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PUC-SP
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Paula Maria Aristides de Oliveira Molinari
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ALFRED WOLFSOHN NA OBRA DE CHARLOTTE SALOMON:
UMA CARTOGRAFIA QUE EMERGE DA VOZ
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Doutorado em Comunicação e Semiótica
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SÃO PAULO
2013
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Paula Maria Aristides de Oliveira Molinari
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ALFRED WOLFSOHN NA OBRA DE CHARLOTTE SALOMON:
UMA CARTOGRAFIA QUE EMERGE DA VOZ
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Te s e a p r e s e n t a d a à P o n t i f í c i a
Universidade Católica de São Paulo
como exigência parcial para obtenção do
título de Doutora em Comunicação e
Semiótica, sob orientação da Profa Dra
Jerusa Pires Ferreira.
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SÃO PAULO
2013
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MOLINARI, Paula Maria Aristides de Oliveira!
! Alfred Wolfsohn Na Obra De Charlotte Salomon: Uma Cartografia Que
Emerge Da Voz/Paula Maria Aristides de Oliveira Molinari. - São Paulo, 2013.
xii, 104f.
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Tese (Doutorado) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de
Estudo Pós Graduados em Comunicação e Semiótica.
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Título em inglês: Alfred Wolfsohn In Work Of Charlotte Salomon: A
Cartography That Emerges From The Voice.
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1. Semiótica. 2. Música. 3. Voz. 4. Arte. 5. Canto.!
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BANCA EXAMINADORA
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A meus pais,
Paulo Amaro de Oliveira e
Cacilda Aristides de Oliveira
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AGRADECIMENTOS
À família de sangue, minha irmã, que tem o mesmo nome de minha mãe, Cacilda
Aristides de Oliveira, e é também um tanto irmã e um tanto mãe.
A Eliane Bez Lorenzetti Chleba, por abrigar o Centro de Estudos de Voz Wolfsohn e
me acompanhar, inclusive em viagens, nas aventuras que a busca de
informações nos reservou.
A Sebastián Blanco Leis, irmão da vida, do teatro, que iniciou a organização das
oficinas na Argentina e abriu as portas para a América Latina.
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Ao Criador, que soprou as narinas e nos deu a voz.
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Sinto que todos os nossos afetos
interiores encontram na voz e no canto
um modo próprio de expressão.
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RESUMO
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MOLINARI, Paula Maria Aristides de Oliveira. Alfred Wolfsohn na obra de
Charlotte Salomon: uma cartografia que emerge da voz. 2013. 116f. Tese
(Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
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A análise da obra de Charlotte Salomon é um caminho cartográfico da aplicação das
ideias de Alfred Wolfsohn. Propomos a leitura desse texto artístico para o trajeto de
uma cartografia possível que expõe a voz como unidade composicional e
agregadora dos diversos sentidos na síntese expressiva que se faz perceptível em
sua oralidade imagética. No processo de transcriação do manuscrito de Alfred
Wolfsohn para a obra de Charlotte Salomon, a voz aciona novos modos de
comunicação sensível, para além dos significados da linguagem verbal, uma vez
que dá visibilidade ao fluxo das emoções, potencializando a relação entre arte e
vida, corpo e ambiente, educação e comunicação. Na leitura da obra de Charlotte
Salomon e do manuscrito de Alfred Wolfsohn, existe uma proposta pedagógica que
se dá por meio da voz e que não está em cada obra isolada. Cotejando-se aspectos
de um texto e outro, se delineia um estudo da voz como caminho para uma técnica
que enseja o trânsito das emoções. A voz aparece como mediação do mundo
exterior e interior humano e potencializa a tradução do vivido em obra de arte e que
pode ser lida de modo a concorrer para a compreensão das semioses que se
concretizam nesse texto artístico. São objetivos: (i) traduzir intersemioticamente,
pela obra de Charlotte Salomon, o legado de Alfred Wolfsohn a partir da perspectiva
da relação entre comunicação, visualidades e intersubjetividades, numa ação
dialogante entre a obra visual e o manuscrito, buscando (ii) apresentar ao meio
acadêmico uma análise da obra de Charlotte Salomon e o legado de Alfred Wolfsohn
à luz da semiótica da cultura. De muitos estratos e semioticamente heterogêneo,
capaz de entrar em complexas relações tanto com o contexto cultural do entorno
como com o próprio leitor, o texto deixa de ser uma mensagem elementar mostrando
a capacidade de condensar informação. Adquire memória e, assim, na memória de
uma realidade latino-americana, o texto artístico se refaz e ganha significados
outros, que abrirão uma possível compreensão da voz como caminho pedagógico. A
transcriação de um texto a outro é leit motiv desta investigação.
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Palavras-chave: 1. Semiótica. 2. Música. 3. Voz. 4. Arte. 5. Canto.
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iv
ABSTRACT
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MOLINARI, Paula Maria Aristides de Oliveira. Alfred Wolfsohn in work of Charlotte
Salomon: a cartography that emerges from the voice. 2013. 116f. Tese (Doutorado)
– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
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The analysis of Charlotte Salomon’s work is a cartographic path of the application of
Alfred Wolfsohn’s ideas. We propose the reading of this artistic text for the course of
a possible cartography that exposes the voice as compositional and aggregating unit
of the various senses in the expressive synthesis that is perceivable in its imagistic
orality. In the process of transcription of Alfred Wolfsohn’s manuscript to the work of
Charlotte Salomon’s, the voice drives new ways of sensitive communication, beyond
the meanings of verbal language, seen as it gives visibility to the flux of emotions,
potentiating the relationship between art and life, body and environment, education
and communication. In the reading of Charlotte Salomon’s work and Alfred
Wolfsohn’s manuscript, there is a pedagogic proposal that takes place through the
voice and which is not present in each individual work. Conferring aspects of both
works, a study of the voice is delineated as a path to a technique that tries for the
transit of emotions. The voice appears as mediation of the exterior world and human
interior and potentiates the translation of the experienced into work of art and which
can be read so as to concur to the comprehension of the semiosis that take shape in
this artistic text. The goals are: (i) to intersemioticaly translate, through Charlotte
Salomon’s work, the legacy of Alfred Wolfsohn’s from the perspective of the
relationship between communication, visualities and intersubjectivities, in a
dialoguing action between the visual work and the manuscript, seeking (ii) to
introduce an analysis of Charlotte Salomon’s work and Alfred Wolfsohn’s legacy into
the academic medium under the light of the culture semiotics. From many layers and
semiotically heterogeneous, capable of entering complex relationships with the
environment cultural context as well as the reader, the paper is no longer an
elementary message displaying the ability of condensing information. It acquires
memory and so, in the memory of a Latin-American reality, the artistic text reforms
itself and gains other meanings, which will uncover a possible comprehension of the
voice as a pedagogical path. The transcreation from one text to another is leitmotiv of
this investigation.
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Keywords: 1. Semiotics. 2. Music. 3. Voice. 4. Art. 5. Singing.
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SUMÁRIO
Dedicatória ……………………………………………………………………… iv
Agradecimentos ……………………………………………………………… v
Epígrafe ……………………………………………………………………… vii
Resumo ……………………………………………………………………… viii
Abstract ……………………………………………………………………… ix
Sumário ……………………………………………………………………… x
Lista de Ilustrações ……………………………………………………………… xi
1 INTRODUÇÃO ……………………………………………………………… 01
1.1 Objetivo ……………………………………………………………… 02
1.1.1 Principal ……………………………………………………………… 02
1.1.2 Secundário ……………………………………………………………… 02
2 PONTO DE PARTIDA ……………………………………………………… 03
2.1 Charlotte Salomon ……………………………………………………… 05
2.2 Alfred Wolfsohn ……………………………………………………………… 06
3 AO SUL DA FRANÇA, NO SUDESTE DO BRASIL E NA HOLANDA ……. 10
4 MUNDOS POSSÍVEIS ENTRE A ALEMANHA E A FRANÇA ………. 21
4.1 Alemanha e Inglaterra: uma viagem órfica ……………………………… 22
4.2 O título e o sumário em Leben? oder Theater? ein Singspiel ………….. 35
5 DO BRASIL PARA O MUNDO: ENTRE MEMÓRIA E NOMADISMO, LETRA E VOZ
SE PRESENTIFICAM EM PEDAGOGIA VOCAL …………………………….. 45
6 BANHADOS PELO PACÍFICO, PELO ATLÂNTICO E PELO CARIBE .. 59
6.1 A pedagogia por trás da quebra de paradigmas ……………………….. 60
6.1.1 Primeiro apontamento pedagógico: não se classifica a voz, se a
apreende…………………………………………………………………………… 60
6.1.2 Segundo apontamento pedagógico: a construção do setting
educacional……………………………………………….……………………….. 65
6.1.3 Terceiro apontamento pedagógico: interpretação e condução do som
sugerido……………………………………………………………………………. 87
7 NO SOL EQUATORIAL ……………………………………………………… 90
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ……………………………………………… 97
9 REFERÊNCIAS ……………………………………………………………… 100
x
iv
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
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Figura 1 - Imagens capturadas do Livro de Visitantes e do Painel de Entrada -
Exposição Charlotte Salomon - São Francisco, EUA, 2012 …………………… 06
Figura 2 - Momentos da Despedida …………………………………………… 09
Figura 3 - “Ela ainda está viva. Obrigada, Senhor” …………………………… 10
Figura 4 - Os esforços de Charlotte - A …………………………………………… 11
Figura 5 - Os esforços de Charlotte - B …………………………………………… 11
Figura 6 - “Ele é quem lhe salvará” …………………………………………… 12
Figura 7 - O suicídio da avó …………………………………………………… 13
Figura 8 - Charlotte, da janela, vê a avó morta no chão …………………… 14
Figura 9 - Acima da média …………………………………………………… 23
Figura 10 - O caminho para a máscara …………………………………………… 24
Figura 11 - Fragmento de Orpheus - A …………………………………………… 25
Figura 12 - A criação do homem …………………………………………………… 26
Figura 13 - Posição das pernas - A …………………………………………… 27
Figura 14 - Posição das pernas - B …………………………………………… 28
Figura 15 - Posição das pernas - C …………………………………………… 29
Figura 16 - Posição das pernas - D …………………………………………… 30
Figura 17 - Fragmento de Orpheus - B …………………………………………… 31
Figura 18 - A nova religião - A …………………………………………………… 32
Figura 19 - A nova religião - B …………………………………………………… 33
Figura 20 - Fragmento de Orpheus - C …………………………………………… 34
Figura 21 - Pintura 1 …………………………………………………………… 36
Figura 22 - Pintura 2 …………………………………………………………… 37
Figura 23 - Pintura 3 …………………………………………………………… 38
Figura 24 - Pintura 4 …………………………………………………………… 39
Figura 25 - Pintura 5 …………………………………………………………… 40
Figura 26 - Pintura 6 …………………………………………………………… 41
Figura 27 - Sentimentos em canções …………………………………………… 42
Figura 28 - Roy Hart Voice Work …………………………………………………… 46
Figura 29 - Voz Wolfsohn na perspectiva de Molinari …………………………… 47
xi
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Figura 30 - Trinômio 1 …………………………………………………………… 48
Figura 31 - Trinômio 2 …………………………………………………………… 49
Figura 32 - Vermelho - toureador …………………………………………………… 51
Figura 33 - Wolfsohn e Paulinka …………………………………………………… 52
Figura 34 - Opus/Jung …………………………………………………………… 54
Figura 35 - Fragmento de Orpheus - D …………………………………………… 56
Figura 36 - Fragmento de Orpheus - E …………………………………………… 57
Figura 37 - O ensino …………………………………………………………… 68
Figura 38 - Entrevista com o licenciador …………………………………………… 69
Figura 39 - A decisão nas mãos de alguém …………………………………… 70
Figura 40 - O primeiro contato …………………………………………………… 71
Figura 41 - Liebe Paulinka… …………………………………………………… 72
Figura 42 - Encontro …………………………………………………………… 73
Figura 43 - Permitir …………………………………………………………… 74
Figura 44 - Música …………………………………………………………… 75
Figura 45 - Detalhe: braços …………………………………………………… 75
Figura 46 - Amanhã às 10h …………………………………………………… 76
Figura 47 - Primeiro texto …………………………………………………… 76
Figura 48 - O ensino’ …………………………………………………………… 77
Figura 49 - Relação …………………………………………………………… 78
Figura 50 - Detalhe: braços’ …………………………………………………… 79
Figura 51 - Canto …………………………………………………………………… 80
Figura 52 - Transformação …………………………………………………… 81
Figura 53 - Amanhã às 10h - outra vez …………………………………………… 82
Figura 54 - Bidu - Partitura Manuscrita …………………………………………… 84
Figura 55 - Sentimentos em canções’ …………………………………………… 93
Figura 56 - Um dia as pessoas falarão sobre nós dois …………………… 99
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iv
1
1 INTRODUÇÃO
Este texto foi movido pela busca insistente dos espaços da voz. O título deste
trabalho é inspirado na cartografia, porque ele se parece com uma viagem que parte de
lugares conhecidos e que, pouco a pouco, se amplia para outros e outros, num traçado
desenfreado de sonoridades.
