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Sobre sua obra La trahison des images (“a traição das imagens”) Magritte2 teria
comentado: "se eu dissesse que isso é um cachimbo eu estaria mentindo... tente colocar
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tabaco dentro!" Com esse comentário verificamos a ironia contida no trabalho e é a partir
dessa idéia que proponho explorar inicialmente as fissuras e paradoxos nele presentes: uma
obra que, em suas variadas versões, apresenta sempre a imagem de um cachimbo e a frase
manuscrita Ceci n’est pas une pipe (“isto não é um cachimbo”), logo abaixo. Recorrente nas
reflexões teóricas e históricas em arte tal obra continua a apontar importantes questões
sobre as relações entre palavra e imagem que, sob o signo da miscigenação e da viscosidade,
desafiam a percepção. A frase na tela, associada também ao título dado pelo artista, mostra
a inevitável diferença entre um objeto e sua representação, entre o que se vê e o que se lê e,
em última instância, o que se considera real e irreal, verdade ou engano, nos fazendo pensar
ainda sobre a singularidade natural de cada olhar.
A afirmação de que “isto não é um cachimbo” diante da imagem visivelmente
ilustrativa de um cachimbo institui a dúvida sobre a imagem e sobre a palavra,
simultaneamente. Mas porque afirmaria Magritte que é a imagem que trai? Como considerar
a palavra confiável? Não estaríamos, ao contrário do que nos diz o autor, diante de uma
traição da palavra em relação à imagem e diante de sua prepotência ao se impor como
retórica que delibera sobre a verdade?
Essas questões nos levam a refletir sobre a predominância da linguagem (oral e
escrita) em relação à nossa percepção. Temos o exemplo emblemático do exercício
largamente difundido por internet onde os nomes de cores são apresentados em cores
diferentes daquelas que eles designam: o observador, solicitado a dizer apenas a seqüência
de cores visíveis naquele conjunto de nomes, é instintivamente levado a falar o nome que lê
ao invés da cor percebida. Tal experiência mostra que a leitura - da linguagem verbal escrita
- torna-se mais automática que a percepção de cores e informações de outra natureza.
Mesmo considerando que a grafia de qualquer palavra e de qualquer texto pode ser também
percebida como imagem, o que se revela de maneira mais imediata tende a ser o conteúdo
explícito na palavra ou texto, compreendido a partir de um processo mental de racionalização
que se sobrepõe às outras informações sensíveis, que também lhes são inerentes. Assim
podemos concluir que, provavelmente no processo de apreensão da linguagem desde a
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CAMPOS, Elisa. Revista Refil n° 2. GraMMa, Habilitação em Artes Gráficas – Departamento de
Desenho da Escola de Belas Artes da UFMG, 2009. p. 10 -11. ISSN 2176-9958.
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René Magritte (Bélgica,1898/1967), Sua pintura se inscreve numa expressão metafísica e figural do mundo através
de paisagens oníricas e insólitas onde freqüentemente retrata as ambivalências entre o real e seu duplo.
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Citação retirada do site http://hate-titles.blogspot.com/2007/06/os-nmeros.html
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infância, vamos gradativamente operando de forma mais racional e menos sensível, e ao nos
depararmos com essa configuração que associa imagem e palavra, nos deixamos convencer
prioritariamente pela palavra. Se for assim, a ironia do título “A traição das imagens” pode
estar justamente apontando para a impossibilidade de se atingir a verdade ou o real, seja
através da imagem seja através da palavra.
Há uma complexidade nessa associação entre a imagem e a palavra que passa pelo
caráter plural de ambos, onde verificamos, inclusive, alguns denominadores comuns - a
grafia/desenho/forma, suporte/matéria -, além de características específicas a cada uma,
circunstâncias que necessariamente interagem e promovem uma multiplicação de nexos.
Regis Debray, importante teórico francês que propõe uma discussão sobre a imagem e
seu papel social e cultural, afirma:
“Falamos em um mundo, vemos em outro. A imagem é simbólica, mas não tem as
propriedades semânticas da língua: é a infância do signo. Esta originalidade dá-lhe um
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poder de transmissão inigualável.”
Nossos processos mentais de alguma forma realmente separam as instâncias da
imagem – mais ligadas à percepção, comprometendo todos os sentidos em sua fruição -
daquelas da linguagem – por sua vez dependentes do domínio de um código racionalmente
constituído e compartilhado por uma coletividade. Fica claro que a imagem usufrui de uma
comunicação mais direta e universal, enquanto a linguagem estará sempre relacionada a um
meio específico onde é compreendida. Isso não torna uma melhor que a outra, mas localiza
seu âmbito de abrangência. Nas relações entre escrita e imagem ocorre uma associação
híbrida que exige a apreensão articulada entre percepção e lógica, sensibilidade e
conhecimento, o que confere indubitável riqueza às produções de arte onde aparecem.
Referindo-se de forma metonímica à arte a partir da pintura, considero
particularmente significativo o que diz Michel Foucault em seu livro A palavra e as coisas:
[...] a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita. Não que a palavra seja
imperfeita, nem que em face do visível, ela acuse um déficit que se esforçaria em vão por
superar. Trata-se de duas coisas irredutíveis uma à outra: por mais que se tente dizer o
que se vê, o que se vê jamais reside no que se diz; por mais que se tente fazer ver por
imagens, por metáforas, comparações, o que se diz, o lugar em que estas resplandecem
não é aquele que os olhos projectam, mas sim aquele que as seqüências sintáticas
definem. [...] Porém, se quisermos manter aberta a relação da linguagem e do visível, se
quisermos falar não contra mas a partir de tal incompatibilidade, de tal modo que fiquemos
o mais perto possível de uma e do outro, então é necessário pôr de parte os nomes
próprios e permanecer no infinito da tarefa. Talvez graças a esta linguagem baça, anônima,
sempre meticulosa, e repetitiva, porque demasiado lata, a pintura pouco a pouco se
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ilumine.”
