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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP
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Paula Maria Aristides de Oliveira Molinari
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ALFRED WOLFSOHN NA OBRA DE CHARLOTTE SALOMON:
UMA CARTOGRAFIA QUE EMERGE DA VOZ
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Doutorado em Comunicação e Semiótica
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SÃO PAULO
2013
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Paula Maria Aristides de Oliveira Molinari
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ALFRED WOLFSOHN NA OBRA DE CHARLOTTE SALOMON:
UMA CARTOGRAFIA QUE EMERGE DA VOZ
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Te s e a p r e s e n t a d a à P o n t i f í c i a
Universidade Católica de São Paulo
como exigência parcial para obtenção do
título de Doutora em Comunicação e
Semiótica, sob orientação da Profa Dra
Jerusa Pires Ferreira.
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SÃO PAULO
2013
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MOLINARI, Paula Maria Aristides de Oliveira!
! Alfred Wolfsohn Na Obra De Charlotte Salomon: Uma Cartografia Que
Emerge Da Voz/Paula Maria Aristides de Oliveira Molinari. - São Paulo, 2013.
xii, 104f.
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Tese (Doutorado) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de
Estudo Pós Graduados em Comunicação e Semiótica.
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Título em inglês: Alfred Wolfsohn In Work Of Charlotte Salomon: A
Cartography That Emerges From The Voice.
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1. Semiótica. 2. Música. 3. Voz. 4. Arte. 5. Canto.!
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BANCA EXAMINADORA

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A meus pais,
Paulo Amaro de Oliveira e
Cacilda Aristides de Oliveira
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AGRADECIMENTOS

Ao CNPq, pelo apoio à pesquisa.

Ao apoio da UFPI na fase final da pesquisa.

À FACCAMP, por abrigar o Grupo de Pesquisa desde o início, promovendo,


difundindo e apoiando cada passo pioneiro.

A todos os alunos que estiveram em cada etapa desta cartografia, em especial, na


última parada, no Sol Equatorial de Teresina, na UFPI.

A todos que são professores.

À Profa Dra Jerusa Pires Ferreira.

À família de sangue, minha irmã, que tem o mesmo nome de minha mãe, Cacilda
Aristides de Oliveira, e é também um tanto irmã e um tanto mãe.

À família do coração, Pamela Cristiana de Almeida, minha irmã de alma, ao Pe.


Maurício Sevilha, também irmão do coração, e ao Pe. Amadeu Matias, que é
um tanto irmão e um tanto pai/padre.

A Eliane Bez Lorenzetti Chleba, por abrigar o Centro de Estudos de Voz Wolfsohn e
me acompanhar, inclusive em viagens, nas aventuras que a busca de
informações nos reservou.

A Sebastián Blanco Leis, irmão da vida, do teatro, que iniciou a organização das
oficinas na Argentina e abriu as portas para a América Latina.

A Walter Moure, amigo inseparável que canta com o cello.

A Olenka Franco, pelo acolhimento no percurso.

A Helena Meidani, pelo dueto de vozes escritas.

À Mariela Richmond, por sua arte.

A Anabelle Contreras Castro, por ler a alma.

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Ao Criador, que soprou as narinas e nos deu a voz.

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Sinto que todos os nossos afetos
interiores encontram na voz e no canto
um modo próprio de expressão.

Santo Agostinho, Confissões X – 49

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RESUMO
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MOLINARI, Paula Maria Aristides de Oliveira. Alfred Wolfsohn na obra de
Charlotte Salomon: uma cartografia que emerge da voz. 2013. 116f. Tese
(Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.

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A análise da obra de Charlotte Salomon é um caminho cartográfico da aplicação das
ideias de Alfred Wolfsohn. Propomos a leitura desse texto artístico para o trajeto de
uma cartografia possível que expõe a voz como unidade composicional e
agregadora dos diversos sentidos na síntese expressiva que se faz perceptível em
sua oralidade imagética. No processo de transcriação do manuscrito de Alfred
Wolfsohn para a obra de Charlotte Salomon, a voz aciona novos modos de
comunicação sensível, para além dos significados da linguagem verbal, uma vez
que dá visibilidade ao fluxo das emoções, potencializando a relação entre arte e
vida, corpo e ambiente, educação e comunicação. Na leitura da obra de Charlotte
Salomon e do manuscrito de Alfred Wolfsohn, existe uma proposta pedagógica que
se dá por meio da voz e que não está em cada obra isolada. Cotejando-se aspectos
de um texto e outro, se delineia um estudo da voz como caminho para uma técnica
que enseja o trânsito das emoções. A voz aparece como mediação do mundo
exterior e interior humano e potencializa a tradução do vivido em obra de arte e que
pode ser lida de modo a concorrer para a compreensão das semioses que se
concretizam nesse texto artístico. São objetivos: (i) traduzir intersemioticamente,
pela obra de Charlotte Salomon, o legado de Alfred Wolfsohn a partir da perspectiva
da relação entre comunicação, visualidades e intersubjetividades, numa ação
dialogante entre a obra visual e o manuscrito, buscando (ii) apresentar ao meio
acadêmico uma análise da obra de Charlotte Salomon e o legado de Alfred Wolfsohn
à luz da semiótica da cultura. De muitos estratos e semioticamente heterogêneo,
capaz de entrar em complexas relações tanto com o contexto cultural do entorno
como com o próprio leitor, o texto deixa de ser uma mensagem elementar mostrando
a capacidade de condensar informação. Adquire memória e, assim, na memória de
uma realidade latino-americana, o texto artístico se refaz e ganha significados
outros, que abrirão uma possível compreensão da voz como caminho pedagógico. A
transcriação de um texto a outro é leit motiv desta investigação.

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Palavras-chave: 1. Semiótica. 2. Música. 3. Voz. 4. Arte. 5. Canto.

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ABSTRACT
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MOLINARI, Paula Maria Aristides de Oliveira. Alfred Wolfsohn in work of Charlotte
Salomon: a cartography that emerges from the voice. 2013. 116f. Tese (Doutorado)
– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.

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The analysis of Charlotte Salomon’s work is a cartographic path of the application of
Alfred Wolfsohn’s ideas. We propose the reading of this artistic text for the course of
a possible cartography that exposes the voice as compositional and aggregating unit
of the various senses in the expressive synthesis that is perceivable in its imagistic
orality. In the process of transcription of Alfred Wolfsohn’s manuscript to the work of
Charlotte Salomon’s, the voice drives new ways of sensitive communication, beyond
the meanings of verbal language, seen as it gives visibility to the flux of emotions,
potentiating the relationship between art and life, body and environment, education
and communication. In the reading of Charlotte Salomon’s work and Alfred
Wolfsohn’s manuscript, there is a pedagogic proposal that takes place through the
voice and which is not present in each individual work. Conferring aspects of both
works, a study of the voice is delineated as a path to a technique that tries for the
transit of emotions. The voice appears as mediation of the exterior world and human
interior and potentiates the translation of the experienced into work of art and which
can be read so as to concur to the comprehension of the semiosis that take shape in
this artistic text. The goals are: (i) to intersemioticaly translate, through Charlotte
Salomon’s work, the legacy of Alfred Wolfsohn’s from the perspective of the
relationship between communication, visualities and intersubjectivities, in a
dialoguing action between the visual work and the manuscript, seeking (ii) to
introduce an analysis of Charlotte Salomon’s work and Alfred Wolfsohn’s legacy into
the academic medium under the light of the culture semiotics. From many layers and
semiotically heterogeneous, capable of entering complex relationships with the
environment cultural context as well as the reader, the paper is no longer an
elementary message displaying the ability of condensing information. It acquires
memory and so, in the memory of a Latin-American reality, the artistic text reforms
itself and gains other meanings, which will uncover a possible comprehension of the
voice as a pedagogical path. The transcreation from one text to another is leitmotiv of
this investigation.

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Keywords: 1. Semiotics. 2. Music. 3. Voice. 4. Art. 5. Singing.

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SUMÁRIO
Dedicatória ……………………………………………………………………… iv
Agradecimentos ……………………………………………………………… v
Epígrafe ……………………………………………………………………… vii
Resumo ……………………………………………………………………… viii
Abstract ……………………………………………………………………… ix
Sumário ……………………………………………………………………… x
Lista de Ilustrações ……………………………………………………………… xi
1 INTRODUÇÃO ……………………………………………………………… 01
1.1 Objetivo ……………………………………………………………… 02
1.1.1 Principal ……………………………………………………………… 02
1.1.2 Secundário ……………………………………………………………… 02
2 PONTO DE PARTIDA ……………………………………………………… 03
2.1 Charlotte Salomon ……………………………………………………… 05
2.2 Alfred Wolfsohn ……………………………………………………………… 06
3 AO SUL DA FRANÇA, NO SUDESTE DO BRASIL E NA HOLANDA ……. 10
4 MUNDOS POSSÍVEIS ENTRE A ALEMANHA E A FRANÇA ………. 21
4.1 Alemanha e Inglaterra: uma viagem órfica ……………………………… 22
4.2 O título e o sumário em Leben? oder Theater? ein Singspiel ………….. 35
5 DO BRASIL PARA O MUNDO: ENTRE MEMÓRIA E NOMADISMO, LETRA E VOZ
SE PRESENTIFICAM EM PEDAGOGIA VOCAL …………………………….. 45
6 BANHADOS PELO PACÍFICO, PELO ATLÂNTICO E PELO CARIBE .. 59
6.1 A pedagogia por trás da quebra de paradigmas ……………………….. 60
6.1.1 Primeiro apontamento pedagógico: não se classifica a voz, se a
apreende…………………………………………………………………………… 60
6.1.2 Segundo apontamento pedagógico: a construção do setting
educacional……………………………………………….……………………….. 65
6.1.3 Terceiro apontamento pedagógico: interpretação e condução do som
sugerido……………………………………………………………………………. 87
7 NO SOL EQUATORIAL ……………………………………………………… 90
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ……………………………………………… 97
9 REFERÊNCIAS ……………………………………………………………… 100
x


iv
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
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Figura 1 - Imagens capturadas do Livro de Visitantes e do Painel de Entrada -
Exposição Charlotte Salomon - São Francisco, EUA, 2012 …………………… 06
Figura 2 - Momentos da Despedida …………………………………………… 09
Figura 3 - “Ela ainda está viva. Obrigada, Senhor” …………………………… 10
Figura 4 - Os esforços de Charlotte - A …………………………………………… 11
Figura 5 - Os esforços de Charlotte - B …………………………………………… 11
Figura 6 - “Ele é quem lhe salvará” …………………………………………… 12
Figura 7 - O suicídio da avó …………………………………………………… 13
Figura 8 - Charlotte, da janela, vê a avó morta no chão …………………… 14
Figura 9 - Acima da média …………………………………………………… 23
Figura 10 - O caminho para a máscara …………………………………………… 24
Figura 11 - Fragmento de Orpheus - A …………………………………………… 25
Figura 12 - A criação do homem …………………………………………………… 26
Figura 13 - Posição das pernas - A …………………………………………… 27
Figura 14 - Posição das pernas - B …………………………………………… 28
Figura 15 - Posição das pernas - C …………………………………………… 29
Figura 16 - Posição das pernas - D …………………………………………… 30
Figura 17 - Fragmento de Orpheus - B …………………………………………… 31
Figura 18 - A nova religião - A …………………………………………………… 32
Figura 19 - A nova religião - B …………………………………………………… 33
Figura 20 - Fragmento de Orpheus - C …………………………………………… 34
Figura 21 - Pintura 1 …………………………………………………………… 36
Figura 22 - Pintura 2 …………………………………………………………… 37
Figura 23 - Pintura 3 …………………………………………………………… 38
Figura 24 - Pintura 4 …………………………………………………………… 39
Figura 25 - Pintura 5 …………………………………………………………… 40
Figura 26 - Pintura 6 …………………………………………………………… 41
Figura 27 - Sentimentos em canções …………………………………………… 42
Figura 28 - Roy Hart Voice Work …………………………………………………… 46
Figura 29 - Voz Wolfsohn na perspectiva de Molinari …………………………… 47
xi

iv
Figura 30 - Trinômio 1 …………………………………………………………… 48
Figura 31 - Trinômio 2 …………………………………………………………… 49
Figura 32 - Vermelho - toureador …………………………………………………… 51
Figura 33 - Wolfsohn e Paulinka …………………………………………………… 52
Figura 34 - Opus/Jung …………………………………………………………… 54
Figura 35 - Fragmento de Orpheus - D …………………………………………… 56
Figura 36 - Fragmento de Orpheus - E …………………………………………… 57
Figura 37 - O ensino …………………………………………………………… 68
Figura 38 - Entrevista com o licenciador …………………………………………… 69
Figura 39 - A decisão nas mãos de alguém …………………………………… 70
Figura 40 - O primeiro contato …………………………………………………… 71
Figura 41 - Liebe Paulinka… …………………………………………………… 72
Figura 42 - Encontro …………………………………………………………… 73
Figura 43 - Permitir …………………………………………………………… 74
Figura 44 - Música …………………………………………………………… 75
Figura 45 - Detalhe: braços …………………………………………………… 75
Figura 46 - Amanhã às 10h …………………………………………………… 76
Figura 47 - Primeiro texto …………………………………………………… 76
Figura 48 - O ensino’ …………………………………………………………… 77
Figura 49 - Relação …………………………………………………………… 78
Figura 50 - Detalhe: braços’ …………………………………………………… 79
Figura 51 - Canto …………………………………………………………………… 80
Figura 52 - Transformação …………………………………………………… 81
Figura 53 - Amanhã às 10h - outra vez …………………………………………… 82
Figura 54 - Bidu - Partitura Manuscrita …………………………………………… 84
Figura 55 - Sentimentos em canções’ …………………………………………… 93
Figura 56 - Um dia as pessoas falarão sobre nós dois …………………… 99
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xii

iv
1

1 INTRODUÇÃO

Este texto foi movido pela busca insistente dos espaços da voz. O título deste
trabalho é inspirado na cartografia, porque ele se parece com uma viagem que parte de
lugares conhecidos e que, pouco a pouco, se amplia para outros e outros, num traçado
desenfreado de sonoridades.

Como começar e como terminar? Para o começo, a motivação de mergulhar na


obra de Charlotte Salomon e, para o fim, aquela suspeita de que em algum lugar haveria
de estar algo mais sobre Alfred Wolfsohn, esse mago da voz que influenciou Charlotte de
maneira determinante – tão determinante que ela faz a experiência vocal para pintar.

Como escrever uma tese que fala na voz sem escolher a voz que falará? Com essa
dúvida, o texto demorou para se tornar escritura. Foi oral a maior parte do tempo,
sabendo-se oral por medo de se perder na escritura, até que um dia ganhou o papel com
o desafio de ser profundo, verdadeiro e justo com a academia e a ciência, sem deixar de
ser poético – voz proferida na escuta de quem lê.

A escolha foi motivada pela influência de Paul Zumthor, e, mais do que qualquer
outro autor, por Jerusa Pires Ferreira, essa escritora de vidas, de nomadismos e
confluências possíveis em territórios da oralidade.

Parecia que a cartografia possível trazia um emaranhado de caminhos


aparentemente sem conexão. Seria o nomadismo outra vez?

A oralidade na qual o pensamento tomou forma de discurso parecia dar conta


disso; então, surgiu uma estrutura possível. Esta que aqui se vê.

No capítulo, Ponto de Partida, uma apresentação de nossos personagens, de onde


vieram, suas conexões, suas distâncias e suas contribuições para a compreensão de
nosso objeto.

O capítulo, Ao sul da França, no Sudeste do Brasil e na Holanda, nossa primeira


grande linha de conexão e os acontecimentos determinantes para este texto, quase
romance, quase epopeia.
2

No capítulo, Mundos Possíveis entre a Alemanha e a França, começam a


apresentação e a análise das obras de Charlotte Salomon e Alfred Wolfsohn.

No capítulo, Do Brasil para o Mundo: entre Memória e Nomadismo, Letra e Voz se


Presentificam em Pedagogia Vocal, apresentamos nossas conexões com outros autores e
nosso problema de pesquisa se delineia com clareza.

No capítulo, Banhados pelo Pacífico, pelo Atlântico e pelo Caribe, a confirmação de


nossa hipótese: surge o delineamento pedagógico.

No capítulo seguinte, No sol equatorial, um achado. A música aparece e nos faz


seguir por lugares não pensados antes.

Seguem-se as considerações finais, inevitáveis depois do longo trajeto partilhado.

"
1.1 Objetivo!

1.1.1 Principal

Traduzir intersemioticamente, por meio da obra de Charlotte Salomon, o legado de


Alfred Wolfsohn a partir da perspectiva da relação entre comunicação, visualidades e
intersubjetividades, numa ação dialogante entre a obra visual de Charlotte Salomon e o
manuscrito de Alfred Wolfsohn. Na tradução, buscou-se o caminho que Charlotte esboça
como acesso e ponto inicial do processo criativo.

"
1.1.2 Secundário

Apresentar ao meio acadêmico uma análise da obra de Charlotte Salomon e o


legado de Alfred Wolfsohn.

3

2 PONTO DE PARTIDA

O ponto de partida desta cartografia que emerge da voz foi o contato com um
trabalho vocal baseado em premissas muito diferentes das que apoiam um
desenvolvimento vocal mais tradicional.

A primeira delas, mais perceptível por leigos, é a inexistência de gênero para a voz
humana. Na classificação vocal, separamos as vozes em femininas e masculinas e, das
mais graves às mais agudas, respectivamente em contralto, meio-soprano e soprano e
baixo, barítono e tenor. No trabalho de desenvolvimento vocal de que se trata aqui, a
escuta não se dedica a enquadrar uma voz nessa classificação, mas a procurar entender
onde essa voz está bloqueada e seguir, como professor de voz, libertando-a para seus
extremos, graves e agudos, sem preocupação com os limites da tessitura. Isso rompeu a
crença na forma como se deve desenvolver uma voz.

A ideia surgiu na década de 1950, em Londres, quando vozes andróginas


chamaram atenção, levando a BBC a entrevistar o professor de voz Alfred Wolfsohn e
seus alunos. Nessa gravação, feita no próprio apartamento do professor, os alunos
cantaram desde baixo até soprano, fossem homens ou mulheres.

O que saltou aos olhos de todos naquele momento foi a extraordinária


possibilidade de ampliação da tessitura vocal, embora se tenha dado pouca atenção ao
fato de que a extensão vocal ampliada resultava de uma ação maior operada na voz e
que pretendia originalmente buscar soluções para traumas. Ao longo dos anos, nada
mudou. Até hoje, quando a entrevista é exibida a estudiosos da voz em eventos
acadêmicos, o que se destaca é como se chega à ampliação da voz. Fazem-se perguntas
e mais perguntas sobre isso quando, tendo já a voz ampliada, o valor vocal cede passo a
valores humanos individuais como a integração do ser, a presentificação das escolhas
pessoais e, com isso, o crescimento no sentido do autconhecimento. Tratando-se do
conhecimento de si, gerou-se outra grande nebulosa: seu valor terapêutico.

Assim, conhecimento de si e valor terapêutico fizeram com que o trabalho fosse


mais procurado e mesmo desenvolvido como uma forma de cantoterapia, que se ampliou
para arteterapia por meio da voz, mesclando-se atividades das artes cênicas e visuais, da
música, da dança e do movimento. Nesse ponto, o trabalho atingiu um certo limite entre
arte e terapia, condição vista aqui como um corte, no geral do conhecimento envolvido,
4

que tirou o foco da pedagogia por trás do resultado e, esta sim, visível em sua totalidade e
abrangência.

Reforçou-se o aspecto terapêutico do trabalho pelo enfoque daqueles que,


conhecendo a relação entre Charlotte Salomon e Alfred Wolfsohn, tomaram-no muito mais
como terapia do que como pedagogia. Isso levou a que se lesse a obra de Charlotte
Salomon pelo viés da “salvação”, que a própria artista atribuiu a Wolfsohn. Este, por sua
vez, concorreu para essa mesma leitura escrevendo euforicamente sobre os pontos de
tangência entre suas ideias e o que Jung afirmava na psicanálise, na época. Embora seja
incontestável a componente terapêutica do desenvolvimento vocal, havia ali elementos
que implicavam conhecimento, e esse conhecimento poderia ser estudado, discutido e
aplicado em outras áreas do saber.

Assim se delimita nosso ponto de partida, e voltaremos uma e outra vez a cada
aspecto, quando se isso mostrar necessário ao aprofundamento da questão, a cada
capítulo. Resta agora fazer uma breve apresentação das personagens envolvidas.

Começamos no sul da França, quando pela primeira vez, depois de semanas num
processo de desenvolvimento vocal, ouvi, li e assisti a vídeos sobre Alfred Wolfsohn.
Meses depois, ainda no sul da França, folheei a edição de Gary Schwartz com as obras
de Charlotte Salomon e compreendi mais do que qualquer palavra me poderia ter
ensinado. A pintura de Charlotte estava viva e tinha som – era como se as imagens
respondessem a perguntas que eu antes não podia responder.

Cerca de nove anos se passaram até eu pudesse escrever sobre aquela


experiência de tradução, entendida aqui como o processo de generalização daquilo que
eu podia captar pela articulação das informações registradas em meu corpovoz,1 que  

ressignificavam as imagens da pintura de Charlotte. Eu sabia que algo havia a dizer, mas
as palavras ainda não me ocorriam. Eu sentia uma vontade enorme de dizer e, naquele
momento, compus músicas para algumas daquelas pinturas – outro processo de
tradução.

Quem foi Charlotte Salomon? Como ela e Alfred Wolfsohn estabeleceram os laços
que geraram sua pintura? Alfred Wolfsohn teria mesmo sido o mote?

"
! 1 O termo corpovoz será esclarecido no decorrer do trabalho.
5

2.1 Charlotte Salomon

Charlotte Salomon nasceu em Berlim, em 16 de abril 1917, e “escreveu” sua


autobiografia em guache e aquarela, na obra Leben? oder Theater? ein Singspiel.

Era judia e morreu em 10 de outubro de 1943, em Auschwitz, depois de concluir


Leben? oder Theater? ein Singspiel, que pintou entre 1940 e 1942, segundo assina.