Como escrever uma tese que fala na voz sem escolher a voz que falará? Com essa
dúvida, o texto demorou para se tornar escritura. Foi oral a maior parte do tempo,
sabendo-se oral por medo de se perder na escritura, até que um dia ganhou o papel com
o desafio de ser profundo, verdadeiro e justo com a academia e a ciência, sem deixar de
ser poético – voz proferida na escuta de quem lê.
A escolha foi motivada pela influência de Paul Zumthor, e, mais do que qualquer
outro autor, por Jerusa Pires Ferreira, essa escritora de vidas, de nomadismos e
confluências possíveis em territórios da oralidade.
"
1.1 Objetivo!
1.1.1 Principal
"
1.1.2 Secundário
2 PONTO DE PARTIDA
O ponto de partida desta cartografia que emerge da voz foi o contato com um
trabalho vocal baseado em premissas muito diferentes das que apoiam um
desenvolvimento vocal mais tradicional.
A primeira delas, mais perceptível por leigos, é a inexistência de gênero para a voz
humana. Na classificação vocal, separamos as vozes em femininas e masculinas e, das
mais graves às mais agudas, respectivamente em contralto, meio-soprano e soprano e
baixo, barítono e tenor. No trabalho de desenvolvimento vocal de que se trata aqui, a
escuta não se dedica a enquadrar uma voz nessa classificação, mas a procurar entender
onde essa voz está bloqueada e seguir, como professor de voz, libertando-a para seus
extremos, graves e agudos, sem preocupação com os limites da tessitura. Isso rompeu a
crença na forma como se deve desenvolver uma voz.
que tirou o foco da pedagogia por trás do resultado e, esta sim, visível em sua totalidade e
abrangência.
Assim se delimita nosso ponto de partida, e voltaremos uma e outra vez a cada
aspecto, quando se isso mostrar necessário ao aprofundamento da questão, a cada
capítulo. Resta agora fazer uma breve apresentação das personagens envolvidas.
Começamos no sul da França, quando pela primeira vez, depois de semanas num
processo de desenvolvimento vocal, ouvi, li e assisti a vídeos sobre Alfred Wolfsohn.
Meses depois, ainda no sul da França, folheei a edição de Gary Schwartz com as obras
de Charlotte Salomon e compreendi mais do que qualquer palavra me poderia ter
ensinado. A pintura de Charlotte estava viva e tinha som – era como se as imagens
respondessem a perguntas que eu antes não podia responder.
ressignificavam as imagens da pintura de Charlotte. Eu sabia que algo havia a dizer, mas
as palavras ainda não me ocorriam. Eu sentia uma vontade enorme de dizer e, naquele
momento, compus músicas para algumas daquelas pinturas – outro processo de
tradução.
Quem foi Charlotte Salomon? Como ela e Alfred Wolfsohn estabeleceram os laços
que geraram sua pintura? Alfred Wolfsohn teria mesmo sido o mote?
"
! 1 O termo corpovoz será esclarecido no decorrer do trabalho.
5
Há controvérsias sobre o número total de pinturas, mas o fato é que ela pintou
muito em pouco tempo. Foi uma avalanche criativa, com poder de síntese e escolhas
muito bem delimitadas. Ela pintava como quem escrevia um roteiro, cumprindo o que se
propusera a fazer: indica a trilha sonora,
comenta, narra, pontua, envolve e aproxima
de si seu espectador.
"
Há quem não queira sair do recinto e então procura uma cadeira para se sentar e
digerir tudo o que experimentou. Tal é a força de Charlotte. Na Figura 1, vemos seu efeito
surpreendente, profundo. As pessoas relatam a emoção pela qual são tomadas, os
conflitos entre sentir-me mal e novo ao mesmo tempo. Há mesmo o impulso de desenhar.
os avós no sul da França por volta de 1939. Lá, entre tantos acontecimentos – inclusive o
suicídio da avó –, ela concebe sua obra.
"
2.2 Alfred Wolfsohn
Entre as duas Grandes Guerras, Alfred Wolfsohn buscou respostas. Suas ideias,
hipóteses e reflexões e os caminhos que percorreu estão descritos em um manuscrito
intitulado Orpheus: oder der wegzueimer maske.2
Judaico de Berlim. Entre 1962 e 2002, apenas parte do manuscrito foi divulgada, e o
conhecimento, mantido vivo pela oralidade.
De 1962 a 1975, impulsionado por um líder chamado Roy Hart, aluno de Alfred
Wolfsohn desde 1947, pessoas que buscavam uma expressão livre na arte criaram o
grupo chamado Roy Hart Theatre, que foi a principal fonte de preservação dos princípios
de desenvolvimento e conhecimento de ser postulados por Alfred Wolfsohn e teve
penetração no universo artístico através de suas performances e do enquadre terapêutico
dado pela ligação de Roy Hart com a psicologia.
Roy Hart não foi um purista na aplicação e tampouco se pode dizer que tenha sido
um curador do pensamento de Alfred Wolfsohn. O que ele fez foi traduzi-lo para a
linguagem teatral, embora não com o mesmo nível de detalhe com que o fizera Charlotte
Salomon na pintura. Na oralidade e no fascínio do trabalho de Roy Hart, misturaram-se
elementos de Alfred Wolfsohn e do próprio Hart, e é o que nos transmitem aqueles que
vivem até nossos dias. Voltar, desse ponto, o olhar para Charlotte Salomon nos conduz a
uma viagem no tempo que atualiza as crenças, elucida a transformação e abre a
perspectiva da compreensão do fenômeno que levava aqueles que trabalharam com
Alfred Wolfsohn a criar de maneira tão marcante, estabelecendo, assim, o território do
professor.
Marita Günther viveu ali até 2002 e partilhou de sua convivência com Alfred
Wolfsohn, ainda que fascinada e fiel herdeira dos feitos de Roy Hart. A partir de 2002,
novas inquietações surgiram no seio do grupo, já transformado, e seus fundadores, já
idosos, traziam consigo a memória de um fenômeno que não eram capazes de expressar
por palavras.
8
Buscando respostas para garantir a sobrevivência, mais uma vez ameaçada pela
crise mundial, por novas leis e pela falta de energia que o corpo já sinalizava, buscavam
atrair novos integrantes como um recurso para a manutenção da vida. Revisitar Charlotte
Salomon e retomar os escritos de Alfred Wolfsohn foi uma das ações com que procuraram
validar o trabalho de anos de dedicação e, de certa maneira, apresentar a grandiosidade
de Roy Hart, figura já mítica e sacralizada entre eles.
Assim, empreenderam uma corrida contra o tempo. Novas criações foram o ponto
de partida para uma nova fase do grupo. Naquele momento, eu era uma das novas
integrantes, partilhando com eles esse exato momento – tão complexo – de abertura.
Àquela altura, não se sabia o que era de Roy Hart e o que era de Alfred Wolfsohn.
Charlotte Salomon e Roy Hart aparecem como os fiéis difusores de um pensamento. Mas
que pensamento? Não havia respostas – apenas perguntas.
Alfred Wolfsohn e Charlotte Salomon foram unidos pela necessidade de ele obter
uma licença de professor de voz ainda na Alemanha, dos anos 1930, entre as duas
Grandes Guerras. Para isso, o órgão licenciador exigia o parecer da renomada
mezzosoprano Paula Lindberg.
A voz foi sempre o elemento de ligação entre tudo. Não a voz-palavra, mas a voz-
som, a voz proferida e realizada em canto.
3!JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon. Amsterdá, s.d. Disponível em: <http://www.jhm.nl/
collectie/thema%27s/charlotte-salomon/leben-oder-theater>. Acesso em: 6 jan. 2014.
10
Neste capítulo, antes de falar sobre sua obra propriamente, discutiremos como ela
se originou e como a artista estabeleceu uma conexão com terras brasileiras.
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Figura 3 – “Ela ainda
está viva. Obrigada, Senhor”4
"
Charlotte Salomon pinta seu esforço para fazer a avó acreditar que há razão para
viver. Ela cuida da avó o tempo inteiro: canta, fala das coisas boas da vida, dos pássaros,
do sol...
"
4! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
11
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Figura 4 - Os esforços de
Charlotte - A5
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Figura 5 - Os esforços
de Charlotte - B6
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"
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5! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
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Figura 6 - “Ele é quem lhe salvará”7
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Não deu tempo. A avó de Charlotte acabou se suicidando na frente dela, atirando-
se janela abaixo.
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"
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Figura 7 - O suicídio da avó8
"
A seguir, Charlotte olha pela janela e vê a avó morta no chão.
"
"
"
Não se sabe exatamente o motivo, mas, depois disso, Charlotte Salomon foi morar
na pensão La Belle Aurore, em Saint-Jean-Cap Ferrat - cidade próxima.
Pouco sabemos sobre como terá sido a vida de Charlotte Salomon durante o
processo criativo, mas, em julho de 2012, no III Simpósio Internacional de Performance
Wolfsohn e Hart, organizado pelo Grupo de Pesquisa em Performance e Pedagogia
Wolfsohn na Faculdade de Campo Limpo Paulista (SP), recebemos de Ana Margarida
Ligeti de Almeida Prado e sua filha, Teresa de Almeida Prado, um pequeno envelope
As cartas foram trocadas entre 1981 e 1991, após a publicação do livro de Gary
Schwartz – daí sua importância. O conteúdo das cartas ainda não foi estudado, cotejado
ou publicado, mas elas revelam uma intimidade que deu grandes contribuições para
nosso estudo. São oito cartas: duas escritas a mão e seis datilografadas, numeradas a
partir da mais antiga, datada de 27 de setembro de 1981. Estão encadernadas em arquivo
pessoal, que contém um anexo para as folhas não numeradas que fazem parte do
material.10 As quatro últimas são de grande valor histórico e contêm dados biográficos de
Marthe Pécher.
não concluiu a graduação porque casou-se com um diplomata polonês, o Dr. Jan Fryling,
de quem se separou anos mais tarde e contraiu segundas bodas com o dono da pensão
La Belle Aurore.
10
! Mantenho a encadernação em arquivo pessoal, conforme a referência das citações.
11
! MOLINARI, Paula. Cartas de Marthe Pécher a Gary Schwartz. Doadas e entregues pessoalmente por
Ana Margarida Ligeti de Almeida Prado e Teresa de Almeida Prado a Paula Molinari, família vizinha de
Marthe Pécher, durante o III Simpósio Internacional de Performance Wolfsohn e Hart, organizado pelo
Grupo de Pesquisa em Performance e Pedagogia Wolfsohn na Faculdade de Campo Limpo Paulista, São
Paulo, jul. 2012. [acervo pessoal].
16
Marthe era cuidadosa e detalhista: junto com sua carta, enviou um informativo com
dados sobre Saint-Jean-Cap-Ferrat, com fotos e comentários sobre o cenário que acolheu
Charlotte durante seu período criativo.
