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ARTIGO 93
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Arte
Arte e Ensaios
vol. 26, n. 40,
jul./dez. 2020
Felipe Prando*
0000-0002-5116-2400
felipeprando@gmail.com
Resumo
Este artigo analisa o trabalho Plas Ayiti (projeto neon) da artista brasileira Milla
Jung com o propósito de investigar uma política das imagens. Em um mundo do
excesso de informações na era midiática somos incitados a não ver nada que
está debaixo dos nossos olhos. Entretanto, a imagens constituem e constituem-se
de um campo de forças e relações de poder que produzem subjetividades e
signos dos sistemas culturais. Plas Ayiti (projeto neon) propõe uma política
das imagens não apenas pelo fato de captar um aspecto visível do mundo, mas
por pensar a produção e a circulação de imagens dialéticas que produzem o
dissenso e restituem um saber histórico no qual a imagem e o sujeito que a olha
se constituem mutuamente.
Palavras-chave
Política das imagens; Imagem e esfera pública;
Imagem dialética; Plas Ayiti
Abstract
* Artista e professor do This article analyzes the work Plas Ayiti (neon project) by the Brazilian artist Milla Jung with
Departamento de Artes the purpose of investigating a politics of the images. In a world of over-information in the
da UFPR. Doutor em
media age we are urged not to see anything under our eyes. However, the images constitute
Artes pela USP (2016)
com estágio doutoral na and constitute a field of forces and relations of power that produce subjectivities and signs of
Universitat de Barcelona cultural systems. Plas Ayiti (neon project) proposes a policy of images not only by capturing
(2015).
a visible aspect of the world, but by thinking the production and circulation of dialectical
images that produce dissent and restore a historical knowledge in which the image and the
subject which look at it constitute at each other.
PPGAV/EBA/UFRJ Keywords
Rio de Janeiro, Brasil
ISSN: 2448-3338 The politics of images, public sphere and image,
DOI: 10.37235/ae.n40.7 dialectical image, Plas Ayiti
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Durante a noite, quando se diz que todos os gatos são pardos, o letreiro
em neon Plas Ayiti, de 450 cm x 100cm, instalado pela artista brasileira Milla
Jung1 no alto do Edifício “Nossa Senhora da Luz” era percebido pelas pessoas que
passavam pela Praça Tiradentes, na região central de Curitiba. Naquela escuridão,
que supostamente apaga e desfaz as diferenças, a luz do trabalho Plas Ayiti
(projeto neon) destacava a presença de inúmeros haitianos e haitianas, que entre
os anos 2012 e 2014, como imigrantes recém-chegados na cidade, fizeram da
Praça Tiradentes seu ponto de encontro e deram a ela um nome em créole2,
Plas Ayiti.
Fig. 1
Milla Jung, Plas Ayiti
(projeto neon), 2014.
instalação de neon,
450 x 100cm.
Foto: Milla Jung.
Disponível em: http://www.
comunidade.art.br/wor-
dpress/2014/12/07/plas-
-ayiti-projeto-neon-2014/;
Acesso em: 14 out. 2020.
1
Milla Jung é brasileira, nascida em Curitiba, artista-pesquisadora e doutora em artes visuais, pelo
PPGAV da ECA/USP. Fotógrafa documentarista por mais de 20 anos, seus trabalhos recentes, de forma
ampliada, abordam questões sobre imagem e esfera pública a partir da relação entre práticas artísticas
e espaços sociais.
2
O créole é a língua falada pela população haitiana que resulta de uma mescla da língua francesa com
línguas da África Ocidental como o wolof, gbe, fon, ewé, kikong, yoruba e igbo.
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Fig. 2
Pedro Américo, Tiradentes
esquartejado, 1893.
Óleo sobre tela,
270 x 165cm.
Disponível em: https://pt.wi-
kipedia.org/wiki/Tiradentes_
esquartejado_(Pedro_Am%-
C3%A9rico); Acesso em:
14 out. 2020.
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Walter Benjamin escreveu “Sobre o conceito de história” no ano de 1940, pouco tempo antes de
suicidar-se quando ao tentar escapar da França ocupada pelo nazistas foi interceptado pela polícia
franquista na fronteira espanhola. Para a elaboração deste texto foram consideradas a tradução de Sérgio
Paulo Rouanet publicada pela editora brasiliense (BENJAMIN, 1994); e a realizada por Jeanne Marie
Gagnebin e Marcos Lutz Müller que integra o livro Walter Benjamnin: aviso de incêndio: Uma leitura das
teses “Sobre o conceito de história” de Michel Löwy (2005).
4
A instalação dos pelourinhos correspondia ao ato fundacional de uma Vila representada pela instituição
dos poderes político, Casa da Câmara , e judiciário, cadeia e pelourinho, ocupados pelo chamados
“homens bons”, membros da elite econômica e social.