Há controvérsias sobre o número total de pinturas, mas o fato é que ela pintou
muito em pouco tempo. Foi uma avalanche criativa, com poder de síntese e escolhas
muito bem delimitadas. Ela pintava como quem escrevia um roteiro, cumprindo o que se
propusera a fazer: indica a trilha sonora,
comenta, narra, pontua, envolve e aproxima
de si seu espectador.

A visita a uma exposição das pinturas de


Charlotte atesta seu poder de comunicação
com os visitantes. Os livros de registro estão
repletos de pequenos desabafos, confidências
e solidariedade, confirmando como a pintura
leva seu espectador a uma ruptura temporal e
à catarse. Pessoas choram, semblantes se
transformam e uma espécie de cumplicidade
se instaura.

Figura 1 – Imagens capturadas do


Livro de Visitantes e do painel de
entrada – Exposição Charlotte
Salomon – São Francisco, EUA,
2012

"
Há quem não queira sair do recinto e então procura uma cadeira para se sentar e
digerir tudo o que experimentou. Tal é a força de Charlotte. Na Figura 1, vemos seu efeito
surpreendente, profundo. As pessoas relatam a emoção pela qual são tomadas, os
conflitos entre sentir-me mal e novo ao mesmo tempo. Há mesmo o impulso de desenhar.

A obra de Charlotte Salomon é pintada numa pensão em Saint-Jean-Cap-Ferrat, no


sul da França. Ela sai da Alemanha aos ecos da Segunda Guerra Mundial e vai viver com
6

os avós no sul da França por volta de 1939. Lá, entre tantos acontecimentos – inclusive o
suicídio da avó –, ela concebe sua obra.

"
2.2 Alfred Wolfsohn

Alfred Wolfsohn também nasceu em Berlim, em 23 de setembro de 1896. Judeu


não ortodoxo, era fascinado por música, teve uma ótima educação e se destacava em
literatura.

Serviu na frente de batalha durante a Primeira Guerra Mundial, quando, em função


de traumas de guerra e marcas desse período, começou sua busca pelos meandros da
voz. Poderia a voz responder a perguntas sobre a existência de Deus? Conduziria a
conteúdos inconscientes e os revelaria? O lugar onde a voz se forja seria o lugar da
verdade humana?

Entre as duas Grandes Guerras, Alfred Wolfsohn buscou respostas. Suas ideias,
hipóteses e reflexões e os caminhos que percorreu estão descritos em um manuscrito
intitulado Orpheus: oder der wegzueimer maske.2  

O pensamento de Alfred Wolfsohn fica impresso no trabalho de Charlotte Salomon,


onde ele recebe o pseudônimo de Amadeus Daberlohn, e o próprio Wolfsohn só toma
conhecimento da obra de Charlotte depois da Segunda Guerra Mundial, já em Londres, e
quando ela havia morrido, vítima de Auschwitz. O conhecimento dessa obra impõe um
longo período de silêncio a Alfred Wolfsohn, que então lecionava canto em seu pequeno
apartamento num subúrbio londrino.

As buscas e condutas de Alfred Wolfsohn chegam a nosso conhecimento através


de seus alunos dessa época em Londres e da pintura de Charlotte Salomon. Exceto por
isso, por umas poucas gravações disponíveis de suas aulas e pelo manuscrito Orpheus:
oder der wegzueimer maske, a maior parte de seu trabalho está na transmissão oral. O
próprio manuscrito permaneceu fechado num cofre desde sua morte, em 1962, em
Londres, até o ano de 2002, quando Marita Günther, uma de suas alunas e parente,
faleceu, no sul da França, disponibilizando-se seus pertences e alguns outros escritos de
Wolfsohn. Naquele momento, Orpheus e outros escritos foram encaminhados ao Museu

! 2 Orfeu: ou o caminho para a máscara.


7

Judaico de Berlim. Entre 1962 e 2002, apenas parte do manuscrito foi divulgada, e o
conhecimento, mantido vivo pela oralidade.

De 1962 a 1975, impulsionado por um líder chamado Roy Hart, aluno de Alfred
Wolfsohn desde 1947, pessoas que buscavam uma expressão livre na arte criaram o
grupo chamado Roy Hart Theatre, que foi a principal fonte de preservação dos princípios
de desenvolvimento e conhecimento de ser postulados por Alfred Wolfsohn e teve
penetração no universo artístico através de suas performances e do enquadre terapêutico
dado pela ligação de Roy Hart com a psicologia.

Roy Hart não foi um purista na aplicação e tampouco se pode dizer que tenha sido
um curador do pensamento de Alfred Wolfsohn. O que ele fez foi traduzi-lo para a
linguagem teatral, embora não com o mesmo nível de detalhe com que o fizera Charlotte
Salomon na pintura. Na oralidade e no fascínio do trabalho de Roy Hart, misturaram-se
elementos de Alfred Wolfsohn e do próprio Hart, e é o que nos transmitem aqueles que
vivem até nossos dias. Voltar, desse ponto, o olhar para Charlotte Salomon nos conduz a
uma viagem no tempo que atualiza as crenças, elucida a transformação e abre a
perspectiva da compreensão do fenômeno que levava aqueles que trabalharam com
Alfred Wolfsohn a criar de maneira tão marcante, estabelecendo, assim, o território do
professor.

De 1975 a 2002, com a morte de Roy Hart, já em Thoiras, também no sul da


França, ao redor do Chateaux de Malerárgues, o Roy Hart Theatre procurou sobreviver
sem seu líder, agora transformado em mito. Recém-saído de Londres, onde atuava desde
1971, o grupo ainda se estabelecia com muita dificuldade em terras francesas. Fundaram
ali uma comunidade, como muitas que surgiram na década de 1970, e, com a morte de
Roy Hart, precisavam sobreviver. Pouco a pouco, além das performances, as aulas de
voz se tornaram meio de vida, embora muitos nem soubessem como conduzir uma aula.
Foram tomando seus caminhos inspirados naquilo que tinham à mão, sempre guiados por
seu objeto comum – a voz.

Marita Günther viveu ali até 2002 e partilhou de sua convivência com Alfred
Wolfsohn, ainda que fascinada e fiel herdeira dos feitos de Roy Hart. A partir de 2002,
novas inquietações surgiram no seio do grupo, já transformado, e seus fundadores, já
idosos, traziam consigo a memória de um fenômeno que não eram capazes de expressar
por palavras.
8

Buscando respostas para garantir a sobrevivência, mais uma vez ameaçada pela
crise mundial, por novas leis e pela falta de energia que o corpo já sinalizava, buscavam
atrair novos integrantes como um recurso para a manutenção da vida. Revisitar Charlotte
Salomon e retomar os escritos de Alfred Wolfsohn foi uma das ações com que procuraram
validar o trabalho de anos de dedicação e, de certa maneira, apresentar a grandiosidade
de Roy Hart, figura já mítica e sacralizada entre eles.

Assim, empreenderam uma corrida contra o tempo. Novas criações foram o ponto
de partida para uma nova fase do grupo. Naquele momento, eu era uma das novas
integrantes, partilhando com eles esse exato momento – tão complexo – de abertura.
Àquela altura, não se sabia o que era de Roy Hart e o que era de Alfred Wolfsohn.
Charlotte Salomon e Roy Hart aparecem como os fiéis difusores de um pensamento. Mas
que pensamento? Não havia respostas – apenas perguntas.

Eu fazia parte do chamado Grupo Pedagógico, que foi encarregado de escrever o


que achávamos que era o Roy Hart Theatre Voice Work e o que era o legado de Alfred
Wolfsohn. Fomos pioneiros nessa discussão, sem saber que as respostas ainda não
existiam. Muitos de nós não conseguiram lidar com a pressão que isso gerava e, na
exaustão da tentativa, afastaram-se. Fomos nos tornando um grupo cada vez menor, e a
falta de respostas a nossas perguntas também levava à impossibilidade de sermos
aceitos como integrantes do grupo original.

Durante essa crise, a obra de Charlotte Salomon me nutriu todo o tempo.


Funcionou como a neutralidade necessária e o distanciamento de que eu precisava para
olhar Alfred Wolfsohn e saber o que se lhe atribuía.

Alfred Wolfsohn e Charlotte Salomon foram unidos pela necessidade de ele obter
uma licença de professor de voz ainda na Alemanha, dos anos 1930, entre as duas
Grandes Guerras. Para isso, o órgão licenciador exigia o parecer da renomada
mezzosoprano Paula Lindberg.

Alfred Wolfsohn procurou Paula Lindberg com a firme intenção de fazê-la


compreender o que ele pensava sobre voz e de torná-la ainda melhor como cantora, tal
qual podemos observar nas pinturas de Charlotte Salomon e que aprofundaremos
adiante.
9

O tempo transcorrido entre a indicação do licenciador e a primeira aula de voz é


retratado por Charlotte Salomon em detalhes. (Ela era enteada de Paula Lindberg, que se
casara com seu pai quando ela perdera a mãe, ainda criança.) Wolfsohn e Charlotte se
conheceram por causa das aulas de canto de Paula Lindberg.

A voz foi sempre o elemento de ligação entre tudo. Não a voz-palavra, mas a voz-
som, a voz proferida e realizada em canto.

Aprofundando o tema, seguimos para o capítulo Ao sul da França, no Sudeste do


Brasil e na Holanda – nossa próxima parada.

Ilustro nosso movimento de seguir caminho com as pinturas em que Charlotte


apresenta sua despedida dos familiares e de Alfred Wolfsohn/Amadeus Daberlohn na
estação de trem. Ela está no trem e ele, acenando
com as mãos, de óculos. É também um primeiro
contato com a imagem de Alfred Wolfsohn.

Figura 2 – Momentos da Despedida3
  

3!JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon. Amsterdá, s.d. Disponível em: <http://www.jhm.nl/
collectie/thema%27s/charlotte-salomon/leben-oder-theater>. Acesso em: 6 jan. 2014.
10

3 AO SUL DA FRANÇA, NO SUDESTE DO BRASIL E NA HOLANDA

Neste capítulo, antes de falar sobre sua obra propriamente, discutiremos como ela
se originou e como a artista estabeleceu uma conexão com terras brasileiras.

Charlotte Salomon foi para Villefranche-sur-Mer, no sul da França, viver com os


avós. Sua avó tentou
suicídio nesse período, e,
como veremos nas
pinturas, Charlotte tentou
fazer com que ela voltasse
a ter amor pela vida depois
da tentativa frustrada. A
artista pinta em vermelho:
“Ela ainda está viva.
Obrigada, Senhor”.

"
"
"
"
"
Figura 3 – “Ela ainda
está viva. Obrigada, Senhor”4 

"
Charlotte Salomon pinta seu esforço para fazer a avó acreditar que há razão para
viver. Ela cuida da avó o tempo inteiro: canta, fala das coisas boas da vida, dos pássaros,
do sol...

"
4! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
11

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Figura 4 - Os esforços de
Charlotte - A5
 

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"
Figura 5 - Os esforços
de Charlotte - B6 

"
"
"
5! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.

6! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


12
"
Na imagem da Figura 6, ela lhe mostra uma tela e pergunta qual é a pessoa que
mais se sobressai na pintura. A avó indica a figura de Amadeus Daberlohn/Alfred
Wolfsohn, e Charlotte diz: “É ele quem a salvará”.

"
Figura 6 - “Ele é quem lhe salvará”7
 

"
Não deu tempo. A avó de Charlotte acabou se suicidando na frente dela, atirando-
se janela abaixo.

7! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


13

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Figura 7 - O suicídio da avó8
 

"
A seguir, Charlotte olha pela janela e vê a avó morta no chão.

"

8! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


14

"

Figura 8 - Charlotte, da janela, vê a avó morta no chão9


 

"
Não se sabe exatamente o motivo, mas, depois disso, Charlotte Salomon foi morar
na pensão La Belle Aurore, em Saint-Jean-Cap Ferrat - cidade próxima.

Pouco sabemos sobre como terá sido a vida de Charlotte Salomon durante o
processo criativo, mas, em julho de 2012, no III Simpósio Internacional de Performance
Wolfsohn e Hart, organizado pelo Grupo de Pesquisa em Performance e Pedagogia
Wolfsohn na Faculdade de Campo Limpo Paulista (SP), recebemos de Ana Margarida
Ligeti de Almeida Prado e sua filha, Teresa de Almeida Prado, um pequeno envelope

9! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


15

contendo a correspondência trocada entre Marthe Pécher, dona do hotel/pensão onde


Charlotte Salomon pintou sua obra, e Gary Schwartz, editor do livro com a obra da artista.
Não temos as cartas de Gary, mas apenas as de Marthe para ele, que ele próprio enviou
da Holanda a Ana, depois da morte de Marthe, junto com uma única carta, em que
apresenta seus sentimentos pela perda.

Ana e Teresa apresentaram as cartas durante uma comunicação oral no Simpósio,


como se por uma parada do Barco do Destino no Porto dos Imprevistos. Elas chegaram
ao simpósio inscritas na oficina de voz Wolfsohn e, enquanto eram motivadas pela prática
proposta por Alfred Wolfsohn e ministrada pela professora Marie-Paule Marthe e por mim,
foram conectando sentidos e informações e cruzando dados. Assim, entenderam a
importância do verdadeiro tesouro que tinham em casa e decidiram compartilha-lo. Agora,
ele é parte deste estudo.

As cartas foram trocadas entre 1981 e 1991, após a publicação do livro de Gary
Schwartz – daí sua importância. O conteúdo das cartas ainda não foi estudado, cotejado
ou publicado, mas elas revelam uma intimidade que deu grandes contribuições para
nosso estudo. São oito cartas: duas escritas a mão e seis datilografadas, numeradas a
partir da mais antiga, datada de 27 de setembro de 1981. Estão encadernadas em arquivo
pessoal, que contém um anexo para as folhas não numeradas que fazem parte do
material.10 As quatro últimas são de grande valor histórico e contêm dados biográficos de
 

Marthe Pécher.

Marthe Pécher nasceu em 1904, em St. Petersbourg, numa família polonesa e


católica. Ela conta: “falávamos polonês em casa, russo na rua e na escola, alemão ou
francês à mesa”.11 Ela estudou na faculdade de física da Universidade de Varsóvia, mas
 

não concluiu a graduação porque casou-se com um diplomata polonês, o Dr. Jan Fryling,
de quem se separou anos mais tarde e contraiu segundas bodas com o dono da pensão
La Belle Aurore.

10
! Mantenho a encadernação em arquivo pessoal, conforme a referência das citações.

11
! MOLINARI, Paula. Cartas de Marthe Pécher a Gary Schwartz. Doadas e entregues pessoalmente por
Ana Margarida Ligeti de Almeida Prado e Teresa de Almeida Prado a Paula Molinari, família vizinha de
Marthe Pécher, durante o III Simpósio Internacional de Performance Wolfsohn e Hart, organizado pelo
Grupo de Pesquisa em Performance e Pedagogia Wolfsohn na Faculdade de Campo Limpo Paulista, São
Paulo, jul. 2012. [acervo pessoal].
16

Marthe era cuidadosa e detalhista: junto com sua carta, enviou um informativo com
dados sobre Saint-Jean-Cap-Ferrat, com fotos e comentários sobre o cenário que acolheu
Charlotte durante seu período criativo.

A assunto da primeira carta, de 27 de setembro de 1981, era precisamente a


própria Charlotte Salomon.

Marthe Pécher começa dizendo que soube da publicação do livro e se desculpa por
redigir em francês:

Nós tínhamos, meu marido e eu, um pequeno hotel (“Belle Aurore”) na


Côte d’Azur, em St. Jean Cap Ferrat. Um dia, uma jovem moça veio alugar
um quarto. Era Charlotte Salomon. Eu não me lembro com exatidão, mas
creio que ela passou dois ou três meses conosco. Todo o jardim e terraço
estavam a sua disposição, mas ela não saía nunca de seu pequeno quarto
(n. 1, no primeiro andar). Ela pintava todo o tempo, cantarolando. Nós não
sabíamos quando e se ela comia, quando e se ela dormia. Já era a
Guerra, inverno (1941-42) [...] (tradução nossa).12  

Marthe segue sua descrição do período com Charlotte e acentua o constante bom
humor da artista. Ela diz que se perguntava por que aquela jovem procurara um lugar
distante de sua família para pintar sua vida, ao que a própria Charlotte respondeu dizendo
que seria impossível pintar com tranquilidade cenas de sua vida estando “sob o olhar de
qualquer um de seus familiares".13  

A carta é rica em detalhes. Conta que fazia frio e, vez ou outra, ela oferecia uma
sopa a Charlotte, momentos em que tinha oportunidade de conhecer uma nova pintura no
cavalete. Diz também que Charlotte lhe falou de um importante maestro e de uma grande
cantora, mas afirma não se lembrar do nome dessas pessoas.

Ainda nessa primeira carta, Marta Pécher fala sobre o caráter de Charlotte, que se
teria apresentado às autoridades francesas para se identificar como judia. Como parecia
ariana, ou uma gretchen,14 Charlotte jamais seria identificada como judia. Tanto é que, ao
 

12
! “Nous avions, mon mari et moi, un petit hôtel (“Belle Aurore”) sur la Côte d’Azur, à St. Jean Cap Ferrat. Un
jour une jeune fille est venue louer une chambre. C’était Charlotte Salomon. Je ne me rappelle pas
exactement, mais je crois qu’elle a passé 2 ou 3 mois chez nous. Tout le jardin et les terrasses ensoleillés
étaient à sa disposition mais elle ne sortait presque jamais de ça petite chambre (Nr. 1, au premier étage)
qui donnait à l’ouest. Elle paginait tout le temps, toujours em chantonnant. Nous nous demandions quand et
si elle mangeait, quand et si elle dormait. C’était la guerre, l’hiver (je pense 1941-42)” (Molinari, Cartas de
Marthe Pécher [...], 2012c, p. 1).

! 13 “sous les yeux de quelqu’un de sa famille” (Molinari, Cartas de Marthe Pécher [...], 2012c, p. 2).

! 14 Termo que, para os nazistas, identifica a raça pura.


17

se identificar, foi orientada a entrar num ônibus que levava prisioneiros a um campo de
concentração, mas um soldado a fez descer rapidamente. Quando Marthe Pécher lhe
perguntou por que se havia identificado, ela lhe disse que era uma questão de ética.

Tempos depois, Charlotte avisou Marthe Pécher e o marido que iria morar com
amigos em Nice, momento em que se separaram. Mais tarde, St. Jean Cap Ferrat foi
evacuada e minada. Sem ter tido mais notícias de Charlotte, veio viver no Brasil com o
marido:

Nestes 40 anos, eu sempre pensei naquela jovem admirável e pura que,


sem nenhum dote, pertencia à categoria dos “justos”, pouco presentes no
nosso mundo moderno (tradução nossa).15  

O que mais chama atenção é a forma como Marthe Pécher descreve Charlotte:
cantando, sorrindo, de excelente humor – muito diferente do que sugere a densidade de
sua obra. Nas palavras de Marthe, Charlotte tinha muita clareza de sua própria vida, de
suas conquistas, experiências e vivências e queria realmente se comunicar.
Definitivamente, isso muda a perspectiva de análise de sua obra, por exemplo, quando se
vê, em seus esboços e escritos, como ela organizou seu roteiro. Podemos afirmar que
esse trabalho não resultou de uma grande catarse, mas de um encontro com um estado
de ser mais centrado, seguro, que permitia fazer planos e partilha com os demais.

Em outra carta, enviada em 13 de dezembro de 1981, Marthe conta que Lotte (é


assim que ela se refere à artista) viveu com eles entre o outono de 1941 e o verão de
1942, fazendo alusão a fatos que a fazem crer nesse período. Um deles merece ser
relatado. Ela conta de um casal conhecido – os Astier – que se hospedou no quarto
contíguo ao de Charlotte e que falava de seu constante canto. Esse fato lhe lembrou
vagamente o início da estadia da artista na pensão, quando esse constante cantar
também lhe chamara atenção e voltava-lha agora à lembrança pelas conversas que
inspirou. Da saída de Charlotte, ela se lembra bem. Neste ponto, importa ressaltar que
novamente o canto aparece como condição da criação em Charlotte.

Em reposta a Gary Schwartz, que lhe agradece a ajuda e o acolhimento prestados


a Charlotte, Marthe diz mais uma vez da forma como ela teria sido poupada até que
concluísse seu trabalho:

! 15
“Pendant ces presque 40 ans j’ai souvent pensé à cette fille admirable et pure qui, sans aucun doute,
appartenait à la catégorie de “justes”, si peu nombreux dans notre monde moderne” (Molinari, Cartas de
Marthe Pécher [...], 2012c, p. 2-3).
18
O senhor me agradece por ter feito algo por Lotte, mas eu não fiz nada por
ela. Quem verdadeiramente fez muito por ela foi esse soldado
desconhecido que a fez descer do ônibus de deportação. Graças a ele, ela
pôde continuar seu trabalho. Esse homem arriscou sua carreira. Eu espero
que seus superiores nunca tenham descoberto (tradução nossa).16  

Marthe fala da violência daquele momento de Guerra no sul da França e da


movimentação dos que compunham a resistência, de que se declara parte, junto com o
marido. Nessa carta, ela desenha o panorama local quando Charlotte se foi e explica que
nunca soube exatamente para onde porque não era prudente manter endereços de
judeus entre seus pertences. No entanto, ela imaginava que voltaria a rever a moça
depois da Guerra.