O mesmo ocorre no sentido inverso: talvez a pintura, demasiado livre e
potencialmente subjetiva possa, sempre e mais, iluminar a palavra e a linguagem, algo que
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DEBRAY, 1993.p.46.
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FOUCAULT, 1966. p. 25
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BAUMAN, 1998.p.39. O Sociólogo polonês fala sobre a “viscosidade”, termo inspirado em Sartre, como um elogio
ao estranhamento. Refere-se entretanto ao grande incômodo que sentimos quando nos vemos imiscuídos num tecido
social, onde prevalecem as diferenças e onde o estranho parece nos desafiar e desestabilizar. Aplicamos essa idéia
aqui no sentido de potencializar a relação a partir das diferenças entre imagem e palavra.
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DEBRAY, 1993. pg. 15.
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Márcio Sampaio (Itabira-MG, 1941) reside e trabalha em Belo Horizonte sendo artista plástico, crítico, curador
ensaísta e poeta. Sua atuação sempre aliou todas essas instâncias de pensamento e criação, realizando um trabalho
comprometido estética e politicamente. Participou do movimento da Poesia Concreta e Poma Processo nos anos 60,
exercendo importante papel na construção das neo-vanguardas em Minas Gerais. Realizou em 2006 a exposição
Declaração de Bens no Palácio das Artes (BH/MG), uma retrospectiva de 50 anos de sua carreira artística.
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obra de diminutas proporções (suas arestas têm apenas 45 cm) que permite inclusive a
experiência sinestésica de “ouvir a imagem” e/ou “ver o som”.
Trata-se de uma experiência que torna mais uma vez indissociável a palavra e a
imagem e exige do observador um comprometimento da percepção e da cognição de forma
integrada. Márcio Sampaio irá explorar essa condição em muitas outras criações que
incorporam a espacialidade (em instalações e ambientações) além da situação de imersão
que proporciona ao observador/leitor. Mas reconhecemos nessa produção uma aproximação
com a tradição conceitual na arte através do importante papel que o conceito desempenha,
algo que ocorre também inclusive no trabalho de Magritte, mesmo sendo muito anterior às
produções conceituais.
Comentando sobre a arte conceitual Florence de Mèredieu afirma: “A linguagem
aparece como manifestação material de um conteúdo ideativo ou de uma mensagem. Ela
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ocorre como encarnação.” Assim, a palavra, da mesma forma, pode ser utilizada ou
presentificada na obra dentro dessa condição de “encarnação”, tornando-se objeto palpável,
cuja “autonomia” invariavelmente amplia o leque dos sentidos.
A famosa obra de Joseph Kosuth, One and three chairs (uma e três cadeiras, 1965),
exemplo emblemático da produção conceitual americana, embora trouxesse consigo o
propósito de mostrar que a arte consiste numa idéia e que pode inclusive dispensar sua
realização formal e/ou material, ainda assim se apresenta a partir de suas três instâncias em
nada imateriais: como objeto, como imagem fotográfica e como verbete de dicionário
ampliado e impresso sobre uma placa. Pesquisando a obra de Kosuth encontramos muitos
outros exemplos dessa mesma estratégia que utiliza em One and three chairs, substituindo
apenas o objeto referencial e apresentando-o nas suas três versões. Assim vemos um cacto,
um abat-jour, uma caixa de madeira, um martelo, além de outras cadeiras em novos
designs, produzidos todos no mesmo ano.
A repetição dessa estratégia de cercar um elemento escolhido através de três
abordagens diferentes salienta, sobretudo, a distância que existe entre tais registros,
mostrando que o objeto concreto, sua imagem e sua definição verbal não conseguem ser
mais que aproximações. Até a presença física do objeto guarda uma distância em relação ao
que ele é verdadeiramente por encontrar-se deslocado de seu uso e/ou de seu contexto.
Seria como pensar a respeito da tradução de um texto em diferentes idiomas. Cada proposta
de tradução inevitavelmente guardará uma distância e um desvio em relação ao texto
original.
Mas o exemplo da cadeira, de qualquer forma, tornou-se o mais conhecido e mais
citado na obra de Kosuth, o que faz pensar sobre a especificidade dessa referência. Parece
imediato o re-envio que faz ao pensamento de Platão. Para salientar a superioridade da idéia
em relação aos objetos concretamente realizados, Platão faz uso exatamente desse mesmo
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MÉREDIEU, 1994: 351. “Le linguage apparait comme la manifestation materiélle d’un contenu idéatif ou d’un
message. Il en est comme l’incarnation. Présence visible, audible, de l’esprit ou de l’idée.” (trad. minha)
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objeto como exemplo, afirmando que o mundo das idéias é, no fundo, o único mundo
verdadeiro, opondo-se ao mundo das aparências e da transitoriedade. Assim o texto seria
talvez o espaço privilegiado da idéia pois, não impondo nem a presença concreta da cadeira e
nem sua imagem, permite uma pluralidade de imagens e interpretações e/ou projetos de
uma cadeira ideal somente concebíveis como construções mentais. Toda a proximidade desse
pensamento com a Arte Conceitual não parece mera coincidência.
Elisa Campos
Bibliografia
Imagens
Márcio Sampaio. ECO, 1969-70. Foto: Elisa Campos (2008)
Márcio Sampaio. ECO (detalhe), 1969-70. Foto: Elisa Campos (2008)