o pensamento como modo de vida, como cuidado de si e dos outros. A
filosofia parte de uma afirmação do não-saber, de uma ignorância. É necessário
esvaziar-se de saber para permitir lugar ao pensar. Assim, tampouco aqui o que está
em jogo é o que se aprende, o conhecimento, os saberes.
Pelo fato de cada um deles conhecer a fundo determinada profissão,
julgavam-se também proficientes nas questões mais abstrusas,
donde estragar esse defeito fundamental de todos a sabedoria de
cada um. Daí ter perguntado a mim mesmo, com referência ao
oráculo, o que fora preferível: ser como era, sem participar da
sabedoria e da ignorância de todos ou ser como eles, sob ambos os
aspectos? A resposta dada a mim mesmo e ao oráculo foi que era
melhor ser o que sou realmente. (22d-e)
A filosofia parte de uma afirmação do não-saber, de uma ignorância. Assim,
tampouco aqui o que está em jogo é o que se aprende, o conhecimento, os saberes. É
antes sobre esvaziar-se de saber para permitir lugar ao pensar. E esvaziar-se
significa olhar de uma maneira diferente, específica. Esvaziar-se significa esvaziar o
olhar. Descobri o que era filosofia ao observar minha prima mais nova
experimentar uma tangerina pela primeira vez. Seu nome é Clara, e na época não
devia ter mais de quatro anos. Ao me ver aproximando com a fruta, já olhou com os
olhos de quem acredita na beleza do mundo, olhos que desejam olhar. E ao olhar a
tangerina, com sua superfície inusitada, cor brilhante, ao sentir seu cheiro
marcante, largou o que quer que estivesse fazendo e se debruçou sobre ela. Eu, que
já me preparava para abrir mecanicamente a casca e engolir os gomos, quase sem
mastigar, resolvi observá-las (a menina e a fruta – ou a menina-fruta ou a fruta-
menina). Clara manuseou a tangerina com cuidado, explorando toda a superfície
com seus muitos sentidos, e eu, a observando, observando com ela, meta-
observando, comecei a pensar também na estranheza daquela casca. Resolvi avançar
um nível, e abri a casca, revelando o interior da tangerina. A surpresa da menina ao
perceber que outra realidade se escondia sob a crosta acabou me surpreendendo. O
que era tão incrível ali? Mas conforme Clara explorava o interior da tangerina, de
olhos bem abertos, comecei a pensar no absurdo de a natureza produzir uma fruta
29
Daniel Gaivota
segmentada: que processos naturais fizeram esta espécie separada em gomos, e não
seus primos mais holísticos, sobreviver?
A esta altura, já estava debruçado, também, observando cuidadosamente e
me questionando o que fazia com que os gomos permanecessem unidos, de modo
que, uma vez separados, não se colassem mais. Então lembrei da melhor coisa em
relação à tangerina, e mostrei a Clara que ela podia, claro, comer os gomos. A
epifania nos olhos da criança refletiu-se no sabor daquele gomo, e não lembro de ter
comido algo mais saboroso, não lembro de um saber mais intenso, de um sabor mais
intrigante. A tangerina era, afinal, incrível, e eu percebi que tinha esquecido
completamente disso. Foi preciso que eu entrasse num devir criança, que eu
aprendesse com aquela infância, Clara, que as coisas são incríveis, se olhadas bem. O
mundo ficou mais claro, e eu me tornei filósofo.
A filosofia se trata de abrir o mundo. Abrir o mundo como Clara abriu aquela
tangerina para mim, e para que isso aconteça, é preciso esquecer o que se sabe ou se
acredita saber sobre as coisas. Sócrates morreu um dia para que eu pudesse saber
disso hoje, mas foi uma criança curiosa e atenta, e não um livro de Platão, que me
ensinou o que é filosofia. A filosofia é uma experiência, não um saber; um modo de
vida, não uma disciplina; é um acontecimento, um movimento.
Não parece então que, em vista dessa concepção de filosofia que nasce da
admiração, que acontece na abertura do mundo, ela possa estar fora da escola
defendida por Masschelein e Simons. “Quando algo [...] se torna parte do mundo
em que/pelo qual estamos diretamente envolvidos, interessados, curiosos”
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, pp.49-50), afirmam os autores sobre os objetos
da escola. A filosofia só sobreviveu através da história por encontrar esse ambiente
seguro, protegido do mundo do trabalho, da família e da sociedade. Mas talvez a
escola só possa ser transformadora, só possa exercer seu papel pelo seu caráter
intimamente filosófico. Não se trata de observar a escola e a filosofia em uma
relação hierárquica e nem genealógica, mas rizomática. Só há escola por que esta
devém filosofia, e só há filosofia na medida em que ela devém educação. Isolada, sem
um caráter educacional, de relação com o outro e o mundo, a filosofia definha e se
torna um conhecimento analítico, frio, perde sua conexão com as coisas do mundo.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
2 Sobre a diferença entre a pedagogia e a educação, não afirmaremos uma hierarquia ou um termo preferido.
Por educação compreenderemos ao longo do texto, de acordo com sua etimologia, o processo maior pelo qual
se movimenta para fora de si. O pedagogo (pais + agogos), por sua vez, era o escravo que conduzia a criança à
escola. Ou seja, na invenção da escola, o pedagogo e o educador ocupavam funções diferentes. Aqui, na falta
de tempo e espaço para aprofundar esta discussão, limitamo-nos a compreender o pedagógico como o
conjunto de práticas escolares através das quais é possível deslocar, ou seja, gerar o movimento necessário
para que se e-duque.
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GUIA DE VIAGEM
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Daniel Gaivota
não como uma linha que vai até o destino, mas como uma série de encontros, uma
coleção de problemas a resolver – seja o funcionamento do chuveiro ou uma língua
desconhecida. Ou de novos problemas por traçar. Tem a ver com experimentar o
caminho mais do que alcançar o objetivo. Mais a ver com confundir os sentidos que
orientá-los. Tem a ver com afastar-se da meta, mais do que se aproximar dela.
Deleuze reserva um espaço amplo em seus escritos com Guattari para o
deslocamento, o nomadismo, o movimento. Mas é breve em suas colocações sobre a
viagem, não desenvolvendo nenhum conceito mais profundo e nem mesmo
defendendo sua potência. Para Deleuze, a viagem é desconfortável, evitável.
Talvez toda a reflexão sobre a viagem passe por quatro
observações, uma das quais encontramos em Fitzgerald, a segunda
em Toynbee, a terceira em Beckett, e a última em Proust. A
primeira verifica que a viagem, até mesmo nas Ilhas ou nos grandes
espaços, nunca opera uma verdadeira ‘ruptura’, enquanto levarmos
a nossa Bíblia conosco, as nossas recordações de infância e o nosso
discurso habitual. A segunda é que a viagem persegue um ideal
nómada, mas como voto irrisório, porque o nómada pelo contrário
é aquele que não se mexe, que não quer partir e se agarra à sua
terra deserdada, região central […]. Segundo a terceira
observação, a mais profunda ou a de Beckett, ‘não viajamos pelo
prazer de viajar, que eu saiba somos estúpidos, mas não a esse
ponto’. Então, que razão poderá em última instância haver, se não
for a de verificar, de ir verificar alguma coisa, alguma coisa de
inexprimível que vem da alma, de um sonho ou de um pesadelo, que
mais não seja saber se os chineses são tão amarelos como se diz, ou
se certa cor improvável, um raio verde, certa atmosfera azulada e
purpúrea, existe de facto algures, lá longe. O verdadeiro sonhador,
dizia Proust, é o que vai verificar alguma coisa. (DELEUZE, 1996,
p.100)
É sobre essas três observações que esta área do texto3, este guia de viagem,
se fundará. Deleuze faz três críticas à viagem – que ela não provoca uma verdadeira
ruptura, que ela não tem a ver com o nomadismo, que não faz sentido viajar por
prazer. Analisaremos mais profundamente estas três possibilidades enquanto
expomos os conceitos principais para nossa concepção de escola-viagem. Por ora, o
que parece interessante é perceber que Deleuze, apesar de querer negar a viagem, a
afirma, ao menos enquanto uma verificação. E não só uma verificação de um dado,
mas de algo “inexprimível”, ou seja, a busca pelos objetos da viagem é a busca por
3Nos referimos aos capítulos A escola e o devir-viagem e Poética do Deslocamento, sequencialmente nas
páginas 41 e 61 deste livro. O texto retornará em muitos outros momentos a essas três ou quatro
observações de Deleuze.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
algo que se vê, mas que não se pode dizer. É a busca pela experiência que não se
pode dar enquanto não se move, que nem mesmo o sonho pode dar conta de fazer
imagem. Viaja-se em busca de acontecimentos.
Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias,
imagens, livro ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés,
para entender o que é seu. Para um dia plantar suas próprias
árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar do calor. E
o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o
próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não
conhece, para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo
como imaginamos e não simplesmente como ele é ou pode ser. Que
nos faz professores e doutores do que não vimos, quando
deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver... Il faut aller voir – é
preciso ir ver! É preciso questionar o que se aprendeu. É preciso ir
tocá-lo. (KLINK, 2000, p.77).
Amyr Klink pode parecer discordar de Deleuze, pois afirma uma viagem “por
conta própria”, ou seja, um deslocamento real em oposição aos deslocamentos “sem
sair do lugar” (DELEUZE, 2001) do filósofo. Mas Deleuze não parece simpático a
uma teoria da viagem Proustiana, em que se viaja para verificar o mundo? O
viajante do Proust deleuziano, nesse sentido, não compartilha elementos com o
viajante de Amyr Klink, que navega em direção ao desconhecido para “ver mais”, ou
ver o mundo em sua imanência ou sua potência – e não como imaginamos ou como
ele deve ser, de maneira transcendente? De certa maneira os dois discursos podem
talvez se opor, é verdade, mas ambos contribuem com vetores para pensarmos no
conceito de guia de viagem. A palavra guia provavelmente tem sua origem na
palavra *witan, do frânico, que significa “mostrar o caminho”, mas pode ter surgido
a partir de *widan, do gótico, que quer dizer “juntar-se”. As duas tentativas de
etimologia permitem pensar no guia como alguém que se junta ao viajante, ou seja,
que se torna também parte da viagem ou como alguém que se junta ao lugar
viajado, ou seja, que não só observa, separado do objeto. Talvez um guia permita
que o viajante guiado torne-se o lugar, ou, se quisermos pensar com Deleuze, devenha
o lugar. Um guia não pretende, portanto, listar destinos, muito menos evitar
percalços (visto que o caminho é feito dos obstáculos e o guia mostra o caminho,
não o não-caminho; ensina a caminhar, não a evitar o percurso).
Um guia de viagem, nesse sentido, deveria nos permitir percorrer o sentido
do que é uma viagem, nos colocar em contato com os perigos e problemas deste
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Daniel Gaivota
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A ESCOLA E O DEVIR-VIAGEM
(OU SOBRE A LÁGRIMA DE ULISSES
E A MÁQUINA DE GUERRA)
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A ESCOLA E O DEVIR-VIAGEM
(OU SOBRE A LÁGRIMA DE ULISSES E A MÁQUINA DE GUERRA)
Prefiro pensar que a gente não aprende a ser estrangeiro; na verdade, a gente
desaprende. Ser estrangeiro pra mim é saber lidar com a diferença, estar aberto a
novas culturas, novos movimentos, novas experiências. Se você é estrangeiro e não
está, antes de tudo, aberto pra essas coisas, a experiência de estar em um lugar
diferente perde o valor – Rhebeca
Por que viajamos? Por que, sendo livres, senhores de nossas ações, e tendo à
disposição ambientes seguros e controlados para nos recolhermos ao menor sinal
de perigo, lançamo-nos na direção oposta, rumo ao que não conhecemos, desafiando
o mundo, colocando-nos em perigo, expondo nossa carne às intempéries e nossa
inteligência ao não-saber? Por que, mesmo enquanto estamos aninhados em
segurança em nossos quartos, certos de que nenhum mal nos poderá acontecer,
viajamos com os olhos ou os ouvidos através de livros e filmes sobre ilhas desertas,
aventuras e buscas perigosas, nos pondo em perigo sem saber (pois o mastro ao qual
nos amarramos para não sucumbir a esse canto é frágil, como veremos)? Por que
viajamos?
A história humana, que supostamente tem início com os primeiros registros,
é mais recente que a prática da viagem. Os primeiros registros de cada povo, os
textos primeiros de diversas culturas relatam viagens, o que pode nos fazer pensar
sobre o ser humano como um ser naturalmente viajante (mais que um ser histórico).
A epopeia de Gilgamesh, os poemas de Homero e Hesíodo, a Eneida, a saga dos
Nibelungos, o Lebor Gabala Erren da mitologia celta, o livro do Gênese (e na
verdade todo o primeiro testamento – e talvez mesmo toda a bíblia cristã, se
observarmos bem), o Mahābhārata e mesmo narrativas mais recentes, mas
fundadoras como Beowulf, Orlando Furioso, os Lusíadas, o Cantar de Mio Cid, a
canção de Rolando, todos estes textos primeiros são, finalmente, textos sobre
viagens. Que há na viagem que tanto fascina, que impressiona os homens a ponto de
fundarem suas culturas em tais relatos? O que torna aqueles que partem ao seu
encontro dignos de lembrança, de serem narrados? Ou é justamente por serem
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Daniel Gaivota
heróis que as figuras icônicas destas narrativas teriam sido capazes de enfrentar os
perigos da viagem? A viagem é o que confere valor aos homens ou é justamente sua
provação?
Michel Onfray afirma que cedo ou tarde todos nos descobrimos nômades ou
sedentários (ONFRAY, 2009, p.5). É uma afirmação categórica, estruturante. A
diferença entre o sedentário e o nômade é antiga, arquetípica, está presente nos
mitos originários, figura nas imagens de Caim e Abel, o agricultor e o pastor –
aquele que necessita do solo, da raiz, do permanecer no mesmo lugar para gerar
frutos; e aquele que precisa seguir, encontrar novos pastos, caminhar com os
animais para viver. Uma divisão deste tipo separaria pessoas com uma verdadeira
natureza móvel, figuras inquietas, incapazes de criar raízes, daquelas outras
silenciosas, estáveis, incapazes de deixar para trás suas construções. O maior castigo
para um sedentário é ter que caminhar, como podemos constatar na história dos
dois irmãos, no castigo que Caim, o agricultor, recebe após assassinar o irmão: é
condenado a errar pelo mundo. Se fosse o contrário e fosse Abel o fraticida, teria ele
sido condenado a passar o resto da vida no mesmo lugar, imóvel?
Compreender sedentarismo e nomadismo como atributos humanos, tipos de
personalidade, entretanto, configura uma redução. O viajante não viaja porque
nasceu viajante, nômade ou pastor de ovelhas. A força que impulsiona o viajante não
vem de dentro. Onde está esta força que nos faz viajar, que nos faz sair, nos
tornarmos outros quando é tão mais fácil permanecermos os mesmos?
Quando nos pomos em viagem, algo nos acontece. Toda viagem pressupõe
um encontro, um ponto de contato entre duas esferas que, enquanto não nos
movemos, permanecem separadas: o que somos e o que não somos. O que é igual a
nós mesmos e o que é diferente de nós. O mesmo e o outro. Em situação estática, o
mesmo e o outro encontram-se separados, intocados – como água e óleo em um
copo, talvez? O que a viagem faz conosco é, primariamente, confundir essa
separação. Ao nos separarmos do comum, do ordinário, do diário, do previsível e do
já sabido, entramos em território desconhecido, e o que é desconhecido é sempre
estranho ao eu, é estrangeiro. Não é simples dizer se é nossa subjetividade que
penetra no território do que é outro ou se a alteridade é que desliza para dentro do
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
que é eu. Talvez porque nenhuma dessas coisas aconteça, talvez porque o que
somos e o que não somos não estejam separados em um copo, para começo de
conversa.
O outro é um conceito externalizante em si. Compreender que há outro é o
mesmo que perceber uma ausência de si em uma presença objetiva. Há uma
distância infinita, intransponível, entre o outro e eu, mas ao mesmo tempo,
apreendemos o outro em nossa percepção, fazendo presente essa ausência absoluta.
O outro é uma contradição, é um absurdo, é o impossível. É através dessa
impossibilidade, dessa confusão que é possível deixar de ser o que estivemos sendo e
nos tornar o que tendemos sempre a ser, num movimento que é devir.
É bom que partamos de uma concepção potente de devir, que nos permita
mover, sem carregar pedras na bagagem – afinal, toda a filosofia de Deleuze, através
da qual pensaremos a Escola-Viagem neste texto, gira em torno do conceito de
devir. Devir não é tornar-se, nem imitar, mas experimentar a vida em suas forças
intensas, múltiplas, que se encontram, se separam e dão lugar a outras. É, em
oposição ao mapa de individualidades que carregamos para compreender o mundo
em suas divisões e segmentaridades, um real composto de muitos fluxos que se
atravessam ao mesmo tempo. Pensar o devir significa pensar uma realidade de
coisas que são e não são simultaneamente. Ou seja, dá outro sentido às oposições – não
se trata mais de pensar eu e o outro, isto ou aquilo, e sim deixar-se afetar por isto e
aquilo como linhas que nos compõem. Passa-se a ser eu e outro; isto e aquilo, pois
cada indivíduo, alma e corpo, possui uma infinidade de partes que
lhe pertencem sob uma certa relação mais ou menos composta.
Cada indivíduo, também, é composto de indivíduos de ordem
inferior, e entra na composição de indivíduos de ordem superior
[...] Eles se afetam uns aos outros, à medida que a relação que
constitui cada um forma um grau de potência, um poder de ser
afetado. (DELEUZE; PARNET, 1998, p.73).
Ou seja, o indivíduo que pensamos ser é atravessado por todos os outros, é o
próprio atravessamento, tem sua própria segmentaridade interna, é multiplicidade.
O mundo (imanente), portanto, é o plano onde todas estas forças, todos estes afetos
estão em jogo. Entrar no devir é “encontrar uma zona de indiscernibilidade ou de
indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma mulher, de um
animal ou de uma molécula..” (DELEUZE, 1997, p.21). É despir-se, “retirar essa
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Daniel Gaivota
roupa ridícula de homem” que usamos e nos entregar aos afetos que perpassam a
realidade.
Os corpos em seus contatos produzem os mais diferentes tipos de
efeitos. Como fagulhas que se desprendem de olhos que se olham,
os afetos não apenas passam de um sujeito para o outro, mas criam
uma zona de indiferenciação onde um torna-se o outro. Assim, é
possível se experimentar um fluxo enorme de sensações que mal
cabem no corpo tornando-se, por alguns instantes, pleno de vida.
(OLIVEIRA, 2000, p.91).
Assim, para além de uma experiência de outro, existe uma experiência mais
importante para a multiplicidade e os devires que é a experiência do fora, do lado de
fora, conceito trabalhado antes de Foucault e Deleuze por Blanchot, que pensou a
literatura e a arte como experiências do fora. Experimentar o fora significa entrar
em contato com uma violência que nos retira do campo da cognição e nos coloca
diante do caos, do acaso, onde não podemos prever os acontecimentos e onde nossas
relações com o comum são rompidas (LEVY, 2011, p.100). Em seu livro sobre
Foucault, Deleuze analisa o fora como o domínio das forças, da virtualidade
selvagem, em oposição a uma subjetivação. É o domínio onde o devir pode aparecer.
“Esse lado de fora informe é uma batalha, é como uma zona de turbulência e de
furacão, onde se agitam os pontos singulares, e relações de força entre esses
pontos”. (DELEUZE, 2005, p.129).
Deleuze não faz essa correspondência, mas as linhas que compõem este
conceito de fora parecem contornar e compor também o que é um plano de
imanência4. Se não podemos dizer que imanência e fora sejam um único conceito,
podemos ao menos compreender que se conectam por infinitas linhas. É em busca
desse fora que escrevemos este texto – e também parece ser em busca dele que
viajamos e educamos.
Continuamos a perguntar: por que viajamos? O encontro com o exterior não
parece se dar somente na viagem. Encontramos alteridade em todo objeto singular
e até mesmo em nosso próprio corpo e mesmo em nossas ideias ou memórias.
Outrem5 povoa meu campo perceptivo todo o tempo, dado que toda experiência é
experiência de um mundo exterior, de exterioridades que podemos ver e sobre as
4 Sobre o conceito de imanência, conferir capítulo Poética do deslocamento, página 61 deste livro.
5 Idem, sobre o conceito de Outrem.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
quais podemos falar. Mas isto não é o fora de Blanchot. Não é simplesmente para
encontrar objetos a partir de nossa subjetividade perceptiva que viajamos. Na
viagem, mais que este encontro com a exterioridade, há um encontro do viajante
com o fora, com o que está para além das bordas de seu território, como um corte
no caos.
É preciso distinguir a exterioridade e o lado de fora. A
exterioridade é ainda uma forma, como na Arqueologia do Saber, e
mesmo duas formas exteriores uma à outra, pois o saber é feito
desses dois meios, luz e linguagem, ver e falar. Mas o lado de fora
diz respeito à força: se a força está sempre em relação com outras
forças, as forças remetem necessariamente a um lado de fora
irredutível, que não tem mais sequer forma, feito de distâncias
indecomponíveis através das quais uma força age sobre outra ou
recebe a ação de outra. (DELEUZE, 2005, p. 93).
O fora parece ser um plano que não ocupa o limite da distância extensa, mas
pelo contrário, que intensamente separa o eu da própria subjetividade, ou seja, que
des-loca de um campo de posições na qual umas são exteriores às outras para um
plano de imanência, onde todas as multiplicidades ocupam a mesma dimensão e se
afetam mutuamente, inorganicamente, como tempestade, rizoma, matilha 6. “Há,
então, um devir das forças que não se confunde com a história das formas, já que
opera em outra dimensão. Um lado de fora mais longínquo que todo o mundo exterior
e mesmo que toda forma de exterioridade, portanto infinitamente mais próximo”.