Marthe Pécher começa dizendo que soube da publicação do livro e se desculpa por
redigir em francês:
Marthe segue sua descrição do período com Charlotte e acentua o constante bom
humor da artista. Ela diz que se perguntava por que aquela jovem procurara um lugar
distante de sua família para pintar sua vida, ao que a própria Charlotte respondeu dizendo
que seria impossível pintar com tranquilidade cenas de sua vida estando “sob o olhar de
qualquer um de seus familiares".13
A carta é rica em detalhes. Conta que fazia frio e, vez ou outra, ela oferecia uma
sopa a Charlotte, momentos em que tinha oportunidade de conhecer uma nova pintura no
cavalete. Diz também que Charlotte lhe falou de um importante maestro e de uma grande
cantora, mas afirma não se lembrar do nome dessas pessoas.
Ainda nessa primeira carta, Marta Pécher fala sobre o caráter de Charlotte, que se
teria apresentado às autoridades francesas para se identificar como judia. Como parecia
ariana, ou uma gretchen,14 Charlotte jamais seria identificada como judia. Tanto é que, ao
12
! “Nous avions, mon mari et moi, un petit hôtel (“Belle Aurore”) sur la Côte d’Azur, à St. Jean Cap Ferrat. Un
jour une jeune fille est venue louer une chambre. C’était Charlotte Salomon. Je ne me rappelle pas
exactement, mais je crois qu’elle a passé 2 ou 3 mois chez nous. Tout le jardin et les terrasses ensoleillés
étaient à sa disposition mais elle ne sortait presque jamais de ça petite chambre (Nr. 1, au premier étage)
qui donnait à l’ouest. Elle paginait tout le temps, toujours em chantonnant. Nous nous demandions quand et
si elle mangeait, quand et si elle dormait. C’était la guerre, l’hiver (je pense 1941-42)” (Molinari, Cartas de
Marthe Pécher [...], 2012c, p. 1).
! 13 “sous les yeux de quelqu’un de sa famille” (Molinari, Cartas de Marthe Pécher [...], 2012c, p. 2).
se identificar, foi orientada a entrar num ônibus que levava prisioneiros a um campo de
concentração, mas um soldado a fez descer rapidamente. Quando Marthe Pécher lhe
perguntou por que se havia identificado, ela lhe disse que era uma questão de ética.
Tempos depois, Charlotte avisou Marthe Pécher e o marido que iria morar com
amigos em Nice, momento em que se separaram. Mais tarde, St. Jean Cap Ferrat foi
evacuada e minada. Sem ter tido mais notícias de Charlotte, veio viver no Brasil com o
marido:
O que mais chama atenção é a forma como Marthe Pécher descreve Charlotte:
cantando, sorrindo, de excelente humor – muito diferente do que sugere a densidade de
sua obra. Nas palavras de Marthe, Charlotte tinha muita clareza de sua própria vida, de
suas conquistas, experiências e vivências e queria realmente se comunicar.
Definitivamente, isso muda a perspectiva de análise de sua obra, por exemplo, quando se
vê, em seus esboços e escritos, como ela organizou seu roteiro. Podemos afirmar que
esse trabalho não resultou de uma grande catarse, mas de um encontro com um estado
de ser mais centrado, seguro, que permitia fazer planos e partilha com os demais.
! 15
“Pendant ces presque 40 ans j’ai souvent pensé à cette fille admirable et pure qui, sans aucun doute,
appartenait à la catégorie de “justes”, si peu nombreux dans notre monde moderne” (Molinari, Cartas de
Marthe Pécher [...], 2012c, p. 2-3).
18
O senhor me agradece por ter feito algo por Lotte, mas eu não fiz nada por
ela. Quem verdadeiramente fez muito por ela foi esse soldado
desconhecido que a fez descer do ônibus de deportação. Graças a ele, ela
pôde continuar seu trabalho. Esse homem arriscou sua carreira. Eu espero
que seus superiores nunca tenham descoberto (tradução nossa).16
Na carta de 7 de fevereiro de 1982, Marthe Pécher está muito agradecida por ter
recebido o livro editado por Gary Schwartz e diz que o leu e releu profundamente
absorvida pela vida e pelo trabalho de Lotte.17 Afirma que, apesar da distância física,
sente-se interiormente muito próxima da artista. Importa citar o que diz Marthe Pécher
sobre o efeito desse trabalho no espectador:
[...] suas pinturas vistas separadamente não produzem o mesmo efeito que
a série completa. É a sequência que cria a impressão de participar
diretamente da vida de Charlotte. Frequentemente, com uma simples
pincelada, ela consegue produzir um estado de ânimo, criar a atmosfera de
um acontecimento (tradução nossa).18
16
! “Vous me remerciez d’avoir fait quelque chose pour Lotte. Mais j’ai ne rien fait pour elle. Qui a vraiment
fait beaucoup pour elle c’est ce gendarme inconnu que l’a fait descendre du car de déportation. C’est grace
à lui qu’elle a pu continuer son travail. Cet homme a risqué sa carrière. J’espere que ses chefs n’ont rien
découvert” (Molinari, Cartas de Marthe Pécher [...], 2012c, p. 6).
17
! Molinari, Cartas de Marthe Pécher [...] (2012c, p. 8).
! 18
“Ses peintures, vues chacune séparément ne produisent pas le même effet que leur série complète. C’est
leur suite qui crée l’impression de participer directement a la vie de Charlotte. Souvent, avec un simple coup
de pinceau, elle réussit à rendre un état d’âme, a créer l’atmosphère d’un événement” (Molinari, Cartas de
Marthe Pécher [...], 2012c, p. 8).
19
profundidade e um valor humano que são indispensáveis para ser um grande artista.
Sobre sua aparência, Marthe diz que Charlotte era muita mais bonita do que se retrata.19
Na mesma carta, Marthe volta a se perguntar sobre o período que Charlotte viveu
em La Belle Aurore e comenta: será que ela teria pintado antes de estar conosco? Será
que ela começou a pintar sem cantar e por isso eu só me lembro dela depois que esteve
ao lado dos Astier? Acrescenta: “penso que não; penso que ela pintou tudo enquanto
estava conosco, mesmo tendo assinado St. Jean, 1940-1942. Marthe sustenta essa ideia
argumentando que Charlotte se equivoca nas datas ao contar os fatos históricos.
Tratando-se de lembranças com tamanha carga afetiva, parece prudente manter a dúvida:
a artista se enganaria quanto ao começo e ao fim de sua obra?”21
Marthe Pécher diz que viu no cavalete de Charlotte uma pintura dela ainda bebê e
mais uma vez propõe a pergunta quanto a sua permanência. Esses rasgos de memória
são importantes porque demarcam a lembrança de Charlotte associada ao canto. Marthe
recorda o tempo da pintura enquanto ela cantava e afirma que cantava todo o tempo.
São Paulo, 10 de maio de 1982. Nessa carta, Marthe Pécher agradece muito a
Gary Schwartz o envio de quatro exemplares do livro e diz que se empenhará em torná-lo
conhecido, e à obra. Ela o felicita e lhe agradece por convidá-la para visitá-
-lo na Holanda, mas declina não por falta de vontade ou de dinheiro – a idade já lhe pesa.
19
! Molinari, Cartas de Marthe Pécher [...] (2012c, p. 8).
20
! “Aprés avoir lu l’introduction, j’étais curieuse de “Daberlohn”. Naturellement, ce que le livre nous donne
c’est le reflet de ses idées à lui dans la mentalité de Charlotte. Certaines sont bien belles” (Molinari, Cartas
de Marthe Pécher [...], 2012c, p. 8).
Quase um ano depois, em 13 de março de 1983, Marthe envia uma carta de seis
páginas datilografadas para contar suas experiências como integrante de la resistence. O
material é rico de detalhes e se prestaria a uma nova investigação, mas, entre tudo o que
nela se conta, destacamos um comentário sobre o que acontecia na América Latina
naquele momento. Marthe Pécher compara o que vivia então com os horrores da guerra.
Em particular, ela menciona o conflito entre a Inglaterra e a Argentina, que reclamava seu
direito à soberania sobre as Falkland Islands (ou ilhas Malvinas), e a pobreza que
grassava nas ruas da cidade de São Paulo. Afirma que, apesar do futebol e do Carnaval,
com toda a miséria e a corrupção que imperavam, não seria possível deixar o povo sem
resposta durante muito tempo e também que sentia suas entranhas tal como na Guerra:
reviradas. Volta a falar sobre o destino dos livros que ainda estão em sua posse e se
despede de Gary Schwartz. Embora diga pouco sobre o objeto desta pesquisa,
mencionamo-la por seu possível valor histórico.
Todo esse material dialoga com o que se discute nos capítulos seguintes.
"
! 22 Molinari, Cartas de Marthe Pécher [...] (2012c, p. 15-16).
Como parte desta pesquisa, escrevemos ao Museu Judaico de Amsterdã, mas não
obtivemos resposta. Entretanto, a guia da exposição em São Francisco foi bastante
22
solícita, e, numa longa conversa com ela, percebemos que a figura de Amadeus
Daberlohn/Alfred Wolfsohn não é objeto de atenção particular. Considerando a
importância que lhe deu a própria Charlotte, é de estranhar, sobretudo porque, no
máximo, ele é visto como um possível amor da pintora e um personagem enigmático.
Depois de navegar por muitas delas, constatamos que, assim como o legado de
Alfred Wolfsohn através do Roy Hart Theatre e de suas aulas de voz, a obra de Charlotte
Salomon mobiliza no espectador algum conteúdo interno que o leva à necessidade de
expressar-se, seja num simples apontamento no livro, seja, no outro extremo, na criação
de outra obra de arte.
A força que emana de Leben? oder Theatre? ein Singspiel, de Charlotte Salomon,
reside na aplicação de uma forma de ver a arte que começa em Alfred Wolfsohn, como
veremos.
"
4.1 Alemanha e Inglaterra: uma viagem órfica
Em Orpheus: oder der wegzueimer maske, Alfred Wolfsohn ganha voz e expõe
suas conjecturas, suas ampliações de conceitos e suas hipóteses de uma voz fundadora.
Para comprovar suas hipóteses, recorre a uma avalanche de ideias em que se mesclam
Carl Gustav Jung, arte italiana, literatura russa, cinema e tecnologia, buscando as rotas
de atração e as linhas de fuga que constroem nossa cartografia. Essas hipóteses podem
ser sintetizadas numa pergunta – se Deus não existe, de onde vem a arte? – e em sua
resposta – de algum lugar que a voz pode dizer qual é. A voz descortina sentidos: a
resposta deve estar no lugar onde ela nasce. Segue-se, então, a busca desse lugar, que é
representada pelo mito de Orfeu. Daí o nome Orpheus: oder der wegzueimer maske, que
significa Orfeu ou o caminho para a máscara, e que Wolfsohn passa a chamar de centro
energético.
23
Charlotte Salomon lê o
Orpheus: oder der
wegzueimer maske e
conhece Alfred Wolfsohn.
Ele a faz crer que ela
precisa criar algo acima da
média (Figura 9) e fala-lhe
sobre as formas que ele
acredita indicarem o
caminho.
"
24
! Sobre a escuta em Alfred Wolfsohn - há um artigo que sou orientadora, fruto do Grupo de Pesquisa em
Performance e Pedagogia Wolfsohn - GONZÁLES, Pablo; MOLINARI, Paula. Del desarollo vocal propuesto
por Wolfsohn/Molinari. São Paulo, Grupo de Pesquisa em Performance e Pedagogia Wolfsohn, 2013 .
! JOODS
25 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
24
As cartas de Marthe Pécher nos revelam que Charlotte Salomon não só traçou o
caminho no pensamento, no silêncio de seu recolhimento em seu quarto de La Belle
Aurore, mas que o fez com a intensidade necessária – cantou para construir sua própria
viagem órfica.
A figura de Orfeu, cuja voz encanta os deuses e vai ao submundo para resgatar
sua alma, é a representação do caminho para a máscara (Figura 10).
