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S ara Lopes
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otencializar a expressividade da voz e da plorados, que transposições e aplicações serão
fala, um dos fundamentos do trabalho vo- buscadas para a fala e, sobretudo, que integração
cal do ator na construção poética da re- terá no processo de criação.
presentação, depende da disponibilidade e A técnica vocal que o ator desenvolve, a
da condição de encarar este elemento de partir do canto, dota-o de um controle sem an-
seu instrumental como parte de sua criação – siedade da respiração pelo conhecimento da
produção e realização em sentido intenso, emi- musculatura, de uma ampliação da intensidade
nente, absoluto –, decorrente de um profundo sonora pela maximização da função dos
saber do campo em que atua e de uma técnica ressoadores, de definição e precisão na emissão,
construída a partir do conhecimento e do trei- de flexibilidade e nuances nas tonalidades, de
namento do próprio corpo. ampliação dos limites da extensão a partir dos
Com sua voz, o ator cria ritmo e melo- tons médios. Em relação à fala, a sustentação
dia, cadências, as mais sutis modulações e infle- de sons presente no canto resulta num equilí-
xões, música, enfim, transformando seu texto brio de sonoridade, evitando a perda de rendi-
em verdadeira partitura de tempos precisos, mento tão comum aos finais de palavras e/ou
pausas contadas, compondo, entre sons e silên- frases; a silabação determinada pela melodia
cios, a fala teatral. leva, à fala, a estabilidade do tempo e a exis-
Esta aproximação dos termos musicais aos tência de cada som; a acentuação das melodias
procedimentos técnicos da fala denota muito permite a compreensão e a manutenção da ca-
claramente o quanto esta se encaminha, em seu dência e do ritmo da palavra falada. A própria
processo de elaboração, para a complexa sim- expressividade encontra elementos de transpo-
plicidade da música. sição no canto. Ela supõe uma construção con-
A prática de elaborar a voz e a fala por creta entre melodia, ritmo e sonoridade que tra-
meio do canto não é, então, um artifício equi- ça, na entoação dada pelas intenções, além da
vocado. Principalmente quando se sabe que ele- expressão em si mesma, a própria definição de
mentos serão identificados, reconhecidos e ex- um gênero ou estilo.
Sara Lopes é atriz e professora do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes da Unicamp.
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povo, com seu discurso aparente e os significa- cadência e pulsação do texto. Os sons, os rit-
dos embutidos nos discursos por trás do discur- mos e os movimentos, as melodias da Canção
so, está registrado nas canções. Elementos his- Brasileira, estabelecem contato entre o cantar e
tóricos, teóricos, técnicos e práticos que o falar. O exercício do canto brasileiro é meio
estruturam a concepção e a estética da canção, propício ao desenvolvimento dos parâmetros li-
constituindo seus procedimentos e convenções, gados à voz e se presta adequadamente ao en-
são fundamentos básicos para a criação e a re- tendimento daqueles outros, referentes à fala,
criação, na interpretação, em perspectivas con- pois sua construção se origina na palavra.
temporâneas. Nos compositores da atualidade, Da fala, pois, a canção aprende a ser fei-
que entrecruzaram seus caminhos com os pre- ta: no total aproveitamento da sonoridade par-
cursores da nossa Canção Popular ou que se ticular do idioma, no tom étnico da fala, na es-
debruçaram sobre sua obra, é evidente a fonte trutura e nas ações internas das palavras, na
comum, a permanência de raízes profundas, variedade dos temas abordados, na identidade
brotando em novas poéticas: a tradição do do olhar sobre os temas, na melodia entoativa
texto e sua enunciação como ponto de partida da oralidade. É importante registrar o quanto
para a definição do ritmo e da linha melódica. as linhas melódicas e a entoação do discurso
Um tal cantar pede, muito mais que um can- oral, além das palavras, respondem pelo estabe-
tor, um intérprete; necessita um diseur que, lecimento da cumplicidade com o ouvinte.
mesmo sem a grande voz, explore, na recons- A canção consegue garantir essa cumplicidade
trução dos sentidos do texto e na figurativiza- fundamental na relação com o público porque
ção, um estilo pessoal de interpretação. Trabalho se constrói em função dele.
muito próximo àquele do ator sobre sua fala. A variedade das formas, na Canção Brasi-
leira, foi e ainda é, em grande parte, assegurada
pela proposta da palavra. A diversidade dos te-
Da fala para a canção mas, e as inúmeras maneiras de abordagem de
cada um, garante que todas as formas, periodi-
É parte do conceito de canção o entrelaçamento camente, sejam retomadas. Se alguma delas se
que liga texto e melodia. A Canção Popular Bra- perdeu, é porque em nosso discurso, certamen-
sileira define ainda mais: tece a linha melódica te, perdeu-se sua função. Modinha, canção, val-
e o ritmo sobre a entoação e a cadência da fala. sa, choro, samba, samba-canção, de enredo,
Seja por meio de que influência tenha exaltação ou de breque, marchinha, marcha ran-
vindo, é evidente a presença da enunciação do cho são definidos pela estrutura do texto que
texto na definição das linhas melódicas e na dá, à melodia, o ritmo da acentuação tônica das
determinação das formas rítmicas das canções palavras, vivendo entre o som das vogais e a fun-
brasileiras, permitindo “entrever em todo e ção percussiva das consoantes. Nessa combi-
qualquer tipo de canção popular, as inflexões nação, não poucas vezes desenvolve artifícios
entoativas e os sintomas gerais da fala” (Tatit, onomatopéicos, num recurso de tradução de
1996, p. 6). sentidos além das palavras. Até mesmo os mo-
Esta aproximação efetiva entre canto e vimentos originados pela alteração numérica das
fala, proposta pela canção, transforma-a num sílabas do texto e as modificações em seus acen-
instrumento bastante adequado para o estudo tos, próprios da linguagem oral, encontram aco-
dos elementos e qualidades integrantes da voz e modação nas linhas melódicas e no tempo.