Na carta de 7 de fevereiro de 1982, Marthe Pécher está muito agradecida por ter
recebido o livro editado por Gary Schwartz e diz que o leu e releu profundamente
absorvida pela vida e pelo trabalho de Lotte.17 Afirma que, apesar da distância física,
 

sente-se interiormente muito próxima da artista. Importa citar o que diz Marthe Pécher
sobre o efeito desse trabalho no espectador:

[...] suas pinturas vistas separadamente não produzem o mesmo efeito que
a série completa. É a sequência que cria a impressão de participar
diretamente da vida de Charlotte. Frequentemente, com uma simples
pincelada, ela consegue produzir um estado de ânimo, criar a atmosfera de
um acontecimento (tradução nossa).18  

Sublinhar a sensação criada pela obra é um caminho traçado ao longo desta


jornada. O ato de sublinhar liga-se à importância de Charlotte cantar enquanto pintava, e
voltaremos a isso adiante. Por ora, registre-se outra frase de Marthe sobre o quanto ela
aprecia mais a obra por conhecer as condições em que foi pintada: Lotte não tinha o
tempo de pensar a forma, queria chegar a transmitir o conteúdo. Marthe se pergunta que
artista seria Charlotte se tivesse vivido mais tempo e comenta que ela possuía uma

16
! “Vous me remerciez d’avoir fait quelque chose pour Lotte. Mais j’ai ne rien fait pour elle. Qui a vraiment
fait beaucoup pour elle c’est ce gendarme inconnu que l’a fait descendre du car de déportation. C’est grace
à lui qu’elle a pu continuer son travail. Cet homme a risqué sa carrière. J’espere que ses chefs n’ont rien
découvert” (Molinari, Cartas de Marthe Pécher [...], 2012c, p. 6).

17
! Molinari, Cartas de Marthe Pécher [...] (2012c, p. 8).

! 18
“Ses peintures, vues chacune séparément ne produisent pas le même effet que leur série complète. C’est
leur suite qui crée l’impression de participer directement a la vie de Charlotte. Souvent, avec un simple coup
de pinceau, elle réussit à rendre un état d’âme, a créer l’atmosphère d’un événement” (Molinari, Cartas de
Marthe Pécher [...], 2012c, p. 8).
19

profundidade e um valor humano que são indispensáveis para ser um grande artista.
Sobre sua aparência, Marthe diz que Charlotte era muita mais bonita do que se retrata.19  

Outra afirmação importante para este estudo é sobre Alfred Wolfsohn,


representado pelo personagem de Amadeus Daberlhon:

Depois de ler a introdução, fiquei curiosa sobre “Daberlohn”. Naturalmente,


o que o livro nos dá é o reflexo de suas ideias na mentalidade de Charlotte.
Algumas são bem bonitas (tradução nossa).20  

Esse comentário de Marthe Pécher é o que sustenta a hipótese deste estudo e


que, no decurso da investigação, vai surgindo pouco a pouco e animando a busca
necessária.

Na mesma carta, Marthe volta a se perguntar sobre o período que Charlotte viveu
em La Belle Aurore e comenta: será que ela teria pintado antes de estar conosco? Será
que ela começou a pintar sem cantar e por isso eu só me lembro dela depois que esteve
ao lado dos Astier? Acrescenta: “penso que não; penso que ela pintou tudo enquanto
estava conosco, mesmo tendo assinado St. Jean, 1940-1942. Marthe sustenta essa ideia
argumentando que Charlotte se equivoca nas datas ao contar os fatos históricos.
Tratando-se de lembranças com tamanha carga afetiva, parece prudente manter a dúvida:
a artista se enganaria quanto ao começo e ao fim de sua obra?”21  

Marthe Pécher diz que viu no cavalete de Charlotte uma pintura dela ainda bebê e
mais uma vez propõe a pergunta quanto a sua permanência. Esses rasgos de memória
são importantes porque demarcam a lembrança de Charlotte associada ao canto. Marthe
recorda o tempo da pintura enquanto ela cantava e afirma que cantava todo o tempo.

São Paulo, 10 de maio de 1982. Nessa carta, Marthe Pécher agradece muito a
Gary Schwartz o envio de quatro exemplares do livro e diz que se empenhará em torná-lo
conhecido, e à obra. Ela o felicita e lhe agradece por convidá-la para visitá-

-lo na Holanda, mas declina não por falta de vontade ou de dinheiro – a idade já lhe pesa.

19
! Molinari, Cartas de Marthe Pécher [...] (2012c, p. 8).

20
! “Aprés avoir lu l’introduction, j’étais curieuse de “Daberlohn”. Naturellement, ce que le livre nous donne
c’est le reflet de ses idées à lui dans la mentalité de Charlotte. Certaines sont bien belles” (Molinari, Cartas
de Marthe Pécher [...], 2012c, p. 8).

! 21 Molinari, Cartas de Marthe Pécher [...] (2012c, p. 8/10).


20

Finalmente, fala de sua gratidão pela generosidade e pela dedicação de Schwartz ao


publicar esse livro e presenteá-la com os exemplares.22  

Numa carta de 25 de maio de 1982, a Congregação Israelita Paulista, representada


por Michael L. Pinkuss e Walter Rehfeld, envia a Gary Schwartz uma carta de
agradecimento pela doação do livro, que lhes chegara através de Marthe Pécher.

Quase um ano depois, em 13 de março de 1983, Marthe envia uma carta de seis
páginas datilografadas para contar suas experiências como integrante de la resistence. O
material é rico de detalhes e se prestaria a uma nova investigação, mas, entre tudo o que
nela se conta, destacamos um comentário sobre o que acontecia na América Latina
naquele momento. Marthe Pécher compara o que vivia então com os horrores da guerra.
Em particular, ela menciona o conflito entre a Inglaterra e a Argentina, que reclamava seu
direito à soberania sobre as Falkland Islands (ou ilhas Malvinas), e a pobreza que
grassava nas ruas da cidade de São Paulo. Afirma que, apesar do futebol e do Carnaval,
com toda a miséria e a corrupção que imperavam, não seria possível deixar o povo sem
resposta durante muito tempo e também que sentia suas entranhas tal como na Guerra:
reviradas. Volta a falar sobre o destino dos livros que ainda estão em sua posse e se
despede de Gary Schwartz. Embora diga pouco sobre o objeto desta pesquisa,
mencionamo-la por seu possível valor histórico.

As cartas posteriores datam de 28 de janeiro de 1984, 3 de maio de 1989 e 10 de


maio de 1991, e há ainda uma de 26 de abril de 1989, em que o Museu Lasar Segall, em
São Paulo, agradece a Gary Schwartz pelo exemplar de seu livro, que Marthe Pécher
enviara à instituição.23  

As informações de Marthe Pechér são muito valiosas, sobretudo a informação de


que Charlotte Salomon cantava todo o tempo em que pintava. Antes de suas cartas,
algumas perguntas ficavam sem resposta. Especialmente: como se pode ter criado a obra
através da voz, se não havia som? Qual era essa tal voz criadora?

Todo esse material dialoga com o que se discute nos capítulos seguintes.

"
! 22 Molinari, Cartas de Marthe Pécher [...] (2012c, p. 15-16).

! 23 Molinari, Cartas de Marthe Pécher [...] (2012c, p. 19/37).


21

4 MUNDOS POSSÍVEIS ENTRE A ALEMANHA E A FRANÇA

Suas pinturas vistas separadamente não produzem o


mesmo efeito que a série completa. É a sequência que
cria a impressão de participar diretamente da vida de
Charlotte.
Marthe Pécher

A obra de Charlotte Salomon guia nossa percepção, move nossa imaginação,


rompe o tempo e inscreve a voz como fundadora da criação artística.

Compartilhando a crença expressa na epígrafe de Marthe Pécher, é imperativo


apresentar a obra de Charlotte Salomon antes de analisá-la.

É uma obra audiovisual porque convoca todos os modos de recepção e percepção.


É uma obra em performance porque conta com a ação de quem a recebe e, portanto, a
reinterpreta com o conjunto de suas percepções.

Essas propriedades sugerem a necessidade de se expor o conjunto de todas as


pinturas, projeto que não se concretizou até hoje. Dada a delicadeza do material, as
exposições são sempre de pinturas selecionadas, de modo que os olhos que as
selecionam impõem um certo recorte. Seria ótimo ver a totalidade do trabalho, e com a
música que Charlotte Salomon sugere. Hoje, há dois modos de apreciar a obra completa:
na edição de Gary Schwartz e visitando o sítio do Joods Historisch Museum (Museu
Histórico Judaico de Amsterdã), cuja versão digitalizada permite ver o verso dos quadros
e ouvir as músicas com as frases pintadas por Charlotte gravadas no original, em alemão,
ou na tradução em inglês. Ao longo desta pesquisa, traduzimos toda a obra para o
português.
Um seleção esteve no Brasil em 2002, no Centro Cultural Brasil-Alemanha de
Recife, mas, na época, ainda não sabíamos do trabalho de Charlotte Salomon. (Tomamos
conhecimento dessa e de outras exposições durante a pesquisa.)

Tivemos oportunidade de visitar uma exposição realizada em São Francisco, nos


EUA, durante o período de nossa busca. Assim, a Figura 1 mostra fotos do livro de
visitantes, para dar uma ideia do alcance da obra, ainda que em recorte.

Como parte desta pesquisa, escrevemos ao Museu Judaico de Amsterdã, mas não
obtivemos resposta. Entretanto, a guia da exposição em São Francisco foi bastante
22

solícita, e, numa longa conversa com ela, percebemos que a figura de Amadeus
Daberlohn/Alfred Wolfsohn não é objeto de atenção particular. Considerando a
importância que lhe deu a própria Charlotte, é de estranhar, sobretudo porque, no
máximo, ele é visto como um possível amor da pintora e um personagem enigmático.

A obra de Charlotte Salomon já inspirou o cinema, o teatro, a dança e a música,


como atesta uma rápida busca em espaços virtuais.

Depois de navegar por muitas delas, constatamos que, assim como o legado de
Alfred Wolfsohn através do Roy Hart Theatre e de suas aulas de voz, a obra de Charlotte
Salomon mobiliza no espectador algum conteúdo interno que o leva à necessidade de
expressar-se, seja num simples apontamento no livro, seja, no outro extremo, na criação
de outra obra de arte.

Na impossibilidade de transcrever aqui essa obra, sugerimos uma visita on line ao


Joods Historisch Museum (s.d.).

A força que emana de Leben? oder Theatre? ein Singspiel, de Charlotte Salomon,
reside na aplicação de uma forma de ver a arte que começa em Alfred Wolfsohn, como
veremos.

"
4.1 Alemanha e Inglaterra: uma viagem órfica

Em Orpheus: oder der wegzueimer maske, Alfred Wolfsohn ganha voz e expõe
suas conjecturas, suas ampliações de conceitos e suas hipóteses de uma voz fundadora.
Para comprovar suas hipóteses, recorre a uma avalanche de ideias em que se mesclam
Carl Gustav Jung, arte italiana, literatura russa, cinema e tecnologia, buscando as rotas
de atração e as linhas de fuga que constroem nossa cartografia. Essas hipóteses podem
ser sintetizadas numa pergunta – se Deus não existe, de onde vem a arte? – e em sua
resposta – de algum lugar que a voz pode dizer qual é. A voz descortina sentidos: a
resposta deve estar no lugar onde ela nasce. Segue-se, então, a busca desse lugar, que é
representada pelo mito de Orfeu. Daí o nome Orpheus: oder der wegzueimer maske, que
significa Orfeu ou o caminho para a máscara, e que Wolfsohn passa a chamar de centro
energético.
23

Os conceitos explorados em Orpheus passam pela voz sem gênero e, por


consequência, por um desenvolvimento vocal que explora uma extensão de até oito
oitavas, inspirando a ideia do pensamento como voz e do silêncio como voz. Para isso,
Wolfsohn esclarece o tipo de escuta necessária para tal voz, que perpassa o que ele
concebe como arte, fala do fenômeno da criação e aponta relações com a psicologia, tudo
permeado pela presença do canto e da música.24  

A leitura de Orpheus: oder der wegzueimer maske é já uma experiência de


sabedoria, mas sua força se potencializa quando se lhe imprime a experiência da voz cujo
caminho de encontro Alfred Wolfsohn ajudou a traçar. Partindo de suas conjeturas,
Wo l f s o h n t r a ç o u e s s e
caminho de encontro com
essa voz que descortina o
s e r, q u e r e v e l a , q u e
constitui, que é una com o
corpo, que é espírito, que é
a própria essência
emanada.

Charlotte Salomon lê o
Orpheus: oder der
wegzueimer maske e
conhece Alfred Wolfsohn.
Ele a faz crer que ela
precisa criar algo acima da
média (Figura 9) e fala-lhe
sobre as formas que ele
acredita indicarem o
caminho.

Figura 9 - Acima da média25 

"
24
! Sobre a escuta em Alfred Wolfsohn - há um artigo que sou orientadora, fruto do Grupo de Pesquisa em
Performance e Pedagogia Wolfsohn - GONZÁLES, Pablo; MOLINARI, Paula. Del desarollo vocal propuesto
por Wolfsohn/Molinari. São Paulo, Grupo de Pesquisa em Performance e Pedagogia Wolfsohn, 2013 .

! JOODS
25 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
24

As cartas de Marthe Pécher nos revelam que Charlotte Salomon não só traçou o
caminho no pensamento, no silêncio de seu recolhimento em seu quarto de La Belle
Aurore, mas que o fez com a intensidade necessária – cantou para construir sua própria
viagem órfica.

A figura de Orfeu, cuja voz encanta os deuses e vai ao submundo para resgatar
sua alma, é a representação do caminho para a máscara (Figura 10).

"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 10- O caminho
para a máscara26
 

"
"
"
Vejamos fragmentos do texto de Alfred Wolfsohn, que, ao longo, da tese
apresentaremos ao lado da imagem original, em alemão. Esse documento está no Museu

26
! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
25

Judaico de Berlim, e nos foi gentilmente cedida uma cópia digitalizada por Jay Livernois,
um dos diretores do Centre Artistique International Roy Hart (CAIRH), que também a
mantém em seu arquivo pessoal, bem como no do CAIRH.
Cartreos Eigentiinlichtreitl einen hohen Ton rllt gesenkteu 5.ouf ao'&&-
setcenf rlrd deq erlaoerlich sein, der thn auf der lliihe eel'nes
Segue-se a tradução do alemão ao espanhol, que devemos à Profa Dra Anabelle
Hrhase gchiirt hst. In letzter Zeit beiolgte er folgende Praxiel
er setrte den hoben Ton in tlcr en*;ihnten lr'eise ans einen Funs reit
vor dem anderin geeetzt, denn - w€rlFr er den I'on sicher hatte, rarf
Contreras Castro, da Universidad Nacional de San José (UNA), na Costa Rica, em
er getegentllch den lGpf aurtick, ur* den ?on aufgteigen au lassen,
rie ee nur ein Canrso-Ton verrtocltte.tr
Yon dea Bitde aus betracht{ das ich als Ausgangsptrnki fiir
tradução nossa ao português.
den Versuch eiaer fiaretellung des 3.'ongeheimnisse6 Serltr$rnec habeq
lte* auch bier etoe aeelisehe Spannung vor, nur mit den Untereehied,
daes ste n{cht dasu dient, um wie der }ichter ee ausdriiEkt nnach
Eause au.fliegeo'. Sie iet beetinntr sieh in rlie Umgebang au begeben,
zun hiirendca henscben bio, der in eeined Geschlecht getroffeq
Adotamos esta sequência para que se possa acompanhar a trajetória das
F€rd€n soll. S1c bat nichte mit der I'orstellung dee $ichtere su
tun, der eeiae S+eIe als Tgundervogel die Schwingen ent,falten lSsstn
daxrit sie zu ihr@ Sel.bet f{*de, sowie es lterqbrandt in ilDavidt'
traduções. A númerodargeetellt
de página hat. corresponde ao do documento digitalizado, mantido em
Dle Grtisse der Bedeutung eines Sd*gers ist eic b.et iedem
arquivo pessoal e citado
Eitaetler em português
abbing:ig (Molinari,
voa d€s Begriff 2013)
der 'rSp*nnweit.err t istou
bei em
lhn espanhol (Contreras
darin unrieterr, lrrierueit er aIIe Spannrrngsauetdnde awlsehen forte
und pi.aao behcrrsebtt eo nie die Stinme Gottes aLcht nur aus dor
Castro, 2013). breaseoden Dombuscb heraugzucktt wie er nach den $orten der
Schrlft nicht, Ln Stura:es ni.eht im llrdbebent nieht im Feuer,
sondera in eiines stillent sanften Sduseln sar und zu clen Ftenschen
sprach. Dieee Spanuung$reite besirkt inr Verein nrit der Konaen-
tration deo .f,usdruck. Jede eehiipferische T;itigkeia - und. daruater,
fellt aucb dae Singen ; hat nur einen $innr nur die eine Ziel-
"
richtung: Auedruck zu aehaffen.
Xichts hat riich fiir alle liiihe und Eeschvernisse bei derr: "
Yersucb, hinter das Geheinaie dee Singena au kormenl so se+hr ent-
sebiidigt als die Entdeckungt daes das! was ich einseitig als "
iibertrageren Eegriff dee ilAusdrucks|f 1n eeiner geisiigen Eledeutung
errpfaad, io eigentlichen Sinne ge&onunen serden au"qste. "
ta'n"o ndral!g! klang der Ton der menechlichen $tirune ausdrrueksvoll,
rcnn es gelang, mlt der richtigen Fionzentration und $panrrung
thn kiirperlLch auszudriicken, $o ger:ingfiigig es erscheinen magf
"
wichtigsindnurdiese dreiFal:toren: KON EENf ttAT I Oll
I l{ T F, H S I T K t und ale Fo1ge von ihnen A U S D R U C K
als Eleaeste des Singene gu bezeic"hnen,., Jetler'"i'ort,sctr.crtun urrl
"
einen Ersatz fiir tliese Elementr) zit liorrst,ituieren, liuf"t auf $chauru-
scbllgerei binaus. "
i:=er ei€ ich iiberaeugt ist r dass es gerade die einfaeh*ten
Ilinge sindrdie die echwereten Proble*e in eieh tragent weies aucht
dasg ihre Behe*sehung zum ersehnten Ziele fiihrt.
"
zus{rrwoenfaseenrl llrnen das tlild der Siingerin -
habe ich 11
Und sunFigura
der Sdagerlnrrrell - Fragmento
es augleich de Orpheus
Ihren l"alL darstellt -A
- zu entwerfen"
Dazu l*ge lcb lbnen die Abbildung einer Pl.astik rrorr dle von

" ihres Urhober alenPortriitxstudie F,u einem singendo:n i-?snsgfusn tt


beseichnat sarde; und halte den Kopf des jungen iiavid eur* dem

" Renbrandschen Geadlde'"d.iigegen.


fch sar bel vielen Sitzungen der Siingerin, die dae Ftodell
fi,ir diese $tudie abgAb, zugegen und ceLee, unter uelchen Qualeat
unter welchea Gebdrschmeraen dleses !{erk entstand. Iclr war Zeuge,
Nada
sie der me temdieser
Eildner recompensado
PLastik verzagte mais o esforço eirmxer
und veraweifeltet as dificuldades de tentar ir
von neuen in ei.nen Abgrund versinkend, der sieh auftatr wenn er dag
atrás do $,iingerin
Gegicht der segredo Eich do canto;indern
unabliiserig do eah,
quen'enn
tercliedescoberto
Ziige que o que eu,
wenn er i.nst!"nhtiv
unilateralmente, percebi
ihrer Phyelognonic undurehdringltch como o
wurdenr conceito transferível
empfand, das Soecntli.che rnusete es seln, die Traneparenz der $tusi'ht
de expressão, em
seu
fiir diesignificado
dae Geeicbt espiritual, deve
nur Gefdes warr ser tomado
aufaufanp;en em sentido
und geetatrten zu estrito. Quer dizer,
kiinnen.
soa o tom da voz
Urspriinglich humana
sar die Plastik. de
nichtforma expressiva
als Studie au elnern quando
eingenden se consegue, com
adeaconcentração
Hensehen e a
gedaeht, eandern als Fortrltbiiste
tensão corretas, $dngerin' Erstcorporalmente.
derexpressá-la ln Ainda que
Augenbliek, als Jederrnann den Kopf dariiber schiitte3ten daee
pareça insignificante, é importante assinalar três fatores:
ral

CONCENTRAÇÃO, INTENSIDADE e, como consequência deles,


EXPRESSÃO, como elementos do canto. Qualquer termo que substituísse
esses elementos seria evasivo (Molinari, 2013, p. 31, tradução nossa).27  

Para Alfred Wolfsohn, o canto vem de um centro de energia que é responsável pela
manutenção da vida. Ele mesmo faz a tradução intersemiótica (Plaza, 2003) quando, para

27
! “Nada me ha compensado más el esfuerzo y las dificultades de intentar ir tras el secreto del canto que el
descubrimiento de que lo que yo, unilateralmente, percibí como el concepto transferible de “expresión”, en
su significado espiritual, debe ser tomado en su sentido estricto. Es decir, suena entonces el tono de la voz
humana de forma expresiva, cuando se logra, con la concentración y tensión correcta, expresarla
corporalmente. Aunque parezca insignificante, lo importante es señalar esos tres factores:
CONCENTRACIÓN, INTENSIDAD y, como consecuencia de ellos, EXPRESIÓN, como elementos del canto.
Cualquier vocabulario para sustituir esos elementos resulta resbaladizo” (Contreras Castro, 2013, p. 31).
26

expressar-se, recorre a suas conjecturas sobre a obra Deus e a criação do homem, de


Michelângelo, por exemplo.

"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 12 - A criação do homem28
 

! 28 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


27

"
Nossa leitura do texto de Alfred Wolfsohn foi constantemente interrompida pela
necessidade de rever um quadro ou uma escultura ou escutar uma música a que ele faz
referência para construir o sentido que, incansavelmente, se propõe a nos levar a
absorver. Eu mesma me vi impelida a ver a pintura original de Michelangelo para absorver
cada palavra de Alfred Wolfsohn. Das seis horas que passei no Museu do Vaticano,
dediquei três à observação das pinturas da Capela Sistina. Dois anos mais tarde, tendo
relido o texto e encontrei outras necessidades e outros significados, voltei para observar
novamente.

Isso mudou muitos aspectos da minha compreensão do texto de Alfred Wolfsohn, e


muitas imagens de Charlotte Salomon inspiradas nessa pintura também passaram a se
presentificar diante de meus
olhos. A influência dessas
ideias está em mais de uma
tela. Vejamos.