"
"
"
"
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"
"
"
"
"
"
Figura 10- O caminho
para a máscara26
"
"
"
Vejamos fragmentos do texto de Alfred Wolfsohn, que, ao longo, da tese
apresentaremos ao lado da imagem original, em alemão. Esse documento está no Museu
26
! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
25
Judaico de Berlim, e nos foi gentilmente cedida uma cópia digitalizada por Jay Livernois,
um dos diretores do Centre Artistique International Roy Hart (CAIRH), que também a
mantém em seu arquivo pessoal, bem como no do CAIRH.
Cartreos Eigentiinlichtreitl einen hohen Ton rllt gesenkteu 5.ouf ao'&&-
setcenf rlrd deq erlaoerlich sein, der thn auf der lliihe eel'nes
Segue-se a tradução do alemão ao espanhol, que devemos à Profa Dra Anabelle
Hrhase gchiirt hst. In letzter Zeit beiolgte er folgende Praxiel
er setrte den hoben Ton in tlcr en*;ihnten lr'eise ans einen Funs reit
vor dem anderin geeetzt, denn - w€rlFr er den I'on sicher hatte, rarf
Contreras Castro, da Universidad Nacional de San José (UNA), na Costa Rica, em
er getegentllch den lGpf aurtick, ur* den ?on aufgteigen au lassen,
rie ee nur ein Canrso-Ton verrtocltte.tr
Yon dea Bitde aus betracht{ das ich als Ausgangsptrnki fiir
tradução nossa ao português.
den Versuch eiaer fiaretellung des 3.'ongeheimnisse6 Serltr$rnec habeq
lte* auch bier etoe aeelisehe Spannung vor, nur mit den Untereehied,
daes ste n{cht dasu dient, um wie der }ichter ee ausdriiEkt nnach
Eause au.fliegeo'. Sie iet beetinntr sieh in rlie Umgebang au begeben,
zun hiirendca henscben bio, der in eeined Geschlecht getroffeq
Adotamos esta sequência para que se possa acompanhar a trajetória das
F€rd€n soll. S1c bat nichte mit der I'orstellung dee $ichtere su
tun, der eeiae S+eIe als Tgundervogel die Schwingen ent,falten lSsstn
daxrit sie zu ihr@ Sel.bet f{*de, sowie es lterqbrandt in ilDavidt'
traduções. A númerodargeetellt
de página hat. corresponde ao do documento digitalizado, mantido em
Dle Grtisse der Bedeutung eines Sd*gers ist eic b.et iedem
arquivo pessoal e citado
Eitaetler em português
abbing:ig (Molinari,
voa d€s Begriff 2013)
der 'rSp*nnweit.err t istou
bei em
lhn espanhol (Contreras
darin unrieterr, lrrierueit er aIIe Spannrrngsauetdnde awlsehen forte
und pi.aao behcrrsebtt eo nie die Stinme Gottes aLcht nur aus dor
Castro, 2013). breaseoden Dombuscb heraugzucktt wie er nach den $orten der
Schrlft nicht, Ln Stura:es ni.eht im llrdbebent nieht im Feuer,
sondera in eiines stillent sanften Sduseln sar und zu clen Ftenschen
sprach. Dieee Spanuung$reite besirkt inr Verein nrit der Konaen-
tration deo .f,usdruck. Jede eehiipferische T;itigkeia - und. daruater,
fellt aucb dae Singen ; hat nur einen $innr nur die eine Ziel-
"
richtung: Auedruck zu aehaffen.
Xichts hat riich fiir alle liiihe und Eeschvernisse bei derr: "
Yersucb, hinter das Geheinaie dee Singena au kormenl so se+hr ent-
sebiidigt als die Entdeckungt daes das! was ich einseitig als "
iibertrageren Eegriff dee ilAusdrucks|f 1n eeiner geisiigen Eledeutung
errpfaad, io eigentlichen Sinne ge&onunen serden au"qste. "
ta'n"o ndral!g! klang der Ton der menechlichen $tirune ausdrrueksvoll,
rcnn es gelang, mlt der richtigen Fionzentration und $panrrung
thn kiirperlLch auszudriicken, $o ger:ingfiigig es erscheinen magf
"
wichtigsindnurdiese dreiFal:toren: KON EENf ttAT I Oll
I l{ T F, H S I T K t und ale Fo1ge von ihnen A U S D R U C K
als Eleaeste des Singene gu bezeic"hnen,., Jetler'"i'ort,sctr.crtun urrl
"
einen Ersatz fiir tliese Elementr) zit liorrst,ituieren, liuf"t auf $chauru-
scbllgerei binaus. "
i:=er ei€ ich iiberaeugt ist r dass es gerade die einfaeh*ten
Ilinge sindrdie die echwereten Proble*e in eieh tragent weies aucht
dasg ihre Behe*sehung zum ersehnten Ziele fiihrt.
"
zus{rrwoenfaseenrl llrnen das tlild der Siingerin -
habe ich 11
Und sunFigura
der Sdagerlnrrrell - Fragmento
es augleich de Orpheus
Ihren l"alL darstellt -A
- zu entwerfen"
Dazu l*ge lcb lbnen die Abbildung einer Pl.astik rrorr dle von
Para Alfred Wolfsohn, o canto vem de um centro de energia que é responsável pela
manutenção da vida. Ele mesmo faz a tradução intersemiótica (Plaza, 2003) quando, para
27
! “Nada me ha compensado más el esfuerzo y las dificultades de intentar ir tras el secreto del canto que el
descubrimiento de que lo que yo, unilateralmente, percibí como el concepto transferible de “expresión”, en
su significado espiritual, debe ser tomado en su sentido estricto. Es decir, suena entonces el tono de la voz
humana de forma expresiva, cuando se logra, con la concentración y tensión correcta, expresarla
corporalmente. Aunque parezca insignificante, lo importante es señalar esos tres factores:
CONCENTRACIÓN, INTENSIDAD y, como consecuencia de ellos, EXPRESIÓN, como elementos del canto.
Cualquier vocabulario para sustituir esos elementos resulta resbaladizo” (Contreras Castro, 2013, p. 31).
26
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Figura 12 - A criação do homem28
"
Nossa leitura do texto de Alfred Wolfsohn foi constantemente interrompida pela
necessidade de rever um quadro ou uma escultura ou escutar uma música a que ele faz
referência para construir o sentido que, incansavelmente, se propõe a nos levar a
absorver. Eu mesma me vi impelida a ver a pintura original de Michelangelo para absorver
cada palavra de Alfred Wolfsohn. Das seis horas que passei no Museu do Vaticano,
dediquei três à observação das pinturas da Capela Sistina. Dois anos mais tarde, tendo
relido o texto e encontrei outras necessidades e outros significados, voltei para observar
novamente.
"
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"
"
Figura 13 - Posição
das pernas - A29
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Figura 14 - Posição das pernas - B30
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! 30 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
29
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Figura 15 - Posição das pernas - C31
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Figura 16 - Posição das pernas - D32
"
! 33
Como pesquisadora, refiz essa experiência com uma escultora. Fizemos a máscara cantando e sem
cantar, e a expressão da máscara com som era muito diferente da outra. O resultado chegou a ser
assustador porque era um som sentido e cantado dentro e que se via fora, na expressão.
32
Quando aprendi a cantar, começou novamente a concentração naquele
misterioso centro. Quando detive minha atenção a onde treinar o som,
experimentei também o ponto de partida do tom cantado nesse mesmo
lugar. Com o tempo, vi cada vez mais claramente que, no desenvolvimento
de minha voz, tiveram impacto caminhos semelhantes aos da psicologia
profunda. Nessa direção aos estratos da fonte, que, pelos mais distintos
caminhos, sempre levam à busca do ponto de partida da vida, ali onde a
serpente Kundalini ainda está enrolada e começa seu primeiro movimento.
Nesse trabalho de desenvolvimento da voz humana, o canto pode penetrar
cada vez mais no mais profundo de seu corpo e, assim, chegar ao novo
som desconhecido de sua voz, o qual você escuta como se escutasse uma
voz estranha. Mas só aí, onde se experimenta que se canta, se
restabelece na fase adulta o estado da infância, o verdadeiro estado
criador absoluto da pessoa. Logo, eu podia ter a certeza de que ele se
ouve em quem escuta; com isso, a arte cumpriria a mesma função que a
religião, aquela de levar a elevar ao aprofundamento, na medida em que
se dirige ao nível profundo das
pessoas” (Molinari, 2013, p. 36, tradução
nossa).34
"
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"
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"
Figura 18 - A nova religião - A35
34
! “Cuando yo aprendí a cantar comenzó de nuevo la concentración en aquel misterioso centro. Cuando
detuve mi atención a desde dónde entrenar el sonido, experimenté también el punto de partida del tono
cantado en ese mismo lugar. Con el tiempo ví cada vez más claro que en el desarrollo de mi voz me
impactaron caminos similares a los de la psicología profunda. En esa dirección hacia los estratos de la
fuente, que por los más diferentes caminos siempre llevan a la búsqueda del punto de partida, se me ocurrió
que los hindúes hablan del primer chakra, el punto de partida de la vida, ahí donde la serpiente Kundalini
aún está enrollada y empieza su primer movimiento. En ese trabajo de desarrollo de la voz humana el
cantante puede penetrar cada vez más en lo más profundo de su cuerpo, y así llegar al nuevo sonido
desconocido de su voz, el cual escucha como si escuchara una voz extraña. Pero solo ahí, donde se
experimenta que se canta, se restablece en la adultez el estado de la niñez, el verdadero estado creador
absoluto de la persona. Luego, podría tener la certeza de que ello se oye en quien escucha, y con eso el
arte cumpliría entonces la misma función que la religión, aquella de llevar a elevar la profundización, en
tanto se dirige al nivel profundo de las personas” (Contreras Castro, 2013, p. 36).
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Figura 19 - A nova religião - B36
"
" !',innr;il lag iclr an St,rantle unel versuchte Fleditatiorriibungel,
inde:? ich bcstj*ilig auf ncinen lialre 1 starrte. Il*s }iesultat rliescr -4V
Ubungen ircsda-n{i ri;rrirr, r-iass ich schti.esslich entdec!;r.:n nusste, rier
NabeI se i riit !iat,te t'r'rrsto:rf t. So nusrte ich cli+von rl,bstand !:iehrrlcnt
Ea máscara?in die lrirtrlisclle Seligkeit cinzugehen, urrd nich dacrit :ad trijs1cn,
$as$ nan erst ar:farlgen r:ussr den irdischen $chnutz, der sich arr Cen
verborgensten Siellen einsc_irleicherr ll*rrn, zu entfernen.
" ' Aber das $ingen ist nieht so schrirer. i"lan niirss niclr nur clar;rn
ger"-bl-rit harbcn, e.'ie Cirs Gesicltt rnit Gills eingesc'ift sirrl . A?:er in
" denir .l,rgenblickl in der der llild}:auer mi-t dieser Arbeit auflri:irt, geht
eEr
ils ist noch nicht ganz das l5chtigef wen$ rnen sich befiehlt,l
ilSinge jetzt!$ Z'.ar singt mnnr aber nobenher liiuft eine Verstandes-
tdtigkeitr die mit aIler Gevralt einen einreden vill, wie slnrrlos rlie
Ti;ne sinrl , <lie r.ran zu fassen versucht. Dariiber hinneg hilft, dass
r-,an die Aup;en vor Cen ilruch der GiFsnasse irrr*er fester echliessen
i'!:us-q. Jet:rt sehen sie nichts mehr, ictzt sind sie tot, in einen
.:'b3-r:rirl gefallent aber ich spiire sie, rvo sie liegen gebliebcn sind,
tief unteq im Leiir, ar ciner llanz l:estiranten Stel]e.