da palavra quando em função poética. A orali- A escolha dos temas, a forma de abordá-
dade em função poética, como o canto, é uma los, o sentido e o papel do texto em relação aos
expansão estética da fala e, como o canto, cria temas, são elementos de manejo constante na
música pela entoação, ritmo e dinâmica pela canção, integrando seus procedimentos, numa
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de apoio ficam muito próximos do natural. seus elementos mas, ao se valer da acentuação,
O elemento que se deve apurar, então, fica por vai propor pulso, estabelecer tempo, encontran-
conta da emissão: sem desperdiçar a variedade do equilíbrio para os sons, mesmo na variação
sonora do idioma, construir artifícios técnicos da dinâmica. Na canção os diferentes ritmos
que resultem em unidade de corpo, constância identificam-se a formas que, muito propria-
de intensidade, igualdade de rendimento sono- mente, criam uma tradução dos sentidos do tex-
ro e condição de amplificação no espaço por to. Este entendimento, e a transposição desse
meio da definição das formas e da expansão dos procedimento para a fala, dotam a composição
recursos de ressonância. No exercício da Can- estética da oralidade de uma especial riqueza de
ção Popular, esses procedimentos afloram jun- formas e de recursos voltados para a construção
tamente com a compreensão da ação sonora da de uma poética vocal.
palavra, de seu movimento interno, de seu en- De fundamental importância para a con-
cadeamento cuidadoso e da equilibrada distri- cepção e para o exercício da canção é o acom-
buição dos sons. A articulação se resolve clara- panhamento instrumental e a capacidade do
mente na manutenção da pulsação, cadência e intérprete em se relacionar com ele. Desde sua
ritmo das frases e não na pronúncia isolada dos função mais simples de apoio e duplicação da
fonemas e das palavras. voz, até seu papel de verdadeiro antagonista, res-
Para compensar a pequena extensão que ponsável por réplicas e comentários, num au-
percorre, a Canção Brasileira se derrama e mul- têntico diálogo com a voz, ou de cúmplice, na
tiplica em infindáveis linhas melódicas. Esta ca- composição harmônica com a linha do canto,
racterística tem sua origem e base de criação na garantindo a permanência do discurso nas pau-
entoação da fala, com a função de ressaltar as sas, mantendo a pulsação do momento, sua par-
impressões mais contundentes de um texto, ticipação na estrutura da canção, bem como as
materializando sua intencionalidade ao prestar- modificações que sofreu, são índices de trans-
se às transformações do discurso oral. O que se formações no pensamento estético de cada pe-
torna mais pertinente numa fala é determinado, ríodo, reveladores de perspectivas que caracteri-
de maneira individual, pela interpretação pes- zam a trajetória da canção. O ator, a quem cabe
soal de cada um. Transposto para a representa- a criação das linhas melódicas da fala, deve re-
ção – construção material – este artifício dá criar sua função, valendo-se de todos os artifíci-
margem à elaboração de linhas melódicas sem- os ao alcance de sua composição. Em torno dele
pre renovadas, respeitadas as convenções de gê- e de sua fala tem existência uma inumerável
nero e estilo. Compreender a importância e a quantidade de sons nascidos dos movimentos
necessidade da elaboração de melodias para a da cena, dos gestos, da respiração, da própria
construção da expressão, na fala, é indispensável pulsação, que sublinham as falas, pontuam o
à oralidade teatral e dispõe de um farto mate- texto, preenchem as pausas, construindo um
rial para pesquisa e estudo na Canção Popular. percurso – interno ou externo – de acompanha-
O ritmo, esse elemento de difícil apreen- mento da vocalidade, pela elaboração conscien-
são para aplicação à fala teatral, onde costuma te de uma melodia cinética.
ser confundido com velocidade ou movimen- O ator, em seu trabalho vocal, costuma
to, pode bem encontrar um caminho concreto se valer, no apoio de suas concepções e procedi-
e solução poética ao apoiar-se nas modulações mentos, de imagens pessoais, buscando o en-
da acentuação tônica das palavras, como faz a tendimento de seus mecanismos internos de
canção, garantindo a compreensão do texto para produção. Combinar essas imagens aos elemen-
além das palavras, mesmo quando há acelera- tos concretos, tangíveis e verificáveis que lhe dá
ção. A fala não cria célula rítmica constante por a canção, pode auxiliá-lo no exercício da fala e
não se caracterizar pela reiteração periódica de do idioma, bem como na compreensão de sua
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voz que é feita de vibrações sonoras e se materia- cimento das características gerais da nacionali-
liza em extensões, intensidades, durações e tim- dade no processo de conhecer a sonoridade cor-
bres. A adoção de um trabalho sobre o canto poral de sua voz, localizar a extensão natural de
popular, orientado com critério, conhecimento sua fala, manipular a plasticidade de seu mate-
e competência, abre a possibilidade de reconhe- rial vocal na riqueza sonora de seu idioma.
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