"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 13 - Posição
das pernas - A29  

! 29 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


28

"
"
Figura 14 - Posição das pernas - B30
 

"
"
"
"
! 30 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
29

"
"
"

"
"
Figura 15 - Posição das pernas - C31
 

! 31 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


30

"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 16 - Posição das pernas - D32
 

! 32 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


31

Na esteira dessa mudança, também mudaram minha escuta – do mundo, da arte,


da música e da voz, além da forma de estabelecer relações com meus alunos. Naquele
momento, eu sentia que tudo aquilo era essencial para o que eu imaginava ser uma
pedagogia da arte. Sem ter ainda formado uma ideia clara, formulei a hipótese de que
haveria uma pedagogia a ser extraída de toda essa experiência. O caminho que Wolfsohn
apontava eram o da concentração e da intensidade.

A concentração e a intensidade a que ele se refere são buscas que descreve na


sua experiência com
ltanobetrachte
amigo d1eescultor quederoFlenschen,
Gesichter conduzira à experiência da máscara. Esse
wenn sle d.ir Arbeit sei
Leistuog thres Lebens voLlbracht haben; se!.bet in den.li.igen des et,er-
escultor lhe colocoubeaden
o gesso para captar
und gestc'rbenen sua expressão
Antlltaes, – de concentração
dae gekennzeichnet wLrtl von der e intensidade
EoIl.en, .las Leben noch einmar zun Ausdruek zu bringen, mijseen
rir jenen zug entieekeo, dereune gtittlichenAntes
– e ele pudesse vê-la na kiindet.
selbst máscara. 33 Mas
 

L'ad nur esse


den centro? de ir à máscara, voltemos
Ernst unseres
dann taucht das Ldcheln der ,seligceit
auf, renn es gelungen ietr den Einklang dee Lebensstromee mlt
ao significado dessedeecentro
Fieer dermencionado por Wolfsohn.
gricireit zu fl.nden.
Aber vielleieht brauehe ieh nur
Ibre eigenen Fori.e binsueetzen, die Sie friiher elnmal au{" rroeine
Bitte' rhre Gedarkcn iiber den $ingevorgang bei rhnen niederguscbrel-
Alfred Wolfsohn fala nisso
ben, gefunden num
haben, und depoimento emdie
dr.e ich rhnen fiir que associa o mergulho na voz a
Betrachtung
tsilder cles siogenden lr{enechen in Erinnerung brJ.ngen silL: di.eaer
um mergulho em território profundo, o lugar que ele buscava, um lugar que parece ser a
*Fa-h.renc der Behandlung einer tlerzneuroee in elner J,rngeehen
ic,ai3'se r-rrder- mit mir versenkungeiibungen genacht. rch *urdc ar-
efervescência da criação. É como
gehal'ten, u"icb' auf denum grande
inneren vulcão
Atern z,u cuja erupção
konzentrieren. Da i.cb bis
precisasse de um
ca!.r: arrr in einer Bezogenheit aur Aussenselt gelebt hetrter n&r
motivo: suas profundezas senach
dieaer "3'an: movem, e arnich
innen fiir vozeinsaieusserordeitlich
com tanta informação
Iebcie. Icn schaute Bilder, die aus einer ander.en i'ielt starkes Er- que jorra criando
krrn*en,
und erf,*r l"oo eiser Tiefe, in wetrche diese Bilder ihre ?l,ntstehuung
novas formas, novohatiea.
território, nova geografia de ser.
reh begriff arso, daes durclr Konzentration des .4terce
auf eia zentru.m, das unterhalb meines Ewerchfelles l;lg* ei.ne
Birdersprache z,trn Reden gebracht rvurde, die aus deg Kantakt r:nlt
den Uabercrsstes hergeetellt, eine eeelieche Entrvicklung eret er-
eij glicht e .
"
Ale icb siogen lernte, begann noch einmal die Kcnzent,ration
auf jenes geheirnnisvolle Zentrun. AIs ich angehalten wurde, meine "
Aufeerksankeit auf das FJoher des ?oncs zu trainieren, erlebte ieh "
auch dea Ausgangapunkt dee gesungenen Tones an der gleiehen stertre.
Ee s'-rrde sir nit der zeit Lnmer klnrer, dass in der }intxicklung
neiner Stinsre ;ihnliche Hege eingeechlagen g,urden wie in der Tiefen_ "
psyihologie. fn dieser Fthrung au den Quellschichten, die auf den "
verschiedensten
hinleitete, fiel "Yegen
irsner zu dern Suchen des Auss:angsplnhtes
mir ein, daes der rnder von dem erstei chakra
spricht, deRa Ausgangepunkt cles Lebens, dort r*o die schla*$e Kunda_ "
lini noch zusammengerollt liegt untl ihre erste Be.,+esun$ biginnt.
Eei dieser Xntrvicklungsarbeit an drir irenschlichen Stirr.'re kann der "
singende inster weiter in die Tiefe seine.s Kdrners ei*dringen "
und so zu dem neuen unbekannten tilang seiner Stimne kofl:men, welchen
der Singende zuhtirt, ale hijrte er eine frecrde Stirune. Aber eret
dortr wo erfahren wird, dase Es elng'd , ict der Kindheitec*stantl "
irr lcri'aebsenen wieder hergestellt, cier wirklich schiiyrf eriache Eu-
stand des Henschen iiberhaupt' D;rnn aber kijnnte er aueh die Gerviss- "
heit haben, dass das Es irn Hijrencien aueh hijrt, und rlamit erfiillte
dann cie Kunst die gleiche Funktion wie <iie Religion, ctri^e* indem "
sie eich an die Tiefensehieht in }lenschen rvendet, zur l.ert.iefunge-
erhiibung f iihrt.rl "
"
"
Figura 17 - Fragmento de Orpheus - B

"
! 33
Como pesquisadora, refiz essa experiência com uma escultora. Fizemos a máscara cantando e sem
cantar, e a expressão da máscara com som era muito diferente da outra. O resultado chegou a ser
assustador porque era um som sentido e cantado dentro e que se via fora, na expressão.
32
Quando aprendi a cantar, começou novamente a concentração naquele
misterioso centro. Quando detive minha atenção a onde treinar o som,
experimentei também o ponto de partida do tom cantado nesse mesmo
lugar. Com o tempo, vi cada vez mais claramente que, no desenvolvimento
de minha voz, tiveram impacto caminhos semelhantes aos da psicologia
profunda. Nessa direção aos estratos da fonte, que, pelos mais distintos
caminhos, sempre levam à busca do ponto de partida da vida, ali onde a
serpente Kundalini ainda está enrolada e começa seu primeiro movimento.
Nesse trabalho de desenvolvimento da voz humana, o canto pode penetrar
cada vez mais no mais profundo de seu corpo e, assim, chegar ao novo
som desconhecido de sua voz, o qual você escuta como se escutasse uma
voz estranha. Mas só aí, onde se experimenta que se canta, se
restabelece na fase adulta o estado da infância, o verdadeiro estado
criador absoluto da pessoa. Logo, eu podia ter a certeza de que ele se
ouve em quem escuta; com isso, a arte cumpriria a mesma função que a
religião, aquela de levar a elevar ao aprofundamento, na medida em que
se dirige ao nível profundo das
pessoas” (Molinari, 2013, p. 36, tradução
nossa).34  

São tantas as vozes que se


descobrem... Alfred Wolfsohn declara
ser essa sua nova religião, e Charlotte
o pinta em completo êxtase, feliz com o
que constata, certo de suas conjeturas,
livre.

"
"
"
"
"
Figura 18 - A nova religião - A35
 

34
! “Cuando yo aprendí a cantar comenzó de nuevo la concentración en aquel misterioso centro. Cuando
detuve mi atención a desde dónde entrenar el sonido, experimenté también el punto de partida del tono
cantado en ese mismo lugar. Con el tiempo ví cada vez más claro que en el desarrollo de mi voz me
impactaron caminos similares a los de la psicología profunda. En esa dirección hacia los estratos de la
fuente, que por los más diferentes caminos siempre llevan a la búsqueda del punto de partida, se me ocurrió
que los hindúes hablan del primer chakra, el punto de partida de la vida, ahí donde la serpiente Kundalini
aún está enrollada y empieza su primer movimiento. En ese trabajo de desarrollo de la voz humana el
cantante puede penetrar cada vez más en lo más profundo de su cuerpo, y así llegar al nuevo sonido
desconocido de su voz, el cual escucha como si escuchara una voz extraña. Pero solo ahí, donde se
experimenta que se canta, se restablece en la adultez el estado de la niñez, el verdadero estado creador
absoluto de la persona. Luego, podría tener la certeza de que ello se oye en quien escucha, y con eso el
arte cumpliría entonces la misma función que la religión, aquella de llevar a elevar la profundización, en
tanto se dirige al nivel profundo de las personas” (Contreras Castro, 2013, p. 36).

! 35 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


33

"
"

"
"
Figura 19 - A nova religião - B36
 

! 36 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


34

"
" !',innr;il lag iclr an St,rantle unel versuchte Fleditatiorriibungel,
inde:? ich bcstj*ilig auf ncinen lialre 1 starrte. Il*s }iesultat rliescr -4V
Ubungen ircsda-n{i ri;rrirr, r-iass ich schti.esslich entdec!;r.:n nusste, rier
NabeI se i riit !iat,te t'r'rrsto:rf t. So nusrte ich cli+von rl,bstand !:iehrrlcnt
Ea máscara?in die lrirtrlisclle Seligkeit cinzugehen, urrd nich dacrit :ad trijs1cn,
$as$ nan erst ar:farlgen r:ussr den irdischen $chnutz, der sich arr Cen
verborgensten Siellen einsc_irleicherr ll*rrn, zu entfernen.
" ' Aber das $ingen ist nieht so schrirer. i"lan niirss niclr nur clar;rn
ger"-bl-rit harbcn, e.'ie Cirs Gesicltt rnit Gills eingesc'ift sirrl . A?:er in
" denir .l,rgenblickl in der der llild}:auer mi-t dieser Arbeit auflri:irt, geht
eEr
ils ist noch nicht ganz das l5chtigef wen$ rnen sich befiehlt,l
ilSinge jetzt!$ Z'.ar singt mnnr aber nobenher liiuft eine Verstandes-
tdtigkeitr die mit aIler Gevralt einen einreden vill, wie slnrrlos rlie
Ti;ne sinrl , <lie r.ran zu fassen versucht. Dariiber hinneg hilft, dass
r-,an die Aup;en vor Cen ilruch der GiFsnasse irrr*er fester echliessen
i'!:us-q. Jet:rt sehen sie nichts mehr, ictzt sind sie tot, in einen
.:'b3-r:rirl gefallent aber ich spiire sie, rvo sie liegen gebliebcn sind,
tief unteq im Leiir, ar ciner llanz l:estiranten Stel]e.
Ich trin sehr gliiclili.ch als ich rich dort finde. fch habe allcs
verge.ssen bis auf das eine Gefi.!h}: jeizt sirrgt ee, Aben mer.ki..'i.irdi.ger-
rseise sind, es keine Lieder'f sonderr. die letr.terr $;ttze von $i5,'mphonien,
Allegrcs t;t::rcialesr riie vort'iiirts sti-irren. Zwi-*trretrd-i.rr.ch aber erhebt
sich tler San; der Geig;e alls dein f iolirrKoirzert von Beetlroven, erst
"
tjer ni.ttle:'eFigura 20 dann
?ei1 ir*C - Fragmento de Orpheus
der Schlussatz. - C37sind die ?iotivc
Aber kaum  

clieser F,usik ztr linde gegarrgen, verrvanrielt sich ciie Geige ln rias In-
-qtruiiient ces Zigetrners, der die i?eite seincr ir,bene in die nielancho-
"
lisciren lellen seines i{hythmus ur*setzt. Ich einge eler Geige Kreis-
lers nitcit, rie ich sie vor langen Jahren in deni Grairn'lophsnsalon rrir
li;:hc
Mas vorspielea
cantar não lassen. Ich einge
é tão difícil. die ileloclie
É questão des rrCapriee Yiennoj.sfl
de acostumar-se, como quando o
ihn n.reh und empfinde in der tiefen, sehsr-ichtigen I'telanehalle, class
sierosto é envolvidoaufv;iihlt
f ruchttragender com gesso. als jedePorém, no momento
optir:ristische $rrr*reloriie. que o escultor
em
Ilertermina
Stron seuversiegt,
trabalho,
ich sobrevém
kann es nicht o resultado.
verhinriern, Nãodassé de
auftodo correto quando
Selrurrdeo
ein rrinnerlngs!:iltl vor mir aufsteigt.
ordenamos:
Ich komne von irg;endwo her, xo ich jemand besucht hatrel rlen ich há uma
cante agora! Então se canta, mas, paralelamente,
atividade
froh r:achte.intelectual
Jetzt fahrequeich nos
in quer convencer
cie ltaeht zuriick,violentamente
froh, weil clie de quão sem
sentido
F're'-rde dieses
são l.lensclien
os tons queauf michemitimos. Mais
eh5Xefairbt hat.
queIcir
isso,binajuda apertar cada vez
in e ineci
i',agen 4. i:-lirsser vollgeetopft r::it liennchen, clie stehcn und.gich in
mais os olhos sob a pressão da máscara de gesso.
der !in1;e kau;: riihren ltijr:nen. feh stehe zrcischen ihnen eir:gelreilt. Agora não veem nada,
agoraLa=pen
T'r"iitre estão mortos,
schaffen einecaídos num Atrsosphdre.
uuwirkliehe abismo, mas Sersinto-os
(]ualm vo:ronde ficaram
f,igarren
repousando unrl Pfeifen legt sictr no
profundamente riie $rust'
aufcorpo, Ieh lralte
num lugar muitonich
específico.
nriih- Sou feliz
*:eliii iin einrlr.r Auf,hinger fest, unrl rioch tri.r ich gliieklich, rveil un-
quando me encontro
a.rrfhdrliel: licloclien mir ali. Esqueço-me de tudo, exceto
entstriinten, Sesilngen von den lnstrunent,en de um sentimento:
eiagora, canto (Molinari,
nes liar.rrnernrusi hquartett s.2013, p. 95, tradução nossa).38  

iiber riie vier fnstr[r:ente spielen nieht ausar:nen, die erste


Gei;.e lJsst allein riie iielcdie erliliugcn, rlann spielt *ie da,s Ccllo,
gcfoli:t von cier llratsche und der r:rveitc* Geil:e. Iirst naehclerr'i jerles
Sua experiência com aeinzelrr
!rrstrun:ent máscara seineéFielociie
indicadora de sua
atJsg€sur]6en hatncrença
f::ng;*n na
sie voz
an, que emana
sicl'l n.iiteinaneler au qerbi.nrle*. i,rvicl"lenrJureh ertiir.t clie Stirrrne cine6
também quando estamos$etrunlienen, ich rriclltmas
emclensilêncio sehen com a concentração
ki:nnr'dessen e a intensidade
Stirur.le aber ger':rrle
desvel;eii lrm $o eindringlicher xtein Ohr angreift, in reg;eh:nriseig
Itr-rrasn AlrstJ;:ilcn. iis ist cirt aLle s. ne€iierencler, rlurnglf er Aufsclrrei,
necessárias para expressar
der in tienalgo. A voz, no
ej.nzigen:Vort silêncio, também
rpaseiertfrbesteht fala.
unri in dieAo ver di.e
$tusil<n o resultado do
in r-rnd aus n:ir strij:*t, cine grelle Dis€onan; bringt. Dieses rtpassiertrt
molde, Alfred Wolfsohn
hat die percebe que Fiede.rtung
furci':tbare sua feição s [alles vergetre$$rr.
eineextraída no gesso tinha Alrer azuexpressão
rnriiner que
VerivirncJeru*g cin*:t scfort, wenn dieses sort gicfallen iet, Cie ernte
ele acreditava existir.Gei6e
Daí neue$
nossa Jrslauf, rx* sich
afirmação deinque eir,er sintrvcrrsimenden,
o pensamento e o insilêncio
Iiijhen sich erhcbc.tr{ien ?onfcl6;cn ausausi.ngen. l]unlc.e} und klaS;end
die hiichsten
também são
hebt sich clargegen eint' langsa.l*e lielodie rles Cellos, die die $tinxnung
voz, mesmo não vocalizados.
cles llortes n1:aesiert" edel u:i,rviudelt, bis die Flittelstimrnen ein-
fnllen, cli.e erste Geige untergti.it;r.en und rtas Cello zwingent rai.t
einr.ustirrurell in tlr:n JutrcLklallg.

! 37 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.

38
! “Pero el canto no es tan difícil. Sólo hay que acostumbrarse, así como el rostro es embadurnado con
yeso. Pero en el momento en el que el escultor termina su trabajo, resulta. No es del todo correcto cuando
nos ordenamos: ¡cante ahora! Entonces se canta, pero paralelamente se da una actividad intelectual que
quiere convencernos con violencia de cuán sin sentido son los tonos que tratamos de asir. Más que eso
ayuda apretar cada vez más los ojos ante la presión de la máscara de yeso. Ahora no ven nada, ahora
están muertos, caídos en un abismo, pero los siento donde se han quedado reposando profundamente en el
cuerpo, en un lugar muy específico. Soy feliz cuando me encuentro ahí, lo olvido todo excepto un
sentimiento: ahora se canta” (Contreras Castro, 2013, p. 95).
35

A convicção e a busca incessante de Wolfsohn dessa voz levou-nos a também


procurar lugares, a viver as vozes a aprofundar as sensações para chegar a esse centro
energético.

Por exemplo, num centro de terapia intensiva, num hospital, não há vozes
vocalizadas, mas há vozes comunicando sentidos e, de alguma maneira, captamos suas
necessidades. Que lugar é esse onde se dá o encontro? É o lugar que Alfred Wolfsohn
buscou e para o qual encontrou um caminho que todos podem fazer,39 traçado, como  

vimos, por meio da voz e com o auxílio da música.

Um dado importante na obra de Charlotte Salomon é a onipresença da música.


Vejamos.

"
4.2 O título e o sumário em Leben? oder Theater? ein Singspiel

Uma importante característica da obra de Charlotte Salomon, desde a primeira


pintura, é complemento ein singspiel à pergunta vida? ou teatro?

Os subtítulos de cada seção – Prelúdio, Seção Principal e Epílogo – indicam um


modo de pensar que é musical e nos aproximam da ideia de pedagogia de Alfred
Wolfsohn na obra de Charlotte Salomon. Grifamos as palavras que analisaremos, pois
trazem importantes dados musicais.

Prelúdio
“Playbill”
Cena 1
Cena 2
Cena 3
Cena 4
Capítulo inserido: O nascimento no presente
Cena 5
Segundo ato
Fim do prelúdio
Seção principal
Início da seção principal: I
“e agora nossa peça começa”

39
! Importa deixar claro que aqui se descreve a experiência pessoal que me permitiu compreender e
traduzindo as ideias de Alfred Wolfsohn, procurando uma imagem para uma pedagogia. Movida por um
certo conjunto de circunstâncias, procurei refazer o percurso do autor, e a contemplação de alguns originais
foi reveladora, mas outros poderão compreender as mesmas coisas de outro(s) modod(s). Quanto aos
alunos, tampouco precisarão refazer esse percurso, pois é ao professor que cabe compreender essa
pedagogia e aplicá-la corretamente, propiciando-lhes um caminho de experiências.
36
Capítulo 1: Alguns dias depois
Capítulo 2: A tarde seguinte
Capítulo 4: Natal!
Capítulo 5: Conversa com um escultor na noite de Natal
Capítulo 6: Orfeu ou o caminho para a máscara da morte
Capítulo 7: A jovem garota
Capítulo 9: Uma vez mais: “A jovem garota”
Capítulo 10: Não ria de mim, eu acredito nos dados
Capítulo 11: Descoberta interessante, também para nós
Capítulo 10 (continuação): A ressurreição
Capítulo 11:40 Olhe-me como se eu jogasse bola com o globo terrestre ou
 

O canto de Sócrates
Nova Seção
Capítulo 1: E o tempo segue
Capítulo 2: A avó
Capítulo 3: Papai
Capítulo 4: Os judeus alemães
Capítulo 4: A partida
Fim da seção principal
Epílogo
Epílogo (Schwartz, 1981, p. xvi, tradução nossa)

No Prelúdio, Charlotte apresenta a Pintura I. Singspiel foi traduzido para o como


Play with Music, mas cabe observar que Singspiel é mais que simplesmente uma “peça
com música” – é um gênero. O grande compositor Kurt Weill toma o termo e o transforma
em songspiel. O gênero Singspiel é estudado na história das formas musicais e na
história da ópera e, portanto, não se reduz a
uma peça com música ou mesmo a uma
ópera. Charlotte demarca muito bem seu
significado e o anuncia em suas telas,
como nos orienta a partir da Pintura IV.
Mas antes, detenhamo-nos nas primeiras
pinturas.

"
"
"
"
"
Figura 21 - Pintura 141 

! 40
Charlotte apresenta a obra com essa organização, e Gary observa: “o sumário apresenta uma
descontinuidade”.

