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A encarnação
a) Os textos bíblicos
A encarnação, como ato e como estado, é o resultado histórico do envio do seu Filho
pelo Pai ao mundo para fazer aos homens participes da sua filiação e os resgatar da
situação de morte conseguinte ao pecado. A ideia está implicada nos textos bíblicos, que
falam do Filho enviado pelo Pai, do acontecimento pelo qual ele começa a existir na
carne, do seu estado de igualdade de natureza e de solidariedade de destino com os
humanos, existindo na forma de escravo e sometido a todas as suas determinações (Rom
1,1-4; 2 Cor 5,21; 8,9; Gal 3,13; 4,4-5; Flp 2,6-11). O texto considerado central tem sido
Jo 1,14: “Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο”. O Logos, que estava junto a Deus (1,1), por quem
foram criadas todas as coisas (1,3), que tem acompanhado aos homens na historia, sendo
a sua luz interior e luzindo nas suas trevas (1,4-5; 1,9), tem tomado carne e morado entre
nós (1,14). Tem sido homem sem depor o seu ser divino, desta forma pode comunicar-
nos a vida de Deus e introduzir-nos na sua comunhão de Filho com o Pai (1 Jo 1,1-4). A
confissão cristã tem como conteúdo a vinda de Jesuscristo na carne (1Jo 4,2). A inserção
do Filho no mundo tem lugar pelo nascimento de Maria virgem. A ideia de encarnação
pressupõe o nascimento de mulher sob a lei (Gal 4,4) sem outras indicações precisas. A
confissão de fé cristã a associa ao nascimento virginal, como a forma livremente
escolhida por Deus para ser homem (Mt 1,18-25; Lc 1,26-38). O começo da existência
temporal de Jesus não é o seu começo absoluto. O fundamento da condição divina de
Jesus não é o nascimento virginal, este diz só a sua forma de gestação humanas, e os
evangelistas, quando o descrevem, pressupõem já a sua filiação divina e a sua
preexistência eterna.
b) A palavra e a ideia
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implícita em Santo Ignácio de Antioquía e explicita em Santo Irineu, dentro de um
contexto antignóstico, para mostrar a real salvação do homem inteiro. Nele, como na
Bíblia, σὰρξ designa ao homem inteiro sob o aspecto da sua caducidade e temporalidade,
pobreza e contingencia. Em quanto que Deus permanece, o homem porém perece.
Precisamente nesse extremo limite da creaturidade é onde se tem manifestado e dado
Deus ao homem. Por isso a carne é o quício da salvação “Caro cardo salutis-Salus
quoniam caro”.
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receptor. Por isso há que descobrir o seu sentido pensando-a em primeiro lugar desde
Deus. Já que o no mistério da encarnação “toda a razão do facto é a potencia daquele que
o faz” (Santo Agostinho, Epist. Ad Vol. 137,2), há que a julgar mais segundo a condição
da pessoa assumente que da pessoa assumida”. O homem possui a capacidade receptiva e
expressiva, Deus o poder como realidade e a decisão como vontade.
A encarnação há que a compreender não no num sentido pontual mas diferido; não
acontece num instante mas ao longo de toda a historia de Jesus. A encarnação se inicia
nas entranhas de Maria e se consuma sobre os braços da cruz. A encarnação de Cristo é
integral; isto significa que é biológica e histórica, social à vez que individual, metafisica à
vez que biográfica.
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O sujeito da encarnação é o Logos, porque ela corresponde ao que é a sua essência e
lugar próprio no mistério trinitário. Deus não realiza nada na historia que não seja em
conformidade, prolongação e revelação do seu próprio ser trinitário. O lugar do Verbo na
Trindade explica a encarnação e, ao mesmo tempo, a encarnação nos deixa entrever a
natureza trinitária do Verbo. O Logos é o dizer e o dito eterno de Deus expressando-se a
si mesmo, nesse dizer está dito todo o dizível. A encarnação é a prolongação à criatura da
realidade e relação eternas do Filho.