(DELEUZE, 2005, p. 93, grifo do autor)
O fora é o plano que violenta a percepção, e é isso que se faz ao viajar, em
primeiro lugar. Mais que encontrar uma língua estranha, costumes
incompreensíveis, formas bizarras e funcionamentos diferentes do que estamos
acostumados, o viajante encontra forças desterritorializantes, que o transformam. É
através do encontro com um fora que violenta, que desestrutura, que o pensamento
pode ser forçado a pensar. “Se ver e falar são formas da exterioridade, pensar se
dirige a um lado de fora que não tem forma. Pensar é chegar ao não-estratificado
[...]; pensar cabe ao lado de fora, na medida em que este, “tempestade abstrata”,
mergulha no interstício entre ver e falar”. (DELEUZE, 2005, p.94). Assim, entre o
que o viajante experimenta no caminho e o que ele conta em sua narrativa, há um
6 Sobre essa forma animal de caos, conferir capitulo O (des)território da Escola-Viagem, página 115 deste
livro.
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Daniel Gaivota
intermeio, uma deriva composta de intensidades, de forças que o abalam, que fazem
com que algo aconteça.
Compreender esse encontro com o fora significa assumir que pensar não
depende de uma bela interioridade que reúna o visível e o enunciável, ou seja, de um
conjunto de informações ordenadas de maneira inteligível. Pensar tem a ver com o
encontro com o indizível, com o intenso, com se entregar para uma exterioridade
que ocupa as bordas do território e que avança em forma de contágio 7. Com o
tempo e o espaço vetoriais, onde o devir pode aparecer, como vamos analisar e
pensar ao longo deste texto-viagem.
Temos aqui, portanto, alguns elementos que podem ajudar a entender o que
é a viagem e sua importância para pensar a educação: o devir, a multiplicidade, a
estranheza, o caos, conceitos que remetem à ausência ou à destruição de uma
estrutura. É preciso desestruturar, violentar, ocupar espaços não-estratificados para
ser capaz de pensar o mundo e se relacionar com ele e seus devires. Estas ideias
orbitam o que Deleuze e Guattari (1995) chamam de uma máquina de guerra,em
oposição a um aparelho de Estado. A máquina de guerra é uma máquina nômade, no
sentido de que não cria estática, de que é uma máquina de movimento. O
nomadismo como conceito deleuziano não se refere a uma forma de abandono. A
segunda questão de Deleuze sobre viagens é relevante aqui: o nomadismo implica
um amor à terra que se está deixando, um gosto pelas origens e uma necessidade de
pertencer. A viagem não é um abandono do eu, mas uma busca por ele, uma viagem
para o ponto de partida, que será sempre revelado ao viajante como um novo solo
nativo, um território conhecido e mudado. Onfray parece concordar com Deleuze
sobre a fenomenologia do nomadismo quando diz: "Não há viagem sem reencontro
com Ítaca, que dá sentido ao deslocamento. Um exercício perpétuo de nomadismo
sairia dos limites da viagem para entrar na errância permanente, na
vagabundagem" (ONFRAY, 2009, p.82). Parece, portanto, que há uma forma de
viagem que é, como diz Deleuze, uma descoberta "real" em oposição a uma "falsa".
A viagem pode ser entendida, e parece ser o que Deleuze chama de nomadismo, não
7 Também no capítulo O (des)território da Escola-Viagem, página 115 deste livro, é possível ler sobre
territórios e proliferação por contágio.
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hóspede, mas também inimigo (DERRIDA, 2003, p.6). Quando Sócrates, no início
de sua defesa perante o tribunal, pede que lhe tratem como a um estrangeiro – por
não falar a mesma "língua" que seus acusadores, ou seja, a retórica, a língua dos
tribunais, a fala rebuscada dos juristas profissionais, em última análise uma fala que
não é atravessada por uma techné – o que pede não é só compreensão em relação ao
seu linguajar. Sócrates é um concidadão, e não um estrangeiro, mas ali assume o
papel de um, fala como um estrangeiro. É preciso que sua fala seja recebida não só
com o estranhamento que é esperado de uma escuta estrangeira, mas também com
a curiosidade, a atenção e a hospitalidade que também se espera desse tipo de
escuta.
O estrangeiro é digno de atenção9. Na presença de um corpo estranho,
diferente, as lógicas automáticas suspendem-se, o tempo assume uma outra
característica e o pensamento é forçado a pensar. O estrangeiro, que fala de maneira
estrangeira, força o nativo a ouvir de maneira estrangeira. Para relacionar-se com o
fora é preciso devir-fora, devir-outro, externalizar-se, desterritorializar-se. É
preciso deixar de ser o que se esteve sendo para se deixar fugir. Anne
Dufourmantelle, no seu convite a Derrida, corrobora esta posição:
Quando uma palavra faz parte da "noite", ela nos faz entender as
palavras de outra maneira. Assim, falar "do próximo, do exilado, do
estrangeiro, do visitante, do sentir-se em casa na casa de outro",
impede conceitos como "eu e o outro" ou "o sujeito e o objeto" de
se apresentarem sob uma lei perpetuamente dual. O que Derrida
nos faz compreender é que ao próximo não se opõe o algures, mas
uma outra figura do próximo. (DERRIDA, 2003, p.50).
O que Derrida, Dufourmantelle e Sócrates estão tentando dizer é que o
estranho merece atenção. E o dizem pelas mesmas razões pelas quais Blanchot se
debruça sobre o fora. A realidade não é simples como os sistemas de objetivação
transcendentais sugerem. A relação entre eu e o outro, a barreira que nos separa do
que não somos é uma arbitrariedade. Ela só pode fazer qualquer sentido dentro de
um tipo muito específico de pensamento, de olhar, de um esquadrinhamento do
mundo, de um olhar separador, dissecador. Se compreendemos que, ao se colocar em
um estado imanente, ao se pôr em relação rizomática com o mundo, ao estabelecer
9 Sobre a fala do estrangeiro e o relato de viagem, cf. capítulo A narrativa na Escola-Viagem, página 147
deste livro.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
com o fora uma relação vetorial, o "eu" que se relaciona com os objetos passa a não
ter lugar (já que sem as delimitações do tempo e do espaço nada tem lugar),
compreendemos que ele (o “eu”) não é diferente do outro – ou melhor, é a pura
diferença, torna-se outro. Dufourmantelle parece concordar, colocando em questão o
território do eu que pergunta, do eu que pensa; talvez somente possa ser a partir do
mover-se, do não estar, de não ter uma terra:
E esta geografia conduz meu sentido, ao longo do seminário, à
revelação da questão "onde?" como sendo a questão do homem.
Questão que tem em comum com aquela da esfinge o
endereçamento a um homem que caminha, que não tem outro lugar
que não o estar a caminho, rumo a um destino que lhe é
desconhecido, mas que de sua sombra o precede. A questão "onde?"
não tem idade; transitiva, ela dá como essencial a relação com o
lugar; com a morada, com o sem-lugar; e recusa por sua própria
função o pensamento em sua relação de compreensão do objeto. A
verdade está no movimento que a descobre e no rastro que a
nomeia. Trata-se menos de definir, de explicar, de compreender,
que de medir-se com o objeto pensado descobrindo nesse
enfrentamento o território no qual a questão se inscreve; sua
justeza. É por isso que "a fronteira, o limite, o limiar, o passo
adiante nesse limiar" frequentemente retomam à linguagem de
Derrida, como se a impossibilidade de delimitar um território
estável em que o pensamento pudesse estabelecer-se fosse
provocadora do próprio pensamento. "Para oferecer hospitalidade",
pergunta-se ele, "é preciso partir da existência segura de uma
morada ou apenas a partir do deslocamento do sem-abrigo, do sem-
teto, que pode se abrir para a autenticidade da hospitalidade?
Talvez apenas aquele que suporta a experiência da privação da casa
pode oferecer a hospitalidade."
"Onde?" quer dizer que a questão primeira não é aquela do sujeito
como "ipse", mas, mais radicalmente, aquela do próprio movimento
da questão a partir da qual o sujeito advém. Ela traduz a
impotência de se ter uma terra para si, já que a questão volta para o
próprio lugar que se acreditava assegurado para poder começar a
falar. Ela coloca a questão do começo, ou, antes, da impossibilidade
do começo, de uma origem primeira incontestada em que o logos se
inscreveria. (DERRIDA, 2003, pp.50-56).
Talvez só seja possível uma verdadeira relação com o outro a partir de um
abandono do eu – não de uma maneira ascética, negativa, não uma depreciação de si
ou do corpo (é o oposto disso!), mas de maneira afirmativa, compreendendo (como o
estrangeiro do Sofista de Platão) que o não-ser é, e o ser, de certa maneira, não é.
Se tornar estrangeiro, portanto, significa compreender que mesmo e outro
não são água e óleo em um copo, mas uma construção linguística. Compreender-se
51
Daniel Gaivota
outro significa tornar-se uma linha de fuga, uma válvula de escape às estruturas
através das quais o pensamento se acorrenta. Tornar-se um viajante é devir
estrangeiro, é devir a própria viagem, ocupar um tempo e um espaço de uma
maneira intensa e desestruturante, tornar-se máquina de guerra. O viajante é um
vetor de exteriorização, o que não é o mesmo que dizer que ele foge; significa que o
viajante faz fugir. É uma linha de fuga, uma abertura.
Então é preciso gaguejar, tropeçar, retornar: por que o viajante viaja?
A terceira afirmação de Deleuze, fundada em uma citação de Beckett, pode
ser confrontada aqui. O Filósofo se mostra desconfortável em relação às viagens
por muitos motivos, mas afirma que a justificativa mais estúpida é a de que se viaja
por prazer. Novamente é preciso lidar com um obstáculo (são eles a condição de
possibilidade de qualquer viagem), pois se por um lado afirma-se que a justificativa
da viagem é o prazer, por outro, nega-se o prazer da viagem. Novamente não parece
tão simples assim viajar.
De fato, a viagem feita em busca de prazer parece configurar mais
provavelmente um tipo de turismo: planeja-se cada passo com o intuito de não
haver incômodos, problemas ou complicações. Uma viagem pelo prazer é uma
viagem que se opõe ao pensamento: o viajante hedonista não pretende ter que
pensar em nada durante a viagem. Não parece exatamente o tipo de viagem-ruptura
que viemos defendendo, e talvez Deleuze esteja realmente correto ao afirmá-lo. Mas
esse tipo de viagem turística é relativamente recente. A história humana parece ser
contemporânea à história das viagens, como já observamos. Nenhuma delas,
entretanto, conta uma história turística.
Viajar sempre foi perigoso. Navegar era um ato de ousadia, e não era raro
haver deuses marinhos para os quais rogar durante as aventuras. Atravessar um
oceano era, há algum tempo, o maior deslocamento que se poderia fazer. Cruzar o
Atlântico alguns séculos atrás definitivamente não era algum tipo de turismo, uma
vez que o que estava esperando do outro lado era sempre o desconhecido. Um salto
para o incerto, um deslocamento imprevisível (esta definição de viagem certamente
parece ser o tipo de que Deleuze gostaria mais). Hoje em dia nós meio que sabemos
o que nos espera do outro lado – um aeroporto, a alfândega, esperar sua bagagem,
52
Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
tirar algumas fotos de alguns lugares. Portanto, temos ainda de olhar melhor para
encontrar o lugar de diferença nas viagens. Para começar, nós normalmente não
cruzamos mais o oceano de barco.
O voo é um deslocamento muito especial, porque para nós humanos é
antinatural, portanto, é sempre vertiginoso. Neste ponto temos que fazer um
esforço para fazer uma relação: tudo que é não-natural provoca vertigem? Não
parece ser assim. Parece fazer mais sentido que a vertigem seja causada, criada ou
gerada pela diferença. É a sensação de algo fora do seu lugar, algo que não obedece à
nossa ordem pré-estabelecida do mundo que se manifesta diante de nós, que nos
obriga a pensar, como afirmam Foucault e Deleuze.
"Que violência deve ser exercida sobre o pensamento para que possamos
tornar-nos capazes de pensar; que violência de um movimento infinito que, ao
mesmo tempo, tira de nós o nosso poder de dizer ‘eu’?" (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p.55). Em outras palavras, o que faz o pensamento pensar? Algo que o força,
um encontro imprevisível, algum golpe violento que provoca estranheza. Isso
significa que, para que possamos pensar filosoficamente, é preciso estar em
vertigem, e para isso, é preciso ser surpreendido, encontrar com algo inesperado, ou
em outros termos, é preciso desafiar ou negar ou destruir alguma estrutura. E esse
encontro acontece no corpo. O corpo do viajante é, portanto, um corpo em
vertigem10.
Por isso podemos pensar sobre a ideia de Deleuze de que é possível viajar
com o corpo imóvel. Compreendemos a crítica do filósofo a uma viagem puramente
extensiva em oposição às intensidades que podem acontecer de maneira imóvel, mas
enquanto assumimos a possibilidade de um devir-viajante (que não é um tornar-se
viajante, portanto), ou seja, de uma força que pode atravessar as pessoas e as coisas
que se abrem a ela, que promova um deslocamento intensivo. Esta é a maneira de
deslocamento mais interessante à Escola-Viagem, na medida em que o que se está
propondo ou explorando aqui não é a ideia de uma escola que – literalmente – se
mova pelo espaço. Mas é preciso afirmar o valor do movimento real, do movimento
53
Daniel Gaivota
do corpo11. Ao sair do lugar, o corpo se afeta: deixa uma parte sua pelos caminhos e
leva consigo partes do caminho. Mesmo que o movimento do corpo seja lento ou
rápido, quando é vertiginoso, o desterritorializa, o transforma. Nosso corpo não é
externo a nós, o corpo é imanente. Deslocar-se a si não é diferente de deslocar o
corpo.12
Assim, retornando à questão do fora, Deleuze situa novamente o pensamento
em um vetor de força que nos tira do lugar, que não é metrificável (e por isso é
infinito), admitindo como condição do pensamento uma violência, que não só nos
aflige, machuca, mas que “tira de nós nosso poder de dizer ‘eu’”, o que parece ser o
tipo mais grave de violência. Assim, é ao nos retirar de um plano transcendente no
qual os limites do eu estão bem definidos que o pensamento é violentado e forçado a
pensar. É a partir do encontro com o outro, com o estrangeiro, mas principalmente
com esse campo de forças que se encontra do lado de fora que somos forçados a
experimentar a desestrutura.
Ora, talvez, e só talvez, essa coisa, evento ou objeto estranho, essa força,
embora provavelmente desconfortável, possa ser um objeto de prazer. Na verdade, a
vertigem não parece ter uma relação direta com o prazer ou a dor, mas temos uma
tendência a – de maneira ilógica, olhando bem – tornar o tempo do prazer um
momento imóvel, preso e estanque. Imaginamos uma distância entre o prazer e o
pensar, como se sentir-se bem fosse suficiente, ou como se, para desfrutar de um
momento, tivéssemos de parar de pensar – opomos o pensamento ao sentimento.
Infelizmente, ao pensar o prazer dessa maneira – e isso é fruto de um modo
de pensar platônico, dualista e transcendente –, desperdiçamos a oportunidade de
desfrutar o prazer da maneira mais intensa. Admitir que uma boa refeição, uma boa
música, um filme emocionante – mas mais do que isso: um profundo silêncio, um
sorriso bonito, um novo sabor, a sensação de finalizar um trabalho (ou desistir dele),
uma cor nunca antes vista, etc. – podem ser objetos de estranheza, de espanto, isso
significa dizer que esses prazeres podem ser vertiginosos, podem nos fazer mover.
11 Ler mais sobre a relação do tato e da experiência no interlúdio Garantindo as passagens, página 85 deste
livro.
12 Sobre o corpo, seu movimento lúdico e sua relação "literária" na escola - ou seja, menor, cf. a dissertação de
Osvaldo Luiz da Silva, companheiro do NEFI: O corpo do educador da Educação Infantil lido como uma
Literatura Menor, 2012, disponível no banco de teses e dissertações do ProPEd.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
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Daniel Gaivota
recordações13 de nossa infância nem de uma infância que não tivemos que contamos
quando viajamos.
13Sobre memória e relato, cf. o capítulo Onirodinia e relato, página 169 deste livro.
14Sobre a relação de Ulisses, Penélope e a narrativa de viagem, cf. capítulo A Narrativa na Escola-Viagem,
página 147 deste livro.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
15 É preciso tomar cuidado com essa afirmação, entretanto. Como Voltaire ironiza, Ulisses atravessa vinte
anos de provações, mas permanece o mesmo, como se não envelhecesse. A jornada da Odisseia pode ser
interpretada por alguns pensadores da viagem como uma ”jornada para permanecer”, o que de nenhum modo
é nossa intenção defender. Assim, a afirmação “todo viajante é Ulisses” deve ser entendida neste sentido
muito particular de que ele movimenta os vetores de força e força os limites dos territórios daqueles que
encontra, dos “donos da casa”.
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POÉTICA DO DESLOCAMENTO
(OU SOBRE INSULARIZAR O MUNDO)
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POÉTICA DO DESLOCAMENTO
(OU SOBRE INSULARIZAR O MUNDO)
16 Sobre a possibilidade de uma pesquisa em educação em deslocamento, que seja viajante, como trilha,
viagem, presença em diferentes cenários, cf. o livro de Maria Reilta Dantas Cirino, companheira do NEFI:
Filosofia com crianças: cenas de experiência em Caicó (RN), Rio de Janeiro (RJ) e La Plata (Argentina), 2016,
Edições NEFI.
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Daniel Gaivota
17 Podemos ir mais atrás em uma busca etimológica, atrás de radicais indoarábicos, por exemplo, e ainda
mais, progressivamente, por termos e origens que penetram e afetam a língua através de múltiplas entradas;
em numa regressão absurda, essa busca uma hora ou outra nos levaria a balbucios e gritos – o que nos leva a
pensar que talvez, em última análise, o que fazemos todo o tempo é balbuciar e gritar de uma maneira mais
(?) sofisticada ou estruturada.
18 Confira os capítulos deste livro O tempo da Escola-Viagem e O (des)território da Escola-Viagem,
sequencialmente nas páginas 91 e 115 deste livro, para mais informações sobre Moby Dick.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
19 Sobre pontos, marcos e nomadismo, confira capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.
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Daniel Gaivota
humana, por oposição a essa natureza inconsciente, tem vontade própria. Esta
separação entre o racional e o natural ou o ideal e o material já é antiga na história
do pensamento, e pensadores da imanência como Nietzsche e Spinoza a enfrentaram
com vigor. A ideia de um mundo dual, onde as formas e os objetos metafísicos
estejam separados da realidade concreta (ou pior, onde estes objetos é que
representem a realidade concreta) configura grande parte do problema no
pensamento e na educação.
Pensar em um movimento que se des-loque no mundo significa compreender
que o deslocamento não é uma saída do mundo nem um mover-se pelo mundo, mas
um mover-se através do mundo, saltar de um plano em que o ser é possível como eidos,
como ideia transcendente, para um plano em que todas as multiplicidades sejam
concomitantes, em que o ser estável não é possível na medida em que as definições,
limites, estados, nomes e relações são apenas cristalizações de uma verdade
arbitrária. Ou seja, um plano vetorial, um plano de imanência. O mundo é múltiplo,
e o movimento que provoca uma verdadeira ruptura é um deslocamento através
dessa multiplicidade, um deslocamento nômade20.
Há diversas maneiras de se deslocar, de viajar com as quais podemos fazer
relação para pensar o deslocamento operado na Escola-Viagem. A viagem solitária,
com amigos, a caminhada, a peregrinação, a exploração, a viagem do mensageiro, a
fuga, a migração, o deslocamento transumante, o turismo, o nomadismo. Mas a
mais potente para se pensar o conceito de deslocamento – por ser a mais antinatural
– é o exílio. O exílio é sempre uma violência, sempre um deslocamento brusco. A
canção de Caetano Veloso, escrita em seu exílio em Londres, denota o que acontece
quando somos exilados de nosso território:
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
21 Sobre a errância, pode ser interessante considerar o interlúdio Garantindo as passagens e o capítulo O
tempo da Escola-Viagem, sequencialmente nas páginas 85 e 91 deste livro.
22 Sobre a potência interruptora, profanadora, de desnude dos gestos singulares e sua importância para
pensar a escola e a experiência, cf. o livro de Beatriz Fabiana Olarieta, companheira do NEFI: Gestos de
escrita: pesquisar a partir de uma experiência de filosofia na escola, 2016, Edições Nefi.
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Daniel Gaivota
analisar a hipótese de o prisioneiro liberto voltar às trevas? Não parece que ele seja
de certa forma impelido a retornar, a partir do conhecimento do bem que
encontrou? Ou, em outras palavras: existe mesmo para Platão a possibilidade de o
prisioneiro não retornar? E se não existe, ele não se torna uma espécie de exilado
em sua caverna natal?
Durante muito tempo a imagem do filósofo permaneceu cristalizada como a
do sujeito que caminha em direção à luz, deixando para trás as trevas. A alegoria,
entretanto, contribui para uma visão dual, transcendente do mundo, que acaba se
mostrando muito problemática, pois esvazia o mundo de suas forças, de sua
intensidade e importância, e desvaloriza a relação entre as coisas e as pessoas.
Pensar a educação através dessa ótica contribui para a afirmação de dispositivos e
estruturas de poder e dominação, além de despotencializar o pensamento e os
encontros.
Jan Masschelein, em uma apresentação de seus conceitos (informação
verbal)23, em resposta, utiliza a metáfora da caverna para inverter a reflexão
platônica e contrapor a pedagogia à filosofia, de certa maneira. A escola, assim
como a caverna, é um lugar suspenso, separado da vida cotidiana, onde não há o
tempo cronológico nem o tempo como clima (não é possível saber se é dia ou noite,
se chove ou faz sol, se é primavera ou outono de dentro da caverna). A caverna é um
lugar sem luz, mas que, ao contrário da imagem platônica de uma luz ideal que já
existe e deve ser buscada, necessita de uma luz artificial, uma luz que seja criada por
seus habitantes. A parede da caverna, segundo a análise de Masschelein, é o lugar
onde o homem pode imprimir sua mão com tinta e ao observá-la pela primeira vez
pode observar-se não como uma ferramenta, mas como um ser a ser pensado. Pela
primeira vez o homem olha para seu corpo enquanto um objeto externo à própria
subjetividade. Na caverna é possível observar-se fora de si. Devir-outro.
