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AUGUSTE SAUDREAU

Conego honorario de Angers


Capelião Mor da Casa Mãe do Bom Pastor

O CAMINHO
QUE LEVA A DEUS

Traduc çã o autorizada do francez

19.l7
EDITORA "\/UZES" PETROPOLIS
NIHIL OBSTAT. Petropolis, die
1 octobris anni MCMXXXVII. Fr.
Fridericus Vier, O. F. M. Censor

_______________

IMPRIMATUR. Por commissão es-


pecial do exmo. e revmo. sr. bispo
de Nictheroy, d. José Pereira Alves.
Petropolis, 26 de Outubro de 1937.
Fr. Oswaldo Schlenger, O. F. M.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

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CARTA DE DOM JOSE' RUMEAU, BISPO UE ANGERS

Angers, l de Maio de 1904

Senhor capelão.

O novo trabalho, que ora submeteis à minha aprovação, para:c­


me o digno complemento dos anteriores. Tem um caráter esaea­
cialmente prático. Vosso fim principal é examinar os esforços
pessoais que a alma deve fazer e os combates que deve travar,
seja para atingir a vida perfeita, seja para nela perseverar. Estabele­
ceis que todos os nos."Kls conhecimentos sobre a criação. sobR .as
belezas e a ordem do universo, sobre a perfeição da natureza huma­
na, nos dizem que devemos render glória a Deus por Ioda a
0 r c e
�:r!du�i�Ôs �,��!�� ;e1ã ��o:: ;og:� �� �::t�çtes���ia p��
º

ência cristã, pelo sublime amor do sofrimento, pelos atos e esfor­


ços constantes de fê, de espe rança, de caridade, de humildade,
de abnegação, en1 uma palavra, das virtudes mais sobrenatunis.
Seguem-se utilissimas observações sobre a séria preparação
a empregar na frequência dos sacramentos, se quisermos que es­
tes produzam em nossas almas os efeitos prometidos. No decorrer
da obra encontra-se, brevemente descrito, o trabalho interior ,es­
pecial que se deve impor a alma que atingiu o estado contemplativo.
Este livro, em que tivestes necessidade de renovar cuisas
antigas, me parece digno de todo louvor. Seu sucesso está ga,-a11ti­
do, que é tanto mais para desejar, quanto a ele se acha mais
diretamente ligado o progresso das almas.
Aceitai, senhor capelão, o protesto de minha afetuosa dedi­
cação em N. S.

Josê, bispo de Angers

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PREFACIO

"Dai-me, Senhor, a conhecer vossas veredas , mostrai-me vos­


so s a talhos, conduzi-me p elo verdadei ro cami nho e instrui-me, por­
q u e sois meu Salvador e espero todo o dia em vôs " (SI 24, 4).
Haverá uma alma fervorosa, que não te nha d irigido, muitas vezes,
º r st ã s I m e º
� ..:��!i d: tJ e��•� � ��r � "::���Q�: e ��e:v,� .�;i�! � -:�:i�
i n e e ca 1 it s nt
���i t�= �� ;: :�:a :��e� � :•ue d:vei� f��e�, !u�� o� ���f:!f:
p j i

a evitar, qual a e strada a seguir para c.hegar à posse de Deus ,


s..-gundo no-la ê dada nesta vida? Vou p rocurar instruir-vos a es­
te respeito, colocando-vos sob as vi stas as l içiies que t irei dos sa ntos.
As piedosas leituras são um dos m eios mais eficazes de san­
tificação ; quantas almas sacerdotais e religiosas, quantas pessoa s
p iedosas, q11e vivem no mundo, não reconh ecem que, se p ude­
ram manter-se e fazer alg u ns p rogre ssos no amor div ino, o de­
\'em aos estimu los, âs exortações, aos conselhos, desses amigos
mudos, que se chamam livros ! Sucede , porem, com esse meio,
o q u e se dá c om todos aqueles que Deus, em sua bondade i nfi­
nita, põe à nossa disposição: tornam-se eficazes na med ida em
q u e sabemos e queremos aproveitá-los.
Caro leitor, rezei e fiz rezar muito para que e st e livro fizesse
bem â vossa alma; rezei ante s de escrev er, rezei enquanto m e
e ntregava ao rude trabalho da composição e cont in u arei a pedir
·ao Senhor que abençoe est as simpl es pág inas c a s torne p roveito­
sas a muitas almas. Mas vó s, do vosso lado . coloca i-vos nas dis-
11osiçües qu e vos tornarão a leitu ra vantaj osa, disposiçci es de or �­
�·ã o e de amor; s u sc it ai em vosso coração o desej o genuí no · e
ardente de proc u rar aqu i luze s qu e vo s g u iem e at rativos maio-
ir
�C: ft:d P iº s n ot
o ªd� ���!Çã�� ��i �=��/�:i at� 11d°: � n!� � i>:1�s � :��
ato de humildade, e e sses atos tornarão vossa inteligência mais
e

v v m il tã n o
�;�v1r-�e :��e �::�d�:10 ::;b�t� - p!\� � sc1ar����-� 1 s � 1�:�����!
ao bem.
E ste livro, em que eu quisera exp or as regras do santo amo r.
ofereço-o a todas as almas ãvidas de p erfeição, a todos aqueles


u
ci:�:ã�

s ;;���t:. e s e
�ãoj :: e'm;�e��� ���f:
1
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�·ão. mas em corre sponder ao seu amor com um verdadeiro amor.
e çã
:m�la� d� �ra�

Desej o também q u e sej a litil a essas almas dedicadas a que m


a seita maçônica privou dos socorros da \'ida relig iosa. O s tlemô-

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nHls ufanam-se dessa \·itõria, mas há de passar. Então as queri­
das ""secularizada5" chegarão mais râpidamente ao fim de sua
provação, se lhe aceitarem todas as privações e se mostrarem,
sempre, e apesar de tudo, fiéis a nosso Senhor. ""Tudo redunda
em beneficio daqueles que amam a Deus". O Senhor sen·e-se
das tribulações e das perseguições para aperfeiçoar seus verdadei­
ros amigos. Se estas poucas páginas pudessem, cm parte, suprir os
meios de santificação de que foram privadas essas almas e ajudâ­
la.� a tirar proveito de seus sofrimentos, cu estaria hem pago dos
meus trabalhos.
E võs, queridas religiosas do Bom Pastor? Alegra oferecer­
\'OS, tambêm, este novo trabalho. Vossas irmãs da Casa-Mãe
fü•eram-lhes as primicias e reconhecerão nestas páginas muitas
\•erdades que jâ lhes foram expostas. Sinto-me feliz, hoje, em
fazê-las chegar àquelas dentre võs que trabalham e se dedicam
nos outros conventos da Congregação, àquelas, principalmente, a
quem o divino Mestre me havia encarregado de formar à piedade
e à vida interior durante os dias tão importantes de seu novicia­
do. A todas, professas e noYiças desta benemérita Congregação.
folgo em declarar pitblicamente minha adesão à sua tão bela obra
e minha estima pela sua dedicação e seu zelo. Nunca me ufanei
tanto de meu titulo de capelão da Casa-Mãe do Bom Pastor.
como desde que o inferno se le\'antou contra vós por não vos per­
doar de lhe arrancardes tantas pobres almas! Tendes a honra
de estar, mais que outras, expostas aos ataques dos inimigos
de Oeus. A imprensa impia de todos os países, referindo-se a
,'Os, divulga as calúnias mais in...-crossímeis (1 ), mas vôs vos con­
i;olais com a lembrança das palavras de Jesus, que vos quadram
admirâvelmente: "Bem-aventurados sois quando vos injuriarem e
,·os perseguirem, e disserem contra võs todo o mal por minha
causa; alegrai-\'os e exultai, pois é grande a ,·ossa recompensa
no cêu''.
Não posso terminar este prefácio, sem dirigir um ªJradL'­
cim�ilto discreto, porêm vivo, âqueles que puseram a minha disposi­
ção preciosos manuscritos; servi-me deles profusamente e 11e este
Ir.oro fizer algum hem, cabe-lhes a maior parte.
1 l Quando estas linhas foram escritas, em 1903, a Congrega­
ção tio benemérita cio Bom Paator era alvo dos mais odiosos
ataques da parte dos jornais. Esse rumor infernal cemiou, e a
Con1rre�çã.o. visivelmente protegida por Deus, pôde continua.r suas
obras em todos os paiae.s cio universo, rejublla.ndo os verd&deiros
à'lnlgos do Senhor.

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CAPITULO 1

Da criação

Un/1•tru pro/lltr umcllpsum nprrol1<'< ttrl f)o.


mi11us,
!lc11� ln 1udo para si m�s,nu (I',· 111. 4).

1. Os desígnios de Deus na obra da criação.

1. Ao criar o mundo invisível e o mundo visível, Deus


não cogitou de aumentar a sua felicidade. Queria comuni­
car seus bens, enriquecer as criaturas com seus tesouros,
e essa efusão de bondade redundava, ncccssàriamente, cm
sua honra. Com efeito, arremessava exteriormente como que
uma irradiação de suas perfeições e tudo quanto lhe saia das
mãos divinas divulgava-lhe a glória.
Deus é, portanto, glorificado por suas obras, e isso não
C senão de justiça. A ele, o ser infinitamente grande, in­
finitamente belo, infinitamente santo, é devida uma glória
tnfinita e o conjunto das criaturas não poderia louvã-lo quan­
to merece, maior esl omni Jaude. Nada pode, pois, criar
que não lhe deva o tributo de suas homenagens.
Assim, tudo provém de Deus, tudo C feito por Deus,
tudo deve voltar a Deus. Ele é o alfa e o ômega, o prin­
cipio e o fim de todas as coisas.
2. Os seres inanimados, sem o querer e sem o saber,
cantam um hino em louvor de seu Ci:iador: "os céus ma­
nifestam sua glória e o firmamento proclama a obra de suas
mãos". A visão de todas essas maravilhas que criou eleva­
lhe o coração do homem.

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Foi este, com efeito, o escopo que se propôs o Se­
nhor ao fazer a natureza tão bela: deleitar o espírito e con­
quistar o coração de seus filhos. Para fazer-se amar pe­
los homens, forçoso era fazer-se conhecer e, não poden­
do ser conhecido diretamente, não podendo ser visto tal
qual é, em si mesmo, soube admiràvelmente manifestar
seus atributos invisiveis, revelar suas grandezas e perfei­
ções nas obras que produziu: lnvisibilia enim ipsius per ea
q11ae /acta sunt inlellecla conspiciunlltr. Fez, da natureza, um
livro divino excelente para a instrução de seus fiéis. Ai de
nós! nem todos sabem ler nesse livro. As almas não abrasa­
das pelo amor divino pouco se lembram de Deus, e con­
templam a obra, sem cogitar do obreiro, vêem o reflexo,
sem pensar na luz. A natureza é, portanto, vazia para a
alma vazia de Deus. Mas a alma cheia de Deus vê e des­
cobre Deus em toda parte; aspira em tudo o perfume divino,
percebe em tudo um sorriso de Deus, ouve de todos os
lados palavras que o revelam. Os santos liam sem esforço
nesse magno livro da natureza, e tudo lhes falava do
Bem-amado.
Com efeito, tudo fala de Deus ao coração puro: Beati
mundo carde quoniam ipsi Deum videb1ml: "bem-aven­
turados os corações puros, porque verão a Deus''. Vê-lo:.ão,
sem dllvida, no céu, e esta será a esplêndida recompensa de
sua pureza; mas se aqui na terra o não podem ver, face
a face, podem pressenti-lo, contemplá-lo em suas obras;
quanto maior for a pureza, mais penetrante será o olhar
ela alma. Quando as nuvens das paixões e as espessas né-•
voas do pecado não obscurecem o céu da alma, o Sol divino
mostra-se-lhe a descoberto e seus raios iluminam e abrasam.
Filhos dos homens, purificai, pois, vossas almas, não
sômente das máculas do pecado que as desfiguram,· como
tambCm das imperfeições e dos afetos naturais que lhes
deslustram a beleza; lançni, então, os olhos acima e ent
torno ele vós, e os cC11s e a terra vos falarão de Deus. Os
astros que brilham sobre vossas cabeças vos dirão: Olhai
para n6s; admirai esses fachos acesos pelo Senhor do mun-

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do para guiar-vos os passos e recrear-vos a vista. Se nos­
so brilho nunca desmaia, se a luz que difundimos não nos
empobrece, imaginai a inesgotável opulência, compreendei
o i�finito esplendor daquele que nos criou e que é a ori­
gem de toda luz, de toda beleza, de toda verdade.
Lançai os olhos sobre os seres mais humildes que vos
rodeiam e também esses vos farão o elogio do Criador.
Oh! Como deve ser belo e suave aquele que espalhou sobre
a terra, neste mundo inferior da matéria, tanta beleza e tan­
ta suavidade; como é rico e benfazejo aquele que semeou,
em profusão, sobre toda a superfície terrestre, plantas tão
diversas, tantas árvores férteis e frutos· nutritivos: aquele
que depositou tesouros até nas profundezas da terra, que
povoou-de animais tão variados a terra e os ares, os rios e
os mares. E', de fato, rico, poderoso e bom, pois todas essas
obras, fê-las para o homem, sua criatura privilegiada, a
quem deq o dominio do mundo terrestre: o-mnia subjecisti sub
pedibus ejus, oves et boves universos, insuper el pecora
campi: "Colocastes tudo, Senhor, sob nosso poder, os re­
banhos da terra, as aves do céu e os peixes que habitam
o oceano".
3. Mas o mundo material é, apenas, a imagem simbóli­
ca do mundo espiritual; e aquilo que as criaturas irracionais
fazem inconscientemente, pois proclamam sem o saber a
glória de Deus, os homens devem fazê-lo livrementé e com
maior razão. Quão belo é, visto do céu dos eleitos, o es­
petáéulo das almas já nesta terra, fiéis a Deus: cada qual
tem· sua beleza particular, sua forma e sua cor, segundo
as virtudes que pratica e a missão que lhe é confiada; à
graça santificante, que as penetra, transfigura-as e lhes
comunica um brilho que, invisivel aos nossos olhos carnaiS,
encanta os olhos dos anjos e dos santos. Assim como a
multidão de estrelas, que a Escritura tão bem é.lenomina
o· exército dos céus, nos enleva o olhar, assim também
a multidão de almas justas, aqui disseminadas, acolá reuni­
das em grupo compacto, mas formando um todo maravilhosa-

li

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mente harmônico, um exército disposto em posição de batalha,
encanta o olhar dos eleitos.
4. Se os justos, na terra, são transformados pela gra­
ça, quão resplandecentes serão quando, terminado o exílio
e apagada toda mancha, a glória houver sucedido à graça!
F1l/gebunt sicut stelltre in perpett1as aeternitates. "Brilharão
como estrelas na perpetua ctern idade", canta o profeta
Daniel; todos, porém, não lerão o mesmo esplendor, diz
São Paulo, pois, se entre os astros há diversidade de luz,
o mesmo se dará com os bem-aventurados.
Quão belo será, quão belo jâ e este exército celester
Jesus, o Sol divino, é o seu rei, e, em sua presença, as es­
trelas perdem o seu clarão, e se apagam. Maria, a quem a
Igreja aplica a palavra da Escritura: pulchra 11t tuna, "bela
como a lua", é o astro que sobrepuja aos demais e não cede
em brilho senão ao fulgor de seu divino Filho. Dele, além
do mais, recebe a luz, para reproduzi-la suavizadà., é certo,
porém não embaçada; menos deslumbrante, porém sem
mancha, pois nunca um corpo estranho, uma nuvem, uma ne­
blina sequer veio interceptar-lhe os raios do Sol divino e
impedir a lua mística de receber-lhe todo o fu1gor. Sua
clareza é, portanto, perfeita e o Sol divino nela se reflete com
maravilhosa pureza.
Assim, as estrelas do firmamento, os astros do dia e
da noite, são feitos para Deus. Os justos na terra, e os elei­
tos no céu são feitos para Deus; Maria, a rainha dos anjos
e dos homens, o espelho fidelíssimo das perfeições divinas,
C feita para Deus e lhe proclama a grandeza, o poder e
a santidade.

IL Como o homem deve dispor-se para glorificar a Deus.


5. Que nos incumbe, portanto, fazer para a realização
do plano divino, isto é, para a glória de Deus? Antes de
tudo, submeter-nos a esse plano e não termos outra am­
bição senão a de nos conformarmos a ele, cumprindo sem-
pre a vontade de Deus.
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Escutai, almas cristãs, a linguagem da huli1ilde plan­
ta: "Vivo para Deus, que Deus me fez para si. Encanto a
vista, espalho o meu perfume, porque ele assim o quer; se
nenhum olhar humano me contempla, não sou menos feliz,
pois é ainda a sua vontade". E, uma vez murcha, poderá
dizer: "Alcancei o meu fim, cumpri a vontade de meu Senhor.
Ele está satisfeito, e a mim $Ó me resta morrer e desaparecer!"
"filhos dos homens, aprendei de mim a representar bem
o papel que vos foi designado pelo soberano Senhor de to­
das as coisas. Como eu, deixai-vos cultivar, podar, desbastar;
então vos tornareis arbustos graciosos, flores magnificas, ou,
se for do agrado divino, plantas mais humildes, mais füeis,
formando-se assim o jardim perfeito onde o útil se une ao
agradável. O Senhor se regozijará, ufano, e ali gozará suas
delicias".
E quão mais magnifico seria o mundo das almas, já
tão belo, se estas se amoldassem dàcilmente aos desígnios
de Deus, se aceitassem sobretudo o papel que a Providência
lhes quer designar! "Quisera ser uma flor, di,rá esta, para
encantar os olhos do Senhor". Mas se a flor aqui é inútil, se
o lugar em que ele vos colocou é o de uma erva modesta,
menos brilhante, sem· dúvida, mas não menos útil, não deverá
a sua vontade ser a norma da vossa?
6. Este principio evidente, aceito em teoria por todos,
é muilo esquecido na prática. E' esquecido, primeiro, por
aqueles que amhicionam posições ou empregos agradáveis
à natureza, visando o bem-estar, as honras, ou a isenção
de certas dificuldades, de preferência à simples vontade
de Deus. Procuramos evitar a cruz, temos horror às contra­
dições ou às humilhações, e embalamo-nos na frívola es­
perança de que, mudando de posição, não teremos mais
de sofrer semelhantes provações.
Nunca procuram subtrair-se ao plano divino aqueles
que permanecem onde a Providência os colocou. Se, entre
ocupações múltiplas que se apresentam, preferem as mais
agradáveis; se, entre virtudes a praticar, optam pelas mais
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fáceis óu inais brilhantes, eles perturbam também a ordem
estabelecida pelo Senhor e expõem-se aos seus castigos.
Consinta, pois, cada qual em ser aquilo que o Senhor
o quis fazer, e não prefira seus projetos vãos aos decretos
da infinita Sabedoria. Consinta, também, em deixar-se amol­
dar segundo a vontade divina sem opor urna resistência cri­
minosa ao labor do jardineiro que recebeu o encargo -de
cultivá-lo.
7. Com efeito, o Senhor muniu-se de auxiliares para a
obra irnportanlíssima da cultura das almas. Se é ele quem
fertiliza, quem dá vida e crescimento, é Paulo quem planta,
C Apolo quem rega, é o ministro de Deus quem corta, poda
e desbasta o jardim do divino Mestre. Uma árvore, que
brotasse por si mesma, sem cullura, sem enxerto, sem re­
ga, uma árvore que a tesoura do jardineiro nunca defendes­
se das gomeleiras e não fosse desembaraçada das plantas
parasitas que lhe devoram a seiva, ou da vizinhança do mato
ou das outras árvores que a comprimem e sufocam, seria
uma árvore selvagem que produziria frutos pouco abundantes
e sem sabor. A árvore carece, pois, de ser podada e des­
galhada. Se ela fosse dotada de entendimento e de sen­
sibilidade, não \'cria, por certo, sem receio, aproximar-se-lhe
o jardineiro, com a tesoura na mão; mas, se fosse, ao mes­
mo tempo, inteligente e sensata, alegrar-se-ia, ao pensar que
uma operação, dolorosa sem dúvida, mas necessária, ia re­
tirar-lhe tudo quanto lhe prejudicava a fertilidade, ou dar­
lhe uma forma mais graciosa, com a qual agradaria mais ao
senhor do jardim.
8. Há, no jardim da Igreja, muitas árvores que resis­
tem à poda e ·não se deixam desgalhar, como deveriam;
não são raros aqueles que não se submetem, ou imperfeita­
mente, à cultura necessária. E' que nos repugna deixar exa­
minar nossos atos, descobrir o ardor de nossas paixões, a
. baixeza de nossa concupiscência, os nossos muitos defeitos.
Receamos ouvit certos conselhos que estorvariam talvez os
-planos que nos traçamos, que exigiriam esforço, e nos. obri­
.gariam a uma vigilância incessante, a atos muito penósos de
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renuncia. Custa-nos ver contrariados os nossos gostos, mo­
derada a nossa atividade natural e sermos constrangidos a
permanecer continuamente no esquecimento e na humildade.
Que desejamos, em geral, quando nos chegamos ao nosso
diretor espiritual? Queremos que nos dê provas de sua es­
tima, que aprove os nossos atos, que nos dê razão nas con­
tradições que experimentamos; queremos ser consolados, ou
ver censurados aqueles que nos fazem sofrer. Se ouvimos
a voz da graça, a exigir sacrifícios, procuramos qualquer
motivo para nos isentarmos, queremos ser animados a lison­
jear a natureza, na esperança de adormecer as reclamações
da consciência e descansarmos em uma doce tranquilidade.
Para alcançar esse fim, quanta habilidade não desenvolvem
certas pessoas, por vezes sem o confessar a si mesmas; como
sabem dissimular suas ambições, fazer valer pretextos fú­
teis, faiscar os acontecimentos! Quando recorremos à dire­
ção com essas intenções humanas e esse espírito mal in­
tencionado, quando nos iludimos a nós mesmos, antes de
iludirmos ao nosso diretor, tornamos a direção improficua
e abusamos de um dos nossos melhores meios de progresso
que o Senhor proporcionou a seus filhos.
9. A alma humilde, cujo único desejo é progredir, cus­
te o que custar, no amor divino, compreende, de modo com­
pletamente oposto, a direção, e dela consegue preciosos auxí­
lios. Não se dissimulando a si mesma seus defeitos, dá-los
a conhecer com grande simplicidade e inteira franqueza;
sabe que o resultado da direção depende dela, tanto quan­
to de seu guia; que não deve esperar iniciativas da parte de­
le, mas, de si mesma, solicitar conselhos, indicar suas fra­
quezas intimas, suas dificuldades, o obstáculos que atraves­
sam seu caminho; quer ser animada, não a dispensar-se
do que a constrange e incomoda, mas a combater corajosa­
mente e a nunca ceder ã moleza, nem às reclamações mal
fundadas da natureza.
10. As plantas de nossos jardins dão-nos outra lição
preciosa; ensinam-nos como devemos portar-nos nas tempesta­
des que, por vezes,· assaltam nossas almas.· Entre as ·plan-

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tas, umas, com efeito, vergam sob a borrasca, enquanto ou­
tras mantêm-se inflexíveis, enfrentando, destemidas, o tem­
poral. Estas, porém, se forem ainda frágeis, não resistirão
ao choque dos ventos; quebrar-se-ão e, com seus despojos,
irão juncar o solo. Mas as que se vergam não se partem; sob
a pressão violenta da tempestade, talvez se mancharão; o
solo embebido, que roçam, lhes deixará, nas folhas, alguns
salpicos de lama; mal, porém, o temporal acabado, algumas
gotas derramadas pelo jardineiro os farão desaparecer. En­
tão as plantas brilharão com novo esplendor, animadas pelos
raios benfazejos cio sol.
Quando uma alma for assaltada por violentas tempes­
tades, seu primeiro dever é humilhar-se e apelar para o
Senhor. Se, confiante em si mesma, gaba-se de não vergar,
arrisca-se muitíssimo, pois procura a força onde esta não
se encontra; não tarda em sucumbir, e sua presunçosa con­
fiança cede ao abatimento, ao despeito, ao desânimo.
Quem se humilha, ao contrário, confessa, envergonha­
do, suas más tendências e sua grande fraqueza e, não con­
fiando senão em Deus, recorre à oração e sai vitorioso da
luta. As pessoas que sofrem incessantes e mui injustas con­
tradições, que estão expostas a repetidos vexames, são levadas
a impacientar-se e a murmurar; assim também aquelas, cujas
lutas são secretas, e quiçá mais penosas ainda, sofrem por
sentir em si mesmas tendências más e, por vezes, mui violen­
tas. O melhor, o único meio de conservar a paciência, de man­
ter intata a virtude, C começar por se humilhar ante as revol­
tas c;(a natureza e implorar auxílio junto àquele que é o único
a poder fortalecê-las contra si mesmas e contra seus inimi­
gos. A tal preço a vitória está garantida. Nessas grandes
provações a fragilidade humana leva-nos, por certo, a co­
lneter faltas, pois sómente as almas muito perfeitas podem sus�
tentar esses rudes assaltos sem ter que lamentar fraqueza
alguma; as almas generosas, mas não heróicas, contam tri­
unfos e perdas; mas as vitórias sobrepujam as derrotas. De­
mais, os atos de virtude praticados pela resistência a esses
impetos violentos denotam uma vontade forte e meritória,
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enquanto os momentos de fraqueza, devidos a um ligeiro des­
falecimento, a um esquecimento passageiro da vontade, só
acarretam uma responsabilidade diminuta e são fàcilmente
perdoados. Uma confissão sincera apaga todas essas manchas
e a alma sai da provação mais gloriosa e mais querida de
Deus.
11. Mais querida de Deus, porque o glorificou imensa­
mente. Se as criaturas e os astros, se as flores e. os ar­
bustos celebram a glõria de Deus, nenhum ser o honra nem
o glorifica como a alma fiel e, principalmente, comv a al­
ma experimentada.
Não são aqueles que ocupam as mais altas posições
os que mais brilham aos olhos dos anjos, nem os que re­
fletem, com maior pureza, o esplendor da Divindade; ao
contrário, são, com frequência, as almas desconhecidas e
desprezadas pela maioria, que, com maior perfeição, imi­
tam as virtudes de Jesus e, por isso mesmo, as perfeições do
Pai celeste. A vida de Jesus foi, durante trinta anos, uma vi­
da toda escondida, toda de sofrimentos: in laboribt1s a ju­
rt1ntl1te mea. Houve sempre na Igreja almas ignoradas cuja
vida foi uma imolação contínua, e que parecem não ter pas­
sado sobre a terra, senão para reproduzir as dores do divi­
no Mestre. A contradição é sua bebida e o sofrimento seu
alimento; dir-se-ia, por vezes, que todas as criaturas com•­
piram para atormentá-las, enquanto os acontecimentos mai:.
insignificantes redundam-lhes em desvantagem. E' a Providên­
cia que lhes prepara essas múltiplas ocasiões de sofrer. Pou­
cos são, porém, entre os homens, aqueles que lhes compreen­
dem o caminho e se compadecem dos seus males. O Senhor,
porém, aufere grande glória dessas almas escondidas.
12. Outros servos de Deus também o glorificam so­
hremodo, irradiando, todavia, maior brilho e atraindo sobre
si maior atenção. São aqueles que, recebendo do alto vivas
luzes, têm por missão fazê-las recair sobre seus irmãos. O
Senhor os ilumina com fulgor tanto maior, quanto melhor
souberem preservar-se do espírito do mundo e voltar os
olhares e os pensamentos às altas regiões da fé. Então quan,-

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tQ. mais permanecem isentos de preocupações naturais, e
atentos aos genuinos interesses de Deus, tanto mais se exer­
cerá. sobre eles a influência divina. Mas a vida lhes está tam­
bl?m semeada de provações e a missão que têm a cumprir
(• fl?rtil cm cruzes.
Esses mártires desconhecidos e esses apóstolos zelo­
sos são, entre os homens, os que maior glória rendem a
Deus; formam, já neste mundo, a guarda. a escolta de hon­
ra do soberano Mestre e serão lambem no cCu os que de­
le se aproximarão mais de perto, ocupando os primeirns
lugares em sua corte.
13. Outras almas têm uma vocação toda particular,-que
convêm assinalar aqui. As cortes reais têm, anexa, a casa
da rainha. E' composta de oficiais, camareiros, damas de
honra, que não deixam, por isso, de fazer parte do serviço
do rei. E' ao rei que servem, servindo à rainha, mas a esta
consagram seu tempo, e prestam assiduos serviços. Neste
mundo lambem há almas, que Deus parece reservar, de mo­
do todo especial, para o serviço de sua gloriosa Mãe. Tais al­
mas procuram a Deus, sem dúvida, e não vivem senão para
Deus, mas vão sempre a ele por Maria. O pensamento dessa
Mãe querida apresenta-se sem cessar ao seu espírito e nada
fazem senão por ela e com ela. O espírito que as inspira,
atrai constantemente sua atenção sobre a bondade e as ama­
bilidades dessa santa Mãe. E o caminho dessas almas é
simples, mas cheio de paz e mui seguro.

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CAPITULO li

Do homem, imagem de Deus

Fariom11s hominrm ad imo,il11rm ct �/n1/l/111dinem


nostrom.
l'açamos o llomen1 à nosn in1,gen1 e �en1elhan•
ça (Gn 1, 211).

14. Todas as criaturas devem glorificar a Deus, mas


nenhuma há, sobre a terra, que possa honrá-lo como o ho­
mem. Não é ele o rei da criação? Não foi para ele que
o Senhor tirou do nada este mundo maravilhoso e antes de
nele o introduzir, o enfeitou cuidadosamente? foi só depois
de todos os preparativos terminados, quando, a seu juízo in­
falível, Deus reputou boa e conveniente a sua obra, et vidil
Deus quod esset bon11m, que o nosso primeiro pai recebeu
a existência e a vida. Nada, com efeito, devia faltar à sua fe­
licidade; todas as criaturas eram-lhe submissas; o Senhor
outorgou-lhe, sobre elas, parte de sua autoridade. Quis
!ambém que os próprios seres irracionais não pudessem fu­
gir ao dominio de seu novo senhor: as plantas e os animais,
tudo estava ao seu dispor. A fim de que pudesse apropriar-se
de todas essas riquezas, deu-lhe o Senhor natureza admirã­
vclmente organizada, sentidos para conhecer os seres in­
feriores e para deles gozar, membros para mexer-se e apos­
sar-se de tudo quanto lhe agradasse. Assim tudo pertence
ao homem, e cada um dos seres que o rodeiam é um presen­
te que recebeu de Deus.
Para que tantos beneficios pudessem impressionã-lo e
não viesse a esquecê-los quando deixasse de fruir deles, deu-
19

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lhe o Senhor a memória que conserva a lembrança desses be­
nefícios e permite ao homem considerar-lhes a abundância
e a variedade. Mas Deus lhe deu, principalmente, a inteligên­
cia, sem a qual todos esses bens permaneceriam incompreen­
didos e não atingiriam o fim para o qual foram criados.
Pois, se todos os seres falam de Deus, se lhe revelam o
poder, a riqueza, a sabedoria, a bondade, o amor, falam
uma linguagem misteriosa que eles mesmos, seres inferiores,
não podem entender. O Senhor cuida dos lírios dos cam­
pos e dos humildes passarinhos, mas nem o llrio nem a ave­
zinha compreendem que a vida lhes fo! dada e lhes é con­
servada por um ser superior; a natureza, tão rica e tão bela,
nada revela à águia que, planando a grande altura, abrange
com seu olhar penetrante tantas belezas ao mesmo tempo.
Um livro C um mistério para quem não sabe ler.
Então, para coroar sua obra, o Senhor colocou no meio
desses seres irracionais um ser inteligente, capaz de ren­
der um tributo de glória ao autor de tamanhas maravilhas
e um tributo de gratidão ao Benfeitor supremo que o cumula
de dons.
15. Não C sômente pela inteligência e pelo louvor das
grandezas divinas que o homem proporciona glória a Deus.
Ele mesmo C, neste mundo, a prova mais evidente da sa­
bedoria, do poder, da bondade do Altíssimo; é a obra pri­
ma do artista divino que lhe imprimiu o cunho de suas per­
fei_ções. Não foi ele feito à imagem de Deus?
Deus é o ser sumamente inteligente; Deus Pai se co­
nhece, contempla-se, e esse conhecimento infinito produz
o Verbo, igual ao Pai, de quem é o espelho fiel, e de quem
reproduz, sem mancha alguma, o esplendor infinito.
O homem tambCm produz seu verbo quando, por um
ato de inteligência, representa-se, a si mesmo, em concep­
ção fiel, o objeto de seu conhecimento, encarnando sua idCia
em uma palavra, �•erb11m, que pronuncia interiormente, mes­
mo quando permanece silencioso em relação aos outros ho•

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mens. Essa produção do verbo humano que não ê, sem dú­
vida, senão uma imitação imperfeita e vulgar da filiação
divina, resulta, não em uma pessoa semelhante e igual
à pessoa que pensa, como na Santíssima Trindade, mas
a 11111 puro acidente, a uma manifestação do seu intelecto.
O pensamento humano não se assemelha, pois, senão mui­
to de longe, ao Verbo divino. Entretanto, nada existe, no
mundo material, que mais se aproxime da geração do Verbo,
pada de mais belo, em toda a natureza, que um só ato de
inteligência.
Não será lícito dizer que, quanto mais puros e eleva­
dos forem os pensamentos suscitados em nossa inteligência,
menos imperfeita será a iniagem de Deus em nós? Quando,
principalmente, fazemos um ato de fé, quando, sob a in­
fluência da graça, com o auxilio das luzes sobrenatura.is,
nos repelimos, a nós mesmos, as grandezas de Deus, é Deus
quem opera em nós, conosco, e essa operação sobrenatural
reproduz mais fielmente a geração do Verbo no seio da
Trindade; esse alo de fé resplandece de uma beleza su­
perior, de certo modo divina, que sobrepuja a todos os es­
plendores de ordem puramente natural.
Além do conhecimento, há, em Deus, amor. O Pai e
o Filho se amam com um amor perfeito, infinito, e o termo,
o fruto desse amor ê o Espírito Santo, elo eterno, incriado,
vivo, que une o Pai e o Filho. Ora, se o ato de inteligência,
produzido na alma humana, representa a concepção do Ver­
bo, o ato de vontade ou de amor é a imagem imperfeita,
sem dtivida, e distante, porém verdadeira, da espiração do
Espírito Santo. Não podemos ainda dizer, neste caso, que,
quando nossa vontade produz atos sobrenaturais de caridade,
com o concurso e sob o impulso da graça, se forma tam­
bém em nós uma semelhança menos grosseira da espiração
do Espírito Santo?
Assim, a união dessas duas operações sobrenaturais,
operação da inteligência que crê e da vontade que ;una, pro­
·duz cm nós a verdadeira semelhança com a santa Trindade.

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Transfigura-nos a alma e redunda em honra e glória daque­
le que a fez tão bela e lhe permite produzir atos tão subli­
mes. Assim também, por si só, a alma fiel glorifica o Se­
nhor mais que todas as criaturas inferiores reunidas; quan­
to mais santa, e, por conseguinte, mais bela for, tanto
maior glória renderá ao seu Criador.
16. Temos a liberdade de produzir esses atos sobre­
naturais que imprimem às nossas almas uma beleza celes­
te; a glória que rendemos a Deus depende, pois, de nossa
cooperação. A planta honra aquele que a criou; sua forma,
suas qualidades, sua vida, seu crescimento, sua florescên­
cia, sua reprodução, manifestam o poder divino, mas ela
mesma não tem consciência disso e não lhe ê dado aumen­
tar essas propriedades, nem diminuir-lhes a beleza e o
esplendor.
O homem, ao contrário, pode prestar-se mais ou me­
nos aos designios divinos; pode render a Deus, conforme
quiser, uma brilhante homenagem, ou uma ligeira glória. A
planta glorifica a Deus, por necessidade, e o homem por
atos de plena liberdade, mais ainda, por atos que equiva­
lem de fato a vitórias. Vitórias, sim, pois o homem foi fei­
to para vencer, e, pela plena vitória, honra-se a si mesmo,
enquanto honra a Deus.
' Foi uma vitória que o Senhor quis que nossos primei­
ro!'> p11.is obtivessem quando os submeteu à prova no paraíso
tcnestre. Se tive'!sem vencido o tentador, imensos teriam
sido os resultados desse triunfo. Já antes deles, foi por uma
vitória que os anjos fiéis alcançaram a felicidade eterna.
Depois do pecado original, a dificuldade aumentou;
.!�vemos, não sõmente vencer nossos inimigos, mas vencer­
nos a nós mesmos. As potências interiores e exteriores d9
homem contrihuiram para o pecado; sua natureza trans­
íormou-se; em todo o seu ser manifesta-se a revolta con­
llii o bem, a tendência para o mal; é-lhe mister reprimir
essa revolta, dominar essa tendêncin; C-lhe mister subjugar
iWa natureza e vencer todas as resistências que esla lhe opõe.
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Nada C mais belo que a vitória, nada mais vergo­
nhoso ql!1.: a derrota. Assim C que quem não sabe triun­
far de �i mesmo, se envergonha e procura frequentemente
encobrir sua queda; não quer confessar que sucumbiu, quer,
antes, fazer crer que não foi vencido, prestando um magní­
fico testemunho à beleza da vitória. Os povos pagãos sa­
crificavam tudo para alcançar uma vitória sobre seus ini­
migos, mas compreendiam também que mais vale vencer­
se a si mesmo. Nada, de fato, sobrepuja esta vitória so­
bre si mesmo, e o Espírito Santo proclama: "é mais glorioso
V("r,ccr-se a si mesmo, que tomar de assalto as cidades" (P:1
IG, 32),
17. O homem fiel glorifica assim melhor a Deus que os
outros seres, porque ele mesmo lhes é incomparàvclmente
mais belo, e porque pratica obras incompar.àvclmentc mais
honrosas.
E' mais belo porque Deus lhe comunica, pela graça,
um fulgor ma"gnífico, um brilho que outra coisa não C se­
não uma participação ao esplendor divino, um reflexo, uma
imagem da Trindade santíssima.
Realiza obras gloriosas, porque são obras vitoriosas e,
ao mesmo tempo, sobrenaturais, isto é, obras humanas I!
também divinas, feitas de acordo com Deus, cuja parte exce­
de a do homem. E' Deus, com efeito, quem opera cm pri­
meiro lugar, inspirando a idéia do bem, atuando sobre as
faculdades humanas para incitá-las a obrar sobrenatural­
mentc. Do Sol divino se desprendem como que três raios que
penetram cm nossas almas: um se une à nossa memória,
lembrando-nos a idéia do bem a fazer, ela virtude a pra­
ticar; outro se une à nossa inteligência e torna sobrenatural­
mente luminosos os motivos que nos levam a agir; o outro,
enfim, se une à nossa vontade, excita-a, impele-a e comunica­
lhe uma força divina. Desta tríplice influência resulta um
ato único, sobrenatural, que glorifica a Deus porque dele
pnm.'.-m, a ele deve sua beleza intrinseca, e porque o pró­
prio homem, na parte que lhe cabe nessa obra sobrenatural,

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não pode agir senão pelo poder que recebe de Deus e
não quer agir senão para a glória de seu Senhor e de seu
Deus.
Como ê grande esse ato. sobrenatural praticado pela
alma fiel, embora passe despercebido aos olhos das cria­
turas; é de origem divina, é divino por participação e, por
conseguinte, os frutos que produz são imortais como Deus
mesmo. E quais os frutos desses atos sobrenaturais, e atê
de um só ato sobrenatural? São acréscimos da graça, o em­
belezamento da alma, o merecimnto que, no céu, se trans­
formará em acréscimo de glória e de felicidade eterna pa­
ra o homem que agiu sobrenaturalmenle e, por isso mesmo,
em acréscimo de glória exterior para Deus, que durará to­
da a eternidade.