! 41 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


37

"
"
Pintura 1
Vida? ou Teatro?
Ein Singspiel
CS (Schwartz, 1981, p. 1, tradução nossa)

"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 22 - Pintura 242
 

"
"
"
Pintura 2
Dedicada a Ottilie Moore
Consiste em Prelúdio, Seção principal e Epílogo (Schwartz, 1981, p. 2,
tradução nossa)

"
Na Pintura 3, Charlote apresenta sua obra – que, aos meus ouvidos, tem
movimento. A mim, as pinturas sugerem um movimento semelhante ao de uma imagem
cinematográfica se deslocando numa grande tela de cinema sugerindo o teatro – a obra
dentro da obra. Anuncia-se uma proposição musical: começa um SINGSPIEL tricolor. A
ação se passa de 1913 a 1940 na Alemanha e depois em Nice, na França, com o
seguinte elenco:

! 42 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


38

"
"
"
"
"
"
"
"
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"
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Figura 23 - Pintura 343
 

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Dr. e Senhora KNARRE – um casal
FRANZISKA e CHARLOTTE – suas filhas
DR. KANN – um médico
CHARLOTTE KANN – sua filha
PAULINKA BIMBAM – uma cantora
DR. SINGSONG – uma pessoa versátil
PROFESSOR KLINGKLANG – um maestro famoso
um PROFESSOR DE ARTE
PROFESSOR e ESTUDANTES – numa academia de artes
CORAL (Schwartz, 1981, p. 3, tradução nossa)

! 43 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


39

Os que vêm depois, na Seção principal:

AMADEUS DABERLOHN – um professor de voz


SEU “LICENCIADOR”
UM ESCULTOR
PAULINKA BIMBAM
CHARLOTTE KANN
PESSOAS SUBSIDIADAS (Schwartz, 1981, p. 3, tradução nossa)

Os demais, que aparecem no Epílogo:

SENHORA KNARRE
SENHOR KNARRE
CHARLOTTE KANN
OUTROS (Schwartz, 1981, p. 3, tradução nossa)

Além de ter posto no elenco um personagem CORAL, Charlotte Salomon escolhe


nomes que sugerem jogos musicais: Bimbam, Klingklang, Singsong. A pronúncia desses
nomes faz sentir seu fluxo musical. Então, nas Pinturas de 4 a 6, ela se explica. Vejamos
a Pintura 4, em que ela reproduz as indagações de seu mestre Alfred Wolfsohn,
compreensível para quem conhece a busca do professor: “o que é o homem? Que arte é
de seu consciente? A que infinito terrestre, a que coração se deve ajustar?

A partir de mim mesma, precisei de um ano para descobrir o significado desse


estranho trabalho. Vários textos e tons,
particularmente nas primeiras pinturas, iludiam
minha memória e deveriam – como a criação
completa, segundo me parece – permanecer
encobertos na escuridão.

Charlotte Salomon anuncia sua experiência e


segue, na pintura, como gostaria que seu
espectador a sorvesse. Ela já nos diz – coisa a
que não havíamos dado atenção antes das
cartas de Marthe Pécher – que canta os tons, e
como os tons e seus personagens formam os
duetos ou o coral que ela diz ser frequente.

Figura 24 - Pintura 444


 

! JOODS
44 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
40

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Figura 25 - Pintura 545
 

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Pintura 5
A criação das pinturas seguintes é para ser imaginada assim:
Uma pessoa está sentada diante do mar. Está pintando. Um tom, de
repente, lhe vem à mente. Como ele começa soando dentro, ela observa o
tom para um acordo sobre o que realmente irá para o papel. Um texto se
forma em sua cabeça, e ela começa a cantar o tom com suas próprias

! 45 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


41
palavras, muitas e muitas vezes, em voz baixa, até que a pintura se revele
completamente.
Frequentemente, diversos textos tomam forma, e o resultado é um dueto.
Ou: (Schwartz, 1981, p. 5, tradução nossa)

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Figura 26 - Pintura 646
 

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Pintura 6
Acontece muito cada novo personagem cantar um texto diferente,
resultando num coral. A variada natureza das pinturas poderia ser
atribuída menos ao autor do que à variada natureza dos personagens
retratados. O autor tem tentado, tentou - como é talvez mais evidente na
Seção principal – sair de si mesmo e permitir que os personagens cantem
ou falem com sua própria voz. Em razão disso, renunciou-se a muitos
valores artísticos, mas espero que, na perspectiva da penetração da alma
natural do trabalho, isso será perdoado.

! JOODS
46 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
42
O AUTOR – St. Jean
agosto, 1940/42
Ou entre céu e terra, além de nossa era, no ano de minha nova salvação
(grifos nossos). (Schwartz, 1981, p. 6, tradução nossa)

Na Pintura 58, Charlotte declara:

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Figura 27 - Sentimentos em canções47
 

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! 47 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
43

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Pintura 58
Agora, vamos à última pintura da Cena 2.
Daí em diante, Charlotte expressa seus sentimentos em canções.48  

(Schwartz, 1981, p. 58, tradução nossa)

Nesse ponto, resistimos à tentação de fazer a análise musical de todas as peças


apresentadas na obra de Charlotte Salomon. Sem ter chegado ainda a uma conclusão,
resolvemos seguir cotejando os dados para ver aonde eles nos levariam, pois a própria
análise da música poderia se revelar desnecessária para delinearmos os princípios
pedagógicos subjacentes.

E, de fato, assim foi: a análise musical não era necessária, mas havia que apontar
a importância da música em todo o processo. Voltando a procurar conexões com
Orpheus: oder der wegzueimer maske, encontramos explicitamente, na Seção principal
do Capítulo 6, o subtítulo que contém o título do manuscrito, a que Charlotte acrescenta:
da morte.

No Capítulo 11, que tem dois subtítulos, chama atenção o segundo: O canto de
Sócrates. A analogia é clara: são características socráticas, o diálogo, a convivência, o
êxtase e a reflexão, o Verdadeiro, o Belo e o Bom. Tudo é bom do ponto de vista da
origem e da singularidade. Para Alfred Wolfsohn, a aceitação do verdadeiro baliza o belo
e, portanto, do bom:

A questão do canto não pode separar-se da questão humana. Não


considero cantar um exercício artístico, avaliado meramente como um
prazer estético ou um passatempo agradável, mas como a expressão de
ser humano - individualizada no self, visto aqui como o centro da
substância psíquica. (Molinari, 2012b, p. 85, tradução nossa)49  

Para ilustrar a música presente em Leben? oder Theater? ein Singspiel,


relacionamos apenas aquelas que podem concorrer para a compreensão da escolha de
Charlotte Salomon. O Prelúdio contém as melhores informações, porque é o momento em

48
! Assim, Charlotte Salomon anuncia a importância da canção em sua obra.

49
! The problem of singing cannot be separated from the human problem. I do not consider singing as an
artistic exercise, valued merely as an aesthetic pleasure or an enjoyable pastime, but as the expression of a
human being, an attempt to realise the individual self – the individual self seen here as the centre of psychic
substance (Wolfsohn, s.d.a , p. 85).
44

que Charlotte anuncia que o sentido está na música, daí a relação das peças que o
integram. Como comentaremos apenas uma da seção principal, segue-se uma espécie de
guia de escuta.

No Prelúdio
Schubert: Lied – Die Schone Mullerin, Die Winterreise, Schwanengesang
Weber: Ópera – O Franco Atirador
Bizet: Ópera – Carmen
Gluck: Ópera – Orfeu e Eurídice
Haendel: Sansão
Canções folclóricas
Pequeno livro de Ana Magdalena Bach

Na Seção Principal
Bizet: Ópera – Carmen – Entrada de Wolfsohn como Daberlohn –
toureador (Molinari, 2011, p. 2)

Todas as músicas podem ser ouvidas na exposição virtual, mas esperamos ter
registrado claramente que a música é um elemento fundamental desta jornada. Sigamos,
entretanto.

"
45

5 DO BRASIL PARA O MUNDO: ENTRE MEMÓRIA E NOMADISMO,


LETRA E VOZ SE PRESENTIFICAM EM PEDAGOGIA VOCAL!

Inicialmente, cabe uma consideração sobre o trabalho de Alfred Wolfsohn, muito


difundido no meio artístico teatral por seu discípulo Roy Hart e mantido até hoje por seus
herdeiros, professores do Centre Artistique International Roy Hart, entre os quais me
incluo. Foi preciso mergulhar na obra de Charlotte Salomon para elucidar questões que,
na transmissão de Roy Hart, foram muitas vezes tomadas como fato, mas que discutimos
neste trabalho.

A mais representativa é a concepção do trabalho como terapia em si. Com sua


aptidão e seu interesse, Roy Hart aplicou ao teatro e a o desvendamento dos meandros
do texto – especialmente os de Shakespeare – uma importante forma de desenvolvimento
vocal, inclusive concorrendo para a quebra de paradigmas estéticos do panorama teatral
da segunda metade do século XX e influenciaram compositores como Stockhausen, Cage
e Peter Maxwell Davies. Em particular, este último escreveu para Hart e um pequeno
grupo instrumental a obra Eight Songs to a Mad King, que, segundo o Roy Hart Theatre,
inaugurou um novo gênero artístico: a música teatral, diferente do teatro musical – que
nos limitamos a registrar, posto que ultrapassa o escopo do presente trabalho.

O ponto que destacamos aqui é que, talvez por sua morte prematura, Roy Hart não
chegou a explorar a dimensão musical na atuação teatral a partir dos achados de seu
professor, Alfred Wolfsohn. A conquista de Hart se ancora na relação entre teatro e
música, entendida, esta sim, como o legado musical que ele herdou da experiência com
Wolfsohn. A experiência de desenvolvimento vocal – processo em que a música
(especialmente o canto) era fundamental – foi utilizada por Roy Hart para a constituição
de uma nova forma de interpretação, ao menos para a realidade londrina das décadas de
1960-70.

Depois da morte de Hart, em 1975, o Roy Hart Theatre ficou à deriva: cada
professor conduzia a aula como podia, sem seu líder. Há cerca de dez anos, passaram a
buscar novos docentes para dar continuidade ao grupo e, com isso, uma nova formação
teve lugar, ainda experimental, dedicando-se a estabelecer relações entre o teatro, a voz
e a psicanálise, mas ainda sem discutir a presença da música.
46

Esta ficou num plano distante, como um dado secundário em relação ao texto e
suas sonoridades. Uma grande nebulosa impede a delimitação de um método e mantém
uma atmosfera de misticismo em torno do fazer de um Roy Hart Voice Teacher. Inúmeras
publicações foram feitas com uma idéia bastante confusa sobre o desenvolvimento vocal
proposto por Roy Hart, se tornou ainda mais complexa quando aumentou o interesse por
Alfred Wolfsohn, pois tudo parecia de ambos.

Quanto ao estudo da voz, lamentamos com Zumthor (2010) a inexistência de uma


ciência da voz. Ela ensejaria um estudo tão profundo que há muito merece um campo
próprio.

Da relação entre teatro, voz – estudada na perspectiva de Alfred Wolfsohn – e


psicanálise, resultou no lugar chamado Roy Hart Theatre Voice Work.

A Figura 28 mostra que, na concepção de Alfred Wolfsohn, a psicanálise está


contida. Quando Roy Hart lhe agrega o teatro, há uma região de exploração que marca a
característica do Roy Hart Theatre50 (em amarelo, na imagem). Daí que se possa dizer
 

que há uma derivação da exploração do terreno da voz na perspectiva de Alfred


Wolfsohn, que é o Roy Hart Theatre Voice Work.51  

Psicanálise

Roy Hart
Voice
Work

Voz em A. Teatro
Wolfsohn

Figura 28 - Roy Hart Voice Work

! 50
Os termos Roy Hart Theatre Voice Work é a maneira mais atual de chamar o trabalho que, por anos, foi
conhecido como Roy Hart Voice Work.

! 51
Em 2008, discutimos o tema num texto entregue como exigência parcial para a obtenção do título de Roy
Hart Voice Teacher.
47

"
"
Importa sublinhar que o trabalho em si não é a terapia. Ele se vale de recursos
cunhados na psicanálise, mas não se confunde com ela, ainda que uma das questões
primordiais da busca de Alfred Wolfsohn fosse a solução de seus próprios dramas
psíquicos. Sua conquista situa-se na interseção entre elementos da psicanálise, da
música, da Filosofia e das artes plásticas, que constituem o terreno fértil de exploração da
voz proposto por Wolfsohn (Figura 29).

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Figura 29 - Voz Wolfsohn na perspectiva de Molinari

"
De acordo com Jean-Michel Vivès, professor de psicopatologia clínica da
Universidade de Nice e membro da Seção Rio de Janeiro do Corpo Freudiano, a música é
a armadilha para capturar a voz, e o canto é o contínuo da voz no descontínuo da palavra
(informação verbal).52 Essas afirmações corroboram o que acreditamos ser a força do uso
 

da música e do canto na abordagem de Alfred Wolfsohn, cuja forma de desenvolver as


relações tem uma singularidade que imputa à música a responsabilidade de estabelecer a
profundidade e a sedimentação da experiência para uma possível generalização.

É na exigência do fazer musical que se coloca a expressão, já conceituada no


primeiro apontamento pedagógico. No desenvolvimento vocal, apreende-se a experiência
quando, em música, se podem abrir as portas para o processo criativo sob uma ótica
artística. A obra de arte acontece quando a pessoa chega a esse ponto do

! 52
Informação fornecida por Jean-Michel Vivès, no lançamento de seu livro A voz na clínica psicanalítica, na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2012.
48

desenvolvimento, é isso que Alfred Wolfsohn procura dizer em Orpheus e que Charlotte
capta e derrama em pinturas.

Pensar a voz como o elemento que conecta as dimensões humanas e que,


oralizada, revela o ser para o próprio intérprete e para o ouvinte leva a uma nova reflexão
sobre como se deveria desenvolver a voz daqueles para quem ela é objeto de estudo e/
ou de trabalho e também a daqueles que querem, por meio dela, conhecer seus próprios
conteúdos inauditos para, com eles, criar.

A obra de Paul Zumthor sobre poesia oral é importante para a compreensão dessa
voz e para a tradução intersemiótica do trabalho de Charlotte Salomon.

Quando Zumthor (1993, p. 8-9) afirma que a curiosidade e a honestidade


intelectual levaram pessoas a trilharem o desconhecido que veio a chamar-se território do
oral – ou oralidade, termo a que dá conotação negativa –, no panorama posterior à
Segunda Guerra Mundial, isso demorou a ser compreendido. E, acrescento eu, a
oralidade continua a galgar espaço no território da escritura como forma predominante de
transmissão,53 abrindo-se uma busca pela voz que presentifica e materializa o território do
 

oral. Zumthor completa: a oralidade é uma abstração; só a voz é concreta, só sua escuta
nos faz tocar as coisas (1993, p. 9). Nesse ponto, o autor prefere falar em voz vocalizada.
Adotemos o termo oral para uma descrição do pensamento necessária aqui.

Detenhamo-nos um pouco nesse fértil terreno de exploração que se abre e


observemos o seguinte trinômio:

oralidade voz escuta

Figura 30 - Trinômio 1

"
"
Pensemos agora em como compreender cada um dos termos na perspectiva do
trabalho de Alfred Wolfsohn.

! 53
Até Gutemberg, a principal forma de afirmação do conhecimento era a oral. O sábio era o que ensinava,
e os discípulos escutavam. Com a imprensa, o escrito passa a ter um território que não só se sobrepõe
como subjuga o oral, o vocalizado.
49

A oralidade, como conceito e palavra, não é utilizada por Alfred Wolfsohn no


manuscrito que estudamos, mas ele trilha um longo caminho procurando a definição de
voz. Nesse caminho, fala em muitas oralidades. Voz, então, passa a ser o primeiro termo
do trinômio. A voz em Alfred Wolfsohn não é o som produzido pela laringe, mas o núcleo
que revela a pessoa.

Para essa compreensão, a escuta deve ser de outra ordem, portanto, em segundo
lugar, cumpre conceituá-la.

No estudo da escuta em Alfred Wolfsohn residem os maiores achados sobre a


pedagogia que procuramos descortinar.

Daí, a ordem do trinômio deve ser a seguinte:

voz oralidade escuta

"
Figura 31 - Trinômio 2

"
A voz como o elemento basal, como na histologia, em que a membrana basal,
resistente e elástica, faz a conexão entre o mais profundo e o superficial. Essa voz é a
mesma em Zumthor e em Wolfsohn.

Falando sobre o que mais interessa ao medievalista – convencer-se dos valores


incomparáveis da voz vivendo-os, porque, como ele mesmo diz, só existem ao vivo –,
Zumthor (1993, p. 20) afirma que assim é ainda que tentemos aprisionar a voz em
tentavas descritivas e completa: nosso estudo deveria tirar sua inspiração e seu
dinamismo da consideração dessa beleza interior da voz humana “tomada o mais perto
de sua fonte", como dizia Paul Valéry.

Quanto à beleza, diz Zumthor (1993, p. 20) que a voz pode ser concebida como
particular, mas é concebida também como histórica e social, o nos remete a sua
recepção, ao modo como essa voz se transforma pelo ouvinte que a recebe. Pelo uso que
fazemos dela, a voz modula a cultura comum, e isso não pode ser esquecido. A voz
articula características históricas e sociais – é disso que se trata. O ouvinte aqui é aquele
que é capaz de captar tais modulações não só no sentido musical, mas no sentido de
uma escuta ativa que envolve sua própria cultura e lhe é natural. Não há esforço para
50

captar essa mensagem característica da voz, ou seja, isso acontece naturalmente e o


tempo todo. Quando conclui que, no momento em que enuncia o texto, a voz transforma
em ícone o signo simbólico libertado pela linguagem, no momento em que tende a
despojar esse signo do que ele comporta de arbitrário, na presença do corpo do qual
emana essa voz, o signo é motivado – ou, inversa, análoga e duplamente – e desvia a
atenção do corpo real. Como? Dissimulando sua própria organicidade sob a ficção da
máscara, sob a mímica do ator a quem por uma hora empresta vida (Zumthor, 1993, p.
21).

A voz se coloca de tal forma que apaga a espessura e a verticalidade do espaço da


exposição prosódica e da temporalidade da linguagem e nos convoca, então, a substituir
o termo oralidade por vocalidade, que é a historicidade de uma voz, ou seja, seu uso
(Zumthor, 1993, p. 21).

Assim como Paul Zumthor, Alfred Wolfsohn havia pensado a voz, mas, na
sociedade em que vivia e da maneira como necessitava validar seus conceitos e suas
exposições, não o fez em escritura como claramente o fez Zumthor (1993). O manuscrito
Orpheus oder der wegzueimer maske se detém em explicar o que Zumthor realiza na
década de 1990, mas valendo-se de muitas comparações, no afã de se fazer
compreender.

Quando prestamos atenção à obra de Charlotte Salomon, vemos, como no começo


da Seção principal, a figura de Alfred Wolfsohn subindo as escadas que o levariam ao
agente licenciador para obter a autorização para trabalhar como professor de voz. O som
que o caracteriza é a ária do toureador, da ópera Carmen, de Georges Bizet.

Por que toureador? Por vários motivos. Os mais explícitos nas telas são a
necessidade de Wolfsohn exprimir seus conceitos ao licenciador – o Dr. Singsong –, que
o enviara a uma cantora famosa para ouvi-lo, porque ele próprio não tem tempo. Wofsohn
sobe uma escada coberta com um tapete vermelho – em Charlotte, o vermelho marca de
tensão – e tem uma auréola vermelha quando fala com o Dr. Singsong.

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51

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Figura 32 - Vermelho - toureador54
 

! 54 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


52

Essa cor mostra a tensão do homem (Amadeus Daberlohn/Alfred Wolfsohn) diante


do touro (Dr. Singsong) e a situação em que se encontrava, antes interna que externa. Os
tons de vermelho seguem até o momento em que ele se vê frente a frente com Paulinka
Bimbam/Paula Lindberg. Depois de ler a recomendação irônica, segundo a descrição de
Charlotte, que o apresenta como o homem que quer ser o profeta da canção e que,
desafortunadamente, não tem permissão para profetizar e necessita de seu aval para
obtê-la, Paulinka diz: “bem, vamos trabalhar juntos”. (A sequência completa está no
Capítulo Banhados pelo Pacífico, pelo Atlântico e pelo Caribe.)

As pinturas seguintes têm fundo azul. A casa é a mesma, e se retrata agora o


primeiro contato vocal entre Daberlohn e Paulinka. Ela o testa, ele comenta o que ouviu.
Ela o acha presunçoso – não
diz, só pensa. Assim Charlotte
descreve a cena. Seguem as
pinturas com o plano em
Amadeus Daberlohn: os tons
de laranja começam a voltar,
e, para representar a tensão
entre os dois, Charlotte volta
ao fundo quase vermelho.
Segundo a pintora, ele
pensava que essa mulher
podia ser o caminho. Ele a
faria a melhor de todas as
cantoras, com a condição de
que ela o amasse. E volta a
tensão das pinturas iniciais do
toureador…

Figura 33 - Wolfsohn e
Paulinka55
 

"
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! 55 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


53

Como diz Charlotte, esse toureador entrega seu livro a Paulinka. Não ainda o
Orpheus: oder der wegzueimer maske, mas uma compilação das ideias que lhe dão
origem. Isso é sugerido pelo fato de Orpheus aparecer numa tela posterior a essa,
retratado como manuscrito. (O Orpheus original está datilografado, mas dizemo-lo
manuscrito pela forma original de suas ideias.)

Em Orpheus, Alfred Wolfsohn fala da voz, das relações que ele vê com a
Psicologia e, mais especificamente, em nossa perspectiva, a psicanálise:

Eu não podia separar o problema do canto em si dos problemas humanos.


Cantar não é, para mim, um exercício artístico para ser apreciado como
prazer estético, que serve, num dado contexto, a uma meta do deleite,
senão à expressão de uma pessoa, uma tentativa de deixar escapar, de
uma maneira específica, seu eu, considerado este como centro de um
núcleo anímico (psíquico). Essa tentativa foi sem frutos porque essas
substâncias não são factíveis e não se pode guiar até elas. Escolhi o
desvio de ensinar outros a cantarem e, com isso, fiz contato com outra
ciência, a psicologia, e me ocupei dela56 (Molinari, 2013, p. 67).
 

Para Wolfsohn, a psicologia da época foi um terreno seguro onde ele podia
justificar seus achados. Hoje, com o avanço dessa ciência, podemos ver o estudo de
Alfred Wolfsohn de outras perspectivas, sumamente necessárias ao fazer artístico.

É compreensível a tranquilidade de ter podido alojar esse conhecimento no campo


da terapia, mas trata-se aqui de seguir para além desse ponto e de devolvê-

-lo ao fazer criativo fazendo arte.