Mas a caverna é um ambiente, em um sentido específico, estático. Por mais
que ali se dê uma espécie de deslocamento, ela não permite uma experiência muito
23 Apresentação de Masschelein no ECS Forum (Education, Culture and Society Forum) da Universidade de
Leuven, onde leciona. A apresentação citada aconteceu em 13/03/2015 sob o título de “Education,
philosophy and … caves”. O vídeo pode ser acessado através do site da universidade, neste link:
https://blog.associatie.kuleuven.be/ecs/jan-masschelein-education-philosophy-and-caves-video-recording/
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
específica, que é pôr-se em perigo (ou melhor pôr o Eu em perigo). Embora seja
preciso, como afirma Masschelein, coragem para entrar na caverna, ela oferece um
tipo de segurança que é diferente do conforto da casa, mas que ainda imobiliza, que
ainda permite um se deixar estar. A caverna não é como a toca dos animais, que tem
várias saídas, mas uma só entrada e uma longa extensão silenciosa. Sem a presença
humana, não há movimento nas cavernas (salvo a presença ocasional de algum
animal, mas não de uma proliferação).
A escola, por sua vez, tem a ver com um descobrir (a-létheia) que ao mesmo
tempo seja um criar24. Não se trata ali de ocupar um lugar silencioso ou imóvel, ou
um tempo que seja sempre presente (num sentido de um agora que se prolonga). A
imagem da caverna evoca um espaço onde, por não estarmos afetados pelas linhas
de força do mundo, do hábito, da sociedade, possamos colocar objetos em evidência,
deslocados de suas funções habituais, e olhar para eles com atenção. Ou seja,
segundo Masschelein, olhar outra vez, uma segunda vez; “oferece a possibilidade de
um 'segundo começo' [...]: um olhar liberado, libertado por si próprio da sombra de
uma existência bruta, por aprender a ver o mundo como um reflexo de sua própria
imagem” (2015, tradução nossa, grifo do autor). Ou seja, a possibilidade de observar
o mundo em suas forças, um espaço imanente. Entretanto, esse outro mundo vazio
no fundo funciona como uma separação, uma segmentação das forças que acabam
tornando-se objetos de um sujeito – que se interessa e presta atenção, mas que
ainda é um sujeito. Ali está a parede onde se pode ver o cavalo, desprendido de sua
função atribuída, separado de sua relação simbólica religiosa e casual; é um cavalo
“puro”, mas é ainda um cavalo para mim.
Por isso, talvez a escola não deva se parecer com a caverna, apesar de
certamente ter algo a ver com um exílio (é na escola que as crianças são separadas
de suas famílias, é na escola que se encontram longe das expectativas dos pais e da
sociedade e das regras econômicas e sociais que regem o mundo fora dela). Assim, a
caverna é uma metáfora bonita para uma reflexão sobre a escola: ela representa
"uma separação para com o mundo da vida cotidiana e do eterno ciclo da vida
natural, os ritmos do dia e da noite e as estações. É um lugar de outra experiência
24 Esta relação entre a descoberta, a verdade e a criação é explorada no capítulo A narrativa na Escola-
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Daniel Gaivota
espacial e temporal, sobre o que testemunham os traços nas paredes. Um lugar, por
assim dizer, sem lugar” (MASSCHELEIN, 2015, tradução nossa). Por isso, não
queremos negar a caverna como uma imagem potente para pensar a educação e a
escola, mas encontrar nossa própria. A Escola-Viagem não é exatamente um “lugar
sem lugar”, ou seja, o lugar que está fora do mundo, mas antes o lugar onde está o
fora do mundo. Como fazer com que, na escola, o que esteja em jogo não seja meu
campo perceptivo (ainda que a luz do fogo que o garanta seja criada por mim e não
buscada)? Como fazer com que seja possível me relacionar com o mundo não como
coleção de objetos outros em relação a um “eu” que percebe, mas sim mover para
um fora (que não está literalmente “fora”, como o que está fora da caverna de
Platão, mas que é imanente) intensivo, “tempestade selvagem”? Talvez para pensar
em uma escola que seja viagem precisemos de uma outra forma de caverna, um
outro tipo de exílio. Menos através de uma noção de campo (cognitivo, de visão, de
percepção) que através de uma noção de plano (de imanência, de intensidades). Ou
melhor, talvez seja melhor pensar a escola fora do jogo luz-sombra e buscar como
acessar o mundo em sua “fosforescência”. O exílio proporcionado pela escola,
portanto, talvez seja mais semelhante ou talvez compartilhe mais partículas e
elementos moleculares25 com a ilha deserta.
A ilha deserta não é uma imagem recente no imaginário popular. Inúmeras
narrativas e mitos têm como arquétipo a ilha deserta – talvez por sermos uma
cultura cujo berço se deu em uma nação predominantemente insular26 –, como lugar
de perigo, mistério, tesouro e santuário. Mas sempre como um lugar que abarca o
desconhecido, o estranho, o diferente. Por que se viaja para uma ilha deserta? Por
que é tão atraente o deslocamento desde a segurança do continente, da estrutura já
mapeada de um território conhecido para um local obscuro, sem guia, perigoso?
A ilha é, por natureza, um ambiente separado do mundo. É um ambiente em
suspensão (como observa Darwin, a evolução animal segue de forma paralela nas
ilhas intocadas), assim como a caverna, que também é um outro mundo, mas além
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
que isso, parece ser antes um mundo-outro. A caverna tem uma entrada, que
normalmente funciona de saída. As ilhas, rodeadas de deserto marítimo, encontram-
se, não diferente do náufrago, à deriva. Há múltiplas entradas e saídas. Ilha-rizoma,
em relação à caverna-alvéolo. Suas praias são fustigadas, a todo momento, por
ondas, e sua própria topografia e zootopia parece se organizar ondularmente a
partir desta praia, desta borda que funciona ao mesmo tempo como porto seguro e
golpeadora violenta. A ilha existe em função de suas bordas, e de fato todo o espaço
é tão próximo delas que arrisca-se dizer que todo o espaço da ilha é fronteiriço, é
borda. A ilha deserta é, mais que tudo, um espaço inabitado. Do mesmo modo que o
deserto ou o mar, mas com a diferença de ser habitável. Assim, habitável mas
inabitada, a ilha oferece o mínimo necessário para um re-começo, para uma
recriação. Ela se torna este vetor de transformação ao ser interferida por um
pequeno elemento: o náufrago.
O náufrago é um exilado, antes de tudo. O exílio é uma forma de viagem
violenta, porque é compulsório. O exilado não tem escolha a não ser adaptar-se ao
novo mundo que a ele se impõe, descobrir, geralmente sozinho, os novos
mecanismos segundo os quais ele pode interferir e sobreviver naquela realidade. É
lançado sem preparo a um lugar estranho, e é preciso recriar a si e ao espaço para
poder estar ali. O náufrago começa seu exílio sempre à deriva. No meio do mar,
começa seu processo de insularização: o mar é um plano inconstante, sem marcas,
sem direções, um espaço liso, um não-lugar. Estar no mar é estar entre. É preciso,
então, nadar com seu próprio corpo, enfrentar as forças do mundo com as forças dos
braços e pernas, mas não para chegar em algum lugar. Não é para isso que o
náufrago à deriva nada, embora talvez ele o pense. É preciso nadar no mar pois ao
estar em um intermezzo, num espaço de transição, liso, não há outra coisa senão
movimento.
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Daniel Gaivota
27 Há no capítulo Onirodinia e relato, página 169 deste livro, uma reflexão sobre a escola, as ilhas e a
esperança que pode ser interessante para pensar no nome que Robinson dá a sua ilha da desolação.
28 Sobre a suspensão do tempo cronológico, cf. capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
finalizar seu trabalho, depara-se com uma questão mais complicada: não dispõe de
meios para levar o pesado barco à água.
Robinson entrega-se então a outro tipo de neurose, abandonando por
completo qualquer perspectiva de futuro: passa a viver uma vida estática,
verminosa. Aos poucos, vai se tornando um animal rastejante, letárgico. Adota
como prática submergir por completo, somente deixando a boca e o nariz para fora
de um lamaçal pantanoso onde os porcos da ilha chafurdavam. Torna-se limo,
torna-se a lama.
Os Limbos do Pacífico é um livro, segundo analisa Deleuze, sobre o papel do
Outrem (1974, p.314). O próprio Robinson, em seu diário, faz anotações filosóficas e
tenta explicar o que acontece a um homem privado disto, que não se apresenta
como sujeito nem objeto, mas como condição de possibilidade da relação de
subjetividade que temos. Segundo a teoria do próprio náufrago, “Outrem é para nós
um poderoso fator de distração, não apenas porque nos perturba constantemente e
nos arranca ao pensamento atual, mais ainda porque a simples possibilidade do seu
aparecimento lança um vago luar sobre um universo de objetos situados à margem
de nossa atenção mas capaz a todo momento de se lhe tornar o centro”
(TOURNIER, 1985, p.32). Ou seja, assumimos que as coisas que não percebemos
são reais porque são percebidos por outrem – ou ao menos podem ser. Outrem não é
uma estrutura como outras no campo de percepção, mas a própria estrutura que
organiza o conjunto do campo.
Em suma, outrem assegura as margens e transições no mundo. Ele
é a doçura das contiguidades e das semelhanças. Ele regula as
transformações da forma e do fundo, as variações de profundidade.
Ele impede os assaltos por trás. Povoa o mundo de um rumor
benevolente. [...] Ele relativiza o não-sabido, o não percebido; pois
outrem introduz o signo do não-percebido no que eu percebo
determinando-me a apreender o que não percebo como perceptível
para outrem. Em todos esses sentidos é sempre por outrem que
passa meu desejo e que meu desejo recebe um objeto. Eu não desejo
nada que não seja visto, pensado, possuído por um outrem possível.
(DELEUZE, 1974, p.315).
O que acontece a Robinson ao longo de sua longa estadia na ilha é a
avassaladora experiência de, progressivamente, sentir desaparecer em si a estrutura
Outrem, ou seja, sentir desaparecer em si a possibilidade de um mundo em que a
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Daniel Gaivota
existência dos objetos é garantida pela existência dos sujeitos. Ele pouco a pouco
compreende que esta estrutura, outrem, nada mais é que a expressão de um mundo
possível, subjetivo. Ao encontrar, depois de muitos anos de isolamento, marinheiros
ingleses, Robinson percebe que
cada um desses homens era um mundo possível, bastante coerente,
com seus valores, os seus focos de atração e de repulsa, o seu centro
de gravidade. Por diferentes que fossem uns dos outros, estes
possíveis tinham em comum, atualmente, uma pequena imagem de
Speranza – tão sumária e superficial! – à volta da qual se
organizavam, e num ponto da qual encontravam um náufrago
chamado Robinson e o seu servo mestiço. Mas, por muito central
que esta imagem fosse, ela estava, em cada um deles, marcada pelo
signo do provisório, do efêmero, condenada a voltar, num curto
prazo, ao nada donde a tinha tirado o desvio acidental do
Whitebird. E cada um destes mundos possíveis proclamava
ingenuamente a sua realidade. O outrem era isto: um possível que
se obstina em passar por real. (TOURNIER, 1985, p.208)
Robinson pensa a percepção através da imagem de um estranho entrando em
sua casa. O estranho detém sua atenção sobre determinados objetos e sobre outros,
não. Mas esta observação só faz sentido através da própria percepção dele,
Robinson Crusoé, observador da cena, conhecedor dos objetos. É um estágio
secundário do conhecimento. Num estado primário, sem essa multificação
alteritária, sem que tentemos descrever o eu a partir de outrem, a consciência do
objeto é o próprio objeto, sem alguém que conheça.
Não devemos falar aqui de uma vela que projeta um raio luminoso
sobre as coisas. Tal imagem deve ser substituída por outra: a dos
objetos fosforescentes por si próprios, sem algo exterior a iluminá-
los. Há nesse estádio ingênuo, que é o nosso modo normal de
existência, uma feliz solidão do conhecido, uma virgindade das
coisas que, todas elas, possuem em si próprias, como outros tantos
atributos da sua última essência – cor, odor, sabor e forma. Então
Robinson é Speranza. (TOURNIER, 1985, p.87)
O abandono forçado do Outrem faz com que Robinson, na ilha, pouco a
pouco passe a compreender Speranza não como um objeto dos sentidos, mas a
considerar a ilha cada vez mais de-subjetivada, em sua própria “fosforescência”. Não
porque outrem não está lá para verificar o que se acredita ver, e sim porque,
faltando, deixa a consciência colar ou coincidir com o objeto. Mas se, num primeiro
momento, essa condição faz com que Robinson entre em desespero, que se dilua no
barco que constrói ou no chiqueiro lamacento dos porcos, não parece ser para
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
anular-se como sujeito, mas pelo contrário, para submeter Speranza à sua natureza,
fazê-la se impregnar de Robinson – enquanto está submerso no chiqueiro, ele escuta
os ecos de seu passado, de seu pai, sua irmã, perscruta-se em sua imersão –, fazer a
ilha devir-homem. Mas Deleuze já anunciava: o devir-homem não existe.
Robinson abandona o chiqueiro, então, e encontra outra maneira de
compensar a falta de elementos com que compor sua estrutura Outrem (“sei agora
que, se a presença de outrem é um elemento fundamental do indivíduo humano,
nem por tal motivo é ela insubstituível”), mas que mantenha o hábito que outrem
dava às coisas: o trabalho, a ordem. Passa a construir, como o Robinson Crusoé de
Defoe, uma estruturação extensiva da ilha. Vai aos destroços do navio do qual
naufragou e recolhe pólvora, grãos, papel, começa a domesticar as cabras da ilha, a
plantar e colher trigo e cevada; passa de coletor-caçador a agricultor-pecuarista.
Erige um templo, onde passa a ler a Bíblia que encontra no navio, e passa a escrever
um diário. Elabora também as leis da ilha e as punições decorrentes de seu não-
cumprimento. Não só isso, mas desenha um mapa da ilha, divide-a em quadrantes,
nomeia suas partes e estabelece fronteiras entre elas. Cria também um calendário e
uma clepsidra para marcar o tempo29, e distribui suas atividades numa rotina e num
espaço delimitado. Ou seja, ordena e estrutura espacialmente, temporalmente e
moralmente seu mundo. Mas o faz repovoando este mundo de outros que não
existem, estabelecendo múltiplas funções, produzindo muito além do necessário,
criando rituais de coletividade.
Robinson tenta manter com isso os efeitos da presença de outrem, ainda
numa tentativa de preencher essa estrutura, mas pouco a pouco percebendo-a se
dissolver. Torna Speranza uma cidade estruturada, e por extensão, torna-se
estruturado também. Cria uma analogia distorcida do mundo de onde veio, e atém-
se a essa organização sem concessões. Não entra na cabana principal senão asseado
e com roupas solenes, cumpre sua rotina como se alguém o supervisionasse (e de
fato há essa tarefa, que ele próprio ocupa). Mas ele encontra brechas nesse tempo e
espaço, parando a clepsidra e penetrando numa caverna, onde ocupa um alvéolo
sem tomar conta do tempo ou do espaço externos, numa experiência suspensa.
29Mesmo que agora, depois de sua primeira fase na ilha – que não se sabe quanto durou –, ele não possa mais
se situar no tempo externo à ilha. Cf. o capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.
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Daniel Gaivota
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
pois ele “não é, de todo, um ser humano”. Também não acha decente dar-lhe um
nome de coisa. Sexta-feira, portanto, “não é nome de pessoa, nem um nome vulgar,
está a meio-caminho entre os dois, o de uma entidade meio viva meio abstrata,
fortemente marcada pelo seu caráter temporal, fortuito e como que episódico”
(TOURNIER, 1985, pp.130-131). Ao mesmo tempo, Deleuze e Guattari afirmam:
Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data têm uma
individualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se
confunda com a individualidade de uma coisa ou sujeito. São
hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento e de
repouso entre as moléculas e as partículas, poder de afetar e ser
afetado. [...] Não é absolutamente uma individualidade pelo
instante, que se oporia às individualidades das permanências ou das
durações. (2012c, p.50)
Sexta-feira é, de fato, mais que um indivíduo. O livro, como o título indica, é
mais sobre ele que sobre o náufrago. Ele aparece na ilha como uma hecceidade; seu
nome lhe faz justiça, sem que Robinson possa ainda saber. Ele se insere na ordem
construída pelo governador de Speranza e mina, destrói suas estruturas
completamente. Ri dos ritos, destrói as construções, infringe as regras e aceita
divertido as punições e os trabalhos que Robinson lhe impele como a um escravo.
Não como o Sexta-feira de Defoe, que aceita sua condição de subordinado segundo
a ordem de seu patrão. Sexta-feira aqui faz o que lhe é ordenado, mas
subversivamente. Até cava buracos inúteis por ordem de Robinson, mas ao fazê-lo,
faz com prazer, o faz como se estivesse a penetrar Speranza sexualmente,
provocando o ódio do patrão. Mais grave que tudo, Sexta-feira parece interagir de
maneira muito mais intensa com os animais, as plantas, a ilha. A natureza que
Robinson acreditava ter dominado, compreendido, de quem passara a se considerar
um pai ordenador, se dobra e acolhe fraternalmente Sexta-feira, recém-chegado.
Após a destruição de tudo o que fora construído, portanto, Robinson passa a
observar em Sexta-feira algo que não pudera perceber antes. “Robinson debate-se
interiormente com esta dúvida. Pela primeira vez, entrevê nitidamente, no mestiço
grosseiro e estúpido que o irrita, a possível existência de um outro Sexta-feira – tal
como outrora pressentira, antes de descobrir a gruta e o combo, uma outra ilha,
escondida na ilha administrada” (TOURNIER, 1985, pp.160-161). Sexta-feira age,
portanto, como uma força violenta que faz com que Robinson passe a ver. Força-o a
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Daniel Gaivota
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
dormir com Tenn). E é ele que fará Robinson entrar em seu devir-bode, finalmente,
na batalha final com Andoar, o bode mais forte da ilha.30.
É com a morte de Andoar que morre Robinson Crusoé – ou melhor, que troca
de elemento, que passa de um Robinson terreno para um Robinson solar, eólico.
Sexta-feira dá seu último golpe na desestruturação – Sexta-feira é portanto uma
máquina de guerra31 – que fará com que Robinson mude de elemento. “Estás
satisfeito comigo, ó Sol? Olha-me. A minha metamorfose caminha no sentido da tua
chama? A minha barba, cujos pelos, como outras tantas radículas geotrópicas,
vegetam em direção da terra, desapareceu. Em compensação, a minha cabeleira
retorce os caracóis ardentes como um braseiro dirigido para o céu. Sou uma flecha
arremessada contra a tua fornalha”. (TOURNIER, 1985, p.190). Barba-radícula (de
bode?) em oposição a cabeleira-rizoma; céu em oposição à terra. Robinson
desterrado, desterritorializado.
30 Ler mais sobre o devir-animal no capítulo O (des)território da Escola-Viagem, página 115 deste livro.
31 Sobre o conceito de Máquina de Guerra, conferir capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste
livro.
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Daniel Gaivota
fazem com que a relação com o outro se dê sempre como possibilidades virtuais na
própria subjetividade.
O verdadeiro deslocamento não é a ida à ilha nem o naufrágio. É na Escola-
Viagem que se torna possível fazer o deslocamento que se operou em Robinson em
seu tempo na ilha, uma “troca de elementos”, uma liberação dos elementos antes
presos pelo embaixador que é Outrem. É então que se pode encontrar com o outro
que não é eu, que não é outrem da própria subjetividade. Sexta-feira troca o
elemento de Andoar quando afirma que vai fazê-lo voar e cantar. Trata, então, de
seu couro para depois amarrá-lo em uma estrutura de varas e produzir um papagaio
que plana. A seu crânio, ata fios de tripa que se o transformam em uma harpa eólica,
que produz som quando o vento passa. O animal da terra se torna animal do ar. É
este o verdadeiro deslocamento que se opera na ilha deserta. Quando se liberam os
elementos desta estrutura, é possível se relacionar com o mundo intensamente,
apreender e ressignificar seus vetores e forças. O sol não mais é uma luz que se
busca passivamente, mas um encontro, um acontecimento32.
Este libertar dos elementos significa, a partir da desestrutura do Outrem e
da subjetividade como parâmetro de relação com o outro, uma passagem a um plano
de imanência. É a partir desta libertação, desta metamorfose eólica que se tornam
possíveis os devires, as linhas de fuga, a experiência da multiplicidade. É a partir daí
que se fará possível se relacionar de forma imanente com o tempo e o espaço.
O conceito de plano de imanência em Deleuze e Guattari talvez seja o mais
importante (muito embora os autores sugiram em algum momento ser o de
ritornelo33) para se relacionar com essa fauna e flora conceitual que abre um novo
mundo – mas que se encontra numa espécie de ilha deserta. Ao fazer uma relação
entre o imanente e transcendente, os autores negam a visão de mundo que separa
os objetos de suas essências que estariam em um plano suprassensível ou mesmo de
suas relações de subjetividade e afirmam que tudo está aqui, em um plano ocupado ao
32Sobre o conceito de acontecimento, conferir o capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.
33Que não será trabalhado aqui, mas que encontra-se profundamente explorado, bem como toda uma relação
da música como forma de pensamento e do pensamento como uma espécie de música, na tese de Pablo de
Vargas Guimarães, companheiro do NEFI: Pensamento musical na escola obrigatória: do ensino de música ao
devir-música da educação, 2013, disponível no banco de teses e dissertações do ProPEd.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
34 Podemos afirmar o plano de imanência como o espaço de coexistência virtual de todos os planos, mas é
importante ressaltar que, embora ele seja sempre único, há vários planos de imanência, que se sobrepõem e
que se afetam mutuamente.
35 Para ler mais sobre vertigem, consulte o capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.
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Daniel Gaivota
que sejamos devastados por uma máquina de guerra para que nosso espaço se alise,
mas então é possível realizar um corte no caos, um enfrentamento (no sentido de se
pôr de frente a ele, como o Robinson solar passa a fazer na última parte do livro).
Estar de frente para o abismo, que é nosso limite, se pôr em limite, ocupar nosso
limite, a borda. É abrir-se ao próprio devir, e torna-lo inseparável das linhas
descontínuas que emergem do caos, linhas de fuga, desterritorializantes, liberando
assim os elementos (tornando-os de terrestres em eólicos) e tornando-se capaz de
sentir, pensar e de compreender o outro como outro mundo, como outro território
fronteiriço (e não como outrem à minha subjetividade). É isso que Robinson
aprende com Sexta-feira na ilha; a grande Saúde do terceiro Robinson é a
imanência. Este é o verdadeiro deslocamento: não do mundo nem pelo mundo, mas
através. Mas só é possível realizar esse através, esse corte no caos a partir de uma
força desestruturante, de uma violência, de um exílio de si para a abertura de um
mundo, não um que esteja fora de sua subjetividade, mas um mundo que seja seu
fora.