Ich trin sehr gliiclili.ch als ich rich dort finde. fch habe allcs
verge.ssen bis auf das eine Gefi.!h}: jeizt sirrgt ee, Aben mer.ki..'i.irdi.ger-
rseise sind, es keine Lieder'f sonderr. die letr.terr $;ttze von $i5,'mphonien,
Allegrcs t;t::rcialesr riie vort'iiirts sti-irren. Zwi-*trretrd-i.rr.ch aber erhebt
sich tler San; der Geig;e alls dein f iolirrKoirzert von Beetlroven, erst
"
tjer ni.ttle:'eFigura 20 dann
?ei1 ir*C - Fragmento de Orpheus
der Schlussatz. - C37sind die ?iotivc
Aber kaum
clieser F,usik ztr linde gegarrgen, verrvanrielt sich ciie Geige ln rias In-
-qtruiiient ces Zigetrners, der die i?eite seincr ir,bene in die nielancho-
"
lisciren lellen seines i{hythmus ur*setzt. Ich einge eler Geige Kreis-
lers nitcit, rie ich sie vor langen Jahren in deni Grairn'lophsnsalon rrir
li;:hc
Mas vorspielea
cantar não lassen. Ich einge
é tão difícil. die ileloclie
É questão des rrCapriee Yiennoj.sfl
de acostumar-se, como quando o
ihn n.reh und empfinde in der tiefen, sehsr-ichtigen I'telanehalle, class
sierosto é envolvidoaufv;iihlt
f ruchttragender com gesso. als jedePorém, no momento
optir:ristische $rrr*reloriie. que o escultor
em
Ilertermina
Stron seuversiegt,
trabalho,
ich sobrevém
kann es nicht o resultado.
verhinriern, Nãodassé de
auftodo correto quando
Selrurrdeo
ein rrinnerlngs!:iltl vor mir aufsteigt.
ordenamos:
Ich komne von irg;endwo her, xo ich jemand besucht hatrel rlen ich há uma
cante agora! Então se canta, mas, paralelamente,
atividade
froh r:achte.intelectual
Jetzt fahrequeich nos
in quer convencer
cie ltaeht zuriick,violentamente
froh, weil clie de quão sem
sentido
F're'-rde dieses
são l.lensclien
os tons queauf michemitimos. Mais
eh5Xefairbt hat.
queIcir
isso,binajuda apertar cada vez
in e ineci
i',agen 4. i:-lirsser vollgeetopft r::it liennchen, clie stehcn und.gich in
mais os olhos sob a pressão da máscara de gesso.
der !in1;e kau;: riihren ltijr:nen. feh stehe zrcischen ihnen eir:gelreilt. Agora não veem nada,
agoraLa=pen
T'r"iitre estão mortos,
schaffen einecaídos num Atrsosphdre.
uuwirkliehe abismo, mas Sersinto-os
(]ualm vo:ronde ficaram
f,igarren
repousando unrl Pfeifen legt sictr no
profundamente riie $rust'
aufcorpo, Ieh lralte
num lugar muitonich
específico.
nriih- Sou feliz
*:eliii iin einrlr.r Auf,hinger fest, unrl rioch tri.r ich gliieklich, rveil un-
quando me encontro
a.rrfhdrliel: licloclien mir ali. Esqueço-me de tudo, exceto
entstriinten, Sesilngen von den lnstrunent,en de um sentimento:
eiagora, canto (Molinari,
nes liar.rrnernrusi hquartett s.2013, p. 95, tradução nossa).38
38
! “Pero el canto no es tan difícil. Sólo hay que acostumbrarse, así como el rostro es embadurnado con
yeso. Pero en el momento en el que el escultor termina su trabajo, resulta. No es del todo correcto cuando
nos ordenamos: ¡cante ahora! Entonces se canta, pero paralelamente se da una actividad intelectual que
quiere convencernos con violencia de cuán sin sentido son los tonos que tratamos de asir. Más que eso
ayuda apretar cada vez más los ojos ante la presión de la máscara de yeso. Ahora no ven nada, ahora
están muertos, caídos en un abismo, pero los siento donde se han quedado reposando profundamente en el
cuerpo, en un lugar muy específico. Soy feliz cuando me encuentro ahí, lo olvido todo excepto un
sentimiento: ahora se canta” (Contreras Castro, 2013, p. 95).
35
Por exemplo, num centro de terapia intensiva, num hospital, não há vozes
vocalizadas, mas há vozes comunicando sentidos e, de alguma maneira, captamos suas
necessidades. Que lugar é esse onde se dá o encontro? É o lugar que Alfred Wolfsohn
buscou e para o qual encontrou um caminho que todos podem fazer,39 traçado, como
"
4.2 O título e o sumário em Leben? oder Theater? ein Singspiel
Prelúdio
“Playbill”
Cena 1
Cena 2
Cena 3
Cena 4
Capítulo inserido: O nascimento no presente
Cena 5
Segundo ato
Fim do prelúdio
Seção principal
Início da seção principal: I
“e agora nossa peça começa”
39
! Importa deixar claro que aqui se descreve a experiência pessoal que me permitiu compreender e
traduzindo as ideias de Alfred Wolfsohn, procurando uma imagem para uma pedagogia. Movida por um
certo conjunto de circunstâncias, procurei refazer o percurso do autor, e a contemplação de alguns originais
foi reveladora, mas outros poderão compreender as mesmas coisas de outro(s) modod(s). Quanto aos
alunos, tampouco precisarão refazer esse percurso, pois é ao professor que cabe compreender essa
pedagogia e aplicá-la corretamente, propiciando-lhes um caminho de experiências.
36
Capítulo 1: Alguns dias depois
Capítulo 2: A tarde seguinte
Capítulo 4: Natal!
Capítulo 5: Conversa com um escultor na noite de Natal
Capítulo 6: Orfeu ou o caminho para a máscara da morte
Capítulo 7: A jovem garota
Capítulo 9: Uma vez mais: “A jovem garota”
Capítulo 10: Não ria de mim, eu acredito nos dados
Capítulo 11: Descoberta interessante, também para nós
Capítulo 10 (continuação): A ressurreição
Capítulo 11:40 Olhe-me como se eu jogasse bola com o globo terrestre ou
O canto de Sócrates
Nova Seção
Capítulo 1: E o tempo segue
Capítulo 2: A avó
Capítulo 3: Papai
Capítulo 4: Os judeus alemães
Capítulo 4: A partida
Fim da seção principal
Epílogo
Epílogo (Schwartz, 1981, p. xvi, tradução nossa)
"
"
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"
Figura 21 - Pintura 141
! 40
Charlotte apresenta a obra com essa organização, e Gary observa: “o sumário apresenta uma
descontinuidade”.
"
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Pintura 1
Vida? ou Teatro?
Ein Singspiel
CS (Schwartz, 1981, p. 1, tradução nossa)
"
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Figura 22 - Pintura 242
"
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Pintura 2
Dedicada a Ottilie Moore
Consiste em Prelúdio, Seção principal e Epílogo (Schwartz, 1981, p. 2,
tradução nossa)
"
Na Pintura 3, Charlote apresenta sua obra – que, aos meus ouvidos, tem
movimento. A mim, as pinturas sugerem um movimento semelhante ao de uma imagem
cinematográfica se deslocando numa grande tela de cinema sugerindo o teatro – a obra
dentro da obra. Anuncia-se uma proposição musical: começa um SINGSPIEL tricolor. A
ação se passa de 1913 a 1940 na Alemanha e depois em Nice, na França, com o
seguinte elenco:
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Figura 23 - Pintura 343
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"
Dr. e Senhora KNARRE – um casal
FRANZISKA e CHARLOTTE – suas filhas
DR. KANN – um médico
CHARLOTTE KANN – sua filha
PAULINKA BIMBAM – uma cantora
DR. SINGSONG – uma pessoa versátil
PROFESSOR KLINGKLANG – um maestro famoso
um PROFESSOR DE ARTE
PROFESSOR e ESTUDANTES – numa academia de artes
CORAL (Schwartz, 1981, p. 3, tradução nossa)
SENHORA KNARRE
SENHOR KNARRE
CHARLOTTE KANN
OUTROS (Schwartz, 1981, p. 3, tradução nossa)
! JOODS
44 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
40
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Figura 25 - Pintura 545
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Pintura 5
A criação das pinturas seguintes é para ser imaginada assim:
Uma pessoa está sentada diante do mar. Está pintando. Um tom, de
repente, lhe vem à mente. Como ele começa soando dentro, ela observa o
tom para um acordo sobre o que realmente irá para o papel. Um texto se
forma em sua cabeça, e ela começa a cantar o tom com suas próprias
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Figura 26 - Pintura 646
"
Pintura 6
Acontece muito cada novo personagem cantar um texto diferente,
resultando num coral. A variada natureza das pinturas poderia ser
atribuída menos ao autor do que à variada natureza dos personagens
retratados. O autor tem tentado, tentou - como é talvez mais evidente na
Seção principal – sair de si mesmo e permitir que os personagens cantem
ou falem com sua própria voz. Em razão disso, renunciou-se a muitos
valores artísticos, mas espero que, na perspectiva da penetração da alma
natural do trabalho, isso será perdoado.
! JOODS
46 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
42
O AUTOR – St. Jean
agosto, 1940/42
Ou entre céu e terra, além de nossa era, no ano de minha nova salvação
(grifos nossos). (Schwartz, 1981, p. 6, tradução nossa)
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"
"
"
Figura 27 - Sentimentos em canções47
"
"
! 47 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
43
"
"
Pintura 58
Agora, vamos à última pintura da Cena 2.
Daí em diante, Charlotte expressa seus sentimentos em canções.48
E, de fato, assim foi: a análise musical não era necessária, mas havia que apontar
a importância da música em todo o processo. Voltando a procurar conexões com
Orpheus: oder der wegzueimer maske, encontramos explicitamente, na Seção principal
do Capítulo 6, o subtítulo que contém o título do manuscrito, a que Charlotte acrescenta:
da morte.
No Capítulo 11, que tem dois subtítulos, chama atenção o segundo: O canto de
Sócrates. A analogia é clara: são características socráticas, o diálogo, a convivência, o
êxtase e a reflexão, o Verdadeiro, o Belo e o Bom. Tudo é bom do ponto de vista da
origem e da singularidade. Para Alfred Wolfsohn, a aceitação do verdadeiro baliza o belo
e, portanto, do bom:
48
! Assim, Charlotte Salomon anuncia a importância da canção em sua obra.
49
! The problem of singing cannot be separated from the human problem. I do not consider singing as an
artistic exercise, valued merely as an aesthetic pleasure or an enjoyable pastime, but as the expression of a
human being, an attempt to realise the individual self – the individual self seen here as the centre of psychic
substance (Wolfsohn, s.d.a , p. 85).
44
que Charlotte anuncia que o sentido está na música, daí a relação das peças que o
integram. Como comentaremos apenas uma da seção principal, segue-se uma espécie de
guia de escuta.
No Prelúdio
Schubert: Lied – Die Schone Mullerin, Die Winterreise, Schwanengesang
Weber: Ópera – O Franco Atirador
Bizet: Ópera – Carmen
Gluck: Ópera – Orfeu e Eurídice
Haendel: Sansão
Canções folclóricas
Pequeno livro de Ana Magdalena Bach
Na Seção Principal
Bizet: Ópera – Carmen – Entrada de Wolfsohn como Daberlohn –
toureador (Molinari, 2011, p. 2)
Todas as músicas podem ser ouvidas na exposição virtual, mas esperamos ter
registrado claramente que a música é um elemento fundamental desta jornada. Sigamos,
entretanto.
"
45
O ponto que destacamos aqui é que, talvez por sua morte prematura, Roy Hart não
chegou a explorar a dimensão musical na atuação teatral a partir dos achados de seu
professor, Alfred Wolfsohn. A conquista de Hart se ancora na relação entre teatro e
música, entendida, esta sim, como o legado musical que ele herdou da experiência com
Wolfsohn. A experiência de desenvolvimento vocal – processo em que a música
(especialmente o canto) era fundamental – foi utilizada por Roy Hart para a constituição
de uma nova forma de interpretação, ao menos para a realidade londrina das décadas de
1960-70.