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CAPITULO Ili

Das qualidades do SOidado de Deua

Labora �lrut llon1u1 milrs Chrislf.


L:ibul� como 11m bani soldado d� Cri�IO (2
Tim 2, 2),

18. E' sômcnlc pela luta que o homem glorifica a Deus;


se· deve ganhar, com o suor do rosto, os alimentos que lhe
sustentarão o corpo, deverá pela coragem conquistar as
graças que lhe hão de fortalecer e embelezar a alma.
Mas qual deve ser sua maneira de combater, que qualida­
des deve revelar nessa guerra incessante, que durará toda
sua vida? O soldado de Deus deve ser obediente, paciente,
humilde, sempre senhor de si mesmo.

L Obediência.
19. A primeira qualidade de um soldado é o espírito
de disciplina; C-lhe exigido, antes de tudo, que obedeça,
que avance quando for dada ordem, ou permaneça em
seu posto, com risco da própria vida, quando os chefes
assim o ordenarem. Um exército em que cada soldado se­
guisse suas próprias idéias e procedesse a seu bel-prazer,
estaria condenado a uma derro.ta certa. Com maioria de
razão, o soldado de Deus, que só pode vencer se for sus­
tentado por Deus, deve combater conforme Deus quer; de­
ve ir, não aonde lhe agrada, mas aonde Deus o quer; de­
ve agir não segundo seu gosto ou capricho, mas segundo os
desígnios de Deus; deve empregar os meios que a Providên­
cia lhe prepara, ou que o Espírito divino lhe inspirar, e não
atender às suas idéias individuais; deve renunciar a seus pró­
prios projetos e submeter-se à opinião e às ordens daqueles
que têm por encargo esclarecê-los e conduzi-los.

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São Francisco de Assis, submisso às msp1raçocs que
recebera, funda sua ordem sobre as bases da pobreza e
da humildade. Este grande santo era de uma simplicidade
encantadora e tudo quanto respirasse altivez, convenção,
grandeza, ·lhe era estranho. Entre seus primeiros discípulos,
11111 dos mais notáveis pela inteligência, pela energia e
mesmo pelo fervor, foi Frei Elias; mas seu espírito não era
o �o santo fundador; às idêias de Francisco, entretanto,
tão conformes à doutrina do Evangelho, queria substituir
suas próprias idéias. julgava, sem dúvida, a simplicidade
ingênua de seu Pai indigna de uma ordem destinada ao
apr1slolado, apta sômente a inspirar desprezo aos fiéis:
parecia-lhe necessário maior dignidade, maior nobreza. Não
era o Espirita do Senhor que o inspirava e o impelia nes­
se caminho, e sim o espírito do mundo. O fim deste ho­
mem célebre provou bem que as maiores qualidades de es­
pírito e de coração, se não forem aliadas a uma perfeita
submissão à graça, de nada servem, e antes fazem sobres­
sair a fraqueza humana.
Quantos esforços perdidos, quantas lutas improfícuas
naqueles que agem segundo a sua própria prudência e
vontade, em vez de procurar conhecer e seguir a vontade di­
vina. O povo de Israel - como no-lo demonstra toda �­
sua história - era vencido infalivelmente quando marcha­
va para o combate antes de receber as ordens do Senhor;
era-lhe, ao contrário, garantida a vitória quando consul­
tava cuidadosamente os oráculos divinos e a eles se confor­
mava. Deus nunca abandona quem combate por ele e só
quer cumprir a sua santa vontade. Este alcançará sempre,
graças a Deus, vitória sobre todos os seus inimigos.

li. Paciência.

20. A guerra é uma rude escola de paciência onde as


fadigas são penosas e mais enervantes que os próprios pe­
rigos! E' bom soldado aquele que dá provas de tolerância,
a quem nada desanima e nada assusta, nem as marchas e

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tontra-marchas, nem as vigílias, nem as privações, nem a·s
intempéries, aquele que não se queixa se for mal alimen­
tado, mal alojado, mal vestido; que supor.ta, alegre, todos
os sofrimentos, feliz de poder, mesmo a tal preço, contri­
buir para a defesa e o triunfo de sua pátria.
A luta que dev�m sustentar os soldados de Cristo é
fértil cm trabalhos duros e o cristão que quer alcançar a
vitória deve armar-se de uma paciência a toda prova. Os
sofrimentos lhe vêm, quer de Deus; que experimenta seus
fiéis, afastando-se deles e parecendo abandoná-los a si mes­
mos; quer dos homens, que são os instrumentos de que Deus
se utiliza para purificar e santificar os seus servos; e quem
. murmura, pois, contra o próximo, inconscientemente murmura
contra Deus; quer enfim dos demônios, que, ansiando pe­
la sua perda, não o deixam em repouso.
O sofrimento é indispensável ao desenvolvimento da
virtude, como a água á planta; a virtude que não é expe­
rimentada se estiola, como a planta num solo árido, che­
gando mesmo a secar e morrer. O sofrimento é um dom de
Deus, pois oferece ocasiões de mérito, ajudando a reprimir
os ímpetos da natureza, a diminuir-lhe o ardor, a moderar­
lhe as tendências, a mantê-la sob o domínio da razão e da
fé. Oh! que grande ciência adquire quem sabe sofrer!
O sofrimento fortifica a v�:-tude. Doce é o espetáculo
de uma alma que se abre à vida de piedade; semelhante
â planta pequenina, cujo caule brota da terra, tem uma apa­
rência delicada que encanta; mas, se a plantinha agrada
porque é tenra, também é frágil e sensivel, um nada a ma­
chuca. uma rajada de vento pode abatê-la, um raio de sol,
murchá-la; quando houver experimentado a aridez, as tem­
pestades, as intempéries de toda espécie, será mais forte
e estará exposta a menos perigos. Assim o soldado de
Cristo que sofreu a aridez, as tentações, as tribulações de to­
da sorte, adquire grande energia, se, conluclo, souber su­
portar essas tristezas com paciência e amor. A tal rrcç,:
sómente será invencivel, e os inimigos nada poderão con­
tra ele.
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HI. Humildade.
21. Quando os chefes de exército se preparam para
conduzir seus soldados ao combate, apresentam-lhes a vi-
1ória como certa, e, para aumentar-lhes a confiança, cumu­
lam-nos de elogios, exaltam-nos como se fossem os pri­
meiros guerreiros do mundo. Todos os soldados de Deus
são destinados a vencer e devem lutar com a esperança, com
a certeza do triunfo, como os dos exércitos humanos, mas,
longe de porem a confiança cm si mesmos, C pela arma
da humildade que devem comhater e que poderão alcan­
çar a vitória.
Quando Gedeão, para repelir os madianitas, reuniu
um exercito, o Senhor achou-o numeroso demais e redu­
ziu-o, por duas vezes, até formar um número irrisório. Tre­
zentos guerreiros, apenas, bastaram para esmagar a mul­
tidão imensa de inimigos. "Não quero, dissera o Senhor, que
Israel se glorie contra mim e diga: "Fui libertado pelas
minhas próprias forças". E' por meios mui simples e hu­
mildes que o Senhor opera constantes prodígios em favor
de seu povo. E' também menos por atos de ostentação que
por obras ignoradas ou de pouco valor ao juízo do mundo,
mas inspiradas numa grande pureza de intenção, em um
amor ardente, cheio de delicadezas, que Deus eleva seus
eleitos à perfeição. Os feitos brilhantes favorecem o or­
gulho e não convêm senão às almas já adiantadas na hu­
mildade. Abraão não começou pelo sacrifício de Isaac; quan­
do. Deus o submeteu a esta prova, ele já atingira uma con­
sumada virtude, adquirida pela fidelidade aos deveres e pela
piedade constante, que o levava a erguer um altar em todo
lugar por onde passasse, bem como por outras obras insigni­
ficantes, porém preciosas diante de Deus. Este grande patriar­
ca era humilde de coração, como prova sua conduta em re­
lação ao seu sobrinho Lot, cedendo-lhe de tão bom gra­
do a melhor parte; era bom e afetuoso, como toda a
sua história o demonstra. Foi pela prática dessas virtudes
que se elevou, pouco a pouco, ao heroísmo. Essa mesma
simplicidade, essa humildade, essa fidelidade às virtudes

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· da vida comum, encontram-se também nos outros santAs
patriarcas, em Isaac, Jacob, José; foi seguindo igual cami­
nho que se tornaram verdadeiros servos de Deus e seus ami­
gos prediletos.
Não é de supor que essas humildes virtudes só exi­
jam pequenos esforços: exigem, pelo contrário, esforços
generosos e constantes, mas que em geral passam desper­
cebidos; são desconhecidos dos homens, porém apreciados
por Deus, e quem, continuamente, pratica essas pequenas
virtudes, é, na realidade, um valente lutador e um insig:ne
vencedor.
E', d� fato, muito merecedor quem, na luta sem trC­
guas, que deve ser a de todos os homens neste mundo, não
visa atos de realce, postos de honra, reputação brilhante,
mas cumpre fielmente com seu dever, alheio â opinião dos
homens, e se dedica, sem aparato, com o llnico intuito de
realizar sua tarefa. Esta disposição de alma, entretanto,
não -basta para constituir um humilde soldado de Cristo.
E' mister, para ter direito a esse titulo, não sômente não
procurar a glória exterior, como também não se vangloriar
a si mesmo; é mister reconhecer sua miséria e aceitar, de bom
grado, ser imperfeito, cheio de defeitos, digno de compaixão.
E'-nos um grande sofrimento verificar nossos defeitos;
foi até este o castigo imediado do primeiro pecado, a cau­
sa dessa vergonha, muito bem fundada, que levou Adão
e Eva a se esconderem depois da falta cometida. Tal so­
frimento é justo, e temos o dever ele submeter-nos a ele.
Devemos lastimar as nossas faltas, sem, porém, nos dei­
xarmos abater, sem nos irritarmos contra nós mesmos. A
humildade que produz abatimento e desânimo é falsa e
ilusõria e- não provém de Deus, mas do demônio. Reconhe­
ce-se a árvore pelos frutos.· Quando uma disposição de alma
nos leva a suspender, por um instante sequer, a obra de
nossa santificação, quando nos interromp-e o impulso pa­
ra o bem e nos paralisa as forças, então essa disposição é
sugerida pelo nosso inimigo. O maldito perturba as almas
ou as desanima a fim de perdê-las; sob a capa da humildade,

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excita o amor próprio, amor próprio despeitado da alma
que contava consigo mesma, que se aflige com sua fraqueza
e se envergonha ao reconhecer-se vil e desprezível. Há um
recôndito despeito de orgulho em toda alma desanimada.
O Senhor inspira uma humildade muito diversa e a
põe, não sômente no espírit'o, esclarecendo a alma sobre
suas misérias, como também no coração, levando-a a con­
sentir, de bom grado, em se humilhar, em se confessar pe­
quenina e má. Então, nada se opõe à segunda graça, que
acompanha sempre a verdadeira humildade, graça de con­
fiança e de paz. Nada posso por mim mesmo, diz o hu­
milde soldado de Jesus, ao experimentar mais uma vez a
sua fragilidade, nada sou, tametsi nillil sum, mas tudo pos­
so naquele que me fortifica: omnia posswn in eo q11i me con­
fortai. Levanta-se, então, cheio de coragem, e corre a vin­
gar a derrota por novas vitórias.

IV. Paz da alma e posse de si mesmo.

22. Um bom soldado é sempre senhor de si; saberá,


cm caso de necessidade, demonstrar uma coragem impetuo­
sa, mas também, sendo preciso, saberá moderar o entusias­
mo, nunca cederá a um ímpeto excessivo, nem a um co­
varde abatimento; dominar-se sempre é a condição da ver­
dadeira coragem que o torna invencível. Soldados de Deus,
devemos também ser sempre senhores de nós mesmos e
conservar essa paz que nosso Senhor ressuscitado não se
C"ansava de desejar aos apóstolos. Na paz, encontraremos
Deus, na paz, receberemos a força de Deus. Se a paz es­
tiver ausente de nosso coração ao lutarmos, lembremo-nos
que nosso ardor de combate provém antes de nossas -paixões
que da graça. Neste caso, é a natureza que opera, são
interesses humanos que nos dirigem. Com efeito, é pró­
prio da natureza o afligir-se e perturbar-se. Deus nunca
se perturba; Deus vive na paz, Deus C paz, ele, o ser imu­
tável e imóvel que comunica todo movimento, e sua ação C
forte, mas suave. A alma ·que deixa Deus agir nela, que não

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opõe sua atividade humana ao impulso da graça, sentirá for­
çosamente em si os sinais da ação divina, permanecendo, por­
tanto, forte e calma, venha o que vier. Se, ao contrário, ceder
ao impeto da natureza, outros serão os caracteres dessa ação,
mas nesse caso que valem suas obras, que resultado pro­
duzem seus esforços?
Quem vive na paz, recebe as puras luzes de Deus;
quem se entrega à agitação e à angllstia, ou quer, a todo
custo, satisfazer suas inclinações e ver realizar-se sua pró­
pria vontade, obsta o esclarecimento divino; seu espirita
obscurecido, velado, qual nCvoa, pelas inquietações que aceita,
ou não procura afastar, pelos desejos naturais que lhe pren­
dem a atenção, pelo receio de ver falhar-lhe os planos,
não recebe mais os raios do Sol divino. Tal alma não
pensa senão em seus temores, vive mergulhada cm suas pre­
ocupações, como lhe podem chegar as santas inspirações?
Está, pois, muito exposta a enganar-se; pode, por exen,­
plo, conhecer mal seus deveres, exagerar-lhes as dificuldades,
rião perceber bem as razões que lhe sustentariam a cora­
gem; daí, muitas derrotas. Sômcnte quem vive na paz será
um valoroso soldado; a luz divina lhe mostrará, por certo,
os perigos que corre, os sacrificios que deve fazer, mas ao
:ncsmo tempo lhe fará compreender que tudo se torna fá­
cil com o auxilio de Deus. Então, a alma porá mãos à obra
sem hesitar.
Os israelitas antes de entrar na terra prometida es­
colheram doze homens e ali os e11viaram como explorado­
res. Alguns, sob a influência de suas paixões, não viram a
terra tal qual era, e, cedendo ao medo e à covardia, jul­
garam que seria loucura e temeridade tentar conquistá-la.
Dois sômentc, entre eles, mais calmos, mais senhores de
si, porque, sem dúvida, possuiam mais que os outros a paz
da alma, apreciaram ponderadamente a situação e não per­
deram a coragem. A posse, o gozo de Deus, a união com
Deus, mesmo neste mundo, eis a terra prometida da al­
ma cristã. Mas, ai de nós! pouquíssimas são as almas que
a consideram com as devidas disposições e a apreciam ao

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seu justo valor; a maior parte, como os enviados de Moisés,
consideram a sua conquista como impossível; os obstáculos
a vencer os intimidam, a visão de sua fraqueza os desanima.
Sómente aqueles que não cedem ao temor, que permanecem
firmes e calmos, aqueles que possuem a paz da alma, põem a
sua confiança em Deus e tentam generosamente a conquista.
Não pensemos, como acontece com demasiada frequên­
cia, que a paz da alma seja um dom reservado, de que
Deus é cioso, e que só concede a alguns privilegiados. E' opi­
nião corrente que a paz da alma não pode coexistir com a
·luta. "Não posso gozar da paz nas circunstância,; em que
a Providência me colocou; entre multíplices lides e os cui­
dados que me cercam; não posso gozar dela com o meu gê­
nio, inclinado ora à agitação, ora aCl abatimento; tomo mui­
to a· peito proceder bem e ver que os outros procedam
hem, como então conservar a paz quando cometo tanta, fal­
tas e vejo os outros caírem cm tantos erros?" Descul­
pas flltcis, com as quais nos iludimos a nós mesmos e
deixamos de prosseguir na conquista de tão inestimável bem.
Não caem neste erro aqueles que compreendem toda a im­
portância dessa paz; pensam, com razão, que Deus, in­
finitamente bom. não quer recusar às almas de boa von­
tade um dom tão necessário. Aqueles que não lhe sabem
o valor e não empregam todos os esforços por adquiri­
lo, mostram que estão pouco esclarecidos a respeito e que
desconhecem o caminho que le\'a a Deus.
Quando uma alma provar a paz, com que carinhoso
desvelo a deve conservar! Como se deve esmerar por não
a perturbar!
Quer triunfe, quer sucumba, deve sempre conservar· a
paz, ate que suas quedas e suas vitórias, seus pecados e
suas virtudes desapareçam na paz. Ao considerar seus ini­
migos, procurando descobrir-lhes os ataques e os meios de
ação e, ao mesmo tempo, reconhecer os seus próprios pon­
tos fracos, deve fazer esse exame dentro da paz como nu­
ma fortaleza inexpugnável. Deveria aspirar e respirar essa
paz, e dela impregnar todos os seus atos.

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CAPITULO IV

Das vantagens da luta


Non roronalnr nlsl qul ltgltlmt rrr/01•,rl/,

Nln�u�n, é coroado, sem que ltnh� �ou1b,tido


l�Rllimamente (1! Tim 2, 5).

23. Enumeramos as diversas qualidades que deve ter


o verdadeiro soldado de Deus. Dispondo desses meios, po­
de entrar em guerra, certo de que a luta durará enquan­
to lhe durar a vida.
Terá, com efeito, toda a vida uma natureza rebelde,
tendências más, que deverá sempre reprimir, sem nunca
poder diminuí-las. A concupiscência resulta do pecado ori­
ginal. Como os outros rri,ales que provêm de igual origem,
a ignorância, a sujeição às enfennidades e à morte, essa
concupiscência se fará· sentir toda a vida para nos fazer
compreender o mal que é ·o pecado, e levar-nos a expiar
nossas falias individuais.
Mas essa lula não é sómente um castigo e um meio de
expiação. Deus pune como pai, e as penas que impõe são
também benefícios, pois impedem males mais funestos e pro­
duzem vantagens inestimáveis. A luta nos acautel.i con­
tra a indolência, contra o entorpecimento espiritual, apto a
llegcnerar em um sono mortal, enquanto é uma ocasião de
merecer, um· meio de aumentar a felicidade eterna.
Ai, por conseguinte, das almas covardes que recu­
sam o combate! Relembramos há pouco os hebreus que­
rendo entrar na terra de Canaã, que o Senhor lhes prome­
tera, e para onde enviaram exploradores que se certificas-

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sem de sua fertilidade. De lá trouxeram frutos magníficos.
Foi com razão, disseram, que a denominaram uma terra
em que corre leite e mel. Mas essa terra era habitada por
povos valorosos, defendida por cidades fortes. A conquis­
ta desse pais, tão belo e tão rico, exigiria uma longa e
terrível guerra. Já dissemos que, cedendo ao medo, a maior
parte dos exploradores exageraram as dificuldades e quise­
ram afastar o povo de Israel da dita empresa. O povo, in­
felizmente, os atendeu; murmurando contra Deus, quis fugir
da luta e voltar para o Egito. O Senhor irritou-se; prometera a
vitória, e duvidavam agora da sua promessa; desejava que
obtivessem pela luta, e re�uavam covardemente diante da
necessidade de combater. Era tornar-se indigno da felicida­
de prometida.
O castigo infligido pelo Senhor foi exemplar, pois
devia servir de lição a todas as gerações vindouras. Escute­
mos essa linguagem severa: "Vossos cadáveres ficarão esten­
didos neste deserto. Vós todos que fostes recenseados, de
vinte e mais anos, e que murmurastes contra mim, não en­
trareis na terra em que eu havia jurado introduzir-vos, exceto
Caleb, filho de Jefné, e Josué, filho de Nun. Vossos filhos
viverão errantes na solidão durante quarenta anos; carregarão
a.pena de vossa apostasia até que os corpos de seus pais se­
jam consumidos no deserto. Explorastes a terra durante qua­
renta dias; um ano pagará por um dia, e durante quarenta
anos carregareis o castigo de vossas iniquidades e conhe­
cereis minha vingança" (Nm 14, 29-34).
Desagradam, ·portanto, ao Senhor os homens pusi!Jlni­
mes. As almas fortes e ardentes na fota, ao contrário, agra­
dam-lhe e encantam-no. Poi por isso que o Senhor, mesmo
depois da conquista da terra prometida, deixou subsistir en­
tre os israelitas alguns vestígios da raça de Canaã; quis
que os filhos dos conquistadores aprendessem a guerrear
o inimigo como seus pais e que seu povo não perdesse o
hábito do combate, pois ê tãb temível uma vida indolen­
te e mole quanto é vantajoso à alma ter inimigos a repelir
e a vencer.
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24. São principalmente as almas que o Senhor chamou
a uma virtude mais alta, às quais concedeu graças mais
numerosas, que devem travar combates mais rudes. Iludem­
se, pois, completamente, esses piedosos fiéis que não com­
preendem que a vida de uma alma toda dedicada ao ser­
viço de Deus seja cheia de lutas. Desejariam, por certo, ser­
vir fielmente a Deus, amá-lo de todo o coração, mas sem
que isso lhes custasse muito à indolente natureza. "Serei
religioso, piedoso, fiel ao meu dever, sustentarei alguns com­
bates, mas terei, espero, muitos intervalos de repouso; em
minhas lutas serei auxiliado, animado e, em caso de neces­
sidade, carregado. Os impulsos de meu coração, afetivo por
natureza, me tornarão generoso i as doçuras da oração, as
alegrias da comunhão, os conselhos paternais de meu guia
me consolarão dos sofrimentos, e atravessarei a vida pro­
tegido, apoiado, até o dia do triunfo final".
Ilusão! As almas a quem Deus reserva uma magna re­
compensa, não é tão fácil o triunfo final. A felicidade eter­
na será um bem laboriosamente conquistado; e isto cons­
titui a glória dos eleitos e lhes aumenta a alegria. E' evidente
que os trabalhos serão mais penosos na terra, para aqueles
a quem está reservada uma eternidade mais feliz; terão
períodos consecutivos, por vezes muito longos, de lutas con­
tinuas, de tentações horríveis, de aridez, de incapacidade;
faltar-lhes-á então todo apoio exterior, e só Deus permane­
cerá oculto no fundo da alma, sem deixar sentir sua presença.
E' preciso contar com essa luta terrivel, perceber-lhe de an­
temão os horrores, e aceitá-los corajosamente. Depois, cl1e­
gada a provação, quando as consolações cessarem e os sen­
timentos parecerem sufocados, será preciso apoiar-se ímica­
mente na fé, na esperança e na caridade: na fé - acreditan­
do, apesar de tudo, no poder, na sabedoria, no amor de
DeuSi na esperança - abandonando-se-lhe entre as mãos,
com plena confiança em sua bondade infinita; na caridade
- multiplicando atos de absoluta conformidade à vontade
divina, e consolando-se com o pensamento de que, graças

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a essas provações, no céu, grandezas divinas serão mais co­
nhecidas, e Deus amado com maior perfeição.
Aqueles que estão preparados para a luta mostram uma
constância muito maior quando é chegado o momento do
combate; aqueles que contavam com as consolações da pie­
dade e não esperavam esse estado de desolação, estão mui­
to mais expostos a perder a coragem. Quantos, então, não
caem no relaxamento! irritam-se contra as dificuldades, agas­
lam-se contra si mesmos e contra a própria fraqueza, dei­
xam de lutar e caem num estado deplorável; ou então, o
que acontece as mais das vezes, lutam com indolência e
não lucram nesses combates as imensas vantagens das al­
mas generosas.
25. Imensos são, com efeito, os resultados dessas lutas
para os corações valorosos! Cada vitória é uma conquis­
ta; triunfando de um defeito, adquirem maior domínio so­
hre si mesmos e, quanto mais fortes forem, mais capazes
serão de fazer o bem.
Roma começou modestamente; no tempo dos reis, era
uma simples aldeia. Mas as lutas travadas de início contra
seus vizinhos imediatos, e terminando sempre por conquis­
tas, ampliaram-lhe o poder. Tornara-se, pouco a pouco, se­
nhora de toda a ltãlia até que as guerras contra Cartago,
felizmente terminadas, estenderam-lhe o domínio até a Es­
panha e a África. Novas lutas permitiram-lhe abranger em
suas fronteiras a Oãlia, grande parte da Europa, da África
setentrional e da Ásia ocidental, e cada nova guerra, dilatando
as suas fronteiras, aumentava o seu poder e a tornava cada
vez mais temível a seus inimigos. Deu-se o mesmo com
lodas as grandes nações; foi só devido a numerosos com­
hates, a árduas vitórias, que conseguiram es1ender seu do­
mínio, intensificar suas forças e tornar-se aptas a exercer
grande influência, e encetar e terminar de modo satisfatório
importantes empreendimentos. Outros povos, ao contrãrio,
mais amigos da paz, ou menos favorecidos pelas circunstân­
cias, permaneceram dentro de limites mais modestos; con­
tentando-se em representar no teatro da história um papel

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apagado; assim o grão-ducado de Luxemburgo, e mormen­
te o principado de Mônaco ou a república de São Marinho
em nada podem modificar a marcha dos negócios humanos.
Os negociantes não têm todos um mesmo espírito de
iniciativa nem dedicam ao comércio uma mesma atividade;
nem dispõem tampouco dos mesmos meios de divulgar seus
negócios. Alguns, amigos de uma vida tranquila, continuam
a gerir simplesmente o estabelecimento legado pelos ante­
passados, sem se esforçarem por alargar o circulo de sua
freguesia; os lucros, que lhes bastam à manutenção da
vida, não lhes permitem arriscar-se em novas emprêsas.
Outros, mais trabalhadores e mais ambiciosos, são também
mais esforçados e sujeitam-se a grandes fadigas; cada ne­
gõcio, corajosamente empreendido e continuado, em que
dispendem habilidade e dedicação, multiplica-lhes os capitais
e os habilita a realizar outros e maiores empreendimen­
tos, a obter lucros mais consideráveis.
Dá-se o mesmo na vida espiritual: as almas fracas,
pouco generosas ou pouco tentadas, levam uma vida rela­
tivamente calma; as lutas que sustentam são pouco temí­
veis e como não patenteiam nem grande coragem nem gran­
de energia, tais lutas, deixando-as mais ou menos no mesmo
nível de virtude, não as tornam capazes de aumentar seus
tesouros espirituais. Muitas almas permanecem toda a vida
num estado apenas acima do estado inicial. Não é que
seus méritos não se acrescentem uns aos outros, e que não
se enriqueçam um pouco pela repetição de certos atos vir­
tuosos; mas, se seus ganhos se adicionam, não progridem;
essas almas ganham hoje o que já ganhavam há dez, vinte,
trinta anos, atrás. Assemelham-se aos operários indolentes,
cujo dia de trabalho, após um longo tirocínio, não produz
mais do que produzia durante o aprendizado. Nesses cris­
tãos, que combateram frouxamente, existem sempre mui­
tas lacunas; suas virtudes não se desenvolveram; há, em ·sua
conduta, uma quantidade de imperfeições contra as quais
deixaram de lutar, e que já não percebem; suas disposições
de renúncia, de humildade e de amor permanecem medíocres
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e as obras, aparentemente as mais brilhantes, realizadas nes­
sas disposições, não podem ter, aos olhos de Deus, senão
um valor medíocre.
Inteiramente outros são os resultados obtidos pelos co­
rações generosos que, caminhando de conquista em conquis­
ta, passados alguns anos dobraram, quadruplicaram, de­
cuplicaram, centuplicaram, talvez, suas forças.
Todas as virtudes se lhes tornaram familiares e por con­
seguinte praticam eles atos com mais frequência e mais per­
feição do que na juventude, já fervorosa. Não se contenta­
ram em afastar molemente o inimigo e conservar as posições
conquistadas; atacaram-no com ardor, com perseverança,
dizendo como David: Persequar inimicos meos et comprehen­
dam eos, nec dimittam donec deficiant. "Perseguirei meus
inimigos, esperá-los-ei, não os abandonarei sem que os te­
nha vencido" (SI 17, 38).
Tratar-se-á de dissipação? Cuidaram tanto em velar
sobre os sentidos, em reprimir os desvios da imaginação,
em fugir às divagações, em suprimir os pensamentos inú­
teis, que se tornaram, após anos de luta, senhores de seu
interior; governam, quase à vontade, as potências da alma.
Desde então, não pérdem mais a presença de Deus e per­
manecem intimamente unidos a ele por atos de amor, es­
pontâneos e muito frequentes.
Se outrora sofreram vivamente as revoltas do amor pró­
prio, julgaram não fazer bastante confessando-as, e aspira­
ram à humildade perfeita. Para obtê-la de Deus, deram pro­
va de boa vontade, multiplicaram os atos de humildad�,
mesmo os que mais lhes custavam. Confessaram a si mesmos
a própria fraqueza; não se envergonharam de dá-las a
conhecer; foram voluntàriamente ao encontro das humilha­
ções e agradeceram ao Senhor aquelas que lhes couberam
espontâneamente. Chega então o momento em que as hu­
milhações nada mais custam e a humildade se exerce co­
mo que naturalmente e sem restrições.
Se combateram, com igual ardor e constância, a viva­
cidade do caráter, a sensualidade, o amor às comodidades,
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e praticaram corajosamente as virtudes contrárias, estas aca­
barão por lhes serem fáceis e ch�garão a praticá-las, não
pela metade, como os principiantes, ou só com o auxílio
de graças sensíveis e sob o impulso de uma imaginação
entusiasta, mas com uma decisão amadurecida, tranquila e fir­
me, em que a ·vontade opera com força muito maior e, por­
tanto, com mérito muito superior.
Os hábitos adquiridos pela prática de repetidos atos,
sem suprimir de todo a luta, facilitam a virtude; deixam­
lhe o mérito intato, pois tais hábitos, frutos de longos es­
forços, são voluntários e quem os possui, feliz de tê-los ad­
quirido, aceita-lhes todas as consequências. Sua vontade, ape­
gada mais que nunca ao bem que procurou durante longo
tempo, não carece mais de reações enérgicas para decidir-se
a praticar tal ato de virtude, embora suas decisões sejam
mais absolutas e mais intensas.
26. Mas a graça opera com maior liberdade sobretudo
no coração do cristão plenamente senhor de si. Outrora, a
vitória custava-lhe caro; era mister, para obtê-la, empre­
gar violentos esforços, que causavam vivas emoções. Esses
abalos sensíveis, que alguns julgam necessários à aquisi­
ção de grandes méritos, não são, ao contrário, senão uma
deplorável consequência da impureza e um obstáculo à per­
feição de nossos atos. Quando as paixões estão ainda mui­
to vivas, dá-se um choque entre elas e a graça impulsora
para o bem; então esta será, senão afastada, ao menos re­
tardada e prejudicada em sua obra salutar. Quando a gra­
ça triunfa e a paixão é vencida, a alma fica satisfeita, ufa­
na-se mesmo de se ter constrangido, de ter sofrido muito para
cumprir seu dever; é inclinada a.comprazer-se em si mesma
e a medir seus méritos pela violência que se fez. E' erro, pois,
muitas vezes, nessas lutas violentas dos primeiros tempos,
a natureza mesclar sua ação à da graça. Para repelir o mal,
cumprir um dever difícil, ou fazer um sacrifício penoso, a al­
ma recorre não sómente aos motivos sobrenaturais, que não
exercem ainda bastante influência sobre ela, mas a razões
humanas, pelo menos a razões pouco elevadas, como a ver-

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gonha de si mesma e de suas misé�ias, a procura da estima
de outrem ou o amor de sua própria perfeição. E' tão agra­
dável à natureza poder dar-se um bom atestado! Sob a in­
fluência desses motivos, a natureza se torna inflexivel para
consigo mesma e a vitória não é devida ao puro dominio
da graça.
 medida que a alma progridC, as revoltas da nature­
za, embora nunca desapareçam de todo, tornam-se menos
violentas, e a graça, menos embaraçada, opera com mJior
poder. A vitória custa muito menos e entretanto os atos de
virtude são mais puros, mais eficazes; as faculdades sen­
siveis agitam-se pouco a pouco, a imaginação permaneçe
mais calma, o apetite irascível mantém-se em repouso, o
espírito não raciona tanto. Então Deus opera com maior
liberdade.
E' Deus, pois, quem opera na alma e esta age nele,
por ele, para ele, dando aos seus mínimos atos um valor su­
perior: uma breve oração, um ato simples de uma alma
santa mais valem aos olhos de Deus que os esforços vio­
lentos de um principiante. A santissima Virgem não sentia
lutas e entretanto quão perfeitas, quão meritórias, quão
maravilhosamente sobrenaturais eram as suas menores ações!
Nós precisamos lutar, mas, à força de vencer, aproximamo­
nos dessa tranquilidade, desse domínio sobre nós mesmos,
dessa força de ação que imprime aos atos humanos seu pleno
,·alor. Sem dlivida, os atos virtuosos praticados pelos prin­
cipiantes já merecem, e seu eterno tesouro vai crescendo, mas
são moedas baixas que lhes acrescentam cada dia; mais tar­
de, depois de longas lutas, valentemente sustentadas, não se­
rão mais moedas de prata, porém peças de ouro e notas ele
banco que acumularão. Oh! como serão ricas as almas gene­
rosas, no dia da prestação de contas, quando for dado, e pa­
ra sempre, a cada um, segundo suas obras!

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C.-IPITULO V

Do objeto da luta e da mortificação


dos sentidos
\/ldto aliam lt,r,tm l11. n,embrls mels rrp11,:n1111•
ltm ltgl mtnlis me,r.
\'cjo n05 meus men1bro� nu1u lcl q11e repu,:na
à lei de n1eu espirllo (Nam 7, 23),

L Os apetites sensitivos.

27. Não estão longe de nós os inimigos que devemos


combater; estão dentro de nõs. Os primeiros, e não os me­
nos tcmiveis, são os apetites sensitivos. Assim denomina­
mos as inclinações espontâneas que nos arrastam aos obje­
tos próprios à nossa natureza, desde que esses objetos se­
jam percebidos pelos sentidos, e também os impulsos rá­
pidos e indelibcrados pelos quais afastamos vivamente, e
em caso de necessidade, violentamente, os obstáculos que
se opõem à posse dos objetos almejados. O primeiro des­
tes apetites chama-se apetite concupiscivel; e o segundo,
apetite irascivel.
Foi por um efeito de sua bondade e de sua sabedoria
que Deus depositou em nós essas inclinações instintivas; sem
elas havíamos de permanecer indiferentes, sem saber pro­
ver as necessidades mais urgentes de nossa imperfeita na­
tureza: o apetite concupiscível nos faz sair de nossa inércia
e nos impede de ficar sem o indispensável. E', demais, uma lei
universal e soberanamente sábia que, a toda percepção nas
faculdades conhecedoras, corresponda um impulso nas fa­
culdades afetivas. Qualquer ser, cm presença de um obje-
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to que lhe parece bom, sente-se logo atraído ao dito obje­
to. Mas esse impulso para o objeto cobiçado pode ir de en­
contro a um obstáculo e seria então sustado, se Deus não
nos tivesse dado outra faculdade, o apetite irascível, que
nos leva a afastar ou a romper o obstáculo para alcançar­
mos, apesar dele, o gozo desejado.
Esses apetites ou impulsos instintivos da alma são im­
petuosos, mas cegos; tendem � todos os objetos lícitos ou
ilícitos que se lhes apresentam sob aparências sedutoras. Não
nos é dado, portanto, obedecer, a esses impulsos, mas, ao
contrário, devemos dirigi-los e, com frequência, reprimi-los.
O homem, se quiser adestrar os animais a seu serviço, deve
domar-lhes as tendências instintivas; quanto mais, deve ele
submeter e dominar seus apetites sensitivos, se quiser per­
manecer fiel às prescrições da razão e, principalmente, às
regras da fé!
28. Um longo trabalho impõe-se a quem deles se qui­
ser tornar senhor. Os sentidos representam um papel salien­
te, têm uma influência considerável na vida humana: en­
quanto não forem reprimidos e vencidos, exercerão ascen­
dente sobre as outras faculdades em vez de a elas se sub­
meterem. De todas as nossas faculdades, as sensitivas são
as primeiras a despertar, sempre prontas a entrar em exer­
cício, a tomar a dianteira sobre as faculdades espirituais.
Se não soubermos, portanto, vencer as primeiras, nunca con­
seguiremos dominar as segundas. Não poderemos impor um
freio à nossa imaginação, se não soubermos impô-lo aos
nossos olhos; não poderemos vencer nossa vontade, se não
soubermos dirigir nossa língua.
E' sobre esse terreno que o soldado de Cristo deve tra­
var a luta inicial, luta obscura e inglória, porém necessária
e fecunda, luta em que triunfa, não do próximo, mas de
"Si mesmo. Uma mãe realmente cristã, em primeiro lugar, de­
veria ensinar aos filhos a dominar seus sentidos, pois a cri­
ança, antes de se tornar orgulhosa, mentirosa, ou pregui­
çosa, é ávida de ver, de ouvir, de falar, de saborear; ávida,
-em uma palavra, de gozar de todos os prazeres sensitivos,
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e se mostrará irascível quando for tolhida em seu desejo.
Habituada, porém, a reprimir suas inclinações, será mais for­
te para dominar as outras paixões e, na luta contra estas,
suas vitórias serão mais complexas e mais duradoras.
Oh! que paz e que tranquilidade frui aquele que, por
uma longa constância na luta, chega a dominar quase com­
pletamente os sentidos! Assim, soube subjugá-los essa ad­
mirável Margarida Maria, quando dizia: "Não quero outro
prazer senão o de me ver mergulhada nas dores de um pu­
ro amor" (1).
Os prazeres dos sentidos não contavam mais para ela.
Antes de chegar a esse ponto, precisou conquistar muitas
vitórias, mas, graças a essas vitórias repetidas, tornou-se
inteiramente submissa aq domínio da graça e gozou então
da paz verdadeira.
Moderar os sentidos não é coisa fácil; sàmente quem
tal empreendeu pelo amor de Deus, chegará a vencê-los.
Muitos conseguem obter um certo domínio sobre si mes­
mos porque compreendem os excessos a que os poderiam
arrastar os seus apetites, se fossem sempre satisfeitos. Mas,
se não obedecem a razões superiores, se impõem aos sen­
tidos esse constrangimento, quer para evitar consequências
lamentáveis, quer para serem reputados homens probos, já
receberam sua recompensa; Deus, para quem não trabalha­
ram, não lhes deve nenhum salário. Visto terem combatido
com suas próprias forças, sua vitória será incompleta, e ine­
vitáveis derrotas virão, com frequência, recordar-lhes a
fraqueza.
Com efeito, é só Deus que nos pode fazer adquirir es­
se domínio sobre os sentidos que, permitindo que se exer­
çam dentro dos devidos limites, torna-os inofensivos, pois
é mister dirigi-los e não destruí-los, é mister utilizá-los ou
adormecê-los, conforme for necessário.
l) O reino do _aagrado Coração, tomo I, pág. 22:5.