Ou seja, esse deslocamento, é preciso produzi-lo, forçá-lo. É preciso
naufragar (e o naufrágio é a obra do professor?36) para perder-se, é preciso perder-
se para se deslocar. O viajante que não se perde, que permanece em caminhos
conhecidos, não aprende a conhecer o outro (e este é o verdadeiro deslocamento),
mas continua passo a passo movimentando-se em torno de si próprio. Entretanto o
naufrágio é traumático, é difícil experimentar o exílio insular que nos faz perceber
que sempre estivemos sozinhos, mesmo no continente. O verdadeiro encontro com
o outro tem como preço o abandono da subjetividade como fundamento conhecedor,
e abandonar o eu talvez seja a tarefa mais difícil que alguém pode se prestar a fazer.
E por isso é preciso produzir essa experiência. O deslocamento é sempre
antinatural, sempre uma desestrutura, um re-começo, e nesse sentido a Escola-
Viagem precisa produzir este deslocamento. É necessária uma poética do
deslocamento, portanto, ou seja, uma poiesis, um fazer surgir, uma construção. O
deslocamento se faz, se produz.
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GARANTINDO AS PASSAGENS
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experiência. Larrosa (2014, p. 18) dá uma atenção especial a esse verbo (em
espanhol ainda mais ligado ao sentido de “acontecer”) ao afirmar que “a experiência
é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo
tempo, quase nada nos acontece [nos pasa].” É interessante a palavra tocar, pois
acompanhando a crise da experiência há também uma crise do toque. É incrível o
esforço das pessoas na rua, nas relações diárias e nos serviços para evitarem se
tocar. Vivemos uma crise do tato.
E a crise do tato amplia e agrava a crise da experiência, já que não é mais
somente o odor da doce primavera (aquele de Baudelaire) que não se sente, mas
também a textura de grama molhada ou de lama nos pés no verão. Deixar de tocar
o mundo é resultado de uma redução do passar: é ao passarmos pelas coisas e pelas
pessoas que esbarramos, tocamos, que as sentimos. O tato talvez seja o sentido mais
importante para um viajante, mais que a visão. Afinal, é preciso viajar como se não se
pudesse ver. Aos Fourmi é vedado tocar, com o corpo, o ambiente fora do perímetro
ao qual estão amaldiçoados. E por isso precisamos defender, a despeito da
implicância de Deleuze, esta viagem tátil, que se faça com o corpo, um tropegar que
esbarre em tudo, que toque a multiplicidade e que marque o mundo com sua pele,
como se, mais que conhecê-lo através dos dedos, digitalmente, o mundo é que
passasse a conhecer ali o viajante.
Portanto, caminhar, marcher, passar parece concernir à viagem na medida em
que a consideramos uma poética do deslocamento. E por isso não podem ser
negados, a um viajante, seus passos. Talvez a viagem comece no momento em que
nossos passos estão garantidos. Caso contrário, se não temos a certeza de que
nossas passadas nos conduzirão para algum lugar (diferente do que já ocupamos ou
acreditamos ocupar), seremos cativos, como o casal de Longjumeau. Garantir
passagem é parte importante de uma viagem-pensamento. Se não nos permitimos
mover, se não compreendemos as condições para nosso deslocamento, não há
caminhar. Por isso observaremos o tempo e o espaço na e da escola-viagem.
Observaremos, pois precisamos garantir seus passos, e o leitor que pisá-los estará
fazendo o que faz o caminhante, o viajante, ao caminho: traçando. Observaremos
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como quem caminha pelas ruas de uma cidade, não só com atenção aos arcos, as
pedras e as calçadas, mas compreendendo que só é possível estar nesta rua porque
ela existe sob nossos pés; ela é o caminho (e grafar o substantivo da mesma maneira
que o verbo é aqui muito significativo!). Caminhar é percorrer o caminho e ao
mesmo tempo permitir se submeter a ele, se tornar caminho. Ou seja, observar o
tempo e o território da escola e da viagem significa, aqui, garantir suas próprias
condições de possibilidade. Garantir sua passagem.
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(OU SOBRE VERTIGEM E AVENTURA)
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(OU SOBRE VERTIGEM E AVENTURA)
[...] acredito que não é possível aprender a ser estrangeiro, pois o estranho
está intimamente relacionado com descoberta com algo que está por vir. –
Isa
37 Turma de quinto ano da E.M Joaquim da Silva Pessanha (cf. Anexo I). Sobre a experiência intensa de um
projeto de filosofia com crianças na escola pública, capaz de fazer ver o invisível e tentar o impossível, cf. a
dissertação de Vanise de Cássia de Araujo Dutra Gomes, companheira do NEFI: Filosofia com crianças na
escola pública: possibilidade de experimentar, pensar e ser de outra(s) maneira(s)?, 2011, disponível no banco de
teses e dissertações do ProPEd.
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papel da escola ou o porquê de estarem ali, os alunos da E.M. Joaquim da Silva Peçanha
respondem, prontamente: “Estou aqui para ser alguém na vida”. A resposta, pronta e
automática, mesmo que seja uma repetição, é sintomática. A afirmação de que não se é
alguém retira o eu do presente e o coloca no futuro. “Um dia, serei”. A escola não raro é
definida como um lugar de formação ou de preparação “para a vida”39, assumindo que a
vida, o eu, o mundo vêm sempre depois. As pessoas que habitam a escola a compreendem
como uma ferramenta, uma ponte para alguma outra coisa posterior, e se é assim, a escola
não pode ser definida como uma temporalidade livre ou suspensa. Na verdade, parece
operar o oposto – um tempo comprometido, um tempo que tem seu valor em outra coisa, a
negação do ócio; um neg-ócio.
Ao mesmo tempo que uma escola para o futuro não parece fazer sentido para os
autores, também não parece que levar o passado para dentro da escola contribua com seu
caráter escolar (ou seja, de suspensão, profanação, atenção, igualdade). Trazer o passado
dos jovens para a escola significa inserir ali uma série de substratos sociais, preconceitos,
hierarquias pré-construidas que impediriam que se alcançasse, de fato, uma situação de
suspensão real ou de igualdade.
A escola cria igualdade precisamente na medida em que constrói o
tempo livre, isto é, na medida em que consegue, temporariamente,
suspender ou adiar o passado e o futuro, criando, assim, uma brecha
no tempo linear. [...] Romper com esse tempo e lógica se resume a
isso: a escola chama os jovens para o tempo presente [...] e os
libera tanto da carga potencial de seu passado quanto da pressão
potencial de um futuro pretendido planejado (ou já perdido).
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p.36)
Os autores, portanto, se lançam em uma defesa da escola, e uma defesa do
tempo da escola como o tempo presente. Para os autores a função dos processos e
tecnologias escolares, o que a escola realmente faz, não é preparar os alunos para
algo que está fora da escola. A demanda da empregabilidade, da especialização e da
educação voltada para um “desenvolvimento das habilidades” nega o que há de mais
escolar, e o fracasso desse caminho, antes de apontar a necessidade de uma reforma
ainda maior da escola no sentido da instrumentalização dos alunos, deveria ser o
ponto de partida para repensar os fundamentos da escola, para criar uma nova
teoria da escola que permitisse que ela voltasse a fazer o que lhe é próprio, que é
trazer os alunos para o presente.
39Acerca de outras possibilidades para o conceito de formação, cf. capítulo Onirodinia e relato, página 169
deste livro.
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dizer seja que, na escola, por ser ela este espaço de intercessão entre o antigo e o
vindouro, os objetos não pertençam realmente nem ao novo e nem ao velho – ou
seja, que sejam públicos, livres, desconectados do uso que a geração velha faz deles,
mas ainda não apropriados pela nova –, este espaço só pode existir graças à tensão
entre estes dois tempos. A escola existe no presente, mas é um presente que se faz
entre passado e futuro.
Assim, portanto, temos aqui algumas defesas (não tanto) diferentes e
igualmente potentes sobre qual deva ser o momento-tempo da escola ou da
educação. Vejamos. Lembremos primeiro das já menos relevantes posturas
tradicionalistas (e não estamos falando do conservadorismo apontado por Arendt,
mas de uma escola pautada na tradição, na manutenção de velhas práticas, de velhas
lógicas, de um velho mundo) e das posturas progressistas e da educação para o
trabalho – estas que parecem ser as iniciativas priorizadas pelos governos
contemporâneos no Brasil e nas américas –, sendo elas respectivamente as defesas
do passado e do futuro como os momentos-tempo para o qual a escola desloca sua
temporalidade. Depois, de maneira mais relevante aqui, temos as ideias de
Masschelein e Simons de uma escola suspensa do tempo cotidiano, cuja função é
deslocar a temporalidade da escola para o presente; e a visão crítica de Arendt, que
assume a educação como um processo de revezamento de responsabilidade pelo
mundo entre as gerações, assumindo que a temporalidade da escola é deslocada
para uma suspensão gerada por uma tensão entre os momentos-tempo passado e
futuro simultaneamente.
Qual é o momento-tempo da escola-viagem, então? Em que medida a viagem
está relacionada com esses três momentos (passado, presente e futuro)? É verdade
que o viajante parte de algum lugar, ruma para algum outro. Poderíamos ensaiar
dizer que o caminho, as escolhas de direção, a força dos passos têm a ver com o
passado do viajante. Ou que o que há na mochila, na bagagem, modifica, de alguma
maneira, a viagem. Mas ao mesmo tempo, se assumimos que o viajante devém
nômade, percebemos que seu deslocamento pouco tem a ver com uma vontade de
abandonar um lugar – ou mesmo com a própria noção de lugar pontual, como
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40 Sobre esta definição, cf. capítulo Poética do deslocamento, página 61 deste livro.
41 Cf. capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste livro.
42 Compreendemos, entretanto, que há outras maneiras de pensar o presente, inclusive em Masschelein,
Simons, Deleuze e Guattari. Nossa tentativa de criar um outro conceito para a temporalidade da escola se dá
justamente nesta tentativa de pensar o presente de uma maneira potente, mas talvez a palavra ‘presente’ não
permaneça sendo a melhor possível para dar conta da ideia que perseguimos.
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temporais. Os nômades têm uma geografia, mas não têm uma história (DELEUZE;
GUATTARI, 2012d, p.75). Como contar o tempo nômade? Como contar o tempo de
uma viagem? E como contar o tempo de uma escola-viagem?
Sobre a questão do tempo, Kohan (2004) diferencia os tempos chrónos e aión,
duas maneiras de se referir ao tempo em grego. Chrónos é o tempo linear,
sucessivo, mensurável. É nosso tempo do relógio, que devora e acaba.
Mesmo que chrónos tenha sido a palavra mais bem-sucedida e
comum entre nós, não é a única para designar o tempo. Outra
é [...] Aión que designa, já em seus usos mais antigos, a intensidade
do tempo da vida humana, um destino, uma duração, uma
temporalidade não numerável nem sucessiva, intensiva. (KOHAN,
2004, p.45).
Aión, portanto, é o tempo do devir, da experiência, enquanto Chrónos é o
tempo da história. Deleuze opõe experiência e história; acontecimento e história. O
acontecimento é justamente o que interrompe a história, que faz com que o
continuum histórico seja interferido, é um corte (KOHAN, 2004, p.63). Assim, parece
que é possível que o Aión interrompa o Chrónos, o derrote, de certa maneira. Com
essa oposição, Deleuze e Kohan introduzem a possibilidade de um tempo não
metrificável, um tempo que não se conta. Talvez seja preciso explorar outras
possibilidades de temporalidade para compreender o tempo nômade, o tempo da
viagem e, como se pretende aqui, o tempo da escola.
Por isso, para pensarmos o tempo de uma escola-viagem, é preciso pensá-lo
fora de uma lógica de medição, fora de uma cronologia, mas compreender uma
outra maneira – aiónica – de pensar o tempo. “Tem mais que ver com uma
intensidade que com uma extensão, sua forma se encontra [...] mais no arranque e
na velocidade que no movimento” (KOHAN, 2004, p.39). Como já pensamos, o
movimento não é o que caracteriza o nômade. O movimento é mais essencial ao
migrante, que para o autor abandona o meio que se tornou insuportável. O nômade,
pelo contrário, é aquele que não se move, que não quer se mover, que se faz nômade
justamente para tornar possível o estar. O nômade não se configura pelo
movimento, mas sim pela velocidade.
Por isso é preciso distinguir a velocidade e o movimento: o
movimento pode ser muito rápido, nem por isso é velocidade; a
velocidade pode ser muito lenta, ou mesmo imóvel, ela é, contudo,
velocidade. O movimento é extensivo, a velocidade, intensiva. O
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45 Sobre a narrativa e a crise da experiência, cf. capítulo A narrativa na Escola-Viagem, página 147 deste
livro.
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impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar
para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais
devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o
juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar
sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros,
cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se
tempo e espaço. (LARROSA, 2014, p.24).
O autor defende, portanto, uma necessidade de alentar o tempo da escola, “aprender
a lentidão”. Se a escola é o tempo da experiência, então é preciso dilatar esse tempo, torná-
lo amplo, para que se possa aproveitar a experiência. Não é possível negar o papel das
novas tecnologias de informação na aceleração do tempo na crítica de Larrosa. A demanda
pelo instantâneo, para o autor, de maneira semelhante à visão de Benjamin, impede a
experiência.
Entretanto, o mundo se (re)organiza em torno de suas possibilidades tecnológicas.
Desse modo, a realidade pré-escrita, pautada na oralidade, tinha uma relação com o tempo
(especialmente no que diz respeito à educação) muito diferente de seus sucessores
alfabetizados. Estes, por sua vez, não mantinham a mesma relação tempo-mundo que os
homens de séculos mais tarde, contemporâneos da invenção de Gutemberg. Da mesma
maneira, talvez seja preciso compreender que a relação com o tempo da época da
comunicação digital instantânea seja intrínseca a seu contexto. É o que sugere Pierre Lévy
ao afirmar que a ecologia dos signos foi alterada graças à cibercultura, e que tal condição
não terá fim, e que por isso deve ser compreendida e dominada (LÉVY, 1999, p.12).
Lévy observa que o modo de registro reflete o modo cultural de estar no mundo de
uma cultura. A oralidade refletia um mundo despolarizado, móvel, em que o tempo era
visto como circular, composto de ciclos de retorno que permitiam à narrativa mnemônica,
repetitível, comunicar o mundo. A escrita é o modo de inscrever signos conveniente ao
camponês e ao cidadão, ao sedentário. “A escrita era o eco, sobre um plano cognitivo, da
invenção sociotécnica do tempo delimitado e do estoque”. (LÉVY, 1993, p.114). E, por
conseguinte, a informática é o registro típico de uma nova temporalidade e uma nova
maneira de habitar o mundo que começa com a revolução industrial: uma mobilidade
constante, uma paixão pelo deslocamento e pelo movimento, uma reorganização constante
dos espaços e dos tempos – mesmo aqueles sedentários (como as cidades e as fronteiras).
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Por isso, essa nova temporalidade que as tecnologias virtualizantes trazem demonstram o
mundo, mas são também explicadas por ele46.
A informática é uma forma de registro que trabalha com bancos de dados
inteligentes, isto é: não se mantém o histórico de todos os registros sobre determinado
assunto ou especialidade, como na escrita, que é acumulativa. Segundo Lévy, os sistemas
especialistas não conservam conhecimento, mas evoluem o saber instantaneamente, logo
que alguma variável ou regra é atualizada. Nesse sentido, os estados anteriores do
conhecimento não são armazenados, o que quer dizer que ele só existe em sua versão mais
recente, atual.
A noção de tempo real, inventada pelos informatas, resume bem a
característica principal, o espírito da informática: a condensação no
presente, na operação em andamento. O conhecimento de tipo
operacional fornecido pela informática está em tempo real. Ele
estaria oposto, quarto a isto, aos estilos hermenêuticos e teóricos.
Por analogia com o tempo circular da oralidade primária e o tempo
linear das sociedades históricas, poderíamos falar de uma espécie de
implosão cronológica, de um tempo pontual instaurado pelas redes
de informática. (LÉVY, 1993, p.115)
O autor aponta, portanto, uma outra temporalidade que, em oposição à
imobilidade da escrita, é puramente móvel. Não é circular, como a oralidade, nem
linear. A linha utilizada por Lévy como imagem do tempo da escrita não quer dizer
um vetor, não tem o sentido da linha deleuziana, mas significa uma permanência,
uma perenidade, uma situação que permanece, ad eternum, no mesmo nível,
inalterada. O ponto, imagem do tempo da informática para Lévy, também não é a
imagem de um ponto estático – como sugerem Deleuze e Guattari em seu Tratado
de Nomadologia –, mas a imagem do ápice do movimento, na máxima velocidade: a
instantaneidade.
O tempo pontual não anunciaria o fim da aventura humana, mas
sim sua entrada em um ritmo trevo que não seria mais o da
história. Seria um retorno ao devir sem vestígios, inassinalável, das
sociedades sem escrita? Mas enquanto que o primeiro devir fluía de
uma fonte imemorial, o segundo parece engendrar a si mesmo
instantaneamente, brotando das simulações, dos programas e do
fluxo inesgotável dos dados digitais. O devir da oralidade parecia
ser imóvel, o da informática deixa crer que vai muito depressa,
46 Sobre uma nova ecologia dos gestos tecnológicos como possibilidades narrativas e educativas em um
mundo reconfigurado pela rede, cf o livro de Maria Jacintha Vargas Netto, Maja, companheira do NEFI:
Gestos tecnológicos: o que pensa o YouTube em um curso de formação de professores de uma universidade pública na
cidade do Rio de Janeiro?, 2016, Edições Nefi.
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Daniel Gaivota
ainda que não queira saber de onde vem e para onde vai. Ele é a
velocidade. (LÉVY, 1993, p.115)
Pierre Lévy acredita que a velocidade da educação deva ser esta, em oposição
a Larrosa. Segundo ele, as distinções entre “ensino a distância” e “ensino presencial”
vão cada vez tornar-se menos claras, pois as tecnologias de comunicação
instantânea estarão cada vez mais presentes (LARROSA, 1999, p.170). “De fato, as
características da aprendizagem aberta à distância são semelhantes às da sociedade
da informação como um todo (sociedade de rede, de velocidade, de personalização,
etc.)”. (LÉVY, 1999, p.170).
Temos aqui, portanto, as defesas da rapidez e da lentidão como velocidades
da temporalidade da escola. Em relação às viagens, tanto a rapidez como a lentidão
são pertinentes. O viajante que caminha com cuidado, que observa o mundo que
pisa, este se desloca; mas também aquele que alça voo e se vê instantaneamente em
lugares distantes, diferentes, estranhos, também ele se desloca. Não parece também
suficiente afirmar que a velocidade do tempo na escola-viagem pode ser lenta ou
rápida, ou que possa ser lenta e rápida ao mesmo tempo. Novamente voltando aos
exemplos citados acima, qual a velocidade do Pequod, navio do capitão Ahab? Qual
a velocidade de Miguel Littín clandestino no Chile? Talvez possamos dizer que o
Pequod se movimenta lentamente, pois demora três dias para alcançar Moby Dick,
que já está no horizonte. Por outro lado, em relação à baleia, o barco se movimenta
veloz – porque a alcança. Miguel Littín se movimenta rápido pelo aeroporto, pois
quer se livrar do risco o mais rápido possível, mas todos os funcionários têm mais
pressa que ele, por estarem sujeitos e acostumados ao toque de recolher. Quem é
mais veloz? A rapidez, nos dois casos, parece ser relativa a uma perspectiva. Faz
sentido pensar na velocidade de um tempo?
Deleuze e Guattari relacionam o nomadismo com a velocidade, e não com o
movimento. O tempo do nômade não tem a ver com seu movimento, mas antes com
a intensidade, com o arranque. Os autores grifam, em seu texto (e se não o tivessem
feito, grifariamos aqui, por considerar um trecho definitivamente importante): “a
velocidade [...] constitui o caráter absoluto de um corpo cujas partes irredutíveis (átomos)
ocupam ou preenchem um espaço liso, à maneira de um turbilhão” (DELEUZE;
GUATTARI, 2012d, p.55). Ocupar ou preencher um espaço liso, em Deleuze e
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com que o movimento de Julia em direção à ampulheta na sala de aula seja tão
potente, abra tantos mundos. O movimento, quando vertiginoso, é pura velocidade.
Assim, após essa extensa (ou intensa?) análise, encontramos para pensar o
tempo da escola-viagem os conceitos de Aventura e Vertigem. O que significa
pensar o tempo a partir dessa dupla conceitual? Afirmamos antes que a escola da
experiência se afirma no plano do acontecimento. Entretanto, a ideia comum de
acontecimento – sempre situado em um ponto do espaço e do tempo – não dá conta
de pensar o acontecimento da escola-viagem, que não se dá pontualmente, não se dá
de forma transcendente, num espaço estriado. Pensar o tempo da escola-viagem a
partir da Aventura e da Vertigem permite que exploremos com mais profundidade
o conceito de acontecimento deleuziano e permite situar um acontecimento em um
plano de imanência, num espaço liso.
O acontecimento, em Deleuze, pertence à linguagem, tem uma relação com a
linguagem, mas não se pode perder de vista que a linguagem é o que se diz das
coisas (DELEUZE, 1974, p.23). O autor se vale de uma premissa estóica, que alerta
para se “não confundir o acontecimento com sua efetuação espaço-temporal num
estado de coisas" (DELEUZE, 1974, p.23). Ou seja, não há sentido num
acontecimento; o acontecimento é o próprio sentido. O interessante é que o
acontecimento deleuziano perpassa essas duas esferas, linguagem e mundo, na
medida em que é exprimível, mas ao mesmo tempo atributo do mundo e de seu
estado de coisas. Ou seja, na linguagem, o acontecimento difere das proposições,
extrapola a sintaxe – Deleuze afirma que se a significação fosse absoluta, se o
mundo fosse transcendente, não seria compreensível; um mundo de essências não
teria sentido, no sentido de que não poderia ser pensado; faltaria sentido como
acontecimento, capaz de tornar as significações sensíveis e assim engendrá-las no
pensamento. Já no mundo, ele difere dos estados fixos das coisas, é o que permite
que o mundo seja envolvido pela linguagem, o que faz devir. Sendo assim, o
acontecimento é o que está entre, é o que dá sentido ao mundo, mas que garante a
possibilidade de significação. Uma aluna da turma 503, durante a experiência da
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ampulheta, parece compreender isso muito bem: ao ser questionada sobre por que
os alunos estavam dizendo que a ampulheta era semelhante a um relógio, ela
respondeu, simplesmente: “Porque ele existe”.47
O acontecimento em Deleuze é o que permite o pensamento, é um encontro
com um fora, uma externalidade que força a pensar. Pensar a escola como um plano
de vetores, pensar numa escola da experiência, e principalmente pensar em uma
escola que devenha-viagem faz com que prestemos atenção ao lugar do
acontecimento nessa escola. Assumindo que a escola é uma espécie de
temporalidade, portanto, cabe pensar no topos48 temporal deste acontecimento.