Depois da morte de Hart, em 1975, o Roy Hart Theatre ficou à deriva: cada
professor conduzia a aula como podia, sem seu líder. Há cerca de dez anos, passaram a
buscar novos docentes para dar continuidade ao grupo e, com isso, uma nova formação
teve lugar, ainda experimental, dedicando-se a estabelecer relações entre o teatro, a voz
e a psicanálise, mas ainda sem discutir a presença da música.
46
Esta ficou num plano distante, como um dado secundário em relação ao texto e
suas sonoridades. Uma grande nebulosa impede a delimitação de um método e mantém
uma atmosfera de misticismo em torno do fazer de um Roy Hart Voice Teacher. Inúmeras
publicações foram feitas com uma idéia bastante confusa sobre o desenvolvimento vocal
proposto por Roy Hart, se tornou ainda mais complexa quando aumentou o interesse por
Alfred Wolfsohn, pois tudo parecia de ambos.
Psicanálise
Roy Hart
Voice
Work
Voz em A. Teatro
Wolfsohn
! 50
Os termos Roy Hart Theatre Voice Work é a maneira mais atual de chamar o trabalho que, por anos, foi
conhecido como Roy Hart Voice Work.
! 51
Em 2008, discutimos o tema num texto entregue como exigência parcial para a obtenção do título de Roy
Hart Voice Teacher.
47
"
"
Importa sublinhar que o trabalho em si não é a terapia. Ele se vale de recursos
cunhados na psicanálise, mas não se confunde com ela, ainda que uma das questões
primordiais da busca de Alfred Wolfsohn fosse a solução de seus próprios dramas
psíquicos. Sua conquista situa-se na interseção entre elementos da psicanálise, da
música, da Filosofia e das artes plásticas, que constituem o terreno fértil de exploração da
voz proposto por Wolfsohn (Figura 29).
"
"
"
"
"
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"
"
"
"
"
"
Figura 29 - Voz Wolfsohn na perspectiva de Molinari
"
De acordo com Jean-Michel Vivès, professor de psicopatologia clínica da
Universidade de Nice e membro da Seção Rio de Janeiro do Corpo Freudiano, a música é
a armadilha para capturar a voz, e o canto é o contínuo da voz no descontínuo da palavra
(informação verbal).52 Essas afirmações corroboram o que acreditamos ser a força do uso
! 52
Informação fornecida por Jean-Michel Vivès, no lançamento de seu livro A voz na clínica psicanalítica, na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2012.
48
desenvolvimento, é isso que Alfred Wolfsohn procura dizer em Orpheus e que Charlotte
capta e derrama em pinturas.
A obra de Paul Zumthor sobre poesia oral é importante para a compreensão dessa
voz e para a tradução intersemiótica do trabalho de Charlotte Salomon.
oral. Zumthor completa: a oralidade é uma abstração; só a voz é concreta, só sua escuta
nos faz tocar as coisas (1993, p. 9). Nesse ponto, o autor prefere falar em voz vocalizada.
Adotemos o termo oral para uma descrição do pensamento necessária aqui.
Figura 30 - Trinômio 1
"
"
Pensemos agora em como compreender cada um dos termos na perspectiva do
trabalho de Alfred Wolfsohn.
! 53
Até Gutemberg, a principal forma de afirmação do conhecimento era a oral. O sábio era o que ensinava,
e os discípulos escutavam. Com a imprensa, o escrito passa a ter um território que não só se sobrepõe
como subjuga o oral, o vocalizado.
49
Para essa compreensão, a escuta deve ser de outra ordem, portanto, em segundo
lugar, cumpre conceituá-la.
"
Figura 31 - Trinômio 2
"
A voz como o elemento basal, como na histologia, em que a membrana basal,
resistente e elástica, faz a conexão entre o mais profundo e o superficial. Essa voz é a
mesma em Zumthor e em Wolfsohn.
Quanto à beleza, diz Zumthor (1993, p. 20) que a voz pode ser concebida como
particular, mas é concebida também como histórica e social, o nos remete a sua
recepção, ao modo como essa voz se transforma pelo ouvinte que a recebe. Pelo uso que
fazemos dela, a voz modula a cultura comum, e isso não pode ser esquecido. A voz
articula características históricas e sociais – é disso que se trata. O ouvinte aqui é aquele
que é capaz de captar tais modulações não só no sentido musical, mas no sentido de
uma escuta ativa que envolve sua própria cultura e lhe é natural. Não há esforço para
50
Assim como Paul Zumthor, Alfred Wolfsohn havia pensado a voz, mas, na
sociedade em que vivia e da maneira como necessitava validar seus conceitos e suas
exposições, não o fez em escritura como claramente o fez Zumthor (1993). O manuscrito
Orpheus oder der wegzueimer maske se detém em explicar o que Zumthor realiza na
década de 1990, mas valendo-se de muitas comparações, no afã de se fazer
compreender.
Por que toureador? Por vários motivos. Os mais explícitos nas telas são a
necessidade de Wolfsohn exprimir seus conceitos ao licenciador – o Dr. Singsong –, que
o enviara a uma cantora famosa para ouvi-lo, porque ele próprio não tem tempo. Wofsohn
sobe uma escada coberta com um tapete vermelho – em Charlotte, o vermelho marca de
tensão – e tem uma auréola vermelha quando fala com o Dr. Singsong.
"
"
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"
"
51
"
"
"
"
"
"
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"
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"
Figura 32 - Vermelho - toureador54
Figura 33 - Wolfsohn e
Paulinka55
"
"
Como diz Charlotte, esse toureador entrega seu livro a Paulinka. Não ainda o
Orpheus: oder der wegzueimer maske, mas uma compilação das ideias que lhe dão
origem. Isso é sugerido pelo fato de Orpheus aparecer numa tela posterior a essa,
retratado como manuscrito. (O Orpheus original está datilografado, mas dizemo-lo
manuscrito pela forma original de suas ideias.)
Em Orpheus, Alfred Wolfsohn fala da voz, das relações que ele vê com a
Psicologia e, mais especificamente, em nossa perspectiva, a psicanálise:
Para Wolfsohn, a psicologia da época foi um terreno seguro onde ele podia
justificar seus achados. Hoje, com o avanço dessa ciência, podemos ver o estudo de
Alfred Wolfsohn de outras perspectivas, sumamente necessárias ao fazer artístico.
! 56
“Yo no podía separar el problema del canto en sí de los problemas humanos. Cantar no es para mí un
ejercicio artístico a ser apreciado como disfrute estético, o que sirve, en un contexto dado, a una meta de
goce, sino es expresión de una persona, un intento de dejar escapar de una manera específica su yo,
considerado éste como centro de una sustancia anímica (psíquica). Ese intento fue infructuoso porque esos
trasfondos no son asibles y no pude ser guiado hacia ellos. Escogí el desvío de enseñarle a otros a cantar, y
con ello hice contacto con otra ciencia, la psicología, y me ocupé de ella” (Contreras Castro, 2013, p. 67).
54
Voltando a
Wolfsohn, Charlotte
retrata a ansiedade do
professor acerca de seu
encontro com um grande
psicólogo da época –
tratava-se de Carl Gustav
Jung, que passava por
Berlim. Alfred lhe
escrevera para partilhar
seu trabalho e seus
sonhos, ou suas
interpretações de sonhos.
"
Figura 34 - Opus/Jung57
"
"
"
"
"
"
"
! 57 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
55
"
"
"
Na Figura 34, vemos Alfred Wolfsohn e Charlotte Salomon conversando sobre o
assunto e algumas palavras que designam o eminente psicanalista a quem Daberlohn/
Wolfsohn pensava apresentar seu opus, Orpheus oder der wegzueimer maske. A
conversa inteira está na edição de Gary Schwartz, mas apresentado aqui esse fragmento
para sublinhar a necessidade de se cotejarem os dois trabalhos, suscitando outros
estudos. Wolfsohn tinha a preocupação de partilhar seus achados e vê-los discutidos;
assim, era favorável a que esse assunto chegasse ao meio acadêmico (informação
verbal).58
Talvez seja assim, talvez não. O importante é que, fazendo publicá-lo como tese
numa Universidade – por excelência, um lugar de partilha de conhecimentos –, espero ter
ultrapassado a dimensão terapêutica do trabalho de Alfred Wolfsohn e dado a ver seu
valor para a obra de arte e seus criadores.
! 58
Informação fornecida por Sheila Braggins, ex-aluna de Alfred Wolfsohn, em encontro especialmente
dedicado à discussão sobre o professor e sua obra, em Londres, em 2007.
56
Para nós, como resultado dessas múltiplas traduções: o aluno começa a entoar um
vocalise, o professor ouve e sugere um caminho que parece ser o que ajudará o aluno.
Ouve o resultado, assegura-se de que o exemplo não mudou a essência do que escutou
antes, mas não desiste: não dá exemplos vocais e não diz qual é o melhor caminho, mas
experimenta o caminho junto com o aluno, incentivando sua busca na escuta de si.
"
"
Figura 35 – Fragmento de Orpheus - D 59
Essa objetividade, pela qual os padrões são instituídos através de protocolos, deve
dar lugar a uma outra forma de escuta classificatória, em que a interpretação entra em
jogo, e o jogo é o protocolo. O jogo, aqui, é o suporte psicanalítico de apoio; não só o
conhecimento do proposto na análise junguiana, mas também pela winnicottiana,
principalmente na compreensão de como o jogo faz parte de nossas conquistas.
"
! 59 Wolfsohn, Alfred. Orpheus: oder der wegzueimer maske s.d.b, p. 22 [arquivo pessoal]
! 60
No hay que aplaudir la opinión de que existe una objetividad de quien escucha o de una obra de arte
(Contreras Castro, 2013, p. 22).
57
"
Figura 36 – Fragmento de Orpheus - E61
Mas trata-se de cantar e, por isso, tanto faz de onde soa sua voz, se de um
livro, de uma pintura, de uma canção. Trata-se do mistério que há por trás
da voz, que é sempre o mesmo e do qual se pode adivinhar talvez a maior
sabedoria, que não vem da cabeça, como a inteligência, mas de um centro
localizado mais profundamente62 (Molinari, 2013, p. 17, tradução nossa).
A ideia de que não importa de onde soa a voz mas o mistério por trás da voz foi
das mais difíceis de apreender, dada a influência do Roy Hart Theatre. Foi necessário um
distanciamento para lograr aprofundá-lo, o que foi acontecendo progressivamente ao
longo de 60 oficinas organizadas na Argentina, no Brasil, no Chile, na Colômbia, na Costa
Rica e na França.
! 61
61 ! Wolfsohn, Alfred. Orpheus: oder der wegzueimer maske s.d.b , p. 17 [arquivo pessoal]
! 62
“Pero se trata de cantar, y por eso da igual desde dónde suena su voz, si de un libro, una pintura, una
canción. Se trata del misterio que se encuentra detrás de su voz, que siempre es el mismo, y del cual se
puede adivinar quizá la mayor sabiduría, que no viene de la cabeza, como la inteligencia, sino de un centro
más profundamente localizado” (Contreras Castro, 2013, p. 17).
58
Ávida por conhecer, pus-me a pesquisar na rede mundial (web) para conseguir o
máximo de informações, para não repetir o que escrevera sobre o tema no livro Conhecer
e expressar o indizível: o legado de Alfred Wolfsohn.63
Era a pergunta que me eu fazia desde o dia anterior. Eu já havia passado horas
refletindo sobre o que iria fazer e estava decidida a voltar e esperar que as coisas se
assentassem – que o vivido fosse esclarecido em mim –, antes de partilhar qualquer coisa
nova com meus alunos. Eu sabia que a experiência tinha sido grande demais para eu
simplesmente voltar e mudar. A quebra de paradigma era tamanha, que melhor seria
esperar que tudo ficasse mais claro para mim antes de partilhá-lo como conhecimento
adquirido. Movida por essa constatação, respondi: vou viver tudo em mim para depois
pensar em como falar a respeito.