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Para Reinhart KOSELLECK a constituição de um mundo burguês europeu está associado ao
desenvolvimento da consciência histórica iluminista no século XVIII através da filosofia da história
que legitimava o processo revolucionário burguês no qual “os iluminados, […], já tinham identificado o
curso da história e seus próprios planos, desejos e esperanças. A legitimação pela filosofia da história
era uma elemento, talvez o mais importante, do Grande Projeto. Eles o conceberam e compuseram a
partir de ideias rousseaunianas da natureza, de um cristianismo moralizado e de ideias correntes sobre
o progresso” (1999, p.115).
6
Frederich ENGELS (1995) dedica o capítulo IX do livro Origem da família e da propriedade privada e do
Estado para apresentar as etapas evolutivas que explicam como a sociedade passou da fase da barbárie
para a da civilização à medida que a divisão social do trabalho torna-se mais complexa.
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o anjo de juntar os escombros que ficaram no passado, “uma vez que é ao mesmo
tempo responsável pela visão linear da história, na qual cada elo da cadeia de
acontecimentos representa um passo para melhor” (OTTE, 2000, p.41).
E o passado? Seria aquele guarda-roupa onde guardamos todas as
fantasias que não nos servem mais? Seria uma imagem eterna que representa
a história tal como de fato aconteceu? O passado é algo morto? Para Benjamin,
o passado é “uma imagem que relampeja” e atravessa veloz o presente. É “uma
imagem irrecuperável do passado que ameaça desaparecer com cada presente
que não se reconhece como nela visado” (1994, p.224). A história, assim
entendida, não é o lugar de um tempo homogêneo e vazio, mas um tempo satu-
rado de ‘agoras’, de modo que Túpac Amaru era para José Gabriel Condorcanqui
um passado carregado de ‘agoras’, passado que ele fez explodir do continuum
da história:
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O filme-instalação pode ser acessado no link: https://vimeo.com/111914277.
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Este filme é o resultado da proposta dos artistas Carlos Kenji, Daniel Yencken
e Felipe Prando que propunham criar narrativas a partir da investigação das
noções de pertencimento e não-pertencimento no quadro de fluxos imigratórios
contemporâneos na cidade de Curitiba. Para o desenvolvimento do roteiro
deste filme foram realizados em 2013 diversos encontros e oficinas de vídeo
com diferentes grupos de imigrantes haitianos refugiados do terremoto e da falta
de perspectiva econômica no Haiti que se encontravam em Curitiba. No decorrer
destes encontros o filme-instalação foi tecendo uma forma de existir com a
participação direta de David Limose e Serge Norestin, recém-imigrados do Haiti,
que atuaram como atores e co-realizadores do filme-instalação.
Os desenvolvimentos de Plas Ayiti (projeto neon) e do filme Plas Ayiti
partilharam um mesmo processo de escuta e de trocas de modo que se conectam
como partes de uma mesma dobra, cujo vértice é o compartilhamento da
composição de um trabalho com seu próprio público, as diferentes comunidades
de imigrantes haitianos e haitianas. Uma dobra que assinala o surgimento de
singularidades no sentido da produção de um abertura que rejeita a ficção dos
limites, um espaço-tempo enrugado e multi-direcional.
Fig. 3
Milla Jung, Plas Ayiti
(projeto neon), 2014.
Instalação de neon,
450 x 100cm,
Foto: Milla Jung.
Disponível em: http://www.
comunidade.art.br/wor-
dpress/2014/12/07/plas-
-ayiti-projeto-neon-2014/;
Acesso em: 14 out. 2020.
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Alfredo Jaar, é um artista chileno, arquiteto e cineasta que vive atualmente em Nova York e, reconhecido
como um artista de projetos de longo prazo, tem em seu engajamento em questões políticas e huma-
nitárias uma condução para produzir instalações, trabalhos multimídias e publicações que circulam
amplamente em espaços de arte.
9
Jens Haaning é um artista conceitual dinamarquês que vive em Copenhague. Engajado em temas relacionados
à migração, deslocamento, poder e comunicação na sociedade globalizada, Haaning opera por meio de inter-
venções em estruturas institucionais e espaços públicos.
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transformações pelas quais eles passavam e que acabavam por promover simbo-
licamente na cidade que escolheram para morar, renomeando uma praça no
idioma créole. Renomear a Praça Tiradentes para Plas Ayiti simboliza a possibili-
dade de se reconstruir a narrativa do marco zero da cidade a partir dos vestígios
e escombros deixados para trás pela história dos vencedores. Uma perspectiva
dada por pessoas que descendem daqueles que realizaram a primeira revolta
de escravos africanos das Américas e que, no embalo desta revolta, derrotaram
o exército de Napoleão para, em 1804, declararem a independência do Haiti.
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Referências
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LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses
“Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
Como citar:
PRANDO, Felipe. Plas Ayiti (projeto neon): uma política das imagens. Arte
e Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, vol. 26, n. 40, p. 93-105, jul./dez.
2020. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n40.7. Disponível
em:<http://revistas.ufrj.br/index.php/ae>