Em todo acontecimento, há de fato o momento presente da
efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado
de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que é designado
quando se diz: pronto, chegou a hora; e o futuro e o passado do
acontecimento só são julgados em função desse presente definitivo,
do ponto de vista daquele que o encarna. Mas há, por outro lado, o
futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que
esquiva todo presente porque está livre das limitações de um estado
de coisas, sendo impessoal e pré-individual, neutro, nem geral nem
particular, eventum tantum...; ou antes que não tem outro presente
senão o do instante móvel que o representa, sempre desdobrado em
passado-futuro, formando o que convém chamar de contra-
efetuação. Em um dos casos, é minha vida que me parece frágil
demais para mim, que escapa num ponto tornado presente numa
relação determinável comigo. No outro caso, sou eu que sou fraco
demais para a vida, a vida é grande demais para mim, lançando por
toda a parte suas singularidades, sem relação comigo nem com um
momento determinável como presente, salvo com o instante
impessoal que se desdobra em ainda-futuro e já-passado.
(DELEUZE, 1974, p.154).
Deleuze, em sua lógica do sentido, tenta situar o acontecimento na tríade
passado-presente-futuro. O faz porque afirma que não há acontecimento que não se
efetue no espaço e no tempo (apesar de não se resumir a isto). Não é uma tarefa
simples, visto que o acontecimento, como sabemos, não diz respeito a um simples
estado de coisas, mas a uma relação entre um plano ontológico (onde o Ser, a
relação sujeito-objeto e a lógica linguística se aplicam) e um plano vetorial,
47 Para uma análise muito mais profunda sobre o acontecimento em Deleuze, além de uma exploração dos
conceitos de sentido, discurso e linguagem, cf. a dissertação de Maximiliano Valerio López, companheiro do
NEFI: A “filosofia com crianças” desde uma perspectiva trágica, 2006, disponível no banco de teses e dissertações
do ProPEd.
48 Observar a diferença entre este conceito e o de locus no capítulo Poética do deslocamento, página 61
deste livro.
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49 Cf. o interlúdio O Louco, página 191 deste livro, para uma relação dessa temporalidade outra com o
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(OU SOBRE MAPAS, CORPOS E TOCAS)
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O (DES)TERRITÓRIO DA ESCOLA-VIAGEM
(OU SOBRE MAPAS, CORPOS E TOCAS)
Ser estrangeiro está muito além de não ter nação, ou estar em um outro
lugar que não foi o que você nasceu. É estar fora de si também. – Nat
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
configure uma redução, tanto quanto seu oposto, que é compreender os animais por
suas características antropomórficas (canguru-mãe, cão-amigo, preguiça-preguiçosa
etc.). É preciso compreender o que é um animal para podermos nos relacionar com
eles como animais, do modo como o capitão Ahab se relaciona com Moby Dick50.
Antes, é preciso retomar o conceito de devir afastando-o de uma imitação, da
semelhança ou da identificação. O homem não se torna um animal ao devir-animal,
tampouco, obviamente. O devir não produz outra coisa senão ele próprio, e assim,
não é uma transformação no humano que ele gera. O Estado 51 recorrentemente se
apropria das características animais (e suas espécies, gêneros, formas, “funções”)
para classificar e medir os homens e os elementos sociais. A própria ciência, ao lidar
com os animais, o faz a partir de suas características. Não é isso que está em jogo
nos devires-animais. “Interessamo-nos pelos modos de expansão, de propagação, de
ocupação, de contágio, de povoamento. [...] O que seria um lobo sozinho? E uma
baleia, um piolho, um rato, uma mosca?”. (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p.20). A
questão também não é admitir o bando ou a matilha como características destes
animais (os lobos vivem em matilha, mas os ursos, não).
A história da relação humana com os animais passa por diversos perigos e
possibilidades de despotencialização. Ao nos relacionarmos com o animal segundo
uma tentativa de correspondência ou de progressão, infertilizamos essa relação. Ao
compreendermos essa linha que liga animal e homem como sendo de ordem do
imaginário ou do espírito, também a ignoramos. Também não é o devir-animal uma
analogia (do tipo “as brânquias estão para os peixes como os pulmões estão para os
humanos”, ou pior, “aquele nadador é como um peixe” ou “ele é forte como um
urso”). Não, o devir-animal é um rizoma, não uma série ou uma árvore. É possível
ver os animais, portanto, através de três possibilidades: a primeira é a de animais
subjetivados, individuados, familiares, inseridos em uma contemplação narcísica e
egocêntrica do que é animalesco; uma segunda possibilidade é ver os animais como
atributos, classificações, gêneros, que podem ser utilizados pelo Estado ou pela
50Cf. capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro, sobre a relação de Ahab e Moby Dick.
51Para compreender melhor o funcionamento dos aparelhos de Estado, ler o capítulo A escola e o devir-
viagem, página 41 deste livro.
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Daniel Gaivota
psicanálise para separar e atribuir, para extrair deles modelos ou arquétipos. Esses
dois primeiros tipos de animais não nos interessam aqui.
O terceiro modo de observar o animal é observá-lo como vetor de
intensidades, como modo de proliferação, como matilha. Todo animal é, antes de
mais nada, um bando, uma multiplicidade “É nesse ponto que o homem tem a ver
com o animal. Não devimos animal sem um fascínio pela matilha, pela
multiplicidade”. (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p.21). É buscando os modos de
proliferação e contágio destes devires-animais que poderemos aproximá-los da
viagem e da Escola-Viagem. A linha que separa animal de humano passa pelos
mesmos trajetos que vínhamos trilhando ao tratar do nomadismo. A relação entre o
animal com o território talvez seja a mesma do viajante.
Nem todos os animais estabelecem territórios (assim como nem todos vivem
em bandos), o que é menos importante para essas reflexões – afinal, o devir-animal
não é um devir-animal específico, não uma imitação de hábitos animais, mas, como
atestam Deleuze e Guattari, "o devir pode e deve ser qualificado como devir-animal
sem ter um termo que seria o animal devindo. O devir-animal do homem é real, sem
que seja real o animal que ele devém" (2012c, p.19). Assim, a noção de território é
importante ao devir-animal, mesmo que hajam animais não-territorialistas.
A questão é: o que faz um animal quando estabelece um território? Uma
visão mais rasteira poderia ser a de que o animal cria para si um ambiente de
segurança, um ambiente que conhece, que domina e onde ele tem mais poder que os
outros animais. Seu reino. Seu Estado. Essa visão encontra os ideais tradicionais de
educação perfeitamente – parece mesmo que a escola é um espaço de criar para si
um território de segurança, construir um castelo resistente e seguro de saber, em
que cada quarto, cômodo ou porta seja conhecido, dominado, estruturado, onde a
função de cada conhecimento esteja bem estabelecida e clara, e mais que tudo, que a
função própria do castelo seja estabelecida. Mas o castelo é muito diferente da
toca52. Muitos mamíferos herbívoros, como os tatus, pacas e os coelhos, mas alguns
52 Muito embora, ao falar sobre o Castelo de Kafka, Deleuze e Guattari afirmem que ele “tem entradas
múltiplas” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p.9). Usamos o exemplo de qualquer modo, para marcar que
estas noções se atualizam e que um castelo pode se desterritorializar em toca ou uma toca reterritorializar-se
castelo.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
53 Sobre uma tentativa de escrita animal, mágica, inquieta, poética, ou melhor, uma escrita-experiência na
escola, cf. a dissertação de Edna Olímpia da Cunha, companheira do NEFI: Suspensões e desvios da escrita:
travessias da filosofia na escola pública, 2014, disponível no banco de teses e dissertações do ProPEd.
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Daniel Gaivota
dos limites. É uma vida do fora54. Assim, o território serve, antes de tudo, para se
sair dele, mais que para ficar.
[...] construímos um conceito de que gosto muito, o de
desterritorialização. [...] precisamos às vezes inventar uma palavra
bárbara para dar conta de uma noção com pretensão nova. A noção
com pretensão nova é que não há território sem um vetor de saída
do território, e não há saída do território, ou seja,
desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se
reterritorializar em outra parte. (DELEUZE, 2001)
O território de Deleuze e Guattari parece, portanto, não ser dissociável de
seu oposto. Não existe território sem a possibilidade da desterritorialização - que é
não somente o movimento para fora do território, mas também o ato de fazer do
território um fora, ou seja, de fazer com que deixe de ser território. Mas todo
movimento de desterritorialização tem a ver com uma reterritorialização em outro
campo, ou seja, as relações territoriais são relações de movimento, são nômades.
Porque a desterritorialização acontece em forma de rizoma, como devir. A vespa se
desterritorializa na flor, mas se reterritorializa através dela, que é seu alimento. A
flor se desterritorializa ao tornar-se parte da vespa, mas é através da vespa que ela
se afirma flor, que se reproduz, reterritorializando-se. Do mesmo modo um lobo, ao
sair de seu território, desterritorializar-se, participa de outros agenciamentos de
forças, torna-se caçador, presa, ameaça, bebe água, experimenta o limite entre o que
é e o que não é, mas é só através dessa saída - que desterritorializa sua toca (ela se
torna apenas um buraco) - que pode se afirmar de fato que é um lobo.
É claro que não estamos a falar do animal molar, o lobo molar, o sujeito, a
forma lupina. É importante compreender que todo objeto é atravessado por dois
tipos de segmentaridade, uma flexível e outra endurecida, ao mesmo tempo, uma
molecular e uma molar. Há segmentos macro, rígidos e outros micro, mais fluidos.
Os sistemas binários, como as classes sociais ou os sexos, por exemplo, são
agenciamentos molares, mas os dois sexos, por exemplo, remetem a múltiplas
combinações moleculares, milhares de relações que põem em jogo o homem e a
mulher, mas também o homem e a mulher em relação aos objetos, os animais etc. O
mesmo se dá com as classes, que se segmentam de maneira molar, mas não
54 Importante compreender a noção do fora em Blanchot, Foucault e Deleuze; cf. capítulo A escola e o devir-
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
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p.56). Seu território é o movimento, ele configura uma saída e uma permanência
simultaneamente. É a terra, no movimento do nômade, que se desterritorializa,
portanto: deixa de ser terra, território, e passa a ser somente suporte dos passos,
caminho.
Assim, parecemos chegar a uma falsa bifurcação, um percalço ilusório: o
viajante está em um devir-nômade ou um devir-animal?
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
não é senão uma máquina sedenta, uma máquina ameaçadora, uma máquina presa
ou predadora. O fora, o des-território é o lugar do rizoma. É preciso que, na Escola-
Viagem se faça rizoma com o mundo, que a espreita, a atenção, torne o viajante o
caminho – para que o caminho possa se tornar parte do viajante. Devir-viajante,
portanto tem a ver com ouvir, ver, tocar, sentir cheiros, gostos, texturas. É uma
espécie de devir-carrapato.
E como se chega a esse mundo, então? Como ultrapassar o limite do
território e desterritorializar? Como se conhece o ponto onde a individualidade, a
subjetividade termina e o fora começa? Não é possível. Porque só faz sentido pensar
em barreiras neste sentido a partir de uma cartografia estriada, esquadrinhada.
Para compreender uma noção de mapa em um plano de imanência é preciso
abandonar as linhas limítrofes, os pontos de referência. Não é de um mapa
extensivo que estamos falando.
O termo “cartografia” utiliza especificidades da geografia para criar
relações de diferença entre “territórios” e dar conta de um “espaço”.
Assim, “Cartografia” é um termo que faz referência à ideia de
“mapa”, contrapondo à topologia quantitativa, que caracteriza o
terreno de forma estática e extensa, uma outra de cunho dinâmico,
que procura capturar intensidades, ou seja, disponível ao registro
do acompanhamento das transformações decorrias no terreno
percorrido e à implicação do sujeito percebedor no mundo
cartografado. (FONSECA; KIRST, 2003, p.92).
A cartografia, para Deleuze, é uma maneira de “desembolar” os dispositivos.
O conceito de dispositivo encontra-se no limiar entre a filosofia de Foucault e
Deleuze. Eles parecem funcionar a partir de linhas de visibilidade e enunciação –
que tornam objetos visíveis ou invisíveis, dizíveis ou indizíveis, permitindo ou não
que ciências, gêneros literários, estados de direito ou movimentos sociais sejam
vistos e ouvidos –, além de linhas de forças, que agem como setas, penetrando e
conduzindo as coisas e as palavras – ou seja, linhas de poder (DELEUZE, 1990,
pp.155-157). Em terceiro lugar, os dispositivos operam através de linhas de
objetivação e subjetivação, como que voltando essas setas de poder para dentro,
para si próprios, de modo a gerar sujeição e objetificação.
O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder,
estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de
saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. É isto, o
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
rizoma pode e deve ser relacionado com qualquer outro, sem relação hierárquica ou
de série (anulando assim, a própria condição de ponto, portanto, e fazendo com que
no rizoma só haja linhas). O rizoma não pode ser rompido, ou melhor, suas rupturas
não significam a quebra de uma sequência, ordem ou estrutura, pois eles são já
desestruturados – ou seja, a ruptura não só não gera nenhum problema para a
existência do rizoma, como configura componente importante dele.
Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as
quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado,
atribuído, etc.; mas compreende também linhas de
desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no
rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de
fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não
param de se remeter umas às outras. (DELEUZE; GUATTARI,
2012a, pp.25-26).
O que significa que no rizoma, a ideia de separação, fenda, distância e
proximidade assumem um caráter completamente diferente do que significam em
um mapa extensivo, estriado, em um aparelho de Estado, e isso significa também
que em um rizoma, as ideias de início ou fim não fazem sentido, não existem. O
rizoma, acima de tudo, não se propaga por filiação. Não é através de uma
segmentaridade serial que o rizoma cresce, se desloca. Os rizomas, como as ervas
daninhas, os fungos, os tubérculos, os bulbos e cormos se propagam por
proliferação, por contágio. Assim como os bandos, as matilhas.
O devir-animal, para Deleuze e Guattari, relaciona-se com a propagação
rizomática, pelos modos como o animal expande seu território, como habita suas
bordas, os limites, e como pode se alastrar. Não é possível, portanto, devir um lobo,
pois o devir-lobo é compartilhar molecularmente uma multiplicidade, é fazer
rizoma com o lobo e com sua maneira de alastramento, de proliferação.
Assim, temos condições de compreender as relações territoriais do devir-
viajante, observando três processos componentes da Escola-Viagem: a construção de
uma toca, a cartografia das bordas e a linguagem por sobreposição de mapas:
territorialização, desterritorialização e reterritorialização, se quisermos olhar desta
maneira.
Como já dissemos, a toca é um marco territorial poético, que se assemelha
aos marcos humanos de escrita. Para além disso, os animais que constroem tocas
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Daniel Gaivota
não raro a marcam de outras maneiras (as lontras, por exemplo, esfregam seu pelo e
liberam odor através de glândulas, os lobos marcam seu entorno com urina). Assim,
ciar uma toca é um ato singular de marca, de interferência no mundo. Não é um ato
de subjetivação, individuação58. Estabelecer uma toca é perfurar uma realidade, um
sistema, um plano.
Em princípio a toca parece uma máquina abstrata de rostidade: parece um
processo de criar buraco negro sobre muro branco – o que Deleuze e Guattari
apontam, em oposição a um sistema semiótico de volume-cavidade, como um
sistema superfície-buraco. Para os autores, o rosto surge no entrecruzamento de
dois eixos, duas semióticas bastante diferentes: a da significância, que “não existe
sem um muro branco sobre o qual inscreve seus signos e suas redundâncias”; a da
subjetivação, que “não existe sem um buraco negro onde aloja sua consciência, sua
paixão” (2012b, p.35-36). Mas a toca provoca justamente o contrário, ela é uma
despaisagização, um corte. A toca tridimensiona a superfície (a
desterritorializando), dá vetor de saída ao buraco. “Desfazer o rosto é o mesmo que
atravessar o muro do significante, sair do buraco negro da subjetividade”.
(DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p.64). E é isto, afinal, o que acontece na toca.
A toca normalmente tem múltiplas entradas, não tem início ou fim – é um
rizoma animal. Por ser assim, ela diz respeito a um território ligado muito mais ao
movimento que ao repouso. A toca comporta “uma nítida distinção entre linha de
fuga como corredor de deslocamento e os estratos de reserva ou de habitação”59.
(DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p.30). Assim, mais que construir um
estabelecimento, uma edificação segura, cavar uma toca tem a ver com dar a si
linhas de fuga, caminhos de saída, com compreender os caminhos de escape do
terreno nativo.
Um viajante precisa compreender sua maneira de viajar. Somente ao
compreender que tipo de deslocamento suas pernas são capazes de realizar e sua
pele é capaz de suportar se pode iniciar o caminho. É preciso se dar passagem,
58 Ou ao menos não de uma individuação subjetiva. Há outras maneiras, potentes, de individuação. Talvez
uma toca possa configurar uma hecceidade, por exemplo. Sobre esse conceito de Deleuze e Guattari, cf. o
capítulo Poética do deslocamento, página 61 deste livro.
59 O conceito de linha de fuga pode ser melhor compreendido através da leitura do capítulo A escola e o
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
cartografia do eu, que mapeia os limites de uma subjetividade, mas pelo contrário,
um mapeamento das forças que atravessam a percepção, para deixar-se levar por
aquelas que potencializam, que fazem movimentar. Essa cartografia das bordas
torna o (auto)cartógrafo pronto para caminhar sobre as linhas dos dispositivos,
desemaranhando-as, desmontando as relações estruturantes e, num processo
contrário, a avançar sobre elas, a invadir, desterritorializá-las. Cartografia como
máquina de guerra, mapas como espaçamentos lisos. Mas ao mesmo tempo esta
cartografia permite uma segunda espreita (não menos intensiva nem animalesca),
uma abertura, uma disposição a ser contagiado e a trocar intensidades, a fazer pacto
com o demônio, desterritorializando-se, alastrando-se pelas bordas.
E como é possível esse pacto? Como entendem-se esses anômalos, como pode
o capitão Ahab comunicar-se com Moby Dick, entrar em seu próprio devir-baleia?
E Robinson Crusoé devir-bode? Viajar, como dizíamos, tem a ver com o encontro
com a diferença, com o estrangeiro e, mais do que isso, com se tornar o estrangeiro.
É por estar fora, em contato com a estranheza que o pensamento pode emergir.
Essa experiência de borda geralmente envolve mal-entendidos ou, em outras
palavras, não ser capaz de falar alguma língua. Qual é a linguagem da fronteira?
E ainda: o que estamos chamando de linguagem? Aquela imagem que
Deleuze e Guattari trazem para falar sobre o aparelho de Estado ao estabelecer
duas forças constituintes, encarnadas nas figuras de Mitra e Varuna 61, pode ser uma
diretriz para analisar o que acontece quando falamos (e, além disso, quando fazemos
o que comumente chamamos de pensamento). Temos uma noção do que é
linguagem baseada em um mecanismo de compreensão. Para se comunicar com os
outros, é necessário jogar uma espécie de jogo, no que há algumas regras e onde
todos os movimentos se apontam para um acordo, um propósito comum. O nosso
conceito de uma língua, portanto, basicamente, é baseado em um mágico-rei e um
jurista-sacerdote, sendo eles a verdade e o diálogo, respectivamente. O que significa
que aquilo a que chamamos linguagem na verdade é um espaço estriado, é a imagem
do Estado (e vice-versa).
61 O funcionamento dos aparelhos de estado pode ser encontrado na reflexão presente no capítulo A escola e
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62 Sobre a Máquina de Guerra, cf. também o capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste livro.
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fazem sentido dentro dessa estrutura de pensamento que o viajante (e nós também)
está dentro. Mas a questão importante é: por que isso faria alguém chorar?
Parece mais interessante comparar essa experiência com a sensação de comer
aqueles doces, cujos nomes são desconhecidos ao viajante. Porque mesmo não
sabendo os nomes e não lembrando exatamente o gosto deles (porque é muito mais
difícil lembrar de gostos que de imagens ou conceitos), eles são parte do que o
viajante sabe ou pensa sobre a cidade (digamos que a padaria, assim como o ladrão,
a senhora e a moto também se encontrem em Atenas). Mesmo que esse elemento,
que essa intensidade não possa caber em alguma estrutura, ele configura um mapa
de intensidade. Não é como o mapa da cidade no papel, é claro; não se pode apontar
algum lugar como a padaria ou mesmo o templo neste tipo de mapa. Porque não é
um mapa métrico, extensivo.
Mapas extensivos só podem referir-se a espaços estruturados, com fronteiras,
limites e interdições. Mapear um espaço liso ou um plano de imanência se faz a
partir de um mapa de intensidade. Deleuze fala sobre mapeamento ao explorar o
conceito do rizoma com Guattari, mas também encontramos essa discussão em seu
confronto com a análise freudiana da psique humana. Onde o filósofo vê um mapa
de afecções, por exemplo, no caso do pequeno Hans que está impressionado com um
cavalo na rua, Freud vê imagens pálidas do pai e da mãe de Hans. Deleuze aborda a
ideia de um corpo pensante usando esta imagem, ajudando-nos a pensar no tipo de
pensamento de um viajante.
O trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que
percorrem um meio, mas com a subjetividade do próprio meio, uma
vez que este se reflete naqueles que o percorrem. O mapa exprime a
identidade entre o percurso e o percorrido. Confunde-se com seu
objeto quando o próprio objeto é movimento. (DELEUZE, 1997,
p.73).
Estes mapas de que estamos falando são feitos, desenhados pelo corpo.
Através do corpo de um viajante. O corpo, muitas vezes em vertigem, experimenta
intensidades, algumas em formas mais profundas do que outras, e cria afetos, mapas
vetoriais. E são esses mapas que, sobrepostos, formam o território da cartografia de
si. É através do desenho destes mapas que nossas bordas vão aumentando e nossa
multiplicidade se torna sempre outra, com novas bordas a serem exploradas.