Na mesma época, outros estudos buscavam compreender o mesmo que Alfred


Wolfsohn: a voz para além da palavra. Zumthor (1993, p. 16) menciona três: L.
Jousserandot, autor de Les bylines russes, de 1928, Marcel Jousse, com Le style oral et
mémotechnique chez les verbo-moteurs, de 1925, e, com destaque, A. B. Lord e sua
“observação quanto ao texto homérico pelas necessidades próprias à transmissão oral
nos Aedos, descrevendo a prática dos Guslar (cantadores cuja denominação provém de
seu instrumento monocórdio, usado por alguns balcânicos) sérvios e bósnios observados
por volta de 1930”.

! 56
“Yo no podía separar el problema del canto en sí de los problemas humanos. Cantar no es para mí un
ejercicio artístico a ser apreciado como disfrute estético, o que sirve, en un contexto dado, a una meta de
goce, sino es expresión de una persona, un intento de dejar escapar de una manera específica su yo,
considerado éste como centro de una sustancia anímica (psíquica). Ese intento fue infructuoso porque esos
trasfondos no son asibles y no pude ser guiado hacia ellos. Escogí el desvío de enseñarle a otros a cantar, y
con ello hice contacto con otra ciencia, la psicología, y me ocupé de ella” (Contreras Castro, 2013, p. 67).
54

O próprio Zumthor é contemporâneo de Alfred Wolfsohn, quando, na década de


1930, já cursa a Sorbonne, em Paris. Embora nunca se tenham conhecido, ambos
buscaram fundar a ciência da voz, ou, ao menos, esclarecer a necessidade dessa ciência.
Felizmente, Paul Zumthor deixou uma vasta obra escrita sobre essa busca. Ele mesmo
diz de sua vontade de vocalizar e conta que o faz em suas aulas. Conta também que usa
certa performance teatral para atrair a atenção de sua audiência e que, em eventos
acadêmicos, essa
performance o satisfaz
mais do que o próprio
conteúdo de sua
comunicação (Zumthor,
2005, p. 31-60).

Voltando a
Wolfsohn, Charlotte
retrata a ansiedade do
professor acerca de seu
encontro com um grande
psicólogo da época –
tratava-se de Carl Gustav
Jung, que passava por
Berlim. Alfred lhe
escrevera para partilhar
seu trabalho e seus
sonhos, ou suas
interpretações de sonhos.

"
Figura 34 - Opus/Jung57
 

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"
! 57 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
55

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"
Na Figura 34, vemos Alfred Wolfsohn e Charlotte Salomon conversando sobre o
assunto e algumas palavras que designam o eminente psicanalista a quem Daberlohn/
Wolfsohn pensava apresentar seu opus, Orpheus oder der wegzueimer maske. A
conversa inteira está na edição de Gary Schwartz, mas apresentado aqui esse fragmento
para sublinhar a necessidade de se cotejarem os dois trabalhos, suscitando outros
estudos. Wolfsohn tinha a preocupação de partilhar seus achados e vê-los discutidos;
assim, era favorável a que esse assunto chegasse ao meio acadêmico (informação
verbal).58
 

O percurso desta tradução intersemiótica movida pela docência no campo da voz


levou-nos à hipótese de uma possível pedagogia em Orpheus oder der wegzueimer
maske que dê suporte ao fazer difundido pelo Roy Hart Theatre. Neste caminho marcado
por nomadismos – metafórica e literalmente –, intervêm conceitos, crenças, construção e
desconstrução de conhecimentos adquiridos, refeitos, revistos e retomados e, enfim, a
aceitação da mudança constante.

Quando um professor do Centre Artistique International Roy Hart me perguntou


como aplicar isso a uma ópera, me dei conta de que o fim último do trabalho não era
evidente. Depois, repetida muitas outras vezes, a pergunta me mostrou uma certa
reverência para com o trabalho, como se ele redimisse uma ordem ainda não
estabelecida e a distribuísse como uma dádiva.

Talvez seja assim, talvez não. O importante é que, fazendo publicá-lo como tese
numa Universidade – por excelência, um lugar de partilha de conhecimentos –, espero ter
ultrapassado a dimensão terapêutica do trabalho de Alfred Wolfsohn e dado a ver seu
valor para a obra de arte e seus criadores.

O trinômio que apresentamos marca um caminho, uma estratégia pedagógica; não


é a pedagogia em si, mas apenas sua base. O caminho fica claro no seguinte exemplo.

Uma situação muito comum em aulas de canto: o aluno começa a entoar um


vocalise, o professor ouve e começa a sugerir mudanças – dá exemplos vocais, orienta e
diz qual o melhor caminho.

! 58
Informação fornecida por Sheila Braggins, ex-aluna de Alfred Wolfsohn, em encontro especialmente
dedicado à discussão sobre o professor e sua obra, em Londres, em 2007.
56

No Roy Hart Theatre: o aluno começa a entoar um vocalise, o professor ouve e


começa a sugerir imagens baseadas nos arquétipos – não dá exemplos vocais, mas diz
qual o melhor caminho.

Para nós, como resultado dessas múltiplas traduções: o aluno começa a entoar um
vocalise, o professor ouve e sugere um caminho que parece ser o que ajudará o aluno.
Ouve o resultado, assegura-se de que o exemplo não mudou a essência do que escutou
antes, mas não desiste: não dá exemplos vocais e não diz qual é o melhor caminho, mas
experimenta o caminho junto com o aluno, incentivando sua busca na escuta de si.

Percebemos esse fazer a partir desta afirmação:

"
"
Figura 35 – Fragmento de Orpheus - D 59
 

Não se deve aplaudir a opinião de que existe uma objetividade de quem


escuta ou de uma obra de arte 60 (Molinari, 2013, p. 22)
 

Essa objetividade, pela qual os padrões são instituídos através de protocolos, deve
dar lugar a uma outra forma de escuta classificatória, em que a interpretação entra em
jogo, e o jogo é o protocolo. O jogo, aqui, é o suporte psicanalítico de apoio; não só o
conhecimento do proposto na análise junguiana, mas também pela winnicottiana,
principalmente na compreensão de como o jogo faz parte de nossas conquistas.

O tipo de escuta deve ser outro tipo e, será construído, na e da experiência.

A ampliação da tessitura se deve à abertura conquistada, quando o corpo já não é


mais corpo sem voz, um corpo mudo, e sim um corpo que fala e é, portanto, corpovoz –
elementos indissociáveis. A voz é a voz que se expressa em vocalidade, e aí não importa
mais se é pela boca que ela se expressa, mas quem ela expressa. Wolfsohn apresenta
essa ideia nos seguintes termos:

"

! 59 Wolfsohn, Alfred. Orpheus: oder der wegzueimer maske s.d.b, p. 22 [arquivo pessoal]

! 60
No hay que aplaudir la opinión de que existe una objetividad de quien escucha o de una obra de arte
(Contreras Castro, 2013, p. 22).
57

"
Figura 36 – Fragmento de Orpheus - E61  

Mas trata-se de cantar e, por isso, tanto faz de onde soa sua voz, se de um
livro, de uma pintura, de uma canção. Trata-se do mistério que há por trás
da voz, que é sempre o mesmo e do qual se pode adivinhar talvez a maior
sabedoria, que não vem da cabeça, como a inteligência, mas de um centro
localizado mais profundamente62 (Molinari, 2013, p. 17, tradução nossa).
 

A ideia de que não importa de onde soa a voz mas o mistério por trás da voz foi
das mais difíceis de apreender, dada a influência do Roy Hart Theatre. Foi necessário um
distanciamento para lograr aprofundá-lo, o que foi acontecendo progressivamente ao
longo de 60 oficinas organizadas na Argentina, no Brasil, no Chile, na Colômbia, na Costa
Rica e na França.

Diferentes formas de expressão dessa voz foram abordadas e conclamadas a falar,


sempre através da voz, mas não com o fim específico da voz para todos os participantes
das oficinas. Buscamos o desenvolvimento da voz e, para seguir desse ponto até
responder à pergunta inicial – como isso se aplica à ópera –, surgiu uma nova
necessidade.

Incluímos nas oficinas a necessidade de construir uma apresentação do


conquistado em performance. Isso significava que, no fim, todos deveriam reunir suas
habilidades de origem e criar algo que sintetizasse suas conquistas.

Resultaram performances belíssimas, comoventes, tocantes, que nos


atravessaram – verdadeiras obras de arte.

! 61
61 ! Wolfsohn, Alfred. Orpheus: oder der wegzueimer maske s.d.b , p. 17 [arquivo pessoal]

! 62
“Pero se trata de cantar, y por eso da igual desde dónde suena su voz, si de un libro, una pintura, una
canción. Se trata del misterio que se encuentra detrás de su voz, que siempre es el mismo, y del cual se
puede adivinar quizá la mayor sabiduría, que no viene de la cabeza, como la inteligencia, sino de un centro
más profundamente localizado” (Contreras Castro, 2013, p. 17).
58

Entusiasmados com o que vínhamos fazendo, começamos um grupo de estudos,


onde havia também muitos docentes ainda atuantes em performances. O trinômio do
fazer estava sempre presente como fazer pedagógico, mas uma pergunta se impunha: o
que se escolhe no momento do encontro entre a escuta e as percepções?

Da tentativa de respondê-la, surgiu a Pedagogia.



59

6 BANHADOS PELO PACÍFICO, PELO ATLÂNTICO E PELO CARIBE

O último passo da razão é reconhecer que existem


infinitas coisas que a superam.
Sócrates

Nestes quatro anos de pesquisa, mesclaram-se depoimentos, conjecturas,


definições e aplicações de práticas inspiradas em Alfred Wolfsohn tomando ainda a obra
de Charlotte Salomon como motivadora. Trata-se agora de articular esses elementos
numa cartografia clara, que mostre bem a busca e os achados, já que nos pautamos na
fenomenologia.

Europa, outono de 2004. Um mês depois de ter defendido minha dissertação de


mestrado, tomei um avião para ver a arte que havia estudado nos livros.

Durante a pesquisa do mestrado, li e me comuniquei com um lugar no sul da


França que trabalhava com um desenvolvimento vocal muito diferente e que vivenciava
uma relação corpo/voz que eu vinha discutindo bastante naquele momento e com uma
visão muito próxima à que eu propunha.

Ávida por conhecer, pus-me a pesquisar na rede mundial (web) para conseguir o
máximo de informações, para não repetir o que escrevera sobre o tema no livro Conhecer
e expressar o indizível: o legado de Alfred Wolfsohn.63 

No sul da França, compartilhava um quarto numa residência estudantil com outra


professora universitária de voz: ela, da Universidade de Sydney, na Austrália; eu, da
Faculdade de Música Carlos Gomes, em São Paulo, no Brasil.

Logo na primeira semana de formação, voltando de uma aula, sentamo-nos à mesa


do almoço em completo silêncio. Algum tempo depois, ela me perguntou: o que você irá
dizer a seus alunos?

Era a pergunta que me eu fazia desde o dia anterior. Eu já havia passado horas
refletindo sobre o que iria fazer e estava decidida a voltar e esperar que as coisas se
assentassem – que o vivido fosse esclarecido em mim –, antes de partilhar qualquer coisa
nova com meus alunos. Eu sabia que a experiência tinha sido grande demais para eu
simplesmente voltar e mudar. A quebra de paradigma era tamanha, que melhor seria

! 63 Editado pela editora Faccamp, em 2008.


60

esperar que tudo ficasse mais claro para mim antes de partilhá-lo como conhecimento
adquirido. Movida por essa constatação, respondi: vou viver tudo em mim para depois
pensar em como falar a respeito.

Com aquela decisão, começou a busca de uma possível pedagogia em Alfred


Wolfsohn.

"
6.1 A pedagogia por trás da quebra de paradigmas

Não havia preocupação quanto à classificação vocal. Numa conversa inicial, com
cadernos em mãos, professores pediam um exercício de síntese das expectativas quanto
ao trabalho. Trinta segundos – cronometrados – para cada integrante do grupo. Enquanto
falávamos, vez ou outra um deles fazia uma anotação. Os professores trabalham em
grupos de três, às vezes quatro ou mais.

"
6.1.1 Primeiro apontamento pedagógico: não se classifica a voz, se a apreende

Como vimos, para Alfred Wolfsohn, a voz não se classifica segundo a tradicional
noção de soprano, meio-soprano, contralto, tenor, barítono e baixo, e esse é um dos
pilares de seu trabalho. Assim, o que se a busca são justamente as características
femininas na voz masculina e das masculinas na voz feminina, pois o objetivo é buscar a
unidade e consolidar a unidade conquistada.

O desenvolvimento foge a todo tipo de padrão – hereditário, cultural, genético,


étnico, profissional, familiar ou social – e nos faz viver o encontro de características
aparentemente contraditórias mas que, na visão de Wolfsohn, são integradoras. Por meio
de exercícios em que intervêm personagens de óperas, procura-se reproduzir com a voz
as características impressas no oral e que, ao ser verbalizadas, são percebidas e
apreendidas pelo emissor. Num dos exercícios primordiais, procura-se uma conexão entre
as vozes do quarteto de cordas – viola, violino, cello e contrabaixo – para que, ao repetir o
nome do instrumento, o aluno experimente a diferença de timbre quando o som passeia
por todo o seu ser.

Os opostos como complementares, ou os conceitos Yin-Yang da cultura oriental,


por exemplo, são fortemente evocados nas práticas.
61

Uma situação real. Do lugar de professor, numa análise perceptivo-auditiva,


quando a voz não apresenta traços de harmônicos graves nos agudos ou, em oposição,
harmônicos agudos nos graves, é preciso guiar o aluno em direção a isso, e o passo
inicial culmina na ampliação da tessitura para além dos limites da classificação vocal.
Lembrando que a análise perceptivo-auditiva considera a voz falada e cantada, o
professor deve escutar o aluno analiticamente desde o momento em que este se lhe
apresenta. E escutar está inscrito além da escuta sonora audível. Para Wolfsohn (s.d.a, p.
26), o olho é uma orelha transformada.

Na exploração desses lugares do grave e do agudo da voz ainda não explorados, o


professor tem uma decisão a tomar, e o aluno, uma permissão a dar. Dar essa permissão
– permitir-se – é já uma conquista e uma escolha, assim como também o é não permitir. O
professor precisa escutar isso. Precisa refletir sobre isso. Todas as variações estão na
sonoridade vocal, desde uma exalação até a emissão de uma frequência fixa. O professor
deve compreender que precisa escutar a pessoa diante de si e identificar traços
originários comuns - ou índices sonoros.

São índices na medida em que assinalam a junção de duas porções de


experiência, que levam os ouvintes a usar seus poderes de observação estabelecendo
uma conexão real entre sua mente e o objeto e que, finalmente, nada afirmam (Peirce,
2010, p. 63-70). A junção dessas duas porções de experiência é o objetivo da escuta e o
que faz com que se o diga originário. Chama-se originário porque assinala o ponto
comum entre os dois – a imanência, tomada em seu sentido filosófico, como um ser que
se identifica com outro ser por seus traços comuns, na ideia filosófica de Spinoza (Reale;
Antisseri, 2005, p. 404-420). Assim, poder-se-ia dizer que o professor precisa identificar
os traços da imanência humana – esse lugar de reconhecimento de um no outro, uma
relação de alteridade, de secundidade, citando a fenomenologia peirciana.

Para realizar essa operação, o professor precisa ter experiência; a experiência


cotidiana de cada ser humano (Ibri, 1992, p. 4) e que faz eco à concepção peirciana de
experiência, tomada como aquilo que se revela diretamente pela arte observacional das
ciências especiais – a matemática, a filosofia e a idioscopia – e o inteiro resultado
cognitivo do viver; a experiência é o curso da vida (Peirce apud Ibri, 1992, p. 4).

A experiência de que o professor necessita é a que lhe permita reconhecer os sons


de modo a classificá-los adequadamente. Para tanto, é preciso haver uma organização da
62

escuta numa outra classificação, em que os elementos a classificar não indicarão o tenor
ou o contralto, mas serão de sentido. As condições indispensáveis são tão somente a
escuta e a classificação possível a partir de uma experiência que já foi apreendida,
realizada em canto e passível de ser descrita de modo a ser compreendida por outro em
alguma tradução. Em geral, essa tradução se faz em palavras, mas pode-se adotar
qualquer linguagem artística. Logo chegaremos a isso.

No momento em que a tradução é possível, começam o movimento de domínio da


voz emitida e a possibilidade de voltar ao som dessa ou aquela voz a qualquer tempo.
Aparecerão muitas vozes da mesma voz. A busca volta-se então para um repertório de
vozes possíveis, e cada uma delas descortina um timbre que se conquista ao mesmo
tempo em que se conquista uma imersão em si. Na revelação dos traços originários
comuns, ou índices sonoros, como vimos, há no som vocal oralizado uma revelação de si
que, pela escuta da pessoa (aluno) que a emite, se reveste de sentido e só pode ser
orientada por outra pessoa (um professor) em cujo repertório de experiências tenha
reconhecido suas muitas e diferentes vozes. É um exercício de alteridade. Zumthor
elucida:

Ela [a voz] interpela o sujeito, o constitui e nele imprime a cifra de uma


alteridade. Para aquele que produz o som, ela rompe uma clausura, libera
de um limite que por aí revela, instauradora de uma ordem própria: desde
que é vocalizado, todo objeto ganha para um sujeito, ao menos
parcialmente, estatuto de símbolo (2010, p. 15).

A descrição não poderia ser melhor. Zumthor marca o caminho dessa alteridade, e
Wolfsohn sabia disso quando dizia que o professor guia para a descoberta do ainda não
tangido, que é a clausura assinalada por Zumthor e que é rompida nessa trajetória da
relação do professor com seu aluno no caminho traçado por Alfred Wolfsohn. A ordem
própria se instaura quando essa operação ocorre.

O perigo dessa operação é a interpretação. Há uma necessidade basilar de um


olhar despido de todo aparato teórico, como diz Ibri (1992, p. 4) quando fala na condição
para o estudante de fenomenologia e com que ilustramos o que Wolfsohn (s.d.a, p. 30)
diz em Orpheus: como uma necessidade de ver através das coisas literais da vida.
Recorremos à fenomenologia para melhor definir e explicar essa ideia.

Para Peirce (apud Ibri, 1992, p. 5-6), a experiência precipita e filtra falsas ideias
deixando verter a verdade. A condição para isso é abrir os olhos mentais e buscar as
características que nunca estão ausentes, nas palavras de Peirce. É necessário ver o que
63

está diante dos olhos sem nenhuma interpretação. Peirce ainda sublinha: essa é a
faculdade do artista que vê, por exemplo, as cores aparentes da natureza como elas se
apresentam. No nosso caso, com relação à escuta, é preciso não perder de vista um
aspecto específico que estejamos estudando e ter o poder de generalização do
matemático que produz a fórmula purificada de todos os acessórios estranhos e
irrelevantes (apud Ibri, 1992, p. 5). São condições imprescindíveis para o momento de
ouvir a voz do aluno para ajudá-lo a descobrir algo novo, ou profundo, ou já visitado e não
percebido64 (Molinari, 2008b, p. 1).
 

Alfred Wolfsohn conta em Orpheus uma de suas constatações a partir de


características que nunca estão ausentes:

Na minha docência, com homem ou mulher, eu experimentei vez após


outra o mesmo fenômeno, sublinhando que toda voz é composta de
elementos femininos e masculinos e que é só uma questão de tempo e
talento para que a voz possa brindar tais elementos em harmonia
chegando, desse modo, a uma voz integrada em contraste à voz
especializada. Observando uma pessoa que canta, eu posso ver o mesmo
processo em diferentes níveis repetindo-se: para conseguir o som, os
movimentos corporais são os mesmos de fazer amor, e não é por acaso
que invoco essa palavra65 (Molinari, 2012b, p. 97, tradução nossa).
 

Essa constatação de Wolfsohn permite delinear o que chamamos aqui primeiro


apontamento pedagógico, que convoca outros tantos conceitos. Inicialmente, surge a
questão de como o movimento do corpo manifesta o caminho da voz. Não o caminho
fisiológico, aquele que se observa num exame clínico, mas o caminho da fusão entre as
dimensões física e psíquica. Wolfsohn encontra o movimento do que ele chama “fazer
amor” (love-making), sublinhando a propriedade da expressão. Esse “fazer amor” é o
ponto inicial da compreensão do que ele define como capacidade de criação.

Para Wolfsohn, só na união sexual todas as forças do corpo estão dirigidas a dar
vida, a expor a substância que dá a vida, e, quando cantamos, procuramos a mesma

64
! “Listening, in these memoirs, will be exposed as the most constantly expressed in the classes. Listening
opened my eyes, my feelings, my sensations and made me capable to think forward” (Molinari, 2008b. p. 1).

65
! “In my teaching, whether it be of a man or a woman, I experienced again and again the same
phenomenon, namely that every voice is composed of male and female elements, and that it is only a
question of time and talent as to how far a voice is capable of bringing these elements into harmony, thereby
arriving at a unified voice in contrast to a specialized one. In observing a singing person, I could see the
same process, albeit in varying degrees, taking place: in order to achieve the sound, the body movements
made were those that are made in love-making–and it is not by chance that I invoke this word” (Wolfsohn,
s.d.a, p. 97).
64

concentração, dirigindo todas as forças a expressar o som da nova substância de criação


da vida – a voz vocalizada em canto.

Em janeiro de 2012, no Seminário Nacional de Liturgia, sob a motivação de Andrea


Grillo – assessor convidado para o evento –, escrevi um artigo discutindo a relações texto
x voz e música x canto. Ali escrevi que a voz não é um constructo do corpo, mas o próprio
ser; participando das dinâmicas complexas e não lineares da existência humana, a voz
também é corpo. Recupero agora essa definição para explicitar a profundidade com que
se deve usar essa pequena palavra de três pequenas letras e em que, na língua
portuguesa falada no Brasil, o V inaugura uma pressão interna que possibilita a saída do
grande Ó e se realiza no soar do Z, que pede o silêncio necessário para absorver o que
dela se descortina. No mesmo artigo, escrevi:

Quando usamos a voz respeitando a construção dos sentidos, nesse


momento temos expressão, que também é expressão simbólica. Daí que
ter voz e expressar-se não é, necessariamente, causa e efeito, é, sim, um
guiar-se por conquistas relacionadas – quando ligadas à função ministerial
para a liturgia do rito romano – à experiência de quem expressa. Ouça:
experiência de quem expressa e perceba que, por experiência, entende-se
também a capacidade de viver e transpor valores, condutas e
comportamentos instituídos sempre com o foco na profundidade da relação
com o corpo místico do Verbo encarnado (Molinari, 2012a).