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li. O sentido visual.
29. De todos os sentidos, a vista é o mais rápido, o
que escapa mais fàcilmente à censura da razão, exigindo
portanto uma vigilância mais atenta. Deus nos deu o senti­
do da vista, primeiro, para contemplar-lhe as obras, e, se­
gundo, para mil empregos necessáriosj não há função útil,
nem dever importante, que possamos desempenhar sem ele.
Quem é responsável por outros, deve usá-lo para velar so­
bre seus inferiores. E' preciso, portanto, moderá-lo e não
destruí-lo.
De quantos olhares inúteis nos podemos privar; a quan­
tos espetáculos-curiosos podemos renunciar; quantos objetos
· fúteis podemos deixar de considerar! Ao lado destes, a vis­
ta encontra, não raras vezes, objetos perniciosos. Quem não
sabe desviar o olhar de espetáculos frívolos, está muito ex­
posto a não se privar cJe olhares indiscretos e ilícitos. Vir­
tudes que pareciam inabaláveis, falharam, fracassaram por
esse meio. David servira fielmente ao Senhor em ocasiões
difíceis, dera provas de confiança, de coragem, de piedade,
de zelo, e eis que um olhar que não soube reprimir exci­
tou-lhe na alma paixões ardentes que lhe custaram danos
pavorosos.
Quão mais felizes, quão mais garantidos estão aqueles
que, como o santo patriarca Joh, fizeram um pacto com
seus olhos e não lhes permitem satisfazer a todos os ca­
prichos! A paz de que gozam transparece, reflete-se no ex­
terior. E' a modéstia. Não é virtude sem importância esta
da qual nosso Senhor nos deu tão cabal exemplo: "Suplico­
vos pela modéstia do Cristo", dizia São Paulo aos cristãos
de Corinto (2 Cr 10, 1 ).
30. Assim como muitos não dão a devida importãncia
à paz interior, assim também outros não compreendem o
valor dessa paz exterior, dessa virtude que modera e dirige
os sentidos, principalmente o da vista, como a paz interior
domina e dirige as potências da alma. Sem a paz, o espí­
rito se entrega a mil divagações, e a vontade a toda sorte de
desejos frívolos: a imaginação cria contim�mente e persegue

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ilusões e fantasias. Sem a modéstia, os sentidos abrem-se
de todos os lados e pelas aberturas entram os inimigos da
alma; quem não for modesto, nunca será senhor de si; os
minimos objetos o preocuparão e lhe excitarão a concupis­
cência; os menores acontecimentos o dissiparão; as tentações
lhe penetrarão na alma livremenlej querera tudo ver, sa­
ber, provar, exceto aquilo que é bom e salutar. Sem a guarda
dos sentidos, os cuidados, mais assíduos e carinhosos, dis­
pensados à alma, serão inúteis: como um vaso fendido dei­
xa escapar os mais preciosos líquidos, assim tamhém es­
sa alma toda difundida pelos sentidos perderá rãpidamentc
as boas impressões recebidas.
A modéstia C o baluarte que nos protege a débil virtu­
de e a põe ao abrigo das incursões do inimigo; é a muralha
que defende nossa riqueza; é também o adorno das almas
fiCis, cujos encantos realça, tornando-as mais belas e atraen­
tes aos olhos do Esposo divino. O mundo, todavia, não aprecia
as almas modestas; sabe que nada tem a esperar delas; sua
atitude recolhida repele os espíritos mundanos, que instin­
tivamente delas se afastam, deixando-as servir em paz ao
divino Mestre.
E' utillssimo, pois, adquirir essa modéstia cristã, e nun­
ca será demasiado o ardor e11lpregado em sua conquista.
Custa mortificar os sentidos, custa conter o sentido da vista,
sempre tão errante; mas, de fato, reprimir a liberdade do
olhar é privar-se de uma satisfação pequena e passagei­
ra, para alcançar outra muito maior e eterna. No céu, go­
:zaremos de Deus com todas as potências de nossa alma,
atingi-lo-emos em si mesmo, pelas nossas faculdades es­
pirituais, inteligência e vontade; quanto às faculdades sen­
sitivas, de que nos será dado fruir depois da ressurreição
geral, serão mergulhadas no deslumbramento por espetá­
culos maravilhosos, melodias de uma suavidade inefivel e
perfumes deliciosos. Quem, pelo amor de Deus, se tiver
privado na terra da satisfação dos sentidos, dos prazeres
da vista, go:zará, em maior abundância, de todos os bens
celestes. Sua inteligência, mormente, penetrará, mais a fun-

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do, as infinitas grandezas de Deus; seu coração se delei­
terá mais suavemente no amor divino; luzes mais cinti­
lantes lhe iluminarão o espírito, delícias mais inebrientes lhe
inundarão a alma. Tais pessoas renunciariam a prazeres
fllteis e, em troca, Deus mesmo a elas se comunicará, Deus,
o alimento dos eleitos, o pão eterno que terão ganho com
o suor de seu rosto, ele as alimentará, as saciará, sem ja-
mais as enfastiar.

DL O sentido auditivo.
31. O ouvido é um sentido sutil e perigoso, mais peri­
goso talvez que a própria vista. Diante de um espetáculo in­
conveniente, fecham-se os olhos; os ouvidos, ao contrário,
não se fecham, e tudo ouvem. Há um meio de evitar os da­
nos que podem advir do sentido auditivo: é fugir aos coló­
quios perigosos, interromper as conversações nocivas ou pe­
lo menos desviar-lhes hàbilmente o curso.
Quem não deverá bater no peito e exclamar: mais de
11ma vez prestei ouvidos a certas falas, a certas palavras
que introduziram em minha alma sentimentos lamentáveis,
e despertaram tristes e deploráveis dissipações, vaidade, des­
contentamento, murmuração, azedume e antipatia? E estes
são os menores males causados pelo sentido auditivo, os
erros sobre princípios da maior importância, a incredulidade
aos ensinamentos da fé, urna curiosidade inconveniente, pen­
samentos e desejos inconfessáveis não são consequências,
por vezes, de conversações perversas? Quantas almas se
perderam por terem escutado o que nunca deveriam ter
ouvido! Qual o começo da perdição de quase todos aq1:1eles
que levam uma vida irregular? Por onde lhes penetrou o vi­
cio na alina? Quase sempre por conversas licenciosas, im­
prudentemente ouvidas.
Velar sobre os ouvidos é, pois, urna necessidade abso­
uta, já que estes são os canais de que se utilium as pes­
:oas sem virtude para derramar o mal em nossas almas.
A.ais. Acontece que pessoas hem intencionadas nos preju­
iquem, que palavras muito inocentes nos sejam funestas.

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E.' que, muitas vezes, ouvimos o que queremos ouvir, ou
pelo menos julgamos ouvir o que não foi dito; ouvimos
antes os nossos próprios pensamentos que os da pessoa que
fala, adaptamos às nossas idéias as palavras ouvidas; en­
feitamos com cores da nossa imaginação as narrativas que
são feitas; interpretamos, segundo o nosso modo de ver,
frases cujo sentido é inteiramente diverso. Não acontece
frequentemente que quem escuta encontra nos discursos
alheios argumentos em favor de suas opiniões errôneas, exorta­
ções às suas fraquezas, desculpas às suas faltas? Acrescen­
tam, inconscientemente, pormenores que dão aos fatos um
caráter inteiramente outro, ou então, omitem circunstân­
cias que lhes são desfavoráveis. As mesmas palavras, ou­
vidas por pessoas de sentimentos opostos, revestem um as­
pecto diferente; algumas, nelas encontram uma aprovação
para si e seus amigos, e condenação para aqueles que não
estimam, enquanto outros tiram conclusões contrárias. Ou,
então, se tais palavras desagradam, se não são suscetíveis de
uma interpretação favorável, são julgadas com severidade,
criticadas, contestadas; alimentam então as antipatias, agu­
çam os ressentimentos. Em ambos os casos, recordamos as.
palavras, seja para iludir-nos, seja para irritar-nos ainda
mais e repetimo-las, pesamo-las, aprofundamo-las, exage­
rando-lhes a importância e assim alimentamos nossas paixões,
falseamos nosso juízo, tornamos inevitável a dissipação e
impossível o recolhimento. Então, quantos momentos per­
didos, quantas orações, mesmo, empregadas em relembrar
as. palavras ouvidas, cm tirar conclusões, em imaginar ou­
·tras conversações, em lamentar não haver respondido desta
ou daquela maneira, em inventar belas respostas!
A boca fala da profundeza do coração e, então, as pa­
lavras imprudentes, as apreciações injustas, os conselhos
funestos, as aprovações culpáveis, são o fruto dessa imprudên­
cia do ouvido mal governado.
Esses males não são simultâneos; mas um ou outro
caberá, inevitàvelmente, a toda pessoa ansiosa por tudo ou­
vir. Quanto ill)porta, pois, à alma reprimir esta tendência,

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governar os ouvidos, como os olhos, saber privar-se de
novidades, fugir às conversações in(Jteis, manter-se na dis­
crição, no recolhimento e na paz!
Se formos obrigados a ouvir, não prestemos senão uma
atenção comedida; as almas verdadeiramente fiéis prestam­
se aos deveres da vida social, e a tudo quanto não é o
próprio Deus, mas só a ele se dão inteiramente. Os cristãos
;mperfeitos, ao contrário, engolfam-se até submergir nas
conversações em que tomam parte, assim como se deixam
cativar pelos objetos que lhes atraem o olhar; sua alma es­
tando entregue a tais divagações, os sentidos dominam por
completo suas potências interiores.
Não é, pois, senão por uma reação enérgica e por ge­
nerosos sacrifícios que chegaremos a governar o sentido au­
llitivo. Sõmente após lutas penosas, após nos termos pri­
vado repetidas vezes do prazer das conversações, após ha­
vermos mortificado generosamente nossa curiosidade, re­
nunciando a saber noticias fúteis, após havermos amado e
praticado a solidão, poderemos, sem perigo de dissipação,
enfrentar as conversas necessárias, e cumprir, conforme com­
pete aos verdadeiros filhos de Deus, os deveres de sociedade.

JY. A lingua órgio da palavra.


1
32. Quem ouve, responde; quem quer tudo ouvir, em
geral, quer também tudo dizer; o abuso do sentido do ou­
vido não se separa, portanto, do abuso da palavra e ambos
acarretam os mesmos males.
A necessidade de falar manifesta-se desde muito cedo;
a criança, possuindo tão poucas idéias, já procura expri­
mi-las: se nada se opuser a essa tendência, ela se desenvol­
verá e poderá degenerar numa grande tentação. Falamos
sem motivo, por leviandade, Unicamente para dizer o qu�
nos vem à mente, sem interesse as mais das vezes para os
ouvintes. Falamos por vaidade, para provocar elogios ou
suscitar admiração daqueles que nos ouvem. Falamos por
malícia, para aliviar os sentimentos de antipatia, de inveja,
e dar livre curso à vontade de difamar, de rebaixar o

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próximo, de criticar, de murmurar. Embora não sejam mo­
tivos indignos os que nos levam a empreender a conversação,
embora a prosa fôra inocente de início, tais inconvenien­
tes se insinuam com facilidade, sem que os possamos per­
ceber. ln multiloquio non deerif peccatum: "onde as palavras
abundam, não falta o pecado". A humildade é ferida; apro­
veitamo-nos de uma ocasião para nos fazer valer, atribuir..
nos vantagens insignificantes, ou fazermos notar nossa ha­
bilidade, nossa prudência, nossas virtudes, nosso talento. A
caridade é ofendida; dizemos aquilo que deveríamos calar;
narramos aquilo de que não temos certeza; transmitimos uma
impressão como se fosse uma realidade; julgamos, baseados
em dados falsos ou incertos, ou sem levar em conta as cir­
cunstAncias, sem conhecer as intensões; aumentamos os fa­
tos, exageramos pormenores sem importância, generaliza­
mos fatos isolados; numa falta de fragilidade discernimos
um defeito habitual.
Será, pensamos nós, que o Senhor, atacado em seus mem­
bros, ferido em suas afeições, pois deu a vida por esses
que estão sendo difamados e alimenta-os com sua carne, vi­
ve neles, quer unir-se-lhes por toda a eternidade, será que
possa ver com prazer esse falador, que se deixa impressionar
pelo seu espirita, por suas palavras mordazes, que veja com
satisfação usurpar o direito, que só a ele pertence, de julgar
os homens? Não, as palavras contra a caridade afastam as
graças, privam as almas das bênçãos divinas, e muitas pes­
soas, que se queixam de não mais receber as consolações
da piedade, devem-no à imoderação da lingua.
As paixões se irritam com essas conversações culpá­
veis; animamo-nos, excitamo-nos ao falar; o ressentimento
motivado por uma injustiça, ou aquilo que' assim julgamos,
aumenta à medida que a ela nos referimos; a aversão, que
experimentamos, cresce quando relembramos as faltas do
próximo, ou apontamos os seus defeitos, e essa aversão se
comunica aos nossos ouvintes. O recolhimento torna-se en­
tão impossivel, pois as idéias, revolvidas pelas palavras, ocu­
pam o espírito e pouco lugar deixam aos pensamentos pie-

Otllmlaho-4 49

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dosos, à lembrança de Deus; os sentimentos assim despertados
invadem o coração, comprimem e sufocam o amor divino ou,
pelo menos, não permitem senão raras elevações a Deus.
Além do mais, o que foi dito será talvez repetido e de uma
palavra imprudente, levada a pessoa interessada, nascem fre­
quentes descontentamentos, rupturas, discórdias, ódios, pa­
lavras lascivas, ímpias, blasfemas.
33. "Uma pequena chama, diz São Tiago, pode cau­
sar um incêndio capaz de devorar uma grande floresta; a
lingua C esse "fogo destruidor aceso pelo inferno", que po­
de "consumir todo o curso de nossa vida", "é um mundo
de iniquidades", que, colocado junto a outros membros, "con­
tamina-os todos", e pode levar o corpo inteiro à perdição.
Entretanto, se a língua pode causar danos terríveis, po­
de também ser o principio de grandes bens; "por ela bendize­
mos a Deus, nosso Pai, e também por ela falamos mal dos
homens, feitos à imagem de Deus"; "benção e maldição",
a oração, o louvor divino, assim como a maledicência, a
blasfêmia e a impiedade, saem do mesmo órgão. Feliz de
quem a sabe reger; quem modera e regula suas conversa­
ções e "não peca por palavras C um varão perfeito"; di­
rige a sua natureza inteira com suas concupiscências; é se­
nhor de suas inclinações, governa todo o seu ser pela lín­
gua, qual cavaleiro, que, pelo freio, dirige o animal; qual
piloto que, com o leme, dirige todo o navio".
"Mas o homem - é sempre São Tiago quem fala -
que sabe domar as feras, não pode", por suas próprias forças,
"vencer a língua", carece do auxílio de Deus, e Deus não dá
esse auxilio senão aos homens sinceros e generosos que prati­
cam o silêncio, se abstêm de palavras inúteis, procuram a
solidão, e se privam de conversar com as criaturas para me­
lhor conversar com Deus.
Quando o Senhor, para salvar seu povo, elegeu a Moi­
sés, dirigiu de tal sorte os acontecimentos que esse Ultimo
precisou deixar a corte agitada do rei do Egito, retirar-se
para uma terra pouco habitada, e aí levar a vida tranqui­
la e solitária dos pastores. Era grande a tribulação entre
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os· filhos de Israel; parece que havia urgência em socorrê­
los; entretanto, o Senhor deixou Moisés durante quarenta
anos nesse pais meio selvagem; e só o julgou apto a cum­
prir com a grande missão que lhe queria confiar depois des­
se longo retiro.
Foi no deserto que, desde sua infância, se refugiou São
João Batista pata aí crescer no amor divino e preparar­
se a exercer seu ofício de precursor.
O próprio Jesus, nosso divino modelo, depois de trin­
ta anos de uma vida escondida e frequentemente silenciosa,
vai passar quarenta dias no deserto antes de iniciar sua pre­
gação evangélica.
Desde então, todas as almas ávidas de perfeição de­
sejaram o recolhimento e a solidão e os santos fundadores
de ordens religiosas, sem exceção alguma, impuseram o si­
lêncio como uma das regras fundamentais, um dos grandes
meios de formação à vida interior, e reconhecem-se as al­
mas fervorosas na maneira pela qual observam essa gran­
de lei do silêncio.
Mesmo no meio do mundo, quem aspira a uma vida
perfeita deve recear o turbilhão dos negócios, evitar, mes­
mo no exercicio do zelo, o excesso das obras exteriores e
impor-se horas de recolhimento, em que, só, com Deus só,
se entregue a expansões afetivas e go�e as doçuras de um
colóquio todo celeste.

V. A llngua, órgão do gosto,

34. A vista e o ouvido são, dos nossos sentidos, os


menos materiais e os mais nobres: os olhares atingem todos
os objetos sem se· macular; os sons que impressionam os
ouvidos não os mancham. Se, apesar disso, estes dois sen­
tidos precisam ser governados e reprimidos, quanto mais
não precisa ser dirigido e refreado o sentido do gosto, tão
material e tão grosseiro? Incorporarmo-nos vis alimentos, fa­
zer penetrar uma carne morta, o cadãver de um animal, em
no"ssa própria carne, é uma necessidade humilhante, da qual
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uma alma nobre não se desobriga senão com certo pudor.
Também nos envergonha n"ienos o desejo de ver, a curio­
sidade de ouvir, do que a gulodice. Procurarmos aberta­
mente. distrair os olhos com espetáculos variados, saciar os
ouvidos com novidades, mas nos escondemos para satisfa­
zer nossa voracidade, recorremos a estratagemas ou então
procuramos desculpas. O homem tem cdnsciência de re­
baixar-se quando excede os limites marcados pela razão,
quando se incorpora alimentos ou absorve bebidas, não mais
por necessidade, mas para satisfazer uma paixão. Sente o
quanto se avilta em deixar aos instintos sensuais o pre­
domínio sobre as faculdades.superiores, pois não se coloca
ele ao nível dos animais, desprezando a razão para seguir
as tendências grosseiras?
Assim o efeito da gulodice é diminuir a vivacidade da
inteligência e tornar a alma menos apta para receber as lu­
zes da graça. Esaú, homem sensual, que vendeu seu direito
à benção paterna por um prato de lentilhas, não sabia ava­
liar as vantagens espirituais e, depois de ceder mais uma
vez à gula, parece tê-las apreciado ainda menos: "Comeu
e bebeu, diz a Escritura, e pouco se incomodou de ter ven­
dido o direito de primogenitura". Não. percebiam tampouco
a vantagem de terem sido arrancados à escravidão e ao pe­
rigo da idolatria, como seus opressores, esses hebreus que,
no deserto, sentiam falta das cebolas do Egito e murmura­
vam por tê-las perdido. Os filhos de Heli também não com­
preendiam os privilégios e os deveres �e seu cargo, pois vio­
lavam as prescrições do culto e escandalizavam o povo,
exigindo que lhes fosse entregue a carne das vítimas sem
que passasse pelo fogo, a fim de poderem prepará-la a seu
gosto. Pouco lhes importava de, por esse meio, desviar o
povo dos sacrifícios prescritos pela lei,. enquanto lhes fos­
se satisfeita a sensualidade. Tal conduta atraiu a vingança
do céu, e eles mesmos foram as primeiras vítimas.
Será digno de um ser racional preocupar-se com a
qualidade dos alimentos, saboreá-los antecipadamente, en­
tregar-se com delícias a prazer tão grosseiro ou lamentar-

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se se as iguarias não satisfazerem às exigências de um gos­
to requintado? Quanto mais cedemos a essa vil tendência,
menos nos interessamos pelas coisas espirituais, menos fa­
cilidade temos para recebê-las e gosto para procurá-las:
animalis homo non percipit ea quae sunt Spiritus Dei:
"o homem animal, diz São Paulo, não percebe as coisas que
são do Espírito de Deus" (1 Cr 2, 14). "Velai sobre vós,
recomendava nosso Senhor a seus discípulos, e cuidai a
fün de que vossos corações não se façam pesados com as
demasias do comer e do beber" (Lc 21, 34).
35. Quem se torna escravo desse sentido material do
gosto e deixa a carne dominar o espírito, expõe-se muito a
cair sob um jugo ainda mais humilhante. "Eis qual foi
a iniquidade de Sodoma, tua irmã, diz o profeta Ezequiel
a Jerusalém: o orgulho, a vida lauta, e a extrema pros­
peridade" (Ez 26, 49). Segundo São Paulo, o abuso do
vinho acarreta a luxúria (Ef 5, 18). O autor dos Provérbios
já o havia observado: Luxuriosa res vinum (Pv 20, 1).
Ao contrário, quem sabe governar esse sentido gros­
seiro, quem sabe reduzi-lo e vencê-lo pela mortificação, a
abstinência e o jejum, ,eleva-se acima das vis preocupações
do apetite inferior e se torna apto a receber as luzes da
sabedoria, enquanto atrai sobre si as graças do céu. Bona
est oratio cum jejunio: "a oração acompanhada do jejum
é boa", é eficaz, diz Rafael a Tobias. Moisés jejuou quarenta
dias e quarenta noites antes de receber a Lei. A sagrada
Escritura nos diz que os israelitas jejuavam em circunstân­
cias graves, animados pelos profetas, cujo exemplo seguiam,
a fim de obterem por esse meio a proteção divina. Nosso
Senhor consagrou também por seu exemplo a utilidade do
jejum. Todos os santos da nova Lei imitaram nesse ponto
o Modelo divino e praticaram, por vezes com rigor extremo,
a abstinência e o jejum.
Ai de nós! em nossos dias o jejum se tornou raro, tão
raro, quanto comum o requinte e o esmero na alimentação,
mesmo entre os bons cristãos. E' indubitável que esta seja
uma das razões que levam inúmeras almas, boas e piedo-
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sas, mas que não souberam adquirir o domínio absoluto so­
bre os sentidos, a sentirem muitas vezes pouca energia até
parecerem incapazes de virtudes viris.
Os hábitos modernos tão propensos ao requinte, à fa­
cilidade, cada vez maior, em todas as classes da sociedade
de conceder ao paladar tudo quanto lhe apetece, favorece­
ram semelhante abuso. Sobram, portanto, ainda muitas opor­
tunidades de privações: a pobreza, a enfermidade ou pe­
lo menos a inapetência, os caprichos de um estômago fra­
co, impedem, com frequência, o comer alimentos apetitosos.
E quantas pessoas nada podem escolher, devendo conten­
tar-se com os pratos que lhes são servidos! E quantas
não sabem dar, a tais privações, um valor divino; que,
quando não se irritam, ludo aceitam estóicamcnte, como s�n­
do inevitável, enquanto se deveriam resignar de boa von­
tade por amor a Deus, felizes de lhe poder oferecer tão
pequeno sacrifício.

VI. O senHdo do tato.


36. Não é sómente a falta de mortificação do gosto,
mas o excesso de cuidado com o corpo, que em geral im­
pede o progresso de muitas almas cristãs.
"Espírito e carne, diz São Paulo, combatem um con­
lra outro. Os desejos da carne são contrários aos desejos
do espírito e os desejos do espírito aos da carne" (OI 5, 17).
Estes aproximam o homem do animal; aqueles o elevam ao
nível dos anjos. O corpo e a alma tendo, pois, tendências
verdadeiramente opostas, favorecer umas é enfraquecer as
outras. Assim, vão se descurando cada vez mais dos bens
espirituais aqueles que lisonjeiam a carne, que seguem a
ciência da carne, isto é: que fazem belas reflexões para
chegar a esta conclusão: tratemos bem o nosso corpo e em­
preguemos meios capazes de lhe proporcionar os gozos que
cobiça. E' ainda o que diz São Paulo: "As pessoas sen­
suais gostam das coisas da carne, as espirituais apreciam
as coisas do espírito. A prudência da carne é morte; a pru­
dência do espírito é vida e paz. Com efeito, a sabedoria

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da carne é inimiga de Deus ... Os que vivem segundo a
carne não podem agradar a Deus" (Rm 8, 5).
Não bastarão estas palavras do apóstolo, tão justas
e tão fortes, para demonstrar quão -necessário é mortificar
a carne e quão pernicioso é o erro daqueles que não re­
conhecem a importância dessa mortificação? "Grande é a
ilusão, diz o Padre Surin, desses espirituais delicados que,
por covardia, por amor de si mesmos, querem persuadir­
se de que a mortificação corporal é de menor importância
e que só a interior é tudo. Baseados neste principio, não
impomos ao corpo sacrificio algum, não lhe recusamos ne­
nhuma satisfação, tratamo-lo bem; passeamos, procuramos
diversões e a alma, num simples olhar a Deus, se julga
fixada na vida mística. Esta doutrina foi desconhecida dos
santos ... Existe hoje uma espiritualidade suave e cômoda
à natureza, que consta apenas de idéias belas e sentimen­
tos sublimes, de palavras estudadas e de um recolhimen­
to afetado" (Dia!. tomo 1, 1. IV, cap. Ili).
"Tenho medo, diz o Padre Faher, quando ouço falar
muito em mortificação interior; isto me parece a confissão
implícita de que a alma leva uma vida confortável'' (Progres­
so na Vida Espiritual, cap. 11).
São Paulo falava de um modo inteiramente diverso:
"Não somos devedores à carne, para que vivamos segundo
a carne. Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis,
mas, se pelo espírito mortificardes as obras ela carne, vi­
vereis" (Rm 8, 12). "Caríssimos irmãos, rogo-vos como es­
trangeiros e viajantes, dizia São Pedro, renuncieis aos de­
sejos carnais, que combatem contra o espirita" (1 Pd 2,11).
Esses grandes santos praticavam aquilo que recomen­
davam. "Castigo o meu corpo, dizia São Paulo, e o redu­
zo à escravidão" ( 1 Cr 9, 27). "Trazendo sempre e em to­
da parte em nosso corpo a mortificação de Jesus, a fim
de que também em nosso corpo se manifeste a vida de Jesus.
Embora vivos, estamos a cada instante entregues à morte
por amor de Jesus, para que tambêm a vida ele Jesus se
manifeste cm nossa carne mortal" (2 Cr 4, 10).

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37. Nunca lemos na Vida dos Santos a narrativa de
suas mortificações, sem nos admirar. E como não havia de
ser assim? Poderiam esses grandes corações apaixonados
pelo amor divino tratar com delicadeza uma natureza tão
rebelde? Teriam eles atingido a esse grau de amor, que o.r
tornou ávidos de sofrimento, se não tivessem sustentado
um generoso c_ombate contra a carne ao iniciarem sua vida
espiritual?
De fato, urge empreender tal luta desde o primeiro
instante, logo que começamos, sêriamente, a cuidar do ser­
viço de Deus; mesmo quem não visa um grau sublime de
virtude, e quer ser apenas um sincero e perfeito cristão, de­
ve lutar contra o corpo. Quando recusamos a este os praze­
res permitidos, diz Santo Afonso de Ligório, ele não procura­
rá os proibidos, mas, se lhe concedermos todas as satis­
fações lícitas, cairemos, breve, nas ilícitas" (Verdadeira Es­
posa, cap. VIII). O esmero no traio do corpo e a sólida vir­
tude nunca se encontram juntos; não podemos procurar o
hem estar, as comodidades, e, ao mesmo tempo, dedicar­
nos inteiramente ao serviço de Deus e do próximo; não po­
demos, ao mesmo tempo, lisonjear-nos e imolar-nos. "Os
que pertencem a Cristo, diz São Paulo, isto é, todos os ver­
dadeiros cristãos, crucificaram sua carne com os vícios e
concupiscências" ( Gál 5, 24).
A alma cristã tem três inimigos a combater: a carne,
o mundo e o demônio. Enquanto estes dois estão sós, são
fáceis de vencer porque os ataques são no externo; mas se
o inimigo interior, que é a carne, estando ainda cheio de
,•igor, unir-se aos outros dois, o combate será muito rude,
e a vitória plena quase impossível. E' mister, pois, enfra­
quecei este inimigo doméstico; t�atá-lo com delicadeza seria
fortalecê-lo; manter uma atitude defensiva, alegar que bas­
ta não ceder às suas exigências, seria ilusão. Quem adota
semelhante norma não tarda em lhe fazer concessões la­
mentáveis, em sofrer numerosas derrotas; é preciso, portanto,
atacá-lo, persegui-lo, maltratá-lo, para vencê-lo e subjugá-lo.
E o combate é de todo momento. As exigências da

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carne se renovam constantemente e crescem sempre; se• a
alma lhe resistir galhardamente, a tentação, um instante
depois, volta à carga; se lhe ceder torna-se mais arrogan­
te; quanto mais lhe for dado, mais reclama; se lhe ceder
de novo, os baixos instintos da natureza acabarão por pre­
dominar e os apetites sensuais, tornando-se tirânicos, fa­
zem da vida humana uma vida toda animal.
Esta continuidade da luta a torna particularmente pe­
nosa. D1tSejaríamos transigir com o inimigo; procuramos e
infelizmente encontramos mil pretextos para abster-nos de
tratá-lo com o devido rigor. Agrada-nos poder alegar ra­
zões fúteis e ainda mais quando essas razões conseguem
aprovação, quando encontramos conselheiros prudentes, -
da prudência da carne, - que, demasiado tolerantes pa­
ra consigo mesmos, não querem permitir aos outros aquilo
que não praticam. Consideram a mortificação corporal su­
pérflua, a ser substituída com vantagem pelas lidas dos
deveres de estado e pelas provações da vida; como se fosse
possível cumprir perfeitamente com esses deveres sem su­
jeitar a carne, como se pudesse ser verdadeiramente paciente
quem -não for mortificado!
38. Pela lei do jejum, que a Igreja impõe a todos, ela
mostra o quão necessária é essa mortificação ativa da na­
tureza. E é tanto mais necessária quanto mais alta for a
perfeição a que nos chama o Senhor. Será, portanto, mais
generosa da parte daqueles, cuja vocação de esposas de Je­
sus, dé ministros do Cristo, obriga a uma virtude mais ele­
vada. Impõe-se particularmente àqueles que, amando pro­
fundamente a Igreja, a ela se querem dedicar. Devem se­
guir os exemplos de Jesus, unir seus sofrimentos e suas ex­
piações aos sofrimentos e às expiações de Jesus. Seria um
grande erro pensar em continuar a obra de Jesus, querer
associar-se à sua missão de salvar as almas e não querer
empregar os meios que Jesus empregou. Somos os membros
do Cristo; uma união misteriosa existe entre ele e nós, co­
mo entre o tronco e os ramos, entre ·a cabeça e os membros.
E Jesus, que amou a Igreja ao ponto de -entregar-se à
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morte, não podendo mais sofrer por ela em sua própria
carne, pede-nos a nossa para em nós continuar sua obra.
E' o que nos ensina São Paulo, é o que fazia esse grande
apóstolo: "Acrescento aos sofrimentos do Cristo o comple­
mento necessário, sofrendo em minha carne pelo corpo do
Cristo que é a Igreja". Pelos seus sofrimentos, Jesus apla­
cou a justiça divina; derramou bênçãos sobre os homens,
cm vez dos castigos merecidos. Aqueles que se impõem o
sofrimento com Jesus a fim de completar-lhe a obra, obtêm
os mesmos resultados. Pelas suas orações, já eram poderosos,
mas como às orações acrescentaram o sacrifício, Deus não
lhes sabe resistir; alcançam tudo quanto desejam. "E' in­
crível, diz o Padre Surin, o quanto Deus se apraz cm ver
a carne humilhada e submetida ao espírito. A coragem que
a alma assim revela, arranca-lhe das mãos, como por vioiên­
cia, aquilo que dele ela quer obter". (Dia!. espir. tomo 1, 1
cap. Ili).
O que acima de tudo obtêm esses cristãos generosos,
o que solicitam com maior ardor, é um acréscimo de amor:
o amor leva à penitência, e a penitência dilata o amor. "Uma
alma ferida pelo amor de Jesus, dizia o Padre Baltazar Al­
varez, tem necessidade, para sentir-se satisfeita, de que o
seu corpo participe dessa ditosa ferida; de outro modo,
tem a impressão de não o amar bastante, nem o imitar su­
ficientemente". Tem mil vezes razão de pensar assim, e
certo C que não estão abrasados pelo fogo da caridade os
que não querem impor-se alguma mortificação corporal.
Aqueles que a praticam com reta intenção, agem, portanto,
por amor, e um amor tanto maior, quanto mais custa â
natureza. Cada nova tortura que se infligem, clama: meu
Deus, e como C o exercício do amor que o faz crescer,
esse amor toma proporções admiráveis nos corações ge-
nerosos (1).
1) As pessoas quo desaconselham, e, muitas vezes, proibem
sem motlvoa justoa as práticas de penitência corporal, não te•
1·lam coragem <le apagar a lâmpada que arde diante do Santísslm9
Sacramento. Mesmo Independentemente do preceito litúrgico, COD•
siderariam, com razão, tal ato como reprovã.vel. Mas quem propor•

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No cCu, a alma mortificada amarâ mais a Deus, e a
felicidade eterna não sendo senão a satisfação do amor, gran­
de serâ a sua ventura! Quantas provas de afeto, quantas
carícias suaves e puras não receberá de seu Deus, pelo
amor do qual se martirizou no mundo; quantó o amará,
quanto será P'?r ele amada! São Pedro de Alcântara, um dos
santos mais austeros que jamais existiu, apareceu depois
ele sua morte a santa Teresa cercado de uma glória reful­
gente: "O' bem-aventuradas penitências, disse ele, que me
valeram tamanha glória!"
ciona maior glória a Deus, a lâmpada que se consome inconsciente•
mente em sua honra, ou o cristão generoso, cujo. aof1iment0111
,·oluntárioe formam uma lon1a série de atos de amor e oferecem
ii. justiça div:lna expiações po1· demais neceuárias?

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CAPITULO VI

Da idolatria do povo cristão


Fi/ioll, ,u�/od/le Pos o s/11111./acrls.
/\ltus filhinhos, guard•i-,·os do, idolos (1 Jo
5, 21).

1. COmo as paixões se podem tomar em ídolos,

39. Quem luta generosamente, pondo em Deus toda a


esperança, alcança infalivelmente o triunfo; a luta poderá
prolongar-se, mas acabará por uma vitória. Quem combate
_fracamente, sem entretanto entregar as armas; quem, sem ser
fervoroso, não se descuida da oração; quem faz esforços e
se ergue após as quedas, mas sem tomar a ofensiva, isto é,
sem se aplicar com ardor na prática das virtudes contrá­
rias a seus defeitos, não será nem vitorioso, nem vencido.
Embora não progrida e não se torne mais forte, não cairá,
todavia, em poder do inimigo.
Quem cede sem se incomodar, aquele cuja vida é assina­
lada por capitulações continuas, será finalmente derrotado
e caíra na escravidão; será dominado, tiranizado por suas
más tendências, e, longe de gemer sob o jugo, aceita-o,
ama-o, e se recusa a fazer esforços para dele se libertar.
O homem não deve aceitar senão a soberania de Deus;
quando se curva sob o jugo divino, quando se prostra em
presença do Senhor do mundo, submetendo-lhe a vontade,
prestando-lhe os deveres de culto, ele se dignifica e se en­
grandece; quem, ao contrário, se torna cscrav9 dos sen­
tidos, quando, seduzido pelos encantos ilusórios da criatura,
se prostra diante dela, alienando sua liberdade para deixar

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o vício dominar-lhe o coração como senhor absoluto, ele
se degrada e se avilta vergonhosamente.
Mas, sobretudo, se recusa a Deus o domínio que só a
ele pertence exercer, e presta à criatura homenagens devi­
das Unicamente à majestade divina, renova o erro da ido­
l{ltria que, na antiga Lei, excitava tão fortemente a cólera
do céu, e atraía sobre o povo escolhido tão horríveis calamida­
des. Os outros pecados eram ger�lmente punidos nos pró­
prios culpados, mas, quando os israelitas toleravam a idola­
tria, o povo todo se tornava responsável, e os castigos fe­
riam a nação inteira, que era, então, submetida aos ini­
migos enquanto os povos infiéis se constituíam em instru­
mentos das vinganças celestes.
Os dirigentes do povo de Israel, Moisés, os juízes, os
reis, os profetas precisaram, repetidas vezes, combater a
idolatria e renovar seus esforços para extirpar esse pavoro­
so desmando que reaparecia continuamente, pois grande é
a tendência da misera humanidade a criar ídolos.
A justiça divina parece, em nossos dias, irritada con­
tra o povo cristão. O Senhor permite que os inimigo-, de st'u
nome persigam os crentes. Não terão estes, por algo de se­
melhante, merecido os castigos que os ating.:111:>
Os homens não adoram mais, é verdade, idolos de ma­
deira ou metal; não dobram os- joelhos ante estátuas inanima­
das, haviam de corar de tal loucura; mas será menor a cul­
pa de quem se entrega às paixões? Não foge à soberania
de Deus quem se abandona, sem lutar, ao pecado mortal?
O Senhor não pode reinar no coração que presta homena­
gem e adoração a falsas divindades.
40. Que ninguém se admire se classificarmos de ido­
latria a conduta do cristão que se deixa levar pelas inclina­
ções viciosas, sem opor resistência. O Espirita Santo, pe­
la palavra de São Paulo, não denominou também idolatria
a avareza e o gozo da vida lauta? "Seu deus, disse ele, é
o ventre" (Fp 3, 19). E alhures: "O avaro que é um idó­
latra" (E! 5, 5).