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64Que tem mais a ver com a descoberta que com a verdade. São estes mapas que possibilitam o tipo de
narrativa específico da Escola-Viagem, como se desenvolve no capítulo A narrativa na Escola-Viagem,
página 147 deste livro.
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ouvir o barulho de asas detrás de uma porta e a abri-la, se entrega a ser devorada
pelos pássaros. A ser penetrada por essa força, ao ter sua subjetividade minada
(processo pelo qual vai passando gradativamente ao longo da narrativa), Melanie
devém-pássaro, desterritorializa-se, assume a natureza passarificada na qual
humano e inumano confundem-se (e confundem-se gradativamente durante todo o
filme, em que assustadores pios de pássaros criados em sintetizadores se ouvem
através das cenas). Os quatro abandonam os limites da casa para encontrar, então,
um mundo tomado por pássaros, contagiado pelo rizoma, desestruturado ao limite.
O filme, após a última cena, não exibe a tela com os dizeres que anunciam o fim.
Talvez a melhor pergunta não seja por que os pássaros atacam os humanos;
tal expressão só pode ser enunciada de um ponto de vista, de uma perspectiva. Mas
se os humanos entram em um devir-pássaro, que outra coisa devém os pássaros
empoleirados nos brinquedos do parquinho? Quão devastador é ter seu território
invadido por uma multiplicidade? Como será uma escrita-pássaro? Que marcas ela
deixará no mundo? Podemos ouvir a voz de um pássaro que não seja inventada,
sintetizada? Podemos ouvir uma voz humana que não o seja? É possível ocupar o
espaço terrestre da maneira eólica das gaivotas? Como pode ser possível, se elas
“nunca param de migrar”?
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RETORNO A ÍTACA
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RETORNO A ÍTACA
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A NARRATIVA NA ESCOLA-VIAGEM
(OU SOBRE FOTOGRAFAR, NARRAR, VERIFICAR)
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A NARRATIVA NA ESCOLA-VIAGEM
(OU SOBRE FOTOGRAFAR, NARRAR, VERIFICAR)
Quando eu chego num lugar, a primeira coisa que quero saber é sobre a
história local. E onde vamos? Sim, num museu, nos teatros e afins. A
escola é uma espécie de museu. Não daqueles que ficam pra sempre. Nem
dos que tem objetos para ser olhados. Mas sim daqueles que contam
histórias. A escola é isso. Um lugar repleto de histórias. – Milla
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Daniel Gaivota
mais o contrário. Sempre que um viajante narra uma história, algum ouvinte lhe
pergunta “mas isso aconteceu de verdade?” A palavra não é mais o bastante. 65
Italo Calvino, em seu livro Cidades Invisíveis, narra essa tentativa de
comunicação desinformativa, de relato de viagem sem fotografias ou imagens. O
viajante Marco Polo traz para o imperador Kublai Khan relatórios das cidades de
seu império, o fazendo viajar de dentro de seu próprio palácio, deslocando-se e
criando mapas66 próprios, não extensivos, mas intensivos, cartografando seu
império através de palavras estrangeiras. Certamente os relatos de Marco Polo não
são os mais exatos que o imperador ouve entre seus mensageiros e diplomatas, mas
talvez sejam eles os mais verdadeiros.
Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo
em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros
certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior
curiosidade e atenção do que a qualquer outro de seus enviados ou
exploradores. [...] Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai
Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres
destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a
ponto de evitar as mordidas dos cupins. (CALVINO, 1990, pp.9-10).
Marco Polo não descreve ao Khan as cidades que viu. Isso seria impossível.
Cada cidade é um mapa de intensidades, um campo de forças que inclui a própria
força do viajante. Os planos de imanência se sobrepõem, apesar de constituírem um
só plano. A dificuldade se encontra em afirmar a viagem sem excluir dela o viajante,
já que o objetivo de gerar um campo liso, desestruturado, é evitar a possibilidade de
um sujeito que ordena o mundo. E mais difícil ainda é conceber uma forma de
narrativa que possa dar conta dessa desestruturação da relação sujeito-objeto.
Deleuze afirma, sobre essa possibilidade, que não se trata de “contar as próprias
lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, sonhos e fantasmas. Pecar por
excesso de realidade ou de imaginação é a mesma coisa” (1997, p.12). A verdadeira
problematizar um texto ou de escrever sobre um problema, cf. a dissertação de José Ricardo Pereira Santiago
Júnior, Zé, companheiro do NEFI: Filosofia com crianças: dos saberes da infância à infância dos saberes, 2013,
disponível no banco de teses e dissertações do ProPEd.
66 A noção de mapa é mais amplamente trabalhada no capítulo O (des)território da Escola-Viagem, página
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
narrativa de viagem é um deslocamento de si, “só começa quando nasce em nós uma
terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu”. (DELEUZE, 1997, p.13).67
Marco Polo parece fazer este tipo de narrativa de viagem. Kublai Khan a
todo momento tenta encontrar a si próprio ou ao veneziano nas histórias que ouve,
mas se surpreende com elas justamente por não poder encontrar ali esta grade que
separa ouvinte de narrador, história de viajante, cidade de sonho. Entretanto, não é
preciso deixar de ser Marco Polo para narrar. É claro que não é um desprezo por si
próprio o que defendemos com esse ensaio de uma escola imanente. A narrativa do
viajante não é um simples relato desinteressado, objetivo (pois até aí se marca a
diferença entre o sujeito e o objeto). Como é possível, portanto, uma narrativa que
não seja autobiográfica (ou autobiofonética) mas que também não exclua suas
próprias forças como agenciamentos, campos de afecção, mapas de intensidade?
Outro viajante narrador de que temos notícia é Ulisses. O encontro de
Ulisses com seu passado na terra dos Feácios68 faz com que ele compreenda que é
apenas um homem, que por outro lado vive, agora, nas bocas e ouvidos dos outros
homens, pois suas histórias são contadas pelos aedos. Ulisses, ao passar pela ilha das
sereias, amarra-se ao mastro da nau e as ouve cantar enquanto seus subalternos
remam surdos ao canto mágico (imagem que Adorno e Horkheimer utilizarão mais
tarde para pensar a relação entre trabalho, capital e arte), e não escuta delas outra
coisa senão sua própria glória, a narrativa épica do guerreiro grego. Elas cantam:
“vem aqui, decantado Ulisses, ilustre glória dos Aqueus; detém tua nau, para
escutares nossa voz [...]; depois afasta-se maravilhado e conhecedor de muitas
coisas, porque nós sabemos tudo quanto, na extensa Tróade, Argivos e Troianos
sofreram por vontade dos deuses”. (HOMERO, 2002, p.161) Ulisses ouve, de mãos e
braços atados, sua própria história, sua própria glória, traçando uma linha definitiva
entre o presente e o passado, que em qualquer outra situação separaria o homem do
mito. Mas Ulisses, através de sua astúcia, permanece no limiar, permanece em
67 Sobre a tentativa de um "se tornar o que se é", de uma subjetivação que seja potente, singular, a partir na
narrativa e cuidado de si, cf. a tese de Waldênia Leão de Carvalho, companheira do NEFI: Notas para pensar a
educação a partir de Michel Foucault: do humanismo ao cuidado de si, 2012, disponível no banco de teses e
dissertações do ProPEd.
68 Uma descrição desse encontro e a relação de Ulisses com o devir-viagem pode ser conferida no capítulo A
149
Daniel Gaivota
transição. Os navegantes passam pela ilha então, e logo o vento volta a soprar,
retirando o barco da deriva.
O preço de ouvir este canto é a morte, na medida em que Ulisses precisa se
compreender como alguém outro, diferente daquele que guerreou em Tróia. Está
em sua jornada de volta, deixando para trás a glória da era dos heróis para se
tornar um homem do saber, da razão. A Odisséia é a última narrativa épica do povo
grego antigo. Ulisses derrota os monstros, as criaturas mágicas e as forças da
natureza usando a prudência (metis), uma inteligência ardil, uma sagacidade, mais
do que a força ou a coragem. Ao contar sua história para os Feácios, Ulisses está
entre dois mundos: o da viagem, da aventura marinha e dos perigos do mar; e o da
casa, o mundo real onde se planta o trigo e se come o pão. Sua estadia ali, onde pela
última vez é recebido e exerce sua estrangeiridade (xenia), é o ritual fúnebre do
Ulisses viajante. Ele já fora avisado por Circe que, se escutasse o canto das sereias,
sucumbiria. A melodia do canto das sereias era então a terrível experiência do fim
da viagem, do fim do trajeto – a experiência do presente em relação a seu próprio
passado. Ulisses só percebeu muito tarde que o canto de Demódoco percorria a
mesma melodia, e desta vez não havia mastro nem cera de abelhas. Ulisses
sucumbe, ouve o canto do passado e seu choro é o choro de quem se despede. É
enviado pelos feácios em um barco repleto de enfeites e víveres, onde dorme um
sono profundo e acorda em Ítaca, já um homem sedentário, com desafios e
motivações sedentárias. Alguns helenistas veem este episódio como um rito
fúnebre: morre naquele barco – no mar, como todo marinheiro há de morrer – o
Ulisses viajante.
E por isso ele conta sua história. Ulisses compreende, através do canto da
sereia, que não poderá sobreviver de outra maneira. Compreende que há um tempo
cronológico, devorador, do qual fugiu (Ulisses não parece envelhecer em toda a
narrativa) enquanto ocupava outra temporalidade, o tempo da viagem, da Aventura
e da Vertigem69. Agora precisa ocupar outra temporalidade ainda, através da
narrativa de si. Ulisses, herói da metis, é o outro polo de Aquiles: não abraçará a
morte no campo de batalha como maior glória – ao contrário, encontrará sua
69 Sobre estes conceitos, cf. capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
própria maneira para não morrer nunca (como demonstra muito bem a imagem de
sua ida e retorno ao Hades). Então, Ulisses mente, engana, dissimula.
A narrativa poética, como a própria palavra sugere, não tinha como
parâmetro para a verdade (universal) a lógica ou a retórica, o logos como via única.
O poeta, aedo ou narrador precisava ser versado na arte de iludir, esconder e
enganar para ser capaz de traduzir a palavra das Musas, divina, de sabedoria total,
para a linguagem humana, através de memória humana. A falta que sua condição
humana causa no canto das sereias deve ser compensada por sua capacidade poética,
ou seja, criadora, construtora, inventora.
Desta ambiguidade fundamental extraem-se duas conclusões. Por
um lado, o “Mestre da verdade” é também um mestre do engodo;
possuir a verdade é ser também capaz de enganar. Por outro lado,
as potências antitéticas Alétheia e Lethe não são contraditórias no
pensamento mítico, os contrários são complementares.
(DETIENNE, 1988, p.43).
Tanto o esquecimento, Lethe (que significa também véu, fazendo do objeto
esquecido, para o grego, algo velado, oculto) quanto a verdade, Alétheia (que
portanto tem o sentido de um desvelar, de um descobrir, mostrar) estão presentes
no ofício do poeta e do narrador. É preciso saber ocultar para dizer a verdade, e é
preciso inventar uma verdade para ocultar. Ulisses é um mestre do engodo, se
observarmos suas façanhas na Odisséia: conta histórias a Calipso e Circe; inventa
um personagem para si (um mendigo estrangeiro) e uma história semelhante à sua
própria, mas fictícia, para apresentar-se em Ítaca para o porqueiro Eumeu; oculta
sua identidade a Alcino e Arete, rei e rainha da Feácia; e claro, conta sua história
longamente a Penélope em sua primeira noite juntos. Ulisses conta histórias sobre o
que não viu e o que não é. Sempre que conta sua origem, modifica um pouco a
história. Narrar a mesma história sempre outra vez é dar a ela um outro caráter de
verdade, uma outra espécie de verdade. É sempre re-tornar. Ulisses só pode ser
verdadeiro, só pode falar de si com fidelidade a partir da mentira, do oculto, ao
“enredar” o ouvinte. Ser verdadeiro aí significa ser sempre outro, de certa maneira.
É assim que, ao enganar Polifemo, o cíclope, ele se apresenta como “Ninguém”
(Outis). Ulisses torna-se “ninguém” ao devir-outro. Se desterritorializa em sua
narração, pois fala de um “outro si”, mas é aí que se reterritorializa como narrador.
151
Daniel Gaivota
Mas o que é preciso para narrar? Ou, dito de outra maneira: se as pessoas
hoje viajam mais que no passado, por que a narrativa de viagem é um gênero em
extinção? A fotografia certamente é uma invenção que colaborou muito para esta
crise, na medida em que ela contribui, como afirma Benjamin (1994), para uma crise
da experiência. O autor atribui à invenção da reprodução técnica e maquínica – em
especial a invenção da fotografia e do cinema – a crise da experiência e da obra de
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
70 Essa discussão sobre o Outrem é mais aprofundada no capítulo Poética do deslocamento, página 61
deste livro.
71 A discussão sobre a fotografia é intencionalmente abordada aqui de maneira pouco profunda. Seu
aprofundamento seria interessante, mas faria necessário um texto maior, talvez um capítulo próprio. Ela
aparece simplesmente em contraste com as formas narrativas verificadoras e enredantes, próprias do viajante
e pertinentes para se pensar a Escola-Viagem.
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Daniel Gaivota
72 Cf. capítulo O tempo da Escola-Viagem, página 91 deste livro, sobre esse conceito em Deleuze.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
73 Esta contraposição à dupla rapidez-lentidão em prol de uma velocidade vertiginosa pode ser encontrada no
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Daniel Gaivota
cada noite desfaz sua tessitura, desemaranha os fios, assim como Ulisses, do outro
lado do mar, fia e desfia suas histórias. Nenhuma tapeçaria de Penélope é a
verdadeira, a última, a definitiva. Os dois amantes afinal têm o mesmo ofício: fiar
mentiras, tecer a rede que enreda, inventar uma malha de linhas sem começo ou fim
– ou com diversos fins e começos.
Outro exemplo de narrativa como suspensão do tempo cronológico e de
mulher que fia é a história das Mil e Uma Noites. Depois de uma traição de sua
mulher, o rei Shariar da Pérsia decide que nenhuma mulher é digna de sua
confiança, passando a trazer a cada noite uma virgem ao palácio e executando-a no
dia seguinte. Passados muitos anos e execuções, uma jovem, Sheherazade (nome que
provavelmente é formado pelos elementos persas [ شهرshahr] – cidade; e [ آزادazad]
– livre, ou seja, a libertadora da cidade), se oferece para ser entregue ao rei, mas
pede que sua irmã, Duniazade (provavelmente derivando de [ ُد ْن َياdunya] – aquilo que
está próximo; e [ آزادazad] – livre; ou seja, aquela que garante a liberdade da irmã), vá
visita-la para se despedir e que peça para a irmã contar uma história. Duniazade o
faz, e Shariar permite. Assim, Sheherazade começa a contar uma história sobre um
mercador e um gênio e o rei acaba se interessando, de modo que, mesmo após
Duniazade adormecer74, continua a narrar. A história se estende ao longo da noite e
pela manhã ainda não terminou, de modo que Shariar adia a execução de
Sheherazade para escutar o final da narrativa. Na noite seguinte, a história termina,
mas acaba por iniciar outra, ainda mais interessante, que adia por mais um dia a
execução. Assim, por mil e uma noites, Sheherazade suspende o tempo, fia e desfia,
tece um engodo e enreda o rei.
A narrativa é um trabalho, como o tear, de artesão. Ela foi aperfeiçoada nas
oficinas dos artífices, como não poderia deixar de ser, e, portanto, configura uma
atividade poética, ou antes, de poiesis. Ela é uma forma de comunicação artesanal;
“não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma
informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele” (BENJAMIN, 1994, p.205). Ou seja, algo do narrador
mundos através da lógica onírica, noturna, e não de adequação, diurna. Sobre o sonho, cf. capítulo
Onirodinia e relato, página 169 deste livro.
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75 Sobre os dispositivos em Foucault, Deleuze e as formas de “desembolar” suas linhas de força, cf. capítulo O
(des)território da Escola-Viagem, página 91 deste livro.
76 O louco é a figura principal na discussão sobre começos e partidas no interlúdio O Louco, página 191
deste livro.
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Daniel Gaivota
que o interlocutor do louco não pode perceber com clareza nesta relação é que não é
o outro que é mudo: ele próprio é que está ensurdecido.
Para assinalar simplesmente não o próprio mecanismo da relação
entre poder, direito e verdade, mas a intensidade da relação e sua
constância, digamos isto: somos forçados a produzir a verdade pelo
poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar,
temos de dizer a verdade, somos coagidos, somos condenados a
confessar a verdade ou encontrá-la. (FOUCAULT, 1999, p.29).
A partir dessas afirmações de Foucault, Simón Rodríguez não poderia ser
levado a sério, pois o que diz ameaça a estrutura que o poderia legitimar. Rodríguez
parece concordar, quando afirma portanto que os loucos dizem a verdade.
Mas ele diz, ainda, que não só os loucos a afirmam, mas também as crianças.
As crianças não parecem representar uma ameaça tão grande às estruturas a que
estão inseridas, mas quando Rodríguez expressa essa sentença, ele coloca as
crianças e os loucos no mesmo patamar político. Afirma a igualdade entre essas
partes. Se já assumimos que o louco é o próprio Simón Rodríguez, poderíamos dizer
que a sentença exprime uma relação de igualdade na escola. O mestre e os alunos
são aqueles que dizem a verdade, que são capazes de escapar das estruturas que
aprisionam o pensamento e o corpo humanos. Que são capazes, portanto, de ignorar
as verdades já existentes e abrir espaço para que se crie uma nova, para que se a
invente.
Neste sentido, o mestre inventor de Simón Rodríguez é também um mestre
ignorante, à maneira de Rancière. Só é possível ao mestre e aos alunos, ao louco e às
crianças, inventar a verdade para enfim dizê-la se puderem ignorar ou derrubar
estruturas, se puderem se tornar independentes. Isto reafirma a necessidade da
igualdade na escola popular de Rodríguez. Se não há a igualdade, isso significa que
uma das partes não ignora – no sentido que Jacques Rancière traz para essa palavra
com seu Mestre Ignorante – as estruturas de poder que impedem a independência,
o cuidado de si, que impedem o caráter público da escola. Inventar uma escola
torna-se possível se ignorarmos essas estruturas, se a tornarmos um espaço liso77,
se apagarmos as linhas que estabelecem os limites. É preciso se tornar louco ou
criança (talvez as duas coisas) para inventar a verdade. As crianças e os loucos
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
78 Sobre a relação da infância e da possibilidade de uma escola de educação realmente infantil com a invenção
de mundos, cf. a dissertação de Alessandra de Barros Piedras Lopes, Ale, companheira do NEFI: Habitar o
presente, fazer um mundo: movimentos de crianças e adultos em uma escola de educação infantil, 2015, disponível no
banco de teses e dissertações do ProPEd.
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Daniel Gaivota
da língua que é possível ao mesmo tempo falar de si sem recorrer ao “eu”. Mas para
isso é preciso des-locar, mover-se, brincar.
A narrativa da Escola-Viagem é, afinal, um brinquedo. Entender que os
conceitos de narrativa e verdade desta escola viajante tenham a ver com os relatos
de viagem significa compreender que ela não está preocupada com uma
verossimilitude ou com a veracidade das informações proferidas; antes, preocupa-se
com uma palavra capaz de mover. Não com o uso prático da palavra, com a
ferramentalização do discurso ou da enunciação, mas com sua libertação, com o uso
livre do verbo para recriar-se a si, ao outro e ao mundo. Como brinquedo. É ao
deformar a língua, ao brincar com ela que se pode criar. Enquanto a narrativa for da
ordem do útil, uma ferramenta (como é o caso da narrativa histórica), as palavras
não aprenderão a dançar nem a viajar. “O poema é antes de tudo um inutensílio”
(BARROS, 2016, p.31), brinca Manoel de Barros.
Temos agora condições de nos confrontar com a quarta afirmação de
Deleuze sobre a viagem, apoiada em Proust:
Então, que razão poderá em última instância haver, se não for a de
verificar, de ir verificar alguma coisa, alguma coisa de inexprimível
que vem da alma, de um sonho ou de um pesadelo, que mais não
seja saber se os chineses são tão amarelos como se diz, ou se certa
cor improvável, um raio verde, certa atmosfera azulada e purpúrea,
existe de facto algures, lá longe. O verdadeiro sonhador, dizia
Proust, é o que vai verificar alguma coisa. (DELEUZE, 1996,
p.100).
Deleuze rechaça três justificativas para a viagem: a de que se viaja em busca
de uma “ruptura”, que não acontece enquanto levarmos nossa Bíblia, recordações de
infância e nosso hábito; a de que se viaja em busca de se tornar nômade; a de que se
viaja por prazer79. Em grande parte, são estas três falsas crenças que geram os
temores e os ataques das instituições e dispositivos à escola – e, em certa medida, à
viagem. O medo de que a escola cause uma ruptura à organização estabelecida, de
que ela desestruture as ordens de poder vigentes e as hierarquias é a causa da
maioria das tentativas de domar a escola. Mas a escola não causará uma verdadeira
ruptura enquanto permanecer como decalque do Estado, enquanto reprodução de
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
real algo que se inventa, só é possível fazer ser o que ainda não é. O material do
narrador viajante é o não-ser, o outro, o fora. A verdade não existe como um outro
plano que dá condição de existência para as coisas: a verdade é sempre uma
invenção, ininterruptamente narrativa. Marco Polo, Sheherazade e Ulisses nada
mais fazem do que criar mundos navegáveis, mesmo que sem qualquer movimento
extensivo. E pouco mais interessa à Escola-Viagem que isto: tecer histórias, fiar
saberes, inventar cidades. A Escola-Viagem, portanto, é uma oficina, um lugar de
formação de artesãos. Mais: de marinheiros, camponeses, mensageiros, mercadores,
exploradores, estalajadeiros, desenhistas, costureiros, pescadores, cartógrafos,
observadores de pássaros. Todos artífices de palavras inverossímeis, mas
arrebatadoramente verdadeiras.