A experiência como capacidade de viver e transpor valores, permitir-se a


transposição de práticas instituídas como trocar ser por estar. Operada essa transposição,
uma nova conduta se funde à anterior e geram-se novos comportamentos. O foco será o
foco que cada um busca no momento da experiência, e teremos tantas experiências
quantos forem os focos. Somos um universo a visitar. Nesse universo, existe uma voz
para cada molécula, composta, no mínimo, de dois átomos.

O visitado e não percebido delimita a necessidade de um outro terreno desse fazer


pedagógico. Vamos a ele. Introduzo a ideia e cito o texto recebido em correio eletrônico
de uma aluna após ter passado por um treinamento vocal de quatro dias:

Paula belíssima!!! Espero que tenha chegado bem e que esteja feliz e
contente […] aqui, sigo sentindo os efeitos de sua oficina em todos os
níveis de minha vida. Você não sabe quantas coisas bonitas tem
movimentado e que feliz ando. Espero manter este estado de ânimo :) sua
65
oficina me deu muito material para escrever e eu me sinto muito bem66  

[mensagem pessoal] (tradução nossa).

É notável como se cria um vínculo em tão pouco tempo, resultado do exercício de


escutar o outro num estreito nível de comprometimento, com o cuidado de não projetar
nada nele, mas apenas libertar seus conteúdos internos. O trabalho de voz em Alfred
Wolfsohn é uma abertura das clausuras. Esse lugar de experiência da liberdade que se
cria é um lugar que precisa gerar confiança. O interpretar precisa ser definido e será
tratado num dos apontamentos pedagógicos seguintes. A questão aberta agora é quanto
ao setting.

"
6.1.2 Segundo apontamento pedagógico: a construção do setting educacional

Essa prática deve se desenvolver num lugar de confiança. Não se pode


simplesmente começar uma aula de voz sem aclarar, de alguma maneira, que tipo de
relação se construirá. Adotamos aqui a palavra setting, e com o mesmo significado que
ela tem na expressão “setting terapêutico”. Setting educacional designa não só o lugar
físico do aprendizado, mas todo o ambiente, o tipo de acolhimento e a preparação do
espaço em que transcorrem as experiências, no mundo psíquico e fora dele, além da
relação professor-aluno. Procuro com isso reforçar que uma das características desse
fazer é que o aluno decide o objeto e percorre o caminho guiado pelo professor, que
vislumbra um lugar aonde chegar. Esse lugar tornar-se-á o objetivo, mas pode ser o
objeto do encontro seguinte.

Como Roy Hart Voice Teacher e estando fora do Centre Artistique International Roy
Hart, uma das maiores dificuldades que enfrentei foi para construir o setting. Quando
estive em formação, eu passei por todas as práticas no Centre Artistique International Roy
Hart, uma comunidade de experimentação, totalmente adaptada para esse fim.
Primeiramente, não há um acesso fácil. O Centro fica numa região de serra, com uma
estrada de mão dupla, cheia de curvas, sem muitas opções de transporte público, e a
cidade mais próxima com estação ferroviária é Alès, a 27 km.

66
! “Paula bellísimaaaaaa!!! Espero que hayás llegado bien y que estés muy feliz y contenta (…) Aquí yo sigo
sintiendo los efectos de tu taller a todos los niveles de mi vida. no sabes cuántas cosas bonitas se han
movido, y qué feliz que ando. Espero mantener este estado de ánimo :) tu taller me ha dado mucho material
para escribir, y me siento muy bien” (Molinari, 2011, arquivos de aula). Mensagem recebida por
<paula.musique@yahoo.com.br> em 25 abr. 2011.
66

E assim começa a construção de setting. Cada professor que organiza um período


de oficina artística também se responsabiliza por ajudar os estudantes em seus horários
de chegada, com as necessárias orientações. Muitas vezes, o próprio professor recebe o
aluno na estação de trem ou no aeroporto mais próximo, em Nîmes, a 75 km, ou um aluno
que já passou por alguma oficina e recepciona o novo colega. Muitas pessoas deixam de
ir por causa do desconhecido ou dessas condições, mas as escolhas de cada um já são
parte do trabalho.

Isso não foi proposital – foi o lugar que o grupo encontrou e pelo qual podia pagar.
O Roy Hart Theatre surgiu em Londres, com os alunos de Roy, na residência de Alfred
Wolfsohn e também de Roy Hart. Wolfsohn faleceu em 1962, e o grupo se mudou para o
sul da França no início da década de 1970, quando a França oferecia mais incentivo à
cultura que a Inglaterra, segundo contam os primeiros moradores e também professores.
Chegando lá, trabalharam para recuperar a construção antiga: refizeram telhados,
hidráulica, elétrica, criaram espaços de ensaio, de convivência, os alojamentos que hoje
abrigam os estudantes e, ao longo dos anos, o que hoje é o Centre Artistique International
Roy Hart.

Assim, a história dessa edificação se confunde com a própria história do grupo, e


não poderia ser de outro modo. Qualquer artista tem sensibilidade para apreciar a
qualidade desse empenho.

Nada é de luxo, mas tudo tem o essencial para uma vida confortável. Quando eu
estive lá não havia nem sequer telefone público, e o contato com o mundo exterior só era
possível em dias de descanso, quando havia dias de descanso. Tudo depende da
duração da oficina.

Os que não tinham carro próprio ou alugado, aproveitavam a saída de alguém com
carro ou caminhavam uma hora pela estrada – com trechos sem acostamento – até a
cidade mais próxima, Lasalle, a 6,5 km. É em Lasalle que se fazem as compras, previstas
no cronograma para o primeiro dia de oficina. Para um professor experiente e atento,
mesmo a organização dos carros e as escolhas dos alunos sobre os modos de ir podem
servir para as aulas – e, de fato, em geral, são muito esclarecedoras. As escolhas dos
alunos na vida cotidiana aproximam e ajudam o professor na condução da aula, e a
observação do professor não pode ser negligenciada – é parte da técnica.
67

Como vimos, no começo, não havia uma clara distinção entre o que era Roy Hart
Voice Work e o que era prática de Alfred Wolfsohn. Mas a condição geográfica do Centre
Artistique International Roy Hart e as ações que essa condição exige constroem um
setting muito específico, e essa verdade se impôs sobretudo quando precisei delinear
uma prática do trabalho fora daquele lugar. Era inimaginável, sem remeter-me a Alfred
Wolfsohn, conceber tal imersão sem aquele ambiente e suas condições: isolamento,
introspecção, mergulho em si próprio etc.

Desde a primeira vez que voltei de um dos estágios de formação, passei a ver
meus alunos de outro modo. Mesmo com o compromisso autoimposto de não aplicar o
que ainda não estava suficientemente sedimentado, meu olhar já era outro. Minha sala de
aula na faculdade tinha um vidro que me permitia ver o aluno subir as escadas até chegar
à porta de correr. Comecei a observar como cada um chegava, qual era seu tempo
natural, como subia, como se projetava no espaço, como me cumprimentava, com que
sonoridade de voz... Diversos elementos passaram a ter uma importância que antes não
tinham.

Todas as vezes em que um aluno alcançava alguma coisa, eu passei a agradecer-


lhe o avanço, e agradecia também quando me despedia, no fim da aula. Sentia a relação
da sala de aula como uma entrega de ambas as partes. Me levantava da banqueta do
piano para receber cada aluno que chegava. Isso também acontecia antes, mas não era
um ritual. Não era parte integrante de um processo que queria construir um vínculo mais
profundo.

Quando já estava no Grupo Pedagógico do Centre Artistique International Roy Hart,


tomava muitas notas em minhas próprias aulas (no Brasil) para compartilhar impressões
com meus colegas do grupo, na França. Charlotte já existia para mim. Uma se suas
pinturas passou a significar muito na relação que eu estabelecia com os alunos:

"
"
"
68

"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 37 - O ensino67
 

"
Folheando pela primeira vez o livro de pinturas de Charlotte, registrei
imediatamente a posição das mãos dele e dela no centro do quadro. Logo depois, reparei
na posição das mãos dele em relação às dela: nos movimentos anterior e posterior, acima
e abaixo. Para mim, aquela é a mão daquele que acompanha. Tem muito mais sentido,

! JOODS
67 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
69

deu-me mais segurança, mais vontade de seguir e conhecer. A sequência de pinturas


(Figuras 48 a 53) serviu-me de referência quando me perguntei como seria um setting
educacional de acordo com a proposta Alfred Wolfsohn. Eu queria saber como ele
construía um setting educacional indo à casa da aluna, especialmente na particularíssima
situação de dar uma aula a uma pessoa que o estava avaliando. Só a pintura de Charlotte
Salomon poderia responder.

Na conversa entre Alfred Wolfsohn e o responsável do órgão licenciador, um


homem muito ocupado,
Charlotte pinta a
auréola vermelha no
professor, assinalando
sua tensão do
momento.

"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 38 - Entrevista
com o licenciador68
 

! 68 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


70

Nas mãos dele, um papel que o apresenta a alguém que decidirá sobre sua
proficiência e, portanto, sobre sua licença de professor de voz – a respeitada cantora
Paulinka Bimbam, madrasta de Charlotte.

"
Figura 39 - A decisão nas mãos de alguém69
 

"
"
! 69 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
71

Nessa pintura, com o olhar voltado para baixo, ele primeiro vê Paulinka dos joelhos
para baixo, e parece que Charlotte indica que, depois, ele a atravessa e, finalmente,
altivo, aguarda enquanto ela lê a carta do responsável do órgão licenciador.

"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 40 - O primeiro contato70
 

! 70 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


72

Paulinka lê o que lhe é enviado, detalhe que Charlotte faz questão de registrar. O
texto pintado na tela diz:

Figura 41 - Liebe Paulinka…71 

"
Querida Paulinka,
Isto é para lhe apresentar o Sr. Amadeus Daberlohn. Ele reividica para si a
condição de profeta da canção. Desafortunadamente, falta-

-lhe permissão para profetizar, ensinar. Eu não posso lhe conferir a
autorização antes que seja avaliado. Delego a função a suas “queridas
mãos”.
Com afeto,
A.

! 71 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


73

"
No quadro da Figura 42, Paulinka diz:

Então, nós vamos trabalhar juntos.

Charlotte muda o fundo e as cores para dar o tom do encontro. Nas letras em
vermelho, outra vez a tensão. E foco no encontro dos olhares – ou seria um confronto?

"

"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 42 - Encontro72 

"
! 72 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
74
"
A aula, o espaço de aprendizado. A necessidade dele de comunicar a que veio. A
predisposição dela. E o setting educacional?

"
Figura 43 - Permitir73

 

! 73 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


75
"
"
Outra vez o braço alongado, enorme… Abertura, vontade de conexão. Olhos
voltados para ela. Depois, ela canta. Vemos a partitura – ao lado das flores sobre o piano,
há agora música.

"
"
"
"
"
"
"
"
"
Figura 44 - Música74  

"
"
"
"
"
"
"
Figura 45 - Detalhe: braços75
 

74
! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.

! JOODS
75 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
76

A aula termina com a chegada do


marido de Paulinka, o Sr. Kann – pai de
Charlotte. Aluna e professor marcam uma
nova aula para o dia seguinte, às dez horas.
Seguem-se dez pinturas – em Charlotte
representa a inquietação de Alfred Wolfsohn
para seguir fazendo com que Paulinka
transforme seu canto – e só depois o segundo
encontro. Alfred Wolfsohn chega com um livro
nas mãos e o entrega a Paulinka. São suas
ideias. (O texto que vimos discutindo aqui.)

"
Figura 46 - Amanhã às 10h76
 

Mais à frente, Charlotte retrata um


momento em que ele se fixa na escrita
do texto Orpheus: oder der wegzueimer
maske, que não parece ser o que ele
agora entrega a Paulinka. O que
acontece é que, quando pinta as ideias
de Alfred Wolfsohn, Charlotte pinta
também as suas próprias, que
representa antes de pintar a criação de
Orpheus. Assim, parece-me claro que
esses que se veem na Figura 47 são
os primeiros escritos que depois virão a
tornar-se o Orpheus: oder der
wegzueimer maske.

Figura 47 - Primeiro texto77


 

76
! JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.

! JOODS
77 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
77

Mas não permitamos que as palavras se sobreponham às imagens. Busquemos


juntos o setting educacional.

"
"
Figura 48 - O ensino’78
 

"
"
"
! 78 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
78

"
Figura 49 - Relação79

 

! 79 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


79

"

"
Figura 50 - Detalhe: braços’80
 

! 80 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


80

"

"
Figura 51 - Canto81

 

! 81 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


81

"

Figura 52 - Transformação82
 

"
"
"
! 82 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.
82

"

"
Figura 53 - Amanhã às 10h - outra vez83
 

! 83 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


83
"
"
Ver e rever muitas vezes essa sequência das Figuras 48 a 53 me esclareceu que o
setting educacional era construído no vínculo, no acolhimento, na atitude do professor, no
cuidado com o aluno e em tudo o que perpassa a relação que, simbolicamente, expressa
a mão de Alfred Wolfsohn dirigindo-se a Paulinka.

Pensei em quais seriam as harmonias, quais os acordes. A marcação insistente de


Charlotte Salomon sinalizando “Bist du bei mir”, a ária de Orpheus para Eurídice (Gluck),
estudada por Paulinka nesses encontros, e os símbolos contidos no mito de Orfeu me
ajudaram a compreender os possíveis caminhos para a construção do setting
educacional.

Uma observação das mais significativas foi o fato de que eles tinham o espaço dela
– território pessoal de Paulinka e da família – e o piano. Isso me levou a pensar que a
escolha do acorde ao piano também criava ambiente, e passei a compor os vocalises de
acordo com a sensação que identificava ao receber cada aluno. Compus tantos vocalises
personalizados que muitos não consegui registrar. Compunha na hora, no momento da
aula, pensava rapidamente naquilo que tinha escutado e devolvia como sugestão de
exercício. Às vezes, eu mesma me surpreendia com as melodias que criava, com as
harmonias que escolhia, num impulso. (Evidentemente, o registro imaginado – uma
câmera escondida, por exemplo – nunca encontrou lugar nesse contexto, possivelmente
também porque o setting tem uma componente sagrada que não convém profanar.) No
fim das aulas, a intensidade da jornada se havia sobreposto aos detalhes dos vocalises,
e, a bem da verdade, só importava onde cada estudante chegara.

De todo modo, um deles – que eu uso muito – será ilustrativo. É o Bidu-Bidu, um


vocalise com que eu demarco o setting educacional. Compus quando era professora no
Centre Artistique International Roy Hart, para uma aluna brasileira. Transcrevo:

"
"
"
"
84

Figura 54 - Bidu - Partitura Manuscrita


"
"
A força da harmonia do Bidu e a forma como ele ajuda a trabalhar – sobretudo com
grupos – têm sido preciosos na construção do setting educacional. Com o mesmo tema,
expressam-se diferentes emoções.

Eu peço ao aluno, ou ao grupo, que conte uma história com Bidu. Então, cada um
se apresenta ao próprio grupo com o Bidu, cantando em solo, e o grupo deve responder
ao solista com uma resposta sincera, criada a partir do percebido.

Além de criar um setting educacional, o Bidu é uma abertura à escuta e é feito a


partir da relação que se estabelece entre a minha escuta do grupo e a de cada solista que
retorna também em resposta à maneira de tocá-lo ao piano a cada voz que se apresenta.
No terreno do não verbal, se constrói uma relação que guia todo o trabalho dali em diante.

Independentemente do tipo de sala, o Bidu me ajuda a chegar a um setting


educacional pela maneira com que convida os alunos a se colocarem sem pensar em
certo ou errado. Se o aluno não souber a afinação correta, não importa; eu o sigo com o
85

piano sem repetir a sequência original e, com o acorde seguinte, vou resgatá-o do lugar
distante da dificuldade de se integrar num círculo de apresentações sem palavras.

As imagens de Charlotte Salomon ajudam a entender o lugar que a música


ocupava. Não é o professor que dita o caminho vislumbrando um resultado já previsto,
mas ele sugere um possível caminho, e o aluno se conduz dali em diante, através das
sonoridades, numa constante revelação de conteúdos e, portanto, de sentidos, que
enriquecem a viagem de reconhecimento desses lugares ainda não explorados da voz.
Assim, criam-se o vínculo e o setting por meio da música.

O contínuo da música, esse elemento que – claro – depende de como cada um a


recebe, dá uma liberdade de interpretação sobre o que se deve fazer com o exercício.
Quando algum aluno insiste em perguntar o que deve fazer, eu insisto em repetir, serena
mas firmemente, o canto do Bidu; não me deixo enredar no jogo das palavras, porque o
objetivo é que o aluno também comece a se escutar de outro lugar. Que ele possa escutar
para escolher. Buscar no terreno do desconhecido a decisão de cantar o Bidu e tentar; ao
menos tentar. E talvez se surpreender com o que se dá.

Percebi que o investimento que o aluno faz também concorre para que ele se
dedique seriamente ao trabalho. Quando, interessada em aplicar as proposições de Alfred
Wolfsohn e trocar, discutir, experimentar e dialogar sobre os achados, eu franqueva o
trabalho a quem mo pedisse, percebi que perdia uma relação necessária e parte da
construção do setting educacional que eu tanto buscava. Era preciso criar um
compromisso anterior à aula, que configurasse um desejo que desse à decisão outra
profundidade.

Assim, o trabalho agora inclui a organização dos horários na agenda do aluno, seu
deslocamento, sua disposição e outras questões práticas que, longe de ser acessórias,
são o que lhe imprime a necessária materialidade.

Concretamente, como professora, eu devo dedicar total atenção às aulas. Isso se


traduz na garantia de uma aula sem interrupções, nas condições de tranquilidade e
intimidade que o trabalho exige.

Outro elemento do setting educacional: a visão de corpo. O corpo estabelecido na


relação professor-aluno é o que chamaremos aqui de corpo integrante, usando a
86

expressão de Takahashi (2003). Mas vale citar o conceito de Hélio Oiticica e Lygia Clark
elucidado por :

A reproposição da arquitetura em Oiticica e Clark, germinada na


reconsideração da ação artística, estrutura-se no reposicionamento de três
aspectos fundamentais: o espaço, o tempo e a relação obra-

-espectador. O primeiro desloca-se do espaço geométrico da
representação para o espaço topológico de relações. O segundo desloca-
se do tempo como permanência da obra para a efemeridade da ação-
interação do participante. O terceiro desloca-se da obra destinada a um
espectador passivo para um campo ativado pelo participador-atuante. […]
estruturada pela experiência vivencial de um tempo e de um lugar, tendo
em si como potência outras situações. É a dilatação do ser no mundo,
extensão do corpo ou, tomando Merleau-Ponty (1994),84 voluminosidade
 

(Sperling, 2012).

Esse esclarecimento nos servirá de modelo para explicitar a dinâmica constituída. A


voz é, para nós, o próprio ser e, portanto, é corpo. Daí, qualquer outra definição fragmenta
aquilo que tratamos como uno. Trata-se da dinâmica com a qual a voz – a que
chamaremos didaticamente, ao menos por hora, de vozcorpo – é explorada a partir de
uma relação de integração entre as duas vozescorpos, a do professor e do aluno. Aplica-
se o conceito de Sperling ao espaço topológico das relações e se toma a origem
etimológica de topologia: do grego topos, lugar, e logia, estudo. Portanto, lugar de estudo
das relações. E tempo como o efêmero, que, também em grego (ephémeros), significa
apenas um dia, característica do fazer musical e que se coloca para nós naquilo que o
aluno realiza ao exalar som vocal, ao vocalizar, e que, sob o acompanhamento atento do
professor – que não vocaliza, mas, com os dedos no instrumento, dedilha, digita, imprime
sentido ao som que elege para essa experiência de várias semioses e que é passível de
tantas traduções até porque é a dilatação do ser no mundo.

Dessa constatação, experimentamos um fazer em que o setting educacional


continua a ser preservado pela intervenção do professor. Há aulas coletivas que podem
durar em torno de uma hora sem que se diga uma única palavra. Apenas sons. É uma
obra musical em toda a sua estrutura, introdução, exposição, desenvolvimento, re-
exposição e coda. Professor e aluno desarmam-se do discurso, e cada um a partir de seu
repertório constrói o setting educacional.

Assim, o setting educacional contempla desde o antes da aula até o momento em


que, na aula, a percepção do que será tocado é de conhecimento de ambas as partes.

! 84
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. C. A. R. Moura. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
87

Nesse ponto, se desenvolve o trabalho, independentemente de lugar geográfico, idioma,


diferença cultural, profissão, classe social, idade, religião ou outra condição que possa
separar duas pessoas.

Vale ainda uma observação. Essa é uma das características do trabalho visto no
desenvolvimento das ideias de Alfred Wolfsohn e a que fizemos muitos acréscimos em
função de nossos experimentos. A ponto de os pesquisadores que integraram o Centro de
Estudos de Voz Wolfsohn, uma das atividades abrigadas pelo Latin Theatre International
Wolfsohn and Hart Voice Work/Brasil – professores de canto e de atuação teatral,
diretores de teatro, mestres de yoga, matemáticos, músicos instrumentistas, roteiristas,
profissionais da dança, professores de educação infantil, contadores de histórias,
regentes de coral, psicólogos, psicanalistas, musicoterapeutas e cantores populares e
eruditos – terem passado a se referir ao trabalho como Voz Wolfsohn/Molinari.