6.1

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Uma lmica paixão não combatida pode tornar-se cm
ídolo e não nos elevemos considerar ao abrigo da idolatria
por não ser ainda completa a nossa sujeição. Quando co­
meçamos a ceder a uma tendência culpável, somos inclina­
dos a iludir-nos; julgamo-nos ainda livres, proclamamos
sinceramente que, tomando tal decisão e mantendo-a apesar
das objeções e dos obstáculos, não fazemos mais que se­
guir a razão e dar prova de energia; na realidade, obede­
cemos a uma paixão inconfessada, e fortalecemo-la, obedecen­
do-lhe. Se cedermos com frequência, virá um dia em que
exercerá abertamente seu domínio; será então difícil re­
sistir-lhe.
Para descobrir o valor de uma alma e saber se ela é
realmente escrava do vicio, é mister verificar o que lhe des­
perta as concupiscências, lhe excita as faculdades e lhe de­
licia o coração. A paixão não combatida estende seu domí­
nio ate ao recôndito da alma; assim os olhares, as conver­
sações, as leituras preferidas, os devaneios habituais, de­
notam-lhe as inclinações e revelam o falso deus que adora.
Quais são os objetos que lhe atraem os pensamentos, e as
recordações que lhe entretêm a memória? Se os objetos que
a alma procura de bom grado forem ilícitos; se, embora
não proibidos em si mesmos, ela os prezar excessivamen­
te, ao ponto ele os desejar a todo custo, ou desprezar as
!eis divinas, para frui-los, essa alma é verdadeiramente
idólatra.
Ficará, então, como que fascinada pelo objeto de sua
adoração. Quando um espetáculo magnífico nos prende o
olhar, quando uma melodia suave nos encanta os ouvidos,
estes sentimentos nos impressionam fortemente e c;timos
em uma espécie de êxtase, que nos faz esquecer todos os
seres, que deixam, por assim dizer, de existir para nós. As­
sim, também a alma que, atraída por um objeto criado, que
lhe parece fascinante, não se obriga a afastá-lo, será seduzi­
da sem demora e perderá a noção de tudo; sua vida en­
tão se concentrará na contemplação do objeto que lhe pren-

62

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de os pensamentos, como se fosse para ela o único ne­
cessário. Tal e o estado da alma idólatra. Sente pela cria­
tura o que experimentam por Deus as almas generosas que
desejaram, procuraram e obtiveram o perfeito amor; al­
mas que, compreendendo a beleza de Deus, se apaixona­
ram pelos seus encantos, pensando nele, lembrando-se de­
le, aspirando a ele. E Deus reina plenamente em seu es­
pirita, em sua memória e em seu coração.
41. E' preciso ainda, para conhecer o valor de uma al­
ma, sondar-lhe as disposições das faculdades superiores,
a inteligência, e sobretudo a vontade. Deus reina sobre um
povo quando as autoridades que o governam· fazem pro­
fissão de lhe seguir as leis. Reina sobre uma alma quando
as faculdades superiores lhe estão submetidas, principal­
mente a vontade, rainha de todas as potências. Que fim
se propõe a vontade, que impulso motiva -suas resoluções?
Visa a alma ao praticar este ou aquele ato a sua salva­
ção, o agrado de Deus? Se tal C a intenção que formula
sinceramente antes de agir, embora perca por algum tem­
po a lembrança de Deus, os atos que pratica lhe serão agra­
dáveis. Entre as recordações que lhe ocupam a memória,
entre as visões que lhe invadem a imaginação, entre os en­
cantos que lhe comovem o coração e os desejos que a so­
licitam, pode haver algo de involuntário, que procura afas­
tar sem conseguir. E' mister descobrir a verdadeira intenção
que motiva os atos, e à qual obedece livremente. Se em ge­
ral a alma obedece aos instintos sensuais, leva uma vida
degradante e bestial; se obedece à razão, conduz-se como
filósofo; se obedece a motivos sobrenaturais, vive da fê.
Não é raro, infelizmente, encontrarem-se, mesmo en­
tre os cristãos, almas que só se propõem a satisfação dos
instintos da concupiscência. A vontade pervertida põe en­
tão ao serviço do ídolo as demais potências ela alma. Em
vez de aplicar os recuras da inteligência em obras úteis,
emprega-as na procura dos gozos; alimenta livremente a
imaginação com idéias nascidas da paixão; entretem a me-
63

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mória com fatos passados, em que se nutriam os maus de­
sejos. Vai, às vezes, até a sacrificar tudo ao idolo: fortuna,
saúde, a própria honra; mergulha na dor pais dignos de to­
do respeito e de todo afeto; despreza amigos os mais dedi­
cados; não leva mais cm conta nem Deus, nem os homem1.
42. Não vemos, em torno de nós, exemplos ele seme­
lhante loucura? Famílias inteiras desprezam as leis divinas.
Em muitos lares Deus é destronado, enquanto vê suas cria­
turas prestarem homenagem ou ao "deus dinheiro", ou ao
"deus orgulho", ou ao "deus volúpia", ou aos três de uma
vez. Todas as preocupações dessas pessoas voltam-se pa­
ra o gozo e a vaidade, e parece que só foram postas no
mundo para si mesmas e para seus ídolos:
Poupará a justiça divina esses insolentes, cuja vida equi­
vale a um desafio ao Criador? Qu; habitat in caelis irridebil
eos et Dominus s11bsannabit eos. Rir-me-ei de vós, diz aos
pecadores esse Deus temível, julgais que vos esqueço por­
que vos deixo mergulhar nos baixos gozos de vossas pai­
xões, mas virá o dia cm que sentireis o peso de minha có­
lera. Clamareis então: Senhor, Senhor, salvai-nos. E poderia
responder-vos: Eu não sou mais vosso Senhor e vosso Deus;
vós me preferistes ídolos vãos; onde estão hoje esses falsos
deuses, objeto de vosso culto profano? Invocai-os e vêde
se vos poderão salvar de vossos males.
A idolatria reinou no mundo durante séculos. Engen­
drou males horríveis. Os costumes bárbaros dessa triste época
foram-lhe, ao mesmo tempo, consequência e castigo. Deus,
porém, não castigava tão severamente o crime de idolatria
nos povos pagãos, como no seu povo escolhido. Sua jus­
tiça exigia mais daqueles a qL1em mais deu. A culpa dos
israelitas, caindo na idolatria, era muito superior à das
outras nações, que não haviam recebido tantas luzes, nem
ouvido com tanta frequência a voz de Deus, chamando-as
a seus deveres. As nações católicas têm a plenitude da ver­
dade; recebem com prodigalidade os recursos para vive­
rem conforme as leis de Deus; quando deles abusam, gran­
de é sua responsabilidade, e terrível o castigo que as aguar-
64

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da. A França, que foi tão abundantemente favorecida pelos
dons do céu, que ouviu tão amiúde os avisos e as exorta­
ções dos amigos de Deus, que viu tantos santos exemplos,
e onde as obras de salvação fÓram tão numerosas, abusou
de tais graças agravando assim a sua culpa, e sacrificando
aos ídolos ( t ) .
São numerosos os ídolos modernos e os principais são
fáceis de distinguir. O que reina hoje, o que domina no co­
ração de muita gente, o que rouba a Deus o lugar que lhe
é devido, é o amor aos prazeres sensuais, é o orgulho.

li, O amor aos prazeres dos sentidot,

43. O amor aos prazeres dos sentidos é uma paixão


degradante que obscurece a inteligência e enfraquece os ca­
racteres. Não se rebaixam ao nivel dos animais aqueles que
se entregam sem freio à sensualidade? Concentram todos
os pensamentos, empregam todas as forças íntimas, em sa­
ciar suas vis paixões; então, a razão desprezada e a in­
teligência, ou adormecida ou voltando sempre os olhos aos
mesmos objétos indignos dela, estando o próprio corpo
abatido pela paixão, o espírito perde a prudência, o juízo,
a retidão; e os sentidos, em vez de obedecerem, ordenam;
os instintos inferiores desenvolvem-se em excesso, sufo­
cam as nobres aspirações do coração; e os afetos verdadei­
ros e puros desaparecem. E' assim que vemos o vício tor­
nar estúpidos os homens de talento e valorosos soldados,
fracos, quando já haviam afrontado rudes combates. Em ou-
u Contam-se ai, mai1 que alhures, familias voluntâriameote
pequenu. Não ê e■ta uma. prova de amor ao bem-eeta.r, levado
atê à idolatria, e a cauaa. dcua Infame peraegulção que ataca em
primeiro bagar a alma. da criança? Semelhante dlnolução não
podo deixar de atrair aobre um povo u maiore1 deagraças. Nio
é o amor Idólatra àll vantagena humanas que, em tanta.a provin•
clu, leva. oa católicoa, com o fim de obter tavore1 governamen­
tais, a. elegerem para o Parlamento inimigos de Deu• e d& Igreja?
E quantos tuncionirios e maglatrados aacrificam •eus deveres de
crlati.o e de julzea aoa lntereues pa1oais. Não ê iato renegai·
a Dew, preterindo-lhe um· ídolo?

O r.1m!nbo-1 65

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tros, outrora afetuosos e respeitosos, produziu a dureza de
coração e a mais negra ingratidão.
Além do mais, o viciado não guarda, em si mesmo, a
corrupção de que se alimenta e que aspira por todos os po­
ros; seu coração que se tornou qual reservatório, em que
se acumulam as impurezas recolhidas pelos sentidos, trans­
borda em torno de si; sua língua distila o lodo envenenado,
que, com demasiada frequência, mancha aqueles que de­
le se aproximam.
Sem dúvida, se a sensualidade não causa sempre esses
pavorosos estragos, nunca deixa, porém, de causar uma
degradação, um enfraquecimento das potências superiores
da alma naquele que domina, e de lançar os germes do mal
em outras almas. O viciado exerce sempre, embora, talvez,
inconscientemente, uma influência perniciosa.

nL O orgulho.
44. Se a paixão da volúpia é a mais aviltante, não é a
mais perigosa, nem a mais difícil de curar. As separações,
e, sobretudo, as decepções, as traições das pessoas em cuja
amizade confiava, podem reconduzir o homem idólatra das
criaturas ao culto do verdadeiro Deus; a enfermidade po­
de obrigar o viciado a reprimir suas inclinações grosseiras;
grandes infortúnios podem desapegar o avaro dos bens da
terra. Por vezes também o exemplo de homens virtuosos
levará o libertino a refletir consigo mesmo; o ébrio, cujos
excessos já lhe comprometeram a saúde, lamentará sua fu­
nesta tendência; uma salutar vergonha apoderar-se-á da­
queles que têm a fraqueza de ceder a todos" esses vícios
e, ao menos de longe em longe, sentirão o desejo de sair
de sua baixeza, mas .o orgulho, essa vã adoração das pró­
prias qualidades, essa idolatria do eu, quem poderá sanar
tão grave enfermidade? O orgulhoso está contente consigo
mesmo, não reconhece seus erros, não sente a necessidade
de mudar de vida.
O orgulhoso encontra em si o seu próprio idolo; e se
prende muito mais a ele do que o avaro ao seu dinheiro,

66

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o sensual, às iguarias, o amante à pessoa amada na liga­
ção pecaminosa. Quem queima incenso a outros ídolos, re­
conhece, por isso mesmo, que lhe falta algum bem, e vai
procurá-lo fora de si; o orgulhoso, ao contrário, não con­
fessa, de maneira alguma, sua pobreza, e nada quer dever
a uma criatura; as penas, as contradições, que muitas ve­
zes desconcertam os outros pecadores e os refreiam em sua
revolta, irritam o soberbo e lhe atiçam o orgulho em vez
de enfraquecê-lo; insurge-se contra a humilhação e tan­
to mais se envaidece quanto mais humilhado for.
45. Que terrível desregramento é o orgulho, quando,
nunca combatido, se desenvolve ao ponto de merecer o no­
me de idolatria! E' realmente idólatra de si mesmo, quem
se constitui a si como centro de tudo, quem se compraz na
contemplação de suas pretensas qualidades, quem julga se­
veramente seus semelhantes, desprezando-os enquanto se
considera superior a todos. Nada pode desiludi-lo; a sua
arrogância, a sua néscia presunção inspiram horror a quem
dele se aproxima, mas não deixa por isso de comprazer-se
em si mesmo. Está de tal forma enamorado de sua pessoa,
menospreza de tal maneira tudo quanto não lhe diz res­
peito, que ao próprio Deus pouco considera. Não sente
necessidade do auxilio divino, tal é a confiança em seu pró­
prio engenho, em seu talento; pretende, aparentémente, viver
sem Deus, aspira a usurpar-lhe o lugar e a dirigir os ne­
gócios deste mundo. Se lhe for observado que os desígnios
de Deus podem ser contrários , aos seus e inutilizar-lhe
os esforços, revolta-se; nele existe, como em germe, a pre­
tensão de Lúcifer: "Subirei além das nuvens e serei igual
ao Altíssimo" ( Is 14, 14).
Adora-se e quer ser adorado. Saber que os outros pen­
sam nele, que se preocupam com ele, é-lhe uma espécie
dç volúpia. Ao ver-se admirado, prezado, sua alegria aumenta,
sem, todavia, ficar ainda satisfeito. Quer que todos se sub­
metam a ele; tem sede de domínio, e, para sentir-se con­
tente, deverá impor as leis de sua vontade e os decretos de
sua sapiência.

.. 67

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Que meios não empregará para conquistar a admira­
ção? Em presença dos intelectuais, procura passar por in­
teligente, faz alarde de sua veia, de seu saber, de sua ha­
bilidade; com as pessoas virtuosas, mostra-se partidário
da virtude, afeta a linguagem da honestidade, da lealdade,
levanta-se com energia contra o vício. A preocupação de
se fazer admirar nunca o abandona e faz-lhe compor o sem­
blante, preparar frases, disfarçar os pensamentos, ignoran­
do por completo a amável simplicidade. "Que pensará de mim
meu interlocutor?" - eis seu único cuidado. Em caso de
necessidade saberá renunciar às suas idéias, contrariar seus
gostos, pronto a tudo sácrificar ante o desejo de despertar
admiração. Se por um lado faz valer seus méritos, por ou­
tro desculpa suas faltas, dissimula suas fraquezas. Toma
a máscara das virtudes que lhe faltam; por vezes mesmo,
reprime outras paixões para satisfazer ao orgulho; pregui­
çoso, sacudirá a moleza, realizará obras difíceis na esperan­
ça de elevar-se aos próprios olhos e aos do próximo. Tais
eram os fariseus soberbos que mereceram a censura de nosso
Senhor porque praticavam a virtude para serem vistos pe­
los homens. O orgulhoso não sàmente é capaz de fazer
esmolas e de jejuar, como esses pérfidos inimigos do Se­
nhor, mas é tão ávido de provocar a admiração que por ve­
zes recorrerá a atos que, inspirados em outros motivos, se­
riam chamados heróicos! Quantos gladiadores, e outros per­
sonagens sequiosos de glória, ostentaram calma e impas­
sibilidade diante da morte, não pensando, em tão grave mo­
mento, senão em legar à posteridade um bom conceito de
sua pessoa.
46. Quanta cegueira não causa o orgulho? O humilde
é leal, sincero; convicto de sua miséria, confessa-a a Deus
e não procura ocultá-la aos homens e assim vive na ver­
dade; é simples e reto em toda sua conduta, ante grandes
e pequenos, sábios e ignorantes. Permanece em paz, não
lhe perturbando a preocupação do que for pensado ou dito
a seu respeito; desconhece as angústias do orgulhoso, tão
numerosas quanto as pessoas com as quais tem relação.
68

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O soberbo não procura a verdade, mas sim iludir o pró­
ximo com aparências sedutoras, tão preocupado está em
agradar ou causar admiração. Procura também iludir-se a
si mesmo, querendo, a todo custo, crescer em sua própria
estima, e chegando, de fato, a julgar-se inteiramente dife­
rente do que é. Sô descobre a verdade quem sinceramente
deseja conhecê-la. Ora, o orgulhoso teme a verdade, que
lhe manifestaria seus defeitos e assim foge dela para pre­
cipitar-se no erro oposto. Será necessário acrescentar que
o demônio, pai da mentira, favorece esta funesta tendência,
circunda em suas dobras o soberbo e o envolve numa quan­
tidade de erros e de idéias falsas, obscurecendo-lhe a inte­
ligência e cobrindo-a com densas trevas? Dentro em breve,
esses erros aceitos, desejados, procurados, tornam-se, por
assim dizer, invencíveis, e o orgulhoso chega a convencer-se
de que ninguém pode divergir do seu modo de pensar. Se
tivesse receio de enganar-se, talvez rezasse, pedisse a Deus
a luz que ele sempre concede aos humildes; mas, compra­
zendo-se cm seu erro, continua a admirar-se, a idolatrar-se.
Daí, quantas consequências deploráveis! Inveja, em re­
lação a quem o poderia eclipsar; antipatia, ódio mesmo,
contra quem não o admira, ou recusa submeter-se; cólera,
se for contestado ou contrariado.
47. O orgulhoso é um instrumento dócil nas mãos de
Satanás, e o ínilt1igo das almas o prefere ao avaro, ao sen­
sual e mesmo ao impudico, para ajudá-lo em sua obra de
perversão; o orgulhoso, com efeito, contanto que saiba es­
conder sua �esprezivel audácia e não inspirar horror, do­
mina os fracos, forçando-os a aceitar-lhe os erros, ou en­
tão, insinua-se pelas adulações. Todos os meios lhe convêm,
contanto que faça partilhar suas falsas idéias, contanto que
seja considerado como um doutor que merece ser ouvido,
como um homem hábil, cujos conselhos devem ser seguidos.
Desse modo arrasta em seus desvarios muita pobre gente
que se deixa fascinar por ele.
Os heresiarcas foram sempre grandes orgulhosos. Em
todos os tempos, os fundadores de escolas de erro, os mes-
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tres ou meros propagadores de falsas doutrinas, que per­
turbaram ou destruíram a fé de muitos de seus irmãos, fo­
ram levados a essas novidades pela confiança exagerada
que tinham em suas próprias luzes. Constituíram-se em ído­
lo da própria ciência e do próprio talento; tinham, incons­
cientemente a princípio, e conscientemente depois, afas­
tado a Deus de seu coração, renegando o ensinamento di­
vino; tais homens são legitimas agentes de Satanás.
Assim também aqueles que, na luta contra a Igreja,
tomam o partido de seus inimigos, que, sem romperem aber­
tamente com ela, tendem à rebelião, pondo em dúvida os
seus ensinamentos, comprazendo-se em criticar as autoridades
eclesiásticas, a que móvel obedecem, o mais das vezes, se­
não· à infatuação de si mesmos?
48. São menos raros do que parecem esses exemplos
de insano orgulho que torna o homem idólatra de sua pró­
pria pessoa. O leitor pensará talvez: "Estou longe de cair
em tão deploráveis loucuras; não me iludo a tal ponto;
não sacrifico tudo ao desejo de agradar ou brilhar, tenho
pouca humildade, convenho, mas não encontro em mim esse
orgulho néscio". E' verdade. Quem lê estas páginas, não
chegou, graças a Deus, aos excessos que acabamos de des­
crever; mas para conhecer um monstro é preciso estudá-lo
adulto; para avaliar uma árvore é mister examiná-la ao bro­
tar da terra a primeira haste. A serpente que acaba de nascer
não pode matar pela mordedura; a planta venenosa que co­
meça a elevar-se acima do solo não pode causar dano; mas,
se a serpente for agasalhada, alimentada, se a planta for.
cultivada, um dia virá em que ambas poderão tirar a vida ao
homem imprudente que lhes dispensou cuidados.
A volúpia que nasce, o orgulho que aponta, contêm
em si um princípio de perdição que, se não matam ainda,
todavia paralisam, aniquilam as forças e o vigor espiritual.
Quem combate molemente estes vícios e lhes faz concessões,
quem sem se deixar arrastar pelas paixões a excessos de
uma gravidade evidente, é por elas atingido, quem cede de
livre propósito, e sobretudo de modo habitual, ao amor do

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bem-estar, aos gozos sensuais, a sentimentos de complacên­
cia própria, faz à sua alma um mal, cuja gravidade des­
conhece; veda-se o progresso no caminho da verdadeira
virtude e priva-se, por toda a eternidade, da superabundân­
cia de alegria e de glória que o Senhor reserva, no céu,
aos que na terra foram seus fiéis amigos. Quem, ao contrá­
rio, avalia a monstruosidade destes dois vicias e sabe quan­
to desagradam ao Senhor, quem os guerreia sem dó, se faz
jus aos favores divinos.
Piedosos leitores, embora não tenhais sequer a cen­
surar-vos qualquer fraqueza para com esses piores inimigos
de vossa salvação, embora vossa alma generosa não este­
ja manchada senão por faltas ligeiras que escapam à fra­
gilidade humana e não provêm de um consentimento re­
fletido e deliberado, cabe-nos entretanto instruir-vos sobre
as desordens graves em que caem tantos irmãos vossos: vos­
sa compaixão para com os pecadores se dilatará, e com­
preendereis melhor quantas orações, quantos sacrifícios são
necessários para lhes obter a conversão e a salvação.
Compreendereis também quantas expiações reclamam
tais desregramentos. Foi a uma alma inocente que a Virgem
Imaculada repetiu em Lourdes as palavras - Penitência, pe­
nitência, penitência! - Maria desejava que este apelo, di­
rigido a Bernadete, fosse ouvido, não só pelos justos, como
também pelos pecadores. E foi por acaso obedecida? - Não
será porque os bons não souberam expiar pelos culpados,
que a justiça de Deus hoje nos fere?
As expiações dos amigos de Deus têm, a seus olhos,
grande valor e são necessárias para aplacar-lhe a justiça. E,
se não forem feitas vohmtàriamente, não as exigirá ele d�
uma maneira muito mais terrível?

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CAPITULO VII

Do amor próprio nas pessoas de bem

11:on tf/lclamur lna,ds 1:,lorllf! �upldf.


Não sej,mas ;!.,·idos de çã 11órla (01 5, ·,

1. A vaidade.

49. Basta mostrar até que hedionda idolatria pode ar­


rastar o orgulho não combatido? Basta declarar que a acei­
tação, deliberada, mesmo em matéria leve, de sentimen­
tos de complacência próprià prejudica sobremodo. a alma
e teremos assim esclarecido suficientemente o leitor sobre os
perigos do amor próprio e o cuidado a tomar com esse inimi­
go interior, tão pérfido e tão perigoso? Ai de nós! quantos
reconhecem que é um inimigo temível! Quantos sofrem por
estarem expostos aos seus ataques e todavia continuam a
ceder-lhe. Recusam, é vecdade, ir até aonde ele quisera le­
vá-los, mas percorrem meio cai:ninho; dois sentimentos con­
trários agitam-lhes o coração sem que um consiga dominar
completamente o outro: detestam e, ao mesmo tempo, pre­
zam esse amor desordenado de si mesmo. Um dos fenômenos
do coração humano é amar o seu amor. A alma fervorosa
sente-se feliz em amar a Deus, quer amá-lo sempre mais,
suspira por esse acréscimo de amor, e multiplica os esfor­
ços para obtê-lo. O pecador, preso pelos laços de um amor
culpado, ama sua escravidão, rejeita obstinadamente todo
convite à renúncia de seu afeto. A quem ama causa pro­
funda dor a idéia de que seu amor possa acabar um dia.
E' porque experimentam real tortura aqueles que, não dese­
jando renunciar a nenhum dos seus afetos, têm a lhes dis­
putar o coração dois amores contrários, o amor de Deus e

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o amor criminoso das criaturasj o amor legítimo dos pais
e um amor por eles condenado. Da mesma maneira, o homem
vaidoso, que não luta senão com moleza, ama no fundo
sua vaidade, e esta inclinação, da qual talvez se envergonhe,
lisonjeia-o, agrada-lhe. Quem se deixa levar pela suscep­
tibilidade, preza esta susceptibilidade, e protesta altamente
que está a zelar pela sua honra e que se julgaria fraco e
sem caráter se deixasse o próximo tratá-lo sem a devida aten­
ção e �espeito.
E', pois, contra esse sentimento intimo, contra esse
amor, mais ou menos confessado, a tão funesto defeito que
urge combater em primeiro lugar, excitando em nosso coração
um grande horror ao amor próprio, e convencendo-nos bem
da desordem que dele resulta.
50. O amor próprio é uma grande desordem, quer se
manifeste pela vaidade, pela susceptibilidade, quer pela ex­
cessiva preocupação de si mesmoj é a criatura a reclamar
o que não lhe pertence, a roubar para si o que é devido a
Deus.
Alma cristã, alma piedosa, dizei fielmente e de todo o
coração: Glória ao Padre, .e ao Filho., e ao Espírito Santo,
e já que este desejo é sincero, por que, em vez de prestar,
à adorável Trindade, toda a glória que lhe pertence, quereis
roubar-lhe uma parte sequer? O Senhor disse: não darei
minha glória a outros: gloriam meam alteri non dabo (Is 42,
8). Ora, quando quereis ser glorificada, admirada, louvada
nos dons que ele vos concedeu, pelas boas disposições que­
em vós depositou, pelas virtudes que sua graça em vós fez
nascer e crescer, vós vos apoderais da glória que lhe é de­
vida. Quid habes quod non acoepisti "que tens, pergunta o
Espírito Santo, que não tenhas recebido, e se recebestes tudo,
por que te ufanas como se não o tivesses recebido"? (1 Cr
4, 7). Se há glória num rico e garboso traje, dizia São Fran­
cisco de Sales, essa glória não pertence antes ao alfaiate que
o fez do que a quem o traz? Teria, seh1 o alfaiate, que se en­
vergonhar de sua nudez. Ai de nós! Sem os dons de Deus,
só haveria cm nós miséria e nudez!

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Eis a verdade, da qual o vaidoso não se quer conven­
cer, da qual, ao menos, não sabe compenetrar-se. E'-lhe agra­
Pável receber elogios, ser-lhe atribuída toda sorte de vir­
tudes e qualidades; julga ter direito a tais encômios e quer
persuadir-se de que lhe são devidos. "Meu talento será no­
tado; minha destreza, admirada; minha opinião, acatada;
minha gentileza, minha distinção, louvadas; passarei por ter
bom coração, por ser muito dedicado, hábil, enérgico, pru­
dente. E será justo que assim seja". Quantos pensamen­
tos semelhantes se encontram nos pobres cérebros humanos,
mesmo nos cérebros de bons cristãos. Não digo que o proce­
der das almas virtuosas vise lmicamente suscitar admiração,
mas, nem sempre, sua intenção é pura; decidem-se a cum­
prir o dever, mas não o fazem sõmente para agradar a Deus,
pois querem também que lhes advenha disso alguma glória.
51. E' com razão denominada vã glória, esta glória .de
que os vaidosos se mostram tão ávidos. Procuram a esti­
ma dos homens, estima tão frágil e tantas vezes injusta! E
que vantagens lhes advêm da boa ou má opinião que faz
deles o seu próximo? A censura de nossos semelhantes não
nos torna piores; seus elogios não nos fazem melhores; que
nos critiquem ou nos admirem, não teremos maior ou me­
nor valor.
A glória humana foi injustamente comparada à fumaça,
que é intangível, e que logo se dissipa. E' comparada ainda
à sombra, que não passa de uma aparência vã. Assim tam­
bém a estima dos homens é apenas um fantasma ilusório;
parece ser algo e nada é. A sombra é inconstante e variá­
vel; às vezes muito menor que o objeto que representa. Ou­
tras vezes, maior, tanto assim que cometeria erros ridícu­
los quem se baseasse na sombra dos objetos para lhes me­
dir as dimensões. O conceito do mundo é também incons­
tante e variável; por vezes, favorável demais, por vezes se­
vero demais; e quem julga seus semelhantes pela opinião
geral corre grande risco de os apreciar mal. A sombra é
caprichosa, foge àqueles qL1e a perseguem, apega-se àqueles
que dela fogem; assim também aqueles, que procuram de-

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masiadamente a glória ou a estima de seus semelhantes, a
perderão; aqueles que, desprezando um motivo tão mes­
quinho, são levados por considerações mais nobres, serão
dentro em pouco os mais estimados.
Perseguir um fantasma, querer alimentar-se de fumaça,
não é o proceder de um louco? E os vaidosos não podem
desculpar-se, alegando não conhecerem· o pouco valor da
opinião; como os outros, talvez mais que os outros, nos dias
de decepções, eles se queixaram de injustiça do juizo humano;
e não se enganavam, pois a cada instante o mundo se ilude:
ora eleva às nuvens aqueles que nenhum elogio merecem,
ora critica e censura aqueles que deveria admirar; ora é
severo para com os bons, ora é indulgente para com os cul­
pados. Por que então não desprezar esses pareceres e dizer
como São Paulo: mihi au.tem pro minimo est u.t a vobis ju­
dicer: Pouco me importa ser julgado por vós ou por juízo
humano; não me julgo a mim mesmo ... i quem me julga é
o Senhor (1 Cor 4, 3, 4).
52. A desordem é maior ainda quando a preocupação
com o juízo dos homens conduz ao respeito humano. Não
falamos desse respeito humano que leva à covardia, a ne­
gligênciar os deveres inerentes à virtude cristã. Isto é pu­
ra idolatria, é o culto da opinião substituindo o culto de Deus.
Mas falamos desse respeito humano que se encontra mesmo
nas almas fiéis, nas pessoas que deveriam dar exemplo de
piedade e de generosidade. Consentem em praticar os deve­
res essenciais ao seu estado, porque podem fazê-lo sem se
expor à crítica, pois o cumprimento de obrigações tão graves
é aceito, em geral, por todos. Aplicar-se-ão também em re­
zar a sós com fervor, mas quanto a viver do puro espírito
do Evangelho, a fazer profissão de amar . a humildade, a
mortificação, a vida retirada, a fugir às conversações iní1-
teis, a se mostrar reservadas e modestas a fim de levar uma
vida interior mais segura, isto seria expor-se às críticas,
passar por ser um espírito estreito, escrupuloso; então pre­
ferem não desagradar às pessoas tibias e fogem para não
ser objeto de seu escárnio.

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53. Vive em paz aquele que, como São Paulo, se põe
acima do juizo humano; cumpre com seu dever, aconteça o
que acontecerj não trabalha senão para Deus; e como Deus
não lhe pede que se vença, mas que combata, está certo ele
obter a recompensa.
Mas quem se preocupa com a própria glória teme os
reveses, apressa-se, agita-se e perturba-se, receando uma
humilhação! Tais indícios mostram que não é pura a sua in­
tenção, nem sem mescla o seu zelo. O insucesso é frequente,
pois não deve contar com as bênçãos divinas quem não pro­
cura a glória de Deus, quem demais antes confia em si
que em Deus: ecce homo qui non posuit Deum adjutorem
suum (SI 51, 9). Deus abandona o homem às suas próprias
forças; este fracassa, e o revés, que é uma provação para
a alma humilde, é para o vaidoso um castigo. Revela-se então
o fundo de seu coração; sua irritação, seu mau humor, suas
recriminações amargas denotam uma vaidade despeitada,
e isso significa que a alma se busca a si mesma enquanto
procura os interesses de Deus. Quantas obras, aparenten1en­
te excelentes, desagradam ao Senhor e produzem poucos fru­
tos, ou nenhum mesmo, prejudicadas que são pelos fins de­
masiado humanos dos seus dirigentes!
li. A suscetibilidade.
54. Os vaidosos recebem já neste mundo sua recompen­
sa, disse Nosso Senhor: receperunt mercedem suam, e a
vaidade dessa recompensa não os desabusa; quando vierem,
porém, a sofrer castigos, decepções, dissabores, julgar-se­
ão curados? Não, o amor próprio, fonte de tantas amargu­
ras, não é repudiado por aqueles cuja desgraça faz. Nota­
mos isso nos suscetíveis, que se criam continuamente no­
vos aborrecimentos, e cogitam tão pouco em corrigir-se. As
criticas, as censuras, afligem-nos desmedidamente; uma re­
provação causa-lhes um verdadeiro desgosto; ante qualquer
contrariedade, suas alegrias se esvaem, as demais preocupa­
ções se dissipam, e ficam absorvidos pela tristeza. Basta,
muitas vezes, para magoá-los, uma simples palavra dita ami-
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gàvehnente, uma leve advertência, feita com boas intenções,
ou mesmo uma ligeira falta de atenção, um esquecimento,
um sinal de indiferença. Outras vezes ainda o melindre é
provocado por uma simples aparência: julgar-se-ão ofendidos,
quando aquele de quem se queixam jamais pensou em lhes
ser desagradável. Oh! se, ao menos, esses, que se mostram
tão suscetíveis quando sua honra está em jogo, se mostrassem
igualmente melindrosos em suas relações para com Deus,
igualmente sensíveis no que lhes fere a honra, igualmente
pressurosos em não a prejudicar.
55. Sua exagerada suscetibilidade já é, porém, uma
ofensa à honra divina, porque é contrária à humildade, à
justiça, à verdade, e porque dá origem a muitas discórdias.
Haverá algo de mais belo que essa divina caridade tão
hem praticada pelos primeiros cristãos, que, segundo ouvi­
mos, tinham um só coração e uma só alma? Haverá algo de
mais admirável, de mais nobre, que a união perfeita dos co­
rações que vemos reinar em certos meios verdadeiramente
cristãos? Ora, por que não existe sempre essa harmonia?
por que, entre almas feitas para se entenderem, esses melin­
dres, esses sentimentos de antipatia mal disfarçados, ou aber­
tamente declarados? por que essas palavras amargas, essas
censuras mais ou menos injustas, essas asserções ofensivas?
Procurai a causa dessa desordem; interrogai aqueles
que praticam tão pouco a caridade para com seus irmãos e
quase sempre tereis a seguinte resposta: ofenderam-me o
amor próprio, fizeram-me repreensões imerecidas; levan­
taram contra mim acusações falsas. Tal é geralmente a ori­
gem desses ressentimentos; fomos ou nos julgamos ofendi­
dos; então o amor próprio se revoltou; em vez de esquecer­
mos o que não tinha maior importância, voltamos a repisã­
lo a miúdo; repassamos no espírito os procedimentos pouco
amáveis, as injustiças de que nos consideramos vitimas. Só
alargamos e agravamos a ferida. Daí esses sentimentos de
aversão, ou, pelo menos, esses juízos desfavoráveis, injus­
tos, cuja falta de fundamento nos escapa e de que não quere­
mos, de que, talvez, não possamos mais nos desfazer. Uma

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pessoa suscetível não sabe fazer justiça àquelas de quem
pensa ter motivo de queixa.
56. Desse modo a suscetibilidade ainda impede o bem.
Nas circunstâncias em que deveríamos praticar algum ato
Util, cooperar em alguma boa obra, recusamos agir ou pres­
tar nosso concurso e permanecemos entregues ao nosso mau
humor. Devido a essa teima néscia, com frequência, impor­
tantes empreendimentos virão a falhar.
Se é contra os superiores que estamos despeitados, mur­
muramos, e só obedecemos contrariados, semeamos o mau
espírito, criticando e excitando os outros à indocilidade e
à revolta. Se é contra os iguais, difamamo-los no espírito
do próximo; não sómente diremos contra eles o mal que
sabemos, mas enxagerar-lhes-emos os erros; aumentar-lhes­
emos as faltas; não lhes reconheceremos as qualidades; fa­
remos deles apreciações injustas, suspeitas desfavoráveis,
que nada de sério autoriza; e indisporemos contra eles pes­
soas que, de outro modo, os estimariam e amariam.

RI. A demasiada preocupação de si mesmo.

57. Vaidade, suscetibilidade, donde provêm estes de­


feitos, senão do lugar demasiado grande que ocupa o eu nos
corações pouco nobres? Pensamos demais em nós e não bas­
tante em Deus, e essa infeliz disposição prejudica, com fre­
quência, as melhores esperanças. Uma alma jovem prometia
levar uma vida santa i era evidente, no momento em que
começou a se entregar à piedade, que a graça a trabalhava
poderosamente: arroubos de fervor, grande atração pela
virtude, uma verdadeira generosidade no sacrifício, revelavam
um forte impulso do Espírito Santo e faziam prever um fu­
turo auspicioso. Ora, eis que, passados alguns anos, todo
esse belo entusiasmo parece se esvair, e em vez de voar,
essa alma arrasta-se penosamente no .caminho da piedade;
suas virtudes não se dilataram e sua generosidade antes
diminuiu. E' claro, pois, que os desígnios de misericórdia
que Deus tinha sobre ela não se realizaram. Entretanto não
esteve exposta a grandes perigos, nem a uma vida dissipa-

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da; os auxílios espirituais, se foram menos numerosos, en­
tretanto, não lhe faltaram. Se a interrogarmos, se lhe pergun­
tarmos donde lhe vem a diminuição do fervor, queixar-se-á,
atribuindo toda a culpa aos outros; padeci tanto, não encon­
trei senão antipatia, levantaram contra mim acusações fal­
sas, humilharam-me, perseguiram-me, e, no meio desses so­
frimentos, não fui consolada, mas antes repelida, ou, pelo
menos, desamparada. Se insistirmos, contar-nos-á histórias
insignificantes, fatos sem importância que, a essa alma apai­
xonada de si mesma, pareceram grandes vexames, porquan­
to vê através de vidros de aumento tudo que lhe diz res­
peito. Não a consolaram; mas por que não procurou ela
esse consolo junto de Deus, o único verdadeiro consolador?
Não, Deus não lhe basta; se lhe propondes os exemplos
de Jesus, e.sses exemplos não a comovem, continua a falar de
suas tristezas, do abandono a que está reduzida; não que te­
-nha deixado inteiramente de voltar-se a Deus, mas, no quadro
que tem geralmente diante dos olhos, ele está bem longe, no
fundo, enquanto que ela mesma se acha no primeiro plano.
58. Vede tal pessoa, pela manhã, ao despertar; é mis­
ter estudá-la aí para conhecer as tendências de seu coração.
A alma apaixonada por Deus, logo ao acordar à vida, pen­
sa em Deus, preocupa-se com os interesses de seu bem-amado:
"Meu Deus, que farei hoje por vós?" Outras pensam em
seus trabalhos, em seus projetos; tais pensamentos não são
santos, e podem prejudicar o recolhimento, embora não se­
jam em si repreensíveis. Quanto à alma egoísta, essa reco­
lhe-se em si mesma, e se aflige: "Que me acontecerá ho­
je? corno me tratará tal pessoa? e tal outra? como se por­
tará comigo, que me dirá? Começam então as lamentações,
pois a alma toda entregue a si mesma julga ter muitas ra­
zões de queixa; queixa-se de seus trabalhos, como se fora
a úniç_a a trabalhar; de suas indisposições, da frieza de seus
superiores, da indiferença do próXimo, da ingratidão daque­
les a quem presta serviço; não é querida, nem amparada,
nem auxiliada, nem recompensada de seus esforços. E' ela,
sempre ela!

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Tão triste disposição exerce grande influência sobre sua
maneira de julgar. Por que motivo eleva até às nuvens tal
pessoa cujas qualidades são mediocres, e rebaixa injusta­
mente tal outra cujos dotes e cujo mérito são muito superio­
res? E' que a primeira é mais amável, mais solicita com
ela, enquanto que a outra é mais reservada e talvez lhe fa­
ça sombra. Assombra-nos a variedade de apreciações que
faz sobre uma mesma pessoa, segundo os motivos que jul­
ga ter para queixar-se ou para regozijar-se.
59. Quando nos ocupamos tanto de nós mesmos, que­
remos também que os outros se preocupem conosco. E não
derramamos sobre eles o que há de bom em nós. No co­
ração do cristão Deus estabelece sua morada. "Sois o tem­
plo do Deus vivo", dizia São Paulo: Vos estis templum Dei
vivi (2 Cor 6, 16). Respeitamos nós esse templo, quando aí
derramamos as impurezas de nosso amor próprio? Entretan­
to o Senhor se revolta quando lhe profanamos o templo: Con­
laminare non debet sanctuarum meum. (Lv 21, 23).
E o templo mais precioso aos olhos de Deus é o cora­
ção de seu sacerdote. Profanos, aí não penetreis! E' o san­
tuário do Altíssimo, o Santo dos Santos! Recorrei ao espírito
do sacerdote apenas o necessário para saber dele o caminho
que conduz a Deus; se o ocupardes por mais tempo, empre­
gareis para um uso profano o templo de Deus. Vós que não
sois senão um amontoado de misérias, não lhe deveis pren­
der a atenção além do necessário; fazei passar vossas im­
perfeições sob seus olhos para serdes delas purificados e
preservados para o futuro; depois procurai a Deus, aguardai
a Deus, e, afastando-vos, não leveis senão a Deus. Sois um
grão de pó, não vos torneis em lodo: um sopro, um mo­
vimento basta para tirar a poeira; a lama adere e permanece.
Não desejeis, pois, que o ministro de Deus se preocupe de­
masiadamente convosco, nem que vossa lembrança o acompa­
nhe; seria querer deslocar a Deus, porquanto só Deus deve
ser o objeto de seus pensamentos e de suas preocupações.
Não procureis junto a ele conversações ou consolações hu­
manas; não viseis obter dele senão um acréscimo de luz e a

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graça dos sacramentos. As pessoas muito ocupadas con­
sigo mesmas pretendem encontrar junto ao sacerdote tran­
quilidade e conforto; é antes uma secreta sensualidade es­
piritual que procuram satisfazer. O sacerdote pertence a Deus
e devemos nos abster de fazer servir a uma satisfação pura­
mente natural esse tesouro vivo e sagrado.
60. Religiosos e religiosas, não profaneis o templo do
Senhor, que é o coração dos vossos superiores; não lhes
façais ouvir o ruido importuno de vossas queixas, de vossas
maiedicências, de vossas murmurações. Não venha vossa
voz abafar ali a voz de Deus, lançando a perturbação na
alma dos superiores que, preocupados com vossa malícia,
estão impedidos de ouvir em paz as inspirações divinas.
Não devem pensar em vós senão pensando em Deus; vossa
lembrança não deve ser um obstáculo à sua contínua ora­
ção. Vinde queimar nesse templo o incenso de vossas vir­
tudes, oferecendo a Deus o holocausto de vossos gostos, de
vossa vontade, de vossa opinião, de vossas idéias individuais;
não torneis, porém, esse santuário num lugar profano, em
que ides tratar de toda espécie de insignificâncias, ou pas­
sar agradàvelmente o tempo, satisfazendo ao desejo que
tendes de falar de vós mesmos. Não procureis, sobretudo,
monopolizar as boas graças de vossos superiores, captar-lhes
os favores pela adulação, pelas atenções indevidas e in­
teressadas, usurpando em seu coração, que é o ·santuário
da Divindade, um lugar ao qual não tendes direito algum.
61. Enfim, almas fiéis, seja qual for vosso estado, não
profaneis o templo do Senhor introduzindo o temor e a dis­
sipação no coração de vosso irmão. Deus ali está! respei­
tai sua presença. Não derrameis, em sua frente, o excesso de
vosso amor próprio, de vossas antipatias, de vossas frivolida­
des; e mormente as impurezas de colóquios perigosos. Se
vos esquecerdes a vós mesmos, se não pensardes em vós
senão pensando em Deus, o amor próprio não virá mais
prejudicar vossas palavras; vossas conversações serão sem­
pre puras e dignas de uma alma cristã, e levarão ao cora­
ção de vossos irmãos o suave aroma de Jesus Cristo.