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ONIRODINIA E RELATO
(OU SOBRE AS VOZES, SONHOS
E O PERIGO DO OUTRO)
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ONIRODINIA E RELATO
(OU SOBRE AS VOZES, SONHOS E O PERIGO DO OUTRO)
[...] a diferença está no que colocamos para fora, visto que o sabor que
nos foi sugerido passou pelo nosso saber ao encontrar-se com cada uma
de nossas singulares bocas. A escola, por sua vez, é o garfo. A ferramenta,
meio ou lugar para fazer a viagem acontecer. Um porto-inseguro. O
oposto de um porto: a nave.81
81 Fragmento de um texto produzido coletivamente, a quarenta e seis mãos, como exercício de pensamento
durante uma viagem para a Olimpíada de Filosofia do Rio de Janeiro, em 2016. A Olimpíada de Filosofia é
um evento que acontece em âmbito estadual e latino-americano e reúne jovens estudantes, não para competir,
mas para trocar experiências de pensamento e refletir sobre questões e vivências propostas. É organizada de
forma coletiva, embora no Rio de Janeiro seja encabeçada pela amiga e colega Lara Sayão. O nosso grupo em
2016 era formado por 20 alunos e mais três pessoas (professor, oficineira, monitora), comportando assim
muita diferença e muita intensidade.
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Daniel Gaivota
82 As entrevistas foram feitas por texto, via internet, de forma desestruturada e potente. A partir destas
duas perguntas (“É possível aprender a ser estrangeiro?” e “Por que a escola deve existir?”) e de suas respostas, o
diálogo prosseguia (ou não) com outras (na maioria das vezes geradas pelos alunos, não por mim!), para
direções difusas. 58 alunos foram entrevistados e autorizaram a utilização de seus textos e nomes. Ainda
assim, estão citados aqui através de nomes que não são aqueles que estão em seus documentos – mas que
também não podemos dizer que são nomes falsos. Não foi possível citar aqui trechos de todas as entrevistas,
mas todos os 58 estão presentes, como co-autores, neste texto e em minha vida.
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83 Sobre a relação da estrangeiridade com a multiplicidade, pode ser interessante observar a discussão
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pude entender isso porque senti aquela experiência. Eu consegui ‘sentir na pele’. E foi aí que
eu pensei. Que se eu fosse contar para um estrangeiro simplesmente falando em palavras acho
que ele não entenderia a profundidade”. Não se trata de mostrar, como também não foi
mostrado nada a Bárbara. Algo simplesmente a forçou a ver, fez com que fosse
impossível não experimentar alguma coisa.
Deleuze e Guattari, em seu livro sobre Kafka, definem a literatura kafkiana
como uma literatura menor. Eles percebem que o autor, que é judeu em Praga e que
escreve em alemão, se coloca como um estrangeiro dentro de sua própria língua.
Uma literatura menor, entretanto, não tem a ver com um povo menor nem com uma
língua menor. Pelo contrário, tem a ver com um movimento que uma minoria faz
em uma língua maior.
Kafka define nesse sentido o impasse que barra os judeus de Praga
o acesso à escrita, e faz de sua literatura algo de impossível:
impossibilidade de não escrever, impossibilidade de escrever em
alemão, impossibilidade de escrever de outro modo. [...] A
impossibilidade de escrever em alemão é a desterritorialização da
própria população alemã, minoria opressiva que fala uma língua
cortada das massas, como uma “linguagem de papel” ou de artifício;
[...] o alemão de Praga é uma língua desterritorializada, própria a
usos menores. (DELEUZE; GUATTARI, 2014, pp.45-46).
Exatamente por estar nesta posição de estrangeiro que foi possível a Kafka
fazer um uso menor de sua língua, criar uma sintaxe dentro da língua. É por estar
dentro de uma língua maior, opressiva, odiável, que a língua menor pode atacá-la,
fazer cortes, criar linhas de fuga. Produzir uma espécie de língua estrangeira,
que não é bem uma outra língua, nem um dialeto regional
redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa
língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de feitiçaria que
foge ao sistema dominante. Kafka faz o campeão de natação dizer:
falo a mesma língua que você e, no entanto, não compreendo sequer
uma palavra do que você diz. (DELEUZE, 1997, p.15).
Pois assim parece ser com uma pedagogia da viagem. Ser uma pedagogia
estrangeira significa criar uma linha que escape aos sistemas, às estruturas
dominantes da educação. Parece que a pedagogia que estamos buscando aqui é uma
impossibilidade, uma impossibilidade de não se deslocar, impossibilidade de se estar
em uma escola imóvel, impossibilidade de seguir sendo o que temos sido. A
educação que buscamos, mais que procurar estar vazia de objetivos, de diretrizes, de
metas, se faz através de uma pedagogia que possa, dentro de uma educação “maior”,
173
Daniel Gaivota
84 Lersobre as multiplicidades apresentadas pelas matilhas animais e sobre Josefina, a cantora, no capítulo O
(des)território da Escola-Viagem, página 115 deste livro.
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
sozinho. Afinal, “um único ser humano não teria como ser estrangeiro se não existisse
outro(s) para olhar para ele com estranheza”, como afirma Felipe. Assim como não
podemos separar Deleuze e Guattari nem Masschelein e Simons, pois não é a eles que
escutamos, e sim às intensidades que seus encontros produzem, também não é possível
separar o texto do professor e dos alunos. Esse é um livro na primeira pessoa do
plural, como é, necessariamente, toda viagem.
85 Sobre uma outra maneira de pensar esse conceito, e pensar a escola como forma em oposição a sua
institucionalização, cf. a dissertação de Fabiana Fernandes Ribeiro Martins, Fabitins, companheira do NEFI:
A escola entre a instituição e a forma: um estudo para pensar uma relação paradoxal, 2014, disponível no banco de
teses e dissertações do ProPEd.
175
Daniel Gaivota
outro86. A formação adquire, portanto, um sentido de fiar junto, fiar com. Daí vem a
palavra confiar, que parece também fazer parte importante do processo de formação
escolar. O diccionario etimológico de Chile afirma ainda que “La etimologia de la palabra
latina [forma] sin embargo, no es clara. Por un lado, podria estar emparentada [...] con
una raiz indoeuropeia *dher-, vinculándola a, pero no derivándola, de firmus (firme, sólido,
fuerte), fretus (confiado, fiado de)”. Há uma relação linguística e genealógica, portanto,
entre a formação e a confiança (com-fiar).
Masschelein e Simons exploram em seu livro uma ideia de escola que
também não é a escola formativa (nesse mau sentido) da qual tentamos nos esquivar
aqui. Formação, para os autores,
[...] consiste, na verdade, em preparação. Isso, certamente, pode
assumir a forma de preparação para coisas muito concretas no
ensino superior ou no mercado de trabalho, mas não é a principal
preocupação da escola. Pelo contrário, é a própria preparação que é
importante. Consiste no estudo e na prática, e para realmente se
qualificar como estudo e prática, a orientação para a produtividade,
eficiência ou empregabilidade deve, pelo menos temporariamente,
ser colocada entre colchetes ou neutralizada. (MASSCHELEIN;
SIMONS, 2013, p.89)
Ou seja, admitem que o objetivo dos processos escolares é menos repassar
uma determinada quantidade de conhecimento ou treinar para o desempenho de
funções específicas do que permitir que se reúnam “pessoas, com a riqueza de
diferenças entre elas”, como define João Pedro, e, nesse encontro, experimentem,
estudem e reelaborem o mundo. A escola abre o mundo, e não o fecha, restringe.
Para Masschelein-Simons (2013, p. 89), essa formação “significa que os jovens
‘adquirem sua forma’ [...] mais exatamente, sempre tomam forma em relação a algo,
isto é, à matéria”. Nesse sentido, está mais ligada às possibilidades do que aos
ideais, e vai ao encontro dessa nova apropriação do termo formar que sugerimos.
Além disso, para Masschelein e Simons, é importante admitir que as pessoas
na escola são capazes de construir saber. O professor não é um provedor de
conhecimento, pois como diz Maia “a relação entre professor e aluno é bem maior do que
ensinar e aprender”, e sim das condições de possibilidade de relacionar-se com o
86 Esta ideia é tecida e fiada (para ser desfiada e tecida outras vezes) no capítulo A narrativa na Escola-
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87 Estas possibilidades tocam os conceitos apresentados em relação à amizade e suas relações com o saber, o
pensar e a philia na dissertação de Julia Ramires Krüger, amiga e companheira do NEFI: O saber da amizade:
entre filosofia e educação, 2016, disponível no banco de teses e dissertações do ProPEd.
88 Como se discute mais profundamente no capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste livro.
89 Sobre a hospitalidade, cf. também o capítulo A escola e o devir-viagem, página 41 deste livro.
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tenha passado por algo, mostrar minha experiência”, afirma João Pedro, o espaço coloca
em questão cada sujeito, já que todos se abrem a ser invadidos pela experiência do
outro. Mimi afirma, sobre isso: “eu diria que os nossos encontros (vulgo aulas, hahaha)
foram conversas de bons amigos onde você consegue se conhecer um pouco mais e menos”91.
Assim, ao valorizar as possibilidades e ao praticar a confiança, o que estamos
fazendo é, basicamente, tratar os habitantes da escola como estrangeiros. Esse é um
sentido mais verdadeiro e potente da formação: estrangeirizar. No lugar de “dar
forma”, des-locar. Passar a lidar com o que tradicionalmente compreendemos como
sujeitos de uma nova maneira: como movimentos, forças. Como Milla pôde
perceber: “Aprendi muito sobre onde é o meu lugar e que nem sempre ele é fixo”. Essa
percepção não é simples, e envolve uma insularização da escola, uma percepção-
poética da relação com o mundo que permita um apagamento do eu, em direção do
fora, onde se encontram as forças do mundo. Milla concorda, na sua ressalva,
dizendo que na verdade “não é questão de aprender, mas de se permitir trocar de papel
várias vezes”. É isso; não se trata de se retirar do mundo, mas compreender que o Eu
é apenas uma das forças deste campo. “Aprendemos O QUE É ser estrangeiro, e isso se
comunica, sem dúvida nenhuma, com a nossa própria maneira de ser estrangeiro aos
outros”, diz Felipe. Parece que uma abertura do mundo passa por uma abertura das
pessoas umas às outras e ao mundo – que não são aberturas diferentes. Paula e
Heitor ressaltam a importância dessa abertura do outro: “nossa voz era pedida e não
calada”; “Eles não dão dinheiro, não moram com você, mas usam do tempo deles pra te
escutar”. Já Bruno tenta (deliberadamente!) pensar a estrangeiridade a partir da
relação com a viagem: “somos estrangeiros nas vidas alheias. Só que alguns acabam
tirando a dupla cidadania e ficando, outros visitam, conhecem, curtem, tiram fotos, e se
vão”. Ao ser inquirido sobre qual o papel da escola nesse processo, afirma: “eu acho
que a escola busca ensinar a tirar a dupla cidadania, mas prepara a gente a partir”.
A maioria dos alunos, entretanto, observa como a escola não precisa ensinar a
ser estrangeiro, ou antes, não pode fazê-lo, pois não se trata de um saber, mas de
91 Sobre a possibilidade (ou não) de um espaço escolar pensado a partir do “nós”, da comunidade, do comum,
cf. a dissertação de Ana Corina Salas Correa, Cori, companheira do NEFI: Uma questão de (auto) educação: um
estudo de Cecosesola, uma escola que não é uma escola, 2016, disponível no banco de teses e dissertações do
ProPEd.
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dia a pensar que o mundo funciona maquinalmente, mas que o que aconteceu nas
aulas permite que ela não ceda a esse pensamento. Pergunto a ela se esse saber é
importante para uma engenheira, e ela responde: “Faz eu não virar uma máquina”.
Há uma escola maior, molar, e uma escola que, nas entranhas desta escola aparente,
organizada e estruturada, se movimenta. De qualquer maneira, por mais próxima
de uma viagem, por mais moléculas que a escola compartilhe com esta Escola-
Viagem92, o poder, a individualidade e a segmentaridade sempre estarão se
esgueirando “nas paredes ‘intocáveis’, nos cantos inacessíveis, em certos abusos e em certos
desrespeitos” (como descreve Luiz Carlos). Para fazer força contrária, é preciso
perguntar, como Zero, “Por que essa hierarquia que existe na escola é importante?”
Pouco a pouco percebe-se que as estruturas da escola fazem sentido, “mas só se você
acreditar que cada um pertence a um lugar fixo”, como percebe Paula. Entrar em um
devir-viagem ou habitar uma Escola-Viagem não significa atacar essas estruturas
calorosamente, mostrando (de maneira lógica) por que elas despotencializam a
escola, mas significa sim, de maneira mais potente que essa, por ocupar um espaço
liso, aberto, por poder se relacionar através de brechas e rachaduras com as forças
do fora, simplesmente parar de ver sentido na estruturação. Rir dela. Tobias
sintetiza: “Eu acho que a escola deve existir porque ela liberta”.
A Escola-Viagem, desta maneira, como máquina de guerra, cria linhas de
fuga, ou seja, faz fugir, faz abrir, gera rachaduras por onde o poder pode ser
desmantelado, desembaraçado. É através desses pequenos momentos em que se
vislumbra uma “outra escola”, como a “outra ilha” de Robinson Crusoé, ou a “outra
língua” de Kafka, ou mesmo a “outra verdade” de Ulisses, que é possível escapar das
estruturas. Ao vislumbrar esse “outro”, que na verdade é o fora, o pensamento é
forçado a pensar, e entra em movimento. Irmãzinha relata seu processo, dizendo que
“meu desejo de mudar o mundo, apesar do medo de responsabilidade, começou [ali]. Eu não
sabia exatamente como faria aquilo, mas ele tinha me mostrado de alguma maneira que era
possível, e que não dava pra ficar parada”. Pois a relação de movimento é sempre com o
mundo – não um mundo possível, não uma percepção do mundo fenomenológica ou
92 Que de modo algum deve ser compreendida como um ideal de escola, uma utopia para a qual todas as
escolas “deveriam” rumar ou almejar se transformar. Este caráter de devir da Escola-Viagem é aprofundado
no interlúdio O Louco, página 191 deste livro.
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elas têm medo do novo”, como entende Elaine. Por isso é preciso inventar a
Onirodinia.
A escola não parece ser justamente o lugar onde é possível desafiar a ordem
sem se ferir? Tobias afirma, sobre essa possibilidade: “A escola é pra ser mais livre do
que a vida parece que é. A escola deveria nos exilar dessas estruturas – deveria ser vazia”.
Concordando com ele, podemos pensar que a escola não é um decalque da vida, não
é um espaço análogo, mas também não é uma caverna, uma suspensão absoluta: a
escola configura um espaço e um tempo de fronteira, de borda, difuso. Ali é possível
confundir os sentidos e, em vez de organizar o pensamento, fazer com que o corpo e
os sentimentos possam também pensar, deixar de funcionar organicamente. Julya
não receia em dizer que “entendemos muito melhor apenas sentindo”. Marvyn parece
concordar, ao afirmar que “a escola deve existir pra formar não só a cabeça, mas guiar o
coração”. Ou seja, para criar este espaço de encontro com o fora, onde é possível
“pensar sobre o que está em volta” (Calaza), nas bordas de nosso território, “passando a
ver quase tudo como se fosse uma tangerina” (João Pedro), é preciso, primeiro, se
relacionar de maneira estética com o mundo.
Fazer parte dele de uma maneira poética, ou seja, confundir percepção e
criação. Desta maneira, não é com o mundo “real” que estaremos lidando, mas com
uma invenção de mundo – que torna essas experiências verdadeiras, para além dos
decalques da realidade que fazemos tradicionalmente para fabricar uma relação com
o mundo “verdadeiro”. Ou seja, a potência da Escola-Viagem está mais em fazer
com que se faça parte de um campo de forças intensas e potentes que em uma
apreensão estrutural destas forças. Ao analisar essa possibilidade, Ana Helena
percebe que aquele lugar, “mesmo que participando de algo pequeno, me fez me sentir
viva”. Assim, a escola “concilia a beleza e a verdade. Não torna a verdade igual a beleza
nem vice-versa, não é ser um inocente bobo e não é achar tudo uma obviedade; é uma
experiência saborosa à mente e ao coração. A descoberta encontra a verdade e a beleza numa
coisa só” (Tobias). Essa possibilidade de uma estética da verdade tem a ver com o
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possível, justamente a partir dessa contradição apontada, fazer com que a escola se
torne um lugar onde, como uma viagem, não seja possível habitar sem se tornar
estrangeiro de si – ou seja, criar um lugar perigoso. E é exatamente ai que o sentido
de formação como condição do sonho pode nos ajudar. O sonho não é uma projeção
para o futuro, um desejo individual. O sonho é esse ambiente espaço-temporal
confuso, difícil de apreender estruturalmente, que é um ambiente suspenso. E é por
ser um ambiente inventado que pode ser possível, nele, estar em perigo – em perigo
real, não simulado – sem a necessidade de ferir. Trata-se de inventar uma
experiência ao mesmo tempo perigosa e segura. Gerar uma dor que ao mesmo
tempo gere o movimento, mas que não violente. Como quando sonhamos que
estamos a sentir dor e ao acordar, nos lembramos da dor, mas nosso corpo está
intacto. Este fenômeno é chamado de onirodinia, a dor onírica. Talvez o que a
Escola-Viagem produza seja exatamente essa espécie de sentimento de dor, esse
perigo inventado. A onirodinia permite que os habitantes da Escola-Viagem se
mantenham sempre em seu devir-viajante, sempre habitando “o lugar novo, o
inabitável, o ambiente a ser descoberto”, como define Marco. A Escola-Viagem é,
portanto, um lugar de sacrifício; um lugar em que nos colocamos voluntariamente
em perigo, em que nos desafiamos e abrimos talhos e cortes – não em nossa pele e
carne, como se dá em uma viagem extensiva, através do mundo, mas em nossa
subjetividade e em nossas certezas.
Juliana afirma sobre os encontros: “A escola é o lugar não só de estar em contato
com diferentes comportamentos, mas também de colocar o nosso à prova”. Assim como na
viagem, encontramos na Escola-Viagem nossa negação, nosso oposto. É a partir
desse encontro que nos tornamos capazes de experimentar o mundo de fora, ou seja,
o mundo imanente, não mais ordenado de dentro, ordenado pela nossa subjetividade
nem por uma estrutura paralela ou superior ao mundo material, que garanta sua
existência (como a lógica, a verdade ou o transcendente). E o exercício dessa
imanência é o sonho. O sonho escapa das linhas estruturantes que aprisionam os
elementos do mundo. “Deve-se reconhecer, uma vez mais, que as forças oníricas são
todo-poderosas. Quando se sonha com toda sinceridade, as linhas de força do sonho
seguem sua disciplina própria” (BACHELARD, 1994, p.47).
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(OU SOBRE NÃO TERMINAR)
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(OU SOBRE NÃO TERMINAR)
93 No prelúdio de Sexta-feira ou Os limbos do Pacífico, toda a história é contada previamente, por meio de uma
leitura da sorte de Robinson num tarô. Essa estrutura de pré-narrativa onde toda a trama se coloca sobre a
mesa antes do início da história era muito importante para a compreensão dos épicos gregos como a Ilíada e
a Odisséia, onde o fim não era importante (pois já se conhecia desde sempre os episódios narrados), mas os
eventos eram sempre surpreendentes, pois configuravam uma a-ventura. Para ler sobre Sexta-feira ou Os
limbos do Pacífico, cf. capítulo Poética do deslocamento, página 61 deste livro; para mais informações sobre
a Odisséia, cf. caps. A escola e o devir-viagem e A narrativa na Escola-Viagem, sequencialmente nas
páginas 41 e 147 deste livro. Sobre o conceito de aventura, cf. o cap. O tempo da Escola-Viagem.
94 Cf. capítulo Onirodinia e relato, página 169 deste livro.
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o encontro com o não-ser, e por isso seu significado é muito importante para o
viajante que se aventura em busca de se meta-morfosear.
Mas a carta sem número é ainda mais singular: seu nome é O Louco.
O Louco, como é retratado no tarô de Marselha, que é o baralho mais
utilizado, aparece no alto de uma rocha, ao sabor do vento, sob um grande sol
amarelo, acompanhado de um cachorro e carregando uma pequena trouxa (de
roupas?). Sua imagem poderia bem ser o retrato de Robinson Crusoé na cena final
de Sexta-feira ou Os limbos do Pacífico, totalmente solar, seus elementos livres, eólico
e capaz de experimentar o mundo de fato como fora. O cachorro que o acompanha
afaga o ar, atento às intensidades que o rodeiam, como se estivesse talvez imitando
o humano – mas se repararmos melhor, a carta parece mesmo é mostrar o devir-
animal do homem sobre a rocha, sob o sol. O louco está livre.
É costume situar a carta do Louco antes do arcano número um, que é o
Mago (significando princípio, começo, a busca humana por conhecimento sobre os
elementos e a criação) e depois do vigésimo primeiro, o Mundo (que significa a
sabedoria maior, ampla, sobre todas as coisas, o encontro de um lugar no cosmos).
Por um lado, pode significar que o Louco é ao mesmo tempo aquele que nada sabe,
que está num estágio anterior à própria busca do conhecimento, mas que ao mesmo
tempo sabe tudo, ocupa um lugar posterior ao conhecimento do mundo. Por outro
lado, o Louco é um anômalo, ele não tem lugar, não ocupa um locus. A ausência de
um número pode significar que esta sabedoria que ele carrega não possa ser
encontrada nem no princípio nem no final – e talvez nem mesmo no meio ou na
ciclicidade – mas somente do lado de fora. É por estar fora que o Louco é livre,
desestruturado. Ele é uma linha de fuga, uma carta de intensidade.