"
6.1 A pedagogia por trás da quebra de paradigmas
Não havia preocupação quanto à classificação vocal. Numa conversa inicial, com
cadernos em mãos, professores pediam um exercício de síntese das expectativas quanto
ao trabalho. Trinta segundos – cronometrados – para cada integrante do grupo. Enquanto
falávamos, vez ou outra um deles fazia uma anotação. Os professores trabalham em
grupos de três, às vezes quatro ou mais.
"
6.1.1 Primeiro apontamento pedagógico: não se classifica a voz, se a apreende
Como vimos, para Alfred Wolfsohn, a voz não se classifica segundo a tradicional
noção de soprano, meio-soprano, contralto, tenor, barítono e baixo, e esse é um dos
pilares de seu trabalho. Assim, o que se a busca são justamente as características
femininas na voz masculina e das masculinas na voz feminina, pois o objetivo é buscar a
unidade e consolidar a unidade conquistada.
escuta numa outra classificação, em que os elementos a classificar não indicarão o tenor
ou o contralto, mas serão de sentido. As condições indispensáveis são tão somente a
escuta e a classificação possível a partir de uma experiência que já foi apreendida,
realizada em canto e passível de ser descrita de modo a ser compreendida por outro em
alguma tradução. Em geral, essa tradução se faz em palavras, mas pode-se adotar
qualquer linguagem artística. Logo chegaremos a isso.
A descrição não poderia ser melhor. Zumthor marca o caminho dessa alteridade, e
Wolfsohn sabia disso quando dizia que o professor guia para a descoberta do ainda não
tangido, que é a clausura assinalada por Zumthor e que é rompida nessa trajetória da
relação do professor com seu aluno no caminho traçado por Alfred Wolfsohn. A ordem
própria se instaura quando essa operação ocorre.
Para Peirce (apud Ibri, 1992, p. 5-6), a experiência precipita e filtra falsas ideias
deixando verter a verdade. A condição para isso é abrir os olhos mentais e buscar as
características que nunca estão ausentes, nas palavras de Peirce. É necessário ver o que
63
está diante dos olhos sem nenhuma interpretação. Peirce ainda sublinha: essa é a
faculdade do artista que vê, por exemplo, as cores aparentes da natureza como elas se
apresentam. No nosso caso, com relação à escuta, é preciso não perder de vista um
aspecto específico que estejamos estudando e ter o poder de generalização do
matemático que produz a fórmula purificada de todos os acessórios estranhos e
irrelevantes (apud Ibri, 1992, p. 5). São condições imprescindíveis para o momento de
ouvir a voz do aluno para ajudá-lo a descobrir algo novo, ou profundo, ou já visitado e não
percebido64 (Molinari, 2008b, p. 1).
Para Wolfsohn, só na união sexual todas as forças do corpo estão dirigidas a dar
vida, a expor a substância que dá a vida, e, quando cantamos, procuramos a mesma
64
! “Listening, in these memoirs, will be exposed as the most constantly expressed in the classes. Listening
opened my eyes, my feelings, my sensations and made me capable to think forward” (Molinari, 2008b. p. 1).
65
! “In my teaching, whether it be of a man or a woman, I experienced again and again the same
phenomenon, namely that every voice is composed of male and female elements, and that it is only a
question of time and talent as to how far a voice is capable of bringing these elements into harmony, thereby
arriving at a unified voice in contrast to a specialized one. In observing a singing person, I could see the
same process, albeit in varying degrees, taking place: in order to achieve the sound, the body movements
made were those that are made in love-making–and it is not by chance that I invoke this word” (Wolfsohn,
s.d.a, p. 97).
64
Paula belíssima!!! Espero que tenha chegado bem e que esteja feliz e
contente […] aqui, sigo sentindo os efeitos de sua oficina em todos os
níveis de minha vida. Você não sabe quantas coisas bonitas tem
movimentado e que feliz ando. Espero manter este estado de ânimo :) sua
65
oficina me deu muito material para escrever e eu me sinto muito bem66
"
6.1.2 Segundo apontamento pedagógico: a construção do setting educacional
Como Roy Hart Voice Teacher e estando fora do Centre Artistique International Roy
Hart, uma das maiores dificuldades que enfrentei foi para construir o setting. Quando
estive em formação, eu passei por todas as práticas no Centre Artistique International Roy
Hart, uma comunidade de experimentação, totalmente adaptada para esse fim.
Primeiramente, não há um acesso fácil. O Centro fica numa região de serra, com uma
estrada de mão dupla, cheia de curvas, sem muitas opções de transporte público, e a
cidade mais próxima com estação ferroviária é Alès, a 27 km.
66
! “Paula bellísimaaaaaa!!! Espero que hayás llegado bien y que estés muy feliz y contenta (…) Aquí yo sigo
sintiendo los efectos de tu taller a todos los niveles de mi vida. no sabes cuántas cosas bonitas se han
movido, y qué feliz que ando. Espero mantener este estado de ánimo :) tu taller me ha dado mucho material
para escribir, y me siento muy bien” (Molinari, 2011, arquivos de aula). Mensagem recebida por
<paula.musique@yahoo.com.br> em 25 abr. 2011.
66
Isso não foi proposital – foi o lugar que o grupo encontrou e pelo qual podia pagar.
O Roy Hart Theatre surgiu em Londres, com os alunos de Roy, na residência de Alfred
Wolfsohn e também de Roy Hart. Wolfsohn faleceu em 1962, e o grupo se mudou para o
sul da França no início da década de 1970, quando a França oferecia mais incentivo à
cultura que a Inglaterra, segundo contam os primeiros moradores e também professores.
Chegando lá, trabalharam para recuperar a construção antiga: refizeram telhados,
hidráulica, elétrica, criaram espaços de ensaio, de convivência, os alojamentos que hoje
abrigam os estudantes e, ao longo dos anos, o que hoje é o Centre Artistique International
Roy Hart.
Nada é de luxo, mas tudo tem o essencial para uma vida confortável. Quando eu
estive lá não havia nem sequer telefone público, e o contato com o mundo exterior só era
possível em dias de descanso, quando havia dias de descanso. Tudo depende da
duração da oficina.
Os que não tinham carro próprio ou alugado, aproveitavam a saída de alguém com
carro ou caminhavam uma hora pela estrada – com trechos sem acostamento – até a
cidade mais próxima, Lasalle, a 6,5 km. É em Lasalle que se fazem as compras, previstas
no cronograma para o primeiro dia de oficina. Para um professor experiente e atento,
mesmo a organização dos carros e as escolhas dos alunos sobre os modos de ir podem
servir para as aulas – e, de fato, em geral, são muito esclarecedoras. As escolhas dos
alunos na vida cotidiana aproximam e ajudam o professor na condução da aula, e a
observação do professor não pode ser negligenciada – é parte da técnica.
67
Como vimos, no começo, não havia uma clara distinção entre o que era Roy Hart
Voice Work e o que era prática de Alfred Wolfsohn. Mas a condição geográfica do Centre
Artistique International Roy Hart e as ações que essa condição exige constroem um
setting muito específico, e essa verdade se impôs sobretudo quando precisei delinear
uma prática do trabalho fora daquele lugar. Era inimaginável, sem remeter-me a Alfred
Wolfsohn, conceber tal imersão sem aquele ambiente e suas condições: isolamento,
introspecção, mergulho em si próprio etc.
Desde a primeira vez que voltei de um dos estágios de formação, passei a ver
meus alunos de outro modo. Mesmo com o compromisso autoimposto de não aplicar o
que ainda não estava suficientemente sedimentado, meu olhar já era outro. Minha sala de
aula na faculdade tinha um vidro que me permitia ver o aluno subir as escadas até chegar
à porta de correr. Comecei a observar como cada um chegava, qual era seu tempo
natural, como subia, como se projetava no espaço, como me cumprimentava, com que
sonoridade de voz... Diversos elementos passaram a ter uma importância que antes não
tinham.
"
"
"
68
"
"
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"
"
Figura 37 - O ensino67
"
Folheando pela primeira vez o livro de pinturas de Charlotte, registrei
imediatamente a posição das mãos dele e dela no centro do quadro. Logo depois, reparei
na posição das mãos dele em relação às dela: nos movimentos anterior e posterior, acima
e abaixo. Para mim, aquela é a mão daquele que acompanha. Tem muito mais sentido,
! JOODS
67 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
69
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 38 - Entrevista
com o licenciador68
Nas mãos dele, um papel que o apresenta a alguém que decidirá sobre sua
proficiência e, portanto, sobre sua licença de professor de voz – a respeitada cantora
Paulinka Bimbam, madrasta de Charlotte.
"
Figura 39 - A decisão nas mãos de alguém69
"
"
! 69 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
71
Nessa pintura, com o olhar voltado para baixo, ele primeiro vê Paulinka dos joelhos
para baixo, e parece que Charlotte indica que, depois, ele a atravessa e, finalmente,
altivo, aguarda enquanto ela lê a carta do responsável do órgão licenciador.
"
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"
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"
"
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"
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"
"
"
"
Figura 40 - O primeiro contato70
Paulinka lê o que lhe é enviado, detalhe que Charlotte faz questão de registrar. O
texto pintado na tela diz:
"
Querida Paulinka,
Isto é para lhe apresentar o Sr. Amadeus Daberlohn. Ele reividica para si a
condição de profeta da canção. Desafortunadamente, falta-
-lhe permissão para profetizar, ensinar. Eu não posso lhe conferir a
autorização antes que seja avaliado. Delego a função a suas “queridas
mãos”.
Com afeto,
A.
"
No quadro da Figura 42, Paulinka diz:
Charlotte muda o fundo e as cores para dar o tom do encontro. Nas letras em
vermelho, outra vez a tensão. E foco no encontro dos olhares – ou seria um confronto?
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 42 - Encontro72
"
! 72 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
74
"
A aula, o espaço de aprendizado. A necessidade dele de comunicar a que veio. A
predisposição dela. E o setting educacional?
"
Figura 43 - Permitir73
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 44 - Música74
"
"
"
"
"
"
"
Figura 45 - Detalhe: braços75
74
! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
! JOODS
75 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
76
"
Figura 46 - Amanhã às 10h76
76
! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
! JOODS
77 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
77
"
"
Figura 48 - O ensino’78
"
"
"
! 78 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
78
"
Figura 49 - Relação79
"
"
Figura 50 - Detalhe: braços’80
"
"
Figura 51 - Canto81
"
Figura 52 - Transformação82
"
"
"
! 82 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
82
"
"
Figura 53 - Amanhã às 10h - outra vez83
Uma observação das mais significativas foi o fato de que eles tinham o espaço dela
– território pessoal de Paulinka e da família – e o piano. Isso me levou a pensar que a
escolha do acorde ao piano também criava ambiente, e passei a compor os vocalises de
acordo com a sensação que identificava ao receber cada aluno. Compus tantos vocalises
personalizados que muitos não consegui registrar. Compunha na hora, no momento da
aula, pensava rapidamente naquilo que tinha escutado e devolvia como sugestão de
exercício. Às vezes, eu mesma me surpreendia com as melodias que criava, com as
harmonias que escolhia, num impulso. (Evidentemente, o registro imaginado – uma
câmera escondida, por exemplo – nunca encontrou lugar nesse contexto, possivelmente
também porque o setting tem uma componente sagrada que não convém profanar.) No
fim das aulas, a intensidade da jornada se havia sobreposto aos detalhes dos vocalises,
e, a bem da verdade, só importava onde cada estudante chegara.
"
"
"
"
84
Eu peço ao aluno, ou ao grupo, que conte uma história com Bidu. Então, cada um
se apresenta ao próprio grupo com o Bidu, cantando em solo, e o grupo deve responder
ao solista com uma resposta sincera, criada a partir do percebido.
piano sem repetir a sequência original e, com o acorde seguinte, vou resgatá-o do lugar
distante da dificuldade de se integrar num círculo de apresentações sem palavras.