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CAPITULO VIII
Da virtude da fé, sua natureza,
seus efeitos

S/11t fldr impo,sibllt ts! plactrt Dta.


Sem ■ Jé, impoa�lnl o! agradar a Deus (Hb
li, li).

1. Esclarecimento da inteligfncla.
62. Indicamos nos capítulos precedentes a necessidade
da luta. "Aparta-te do mal, diz o Espirita Santo, repele-o
com todo o vigor de teus braçosj e se te perseguir, se 5C
apegar a ti, deves a todo custo afastar-te dele: "declina a
maio. Mais isso não basta, é preciso que faças o bem, et fac
bonum (SI 36,-27).
Faze, pois, o bem. Desenvolve em ti a vida sobrena­
tural que te dei. Já dissemos como o sobrenatural transfi­
gura a criatura humana, comunicando-lhe uma admirável
semelhança com Deus. A base dessa ordem sobrenatural
em nós é a fé. Para aprendermos a cultivar esta virtude fun­
damental, convém primeiro estudá-la, analisar os elementos
do ato de fé, ver a parte de Deus e a parte da criatura
na produção dos atos dessa virtude, o primeiro elo que une
a alma fiel a Deus.
63. Para podermos fazer um ato sobrenatural de fé
- dá-se o mesmo, aliás, em se tratando das outras virtu­
des - é preciso que Deus atue sobre nossa inteligência, que
a divinize, de certo modo, dando-lhe a faculdade de ver sob
um novo aspecto as verdades de ordem sobrenatural.
Podemos acreditar que Deus existe sem termos fé; as sim-

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pies luzes da razão demonstram a sua existência. Se não ca­
recemos de um auxilio sobrenatural para deduzirmos, da
existência do relógio, a do relojoeiro, não carecemos tão pou­
co da graça para deduzirmos da existência das criaturas
a do Criador. "Os demônios crêem e tremem", diz São
Tiago; mas sua fé "nada tem de sobrenatural. Lutero, ten­
do rejeitado a fé, acreditava ainda na divindade de Jesus,
e em sua presença na Eucaristia; as simples luzes da ra­
zão bastavam para demonstrar-lhe a verdade desses dogmas.
Mas, na alma dócil e reta do cristão fiel, a operação
da graça precede o exercício da razão; essa graça divina
se apossa das faculdades da alma e as torna capazes de fa­
zer, divinamente, o que, por suas próprias forças, só po­
deriam fazer humanamente. Há, pois, uma diferença imensa,
posto que insensível, entre a crença em Deus, de um herege
obstinado, e o ato de fé em Deus, de um verdadeiro fiel.

H. O papel da vontade no ato de fé.


64. Para levar-nos a produzir o ato de fé, Deus não
se contenta em agir sobre a inteligência e lhe comunicar uma
força sobre-humana; atua lambem, ao mesmo tempo, sobre
a Mntade, e comunica-lhe um amor todo divino pelas verdades
propostas. Essa ação de Deus sobre a vontade é, de uma vez,
forte e delicada; impele-a, sem a forçar; inclina-a, mas sem
a constranger; a alma permanece, portanto, livre; pode re­
sistir, pode recusar-se a amar, e mesmo a aceitar essas ver­
dades, embora certas e inegáveis como são. E' essa liberdade
da vontade, de aceitar as verdades reveladas, que torna me­
ritório o ato de fé.
Que ninguém se admire e pense que a convicção seja
imicamente questão de raciocínio e não de liberdade. Não
é sómente às verdades de fé que a alma humana pode recusar
seu assentimento, pode também recusá-lo a muitas outras,
todavia incontestáveis. A vontade pode impor ao espírito
sua maneira de julgar e, com frequência, vemos o cora­
ção induzir em erro a inteligência. Quantas pessoas chegam a
crer quando querem crer e a duvidar quando querem du-

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vidar! Por que chegamos, raramente, nas discussões, a
um acordo entre as partes? E' porque o amor próprio não
se quer convencer. Se os fatos verídicos forem incômodos
o·u comprometedores; se parecerem prejudiciais aos interes­
ses sustentados, à causa defendida; se forem desfavoráveis
a um amigo ou favoráveis a um adversário, serão sempre
aceitos com repugnância, senão rejeitados com obstinação.
As testemunhas serão tidas por suspeitas; será aproveitada
tal inverosimilhança; tal outra difiouldade exagerada; numa.
palavra, se uma verdade não agrada, encontrará mil objeções;
se um fato nos aborrece, serão alegadas mil razões boas pa­
ra não o admitir, tanto a vontade influi na inteligência.
Logo, o papel que desempenhá no ato de fé é com­
preensível. As verdades apresentadas são exatasj é fácil, pois,
delas nos certificarmos. Deus· mesmo age sobre a alma para
ajudá-la a obter uma convicção inabalável. Se a alma for
reta e sincera, se a vontade for criteriosa e justa, a fé for­
ma-se e se desenvolve. Mas pode se dar o contrário. A von­
tade pode ser rebelde; a alma, desagradando-se das ver­
dades que a religião lhe propõe, pode conceber contra elu
uma aversão culpável; então, apesar da evidência dos fatos,
da garantia das provas, e do poderoso impulso da graça, o
homem pode resistir. Permanece capaz de esquivar-se à ação
de Deus; pode, voluntàriamente, desviar a atenção das pro­
vas, apegar-se obstinadamente às objeções, não lhes querer
ouvir as soluções e tornar-se incrédulo. Por mais brilhante
que seja o sol, podemos sempre interceptar-lhe o trajeto
dos raios e envolver-nos nas trevas.
Por que motivo, pergunta Santo Agostinho, os judeus,
testemunhas das virtudes divinas de Jesus Cristo, de seus
inúmeros milagres, permaneceram incrédulos em tão grande
nirmero? E o santo doutor responde: "não creram porque
não quiseram crer: non credebant quia nolebant.
A fé exige, pois, em primeiro lugar, que o coração do
homem não seja rebelde e, em segundo, um ato de boa von­
tade, uma submissão amorosa ao ensinamento divino. Deus
dignou-se falar aos homens. As verdades que ele mesmo
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veio ensinar ao mundo, quis que fossem logo apresentadas
às nossas almas. Pela sua graça, age sobre nosso espirita
e sobre nosso coração para fazer-nos aderir a essas verda­
des. Permanecer indiferente, seria resistir à ação íntima da
graçaj seria desprezar os convites que Deus nos faz; seria
desdenhar o grande dom da revelação, seria ofender gra­
vemente a Deus.
Quem crê teve, portanto, uma vontade reta; amou li­
vremente a verdade proposta; aceitou de bom grado o en­
sinamento de Deus. Se o fez generosamente, maior serã o
mérito; se, para fazê-lo, precisou inclinar a razão ante os
mistérios que não compreende, seu mérito cresce ainda.

1D. A fé do pa&ão e a te do cdstio.

65. Este último remate da fé impõe-se sómente às almas


a quem são claramente apresentados os mistérios cristãos; nã'.1
se dá o mesmo com aquelas que não tiveram conhecimento
dos nossos dogmas, ou que, não os tendo conhecido e a111:a­
do iª infância, não lhes percebem, senão dificilmente, a jus­
teza e a veracidade, por exercerem tão grande influência a
primeira educação e os preconceitos em geral. Essas almas,
entretanto, não podem salvar-se sem a fé; precisam crer,
com uma ·fé sobrenatural, ao menos "que Deus existe e re­
compensa aqueles que o procuram" (Hb 11, 6).
Tal fé lhes é possível. Deus, que quer a salvação tle
todos os homens, lhes concederã as luzes da graça para fa­
zer esse ato indispensável e praticar sobrenaturalmente as
virtudes que lhes parecerem necessárias. Sem dúvida, com­
parada à nossa, a condição desses pagãos, desses muçul­
manos, é miserável, e sua pobreza ressalta diante de nossas
riquezas. Entretanto, já é um espetáculo maravilhoso o
da alma não batizada que obedece às luzes da graça, domi­
na suas paixões, governa seus apetites, dirige suas faculdade_s,
não lhes permitindo senão atos licitas e razoáveis. Embt>ra
nessa alma a luz divina seja muito menos abundante que
na alma do cristão fiel, se todavia ela não obstar a ação
85

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do Espírito Santo, ser-lhe-á comunicado de modo a ·en­
cantar os olhares dos anjos e dos eleitos.
66. Mas que dizer daqueles a quem o Santo batismo
-fixou no sobrenatural e uniu tão fortemente a Deus? ln cari­
tate radicati et fundati (Ef 3, 17). Antes mesmo que sua
inteligência se abrisse às luzes da razão e da graça, os ger­
mes da fé jaziam em suas almas. Enquanto a água san­
la lhes banhava a fronte, Deus realizava neles uma obra
maravilhosa: · plasmava-lhes um espírito e um coração de
crente, transmitia-lhes uma aptidão scibrenatural para com­
preender as verdades divinas, e uma santa disposição para
aceitá-las. Logo, pois, que lhes sejam apresentados os dog­
mas cristãos, o ato de fé lhes será fácil.
Essa fé que Deus dá a seus filhos é uma fé forte. Por
ela a alma é levada a crer firmemente na palavra de Deus;
a vontade humana, arrebatada pela graça, está plenamente
disposta a aceitar com amor os ensinamentos divinos. Essa
fé que provém de Deus é uma inabalável fé, pela qual a
alma crê, sem hesitar, as verdades religiosas.
Então, não se assustará com os mais profundos mis­
térios e nada será capaz de abalá-la, nem os escãndalos
mais deploráveis, nem as objeções mais especiosas, nem os
argumentos mais pérfidos dos incrédulos, nem as tentações
mais terríveis dos demônios. A fé, implantada por Deus no
coração humano, não poderá ser desarraigada; só o pró­
prio crente pode arrancá-la e rechaçá-la de seu seio; e
ainda será necessário um ato culpável, mui grave, contra
a própria fé, seja uma dúvida voluntária e refletida, real­
mente injuriosa à honra de Deus, seja um prazer perver­
so em ver os ensinamentos divinos combatidos e negados.
Mas todos esses assaltos exteriores, a fé os pode repelir.
E o que é mais admirável ainda, o que em verdade é fru­
to da infinita misericórdia do Senhor, é que as mais gra­
ves faltas contra as outras virtudes, revoltas, blasfêmias,
volúpias, escândalos, não extirpam• da alma esta virtudt
fundamental; a base da ordem sobrenatural subsiste no pe­
cador, a fim de lhe permitir reerguer todo o edifício; nada,

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portanto, pode destruí-la, senão a própria liberdade da al­
ma cristã, liberdade que os dons de Deus despeitam sempre.
67. Gratias De(! super inenarrabili dono ejus: "Graças
a Deus pelo seu dom inenarrável!" (2 Cor 9, 15). E não é
esta, alma cristã, a única graça que recebestes no santo ba­
tismo. Estimai, pois, devidamente, o favor que vos concedeu
o Senhor, marcando-vos, desde a vossa entrada na vida,
com o sinal da regeneração.
O batismo nos une forte e estreitamente a Deus, es­
tabelecendo uma espécie de comunhão que nada pode des­
truir; é, para empregar uma comparação vulgar, como um
canal misterioso, que, vindo de Deus, se soldasse à parte
superior da alma. Por esse canal, a graça, luminosa e ope­
rante, ·passa de Deus em nós, permite-nos uma participa­
ção real aos atributos divinos, à sabedoria e à força divina,
e nos torna aptos a produzir atos que visem Unicamente
à glória de Deus.
68. O pecado mortal pode, naturalmente, obstruir esse
canal, porém não o rompe. Se a luz não entra mais, entretanto
o obstáculo não é espesso ao ponto de impedir que um
\'islumbre possa ainda penetrar na alma de forma a deixar
o pecador perceber as horríveis impurezas que estão nele.
E, enquanto a ilumina, o Senhor atua nela, corno na alma
justa, com todos os seus atributos - santidade, bondade,
ternura - sua justiça, ao menos, não fica tolhida; pode mo­
ver a alma, sacudi-la pelo remorso, pode fazer-lhe chegar
aos ouvidos como que um trovão que a amedronte. E' verdade
que certos pecadores se tornam empedernidos, até despreza­
rem as ameaças divinas, mas esta surdez voluntária supõe
um abuso da graça realmente extraordinário.
69. A luz divina encontra sempre entrada na alma jus­
ta; é o demônio que será constrangido a ficar de fora e
agir exteriormente, fazendo, muitas vezes, grànde alarido com
as ·tentações que sugere e as perturbações que suscita no
interior; entretanto, continua a reinar a graça. Essa gra­
ça, que vem de Deus, tende a alçar toda a alma, a trans-

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figurar mesmo o que é baixo e carnal, e o mais grosseiro dos
sentidos humanos, o mais inclinado a seguir as tendências
naturais, pode, sob a ação purificadora e santificadora da
graça, tornar-se o principio de atos de um valor eterno e
produzir, na fé, obras santas, enrubescidas pelo sangue
ele Jesus, germes preciosos da glória celeste.
Enquanto a graça se esforça para realizar sua obra,
o demônio encontra um cúmplice em nós mesmos; é a na­
tureza, cujas inclinações são o justo oposto das santas dis­
posições incutidas em nós pela graça. Enquanto a natureza
animada, excitada pelo inimigo infernal, clama sempre:
para mim! a graça clama: para Deus e contra ti! brados con­
trários, que não se sufocam um ao outro e que ressoam a
um tempo, no íntimo de nosso ser. E' a luta ardente entre
a natureza e a graça. Qual das duas vencerá? De nós de­
pende a vitória; mas temos uma obrigação tanto maior de
ouvir a voz da graça, quanto maior for a nossa dívida pa­
ra com Deus, que se mostrou tão liberal para conosco.

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C.�PITULO IX

Da vida da fé

/u111us u Jklt vlvll.


O juslo ,i,·a da 1� (OI 3. 14).

J. Diferentes graus da virtude da lê.

70. Devemos ouvir a voz da graça, isto é, obedecer


aos motivos que a fé nos inspira. Nisto está nossa salvação
e quanto mais dóceis formos às lições da fé, tanto mais será
santa e agradável a Deus nossa vida.
Deus nos solicita, mas, para que possamos merecer, dei­
xa-nos livres de corresponder ou não á sua graça. Concedeu­
nos o germe tão precioso da fé, mas quis deixar-nos o cui­
dado de cultivá-lo, a fim de que resultasse uma árvore fron­
dosa de proporções admiráveis. Viajantes, a caminho da
pátria, segundo a bela expressão dos teólogos, recebemos,
Como as virgens do evangelho, uma lâmpada para ilumi­
nar a estrada; mas essa lãmpada, segundo o cuidado que
tivermos, nos dará quer ligeiro clarão, quer luz deslumbrante.
Quantos cristãos só se lembram dos ensinamentos da
fé de longe em longe! A maior parte dos atos de sua vi­
da inspiram-se em motivos prudentes, mas de uma prudência
toda humana. Bem no fundo de sua alma está a disposi­
ção de não ofender a Deus e alcançar a salvação e, devi­
do a esta disposição, os seus atos tendem habitualmente
a um fim sobrenatural, que os torna meritõrios; mas quão
pequeno ê esse mérito! quão fraca a influência que a fê
e�crce na vida desses cristãos! Entregam-se ao trabalho,

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antes por gosto do que por motivos de fé, ou porque a ra­
zão lhes patenteia a sua necessidade; pennitem-se, e pro­
-curam as satisfações que se podem proporcionar sem que
a consciência se revolte e inúmeros atos seus não visam ou­
tro fim, senão satisfazer as aspirações da natureza. Sua
fé não é bastante forte para imprimir em toda sua con­
duta uma direção santa; as luzes que recebem são poµco
refulgentes, e confirmam, em vez de ultrapàssarem, as ver­
dades que a razão está apta a apreender. Ninguém dirá
que esses cristãos vivem de fé.
Mesmo entre as almas piedosas, muitas não vivem ple­
namente a vida da fé. Embora esta virtude já exerça so­
bre sua vida uma grande influência, muitas de suas ações
ainda se inspiram, ao menos em parte, em motivos humanos
e egoístas. O pensamento de sua pessoa se impregna de­
n1asiadamente ao pensamento de Deus, impedindo que as
grandezas, a santidade e o amor de Deus as impressionem
vivamente.
71. Viver da fé é dirigir todos os atos, e não sõmen­
te alguns, para um fim sobrenatural. E' viver para Deus. E',
também, viver de Deus, pois é alimentar assiduamente o
pensamento com a lembrança das perfeições divinas; ·é vi­
vificar a vontade pela adesão completa e continua â von­
tade divina. Isto requer, não uma fé fraca e medíocre, nem
mesmo uma fé comum, mas uma fé forte e intensa, capaz
de comunicar à alma luzes que vão muito além dos tênu"es
vislumbres da razão. Assim essa vida da fé é uma vida mis­
teriosa, incompreensível àquelas que vivem da outra vida.
A operação da graça que a produz é misteriosa; as verdades
que alimentam a alma e pelas quais se orienta, são cheias
de mistérios; é, principalmente, cheio de mistério o seguinte
pensamento de Deus, que domina o homem de fé: Deus lhe
aparece como um ser insondável e quanto mais a idéia de
O_eus se eleva e se aperfeiçoa, mais profundo é o mistério
que a alma começa a entrever. E o homem de fé se vai fa­
miliarizando com essas profundezas misteriosas; percebe
que tudo o mais, tudo que não ultrapassa o alcance de sua

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inteligência, é superficial e de pouco valor; compreende que
só Deus é tudo; só Deus vê tudo; só Deus é sábio, e que
nossa pretensa sabedoria, ao lado da sabedoria divina, é
mera loucura.
Mas, para atingir tão alto grau de fé, urge renunciar
às apreciações humanas, dominar o orgulho da razão; acei­
tar, sem os compreender, os planos divinos; dar a Deus, sem
reserva, tudo quanto exigir; deixar-se conduzir cegamen­
te pela sua providência, chegando - se ele o pedir - a
praticar atos de virtude verdadeiramente heróicos.

li, OI eleitos da 16 vivL

72. Deus, querendo atrair Abraão mais intimamente a


si, disse-lhe: "Deixa teu país, teus parentes, a casa de teu
pai, vai para a terra que te mostrarei". Abraão já se eleva­
ra ao perfeito cumprimento da lei natural, e desempenhava­
se com fidelidade dos deveres comuns da vida, sem carecer
de luzes superiores; sua razão, esclarecida pela graça, in­
dicava-lhe o que era bom, honesto e justo; e lhe mostra­
va a Deus recompensando os bons e castigando os maus,
concedendo aos filhos dos homens seus benefícios e tendo
direito à sua gratidão e ao seu amor. Era a fé, sem dllvi­
da, mas a fé seguindo passo a passo a razão e não a fé
elevando-se acima dos dados da inteligência e mergulhando
nos esplendores insondãveis da Divindade.
Deus chamava Abraão a uma virtude mais alta. Exigiu,
portanto, dele atos heróicos de generosidade e confiança,
e submeteu-o a provas que desconcertavam a prudência
humana. Magníficas foram, sem dllvida, as promessas que
lhe fez, mas, para merecê-las, Abraão precisou trilhar ca­
minhos misteriosos, cheios de angíistia e de incerteza, vere­
das de· obediência cega. Sem lutar contra a Providência,
sem raciocinar, repetia somente, consigo mesmo, que Deus
é o ser santo, sábio, poderoso e bom. Sua submissão foi
perfeita, e lhe valeu abundantes luzes enquanto sua fé
se tornou tão viva que mereceu ser chamado o pai dos crentes.

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73. Abraão é a imagem do cristão perfeito. Este tam­
bcm deve deixar seu pais, isto é, a região dos sentidos e
da pura razão, para elevar-se a uma esfera superior; de­
ve renunciar às próprias luzes para receber as luzes divinas.
O Senhor lhe diz, como outrora ao pai dos crentes: Aban­
dona os baixos atalhos das reflexões humanas, sobe mais
alto, eleva-te até às paragens em que eu vivo; ai te fala­
rei, aí te ensinarei. Levaste até aqui uma vida honesta, ra­
zoável, aplaudida pelos homens; de ora em diante, anda em
minha presença, ao clarão de minha luz, e tua vida será
perfeita. Sobe até à parte superior, a mais nobre de teu ser,
e daí, divinamente alumiado, reina sobre os teus sentidos,
dirige a tua vida, e mostra-te filho genuíno da luz.
De onde te vem essa luz? Vem-te de Deus, que reside
cm ti, e em ti faz brilhar sua pura claridade i vem de Deus e
te revela Deus, o ser misterioso, incompreensivel, o ser
superadmirável, superadorável, diante do qual nada tens a
fazer senão calar-te e prostrar-te.
O' santa luz que a fé comunica, luz superior, apanágio
dos verdadeiros amigos de Deus, quão longe estás de ser
apreciada como mereces! Muito poucos são aqueles que te
recebem, que procuram o teu fulgor, que seguem os cami­
nhos iluminados por ti. Luz preciosa, incompreensivel como
2 Divindade de que emanas, nenhum espírito criado te pode
conter, nenhum gênio te pode compreender perfeitamente.
Tudo quanto iluminas reveste uma profundeza insondável;
os tesouros contidos numa Unica palavra de Deus, esclarecida
por ti, estão muito acima da inteligência humana, e quem
a examina ao teu clarão, confessa entrever algo apenas do
que essa palavra encerra.
Quando mostras as· virtudes sobrenaturais, elas sur­
gem belas, grandes, incomensuráveis e logo vemos, pelos
multíplices graus que manifestam, a parte mínima que pos­
suímos de cada uma delasj pudemos progredir dia a dia,
durante longos anos, na prática dessas virtudes, antes de
lhe alcançar a plenitude. Aqueles a quem esclareces, perce­
bcn1 então sua pobreza e gemem de sua miséria. Fazes ver,
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ao mesmo tempo, quanto os defeitos mancham a alma e,
ao teu fulgor, aparecem nódoas que os imperfeitos nem
sequer suspeitam, montanhas de imperfeições que escapam
aos cristãos vulgares. Não são falsas convicções, corno as
dos escrupulosos, que vêem o mal onde não existe, ou nãB
o vêem onde se encontra; o juízo dos escrupulosos é fal­
so e, se não o reformarem, não receberão luzes abundantes;
sua humildade não é profunda; muitas vezes, não passa de
uma humildade, que diminui a confiança em Deus, quando
nãO a suprime de todo (1). Os homens de fé, ao contrá­
rio, vêem claro; são esclarecidos pelo próprio Deus, a quem
basta revelar a verdade para incutir a humildade.
Os homens de grande fé têm, portanto, um profundo
respeito por Deus; formam um alto conceito de suas gran­
dezas, de seu poder, de sua sabedoria, de sua santidade, de
sua infinita bondade e têm também uma idéia elevada e
justa das perfeições da alma de Jesus, do amor de seu di­
vino Coração, das ternuras, da pureza, da santidade de Maria.
Que vastos e misteriosos horizontes do mundo espiritual
abrem-se aos verdadeiros amigos de Deus! Em que abis­
mos mergulham seu olhar. Eles mesmos não sabem expri­
mir o que vêem e o que sentem, porque são pensamentos e
sentimentos que a linguagem humana não pode traduzir.
Não sabem tampouco explicar o que lhes é dado compreen­
der do nada das criaturas, de horror ao pecado e das man­
chas causadas pelas menores imperfeições.
1) Grande é o erro de quem supõe que o escrúpulo denota uma.
fé arden.te. A ré a6 faz aderll' à. verdade, e, quanto maior for,
mais juatu serão as idéias a. reapeito dN perfeições divinas. Os
escru.puloaos - aquelea, ao menos, que não reagem vltoriosa­
meDte contra sua.a perturba,;;õea - têrn, ao contrário, uma noção
inexata d& justiça. de Deus, que julgam irritada por taltu involun­
táriu, e desconfiam d& bondade e do amor de Jeawi. lilstN ra1aas
convl01;óe11, de que ee a.llmenta o espirito, ofendem a De-Ull.
Neles a. esperança. é tão mediocre quanto a. fé, e diminuta tam•
bém é a caridade, pois, estando cont1nuamente reconcentra.doa,
atentoa à lembrança de suas faltas, fazem poucos a.tos de amor, e
eue rneamo amor é despido de energia, ji que ruas vezes consegue
fazer dominar o temor no cumprimento do dever.

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CAPITULO X

Dos meios de obter a fé perfetta:


A humildade, as leituras piedosas
Crrdo, Doml11t, tlllj11H lncrtdulitattm meam.
Eu creio, Senhor, mas ajudai a minha Increduli­
dade (Me �. 23).

L A humildade favorece os progressos da fé,


74. A quem é dada esta luz preciosa da fé? Quais são
os verdadeiros justos que vivem dessa fé perfeita? e que
devemos fazer para obtê-la?
A primeira condição para receber de Deus um acrés­
cimo de fé é a humildade. A fé nunca exige do crente um
ato desarrazoado, nunca ensina nada contra a evidência
dos fatos; todavia, se os mistérios propostos não contrariam
à razão, ultrapassam-na e humilham-na. A razão não pode
discutir a possibilidade ou a impossibilidade "de três pes­
soas distintas possuírem uma só natureza divina"; não lhe
cabe manifestar-se nem pró, nem contra, e já que Deus
o afirma, deve submeter-se. Dá-se o mesmo, não só com os
grandes dogmas, mas com muitas outras verdades e com to­
das aquelas que a fé esclarece, pois a fé pode projetar seu
brilho tanto sobre as obras de Deus como sobre os acon­
tecimentos em que intervém sua Providência. As almas re­
tas e humildes, que sabem ver a Deus em tudo, que lhe
discernem a ação nos fatos mais penosos, que, nas circuns .:
tãncias que mais desconcertam a razão humana, humilham­
se e adoram, praticam, de uma maneira excelente, a virtu­
de da fé e recebem em troca grandes luzes. Os soberbos, que

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só -pensam em si, que raciocinam em excesso, que querem
saber tudo, e opinar sobre todas as coisas, que não reconhe­
cem um limite à sua inteligência nem admitem que sua ciên­
cia não possa alcançar os caminhos divinos, são pouco es­
clarecidos por Deus. Por vezes mesmo, o orgulho da ra­
zão ocasiona revoltas em que a fé perece, pois é loucura
e audácia insolente querer medir e compreender a Deus.
De fato, com demasiada frequência, esquecemos a gran­
deza infinita de Deus, sua sabedoria sem limites, a profunde­
za impenetrável de sua ciência e a ínfima pequenez do es­
pírito humano. Tratamos Deus como urna criatura que, em­
bora excedendo-nos, se nos assemelhasse e com quem pu­
déssemos raciocinar e discutir. "Vossos pensamentos não são
meus pensamentos e vossos caminhos não são meus cami­
nhos", disse o Senhor. "Quanto os céus estão acima da
terra, estão meus caminhos acima de vossos caminhos e
meus pensamentos acima de vossos pensamentos" (Is 65, 8).
Querer compreender os planos divinos, apreender os desígni­
os, os juízos de Deus, seria tentar atingir com a mão a abó­
bada celeste e apanhar as estrelas.
Eis o que esquecem os cristãos que parecem querer
pedir contas a Deus da maneira pela qual governa o mundo;
que, diante dos acontecimentos que sua pobre inteligência
de criatura humana não compreende, se admiram, se escan­
dalizam, ou aparentam ceticismo; que, diante da narrativa
ele uma maravilhosa intervenção de Deus, em vez de verifi­
car prudente e imparcialmente se as provas são satisfató­
rias, mostram-se a priori desdenhosos, incrédulos, regateando
a Deus o direito de fazer sobressair seu poder e afastando,
o mais possível, e além do possível, toda explicação que
não seja puramente natural. Não compreendendo por que
Deus teria realizado um prodígio em tal ocasião, dizem que
não o deve ter realizado. O mínimo de sobrenatural parece
ser sua divisa e aplicam-na, na história da Igreja, não só­
mente aos acontecimentos presentes como também à Sagra­
da Escritura. Obscurecem as:sim a noção da Providência,
preocupados em explicar a marcha do mundo baseados ape-

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nas em razões humanas. Os fatos que se desenrolam sob
seus olhos não os fazem pensar em Deus; consideram os
homens, suas qualidades e defeitos, suas habilidades e ina­
bilidades, as intrigas e circunstãnci:is favoráveis ou desa­
gradáveis, e nada vêem além disso; não compreendem que
as causas segundas são instrumentos nas mãos de Deus que
governa o universo. E' fácil perceber em tudo isto obstá­
culos à dilatação da fé e quem tem estas disposições nun­
ca poderá se aplicar as palavras da Escritura: Jusl11s ex /i­
de vivit, "o justo vive da fé".
75. Por que será que tantos cristãos têm tamanha di­
ficuldade em se conformar com as provações da vida? E'
porque querem discutir em vez de aceitar cegamente a von­
tade divina; não querem lembrar-se do grande principio de
que, sendÔ Deus infinitamente sábio e nós essencialmente
limitados, não devemos discutir com ele, e sim adorar a
conduta da Providência e deixar-nos levar pelos caminhos
que nos traçou. Em tais pessoas a fé será forçosamente fra­
::a e débil.
Entre estas provações, existe uma, pela qual devem
passar todos aqueles que Deus chama a uma fé perfeita. E'
a desaparição das graças sensíveis, as privações espirituais,
os sofrimentos íntimos.
Em tão penosa crise, inúmeras almas não sabem in­
clinar o seu parecer e a sua vontade perante os decretos
da sabedoria divina; não sabem resignar-se, nem envere­
dar pelo eaminho que Deus lhes indica.
Quando, ao contrário, a razão se submete humilde­
mente, tudo se esclarece. Vemos então que a fé genuína, a
fé pura, é obscura e insensível, e que nela devemos per­
manecer sem ver, sem sentir, sem compreender; vemos que
as almas que buscam sempre o prazer e as doçuras no ser­
viço de Deus, se mancham, ficam cegas e se privam das
puras luzes da fé.
Eis o que a alma depreende quando curva o espírito
diante da sabedoria de Deus. Tendo empregado então, do
melhor modo possível, esse grande dom da fé, dela recebe

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um novo impulso, tornando-se-lhe, pouco a pouco, mais
fácil pensar nos atributos de Deus; saberá conhecê-los me­
lhor e melhor apreciá-los. Não nos cabe a nós dirigir, tan­
to quanto possível, nossos fracos olhares para esse ser imen­
so, infinito, digno objeto de nossos pensamentos, de nossas
recordações, de nossa admiração e de nosso amor? E não
devemos encontrar nossa suprema felicidade em pensar que
ele é tão grande que jamais poderemos entrever senão uma
parcela mínima de suas grandezas? e que só ele pode se
conhecer, admirar e glorificar segundo merece?

li. As leituras espirituais.

76. Mas onde encontrar elementos para conhecer a


Deus? Pensar nele é bom; n1as .não existirá algum doutor
que nos fale de Deus, e cujas lições possamos repassar e
aprofundar, ajudando nossa inteligência a elevar-se a Deus
e a comtemplar-lhc as inefáveis belezas?
Deus mesmo se revelou aos homens. Falqu. Sua pala­
vra é pão substância! que deve entreter em nós a vida da
fé. A doutrina que veio trazer ao mundo, as máximas de
seu evangelho, as lições que encerrou nos livros inspirados
por ele, os ensinamentos que nos transmitiu pela sua Igre­
ja, quer na liturgia, quer por escritos elos teólogos ou nos
sermões dos pregadores, os conselhos dos santos, tão re­
passados de seu Espírito, tal é o alimento sagrado que Deus
oferece às nossas almas·. E quanto mais nos nutrimos desse
alimento, tanto mais o saboreamos e quanto mais o recebe­
mos com pureza e humildade tanto mais se torna num fes­
tim forte e suculento.
Lex Domini immac.ulala converlens animas. "A lei de
Javé é perfeita e recreia a alma; os preceitos do Senhor são
justos e alegram o coração; a lei de Javé é pura e ilumi­
na o olhar; é mais preciosa que o ouro, que o ouro puríssi­
mo; e mais doce que o mel, que o mel dos favos" (SI 18).
Será apenas o texto da lei que o rei-profeta preten­
de decantar assim? Não é, certamente, mas nessa lei, que

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não era entretanto senão o esboço da lei evangélica, ele en­
contrava a palavra de Deus, a doutrina divina, e as ver­
dades, que lhe eram reveladas, transportavam-no de ad­
miração. Eis por que investigou, aprofundou esse livro da
lei, repassou-lhe as razões, tirou-lhe as consequências e
descobriu, assim, profundas verdades. A sabedoria divina
a ele se revelou, a ele aplicou a sua própria vida, comparou
os seus atos com as prescrições dessa lei santa, dirigiu sua
conduta pela luz do ensinamento divino, e obteve assim ex­
celentes regras de vida.
Esse estudo dos livros sagrados ensinou-lhe a melhor
conhecer a Deus, deu-lhe uma idéia cada vez mais alta e, por
conseguinte, cada vez mais justa, das grandezas divinas;
ele se extasia ao ver Deus tão condescendente para com o
homem, cuja miséria e cujo nada percebe melhor. Daí, os
gritos de admiração, as palavras de louvor que lhe brota­
vam dos lábios, a cada momento, mau grado seu. Domine,
Dominus nosler, quam admirabile esl nomen luum in uni­
versa terra. "Senhor, Senhor ilosso, quão admirável é o vosso
nome em toda a terra. . Que é, pois, o homem para que
nele penseis; que é o homem para que com ele vos
preocupeis?"
Os santos do novo Testamento, como os da antiga ali­
ança, examinaram as Escrituras, encontrando abundantes
esclarecimentos. Se todo livro que revela Deus aviva e au­
menta a fé, ilumina a inteligência e abrasa o coração, toda­
via os livros inspirados, nos quais é tão grande a parte de
Deus, oferecem, mais que os outros, um alimento salutar a
quem os lê com o devido respeito. Toda a Escritura divina­
mente inspirada, nos diz o apóstolo, é útil para ensinar,
para repreender, para corrigir, para instruir na justiça, a
fim de que o homem de Deus seja perfeito, habilitado pa­
ra toda a obra boa (2 Tm 3, 16).
Quem, no tempo de miséria, se alimenta de pão mistura­
do com palha, dificilmente prolongará sua vida lânguida;
quem, em vez de nutrir sua alma com leituras puras e sãs,
lê sàmente livros frívolos e r.evistas fúteis, não tardarã em

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ressentir os efeitos de tão funesto alimento; sua fé se en­
fraquece e se altera. Quem, sem excluir as boas leituras, re­
serva-lhes poucas horas, destinando outras, mais numerosas,
20s passa-tempos vãos ou às leituras profanas, jamais atin­
girá tão pouco a perfeição do espírito de fé.

m. A liturgia fonte de luz e de amor.


77. Depois da sagrada Escritura, indicamos a santa li­
turgia como sendo um objeto de estudos e um auxilio para
a fé. E', com efeito, uma fonte de luz, um foco de calor,
ao alcance de todas as almas e pela qual todas deveriam sen­
tir como que uma atração natural. Todas as almas são fi­
lhas da Igreja. Ora, o Espírito Santo, que anima e dirige
essa Esposa dileta de Cdsto, habita também, pela graça, qual
hóspede suave, no coração do cristão, cujo impulso desejaria
regrar. Que são os inefáveis gemidos que nos faz ouvir com
frequência, senão convites· insistentes para vivermos da vida
de sua Igreja, para rezarmos com ela, e nos saturarmos de
seu espírito? Ditosa a alma que aceita este convite! Oferece
então, em união com a Igreja de Cristo, a oração mais
agradável ao ouvido e ao coração de Deus, e, portanto, a
mais poderosa. Oesaltera-se, não em uma fonte particular
e humana, mas no grande rio que deleita a cidade de Deus,
e no qual reside o espírito de oração. E que conhecimentos
ele Deus e dos mistérios de nossa santa religião não lhe re­
serva a vida litúrgica! Càbe-nos aqui deixar falar aquele
que, após haver trabalhado e lutado por introduzir a litur­
gia na França, interpretou-a com tanta ciência e tanto amor.
"Que é a liturgia, escreveu Dom Guéranger, senão uma in­
cessante afirmação, senão uma solene adesão aos atos di­
vinos que se cumpriram uma vez, mas cuja realidade é
inatacável, porque, desde então, cada ano, a sua lembrança
C renovada? E' o ciclo divino em que brilham, cada qual
em seu lugar, as obras de Deus: o setenário da criação, a
pãscoa e pentecostes do povo antigo; a inefável visita do
Vcrho Encarnado, seu sacrifício, sua vitória; a descida de

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seu Espírito; a divina Eucaristia; as glórias indescritíveis
da Mãe de Deus, sempre virgem; o esplendor dos anjos;
os méritos e os triunfos dos santos. Não há um só ponto
da doutrina cristã que não seja, não sõmente enunciado no
decorrer do ano litúrgico, mas inculcado com a autoridade e
a unção que a santa Igreja soube depositar em sua lingua­
gem e em seus ritos tão expressivos. Assim, de ano para ano,
a fé do cristão se esclarece, o seu senso teológico se for­
ma, a oração o conduz à ciência. Os mistérios continuam mis­
térios, mas seu esplendor é tão vivo que o espírito e o co­
ração se sentem enlevados, e ele se faz uma idéia das ale­
grias que lhe dará a contemplação dessas belezas divinas,
que, através das nuvens, já lhe causam tantos encantos.
"De fato, quais foram as épocas de grande fé e de
grande ciência religiosa? Aquelas em que os fiéis mais vive­
ram da vida da Igreja, sua mãe, mais rezaram unidos a ela,
mais fielmente lhe observaram as festas e as cerimônias.
Assim, iniciados no ciclo divino dos mistérios do ano cris­
tão, os fiéis sabiam os segredos da vida eterna, e, muitas
vezes, sem outra preparação, tal homem era escolhido para
ser sacerdote, ou pontífice mesmo, a fim de derramar so­
bre o povo cristão os tesouros de doutrina e de amor reco­
lhidos em sua fonte...
"E que manancial de progressos para a alma do cris­
tão, quando o objeto da fé surge cada vez mais luminoso,
quando a esperança da salvação lhe é como que imposta pe­
lo espetáculo de tantas maravilhas operadas pela bondade
de Deus em favor do homem e quando o amor nele se in­
flama sob o influxo do Espírito divino, que estabeleceu a
Liturgia como centro de suas operações nas almas! Não
será a formação de Cristo em nós o resultado da comunhão
a seus diversos mistérios, gozosos, dolorosos e gloriosos?
Ora, esses mistérios penetram em nós, incorporam-se a
nós cada ano, pelo efeito da graça especial que traz sua co­
municação à liturgia, e o homem novo se estabelece insen­
sivelmente sobre as ruínas do antigo. Se é mister que a im­
pressão do tipo divino seja favorecida em nós pela apro-
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ximação entre os membros da familia humana que me­
lhor a realizaram, não nos vêm o ensino prático e o ânimo dos
nossos queridos santos, cujo ciclo é como que estrelado?
Contemplando-os, descobriremos o caminho que leva a Cris­
to, assim como Cristo nos oferece, em si mesmo, o caminho
que leva ao Pai ...
"Que a alma, esposa de Cristo, prevenida pelo desejo
da oração, não receie abater-se à borda dessas águas ma­
ravilhosas da liturgia, que ora murmuram qual regato, ora
rolam, roncando qual torrente, ora inundam, qual mar. Apro­
xime-se a alma e beba da água límpida e pura que jorra até
a vida eterna, pois essa água dimana das próprias fontes, e
o Espírito de Deus a fertiliza com sua virtude, a fim de
torná-la doce e nutritiva ao cervo sedento" ( Ano litúrgico,
Prefácio geral).