A encarnação tem sido interpretada por Rahner desde uma compreensão do homem,
aberto e em espera do Absoluto, ao mesmo tempo que desde uma compreensão do
Absoluto como único objeto repletivo do homem. Tem feito patente a sua possibilidade,
sentido e conveniência, que aprece como si a encarnação fosse necessária para que Deus
fosse Deus e o homem chega-se a ser plenamente homem; mais ainda, pareceria que é
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preciso que se realize em cada homem. Rahner, sabendo já da encarnação real conhecida
pela fé, tenta uma compreenda metafisica do homem e desde ela relee a historia bíblica e
defina a Jesus como o Salvador absoluto do homem. Dá primazia a uma leitura
ascendente.
Para Balthasar, porém, o ponto de partida da cristología não deve ser a antropologia
transcendental mas a historia de Deus com Israel; não a humanidade a procura de
salvação e sentido para si, mas a autorevelação e autodoação da Trindade na cruz. Para
compreender a encarnação desde Deus há que pensar a este como Amor em despossesão
(kénosis originaria), dando-se o Pai ao Filho no Espirito e sendo o Filho devolução
absoluta. Sobre todo há que pensar a situação histórica da humanidade sob o pecado. O
verbo se faz carne, e esta é pecante, não só pensante; não só procura ao Deus
desconhecido mas rejeita ao conhecido, ou o declara inexistente, para ser ela soberana do
mundo e do próximo. Por isso o encontro de Deus com a humanidade não acontece só
como desvelamento do que a realidade é, mas como dramático choque de liberdades, a
finita creatural com a infinita de Deus, a dos homens pecadores com o Deus santo.
Si a Rahner a encarnação lhe aprece a evidencia suprema, que não é possível rejeitar
uma vez que conhecemos a Cristo e nele sabemos de que é capaz Deus e de que está
precisado o homem, porém a Balthasar frente a Rahner, o mesmo que a Kierkegaard
frente a Hegel, a encarnação como um padecer Deus destino no mundo a mercê do poder
do homem pecador os some em assombro. A encarnação de Deus é paradoxal, o
impensável, ao que só se pode responder com a adoração, a ação de graças e a
correspondência de vida em imitação existencial e em serviço ao próximo. A encarnação
de Deus em carne e em cruz é o “escândalo” por antonomásia do cristianismo.
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5. A Kénosis
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todos os homens (Heb 2,14-15). Ao outorgar primazia a um o outro dos três polos:
encarnação, ação publica ou morte-ressurreição, se decidem as orientações da
soteriología.
- Outras, porém, acentuam a morte de Cristo e a sua função dramática vencendo aos
poderes do mal e o pecado, perdoando aos pecadores, discernindo a vontade má e
convertendo-se em crises o juízo para o homem (Col 2,13-15).
Nada há fora de Deus que poda motivar as suas decisões com necessidade. O único
motivo da encarnação é o amor de Deus. O Filho se tem encarnado porque Deus é Amor;
e sabemos que Deus é Amor porque seu Filho se tem encarnado. O fim que Deus se
propõe na encarnação é que o homem e o mundo compartam a sua vida eterna ( Jo 3,14-
21; 6,51). O mundo é pensado por Deus com ele como centro e culminação. Para
cumprir essa função tem que restaurar previamente o quebrado e ordenar o desordenado.
As consequências da encarnação do Filho são de duplo fio: é graça e é juízo. Pela sua
própria natureza é oferta da vida a um homem livre; agora bem, a liberdade do homem
está sempre situada e afetada. Vivendo referida à verdade nova e imprevisível sempre,
quando esta aparece, vá para ela e se entrega a ela para ser iluminada e salvada por ela.
Mas pode estar também capturada pelo mal, as trevas, e então não querer aceder à luz
para que as suas obras más não sejam desmascaradas. A verdade de Cristo então descobre
e ameaça a sua mentira. Com isto temos o paradoxo de que o amor poda converter-se no
principio da condenação. A missão do Filho é a consequência do amor do Pai; por isso
revelação e oferecimento desse amor ao homem para divinizá-lo. O objetivo próximo
desse envio do Filho é revelar o amor que é Deus; o objetivo concomitante como
condição previa para essa salvação plena é a redenção dos seus pecados.
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