Percebi que o investimento que o aluno faz também concorre para que ele se
dedique seriamente ao trabalho. Quando, interessada em aplicar as proposições de Alfred
Wolfsohn e trocar, discutir, experimentar e dialogar sobre os achados, eu franqueva o
trabalho a quem mo pedisse, percebi que perdia uma relação necessária e parte da
construção do setting educacional que eu tanto buscava. Era preciso criar um
compromisso anterior à aula, que configurasse um desejo que desse à decisão outra
profundidade.
Assim, o trabalho agora inclui a organização dos horários na agenda do aluno, seu
deslocamento, sua disposição e outras questões práticas que, longe de ser acessórias,
são o que lhe imprime a necessária materialidade.
expressão de Takahashi (2003). Mas vale citar o conceito de Hélio Oiticica e Lygia Clark
elucidado por :
(Sperling, 2012).
! 84
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. C. A. R. Moura. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
87
Vale ainda uma observação. Essa é uma das características do trabalho visto no
desenvolvimento das ideias de Alfred Wolfsohn e a que fizemos muitos acréscimos em
função de nossos experimentos. A ponto de os pesquisadores que integraram o Centro de
Estudos de Voz Wolfsohn, uma das atividades abrigadas pelo Latin Theatre International
Wolfsohn and Hart Voice Work/Brasil – professores de canto e de atuação teatral,
diretores de teatro, mestres de yoga, matemáticos, músicos instrumentistas, roteiristas,
profissionais da dança, professores de educação infantil, contadores de histórias,
regentes de coral, psicólogos, psicanalistas, musicoterapeutas e cantores populares e
eruditos – terem passado a se referir ao trabalho como Voz Wolfsohn/Molinari.
"
6.1.3 Terceiro apontamento pedagógico: interpretação e condução do som sugerido"
Comecemos pelo termo interpretar. Uma definição possível é também geral: o fato
se tomar alguma coisa em determinado sentido. Dessa perspectiva, traduzir e interpretar
podem ser sinônimos. Traduzir também tem sua parte criativa (Plaza, 2003), e tomar algo
em determinado sentido é afirmar que há sentido. Para compreender que há sentido, é
preciso ter memória. Admitimos que cultura é memória (Ferreira, 1996), e memória remete
à mitologia grega. Na mitologia grega arcaica, as musas são filhas de Mnemosyne
(Mendes, 2012) com Zeus. Mnemosyne é a deusa da memória, portanto, as musas são
filhas da Memória com Zeus. Museu é o templo das musas, e musa é música, como
entidade e inspiração. As musas tinham a função de presentificar o passado. A palavra
presente remete à presença como espaço e como tempo, tornando ao nosso eixo
espaçotemporal.
Entendendo as musas como música, a voz, que é phoné e é igual a sopro – que é
criadora, que dá vida –, realizada em canto, é a união da criação com a musa. Portanto, o
canto tem seu status marcado pelo poder de presentificar o passado. As musas tinham na
voz o poder de fazer lembrar ou fazer esquecer. Na Grécia de que tratamos agora, só se
consegue a verdade na voz das musas. O que continua no esquecimento é a mentira.
Portanto, memória é verdade.
88
A performance nunca se repete, ainda que se repita seu material. Esse momento
de exposição da voz (phoné) que foi libertada de alguma clausura e é exteriorizada pela
música (musa) em performance pelo aluno é absorvido pela escuta do professor, que
está, ao mesmo tempo, construindo o setting educacional. Agora, ele vai além e sugere
um caminho que escolhe ao receber o som do aluno e reagir a esse som com sua própria
voz (vozcorpo). Na memória de seus registros de experiência – igualmente de libertação
de suas clausuras pessoais –, pode encontrar algum sentido que o leve a decidir que
caminho tomar. Isso ajuda a construir a acepção da palavra interpretar aqui.
da harmonia entre contrários. Castro (1998) afirma que a harmonia entre contrários do
diálogo se manifesta como reflexão – daí estar presente no ato de interpretar.
! 85
Informação fornecida por Jerusa Pires Ferreira, em aula de Semiótica da Cultura na PUC-SP, em 23 de
setembro de 2010.
89
Alfred Wolfsohn usou de muitas metáforas para explicar esse ponto que aqui
traduzimos com a intermediação da discussão filosófica. A voz que Wolfsohn tomou como
caminho permite essa ultrapassagem porque favorece em nós a escuta e a voz das
musas, filhas de Mnemosyne, a Memória, porque nesse momento o aluno é convidado a
experienciar o real como mundo, a ser o poeta, e não a revelar a experiência, que seria
apenas a reunião da escuta com a visão. É o momento em que toma sentido a voz como
membrana basal. Essa voz é a voz das musas e o lugar onde o real se manifesta na
verdade dialógica.
Baseamo-nos em Castro (1998) para dizer que, aqui, o real não está para a
experiência de interpretação poética como o único verdadeiro. A abertura de mundo não
garante o mundo. Abrir-se implica interpretar-se, e não exteriorizar-se diante de uma obra.
Uma das leituras equivocadas desse fazer interpretativo tem levado à projeção. A
projeção tem sido, portanto, o uso de um conhecimento sem as condições que só a
experiência propicia. Com isso, escolhas interpretativas deixam de existir para dar lugar a
projeções de afirmação e negação, muito comuns em aulas conduzidas por currículos
incompletos, visando apenas a reprodução e não a criação, como propomos aqui.
"
! 86
Para falar na necessidade de atingir a experiência poética, diz a autora que “experienciamos a verdade e
sentido do real como poiesis” (Castro, 1998, p. 13).
90
7 NO SOL EQUATORIAL
Este capítulo é nossa última parada e guia a discussão sobre os achados, abrindo
uma perspectiva de encerramento de uma etapa e demarcando o ponto onde surgem
outras questões a partir das que logramos responder aqui. Nessa busca, sob o sol
equatorial, encontramos algo que nos surpreendeu – trata-se, na verdade, de nosso
achado, um dado novo.
SINGSPIEL no título da obra de Charlotte Salomon, com uma breve análise do sumário e
das escolhas de repertório. Em tudo isso, havia todo o tempo um elemento comum: a
música.
Numa aula comum, busca-se a voz ideal para cantar determinado estilo. Busca-se
também atender a um conjunto de pressupostos que, em tese, farão que o aluno encontre
um timbre considerado ideal para o tipo de música que ele canta. É o princípio da
imitação: procura-se imitar o melhor possível.
Para Alfred Wolfsohn, a busca por meio da voz com o uso da música e pela
imitação de instrumentos musicais é um retorno à origem. Nesse caso, a voz é como um
instrumento, e o cantor, cônscio das possibilidades de seu instrumento, busca as vozes
91
de sua voz e as recoloca no repertório segundo suas escolhas. Assim, as duas diferenças
essenciais são a liberdade e a descoberta das vozes da voz tomando o repertório não
como fim, mas como caminho.
E qual seria o fim? O fim será o encontro e a posse dessas vozes para retornar ao
repertório e vocaliza-lo como expressão, para além do texto imposto pelas palavras e
para dentro do texto da totalidade de ser/estar no mundo naquela fração de tempo que a
performance possibilita e na certeza de que cada nova interpretação em performance
será uma criação.
! TOMÁS,
87 Lia. À procura da música sem sombra. São Paulo: UNESP/Cultura Acadêmica, 2011. 1 IBook.
92
"
"
Voltemos a Charlotte Salomon e a sua descrição na Pintura 5:
Como ele começa soando dentro, ela observa o tom para um acordo sobre
o que realmente irá para o papel. Um texto se forma em sua cabeça, e ela
começa a cantar o tom com suas próprias palavras, muitas e muitas vezes,
em voz baixa, até que a pintura se revele completa. (Schwartz, 1981, p. 58,
tradução nossa)
A artista conta como faz para pintar as cenas que se lhe apresentam, como escolhe
seus tons – aqui, cremos, com o sentido de tom-cor e tom-som. Quando usa pela primeira
vez a palavra tom, ela se refere à cor; na segunda, ao som. E completa a descrição: “até
que a pintura se revele completa”. O que Charlotte faz é o que Chabanon sugere ao
músico-sinfonista. Quando diz que o música-sinfonista deveria tocar em seu instrumento o
que canta o cantor para expressar o que o cantor quis dizer e revelar esse sentido, trata-
se do processo desde a obra feita para a descoberta do sentido nela embutido. No
sentido inverso, Charlotte conta que o artista busca o que quer dizer em seu canto para
escolher o material que o representará pela cor. Em ambos os casos, o caminho é o
canto.
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Figura 55 - Sentimentos em canções’88
Charlotte estava de posse da pintura, mas não era suficiente.89 Ela precisava da
! JOODS
88 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
! 89
Ressaltamos que não nos aprofundamos na discussão das artes visuais ou das artes plásticas porque,
aqui, o trabalho de Charlotte Salomon não é tomado como obra de arte, mas como uma tradução do legado
de Alfred Wolfsohn. O processo analítico não tange tais questões.
94
A pintura ocupa-se, por essência, da fiel imitação, e se ela não imita, não é
nada; dirigindo-se apenas aos olhos, ela só pode imitar aquilo que
impressiona a visão. A música, ao contrário, agrada sem imitar por meio
das sensações que proporciona e, uma vez que os quadros são sempre
imperfeitos e consistem, algumas vezes, em uma simples e débil analogia
com o objeto que pretendem descrever, tais relações se multiplicam
facilmente. Resumindo, a pintura imita apenas aquilo que lhe é próprio,
porque ela deve imitar com rigor; já a música pode pintar tudo, porque
aquilo que ela descreve é sempre exposto de modo imperfeito (Tomás,
2011, p. 78).
Assim, por essa capacidade de manter o tempo num fluxo contínuo, a música faz
com que a voz se revele quando a convida a sair de sua clausura. Que clausura? O
descontínuo da palavra em que a razão interfere. Então, a suposta falta de objetividade
do terreno da não palavra é a objetividade musical. Esse fato é amplamente
incompreendido, inclusive por músicos, e suscitado pela falta de suporte na formação.
Do fato de que a música, em sua essência, não é uma arte de imitação: ela
se presta a imitar na medida do possível; mas esse ofício de complacência
não pode distraí-la das funções que sua própria natureza lhe impõe, e uma
dessas funções necessárias é variar a cada instante suas modificações, é
aliar na mesma peça o delicado e o forte, o longo e o breve, a articulação
frenética e a afetuosa. Essa arte, assim considerada, é de uma
inconstância indisciplinável, visto que todo seu charme depende de suas
transformações rápidas, e eu sei que cada trecho é retomado com
frequência, mas sem nunca parar (Tomás, 2011, p. 127).
90
! Essa afirmação está pautada no conhecimento da gestão pedagógica de cursos de graduação e
licenciatura em música e na forma de avaliação proposta pelo Sistema Nacional de Avaliação do Ensino
Superior (Sinaes) em território nacional.
! 91
“[…] as the meaning of life became questionable for me, so became the meaning of art, without in any way
diminishing the validity of works of art. For me, what was shaken was the concept of art in its interpretation
as an unreality, the idealism of which stood in opposition to the realism of everyday life.
“This discrepancy only lost its frightening aspect when a sudden inspiration made me understand that the
language we use in our daily life is not used as it appears to us optically on the page, but that it is always
audible in some kind of intonation, founded however tenuously on the base of music” (Wolfsohn, s.d.a, p.
55).
96
Isso reitera o potencial deste estudo como uma pedagogia para o ensino de todas
as artes – de que a música é uma parte, naturalmente –, aplicada ao desenvolvimento de
artistas educadores ou artistas envolvidos com as práticas interpretativas.
"
97
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
uma nova abordagem do fazer musical, que demanda um ponto de vista que deve ser
instituído na formação docente pelo replanejamento curricular. A valorização da
performance decorrente deste estudo amplia a discussão sobre a ontologia do fazer
artístico dados os atuais avanços da comunicação e da semiótica, renovando também o
estudo da voz, da performance e da comunicação oral.
"
99
"
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Figura 56 - Um dia as pessoas falarão sobre nós dois92
"
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