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CAPiTULO XI

Do aumento da fé pela boa cUreção


das faculdades da alma

Dlnrunt aposloli Domino: adaa,:e 1101.>f:,1 flde111


O;: apóstolo� dlsseran1 3(1 Senhor; �11ment1i-no1
a f� (l.t 11. �).

J. Devemos prestar contas a Deus do 1110 de nossas faculdades.

78. Deus falou, e sabemos onde encontrar a sua pa­


lavra. Uma vez de posse de sua doutrina, como nos deve­
mos dela alimentar? Enriquecidos com o precioso dom da
fé, como o fazer frutificar? Qual deve ser o trabalho de nossa
alma, quais as faculdades que devemos exercer a fim de
multiplicar os atos de fé e aperfeiçoá-los sempre mais?
E' na inteligência que penetra a luz divina; entra pe­
la parte superior da alma e daí se estende às potências in­
feriores. Mas estas potências inferiores precisam dispor-se a
recebê-las desprendendo-se, tanto quanto possível, das coi­
sas profanas e procurando aquilo que é santo. Assim a har­
monia será perfeita e a luz divina, em vez de ser repelida
por inimigos inconciliáveis, será atraída em todos os recessos
da alma, penetrando-a inteiramente, tornando-a, por con­
seguinte, pura e bela. Quis potest facere mundum de immundo,
"como tornar puro o que é impuro?" (Job 14, 4). Isto per­
tence a Deus que, derramando a luz purificadora da fé na
alma humana, comunica-lhe uma pureza e uma santidade à
semelhança- de sua própria pureza e santidade infinitas.

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79. Devemos, portanto, antes de tudo, não tolher a ação
fecunda do Senhor; devemos regularizar e governar as facul­
dades de nossa alma, de maneira a permitir e favorecer as
operações da graça.
Ai de nós! Quantas faltas a este dever! "Senhor, vós
me havieis confiado cinco talentos, eis aqui mais cinco que
ganhei fazendo render os primeiros", dirá o servo bom e fiel.
Os talentos que Deus nos confia são antes de tudo, segun­
do São Gregório, as potências de nossa alma; se não lhes
soubermos fazer render algum proveito, seremos condena­
llos como o servo infiel.
Essas potências da alma não podem permanecer ocio­
sas; e produzirão, necessàriamente, obras, quer de salva­
ção, quer de perfeição. Se produzirem obras de salvação, -
frutos de amor, - serão devidamente recompensadas, e
cada uma receberá seu justo salário. Magníficos espetáculos,
doces harmonias, suaves perfumes, puras caricias, ou, mais
exatamente, alegrias espirituais adequadas a essas di­
versas sensações, serão a recompensa da modéstia dos olhos
e da guarda dos sentidos; a inteligência, que se tiver ali­
mentado na terra com o pensamento de Deus, ficará enle­
vada com os conhecimentos admiráveis que lhe serão dados
sobre a divindade; a vontade, que tiver amado a Deus, en­
contrará, num amor exatamente proporcionado ao que te­
ve no mundo, a medida de felicidade de que gozará eterna­
mente.
80. Deus será tão justo quão bom na recompensa, e
tão terrível quão equitativo no castigo. Torturas variadas,
correspondentes a cada um dos olhares ilícitos, dos can­
tos obscenos, das conversações culpáveis, dos contactos im­
puros, serão infligidos àqueles que abusaram dos sentidos.
Recordações cruéis punirão aqueles que macularam a me­
mória. Mas sobretudo as faculdades superiores, a inteligên­
cia e a vontade, serão a fonte dos tormentos do condenado.
Assim como é preciso considerar estas duas faculdades pa­
ra compreender cm que consiste a felicidade essencial do
eleito, que será feita de conhecimento e de amor, assim

IOJ

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também é preciso considerar o que a inteligência e a von­
tade se tornarão no inferno, para compreender em que con­
sistirã a pena essencial que aumentará segundo a culpabili­
dade do réprobo. Rejeitou a luz? - a luz o perseguirá, tor­
turando-o. Na terra a luz deleita os olhos sãos e fere os
doentios. Na outra vida uma luz mais brilhante encantará
o .eleito mais merecedor, enquanto uma luz mais abundan­
te punirá o condenado mais culpado. Os demônios mais in­
teligentes foram, na hora da revolta, os mais perversos; na
morada do eterno suplicio continuarão a ser os mais in­
teligentes e por isto mesmo os mais infelizeSj compreendem,
melhor que os outros, o que é a eternidade; seu olhar pe­
netra mais avante na série interminável dos séculos cm
que durarão suas tortui-as; compreendem melhor, principal­
mente, o tamanho e o valor dos bens que perderam; ava­
liam, portanto, melhor a extensão de sua desgraça. Assim
o condenado será esclarecido pela justiça de Deus na medi­
da em que tiver sido esclarecido na terra por sua misericór­
dia; e sua inteligência será torturada pelas luzes vingadoras
que a inundarão, mau grado seu, na medida em que tiver abu­
sado das luzes recebidas.
Sua vontade afastou a Deus e apegou-se ao pecado.
Então, conforme a culpa, será o castigo. Se procurou com
sofreguidão os bens ilícitos e enganadores, ansiará agora
pela felicidade suprema que lhe será sempre recusada; te­
rá uma sede de gozo, proporcionada aos gozos proibidos
que livremente aceitou na terraj e quanto maior for essa as­
piração, sempre decepcionada, maior será seu tormento.
O tormento da vontade virá também do ódio sempre
insaciado. Com efeito, toda a natureza achando-se revolvida,
a potência de amor torna-se em potência de ódio: ódio a
Deus, ódio a tudo que é bom, ódio também aos companhei­
ros de infortúnio; esse desgraçado não saberá mais se­
não odiar e seu ódio será proporcionado à sua malícia e
às faltas cometidas. Assim como o amor satisfeito fará a
felicidade do eleito, assim também o ódio insaciado âo con­
denado será o seu suplício.
104

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O condenado comprazia-se em si mesmo, na força de
sua inteligência, na energia de sua vontade? Ver-se-á en­
tão cm todo o horror de sua fealdade: as potências de que
tanto se ufanava, deformadas, falseadas, a inteligência pro­
curando o erro, sofrendo com a verdade, a vontade odiando
tudo quanto é bom e visando o mal sem poder nele se com­
prazer; terá o horror de si mesmo e sofrerá por não. poder
esconder-se aos seus próprios olhos.
81. Não são somente os réprobos que encontrarão nos
dons que receberam, nas faculdades da alma de que abusa­
ram, a origem de suas penas; as almas do purgatório tam­
bém, pagando sua dívida para com a justiça divina, serão
punidas segundo os seus pecados. Mas essas almas, queridas
de Deus, encontrarão, ao mesmo tempo, alivio a seus males
nas faculdades que souberam empregar para o bem. Aquelas
que procuram alimentar o espírito com pensamentos de fé
e submeter a vontade ao querer divino, receberão, no meio
dé seus sofrimentos, grandes consolações, por meio de lu­
zes que lhes manifestarão com maior clareza a justiça e a
bondade de Deus, e pelo amor ardente que sentirão pelos
decretos de sua sabedoria ( 1).
E', pois, da maior importância para um cristão, fazer
bom uso das faculdades de sua alma, porque, então, lhe
valerão tesouros preciosos; ao contrário, ser-lhe-ão pedidas
rigorosas contas.
1) Os autores que tratam do purgatório, depois de lhe pintarem
u aorrlmentu borrivei1, falam daa alegrlu que u alma ali
experimentam. O pen1amento de que estã a1■egurada sua aalva­
ç.io, & neceuldade que aentem de expiar aeua pecados, toma os
sofrimento■ mala suportáveis. Parece-nua, entretanto, rnale jus­
to não afirmar que toda, indiaUntamente, experimentem verdadei­
ras alegrias. Aquelu que viveram na canelante p.reocupa.çi.o de ai.
mumaa, na buaca dos go.zoe terreno■, que abuaa.ram multo du
graças, serio vlUmas de amargos peeares que, ao menos no prin­
cipio de sua atada no lugar de expiação, não lhes permttlri.o o
gozo de suaves alegria. Aquelas, ao contd.rlo, que amaram o­
sacrlficio, que encontraram aua felicidade na terra dedlcando-ae­
à glória de Deus, que suspiraram pelo du enquanto lament&vam
sua ligeiras fraquezas, sentem-e felizes cm ver aproxlmar-ae
a hora da recompensa, felizes principalmente em eatlafazer a jus­
tiça divina, e essas alegrias podem ultrapanar os sofrimentoe.

105

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li. Subordinação das diversas potências da alma.

82. Que dom magnifico nos fez o Senhor, dotando-nos


com esse conjunto de faculdades, que se auxiliam mittua­
mente, se completam, e nos proporcionam a realização de
tão belas obras! Há entre essas faculdades gradação e subor­
dinação e as menos nobres são servas das outras. Os sen­
tidos exteriores são como que os provedores dos sentidos
interiores. Com efeito, a imaginação alimenta-se daq11ilo
que os olhos vêem, e a memória se povoa com aquilo que
os ouvidos ouvem. Então, os diversos objetos percebidos p!!­
los sentidos exteriores, relembrados pelos sentidos interiores,
solicitam a vontade, despertando-lhes atrativos e desejos;
a inteligência julga e aprecia, e a vontade decide.
Se a vontade atua em (1ltimo lugar, governa cm com­
pensação o exercício das outras potências; pode ordenar­
lhes e proibir-lhes a ação. A mão muito auxilia o serviço dos
sentidos; fornece ao gosto os alimentos; coloca diante dos
olhos o livro a ser lido; locando um instrumento faz che­
g.rr ao ouvido do artista sons que o deliciam; afasta os ob­
jetos que desagradam; antepõe-se aos olhos para esconder
um espetáculo que os distraia; preserva os ouvidos quando
algum som desagradável ameaça atingi-los. Se recusar seu
concurso, ou não o puder dar, os sentidos sofrerão gran­
des privações.
O que a mão faz, a vontade pode fazer melhor ainda;
para ser mais exato, todos esses movimentos da mão obe­
decem à vont:ide. Não é sõmente aos sentidos exteriores. é
também às potências interiores, que ela fornece ou recu_sa
os alimentos. Determina-lhes os atos, escolhe os pensamen­
tos com os quais a memória deverá, de preferência, se en­
treter, coloca diante da imaginação os quadros que lhe agra­
dam, aplica a inteligência a tal cálculo, a tal estudo, ao seu
hei prazer; é, numa palavra, rainha, ordena e faz-se obedecei•.
83. Enquanto a vontade não exerce este direito de rea­
leza, tudo quanto se passa nas outras pot�ncias é despii;ioJ
de valor. E' mister que o exercício dessas potê-ncias sej:\.
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dirigido pela vontade para ter, aos olhos de Deus, qualquer
mérito. Debalde virão luzes brilhantes iluminar-me a in­
teligência; se minha vontade permanec�r indiferente, nulo
será meu mérito. Se, ao contrário, a vontade as aceitar, se
se alegrar e se decidir a segui-las, essas luzes esclarecerão
minha inteligência e serão para meu espírito um alimento
substãncial e todo divino; minha alma ficará reconfortada;
minha fraqueza de criatura humana, transformada em força;
minha malícia, trocada em bondade; minha indignidade, mi­
nha impureza de criatura, substituídas pela santidade que
a graça comunica.
E', por conseguinte, muito importante o papel da von­
tade, pois sua intervenção decide do mérito ou da culpa­
bilidade dos atos das demais potências. Mas para que pos­
sa desempenhar convenientemente sua missão, deve se go­
vernar a si mesma pelas luzes da fé. Estas luzes penetram
a inteligência, são aceitas pela vontade, e esta, por elas es­
clarecida, governa em seguida as outras potências e lhes
dirige os atos para o fim sobrenatural, que é Deus.

Ili. Desordens causadas pelas facukiades inferiores quando pre·


dominantes,

84. Tal a ordem estabelecida por Deus. Aqueles que a


não respeitam - e são infelizmente muito numerosos -
introduzem a desordem cm si e em toda a sua vida. Assim
fazem os que colocam os sentidos exteriores e os interiores
em primeiro plano e a inteligência e a vontade em segundo.
Então as faculdades inferiores, que temos em comum com
os animais, tornam-se ·soberanas, e as faculdades ang1fü­
cas, escravas. Que derrocada!
No principio da vida espiritual, essas potências infe­
riores, que pertencem tanto ao homem como ao animal, os
sentidos, a imaginação, o apetite sensitivo, são, natural­
mente, muito ativas e exercem, sobre aqueles que iniciam
uma vida de piedade, influência preponderante. Para qu;.:
as verdades da fé possam impressionar fortement� tais

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pessoas, ê necessário, ou que atinjam os sentidos exteriores,
ou movam a imaginação; é preciso tambêm suscitar emoções
suaves na parte sensível, chamada pelos doutores de apetite
sensitivo; as faculdades superiores ainda não libertadas ca­
recem de força para agirem por si mesmas. Será preciso,
por exemplo, que os cantos, as belas cerimônias, as ima­
gens piedosas, impressionem os ouvidos e a vista, ou que
a imaginação, evocando certos quadros, venha em auxílio
da razão; será preciso que o coração se enterneça, a fim
de facilitar fervorosas resoluções, e generosos sacrificios.
85. As pessoas, cuja sensibilidade é ainda forte, não
compreendem infelizmente que o seu estado é um estado in­
ferior e imperfeito; julgam os seus sentimentos justos e
necessários, atribuem às emoções de alegria ou de tristeza
uma importância que, certamente, não têm; tomam a sen­
sibilidade por amor e pensam não amar mais �uando nada
sentem, e amar muito quando experimentam fortes emoções;
não querem reconhecer que esses fenômenos sensíveis se pro­
duzem na parte baixa de sua natureza e que, muito menos
nobres que os atos da razão e da vontade, não devem pre­
ceder o exercício destas faculdades, mas acompanhá-lo e
ser-lhe inteiramente submissas.
Se a alma, portanto, não sai senão dificilmente desse
estado inferior, em que dominam a imaginação e a sensi­
bilidade, é precisamente porque, em geral, não quer sair de­
le. Acham-no tão natural. Todavia, se aqueles que se en­
contram neste estado quissessem refletir sobre os males que
lhes causa a sensibilidade, e sobre os erros a que os arras­
ta a imaginação, verificariam a necessidade de reprimir
essas faculdades e governá-las pela razão e por uma gran­
de força de vontade. Quando a sensibilidade se comove, a
imaginação logo se aquece e o raciocínio se turba; deixa­
mo-nos enganar pelas impressões, iludir pelas simpatias ou
antipatias; tomamos nossos desejos e receios como realida­
des; cedemos ao entusiasmo ou então ao abatimento; a
pobre razão não sabe mais discernir; a vontade não é mais

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soberana, mas precede cegamente, e as decisões que toma
são, não raras vezes, funestas.
Em uma pessoa por demais sensivel, a imaginação per­
turba, com frequência, o raciocínio, exagerando tudo quan­
to lhe apresenta. Tal pessoa assusta-se com as menores
provações; suas cruzes parecem-lhe muito má.iores e mais
pesadas do que na realidade são; amplia as menores ten­
tações; aprecia inexatamente os fatos que a impressionam,
quer sejam bons, quer não, mormente se lhe forem pessoal­
mente favoráveis ou desfavoráveis, dando-lhes uma repercus­
são que não têm e dcixando:.se levar antes pelas impressões
que pela razão.
A uma impressão, sucede fàcilmente outra. Assim, aque­
les que, em vez de governarem a sensibilidade e a imagina­
ção, se deixam por elas governar, são fatalmente volúveis
e inconstantes; passam depressa da alegria à tristeza, da
confiancia ao desânimo; hoje estarão de bom humor, cheios
de coragem e ardor, pois tudo lhes sorri; amanhã, estarão
lúgubres, sem entusiasmo, sein energia, entregues às idéias
mais negras; um incidente sem importância, uma pequena
contrariedade, umas referências nem sempre exatas, por ve­
zes uma ligeira indisposição motivaram tal mudança para
a qual a razão em nada concorreu. A imaginação e a sen­
sibilidade, Cinicamente, ocasionaram essa reviravolta e, em
breve, acarretarão outras.
86. E' verdade, e o repetimos, que, se a imaginação se
inflama e a sensibilidade se enternece para o bem, estas
duas potências auxiliam a prática da virtude, e produzem
obras meritórias, mas a parte da fé é fraca demais para
que o mérito seja grande. O mérito provém da fé que está
na inteligência, e do amor que está na vontade e nada de­
ve nem à imaginação nem ao sentimento. Ora, nas pessoas
de quem tratamos, a inteligência e a vontade desempenham
apenas uma ação restrita; as luzes da fé não lhes serão,
pois, dadas em abundância; sua inteligência será pouco es­
clarecida e sua vontade procurará o bem com uma firme-

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za mais aparente que real, porquanto cm seu manifesto ar­
dor hâ maior sobreexcitação que energia.
Quando a piedade for sõ sentimental, será por isso
mesmo superficial; a vontade poderá experimentar, de vez
em quando, vivos impulsos para o bem, mas habitualmente
serâ mole e sem força; dai, apesar de entusiasmos passa­
geiros, muitos desejos ineficazes, muita inconstância e pou­
ca virtude sólida. Não basta, portanto, possuir um coração
afetivo, ser sensível aos sofrimentos alheios, ter pendor pe­
la dedicação; se tão belos dons não forem esclarecidos por
\•ivas luzes, se não forem acompanhados de uma energia vi­
ril, de um pleno domínio sobre si, aquele que os recebeu po­
de tornar-se sentimental, apaixonado, sujeito a impressões
ilógicas; terá entusiasmos fúteis e manifestará ardor pelos
trabalhos ou pelas obras que forem do seu agrado; será
muito fraco em se tratando dos verdadeiros deveres.

IV. Como devemos fortalecer as faculdades mais nobres e aabmeter


as potfadas Inferiores.

87. Para vivermos verdadeiramente da vida da fé, de­


vemos colocar cada uma das nossas faculdades em seu lu­
gar e, antes de tudo, desconfiar de nossa imaginação, re­
calcar nossas emoções, combater nossas impressões, sub­
jugar nosso entusiasmo e dominar nosso gênio. Ao mes­
mo tempo devemos fortalecer nossa razão, pesando fria­
mente todas as coisas, agindo sempre com prudência e cir­
cunspeção e rezando antes de tomar qualquer decisão.
E' preciso também tornar a vontade muito enérgica, fa­
zendo-a praticar, por amor a Deus, atos que lhe custem.
De outra maneira, a alma se contentará com veleidades, com
desejos ineficazes, que adormecem a consciência e não têm
sequer o valor de um pequeno esforço. Em vez de dizer­
mos resolutamente: quero, custe o que ct1star, praticar a hu­
mildade, a renúncia, a mortificação; em vez llc traduzir cm
atos a sinceridade destas resoluções, basta-nos dizer: qui­
sera ser humilde e mortificado. E já porque sentimos em

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nõs esses desejos, julgamos possuir excelentes disposições.
Pilatos, pensando consigo mesmo: "Gostaria muito de sal­
var este justo", lavou as mãos e julgou-se inocente. Assim,
aqueles que não têm senão veleidades, acreditam-se virtuosos
e não passam de covardes.
São covardes também aqueles que, perante deveres pe­
nosos e árduos, porém necessários, esquivam-se, alegando
ser-H1es impossível, e não estar em seu poder praticar tal
ato de virtude. Se conseguem iludir-se a si mesmos e descon­
fiar da força que Deus lhes pôs no fundo da alma, se re­
cusam empregar toda sua energia para vencer as repugnân­
cias da natureza, então sua vontade, longe de se fortificar,
se entorpece; não é mais rainha, mas escrava.
Este dever de fortalecer a vontade obriga ainda aque­
les que são sujeitos a acessos de excitação nervosa a bem
se acautelarem. Os nervos vão exercendo ascendente do­
mínio na medida em que lhes cedemos; quem não procura
dominá-los, perde, em parte, seu livre arbítrio e a vontade
atrofiada torna-se incapaz de praticar as virtudes perfeitas.
88. E' mister, enfim, prestar-se à ação de Deus, quan­
do, na hora marcada por ele, após um período inicial de
fervor sensível cm que o ardor do entusiasmo facilitou a
prática da virtude, retira à alma o sentimento, para lhe co­
municar, pelas faculdades superiores, graças muito mais ele­
vadas. E' um momento penoso. A ação das potências su­
periores, quando se produz sem o concurso das faculdades
sensíveis, se subtrai, sobretudo no princípio. A alma parece
não fazer coisa alguma, e estar despida de fé, de esperança,
de amor. Muitos cristãos não querem então desprender-se
do sensivelj não se resignam a permanecer na arid"ez, a
servir a Deus sem gozar das consolações da piedade; pro­
curam ta!Vez outras consolações, ou, ao menos, não se apro­
ximam tão amitldo de Deus; diminuem o tempo consagra­
do aos exercícios piedosos, principalmente à oração, ou os
desempenham com negligência. Deixam-se absorver pelas
obras exteriores, e as grandes virtudes que unem a alma
a Deus, - a fé, a esperança e a caridade - não se de-
111

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senvolvem mais. Não poderão atingir a expansão perfeita
que Deus lhes reservava.
As almas fiéis, ao contrário, apegam-se tanto mais a
Deus quanto mais ele parece se esquivar; afastam fielmen­
te os pensamentos profanos aptos a importuná-las, e voltam­
se continuamente a Deus; aceitam de bom grado a pri­
vação de todo gozo sensível i são tão assíduas em perma­
necer diante de Deus na aridez e na impotência, como ou­
trora nas doçuras da oração; contentam-se com simples atos
de fé, que multiplicam, sem prazer, mas sem relaxamen­
to, e com atos de submissão à vontade divina, adorando-a
e bendizendo-a, por mais que lhes contrarie a própria von­
tade. Então a fé se purifica, se desenvolve, se fortalece e
Deus derrama na alma novas luzes. Não é porque reflete,
ou raciocina, que a alma se enriquece com dados precio­
sos, ou adquire convicções mais profundas. O Senhor mes­
mo a ilumina, comunicando-lhe uma visão espiritual mais
perspicaz e mais extensa, e fá-la penetrar muito avante nas
verdades que, já conhecidas 1 se tornam agora muito inten­
sas. A fé, mais luminosa, brilha com maior fulgor e influi
poderosamente sobre toda a sua conduta.

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CAPITULO XII
Do recolhimento e da união a Deus

ln oninlbu� vi/$ tu.Is ro�lo 1/lum ,·t ipir ,#iri�I


,:,,.uua tu.os.
l'c11sa no Senhor c111 1odot 11s leu& cami11l1os e
�lc te dlrt1irá os pnsos (l'v :1. t.i),

J, A lembrança de Deus, principio necessãrlo da fé.

89. Para obter essa vida de fé perfeita, não basta re­


nunciar às doçuras sensíveis. E' preciso, ainda, afastar do
espírito, tanto quanto possível, todos os objetos e as soli­
citudes profanas, e alimentar assiduamente a alma com pen­
samentos de fé. E' preciso, numa palavra, alimentar a al­
ma só de Deus, aspirar e rcs()irar Deus.
A respiração impõe-se à vida humana. Esse fenôme­
no maravilhoso, que só não excita nossa admiração por ser
habitual, nos faz encontrar, na atmosfera, o princípio salu­
tar que nos purifica o sangue e nos comunica calor e vida.
Se essa função indispensável se produz normalmente, é in­
dicio de que o corpo está são e os órgãos em bom estado.
Se o ar que aspiramos é puro, seco e vivo, a sallde se con­
serva e, às vezes, melhora; se, ao contrário, é í1mido e cheio
de miasmas, a saúde se altera e pode advir a morte.
Deus é o princípio vivificante da alma fiel. Ela deve
aspirá-lo constantemente, procurar nele, isto é, em sua lem­
brança e em seu amor, a conservação e a perpétua renovação
de sua vida espiritual. Só respiramos o que aspiramos, e
os pulmões expelem o ar de acordo com o volume recebido.
Assim, só respira Deus e espalha em torno de si os perfu-

113

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mes divinos quem aspirou Deus, e o respira na medida em
que o aspirou. Quem se contentar, cada dia, com raras as­
pirações terá uma vida espiritual fraca e lânguida, e, se
não se impregnar, senão de longe em longe, dos perfumes
divinos, como poderá trescalá-lo o dia todo?
E' grande o erro dos que pensam permanecer unidos
a Deus pela conformidade da vontade, mas que o perdem
de vista durante um tempo considerável, pois, insensivelmen­
te, se afastam dele; a atmosfera do ambiente em que vivem
penetra-os pouco a pouco; as preocupações naturais, superan­
tes, os invadem e absorvem, a vontade dé servir a Deus,
sem ser destruída, é comprimida e não exerce mais senão
uma influência ligeira e intermitente sobre os atos da vida.
E assim a vida espiritual declina, substituída finalmen­
te por uma vida toda natural, ou quiçá toda mundana.
Quem chega ao ponto de nunca mais aspirar a Deus, de se
alimentar exclusivamente com o ar viciado do século, quem
nas conversações, nos pensamentos, nos sentimentos aspira
tão sàmente os miasmas contaminados pelo pecado, só po­
de exalar um .hálito impuro. Desgraçado de quem dele se
aproxima; corre o risco de se contagiar e de lhe pegar a
horrlvel enfermidade.

11 Luta contra os pensamentos inúteis.

90. Que vigilância incessante se impõe, por conseguin­


te, a quem quer viver da vida da fé! Deverá reprimir a ati­
vidade do espírito; lutar contra a onda de pensamentos frí­
volos que o invadem, mau grado seu; guardar o silêncio in­
terior, muito mais difícil e mais importante que o silêncio
exterior. E' a grande luta das almas que aspiram à vida per­
feita; aquelas que não souberam sustentar essa luta, nun­
ca poderão viver da vida da fé, nunca atingirão a perfeição.
Diversos e numerosos são os pensamentos que per­
seguem o pobre espírito humano. Incidentes insignificantes,
despidos de importância e que deveríamos esquecer logo
que passam, voltam-nos à memória, sugerindo-nos as mais

114

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inúteis reflexões. Preocupam-nos fatos que em nada podemos
modificar. As faltas do próximo, suas inabilidades, seus
erros, excitam nossa indignação e recriminamos interior­
mente contra nossos irmãos, em vez de pedirmos a Deus
que os ilumine e corrija. A política também nos fornece seu
contingente de considerações vãs, pois não modificam de
modo algum a marcha dos acontecimentos. Mas são prin­
cipalmente os casos pessoais que formam o objeto de nossas
divagações: detemo-nos em considerar as críticas que so­
fremos ou podemos vir a sofrer, os elogios que julgamos
merecer; imaginamos como poderiamas ter procedido em tal
circunstância e que resultado teríamos obtido. E como são
tenazes e loucos esses pensamentos vãos! afastados, voltam,
quais moscas importunas que não podemos afugentar; re­
começam o mesmo zumbido, repetindo. sempre o que já
disseram.
Ainda mesmo quando são legitimas, tais cálculos, se
forem prolongados, se tornarão inúteis. E' por certo lou­
vável refletir sobre os meios de cumprir bem com as nos­
sas obrigações, estudar as medidas a tomar, pesar as con­
sequências de nossos atos; uma vez, porém, que examina­
mos ponderadamente e traçamos o caminho a seguir, a re­
petição desses cálculos se torna uma inútil preocupação de
espírito, e geralmente vem provar que nos inquietamos mais
com o êxito pessoal e com as humilhações possíveis, do
que com o desejo de agradar a Deus.
Se nos basta uma meia hora de reflexão e todavia pas­
samos a metade do dia a repetir as mesmas objeções e as
mesmas respostas; se recaímos sempre nas mesmas preo­
cupações; se fazemos constantemente brilhar diante de nos­
sos olhos as mesmas esperanças, quanto tempo perdido!
91. Que esse trabalho de espirita seja, as mais das ve­
zes, inútil, todos o convêm; que seja prejudicial ao progres­
so na virtude, todas as almas fervorosas o reconhecem e
lamentam; poucos, porém, são aqueles que empregam, nes­
sa repressão, a necessária coragem e energia. A mortifica­
ção da imaginação e da memória é mais rara do que as

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austeridades corporais, todavia tão pouco apreciadas. E'
que essa mortificação é mais árdua, mais penosa. Aqui, po­
deriamos aplicar, desviando-o um pouco do seu significado
original, o princípio de São Francisco de Assis e de San­
to Inácio: "Sede qual cadâ\•er", perinde ac cadaver,· sede
qual morto a todos os acontecimentos da terra, aqueles,
ao menos, que não vos dizem respeito, ou aos quais nada
podeis alterar; não presteis senão ligeira atenção a tudo que
acontece, atenção suficiente apenas para cumprir com os de­
veres sociais e não parecer um estranho entre vossos ir­
mãos; não vos apliqueis senão ao que é de vosso encargo
e que essa aplicação seja livre de toda contenção, de to­
da solicitude inquieta. Voltai, finalmente, a Deus vosso es­
pirita desprendido dos pensamentos terrenos.

OI. O espirilo deve alimentar-se de pensamentos santos.

92. E', com efeilo, impossível manter a inteligência


em completo repouso; o espírito trab;llha incessantemente
e o pensamento lhe é tão indispensável como a respiração
aos pulmões. Conforme a observação dos religiosos do de­
serto, transmitida por Cassiano (Conf. 1, 8), nosso espírito
C como um moinho, cuja roda, impelida pela água do rio,
comunica às mós um movimento contínuo. Se não está no
poder dos mortais suspender o curso dos riachos, depende,
porém, da vontade do senhor do moinho fazer moer tri­
go, cevada ou joio. Do mesmo modo, podemos apresentar
ao nosso espírito considerações fi1teis, ou reflexões saluta­
res. Nem sempre, é certo, seremos senhores absolutos do es­
pírito, que, mau grado nosso, se entreterá com bagatelas e
futilidades: é o joio que o invade. Mas outras vezes podere­
mos ditar o objeto de seu trabalho e obrigá-lo a produzir
alimentos puros e fortificantes, aptos a nutrir o coração.
93. Que pensamentos devemos preferir, entre aqueles
que nos podem ocupar a inteligência? Devemos consultar
as inclinações sobrenaturais depositadas cm nós pelo Espí-

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rito divino e nos voltarmos fielmente às verdades que ele
nos apresenta como mais luminosas e _atraentes.
Para alguns o principal atrativo C a salvação das almas,
e têm constantemente os olhos no bom Pastor, indo em
busca das ovelhas desgarradas, prodigalizando-lhes sua de­
dicação, querendo a todo custo arrancá-las à desgraça que
as ameaça. A tais almas o divino Mestre comunica o seu ze­
lo ardente. Outras se sentem atraídas pelo tabernáculo, e
a divina Eucaristia C sempre o centro de seus pensamentos,
de sua solicitude, de todos os seus afetos. Alguns se alimen­
tam com a lembrança da infância de Jesus e da Sagrada
Familia; estes se impregnam do espírito de simplicidade e
de humildade que reinava em Nazaré. Outros só se agra­
dam do Calvário; a paciência e o amor das cruzes os enlevam.
Seja qual for a virtude que maior atração exerce so­
hre cada alma, importa não a considerar em si mesma, co­
mo os filósofos, limitando-se a examinar-lhes as bases e a
pesar-lhes as vantagens, pois grande seria o perigo de não
as considerar bastante sob seu aspecto sobrenatural, pãssan­
do involuntàriamente do pensamento dessa virtude ao pen­
samento dos objetos profanos. Além do mais, o coração fei­
to para Deus carece do próprio Deus. E' em Jesus, o mode­
lo de todas as virtudes, que as devemos considerar. Con­
templemos, portanto, a Jesus, depois elevemo-nos do pensa­
mento de sua humanidade santa ao pensamento de sua di­
vindade. Jesus é o caminho que conduz ao Pai; ele convida
a alma fiel a lançar-se nesse oceano infinito de beleza e
de amor, onde mergulhe com delícias e de onde nunca mais
saia inteiramente, nem mesmo para ocupar-se de seus de­
veres ordinários e profanos. Assim, seja qual for o caminho
que leva a Deus, a alma, quando encontrou a Deus e nele
se deleitou, nunca mais dele se separa, nele encontra sem­
pre sua luz, sua força, sua felicidade e seu tudo. Eis a vi­
da da fé cm toda a sua plenitude, eis como a alma justa
vive da fé: J11slt1s ex /ide vivil.

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CAPITULO XIII

Da virtude da esperança

Spe,011le,n ln Domino mlurlcard.la drcunda&lt.


o Senhor enYDl\"e Clll SUi mlaui�rdla DS que
nele esperam (SI 31, IOJ.

1. Relações da esperança com as demais virtudes teologals.

94. Quando a inteligência se libertou da tirania da ima­


ginação, e soube desapegar-se dos objetos profanos que lhe
absorviam a atenção, a fé já não encontra obstáculos, e ilu­
mina-a com luzes mais vivas; faz-lhe conhecer, cada vez
melhor, e contemplar, com maior frequência, o único objeto
digno de suas considerações, que é Deus. Assim a inteligên­
cia humana se une a Deus pela fé.
E como unir a Deus a vontade? Em presença dessa
beleza infinita, desse bem supremo e único que a fé lhe re­
vela, permanecerá inerte? Não, Deus, que age sobre a inte­
ligência para comunicar-lhe a fé, agirá, igualmente, sobre
a vontade; dar-lhe-á um impulso sobrenatural para esse bem
infinito que lhe é manifestado. E esse impulso recebido de
Deus, aceito livremente pela vontade, esse desejo sobrena­
tural do sumo bem, é a segunda virtude teologal, a santa
esperança.
Não bastará apresentar Deus à alma cristã como sumo
hem para que todos os desejos e as esperanças dessa alma
se dirijam a ele. Será acessível esse bem tão digno de in­
veja? Será possível, a uma pobre criatura, possuir e gozar
para sempre esse bem infinito? Ela conhece sua indignida­
de, e sente, em si mesma, multiplices obstáculos, cobiças

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más, qu1ça paixões inveteradas ao par de uma fraqueza
imensa, atestada, no passado, por numerosas reincidências.
Mas Deus o prometeu, e Deus não engana. Sua miseri­
córdia é infinita, sua bondade incansável; ele quer salvar
todos os homens e seu poder ilimitado sustentará a ex­
trema fraqueza de quem a ele se confia. A alma pode, por­
tanto, esperar atingir esse fim sublime que é a posse de Deus.
Não sõmente pode, mas deve esperá-lo; a esperança
é para ela um grande dever. A falta de fé é uma ofensa a
Deus porque é admitir que ele possa nos enganar; a fal­
ta de esperança é uma injúria igual: é acreditar que ele
possa faltar às suas promessas, ou então, é duvidar de seu
poder e de sua bondade. Os pecados contra essas virtudes
são funestissimos porque ofendem diretamente os atribu­
tos divinos.
O objeto, pois, da esperança é Deus, conhecido como
o único bem verdadeiro, como o único bem digno das aspi­
rações da alma cristã; e a razão de esperar esse bem su­
premo é a bondade misericordiosa de Deus, seu infinito po­
der e sua promessa que não pode falhar.
95. A esperança acompanha a fé; é-lhe o prolonga­
mento e como que a dilatação. De uma fé pouco firme, bro­
lará uma esperança vacilante; de uma fé viva e esclarecida,
uma esperança ardente e sólida. Quanto melhor compreen­
dermos, graças às luzes da fé, as grandezas divinas, as do­
çuras da posse de Deus e o nada dos outros bens que so­
licitam a vontade, tanto melhor aspiraremos a Deus. E, quan­
to melhor compreendermos que Deus é poderoso, sábio, cheio
de misericórdia em sua imensa bondade, ansiando por se
dar às pobres criaturas, tanto mais esperaremos que ele
saiba destruir os obstáculos, tirar o bem do mal e levar-nos
à felicidade que nos reservou.
Alegam péssima desculpa aqueles que baseiam a fra­
queza de sua esperança na lembrança de seus pecados.
"Conheço a misericórdia de Deus, dizem eles, mas conheço
também minha miséria e minha fraqueza e daí minhas afli­
ções". Não, eles não conhecem, ou muito mal, a misericôr-
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dia divina; diminuem-na em sua estima; ofendem-na recusan­
do acreditar que seja ilimitada e sempre eficaz, logo que
a contrição seja sincera; não querem compreender toda a
grandeza do amor de Deus; sua fé é imperfeita, pois que,
por sua culpa, não fazem uma justa idéia dos atributos
divinos.
96. Se a esperança provém da fé, conduz ao amor. Des­
de que aceitamos o impulso que nos leva a esse bem tão de­
sejável, como não nos encantarmos com suas infinitas per­
feições, e procurarmos agradar áquele de quem a esperança
nos recorda as promessas benévolas, a paternal indulgên­
cia, a clemência infatigável?
O amor diminui na alma que desanima, e desaparece
completamente naquela que cede ao desespero. Então a ·al­
ma não vê mais em Deus um pai cheio de bondade, e sim
um Senhor inflexível; afasta-se dele e começa então a sentir
as primeiras feridas do ódio que devora o coração dos de­
mônios e dos condenados, esses eternos desesperados. Ora,
pelo contrário, do uma grande esperanç� nasce um grande
amor, amor ardente e forte, que as dificuldades estimulam,
que as lutas aumentam, que as vitórias tornam invencível.
97. Existe uma maravilhosa harmonia entre as diver­
sas virtudes sobrenaturais, que se auxiliam, se sustentam
e se fortificam mutuamente, restituindo cada uma à outra
aquilo que dela recebeu. O amor ativo, estimulado pela
esperança, por sua vez, a fortalece e aperfeiçoa. A esperan­
ça sem amor se tornaria fâcilmente em presunção. Citemos
um exemplo. Um homem, desejoso de melhorar sua sorte, en­
trou para o serviço de um senhor generoso; o preço, conven­
cionado de parte a parte, lhe seria pago após um ano de bons
e leais serviços. Logo de inicio, o servo, cedendo aos rogos
de alguns amigos, passou a dar-lhes todo o seu tempo, ne­
gligenciando por completo os negócios do amo. No domingo,
o servo desculpou-se junto a este; fez-lhe mil promessas,
mil protestos de dedicação inteira, de apego inalterável, pa­
ra, na semana seguinte, recomeçar: ''Men senhor ê tão bom,