"
6.1.3 Terceiro apontamento pedagógico: interpretação e condução do som sugerido"

Comecemos pelo termo interpretar. Uma definição possível é também geral: o fato
se tomar alguma coisa em determinado sentido. Dessa perspectiva, traduzir e interpretar
podem ser sinônimos. Traduzir também tem sua parte criativa (Plaza, 2003), e tomar algo
em determinado sentido é afirmar que há sentido. Para compreender que há sentido, é
preciso ter memória. Admitimos que cultura é memória (Ferreira, 1996), e memória remete
à mitologia grega. Na mitologia grega arcaica, as musas são filhas de Mnemosyne
(Mendes, 2012) com Zeus. Mnemosyne é a deusa da memória, portanto, as musas são
filhas da Memória com Zeus. Museu é o templo das musas, e musa é música, como
entidade e inspiração. As musas tinham a função de presentificar o passado. A palavra
presente remete à presença como espaço e como tempo, tornando ao nosso eixo
espaçotemporal.

Entendendo as musas como música, a voz, que é phoné e é igual a sopro – que é
criadora, que dá vida –, realizada em canto, é a união da criação com a musa. Portanto, o
canto tem seu status marcado pelo poder de presentificar o passado. As musas tinham na
voz o poder de fazer lembrar ou fazer esquecer. Na Grécia de que tratamos agora, só se
consegue a verdade na voz das musas. O que continua no esquecimento é a mentira.
Portanto, memória é verdade.
88

As musas cantavam e dançavam o poema para o poeta, o Aedo, que manejava o


logos (verbo, palavra) e interpretava o poema em performance. Performance como ação
efêmera, porque única e irrepetível.

A performance nunca se repete, ainda que se repita seu material. Esse momento
de exposição da voz (phoné) que foi libertada de alguma clausura e é exteriorizada pela
música (musa) em performance pelo aluno é absorvido pela escuta do professor, que
está, ao mesmo tempo, construindo o setting educacional. Agora, ele vai além e sugere
um caminho que escolhe ao receber o som do aluno e reagir a esse som com sua própria
voz (vozcorpo). Na memória de seus registros de experiência – igualmente de libertação
de suas clausuras pessoais –, pode encontrar algum sentido que o leve a decidir que
caminho tomar. Isso ajuda a construir a acepção da palavra interpretar aqui.

Essa dimensão da interpretação resulta da experiência. Foi através dela que


chegamos ao ponto da definição; o ponto em que, se não definimos o sentido de nossas
palavras, elas não declaram o que devemos fazer compreender.

Existe um peso no julgamento como atribuição de valor na formação pedagógica


conduzida pelos discípulos diretos de Roy Hart. Não se usa interpretar para designar um
fazer; usa-se o termo julgar, para dizer que o Roy Hart Voice Teacher não julga.
(Abstemo-nos de reproduzir aqui toda a discussão em torno desse ponto. Para o nosso
propósito, basta deixar registrar esse uso específico de julgar por professores do Roy hart
Voice Theater.)

A experiência que culminou na clareza sobre interpretar foram os sucessivos


momentos – determinantes – em que professor e aluno estão em busca de sentidos.
Sentido implica escolha, caminho, limite (Castro, 1998). Esse sentido se estabelece no
diálogo entre duas pessoas dispostas a encontrar a pergunta sobre a questão que só
surgirá depois do caminho transcorrido. Esse momento marca a busca da questão.
Portanto, quanto maior for a experiência do professor, maior será a possibilidade de se
vislumbrarem sentidos e passar ao diálogo. Diálogo com a abertura de que existe a
possibilidade da dialogia (informação verbal),85 ou seja, que compreende a possibilidade
 

da harmonia entre contrários. Castro (1998) afirma que a harmonia entre contrários do
diálogo se manifesta como reflexão – daí estar presente no ato de interpretar.

! 85
Informação fornecida por Jerusa Pires Ferreira, em aula de Semiótica da Cultura na PUC-SP, em 23 de
setembro de 2010.
89

Ainda para Castro (1998), a reflexão une a visão e a escuta, e, para


ultrapassarmos a dimensão da subjetividade, é preciso que aconteçam em nós a escuta e
a voz86 das musas, filhas de Mnemosyne.
 

Alfred Wolfsohn usou de muitas metáforas para explicar esse ponto que aqui
traduzimos com a intermediação da discussão filosófica. A voz que Wolfsohn tomou como
caminho permite essa ultrapassagem porque favorece em nós a escuta e a voz das
musas, filhas de Mnemosyne, a Memória, porque nesse momento o aluno é convidado a
experienciar o real como mundo, a ser o poeta, e não a revelar a experiência, que seria
apenas a reunião da escuta com a visão. É o momento em que toma sentido a voz como
membrana basal. Essa voz é a voz das musas e o lugar onde o real se manifesta na
verdade dialógica.

Baseamo-nos em Castro (1998) para dizer que, aqui, o real não está para a
experiência de interpretação poética como o único verdadeiro. A abertura de mundo não
garante o mundo. Abrir-se implica interpretar-se, e não exteriorizar-se diante de uma obra.

Portanto, o lugar do docente que aplica aquilo que denominamos Pedagogia


Wolfsohn e que agora se delineia como Pedagogia Wolfsohn/Molinari, uma vez que se dá
pela perspectiva de tradução desse conteúdo, do que é demarcado por uma necessidade
de experienciar, está pautado na experiência. Não se constrói o sentido da teoria
prescindindo da experiência. Experienciar é condição sine qua non para o docente. Sem
experiência, não há possibilidade de interpretação.

Uma das leituras equivocadas desse fazer interpretativo tem levado à projeção. A
projeção tem sido, portanto, o uso de um conhecimento sem as condições que só a
experiência propicia. Com isso, escolhas interpretativas deixam de existir para dar lugar a
projeções de afirmação e negação, muito comuns em aulas conduzidas por currículos
incompletos, visando apenas a reprodução e não a criação, como propomos aqui.

"

! 86
Para falar na necessidade de atingir a experiência poética, diz a autora que “experienciamos a verdade e
sentido do real como poiesis” (Castro, 1998, p. 13).
90

7 NO SOL EQUATORIAL

Este capítulo é nossa última parada e guia a discussão sobre os achados, abrindo
uma perspectiva de encerramento de uma etapa e demarcando o ponto onde surgem
outras questões a partir das que logramos responder aqui. Nessa busca, sob o sol
equatorial, encontramos algo que nos surpreendeu – trata-se, na verdade, de nosso
achado, um dado novo.

Retomemos nossa trajetória.

Falamos em voz e usamos a pintura de Charlotte Salomon para integrar a


experiência do desenvolvimento vocal proposto por Roy Hart e seus seguidores.
Mencionamos que esse trabalho vocal era considerado terapêutico e passamos a buscar
a pedagogia que ele poderia encerrar. Nesse ponto, encontramos repetidas vezes a
música como elemento unificador. Falamos ainda na construção de um setting
educacional, em interpretar e nas relações que se estabelecem aí e procuramos mostrar
como Alfred Wolfsohn criava exercícios. Descrevemos sua maneira de buscar
sonoridades por meio do quarteto de cordas: violino, viola, cello e contrabaixo. Falamos
também da ópera como caminho para as percepções do timbre. Comentamos o EIN

SINGSPIEL no título da obra de Charlotte Salomon, com uma breve análise do sumário e
das escolhas de repertório. Em tudo isso, havia todo o tempo um elemento comum: a
música.

É esse o nosso achado: a música, em Alfred Wolfsohn, é o elemento por meio do


qual ele liberta a voz de sua clausura. Poder-se-ia argumentar que não há, aí, nada de
novo, pois em toda aula de canto intervém a música. O que então distinguiria a forma de
desenvolvimento vocal proposta por Wolfsohn? Vejamos.

Numa aula comum, busca-se a voz ideal para cantar determinado estilo. Busca-se
também atender a um conjunto de pressupostos que, em tese, farão que o aluno encontre
um timbre considerado ideal para o tipo de música que ele canta. É o princípio da
imitação: procura-se imitar o melhor possível.

Para Alfred Wolfsohn, a busca por meio da voz com o uso da música e pela
imitação de instrumentos musicais é um retorno à origem. Nesse caso, a voz é como um
instrumento, e o cantor, cônscio das possibilidades de seu instrumento, busca as vozes
91

de sua voz e as recoloca no repertório segundo suas escolhas. Assim, as duas diferenças
essenciais são a liberdade e a descoberta das vozes da voz tomando o repertório não
como fim, mas como caminho.

E qual seria o fim? O fim será o encontro e a posse dessas vozes para retornar ao
repertório e vocaliza-lo como expressão, para além do texto imposto pelas palavras e
para dentro do texto da totalidade de ser/estar no mundo naquela fração de tempo que a
performance possibilita e na certeza de que cada nova interpretação em performance
será uma criação.

Em Wolfsohn, não se trata mais da capacidade de repetir sempre da mesma forma,


e sim de repetir na mesma forma aquilo que é recriado a cada performance, única e
irrepetível como sonoridade, mas – repetimos – na mesma forma. Em outras palavras: o
material é o mesmo, o resultado é que é novo.

Agora podemos responder como se poderia aplicar isso à ópera. Mantendo a


forma, ou a estrutura, e refazendo a música na expressão do instrumento voz que a
vocaliza, tendo essa voz sido liberada por meio de um mergulho na própria música.

Esta discussão é subsidiada pela estética musical. Apresentando a obra de Michel-


Paul-Guy de Chabanon, Lia Tomás (2011, p. 261) assinala que o autor reconhece que,
outrora vista como um aspecto negativo, a imprecisão semântica é um trunfo da música
instrumental.

A ideia da imprecisão semântica da música instrumental foi a chave desta


interpretação. Para Chabanon (Tomás, 2011),87  

a forma mais antiga de música


instrumental foi a música vocal em que não se compreende o significado das palavras,
pois, afinal, voz é instrumento. A supremacia da palavra forçou-nos a uma visão do canto
atrelado à palavra, o que cria uma relação com a semântica que obsta a percepção das
relações estabelecidas pela música. Para isso, elucida Chabanon (Tomás, 2011, p. 82):

Nenhum sinfonista que toca em uma orquestra de concerto escuta as


palavras pronunciadas pelo cantor, entretanto, ninguém se emociona tanto
com o canto de um homem hábil. Estou convencido de que, se alguém
quisesse explicar a esses músicos-sinfonistas o que o cantor quis dizer,
eles pegariam seus instrumentos, repetiriam a parte vocal e responderiam:
eis o que o cantor disse.

! TOMÁS,
87 Lia. À procura da música sem sombra. São Paulo: UNESP/Cultura Acadêmica, 2011. 1 IBook.
92
"
"
Voltemos a Charlotte Salomon e a sua descrição na Pintura 5:

Como ele começa soando dentro, ela observa o tom para um acordo sobre
o que realmente irá para o papel. Um texto se forma em sua cabeça, e ela
começa a cantar o tom com suas próprias palavras, muitas e muitas vezes,
em voz baixa, até que a pintura se revele completa. (Schwartz, 1981, p. 58,
tradução nossa)

A artista conta como faz para pintar as cenas que se lhe apresentam, como escolhe
seus tons – aqui, cremos, com o sentido de tom-cor e tom-som. Quando usa pela primeira
vez a palavra tom, ela se refere à cor; na segunda, ao som. E completa a descrição: “até
que a pintura se revele completa”. O que Charlotte faz é o que Chabanon sugere ao
músico-sinfonista. Quando diz que o música-sinfonista deveria tocar em seu instrumento o
que canta o cantor para expressar o que o cantor quis dizer e revelar esse sentido, trata-
se do processo desde a obra feita para a descoberta do sentido nela embutido. No
sentido inverso, Charlotte conta que o artista busca o que quer dizer em seu canto para
escolher o material que o representará pela cor. Em ambos os casos, o caminho é o
canto.

Voltemos a Chabanon (Tomás, 2011, p. 70):

Gostaria de assinalar que só a música tem a capacidade de encadear as


sucessivas sensações que ela nos causa, de modo que influenciam e
modificam umas às outras, portanto, tratemos de tornar mais evidente tal
concepção. Experimente sensibilizar a visão, o olfato e o tato com a
presença de diversos objetos que se substituem uns aos outros; essas
sensações não se ligarão umas às outras, e aquela que cessar não
influenciará a subsequente, mas na música, o som que não mais ouvimos
se liga, pela lembrança, àqueles que o sucedem, os quais formam um
único corpo, isto é, são as partes de um todo e, para alterar a frase que
ouvimos, bastaria, em certos casos, separá-la daquela que a precede.

Essa explicação sobre a forma como a música encadeia as sensações é essencial


para distingui-la de outras formas de expressão artística: as informações musicais se
ligam umas às outras como partes de um todo. Tomando a pintura como exemplo,
Chabanon pergunta: “Como é que a música pinta o que impressiona o olhar, enquanto a
pintura não tenta sequer reproduzir o que pertence ao domínio dos ouvidos?” (Tomás,
2011, p. 78). E por isso Charlotte Salomon afirma, na Pintura 58 (Figura 55): “De agora
em diante, os sentimentos de Charlotte são expressados em canções”.
93

"

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"
Figura 55 - Sentimentos em canções’88  

Charlotte estava de posse da pintura, mas não era suficiente.89 Ela precisava da
 

música para exprimir seus sentimentos. E Chabanon dirá:

! JOODS
88 HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.

! 89
Ressaltamos que não nos aprofundamos na discussão das artes visuais ou das artes plásticas porque,
aqui, o trabalho de Charlotte Salomon não é tomado como obra de arte, mas como uma tradução do legado
de Alfred Wolfsohn. O processo analítico não tange tais questões.
94
A pintura ocupa-se, por essência, da fiel imitação, e se ela não imita, não é
nada; dirigindo-se apenas aos olhos, ela só pode imitar aquilo que
impressiona a visão. A música, ao contrário, agrada sem imitar por meio
das sensações que proporciona e, uma vez que os quadros são sempre
imperfeitos e consistem, algumas vezes, em uma simples e débil analogia
com o objeto que pretendem descrever, tais relações se multiplicam
facilmente. Resumindo, a pintura imita apenas aquilo que lhe é próprio,
porque ela deve imitar com rigor; já a música pode pintar tudo, porque
aquilo que ela descreve é sempre exposto de modo imperfeito (Tomás,
2011, p. 78).

Assim, por essa capacidade de manter o tempo num fluxo contínuo, a música faz
com que a voz se revele quando a convida a sair de sua clausura. Que clausura? O
descontínuo da palavra em que a razão interfere. Então, a suposta falta de objetividade
do terreno da não palavra é a objetividade musical. Esse fato é amplamente
incompreendido, inclusive por músicos, e suscitado pela falta de suporte na formação.

Podemos entender a razão dessa falha pela constatação de que, no currículo de


nossos artistas e professores de arte, a compreensão ontológica da obra de arte só está
contemplada nos níveis mais altos da formação acadêmica, o que concorre para a
disseminação de um fazer artístico calcado ainda no limite entre a arte e o artesanato,
discutido por Platão e Aristóteles e delimitado na obra de Jean-Jacques Rosseau, a quem
Chabanon se opõe fortemente. Trata-se aqui do conceito de arte como imitação da
natureza, como norteador de uma ideia de função da obra de arte:

Do fato de que a música, em sua essência, não é uma arte de imitação: ela
se presta a imitar na medida do possível; mas esse ofício de complacência
não pode distraí-la das funções que sua própria natureza lhe impõe, e uma
dessas funções necessárias é variar a cada instante suas modificações, é
aliar na mesma peça o delicado e o forte, o longo e o breve, a articulação
frenética e a afetuosa. Essa arte, assim considerada, é de uma
inconstância indisciplinável, visto que todo seu charme depende de suas
transformações rápidas, e eu sei que cada trecho é retomado com
frequência, mas sem nunca parar (Tomás, 2011, p. 127).

Não podemos deixar de mencionar que a filosofia alemã posterior a Chabanon


retomou a questão no século XIX e seguiu motivada por outros elementos, mas importa
revê-lo aqui por sua eloquência e seu empenho em se fazer compreender.

A música está todo o tempo conduzindo e sinalizando ações. Poderíamos, então,


afirmar que a pedagogia que buscamos no trabalho de Alfred Wolfsohn é uma prática
comum entre músicos ou que só os músicos teriam a capacidade de desenvolvê-la? Não.
Essa afirmação vai de encontro ao status quo do fazer em que se dá essa pedagogia.
Afirmamos, pelo contrário, que os currículos atuais dos cursos de formação de
95

professores de arte – e aí se incluem os licenciandos em música – não preparam o


professor para organizar autonomamente seu objeto: a música em suas diferentes
perspectivas estéticas.90  

A independência da palavra a que nos referimos aqui, derivada de uma visão da


música instrumental, não será a expressão da coisa, mas será a própria coisa. Vejamos
Chabanon uma vez mais:

[…] as expressões e as palavras são apenas signos convencionais das


coisas, ou seja, tendo sinônimos e equivalências, essas palavras e
expressões se deixam facilmente substituir por estes; mas, na música, os
sons não são os signos que exprimem o canto, eles são o próprio canto. O
que fazemos quando imaginamos a frase de uma melodia? Dispomos os
sons de tal ou tal maneira e, uma vez determinado o canto, a disposição
dos sons também o é, necessariamente. Daí conclui-se que, na música,
nunca se pode exprimir obscuramente o pensamento. Cantamos e
anotamos os sons que temos em mente, e estes não são a expressão da
coisa, eles são a própria coisa (Tomás, 2011, p. 108-109).

A compreensão dessa realidade inscrita no legado de Alfred Wolfsohn só pode ser


extraída da experiência com a análise da obra de Charlotte Salomon – uma obra
essencialmente visual, mas que se realiza por meio de elementos musicais. Isso tem
como referência o conceito (espiritual) de expressão em Alfred Wolfsohn, para quem
expressar-se é se derramar em voz, devolver em exalação o ar inalado do sopro divino na
criação do primeiro homem, resultado da concentração e da intensidade e que Charlotte
aplica a sua criação. Nas palavras do próprio Wolfsohn (s.d.a, p. 55), em Orpheus:

[…] quando o significado da vida tornou questionável para mim, também


questionei o significado da arte sem minimizar a validade das obras de
arte. Para mim, o que era instável era o conceito de arte em sua
interpretação da irrealidade, o idealismo em oposição ao realismo da vida
diária.
Essa discrepância perdeu seu aspecto temível quando uma súbita
inspiração me fez entender que a linguagem que usamos em nossa vida
diária não aparece como vemos opticamente na página, mas que sempre é
audível com algum tipo de entonação, baseada de forma tênue sobre a
música.91 

90
! Essa afirmação está pautada no conhecimento da gestão pedagógica de cursos de graduação e
licenciatura em música e na forma de avaliação proposta pelo Sistema Nacional de Avaliação do Ensino
Superior (Sinaes) em território nacional.

! 91
“[…] as the meaning of life became questionable for me, so became the meaning of art, without in any way
diminishing the validity of works of art. For me, what was shaken was the concept of art in its interpretation
as an unreality, the idealism of which stood in opposition to the realism of everyday life.
“This discrepancy only lost its frightening aspect when a sudden inspiration made me understand that the
language we use in our daily life is not used as it appears to us optically on the page, but that it is always
audible in some kind of intonation, founded however tenuously on the base of music” (Wolfsohn, s.d.a, p.
55).
96

Com isso, a música se apresenta como elemento fundamental para a compreensão


de todo o processo de desenvolvimento das ideias que se discutem aqui. Em nossas
oficinas, músicos instrumentistas – ou, como diria Chabanon, músicos-sinfonistas –
exploraram com grande êxito exercícios de fazer do instrumento a extensão da voz

Isso reitera o potencial deste estudo como uma pedagogia para o ensino de todas
as artes – de que a música é uma parte, naturalmente –, aplicada ao desenvolvimento de
artistas educadores ou artistas envolvidos com as práticas interpretativas.

"
97

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As artes têm sido um dos campos de maior investigação


semiótica por serem actividades eminentemente simbólicas do
homem, actividades em que este, utilizando materiais, formas,
cores e sons, representa e significa algo para lá das entidades
físicas concretas que servem de suporte às realizações
artísticas.
António Fidalgo, 1999

No início desta pesquisa, afirmamos insistentemente que, ainda que


pretendêssemos lograr grandes avanços em cada aspecto que surgisse da proposta de
Alfred Wolfsohn, era mister que os introduzíssemos no meio acadêmico, e de modo a
apontar caminhos. Assim, estas considerações finais dizem das necessidades
deflagradas pelas novas questões que se abriram a partir deste estudo.

Primeira: a constatação dos três princípios pedagógicos confirma nossa hipótese


de que é possível cunhar uma pedagogia por meio da tradução intersemiótica, e isso
demanda uma investigação contínua.

Segunda: as práticas pedagógicas de que tratamos aqui podem subsidiar cursos


de formação de professores não só de música, mas de artes em geral, e talvez se
possam aplicar à formação de professores outros.

Terceira: continuidade do estudo do texto Orpheus: oder der wegzueimer maske


pensando nas conexões entre voz e ambiente, voz e espiritualidade, voz e educação, voz
e criação artística e voz e psicanálise.

Quarta: deve-se estudar também o método pedagógico que subjaz à proposta de


Wolfsohn de desenvolvimento vocal.

Quinta: análise de Orpheus a partir da filosofia da arte, mais precisamente, da


estética, com foco na música como elemento catalisador do desenvolvimento vocal
proposto por Alfred Wolfsohn e que vimos complementado em nosso trabalho.

Sexta: publicação uma edição comentada em português da obra de Charlotte


Salomon e do texto Orpheus: oder der wegzueimer maske.

À guisa de conclusão, entendemos que a pedagogia Wolfsohn pode se estender à


formação em práticas interpretativas e que o trabalho desenvolvido aqui abre a
possibilidade de se delinear um sólido processo pedagógico, bem como a perspectiva de
98

uma nova abordagem do fazer musical, que demanda um ponto de vista que deve ser
instituído na formação docente pelo replanejamento curricular. A valorização da
performance decorrente deste estudo amplia a discussão sobre a ontologia do fazer
artístico dados os atuais avanços da comunicação e da semiótica, renovando também o
estudo da voz, da performance e da comunicação oral.

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99

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Figura 56 - Um dia as pessoas falarão sobre nós dois92
 

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! 92 JOODS HISTORISCH MUSEUM. Charlotte Salomon.


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