Simón Rodríguez, em determinado momento, afirma: “Faz 24 anos que estou
falando, e escrevendo pública e privadamente, sobre o sistema Republicano, e, por
todos os frutos de meus bons ofícios consegui que me tratem como LOUCO” (2016,
p.199). Rodríguez, que claramente ocupa uma posição de fora, de outsider, de
constante estrangeiridade, não pôde ter seu discurso legitimado, pois não escrevia,
falava ou pensava dentro das mesmas estruturas que seus interlocutores. Para além
de uma libertação abstrata da América, pensava praticamente a educação como base
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95 Sobre a verdade e sobre esta frase de S. Rodríguez, cf. capítulo A narrativa na Escola-Viagem, página
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Assim, esse texto é como a Escola-Viagem. Um campo de forças que faz com
que seja possível criar, inventar97 deslocamentos. E o faz através de processos
desestruturantes, que dissolvem a subjetivação, a cronologia, a territorialidade, a
verdade. Que confundem os sentidos de quem o percorre. A Escola-Viagem, assim
como esse texto, é a cidade de Zoé, que nas palavras (e gestos, e despalavras e
palavras-gesto) de Marco Polo se desenha para o Khan:
Quem viaja sem saber o que esperar da cidade que encontrará ao final do
caminho, pergunta-se como será o palácio real, a caserna, o moinho, o
teatro, o bazar. Em cada cidade do império, os edifícios são diferentes e
dispostos de maneiras diferentes: mas, assim que o estrangeiro chega à
cidade desconhecida e lança o olhar em meio às cúpulas de pagode e
claraboias e celeiros, seguindo o traçado de canais hortos depósitos de
lixo, logo distingue quais são os palácios dos príncipes, quais são os
templos dos grandes sacerdotes, a taberna, a prisão, a zona. Assim –
dizem alguns – confirma-se a hipótese de que cada pessoa tem em mente
uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e
sem forma, preenchida pelas cidades particulares.
Não é o que acontece em Zoé. Em todos os pontos da cidade,
alternadamente, pode-se dormir, fabricar ferramentas, cozinhar, acumular
moedas de ouro, despir-se, reinar, vender, consultar oráculos. Qualquer
teto em forma de pirâmide pode abrigar tanto o lazareto dos leprosos
quanto as termas das odaliscas. O viajante anda de um lado para o outro e
enche-se de dúvidas: incapaz de distinguir os pontos da cidade, os pontos
que ele conserva distintos na mente se confundem. Chega-se a seguinte
conclusão: se a existência em todos os momentos é uma única, a cidade de
Zoé é o lugar da existência indivisível. Mas então qual é o motivo da
cidade? Qual é a linha que separa a parte de dentro da de fora, o
estampido das rodas do uivo dos lobos? (CALVINO, 1990, pp.34-35).
Zoé é uma cidade desestruturada e por isso desestruturante. A Escola-
Viagem é também uma espécie de cidade onde o viajante enche-se de dúvidas, onde
seus sentidos se confundem, onde não sabe onde ir ou como. É uma cidade que,
como Zoé, devém-viagem. Todos os modelos, estruturas, decalques se mostram
inúteis, pois esta cidade-escola-viagem é uma cidade em que os limites esmaecem,
pouco a pouco tornam-se indistinguíveis, e, sem linhas que estabeleçam os
territórios, a cidade passa a ocupar a borda, o limite entre o dentro e o fora, se
colocando a ponto de ser invadida (por lobos? por pássaros?). É por se perder neste
espaço sem tracejados que o viajante pode, ao mesmo tempo, parar e se
movimentar; estar em um lugar e se des-locar.
97 Sobre a definição de in-ventar, cf. capítulo Onirodinia e relato, página 169 deste livro.
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98 Sobre esse importante conceito deleuziano, cf. capítulo Poética do deslocamento, página 61 deste livro.
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hecceidade99, contra a qual não se pode lutar, como não se pode lutar contra a chuva
ou o vento ou contra as cinco horas da tarde.
A escola cuja trilha temos perseguido, sobre cujo rastro temos caminhado, é
uma escola de imanência. Isto significa que ela não é definida por nada além, por
nenhum modelo ou forma abstrata ou transcendente. E não é que as vidas dos
viajantes que a perseguem e a movimentam sejam imanentes a ela. A imanência não
é imanente a nada, não existe em algo, não pertence a nenhum sujeito nem depende
de qualquer objeto. É imanência pura e simplesmente. É a co-existência das forças,
assim como são, e não relativas a um Ser ou a um Ato, em um mesmo e único plano.
“Pode-se dizer da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada diferente disso”
(DELEUZE, 2002, p.13). Não cada vida individual, mas uma vida.
Uma vida está em toda parte, em todos os momentos que este ou aquele
sujeito vivo atravessa e que esses objetos vividos medem: vida imanente
que transporta os acontecimentos ou singularidades que não fazem mais
do que se atualizar nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não
tem, ela própria, momentos, por mais próximos que estejam uns dos
outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos. Ela não sobrevém
nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio no qual vemos o
acontecimento ainda por vir e já ocorrido, no absoluto de uma consciência
imediata. (DELEUZE, 2002, p.14).
É quando podemos perceber este plano outro, em que o tempo e o espaço
como concebemos perdem o sentido, a partir do qual fica claro que os processos de
subjetivação e estabelecimento de verdades impedem a verdadeira relação entre as
pessoas, as coisas e as intensidades que perpassam toda a realidade, em que o ser é
imanente, está em permanente devir (ou seja, que não há ser a não ser como
afirmação do devir), este mundo outro – que é este mundo –, quando o percebemos,
quando percebemos o que é essa uma vida, que podemos compreender por que é
urgente devir-viajante. Cada vez que nos agarramos aos universais, cada vez que se
fixa como objetivo uma identidade, perde-se a possibilidade do devir, e perde-se a
possibilidade de se compreender e ao mundo como multiplicidade, de ser
atravessado pelos múltiplos fluxos que compõem a vida.
É preciso, portanto, partir e fazer partir, fugir e fazer fugir, arrumar nossas
trouxinhas e sair, mover, deslocar. Assumir o papel do Louco, carta sem número,
sem lugar, atravessada pelo sol, pelo ar, pelo animal e pela criança. Deleuze afirma
99 Sobre esse conceito em Deleuze e Guattari, cf. capítulo Poética do Deslocamento, página 61 deste livro.
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DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade.
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ETYMOLOGY DICTIONARY. Disponível em: <http://www.etymonline.com/>
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ANEXO I – Transcrição da experiência da ampulheta
Vanise: A Anie quer saber sobre aquele negócio lá! (o objeto que está em cima do armário,
referindo-se a ampulheta).
Os alunos olham em direção ao objeto, muito curiosos e excitados para falar sobre ele. Julia
se direciona ao armário para pegar o objeto.
Daniel: Cuidado com isso.
Vanise: Tem certeza que você vai fazer isso? (Pergunta para Julia quando ela pega o objeto, criando
um suspense na sala).
Aluna: É açúcar que tem aí dentro?
Julia: Não, é areia.
Aluno Gabriel: Quando isso aí acabar a gente vai embora. (Se referindo a areia que começa a se
mover dentro do objeto).
Edna: Por que quando acabar a gente vai embora?
Aluno Matheus: Porque isso aí demora muito.
Aluna: Não!
Aluna: Demora nada.
Aluno: é uma hora!
Professora Maria José: Então quer dizer que você gosta de ficar aqui e quer que demore
bastante?
Vanise propõe que cada um fale por vez para organizar a fala de todos. E pedem para terem
cuidado com o objeto ao jogarem a bola da vez para a pessoa que for falar.
Edna: Achei interessante, que o Gabriel falou assim: “Quando isso acabar, a gente vai embora”. Eu
falei: Por que você acha que a gente tem que sair daqui quando isso aí acabar? O que vai acabar? O
que acaba aí?
Aluno Gabriel: Não sei. O que eu sei, é que vai demorar muito para descer isso, então, enquanto
isso aí vai acontecendo, a gente vai conversando.
Edna: Mas o que acaba então? Você disse que acaba.
Aluno Gabriel: A aula.
Edna: A aula que vai acabar?
Aluno Gabriel: É. Por hoje.
Edna: Quando aquilo ali acabar? (Apontando para o objeto). Eu quero saber o que acaba ali. Eu
entendi o que era da aula que você estava falando. Que quando aquilo ali acaba, a gente ia sair
daqui. E o que acaba ali então? (Se referindo ao objeto).
Professora Maria José: Pergunta a ele o que significa “aquilo”. Você denomina “aquilo” de quê?
Aluno Gabriel: É como se fosse um relógio.
Aluna Luciana: A filosofia só pode acabar, quando o professor de educação sair da escola.
Vanise: A minha pergunta é para todo mundo. Por que o Gabriel falou que aquilo ali é como se
fosse um relógio? Por que ele acha que isso aqui, esse objeto aí é como um relógio?
Aluna: Porque ele existe.
Aluna Luciana: Que eu saiba, esse negócio tem em tempo, um jogo, que tem esse negócio para
marcar o tempo como vocês estão falando.
Aluna Sarah: Eu só acho, isso aí, eu acho que antigamente não existia esses relógios digitais e
modernos que tem hoje em dia.
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Daniel Gaivota
Vanise: A Luciana disse que esse objeto aí, que a gente não sabe qual é o nome, ela disse que ele
erve para marcar o tempo. Como esse objeto marca o tempo?
Aluno Adriano: Ele marca uma hora.
Julia: E como ele marca?
Aluno Matheus: Tia, eu já sei! Se isso aí marca uma hora, deve quando marcar até no meio ali, é
uma hora. E quando vai ali até a metade, é trinta minutos.
Vanise: Sarah! Como que ali marca o tempo?
Aluna Sarah: Eu acho que quando conforme vai caindo, vai passando os minutos, aí, cai, acho que
são os segundos, não sei. Aí vai passando os segundos e vai passando a hora.
Vanise: Eu queria perguntar. Por que o Gabriel disse que isso aí é como se fosse um relógio, e a
Luciana disse que isso aí marca o tempo? Eu queria saber se tempo e hora são a mesma coisa.
Aluna: Eu acho que sim.
Aluna Sarah: Eu acho que tempo e hora... Eu acho que tempo para mim, é o que a gente está
vivendo neste instante. E hora, para mim, pode ser ou o que vai chegar, ou o que já passou. A hora
não é toda hora.
Os alunos ficam surpresos com a última afirmação de Sarah. “A hora não é toda hora.”, neste
momento ela afirma sorrindo, “Não é toda hora!”. Os alunos querem falar ao mesmo tempo.
Daniel pede calma aos alunos.
Edna: O tempo é agora! É isso que você está falando não é Sarah?
Aluna Sarah: Pra mim, o tempo é agora.
Daniel: E a hora?
Aluna Sarah: Ou é antes, ou é depois.
Daniel: Então, tu achas que ali dentro, esse negócio aqui, ele marca o tempo ou a hora?
Aluna Sarah: Pra mim, ele marca os dois. Porque o tempo ele vai marcando conforme vais
descendo a areia, e a hora quando ele já tiver caído tudo.
Aluno Matheus: Tempo e hora é diferente. Porque tempo pode ter haver com muita coisa, porque
se tá chovendo ou não, o tempo de hora...
Nesse momento em que Matheus fala, os colegas aplaudem sua resposta. Vanise indaga se as
palmas são para prestigiar ou para constrangê-lo. Todos que aplaudiram afirmam que o
fizeram pois gostaram da resposta do Matheus. Julia pede para que ele termine de falar
sobre o que ele achava que era o tempo.
Aluno Matheus: Pode ser o tempo, pode ser até mesmo o tempo de hora, até o futebol tem tempo.
Não pode ser tempo da hora não! A hora você vai ver no relógio, e você só vai ver ela, não tem
outras coisas lá.
Daniel: Pode ser tempo assim também, quando a gente fala: No tempo do meu avô... É um outro
momento.
Vanise: Eu estou inquieta. Como esse objeto, que se chama até agora de “aquilo”, que é tão
pequeno, pode marcar algo tão grande como o tempo lá fora? Isso que está acontecendo agora,
como que consegue marcar esse tempo? Como “aquilo” marca o tempo?
Daniel: Então a gente não sabe ainda o nome desse negócio...
Vanise: Não sabe? É “aquilo”!
Todos dão risadas.
Daniel: Mas aí, a Raquel tá falando, achou que o nome fosse o que estava escrito ali do lado do
objeto, mas não é. Ali do lado está escrito uma palavra em inglês. Tá ligado?
A turma dá risadas
Daniel: Essa palavra em inglês “Living” significa...
Os alunos ficam em silêncio.
Daniel: O que vocês acham que significa?
Edna: Vamos ver quem vai falar. O que você acha que significa a palavra living?
Vanise: Passa a bola aí!
Edna: Todo mundo junto. Vamos tentar imaginar.
Aluna: Ampulheta.
Aluna: Livre.
Aluna: living
Aluna: Relógio
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
Vanise: Tempo.
Daniel estimula que os alunos não tenham receio de adivinhar o significado da palavra.
Daniel: Chuta aí gente! O que vocês acham? Não é um nome. É uma palavra em inglês que está
escrita aí.
Aluno Matheus: Ling ling (risos).
Daniel: Mas é uma palavra que significa alguma coisa. Essa palavra em inglês, em português
significa alguma coisa.
Vanise: Fala o que ela significa em português.
Daniel: Cada um falou uma coisa, relógio, tempo, ampulheta, produto de cabelo...
Aluno Matheus: Livre.
Daniel: Livre? Ou Living mesmo?
Aluno Matheus: Livre.
Edna: Há de ter alguma coisa com “livre”, eu acho.
Aluna Sarah: Eu não sei falar inglês.
Daniel: Tudo bem. Mas ninguém aqui. O que você acha que “living” é, para estar ao lado desse
negócio? (Escrito no objeto).
Aluna Sarah: Ham, é hora né?
Edna: Eu acho que tem a ver como alguma coisa que eu falei.
Aluno: O que você falou mesmo tia?
Edna: Livre. Eu sei o que significa living, mas eu acho que tem alguma coisa a ver com “ser livre”.
Aluna Isabele: É tempo ou temporizador
Aluno Matheus: Tia, pode falar outra coisa? Ou pode ser alguma coisa de medir.
Edna: Eu lembrei aqui agora, que quando eu tinha uma turma assim com a idade de vocês, pois eu
sou como o Gabriel que gosta muito de poesias. Aí a gente leu alguns poemas de um poeta
chamado Carlos Drummond de Andrade. E sabe o que o menino desenhou? Ele fez uma pintura,
foi pintura no quadro, quando ele leu essa poesia, a poesia se chamava “Para sempre”, e dizia na
poesia que mãe não devia morrer nunca, mãe não devia morrer, poesia linda, depois eu posso trazer
para vocês.
E tem a ver como isso que a gente tá falando. Porque sabe o que ele desenhou? O nome dele é
Leonardo. Ele desenhou no quadro um... lá no final... Tinha uma estrada, um horizonte, e lá no
final do horizonte tinha um relógio, aquele relógio grandão como pino de madeira que vende
nessas casas de coisa antiga. E nesse relógio, sabe o que ele fez? Ele desenhou os ponteiros, e fez
um ponteiro quebrado. Aí eu olhei aquilo dali e falei pra ele assim:
Meu Deus! Por que o ponteiro está quebrado? Aí ele falou assim: Professora, no poema estava
dizendo que mãe não devia morrer nunca, eu acho que não devia morrer nunca mesmo, então, só
parando o tempo pra mãe não morrer.
Aluna Sarah: Isso é a hora!
Edna: Aí, eu lembrei assim: Será que a gente tá falando do tempo? Da hora? Tempo é diferente da
hora?
Então será que a gente pode parar o relógio? Mas a gente consegue parar o tempo? Porque ele
disse que essa era uma forma dele parar o tempo, desenhando o ponteiro quebrado.
Sarah: O relógio, ele pode até parar, mas a vida vai andando. O tempo, ele vai parar o tempo do
relógio, mas não pode parar o tempo da vida.
Aluno Matheus: Porque o tempo do relógio é uma tecnologia, nossa vida não é.
Todos concordam balançando a cabeça.
Aluna Kailane: Se eu pudesse parar o relógio, eu ia fazer ele ficar no meu tempo a vida toda.
Edna: Mas você ouviu o que a Sarah falou? Que a gente pode parar o tempo do relógio, mas a
gente não para o tempo da vida. Então, como é que fica isso?
Aluna: A gente liga a máquina do tempo.
Edna: Caramba! E como é que se liga uma máquina do tempo? Já pensou?
Julia: Qual a diferença do tempo da vida para o tempo do relógio então? Por que durante a nossa
vida, a gente fica contando o tempo do relógio, se é diferente?
Daniel: Se o tempo da vida é diferente, por que a gente conta o tempo da vida?
Julia: É! Eu quero saber.
205
Daniel Gaivota
Aluna Sarah: Então, eu também não sei por que a gente conta no relógio. Porque eu acho que a
gente não deve contar o tempo, pois o que é bom pra mim, tem que ficar durando. Enfim.
Porém, o que for chato pode passar. O que eu quero dizer é que o tempo da vida é o que está
acontecendo agora, no momento agora. E o tempo do relógio, se a gente pegar esse e voltar ele ai
voltar.
Daniel nesse momento pega o objeto e coloca na posição horizontal, para mostrar o que
acontece.
Julia: Parou o tempo!
Ele volta o objeto para a posição anterior e todos dizem que o tempo voltou.
Aluna Sarah: Então, ele parou o objeto, mas a gente continuou vivendo, a gente continuou
brincando. Então, ali vai parar, se o senhor virar ele de lado ele vai parar, mas a gente vai continuar
vivendo. Então, eu acho que não tem nada a ver isso de parar o relógio, parou o relógio, parou. Não
tem como... Mas a gente vai continuar vivendo.
Aluna Matheus: Parar o tempo, concorda comigo? Para algumas pessoas não vai adiantar nada,
pois a minha mãe já morreu.
Vanise: Parar não vai adiantar?
Aluno Matheus: (Balança a cabeça negativamente). A coisa mais importante da minha vida já
passou.
Aluna: Se esse negócio aqui fosse um relógio, como seria esse relógio? Como ele iria virar?
Aluna Kailane: Se eu fosse Deus, eu ia trazer todo mundo da minha família que morreu.
Aluna Sarah: Ainda não aconteceu comigo, (se referindo à morte da mãe), mas uma pessoa muito
querida da minha vida também já se foi, o tempo parou para ela. Mas o que eu puder fazer para me
alegrar e me sentir mais pertinho dela eu vou fazer. Tipo assim, eu não sei se você era amigo dela
(se referindo à mãe de Mateus), mas tipo assim, se você soubesse de alguma coisa assim, que ela
mais gosta, o que você faria? (Pergunta olhando para Matheus).
Aluno Matheus: Ela morreu em março do ano passado. Eu acho que, o que eu tô fazendo aqui, ela
tá feliz, porque ela tá vendo eu, e o que ela queria era ver eu alegre. E no momento eu tô.
Aluno Gabriel: Ela falou sobre essa máquina do tempo, eu penso assim, se existisse essa máquina,
o que cada um aqui voltaria no tempo?
Aluna Kailane: Eu ia querer rever toda a minha família e ajudar muita gente que estivesse
morrendo.
Aluna: Se eu tivesse uma máquina do tempo, eu traria de volta o meu pai e a minha avó.
Aluna Karine: Se existisse a máquina do tempo, eu traria o meu avô de volta.
Aluna Sarah: Eu não gosto de pensar em voltar quem já morreu. Mas eu acho melhor a pessoa
fazer alguma coisa que aquela pessoa que já se foi gostaria que você fizesse. E tipo assim, a pessoa
valorizar o que tem, o que tá agora, pra quando for embora não ficar chorando.
Julia: Um dia eu assisti um filme, que tinha umas pinturas de quarenta mil anos atrás em uma
caverna, e eu queria voltar no tempo, para essa época, para conhecer estas pessoas que viviam com
mamutes, bichos estranhos ou se não bem antes, pois um dia destes eu vi um documentário que há
muitos milhões de anos atrás, aqui na Terra, antes dos dinossauros, tinham os insetos gigantes. E
eu queria estar em um lugar assim, há milhões de anos atrás para saber como era a Terra nessa
época.
Aluna: Eu não conheci meu pai. Quando eu fiz um ano, na verdade, ele morreu antes deu fazer um
ano.
Daniel: O que você está dizendo é que você voltaria no tempo para conhecer ele?
Aluna: (responde balançando a cabeça em sinal de positivo)
Vanise: Eu queria saber se a gente já não tem uma máquina do tempo? Porque se a gente consegue
pensar e lembrar de algumas coisas, se isso não seria uma máquina do tempo?
Aluno Matheus: Eu acho que a máquina do tempo não ia ser suficiente, pois se a gente tivesse a
máquina do tempo, a gente ia voltar, mas não ia tornar a pessoa que morreu imortal, que uma hora
a pessoa ia morrer de novo. Acho que só seria suficiente se as pessoas fossem imortais.
Aluna Sarah: Eu acho que eu tenho a solução!
Vanise: Gente! Falta cinco minutos para terminar a aula, e a outra turma tem que vir. E eu queria
assim, para gente suspender e continuar pensando durante a semana, o que eu queria propor para
vocês é o seguinte... Que se a gente pudesse dar um nome para esse objeto, que nome você daria?
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Poética do deslocamento: nomadismo, diferença e narrativa na Escola-Viagem
Daniel: Antes, vamos só ouvir a Sarah, que ela disse que tem uma solução.
Aluna Sarah: A máquina do tempo, ela volta. Mas se você não conhecer uma pessoa, vamos supor:
Eu nasci e minha mãe morreu na mesma hora, tipo assim, a máquina do tempo só vai voltar
naquilo que a gente já vivenciou, então, digo que, se a gente quisesse voltaria a realidade, e se a
gente quisesse um momento com essa pessoa, a gente já deixaria as pessoas imortais.
Daniel: Eu acho que essa máquina do tempo existe, vamos pensar sobre isso. Vocês não acham
interessante a gente falar o que significa aquela palavra ali no objeto? Não é o nome deste objeto,
está escrito uma palavra em inglês, e esta palavra em português significa “vivendo”.
Julia: Eu quero pensar um pouco mais sobre isso, porque ela falou sobre o tempo da vida, o tempo
da morte, e depois a gente ficou falando sobre o imortal. E o imortal é como se fosse viver para
sempre não é? E aí, o que é o tempo para sempre?
Porque quando eu fico assistindo esses documentários, do espaço, do planeta e da Terra essas
coisas, as coisas não têm um tempo, e é tipo, ninguém sabe quando começou nada, é infinito, e nisso
quando vai acabar, eu fico assim... Caramba! É muito doido. O tempo que não tem como contar pois
é muito antigo, e ao mesmo tempo ninguém sabe para quanto tempo mais vai durar. E eu tinha
pensado sobre o infinito, que é a palavra que eu vou dar para este objeto, “infinito”.
Julia passa a bola para os alunos, que começam a dar nomes ao objeto.
Aluno Gabriel: Fim
Aluno Matheus: Medidor da vida
Aluna Sarah: marcador da hora/vida
Aluna Karine: Espelho
Aluna: Passar no tempo
Daniel: Máquina do tempo
Aluna Kailane: Infinito
Vanise: Aquilo
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