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pensou ele, que, apesar de tudo, me pagará o preço com­
binado". O senhor era bom, com efeito, e de uma paciência
a toUa prova, mas era também inflexivelmente justo. Ao ter­
minar o ano, o empregado reclamou seu salário. "Ide re­
clamá-lo daqueles para quem trabalhastes, respondeu-lhe
o amo; vosso serviço me foi inútil, não vejo um sinal se­
quer ele vossos esforços; nada semeastes, portanto nada re­
colhereis". Os amigos aduladores, que haviam desviado o
empregado infiel do seu dever, achando-se desgraçada­
mente em condições de nada lhe poderem fazer, sua sorte
não pôde ser senão a mais negra miséria. O senhor é Deus,
a própria justiça, que recompensa, não os protestos hipócri­
tas, mas as obras. Os amigos sedutores são a imagem do
mundo, incapaz de dar algo de sólido e de precioso àque­
les que por ele trabalham.
Quando um amor verdadeiro se une à esperança, não
hã nada que recear; a esperança, apoiada nas obras, só po­
de crescer, enquanto dilata o amor. Nas almas perfeitas, in­
teiramente abrasadas na mais pura caridade, a esperança se
confunde com o amor, dissolve-se nele, pois a lembrança do
céu em que o fiel há de ver a Deus, e dele gozar, onde
há de amá-lo a seu bel-prazer e glorificá-lo na medida do
passivei, deleita-lhe o coração. Espera poder amar com todas
as suas forças. E não constitui já isso um amor ardente? E
essa alegria que experimenta ao pensar na liberdade de seu
amor, não provirá antes do amor que da esperança? Quan­
ta.s vezes não passa a lembrança do amor ao primeiro pla­
no, levando a alma generosa" a só cogitar do prazer a dar
ao bem-amado; sem se preocupar com qualquer resultadci
pessoal, chegando mesmo a afirmar que faria tudo quan­
to faz com igual prazer, embora não devesse retirar para
si a menor vantagem.
D Vantagens da esperança.
98. A esperança é uma necessidade da alma. Vivemos
de esperança. Quase todos os nossos atos visam um futuro
que não C nosso. O lavrador só semeia com a esperança
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de colher, só colhe com a esperança de vender. Se o co­
merciante se agita, se trabalha e tanto se esforça é na es­
perança de obter maior lucro; um jovem, em suas obras,
em seus labores, é estimulado pelos planos de futuro que
fez para si; o pai de família, pelos que forma para seus
filhos. A esperança é a força da alma, o princípio de nos­
-sos esforços, o segredo da coragem e da atividade.
Todos aqueles que perseveraram em obras longas e
difíceis, só o fizeram sustentados por uma esperança viva
e firme. Moisés quer salvar seu povo, mas o êxito do em­
preendimento parece impossível, e os obstáculos insuperá­
veis. Os egípcios opressores não querem deixar sair os he­
breus, empregados em todos os serviços, sobrecarregados
com trabalhos pesados e cuja partida seria urna catástrofe
para toda a nação. Ao primeiro apelo de Moisés, aumen­
tam ainda suas exigências e os próprios israelitas se re­
voltam contra aquele qlle os quer libertar. Moisés, porém,
com o auxilio de Deus, vence todas as dificuldades, que,
entretanto, se multiplicam a todo propósito. Consegue re­
tirar o povo de Israel do Egito, mas, apenas livres da es­
cravidão, os israelitas se mostram indisciplinados, murmu­
ram contra o Senhor que já operou em seu favor tamanhos
prodfgios. Moisés os tranquiliza, obtém novos milagres e
leva o povo ao arrependimento. Dentro em pouco, novos
brados contra o chefe; os israelitas clamam que vão mor­
rer de fome, e Deus faz logo chover o maná. O povo, po­
rém, não tarda em se desgostar, anseia por voltar ao Egito.
Adora em seguida o bezerro de ouro. E' Aarão, é Maria, que
murmuram contra Moisés, seu irmão. Os espiões enviados
à terra prometida sublevam o povo; Coré, Datan e Abiron
provocam uma sedição. A falta de água ocasiona novas quei­
xas. Finalmente, os diversos povos do país tentam opor-se
pelas armas à passagem dos israelitas: é necessário combater
e esmagar sucessivamente os amalecitas, os habitantes de
Canaã, os amorreus, os madianitas, Og, rei de Basã, enquan­
to os moabitas, mais temíveis ainda, arrastam parte do po­
vo às abominações pagãs. Não podemos ler a narrativa
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da saída do Egito, e da estada do povo de Deus no de­
serto, sem admirar a constância de Moisés, que não se abateu
com tantas provações e se mostra inabalável até ao fim.
E' forte, de uma força sobre-humana e, ao mesmo tem­
po, é o mais suave dos homens. Essa constância heróica,
ele a haure em sua esperança invencfvel. Quando, em tor­
no dele, reina o terror e o desânimo, Moisés nunca deixa
de confiar no Senhorj levanta os lnimos abatidos; pros­
segue, sem fraquear, em seu empreendimento e leva sua
missão a cabo.
99. A história atesta, por numerosos exemplos; o que
pode uma esperança firme e a garantia de êxito que encerra.
Por que será, então, que os homens põem suas esperanças em
falsos bens e se lançam em empresas arriscadas, conde­
nando-se a rudes esforços, em vista de bens ilusórios? Quan­
to trabalho não se dão os ambiciosos para conquistar as
honras, e os avarentos para aumentar suas riquezas! Os
riscos não os detêm, as contradições não os intimidam, os
reveses não os desanimam. Vão sempre para a frente. Se
fracassarem, tentarão novos esforços; se, ao contrário, al­
cançarem êxito, servirá para estimular-lhes ainda o ardor,
pois, enquanto não ganham tudo, parece-lhes que não ganha­
ram nada. Que pena ver tanta coragem, tanta perseveran­
ça despendidas em vão! Filii hominum usquequo. . . diUgitis
vanitatem et quaeritis mendacium? "Filhos dos homens, até
quando amareis as futilidades e procurareis os bens ilusó­
rios?" Ah! se aspirásseis, com igual ardor, aos bens reais.
se tivésseis igual confiança de os obter, empregaríeis, em
persegui-los, igual energia e igual perseverança. Elevar-vos­
iam a um alto grau de virtude, e mais cedo ou mais tar­
de serieis recompensados generosamente de vossos trabalhos!
Se o demônio investe com tanta fúria contra a virtude
ela esperança é que esta decuplica as forças, e que a alma
animada de firme confiança é capaz de elevar-se à mais
alta perfeição. Das três virtudes teologais esta é a mais vi­
sada para os ataques do inimigo e, muitas vezes, mesmo as
tentações contra as outras virtudes, contra a fé, ou a pure-

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za, não passam de ataques simulados. O inimigo não pre­
tende destruir essas virtudes, quer sõmente perturbar as al­
mas e solapar-lhes a esperança. Quantas almas devotas são
tentadas pelo desânimo e quantas se rendem! Não temem
os desfalecimentos da esperança; não compreendem o mal
imenso que se fazem; não percebem sequer, pobres cegas
que são, que tais pensamentos de desânimo são sugestões
de satanás. A excessiva preocupação parece-lhes muito na­
tural; julgam-na uma prova de prudência, de discrição, e
talvez tomem sua covardia por humildade. Mas, sobretudo,
não querem ver a ofensa que fazem à bondade, ao poder,
à sabedoria de Deus, quando perdem a confiança. Que são,
de fato, suas misérias, perante as riquezas de Deus, sua fra­
queza perante a força infinita? Suas próprias iniquidades,
por mais graves e numerosas que sejam, uma vez que forem
lamentadas sinceramente, não passam de salpicos de lama
lançados no oceano da misericórdia divina.
100. Quem cede ao desânimo, afasta a graça, pois
Deus, ferido em pleno coração pela falta de confiança, di­
minui os seus auxílios; tal alma destrói sua energia, e asse­
melha-se ao soldado que foge à luta, ao operário que aban­
dona seus instrumentos, ou, antes, a um louco que en­
tregasse os hraços a um mortal inimigo para ser por ele
acorrentado e reduzido à incapacidade de agir.
E de que desolação não se enche sua alma? Para ela
a amargura é sem alívio, a bruma sem raio de sol, a noite
sem estrela.
Procurará então consolar-se, distrair-se com futilidr.­
des e bagatelas, com conversações imoderadas que dissi­
pam e lhe serão novas ocasiões de pecado. O mal vai sem­
pre piorando. A alma, oscilando entre a dissipação e o aba­
timento, acaba por desanimar, perde o gosto pela virtude,
deixa de se esforçar, e comete faltas deploráveis.
101. A esperança, ao contrário, é o mais doce consolo
do cristão exilado. A fê nos serve de alimento, instruindo­
nos a inteligência com as verdades divinas; a esperança
faz as vezes de uma bebida refrigerante, tão agradável

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quão salutar; é o vinho generoso que alegra o coração do
homem e o torna mais ativo e mais forte.
A alma fiel sabe que verá a Deus, que gozará de Deus,
que se desvanecerá em Deus, e este pensamento a sustenta
e a enleva. Desde já goza de sua felicidade, deleita-se nu
antegozo dessa alegria indescritível, e suas fadigas e tra­
balhos se tornam não sómente suportáveis, mas suaves.
Não é esta a bebida saborosa que torna agradável o ban­
quete da vida, enquanto reconforta e delicia aqueles ql1c a
procuram com avidez?
102. f-lá, todavia, almas fiéis que, longe de gozarem
dessas suaves consolações da esperança, estão expostas aos
assaltos de um sombrio desespero; perguntam-se a si mes­
mas se hão de se salvar, cruéis angústias as oprimem, esten­
dendo sobre toda a sua vida um véu de tristeza. Será que
a esperança desapareceu desses corações infelizes? Não, por
certo; a esperança neles subsiste intata, embora oculta .,;,,
quiçá, imperceptível aos próprios olhos do interessado. Este,
por vezes, não é capaz sequer de produzir atos preciosos,
não sabe avaliar a firmeza de sua esperança, nem pode
gozar em paz das doçuras que geralmente proporciona.
Entretanto, de onde lhe vem a fidelidade, a força que a
anima nesses assaltos tão rudes, senão da convicção inabalá­
vel, que conserva, de que, apesar de tudo, Deus, justo e
hom, a recompensará um dia? Em meio dessa tempestade
sua esperança se purifica e se dilata, seu amor se apura
e se desenvolve. Quantas vezes não exclamará: "Deus é
infinitamente bom, sua misericórdia é sem limites, e ele me
ama com o mais terno amor, por que então recear? Não
cogitemos do futuro e, seja este qual for, esforcemo-nos
hoje por agradar a Deus e servi-lo bem". E' este um ato de
amor excelente, utilíssimo ao progresso da alma. Compreen­
de-se perfeitamente o fim providencial dessas provações:
quem as souber suportar com coragem, desprende-se de si
mesmo e se une mais intimamente a Deus.
103. Outra é a atitude da alma que aceita as suges­
tões do eterno desesperado; imobiliza-se e cessa todas as

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obras boas, considerando-as inúteis; o desânimo a coloca
em uma verdadeira paralisia espiritual, extremamente funes­
ta. E essa alma não é sómente tentada, mas peca contra a
esperança e seu pecado é tanto mais perigoso, quanto menos
o reconhece e mais a ele se apega. Julga ter razão e pos­
suir motivos legítimos para perder a coragem; não quer con­
fessar que não rende homenagem à bondade, ao amor de
seu Deus i não tendo horror à sua falta, a ela se entrega
sem resistência e sem querer acreditar naqueles que procu­
ram esclarecê-la e tirá-la de seu torpor.
104. Entre estas duas almas, ambas tentadas contra a
esperança, uma triunfando sempre e a outra sempre desani­
mada, poderíamos colocar muitas outras que permanecem
vacilantes, indecisas, combatendo frouxamente sem todavia
desanimar de todo. Sua esperança é fraca, porque fraca
é sua fé e fraco seu amor. Tais almas, se não merecem as
doces consolações que a esperança dá aos cristãos mais
esclarecidos e mais ardentes, podem entretanto alcançar a
salvação pela observância da lei de Deus. Mas como po­
deriam gozar de Deus? Não lhe estão intimamente unidas,
nem possuem a paz profunda, que nasce da confiança absoluta
e do completo abandono nas mãos de Deus.
105. E' principalmente na oração que a esperança ma­
nifesta seu valor e seu poder. O fato de rezarmos é em si
um ato de esperança; o fervor na oração, os meios difí­
ceis aos quais recorremos para torná-la mais proveitosa,
o retiro, os sacrifícios, provam a vivacidade desta virtude;
os efeitos da graça obtidos por meio de uma oração fer­
vorosa atestam o quanto a esperança é agradável a Deus.
O velho Tobias, ao ver sua mulher irritar-se contra as
desgraças que fundiram sobre ele, julga que lhe seria pre­
ferível e mais vantajoso morrer. Então pede a Deus a morte
em uma oração humilde e comovedora. Na mesma ocasião,
mas muito longe dali, uma de suas jovens parentas, Sara,
persuadida também de que melhor fora morrer, dirige a
Deus o mesmo pedido, com igual submissão e confiança.
Ambos bendizem o Senhor e proclamam-lhe a bondade e a

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justiça; ambos, ao fazerem suas orações, abandonam-se en­
tre as suas mãos, mostrando assim quão firme é sua esperan­
ça; ambos falam a linguagem da mais profunda humildade e
da mais viva gratidão e, apenas acabam de rezar, consideram­
se já atendidos. Ao verem que, longe de morrer, continuam
a viver, sua esperança não diminui nem se desmente sua cons­
tante e amorosa submissão â vontade de Deus. Foram aten­
didos, de fato, mas de outra maneira e muito melhor do
que esperavam.
Quem rezar com semelhantes disposições não pode dei­
xar de ser ouvido, pois essa esperança ardente é uma ho­
menagem prestada à bondade e à sabedoria divina, homena­
gem poderosíssima junto ao coração de Deus. Não foi gra­
ças â sua confiança, tão comovente, que.não desanimou ante
a repulsa do Salvador, que a cananêia obteve a salvação
de sua filha? Quando São Pedro, cheio de confiança, atirou­
se ao mar, indo ao encontro de Jesus, as águas se soli­
dificaram sob seus pés, para logo se entreabirem ao fra­
quejar a esperança.

IU. Como fortalecer nossa esperança.

106. E' um favor insigne de Deus, um efeito, tanto de


sua sabedoria como de sua bondade, ter sido a esperança,
virtude sobrenatural, depositada em germe no coração de
todo cristão. Antes de a desejarmos, jã a possuímos. A nós,
pois, aumentá-la até se tornar o consolo e o sustento de
nossa vida.
A lembrança frequente e habitual do poder de Deus,
de seu amor pelas nossas almas, eis o melhor meio de for­
talecer a esperança. São culpados aqueles que, diante de
uma obra necessária, como a evangelização de um pais, a
conversão de uma paróquia, cruzam os braços, alegando que
não há nada a fazer. Consolam-se, ou, antes, desculpam­
se, gabando os tempos passados em que, segundo pen­
sam, era muito fácil fazer o bem. Fosse mais viva sua es­
perança, e recorreriam com coragem incansável aos meios

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empregados pelos apóstolos de todos os tempos, à oração
constante, à generosa prática da penitência, à dedicação,
à caridade infatigável. Então o Senhor, com vagar, lhes
abençoaria os esforços e lhes faria frutificar o zelo.
Tampouco tem esperança muito sobrenatural ou mui­
to viva, quem deixa de lado esses meios evangélicos, contan­
do únicamente, no exercício do apostcilado, com as habilida­
des humanas. Ecce homo qui non posuit Deum adjutorem s11-
11m (SI 51, 91). Eis aí homens qtie não esperam o auxilio
de Deus, que não contam com ele para o êxito de seus em­
preendimentos e, entretanto, pretendem fazer obra de Deus!
Na obra de nossa santificação, é ainda em Deus que
devemos colocar toda a nossa esperança. Se nossos esforços
são necessários, visam antes dispor-nos a receber os seus
dons do que nos formamos nós mesmos às altas virtudes e,
se Deus o exige, é para patentearmos a sinceridade de
nossos desejos e afastarmos os obstáculos que tolhem sua
ação. Então, Deus mesmo intervém, pois só ele por sua ação
direta, por graças realmente superiores, pode incutir virtudes
perfeitas nas almas que se entregam a ele em toda con­
fiança. Eis o que nos cabe saber, enquanto não de\'emos
perder de vista o quanto Deus nos quer enriquecer com seus
dons. "Deus, disse Santo Afonso Rodriguez, não dá nada
de tão bom grado como o seu amor".
107. A esperança cresce, portanto, â medida que nos
persuadimos do poder, da benevolência, da ternura de Deus,
pois esta é a razão de ser da esperança. Mas para que
possa crescer, urge desenvolver a estima e o desejo dos
valiosos bens que Deus nos promete e que constituem o
objeto dessa esperança.
Esperar é uma necessidade de nossa natureza; é a pri­
meira das quatro paixões, ou tendências, do coração humano.
Essas paixões, que estão intimamente ligadas entre si e
devem ser vigiadas simultâneamente e governadas igual­
mente, são a esperança ou o desejo, a alegria, o temor e
a dor. O coração humano oscila de contínuo entre esses di­
versos sentimentos; os prazeres que lhe são apresentados
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aos olhos ou lhes vêm à lembrança, atraem-no, e, quando
lhe são dados, deleitam-no i os sofrimentos que o ameaçam,
afligem-no, e, quando o ferem, entristecem-no. E, como a
vida de todo ser inteligente se compõe sucessivamente do
bem e do mal, assim também esses sentimentos se sucedem
uns aos outros sem interrupção. Segundo a direção tomada,
a alma se orientará para o bem ou o mal, para a virtude ou
o vicio; terá méritos ou culpas conforme a natureza dos
bens aos quais aspira e dos males que deseja evitar. Quem
só deseja e espera os prazeres ilícitos, mergulhará no lodo
e no pecado; precipitar-se-á nos abismos para onde o quer
arrastar o anjo maldito. Quem se interdisser toda esperànça
e todo desejo que não seja a esperança sobrenatural, elevar­
se-á cada dia mais nas altas regiões da virtude.
Não depende, portanto, absolutamente de nós ter ou
não ter esperança, como não depende de nós pensar ou não
pensar; mas podemos e devemos escolher o objeto de nossas
esperanças. Se soubermos rejeitar a simples lembrança de
coisas indignas de nossas aspirações, e, se nos aplicarmos,
pelo contrário, a ter sempre presente a lembrança dos gran­
des bens, dos bens eternos que nos aguardam, nossa es­
perança tomará uma santa orientação e dirigirá toda a nossa
vida pelos caminhos que levam a Deus.
Os hebreus, no deserto, não tinham essa esperança toda
sobrenatural que distinguia o seu santo condutor. Com efei­
to, Moisés, diz São Paulo, mantendo sempre o olhar fito
nos bens prometidos, isto é, nos bens eternos, saudando-os
de longe, considerava-se qual estrangeiro e viandante sobre
a terra e só aspirava à recompensa eterna. O desejo do
céu sustentava-lhe a coragem heróica. Seus concidadãos, ao
contrário, como o prova a Escritura, recordavam-se dos
alhos e das cebolas do Egito, dos pepinos e dos melões, dos
peixes e das marmitas cheias de carne (Nm I t, 5). O
pensamento dos bens terrestres cativava-os mais que o dos
bens celestes. Daí provinham suas contínuas revoltas, daí
a dureza de seu coração que não se enternecia com os mais
insignes prodígios, nem com os constantes favores de Deus.

Oeamlnho-1 129

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108. Piedosos cristãos, quais são as vossas esperanças?
Perguntai-vos a vós mesmos se cuidais de dirigir sempre pa­
ra os bens celestes o curso de vossas aspirações, se vos es­
forçais constantemente por .fazer morrer em vós os desejos
puramente naturais? Sem dúvida quereis ir para o céu, e
não quereríeis, de modo algum, procurar os bens terrenos
em prejuízo de vossa salvação; mas, quando as vantagens
1errestres e as satisfações da natureza podem ser obtidas
sem falta grave, não julgais legitimo tal desejo, esforçando­
vos por adquiri-los?
Se examinardes diversas vezes por dia as disposições
de vosso coração, o motivo que rege os vossos atos, o fim
que perseguis, verificareis que são sentimentos demasiada­
mente humanos e deveríeis reconhecer que muitas de vossas
ações não tendem puramente a Deus. Se nunca fizerdes este
exame, desconhecereis o vosso coração e tereis grandes sur­
presas no dia em que o juiz, que não se engana, vos re­
velar, desenrolando-o sob os olhos de vossa alma, o quadro
de toda a vossa vida. Descobrireis, então; porém tarde de­
mais, um dos maiores obstáculos que vos impediu de al­
cançar em vida a perfeição do amor. Enquanto é tempo
ainda, afastai para longe de vós lodo desejo humano; sede
qual um morto disposto a tudo suportar, caricias e golpes,
censuras e elogios. Colocai-vos em uma completa e santa
indiferença em relação a todas as satisfações ou incomodida­
des da natureza; e não estendais vossos desejos e espe­
ranças senão às coisas santas, aos bens espirituais, às vir­
tudes cristãs, principalmente a Deus, que quer ser vossa
recompensa e vossa felicidade eterna.
l09. Para avivar a esperança do céu, aplicai-vos a
compenetrar-vos - talvez ainda não o fizestes bastante -
das alegrias que ali vos aguardam. Quando refletimos sobre
a felicidade acidental e secundária do paraíso, ficamos des­
lumbrados. Ser-nos-á dado conhecer todos os segredos da
natureza que, aqui na terra, os grandes sábios apenas en­
trevêem, mas que bastam entretanto para enlevá-los e apai­
xoná-los. Contemplaremos os espetáculos variados do mundo
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terrestre, que fascinam qualquer alma de artista, e admirare­
mos outros, incomparàvelmente mais belos, do mundo es­
piritual;· encontraremos, mil vezes mais amáveis que na
!erra, aqueles que aqui nos foram caros; teremos por ami­
gos os sanlos anjos, cujas perfeições, bondade, ciência e
beleza celestial, nos deleitarão, e cujas relações afetuosas
nos encontrarão. E Maria, nossa boa mãe, tão majestosa e
entretanto tão afável, tão bela a contemplar, tão doce a
amar; uma hora apenas passada ao seu lado pagaria todos
os sofrimentos de nossa vida. Que delicias, maiores ainda,
não inundarão nosso coração ao gozarmos da amizade
de Jesus! Cada traço de sua vida, tudo quanto fez e so­
freu por nós, nos será claramente revelado e as maravilhas
de seu amor nos serão manifestadas. Este mêigo Salvador
se dará, a todos, com uma perfeição maior e de modo mais
delicioso do que em sua Eucaristia; comunicar-se-á às nossas
almas em uma comunhão ininterrupta, cujas delícias serão
tio grandes e tão inebriantes, que só mediante uma força
extraordinária as poderemos suportar. E essas alegrias desa­
parecem ao lado da felicidade essencial, principal, que con­
sistirá para nós na contemplação e no amor da Divindade.
Não poderemos contemplar a Deus e amá-lo, senão possuin­
do-o. Possuir o Deus em três pessoas, gozar do Deus infinita­
mente admirável, infinitamente suave, gozar dele na medida
em que o permitirem nossos méritos, que sublime esperan­
ça! Felizes as almas que receberam vivas luzes de fé a res­
peito dessas grandes verdades; elas sabem que um só grau
de glória é mil vezes mais precioso que todas as alegrias
�a terra, e, por conseguinte, para adquiri-lo, para obter a
posse de Deus em maior abundância, nenhi.Jm esforço lhes
custa, nenhum sacrifício lhes parece penoso demais.

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CAPITULO XIV
Da alegria
Gr,udde ln Domino srmptr, iltrum dito, l!lf/Jdlllll.
Alterai-vos sempre no Senhor, repilo-o, alc1n,i­
vos (Fllip 4, 4),

1. As alegrias naturais.

110. Se o desejo e a esperança dos bens terrenos su­


focam as santas aspirações da esperança sobrenatural, a
complacência nésses bens, o prazer que gozamos e sabo­
reamos quando os desfrutamos, suspende também o surto
da alma, impedindo-a de ir em busca dos bens espirituais
com energia e perseverança.
Não podemos, então, alegrar-nos na terra? A alegria,
cpmo a esperança, é uma necessidade do coração humano;
uma tende à outra; contamos com isso e desejamos, forçosa­
mente, alegria e felicidade. A alegria é o amor satisfeito;
impossível é viver sem amar e sem sentir a satisfação do
amor. A alegria é a vida da alma, o repouso do coração,
repouso que reanima as forças e prepara para novos tra­
balhos. E a alegria cintila; quem a possui, a irradia em
torno de si, espalhando conjuntamente coragem e ardor.
Ao contrário, as almas sem alegria são almas sem energia
e, com sua tristeza, comunicam, a quem delas se aproxima,
preguiça e indolência.
E' por isso que não confessamos de pronto os nossos
pesares; antes, os dissimulamos, aparentando jovialidade,
mas essa alegria simulada não pode produzir os efeitos
da verdadeira alegria.

1:12

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Alegrai-vos, portanto, segundo o conselho do apóstolo:
"Alegrai-vos sempre no Senhor, repito-o, alegrai-vos". Deus
quer que sejamos felizes. Ele mesmo é a alegria infinita,
a única verdadeira, que irradia onde quer que se encontre.
Aspirando a Deus, aspiramos à alegria e à felicidade; vi­
vendo de Deus, vivemos de felicidade e de alegria.
Mas não nos iludamos com as falsas alegrias que tanto
seduzem os pobres mortais. Não as procuremos, pois são
alegrias enganadoras e indignas de nós.
111. Há também as alegrias diabólicas. Lucifer e seus
súditos infernais comprazem-se no mal que causam, nos
pecados que provocam, nas torturas que infligem. Conse­
guem seduzir-nos, fazer-nos cair em alguma cilada, aparen­
tam certa satisfação e, por meio de sinais, outros tantos
. risos de escárnio, comunicam a seus companheiros a vitó­
ria alcançada. Riem-se ainda quando exercem seu ódio sobre
os infelizes condenados, que arrastaram ao abismo. Esta
não é uma alegria genuína, pois a alegria é o amor satisfei­
to e os demônios não têm amorj o ódio não proporciona
alegria porque nunca está contente, nunca se pode saciar.
Toda alegria que provém do mal praticado, da vingança
exercida, é uma alegria diabólica que o cristão não deve
jamais procurar.
112. H.ã as alegrias mundanas, ruidosas talvez, porém
mais atordoantes que duradouras, e que deixam após si o
vazio e a fadiga. São as que procuramos quando cedemos
às paixões; é a alegria do sensual, que pensa encontrar a
felicidade na boa mesa i do ambicioso, quando alcança hon­
ras ardentemente desejadasj do vaidoso, que suscita admi­
ração; do mundano, que mergulha nos multíplices prazeres
dissipadores. Entregar-se a essas alegrias é aumentar as pai­
xões e prejudicar enormemente a almaj um cristão deve con­
dená-las, ao sentir-lhes as primeiras manifestações.
113. Há as alegrias naturais. A natureza é ávida de ver,
de ouvir, de saborear, de sentirj gosta de recrear-Sei o jogo,
os passeios, os divertimentos, são-lhe outros tantos atrativos.
Quem quer amar a Deus com um amor perfeito, não deve
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nunca procurar essas alegrias por si mesmas, mas prestar­
se a elas quando as necessidades do corpo o exigirem, ou
a caridade o reclamar. Então, o móvel sobrenatural que
anima o cristão purifica e santifica suas alegrias, mas de­
verá velar cuidadosamente sobre seu coração para prevenir
qualquer complacência nesses gozos humanos, qualquer
apego a esses prazeres naturais! Se os soldados em presen­
ça do inimigo, que multiplica os ataques, em vez de re­
tribuírem bala por bala se entregassem à caça, a colher
flores, ou a jogar cartas, seriam traidores da pátria; s.!
os lavradores, no tempo da sementeira, fossem passear, de­
sistindo de qualquer colhe!ta futura e expondo-se a carecer
de pão para sua família, quão grande seria sua responsa­
bilidade. A vida é um luta, em que combatemos para a gló­
ria e os interesses de Deus, é um campo em que semeamos
para o céu. Todo e qualquer momento dado â natureza sem
móvel sobrenatural, Unicamente para satisfazê-la, é tempo
perdido para a glória divina e para a nossa felicidade eter­
na. E como Deus nos põs na terra a fim de glorificá-lo,
como todos os instantes de nossa vida lhe pertencem, é
um roubo feito a Deus.
Depois, essas alegrias humanas, quando nelas nos com­
prazemos, depravam o coração, tornando fastidiosas as ale­
grias espirituais. E' impossível servir de uma vez a dois se­
nhores, ou encontrar prazer em coisas tão contrárias como o
sejam o gozo da natureza e as alegrias da piedade. Quem se
compraz naquelas, pouco a pouco perderá o gosto por estas,
esforçando-se vagamente por obtê-las. Finalmente essas
alegrias humanas que satisfazem não o amor e sim o egoísmo
retraem a alma em si mesma e, quanto rnai:. a natureza se
satisfaz, mas exigente se torna, e assim a dedicação se es­
gota e o dom de si mesmo aos outros e a imolação da na­
tureza a Deus se torna mais difícil.
Acima dessas alegrias, há outras que, embora perten­
cendo também à natureza, são mais nobres, mais legítimas
e mais fãceis a sobrenaturalizar, são as alegrias da amizade,
as alegrias da familia. Deus, que as permitiu e declarou
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ser um dever do amor de que elas dimanam, as abençoa,
mas é necessário ainda velar para não se tornarem exigen­
tes demais, ou ultrapassarem os justos limites e para que não
prejudiquem cm nada o amor divino. As almas generosas,
apaixonadas pelo santo amor, preferem muitas vezes privar­
se do que se expor a perder a medida.

li, As alegrias sobrenaturais.

114. As alegrias mais profundas, as únicas dignas deste


nome, são as alegrias sobrenaturais.
Nascem da fé e da caridade. Quanto mais brilhantes
forem as luzes da fé, apresentando ao espírito motivos de
júbilo, tanto maiores serão as alegrias. E quanto maior o
amor, maior também a alegria, que outra coisa não é se­
não a satisfação do amor. Uma fé fraca e y.m amor medíocre
não podem produzir alegrias espirituais. E' porque os cristãos
vulgares, que as não experimentarem, não as desejam, e até
se recusam a nelas acreditar.
As alegrias espirituais, tão conhecidas e apreciadas
pelas almas fiéis, são de duas espécies: alegrias afetivas e
alegrias místicas. As primeiras, sempre acompanhadas de
doces emoções no apetite sensitivo, são chamadas consolações
sensíveis. As almas noviças na piedade, não conhecendo ou­
tras, mostram-se muito ávidas destas. As segundas são
mais intimas; podem refletir-se sobre a parte sensivel, mas,
em geral, o coração não experimenta prazer algum; pro­
duzem uma satisfação profunda, uma paz manifestamente
infusa e a alma, sem estar emocionada, sente-se calma e
feliz. Essas últimas alegrias, que supõem luzes eminentes
de fC, são as mais preciosas e as mais desejáveis e têm sua
- sede na parte superior da vontade. Para delas gozar é mister
que a atividade das faculdades superiores tenham adquiridn
grande força.
115. Lemos quatro vezes nas Sagradas Escrituras que
os amigos de Nosso Senhor Jesus Cristo se entregam .i
alegria. A primeira vez é quando São Lucas nos conta a
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missão dos setenta e dois discipulos. Jesus os enviara, em
sua frente, como para preparar-lhe o caminho; encarrega­
os de instruir, de pregar, em uma palavra, de inaugurar o
ministério de toda a sua vida. Para torná-los aptos a rea­
lizá-lo, concedeu-lhes dons preciosos, o dom de sarar os
enfermos, o de expulsar os demônios. Ora, depois de ini­
ciada a sua missão, e de terem logrado êxito, voltam a
nosso Senhor cheios de alegria: Reversi sunt autem septua­
�inta duo ct1m gaudio (Lc 10, 17).
Devemos encontrar alegria nos dons que recebemos de
Deus. Inúmeros são os benefícios divinos e não se passa
um só instante de nossa vida sem que Deus nos conceda
bens preciosos tanto na ordem natural como na sobrenatural.
Ora, a alegria deve ser o perfume da nossa graditão. Que
dirá um benfeitor ao ver seu agraciado receber-lhe os
benefícios com ar tristonho e agradecer-lhe com visível mau
humor? Testemunhar júbilo pelo benefício recebido é o pri­
meiro dever de um coração reconhecido, que testemunha
assim o quanto aprecia os dons que lhe são feitos. Podere­
mos, jamais, regozijar-nos bastante do dom da fé, do dom
do santo batismo, de tantas graças que nos iluminam, nos
impelem para a virtude, nos sustentam e nos santificam?
O segundo dever da gratidão é não medirmos esforços
em relação ao benfeitor. Devemos lutar com ele em genero­
sidade e alegrar-nos em poder retribuir-lhe os benefícios.
A alegria que experimentamos em trabalhar para Deus é
a melhor prova de nosso reconhecimento e de nosso amor;
dá merecimento às nossas obras. Deus não pode se agra­
dar daqueles que o servem com tristeza; ele ama, ao çon­
trário, os que lhe dão com alegria: Hilarem datarem diligit
Deus (2 Cor 9, 7).
Tal a alegria dos setenta e dois discípulos que rece­
beram grandes dons de Deus e que os despenderam nas ta­
refas que lhes foram confiadas. Essa alegria, porém, não
é sempre pura; mesclam-se-lhe sentimentos de complacência
pessoal e, se a alma se regozija com os dons de Deus, re­
gozija-se também por terem estes recaido sob�e sua querida

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pessoa. A primeira alegria é sobrenatural, a segunda, na­
tural. Regozijamo-nos por termos proporcionado glória a
Deus pelo nosso trabalho, mas também nos regozijamoS­
por sermos nós a causa. Parece que os setenta e dois dis­
cípulos não estavam isentos de algum sentimento de amor
próprio, pois nosso Senhor os repreendeu, dando-lhes este
paternal conselho: "Não vos regozijeis de que os demônios
vos sejam submissos, mas de que os vossos nomes estejam
escritos no céu".
A alma que aspira ao verdadeiro amor deve velar com
muito cuidado para purificar de toda satisfação de amor
próprio mesmo as alegrias espirituais. Se não o fizer, o sen­
timento natural de contentamento, que experimentar nes­
sas ocasiões, impedirá a Deus se comunicar a ela na mes­
ma abundância, e sua união com o bem-amado ficará pre­
judicada, suas orações serão menos fáceis e menos fervorosas.
As distrações das almas piedosas provêm, frequentíssimas
vezes, dessa invasão do natural em· seus sentimentos nos de­
sejos do bem, no júbilo das boas obras realizadas, no te­
mor do pecado ou na tristeza gerada pelas faltas cometidas.
116. A segunda referência do Evangelho à alegria dos
amigos de Jesus é aquela em que São João, depois de nar­
rar a ressurreição do Salvador e a sua aparição aos após­
tolos, nos diz: "Alegraram-se os discípulos ao verem o Se­
nhor": gravisi sunt disclpuli, viso Domino (Jo 20, 20).
Tinham perdido o seu bom Mestre; uma morte cruel
parecia tê-lo arrebatado para sempre, e eis que de novo ele
lhes é restituido. Tinham-no perdido em circunstâncias que
lhes deviam despertar sentimentos dolorosos; um deles o
havia renegado, os outros, abandonado. Ora, o divino Salva­
dor, ao aparecer-lhes, parecia haver tudo esquecido; nem sua
fisionomia estava agastada, nem sua voz menos doce, nem
seu olhar menos terno. Em vez de repreendê-los, desejou­
lhes a paz: Pax vobis. Todo o seu ser estava transfigurado;
apresentava-se mais belo do que nunca; o esplendor de seu
corpo glorioso, embora ainda suavizado, para não lhes ferir
a fraqueza dos olhos, deixava-se perceber fàcilmente; uma
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auréola de imortalidade iluminava-lhe a fronte. Os discípu­
los compreenderam, ao vê-lo, que ele, agora vencedor da
morte, não mais morreria; não deviam, portanto, recear per­
dê-lo novamente. Oh! quão compreensível é essa alegria!
E quão digna de compaixão é a alma que perdeu a Deus!
Sejam quais forem seus êxitos mundanos, se estiver separada
tle Deus pelo pecado, sua sorte é lamentável. Mas quão fe­
liz é a alma que encontrou de novo a Deus e conserva a firme
esperança de não mais o perder! lnveni quem diligit anima
mea, tenui et1m nec dimittam. "Encontrei o bem-amado de mi­
nha alma, guardo-o, não o deixarei mais ir" (Cânt 3, 4). Quão
feliz é também a alma que encontra a Deus na oração, que
goza as consolações da piedade, que prova a Jesus e se
delicia em sua presença na sagrada comunhão! Alegrias
doces e santas! Alegrias puras e salutares! Procuremo-las,
alimentos delas nossas almas, e, nessas doçuras, recupere­
mos novas energias.
t 17. Quando nosso Senhor, depois de se despedir dos
apóstolos, se elevou majestosamente ao céu em presença dos
discípulos maravilhados, estes voltaram a Jerusalém cheios
de alegria, diz São Lucas: regressi sunt in /ernsalem cum
gaudio magno (Lc 24, 52).
À primeira vista esta alegria parece estranha. Com
efeito, o bom Mestre os deixara; não lhe verão mais o semblan­
te tão meigo; não lhe ouvirão mais a voz melodiosa; como
então podiam se alegrar? Sem dúvida, tal alegria é mais
nobre, mais elevada, mais perfeita, que a alegria que lhes
encheu o coração na tarde da Páscoa; é, também, mais
desinteressada.
De onde lhes vem, de fato, essa alegria senão de ha­
verem presenciado o triunfo de Jesus? Seu poder manifes­
tou-se na majestade da ascei,são, na aparição dos anjos
que publicaram os seus louvores. Ah! como se vingou das
ignomínias da semana terrível! Diante de Jerusalém, que o
aviltou e crucificou, recebeu as honras mais pomposas. Dora­
vante está sentado à direita do Pai; como não transborda­
ria de felicidade o coração de seus amigos? Pouco lhes
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importa que venham a sofrer pessoalmente. Ficarão, lle fato,
privados de sua presença; ele, porém, gozarã dos seus triun­
fos e do lugar de repouso acompanhará as obras que eles
vão empreender, pois Jesus acaba de lembrar a missão que
lhes confiara. A sua vida de apostolado se inicia; vão rezar,
trabalhar, e ele, do alto do céu, para onde o viram subir,
lhes contemplará as obras. E a alegria inunda-lhes o coração.
Eis ai a alegria perfeita que Deus concede às almas
na medida em que renunciam às outras. A vida das almas
plenamente mortificadas é um festim perpétuo. Deus as
alimenta de suas próprias alegrias, que são as alegrias do
verdadeiro amor, e não espera a eternidade para recrear seus
filhos prediletos. São, portanto, felizes da felicidade de
Deus, felizes por saberem-no tão grande, tão perfeito, tão
belo. E esta é uma alegria tranquila, nem sempre sensi­
vel, porém profunda, inexplicável. Sentem-se também felizes
em poder contribuir para essa alegria de Deus por meio
de uma vida toda de amor e de fidelidade.
118. Tal alegria os isentará, por ventura, do sofri­
mento? Será a terra, para os amigos de Deus, um verdadeiro
paraíso, de onde estejam banidas as dores? Não, o sofri­
mento se prende a toda vida terrena; aquele, porém, que se
elevou ao perfeito amor, encontra, nos próprios sofrimentos,
motivos de júbilo.
Pedro e João pregaram o Cristo; os sinedristas, en­
furecidos com semelhante pregação, chamaram à sua presen­
ça os dois apóstolos e os condenaram ao suplicio da fla­
gelação. Ora, que nos diz São Lucas a este respeito? Fri­
sa, ainda, a sua alegria e felicidade: ibant apostoli gauden­
tes a conspectu concilii; quoniam digni habiti sunt pro
nomine Jesu contumeliam pali: "Os apóstolos voltaram do
conselho contentes de terem sido julgados dignos de so­
frer afrontas pelo nome de Jesus" (At 5, 41).
A alma que ama a Deus anseia por agradar-lhe. Mas,
enquanto as obras que pratica lhe custam pouco, pensa nada
fazer pelo bem-amado. O coração que ama precisa sofrer
pela pessoa amada; daí as deliciosas alegrias do sacrifício.

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E' também uma necessidade para quem ama, assemelhar-se
ao ente querido, imitá-lo quanto possível, reproduzir-lhe os
sentimentos e o modo de viver. E já que Jesus passou por
todas as dores, já que suportou todos os tormentos, sofrer
como Jesus sofreu é uma verdadeira alegria para a alma
_cheia de amor.
119. Estas alegrias de amor são muito superiores a
qualquer outra, pois se fundam na rocha inabalável da ver­
dade. Não serão perturbadas pela prosperidade, nem altera­
das pela adversidade, e tornam mais íntima e mais só­
lida a união com Deus. A verdadeira união supõe unidade de
sentimentos; não pode haver união perfeita entre uma pessoa
alegre e outra triste. Deus é a suprema alegria e sõmente
aqueles que participam da sua alegria, alegria de amor, po­
dem unir-se a ele. Em virtude desta alegria, o amor cresce
sempre, e a união entre Deus e a alma se torna cada vez
mais íntima.

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CAPITULO XV

Do temor

Q11/s ,si homo tormidolruu& rt tarde (HlVldo?


Vftol fl rwrrtal,u ln domum suam, nc pa�e­
rt tar:lot corda fralrum ruorum llkut /pu
tlmort ptrterrHus est.
Se for um homem p11sil;l.11in1e " se,n coragçm, 1111e
re1ro«do e volte à 1111a ena, para não comu­
nicar a seus Irmãos o 1error q11e lhe faz tre­
mer o coraçlo (DI 20, 8).

120. O coração humano, já o vimos, oscila constante­


mente entre quatro sentimentos: o desejo ou a esperança,
a alegria, o temor e a dor. Atraído pelos bens que lhe são
oferecidos, procura-os com ardor e regozija-se quando os
obtém. A vista dos males que o ameaçam, assusta-se, e,
se o ferirem, entristece-se. Esta paixão ou tendência ins­
tintiva que é o receio do mal, é tão necessária quanto o
desejo do bem; é uma salvaguarda, pois, graças a ela, evi­
tamos muitos males que nos poderiam ser funestos. Mas,
assim como as demais paixões do coração humano, o te­
mor deve ser governado segundo as leis da razão, ou antes,
segundo os ensinamentos da fé. Assim como a cobiça dos
bens naturais e a complacência voluntária nos prazeres
mundanos impedem o gozo dos bens sobrenaturais e com­
primem a esperança, assim também o temor e a tristeza,
se a eles cedermos, sufocam as santas aspirações da es­
perança e paralisam o impulso para a virtude.
121. Quais são os verdadeiros males e até que ponto
os devemos temer? A natureza e a fé respondem e de ma­
neira muito diversa. A fé nos diz que o grande mal, o

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imico mal absoluto que devemos temer e evitar, custe o que
custar, é o pecado; todos os outros são males relativos
que a sabedoria divina permite, muitas vezes, para o nosso
maior bem.
A natureza, ao contrário, não compreende o mal do
pecado e, por conseguinte, não o previne. Receia Unicamen­
te o que lhe contraria os instintos e evita cuidadosamente,
mesmo em prejuízo dos interesses da alma, o sofrimento,
que, para ela, ê o mal supremo. Com que energia não devemos,
pois, reprimir esse temor, ouvir as lições da fé e fechar
os ouvidos à voz da natureza! O temor contrai o coração,
reprime o arrojo do amor, impede os desejos ardentes, tolhe
as resoluções enérgicas. E' o egoísmo que frequentemente
gera o temor e este, por sua vez, desenvolve o egoísmo;
qllem se entrega ao temor, recolhe-se em si mesmo, e deixa
de fazer por Deus ou pelo próximo tudo quanto poderia
fazer.
122. Não sómente os males reais levam a alma timo­
rata à recuar; se não conseguir dominar o medo, chegará
a fugir das menores dificuldades. Então assusta-se ante os
esforços necessários para praticar o bem, ou empreender
alguma boa obra e se apavora com a idéia de um revés,
de uma humilhação, e, em lugar de se pôr corajosamente
à obra, permanece inerte.
Somos, é verdade, em virtude do estado atual de nossa
natureza, fracos e incapazes; custa-nos o esforço; toda obra
boa nos parece dificil. As criaturas que nos rodeiam já
!lão são servas humildes e submissas, como antes do pe­
cado de Adão; longe de concorrerem pa:ra nossa felicidade
e nos facilitarem os deveres, erguem-se diante de nós, quais
obstáculos, ou procuram seduzir-nos e desviar-nos do bom
caminho. Cercados de tantas dificuldades exteriores e in­
teriores, provàvelmenle não nos caberá realizar nenhuma
maravilha e as obras que empreendermos correrão grande
risco ele serem imperfeitas; ser5. isto motivo para abandonar­
mos o dever e nos refugiarmos cm uma vil indolência?

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Temos todos nós um dever a cumprir na terra e seja
qual for nossa miséria temporal ou espiritual, temos nosso
lugar marcado neste universo, como o devemos ter um dia
no mundo dos eleitos. Aqui e lá, cabe-nos contribuir para a
harmonia do conjunto e cada qual recebe de Deus os meios
de cumprir com sua missão. Quem por excessivo temor se
furtar à tarefa, vai de encontro ao plano divino, enquanto
priva seus irmãos do bem que lhe competia fazer-lhes, não
presta a Deus as honras a que tem direito.
A alma simples e reta sabe de que vis instrumentos se
serve o Senhor para realizar suas obras, instrumentos de
lodo que deixam, com frequência, sua marca onde pousam.
A obra do Senhor fica um tanto embaçadaj mas, apesar
desse ligeiro deslustre, não deixa de ser admirável e divina.
Sem dúvida, quanto menores os vestígios que deixar o
instrumento, mais bela será a obra e é altamente de desejar
que o instrumento de que Deus se serve opere com a mi­
nima imperfeição possível. Mas, se a obra divina não res­
plandece com o devido fulgor, pelo menos existe, e produz
frutos primorosos. Ao contrário, se o instrumento de todo
recusasse o seu concurso, alegando não querer prejudicar
tão preciosa obra, esta não existiria, e esses ditosos fru­
tos não teriam sido obtidos.
123. Quão querida de Deus e estimada dos homens I:
a alma corajosa que, para fazer o bem, afronta qualquer
obstáculo. Ao contrário, a alma pusilânime desagrada tan­
to a Deus quanto aos homens. E' pesada a si mesma e pesa
sobre aqueles que a cercam. Comunica-lhes seu temor, abate­
lhes a coragem, paralisa-lhes os esforços, ou, se resisti­
rem à sua perniciosa influência, dificulta-lhes a ação, re­
cusando seu concurso ou rejeitando ouvir-lhes os conselhos.
Prejudica-se, porém, principalmente a si mesmaj sua
imaginação gera inúmeros fantasmas, suscita mil suposições
desagradáveis, multiplica e exagera os inconvenientes e cria­
sc, desse modo, toda espécie de receios. Parece, ao ouvi­
la, que o mundo está cheio de feras, prestes a devorá-la,
ou eriçado de cumes escabrosos que precisa escalar.
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124. Dominar o medo é o melhor meio de curá-lo. Indo
com energia para onde temos receio de ir, verificamos logo
a ausência de perigo i os nervos se acalmam, a imaginação
se tranquiliza, a razão recupera o seu domínio, a vontade
se fortalece. Em circunstãncia análoga, o esforço para vencer
o medo será muito menor, e não tardarã a desaparecer de
todo. Tratemos da mesma maneira a qualquer receio, sem
nunca temer os males flsicos ou morais que nos possam
atingir. "Não temais, disse Jesus, aqueles que podem ma­
tar o corpo e não podem matar a alma". Não quer o doce
Salvador que nos deixemos levar pelo medo, mesmo diante
dos suplícios. E por que? E' que os cabelos da nossa ca­
beça estão todos contados e nenhum cai à terra, sem licença
do Pai celeste. Deus sabe tudo. Deus pode tudo. Deus vos
ama. Por que temer então, homens de pouca fé? "Não vos
preocupeis com o dia de amanhã", disse Jesus. Feliz de quem
compreende e segue este conselho, um dos mais práticos
e mais úteis de todo o Evangelho; feliz de quem lança lodo
o seu temor no coração de Deus e caminha sempre em di­
reção do dever, corajoso e intrépido.

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CAPITULO XVI

Da dor

V11•11 fisuli probal fOtlHI/C ri homi11,·a j11#r,s un­


lotlo lrlbulatlonls.
A fornalha prova os n11os d� l•11rr<1 �
çllo prO'la os jHIOS (i!.:cli 27, 6).

1. Fim providencial da dor.


125. A criação foi obra de amor. O hem tende a co­
municar-se. Deus, o ser infinitamente bom, quis espalhar em
torno de si algo de sua bondade; infinitamente rico, quis dis­
tribuir suas riquezas; infinitamente feliz, quis tornar felizes
a outros. As criaturas, que lhe saíram das mãos divinas,
criaturas angélicas e criaturas humanas, foram logo cumu­
ladas por ele de beneficias; uma doce felicidade, isenta de
dor, foi o quinhão dos anjos e dos homens durante o perfo­
do da provação. Em troca, o Senhor pede às criaturas que o
amem; ele as amou, em primeiro lugar, com amor gratuito,
ipse prior dilexif nos; a justiça, a honra divina, exigem que
elas lhe paguem amor com amor.
Ai de nós! em ve:z de amor e reconhecimento, Deus só
recebe, de grande parte· das criaturas, ingratidão e pecado.
O amor divino é um fogo devorador qu� não pode perma­
necer sem efeito; se não provocar no coração da criatura
um incêndio de amor, que lhe seja alegria e felicidade, tor­
nar-se-á um fogo vingador ao serviço de sua justiça. Essa
justiça, portanto, sucede ao amor desprezado, enquanto os
castigos sucedem aos• benefícios.
Os anjos rebeldes foram os primeiros a fazer tão tris­
te experiência; em seguida, os homens, após o pecado, viram
dissipar-se a alegria e surgir a dor. Tanto nos anjos rebeldes,
como nos condenados, a justiça divina defronta o ódio e

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a obstinação; longe ele aceitar a expiação, exigida pela honra
divina, erguem-se contra Deus, no orgulho e na revolta;
então a pena que atraem sobre si, torna-se numa tortura que
lhes excita o rancor e aumenta o ódio. Na terra, ao con-
1rário, o homem pode reconhecer sua falta, detestá-la, e
submeter-se ao castigo; a pena assume então um caráter in­
teiramente diverso: é a dor resignada e amorosa, amorosa,
porque o amor que os benefícios de Deus não puderam pro­
duzir, a dor o fará brotar do coração.
Tal é, pois, o escopo da dor, reparar a honra de Deus,
punir o pecado, destruir todas as consequentes corrupções.
O fogo terrestre purifica, devorando tudo quanto é corrup­
tivel e separando as escórias dos elementos incorrup­
tiveis. Edificamos, diz o apóstolo, firmados em Cristo, um
t"<lifício em que se mesclam ouro e prata, pedras preciosas
e lenha, feno e palha; o fogo porá esse edifício à prova, re­
velando tudo quanto continha de puro e de sólido. E' o fogo
da justiça, o fogo da dor, que produz semelhante efeito; no
inferno, no purgatório, o fogo vingador atinge tudo quanto
está maculado; não atua, porém, sobre o que se conservou
puro.
126. A dor é, pois, filha do pecado. O Deus de toda
bondade, que poderia não a ter excluído a princípio do pla­
no divino, só a introduziu, de fato, no mundo, em seguida
ao pecado. Antes da queda original o homem não sofria a
tirania das paixões e só devia esperar alegrias do convívio
com sua companheira e as criaturas só lhe proporcionavam
prazeres, enquanto elevavam o seu coração a Deus pelo
reconhecimento.
Mas o pecado desmoronou toda a ordem da natureza.
Para colher, o homem deve primeiro semear no labor e na
fadiga; deve ganhar o pão com o suor de seu rosto. As
rosas que o encantam estão cercadas de espinhos, aptos a
ferir quem as quiser colher. Cada criatura parece dizer em sua
linguagem muda: Que uso pretendes fazer de mim? Fui en­
carregada, pelo nosso comum Criador, de te pôr à prova.
Ou então: Sou de tal natureza que o só fato de me encon-

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irares em teu caminho, será penoso para ti. Ou ainda: se
te sou lltil, obrigo-te a -esforços árduos, e, não raras vezes,
sou rebelde a essel:õ esforços e te imponho crueis privações.
Mais acerbos ainda que os sofrimentos exteriores são
os sofrimentos íntimos; angústias do coração dilacerado pe­
las separações, pelos lutos, pela visão dos males de nossos
irmãos; dores da alma causadas pelos nossos insucessos, pe­
las nossas próprias misérias, pelos nossos defeitos e pecados.
Esses sofrimentos visam todos corrigir e reparar as con­
sequências do pecado; são urna força destruidora e é isto
que os torna tão pungentes. Há na alma humana, maculada
pelo pecado original, tendências egoístas, apegos maus que
se desenvolveram e se fortaleceram com as faltas individuais;
são outros tantos obstáculos que impedem e tolhem as san­
tas inclinações depositadas em nós pela graça. O fogo ela
dor visa devorar essas impurezasj Deus quer consumir em
nós O que lhe ofende a pureza do olhar, e, sobre as cinzas
de nossos defeitos, fazer germinar belas virtudes.
127. Quão viva e penetrante é por vezes a dor da alma
cheia de imperfeições, mas que procura purificar-se! Dir­
se-ia. uma fogueira que consome muitas achas, e em cujo mon­
tão de cinzas esperamos encontrar ocultas algumas moedas
de ouro. Levarã muito tempo para consumir todo esse lenho
que, verde ainda, gemerá ao torcer-se e ao lançar ondas de
fumaça; e só se deixará destruir depois de opor viva resis­
tência às chamas. Assim também as almas imperfeitas têm
tanto afeto às coisas deste mundo e tanto apego à sua opinião
e à sua vontade, têm um amor próprio tão desenvolvido que,
tudo quanto tende a consumir esses defeitos, isto é, as prí­
vações, as contradições, as humilhações mais insignificantes,
tudo lhes parece extremamente penoso. E tal sofrimento,
que perdurará enquanto não fizerem reais progressos na
renúncia, é necessário às almas imperfeitas.
A sensualidade será destruída pela dor física; a avareza,
pela perda ou diminuição dos bens; o orgulho, pelos des.­
prezos, pelas criticas, ou pelas calúnias; o egoísmo, pelo
abandono, pela indiferença do próximo. Quando, ao contrá-
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rio, a alma está livre de tais apegos, cheia de amor de Deus
e disposta a tudo aceitar de suas mãos, aquilo que outro­
ra· lhe fazia sofrer, agora a deixa indiferente; suas dores
são menos acerbas; o fogo devorador tem nela pouco ali­
mento; encontrando apenas um lenho seco ou já meio quei­
mado, acaba de consumi-lo cm silêncio. Isso não significa
que essa alma purificada esteja isenta de toda dor, mas essa
dor é geralmente suscitada por causas mais nobres e assim
sofrerá pelas ofensas feitas a Deus. Demais, a essas penas
une-se uma paz cheia de doçura, uma resignação total que
alivia, que torna amáveis as próprias dores.

li. Vantagens da dor.


128. Deus alcança, pois, o seu fim, enviando a dor aos
homens, que podem, se quiserem, dela auferir inapreciáveis
vantagens.
Se um golpe rude e seco ferir um seixo, ressalta uma
centelha e produz-se um fogo que ilumina e abrasa. Da alma
ferida pela dor também ressalta uma centelha de amor, que
pode produzir um vasto incêndio. Mas assim como a cen­
telha tirada da pedra alumia antes de abrasar, assim tam­
bém a dor, antes de atear na alma o incêndio de amor, pro­
duz claridade.
Essa centelha ilumina, em primeiro lugar, aquele a
quem atinge, revelando-o a si mesmo e aos outros, dando­
lhe a conhecer melhor suas fraquezas e suas virtudes. A al­
ma começa por descobrir os seus defeitos: verifica que
a causa de seus vivos sofrimentos não passa de amor pró­
prio, de vontade própria; compreende que uma alma, abra­
sada de amor divino, ficaria indiferente em seu lugar àquilo
que a faz chorar, ou, ao menos, daria pouca importância
a esses males corporais, a essas contrariedades, repreen­
sões, ou injustiças que tanto a magoam.
Serão suas virtudes profundas e sólidas? E' ainda a
dor que lha provará. "Que sabe aquele que não foj ex­
perimentado?" (Ecli 34, 9). Ninguém pode garantir que
um homem que não sofreu seja forte e corajoso; sua atividade

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laboriosa está presc1,, talvez, ao seu temperamento ardente;
esforça-se e dedica-se, mas quanto a moderar o seu entusias­
mo não lhe seria possivel. Que a provação o atinja, que a
enfermidade o prostre, que a dor lhe torture os membros,
e logo cessará todo desejo de atividadej não poderá mais
dedicar-se senão por meio de corajosos esforços. Se tal
homem continuar a labutar, então não poderemos mais pôr
em dúvida a sua energia: a dor é, pois, a pedra de toque
da virtude.
129. A dor C sobretudo a pedra de toque da hulUildade.
E' agradável, é uma felicidade para o cristão generoso tra­
balhar para a glória de Deus, esforçar-se por lhe ganhar
almas, por torná-lo mais conhecido e mais amado. Mas,
se vier a fracassar em seus mais santos empreendimen­
tos, enquanto outros alcançam êxito, como aceitará ele a
humilhação do revés? como assistirá ao êxito de outrem? .Se
só procura a Deus, que lhe importa por quem Deus seja
servido, por quem seja glorificado? "Eldade e Medad pro­
fetizam", disseram um dia os hebreus a Moisés. "Por favar,
não os deixeis", exclama Josué. "E por que, responde o ho­
mem de Deus, por que esta inveja? Ah, praza aos céus
que todo o povo profetize e que o Senhor os penetre a to­
dos de seu Espírito!" São Paulo, na prisão, não podia mais
pregar o Evangelho; então alguns de seus irmãos, invejo­
sos e disputadores, entregaram-se à pregação com a idCia
de que seu êxito, despertando a inveja do prisioneiro do
Cristo, lhe tornasse. mais pesados os grilhões. "Que importa!
exclama o apóstolo; contanto que o Cristo seja conhecido,
alegro-me e me alegrarei sempre" (Filip I, 18). Quando a
provação não desperta logo em nós esses protestos sinceros
de desinteresse, patenteia claramente que, no próprio bem
praticado, visávamos nossa satisfação pessoal ao mesmo
tempo que a glória de Deus.
Se na óbra que empreendemos surgem contradições,
se nosso procedimento ê censurado, se o acerto de nosso
intento, ou a prudência de nossas decisões forem contesta­
das, se nos retirarem a Obra começada, para confiá-la a ou-

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tros, da maneira pela qual recebemos essas humilhações, in­
fere-se a pureza de nosso propõsito.
Dá-se o mesmo com as demais virtudes, a doçura, o
amor do próximo. A provação denota-lhes a sinceridade ·e
perfeição. Ensina-nos, pois, a nos conhecermos a nós mes­
mos, e a melhor conhecermos a Deus. Adquirimos, na pro­
vação bem aceita, uma idéia mais justa de sua santidade,
que exige uma purificação severa, mesmo das almas apa­
rentemente muito puras; de sua sabedoria insondável, cujas
veredas são tão diferentes das nossas; de seu poder, que
pode tirar o bem do mal; de seu amor, que se manifesta
mesmo quando castiga: quos amo castigo, e que sabe unir
a paz e o consolo às mais duras provações.
130. A provação ilumina a alma sincera, desvenda-lhe
o mal o.culto nas dobras de seu coração. Faz mais, porém,
que revelar o mal, ataca-o, contanto que saibamos tirar pro­
veito de sua ação benfazeja.
A dor, humilhando-nos, torna-nos melhores. Faz-nos
sentir mais vivamente nossa incapacidade e nosso nada. Um
ferido, que não pode mais levantar-se, recorre aos transeun­
tes, não se prevalece mais de suas forças. Assim também
aquele a quem o sofrimento feriu, humilha-se e solicita
socorro e alívio, mesmo junto a seus inferiores, ou àqueles
a quem não estima. Se, como é frequente, os homens são
incapazes de consolar aquele que sofre, então este volta-se
para Deus_. implorando-o humilde e insistentemente. Quan­
tas vezes a dor aproximou de Deus homens que a pros­
peridade dele afastara? Abençoado o sofrimento que leva
o filho pródigo ao lar paterno.
131. Se a dor converte IIluilos pecadores, santifica tam­
bCm muitas almas piedosas. Parece até impossível que cer­
tas almas alcancem a perfeição sem passar pelo sofrimen­
to. Purificam-se, primeiro, de tudo quanto nelas é impuro,
imperfeito, de tudo quanto, em suas obras, não C sobre­
natural. Temos ótima ocasião de desaprovar e de afastar para
longe de nós as preocupações egoístas, que nem sequer
suspeitávamos, e que se manifestam nas separações, nos re-

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veses e contradições, aceitando alegre e amorosamente a
vontade divina. Sim, meu Deus, permitindo vós esta separa­
ção, este malogro, estas críticas, quisestes privar-me dos pra­
zeres humanos que se misturavam à alegria de trabalhar
para vós; só me resta agora a satisfação de haver feito o
bem e procurado agradar-vosj as consolações naturais que
teria encontrado, além do êxito, nos aplausos e na estima
do próximo, vós mas retirais; a dor que sinto, prova quan­
to as desejava; mas de bom grado renuncio hoje a elas e
me regozijo de não ter outra recompensa senão a de vos
agradar.
Este ato de verdadeiro amor é tão agradável a Deus,
que, para no-lo fazer praticar, permitirá por vezes o fra­
casso de obras, excelentes em si (1).
Teremos assim ocasião de nos tornarmos mais puros
e mais santos, o que Deus deseja antes de tudo. Ele pre­
fere ser glorificado pelas nossas virtudes do que pelas nossas
obras, pela nossa humildade e nosso amor, do que pelos
mais brilhantes êxitos exteriores.
Quantos atos de virtude não poderá ainda a dor s11s­
ci1ar? No sofrimento, a fé se ilumina, a esperança se torna
ardente e inabalável, o amor se fortificá e se dilata. A prá­
tica destas três virtudes teologais brota espontaneamente
da alma fiel, entregue à dor;. e quantas outras virtudes
não as acompanham? a paciência, a ren(mcía, a suavidade,
\"irtudes tão belas, tão agradáveis a Deus, se exercem
como que naturalmente e acrescem muito aos méritos já
adquiridos.
Sem o sofrimento preparado pela Providência, quem
seria bastante corajoso para aplicar a si mesmo o ferro e o
fogo que suprimem e consomem os apegos imperfeitos, as
afeições puramente naturais, esses inúmeros laços que en­
cadeiam as almas, impedindo-as de voar para as alturas da
perfeição?
1J Quando São Luís empreendeu as cruzadas, não tinha outro
rito senão a glóri:i, de Deus; entretanto, só encontrou rev88el:I e du­
graças; Dl!US, permitindo tais prov...;ões, fez dela um. santo.

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CAPITULO XVII

Do bom aproveitamento da dor


SI (amn/Orlul sum11s d convlvc11111s, si su:rtincbi•
mus, d conrtRMlllinQs.
Se 01orrermo� c:oo1 Cri,to, con1 ele \"lvutmos. �e
com �le solrermos, con, ele tamh�m rrinar,­
mn� (2 Tim 2, 11).

1. -Como praticar a resignação ent nossos sofrimentos.

132. A dor só produz efeitos providenciais na .alma que


sabe governar esta paixão e tirar proveito de seus sofrimen­
tos. Há, na dor, um germe de vida e um germe de morte, que
servirá quer ao nosso progresso, quer à nossa perdição, se­
gundo o uso que dela fizermos.
O mal que nos atinge pode provocar a nossa cólera,
ou exercitar a nossa paciência. Já dissemos que o Senhor
colocou na alma, e também nos seres inferiores dotados de
sensibilidade, como que um impulso possante, que se mo­
vimenta quando surge um obstáculo à aquisição de um be.m
que nos atrai, ou quando um mal nos ameaça. E o apetite
i.rascível, força instintiva e cega, que não espera, para agir,
o juízo da razão, afasta com violência o mal ou o obstáculo
ao bem cobiçado.
Esta força de grande utilidade existia cm nossos pri­
meiros pais antes de sua queda_. Era, porém, inteiramente
submissa à razão, cuja justa sentença aguardava para se
exercer e cuja auxiliar dedicada e serva obediente era. Já
não é assim depois do pecado; e se esforços generosos e
perseverantes, se principalmente uma graça poderosa, alcan-
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çada por ardentes preces, não dominarem essa força irasci­
vel, a mínima contrariedade produzirã um movimento de
impaciência ou de cólera, que é uma desordem, sempre pre­
judicial à alma.
Na criança, a quem a razão não ilumma e a educação
ainda não formou, podemos estudar esses impulsos instin­
tivos de impaciência e de cólera; ver o quanto são desordena­
dos e indignos de uma criatura racional e submissa a Deus.
Retirai da criança o seu brinquedo e pôr-se-á a chorar, a
sapatear fitando àvidamente os olhos no objeto que lhe foi
retirado; parece sair de si mesma e passar-se toda para essa
bagatela, esse nada que a cativava; se não lho devQlverdes,
parece-lhe que lhe retirais a vida. Ai de nós! Seremos mais
razoáveis cm nossas impaciências? Quando nos é retirado
algum objeto ao qual estávamos apegados, saúde, bens de
fortuna, estima dos homens, não patenteiam, com frequência,
as impaciências, a cólera contida, ou a dor e o abatimento,
que nossa alma estava unida a esse objeto, sem o qual
não podemos viver?
Caia doente uma pessoa que não sabe governar e mo­
derar seus sofrimentos, e pensará constantemente na saúde
perdida, representando as alegrias de que poderia ainda go­
zar, as satisfações que se poderia conceder, enumerando
minuciosamente os inconvenientes, os dissabores, as tri­
bulações da enfermidade. E esses cálculos vãos, essas quei­
ns estéreis, a preocuparão a tal ponto que perderã de vista
coisas muito mais úteis, chegando mesmo, tão absorvida estã
pela dor, a negligenciar seus deveres. Se essa desordem se
prolongar, será uma vida perdida, talvez uma alma deses­
perada para sempre.
133. Deus poderia sem dúvida dissipar essas idéias som­
brias e fazer reinar a paz na alma, acalmando-lhe os de­
sejos e, por conseguinte, diminuindo-lhe os sofrimentos que
lhe causam as decepções. Quem nada deseja, com nada se
aflige. Deus jã concedeu semelhante graça a almas. herói­
cas, a fim de recompensã-las de longos e penosos sacrifícios.
As almas generosas, que combateram por largo tempo, em-

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hora sem obter um completo apaziguamento, vêem diminuir
as atrações inferiores e, consequentemente, os sofrimentos.
Quando as aflições provêm de apegos naturais e im­
perfeitos, é mister renunciar sinceramente a esses apegos
e agradecer ao Senhor que nos ajuda na obra tão necessá­
ria quão dificil do despojamento.
Mas nossos sofrimentos podem nada ter de repreen­
sível. As próprias almas perfeitas sobram ocasiões de dor;
pessoas legitimamente amadas lhes serão arrebatadas, bens
de gram.le utilidade lhes serão retirados, verdadeiras des­
graças virão feri-las. E como os impulsos do coração para
o ente querido que desapareceu nascem de uma afeição
permitida por Deus, a dor que provocam ê licita; não deixa:,
·todavia, de entrar, nos planos divinos, como punição ao
pecado e meio de progresso.
134. Como então governar a dor, moderá-la e impedir
que se torne nociva? Por um ato de resignação, de sub­
missão à vontade divina, que deve substituir em nosso co­
ração a tristeza causada pela provação. Tal ato não será sin­
cero e perfeito st não pr.ocuramos afastar da mem6rla, tan­
to. quanto possível, a lembrança daquilo que nos causa pesar.
Se largarmos as rédeas aos nossos pensamentos, permitin­
do que se entreguem livremente ao objeto querido de que
estamos privados, ou ao mal que ora nos aflige, nossa dor
aumentará cada vez mais e oprimirá pesadamente nosso
pobre coração, que ficará como que esmagado. Cada olhar
dirigido ao objeto amado excita a afeição; o atrativo sem­
pre vivo que move o coração torna-se irJ'esistivel; a tris­
teza, que resulta da perda dos objetos, não sendo senão
essa atração invertida, torna-se dominante e irresistlvel co­
mo a própria atração. Quem se presta a essa ação invasora
da tristeza, quem se deixa dominar por ela, perde, por cul­
pa própria, parte de sua liberdade; ver-se-á dentro em pouco
como que acorrentado, paralisado pela dor, não dispondo,
para agir, da força de outrora.
Esse entorpecimento da alma se produz naqueles que
pensam demasiadamente em seus defeitos e pecados, ou an-

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tes, que neles pensam sem acrescentar, como de dever, a
lembrança das bondades e das misericórdias divinas. Ocu­
pando-se muito mais de si e pouco de Deus, trazem cons­
tantemente presente o triste espetáculo de suas misérias; as­
semelham-se às pessoas vaidosas que, tendo no rosto uma
ferida, se desolam com sua fealdade, e miram-se constante­
mente no espelho para verificar se o mal jã cicatrizou.
135. Serã então necessário procurar um derivativo à
dor, entregar-se a novos atrativos que substituam as satis­
fações perdidas, recorrer a consolações humanas, dando a
outros objetos, ou pessoas, o lugar daqueles que nos fo­
ram arrebatados?
Essa maneira de acalmar a dor não é por certo a me­
lhor e vai, com frequência, de encontro aos planos de Deus.
Que se propõe, com efeito, o Senhor quando nos retira os
bens deste mundo, ou nos separa dos entes queridos? Quer
désprender-nos das criaturas para unir-nos mais intima­
mente a si. Se, portanto, à medida que rompe os laços que
nos tolhem o vôo, forjamos outras correntes, não faremos
nós mesmos a nossa desgraça?
Hã sempre um desígnio misericordioso da Providência
nas provações que nos ferem. O saber humano, tão limitado,
vê na provação um obstáculo aos bens, à.os ditosos efei­
tos por que suspirava. Assim a enfermidade, obrigando­
nos a guardar o leito, afigura-se-nos como a ruina dos belos
projetos que havíamos formado. Mas os desígnios de Deus
não são os nossos e ele visa santificar-nos por meio da mo­
léstia que, bem aceita, produzirã frutos maravilhosos. Se,
ao contrátio, o doente lamentar a satldc perdida, se pro­
curar consolar-se com ilusões fomentadas cuidadosamente,
se se obstinar, mesmo, a continuar uma vida ativa, infor­
mando-se àvidamentc de tudo quanto lhe diz respeito, en­
tregando-se a toda sorte de cálculos, de previsões, de crí­
ticas, levando, portanto, uma vida toda exterior e deixando
de tirar proveito, para sua santificação, da solidão à qual
o condena a enfermidade, obsta aos planos divinos. Deus
pretende destruir o ardor demasiado humano desse cristão

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fiel, a atividade ultra-natural que lhe prejudicou as melho­
res obras, enquanto gozou saúde. Deus quer fazê-lo morrei
a tudo quanto é imperfeito e pessoal; quer que esse servo de­
dicado se esqueça de si mesmo e trabalhe, com uma intençãc
muito pura, para a glória de seu divino Mestre. Se ·soube1
renunciar com generosidade aos seus próprios gostos, acei­
tando amorosamente esse estado de inutilidade, e de aniqui­
lamento, que é a moléstia, chegará a não agir senão em vir­
tude da vontade de Deus, tudo fazendo na medida e se­
gundo o querer divino.
Quando a vontade do cristão está assim purificada pe­
la resignação· absoluta, tudo quanto empreender será ab_en­
çoado por Deus. Então, mesmo que suas obras não aparen­
tem êxito, seu esforços produzirão efeitos que, embora ocul­
tos, serão ótimos; mais ainda, seus próprios sofrirnentm
não são menos fecundos que suas obras, e do seu leito d1"
dor, talvez seja tão útil à Igreja quanto os operários mais
ativos, os apóstolos mais zelosos.

IL As perfeições divinas e a dor.

136. E' fácil santificar as provações quando con1pre­


endemos o papel da dor no plano divino. "Quem fará com
que minha oração seja ouvida, dizia Job, e que Deus me con­
ceda aquilo que espero? isto é, que ele se digne esmagar­
mc, pondo fim aos meus dias à mercê de sua vontade e
me reste ainda este consolo, e que exulte sob os golpes de
uma dor implacável, por não haver contestado os decretos
do Santo dos Santos" (Job 6, 8-10). Que Deus satisfaça, por­
tanto, sua justiça, contente sua santidade, exerça seu poder,
e, que sua própria bondade proé:eda livremente, mergulhando­
me na dor e retirando dessa mesma dor todos os hcnefi­
cios que encerra.
São os atributos de Deus que exigem o sofrimento da
criatura humana e o fazem servir aos desígnios da sabedoria
eterna. Diante da desordem terrível que é o pecado, a jus­
tiça incorruptível reclama uma expiação; não pode desis-
156

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tir de seus direitos; Deus deixaria de ser Deus se não cas­
tigasse o pecado. Job, com todos aqueles a quem a santi­
dade da vida valeu grandes esclarecimentos, compreendia
a equidade da sentença divina, que condena o homem pe­
cador ao sofrimento. Como todas as almas perfeitas, sentia
em si um vivo desejo de pagar suas dividas à jllstiça di­
vina. As mesmas luzes da graça revelavam-lhe ainda a
pureza que o Deus infinitamente santo reclama de seus
amigos e desejava ser purificado pelo sofrimento. Sabia
também que a Sabedoria incriada atinge seus fins por vias
inteiramente opostas às dos homens e conduz à felicidade
pelo sofrimento. Sabia que o Deus infinitamente poderoso
e infinitamente bom podia procurar-lhe, por este meio, os
mais preciosos bens. Como não pedir então ao Senhor que
fosse até ao fim, e completasse nele sua obra, amarga, sem
dúvida, porém benfazeja. Esse homem justo não deseja
contradizer os decretos do Deus santo, pois, se os planos
divinos são sabedoria e bondade, pode o homem, infelizmente,
fazê-los fracassar, ou, ao menos, impedir-lhe a plena rea­
lização. Job deseja, portanto, e pede que não seja obstáculo
aos desígnios de seu Deus.
137. Deus ficará satisfeito e nisto encontrará sua glória.
Que importa, pois, que eu gema; que importa que lima míse­
ra cr.iatura sofra, se Deus for glorificado, que importa que
um ser, utn nada, seja esmagado, se Deus ficar contente!
Haveria quem protestasse se, para agrado do rei, fosse
esmagado um pobre vermezinho, de cujo corpo moído exa­
lasse suave perfume? ou quem criticasse o consumo de
grãos de incenso, queimados para aromatizar uma igreja,
deleitar os fiéis e honrar a Deus? Pois bem, somos nós
esses vermezinhos, esses pobres grãos de incenso; devemos
considerar-nos felizes se, por meio de sofrimentos santa­
mente suportados, fizéramos subir até ao trono de nosso
Deus um delicioso perfume.
138. Tais os pensamentos a que devemos recorrer quan­
do a dor nos oprime, em vez de recordar os fatos que nos
entristecem, ou reanimar, inllltilmente, uma ferida que o tem-
157

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po cicatrizará. Quem maltratasse por prazer uma ferida sua
e lhe rasgasse continuamente os tecidos que se refazem,
procederia como um louco. Não é menos insensato quem
repassa constantemente na memória as causas de seus so­
frimentos, as faltas de seus irmãos para com ele, as in­
justiças de que se julga vítima, ou os golpes da Providência
que o fere. Ao contrário, devemos humilhar-nos e reconhe­
cer que tais sofrimentos estão muito aquém do que mere­
cemos, pois, se viéssemos a morrer, passaríamos por um
rigoroso purgatório para expiar nossos pecados. Merecemos
ser lançados ao fogo; como então podemos nos queixar?
Nossas pobres almas, tão manchadas pelo pecado, pelo
apego a nós mesmos e a toda espécie de imperfeições,
precisam ser purificadas pelo sofrimento para se tornarem
agradáveis aos olhos do Deus infinitamente santo. Há em
nós como que uma marca que nos desfigura e não pode
ser arrancada sem uma acerba dor. E é este o pensamen­
to que torna as almas humildes cada vez mais pacientes,
enquanto que a falta de resignação indica um orgulho
recôndito.
139. Deus é justo quando nos experimenta; sua bon­
dade, porém, brilha ainda mais que sua justiça. Com efeito,
ele quer que essa dor, ao lavar e purificar as almas, lhes
dilate, ao mesmo tempo, a beleza e os méritos. A dor passa,
o mérito perdura; tantas outras penas já passaram, de que
nem sequer nos lembramos. Deus, porém, conservou-lhes
a lembrança, a fim de recompensar. Momentaneum et leve
tribulalionis nosfrae aeternum gloriae pondus operatur in
nobis. Nossas penas são passageiras e leves, mas, no gran­
de dia em que se fixar a nossa sorte, cada qual produzirá,
e para sempre, novo esplendor de glõria.
Deus é justo e santo, Deus é bom quando nos expe­
rimenta. Se, na dor, elevarmos para ele o olhar, de nosso
coração partirá um fiai generoso, que será um ato de amor
perfeito. Talvez o esforço passageiro despendido será de
efeito transitório e a lembrança do sofrimento nos perseguirá,
mau grado nosso. A dor, afastada num momento pela re-
158

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signação, voltaria ao coração; um novo esforço, porém, pro­
duzirá novo ato de submissão. Se fitarmos outra vez os olhos
11.as grandezas e perfeições de Deus, na sua bondade e san­
tidade infinitas, faremos então outro ato de amor. Tantas
ll'itórias alcançadas sobre a natureza, cem por dia talvez, tan­
tos passos dados no caminho do amor e da perfeição.

lff. Os exemplos de Je1u1.

140. Mas Deus está no alto; ultrapassa de tal forma


as nossas fracas concepções, que poucos são aqueles que
se impressionam com suas grandezas e possuem o conheci­
mento de seus atributos. E' graça insigne fazer da Divin­
dade uma idéia que arrebata e esmaga, enquanto consola
e reconforta. Aqueles que não recebem vivas luzes de fé
não se comovem com as perfeições divinas, ou pouco e de
passagem; não compreendem senão imperfeitamente as exi­
gências de sua justiça e de sua santidade; como poderiam
então encontrar no pensamento das grandezas de Deus
um alivio aos próprios males? Não haverá um meio, ao alcance
da fraqueza humana para atingir esse Deus tão elevado?
Um caminho seguro e fácil que leve a ele? Ego sum via. "Eu
sou o caminho", responde nosso Senhor, e ninguém chega
a meu Pai senão por mim. Qui videt me videt et Palrem.
"Aquele que me vê, vê o meu Pai". Consideremos, por con­
seguinte, a Jesus, aprendamos a conhecê-lo, a fazer uma
idéia exata de suas disposições intimas, de sua ciência, de
sua admirável sabedoria, do poder imenso de amor que está
cm seu Coração. Contemplemo-lo, sigamo-lo com carinho
l'!ITI seus mistérios, em seu nascimento tão pobre, em sua ju­
ll'entude, nas fadigas de suas excursões evangélicas, em sua
paixão, em sua Eucaristia, onde é tão desconhecido e 111,traja­
do. Vejamos o que Ele, o Filho do Deus todo-poderôso, o
Verbo eterno feito homem por nós, suportou, e a disposição
de alma com que sofreu. Então, nossas tribulações não nos
surpreenderão e compreenderemos a glória que podem pro­
l)fll cionar a Deus e a vantagem que nos podem trazer a nós.

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Quando nos sobrevier uma provação, saibamos dizer:
"E' uma ligeira picada da coroa de espinhos, um leve roçar
da vara da flagelação. Nossas mais penosas humilhações não
passam de uma pequena participação às afrontas e ignomí­
nias de Jesus".
141. Que doutor de paciência foi o meigo Jesus e que
ciência de sublime resignação podemos adquirir em sua t:S­
cola: "Bem-aventurados os que sofrem, disse ele, bem-aven­
turados os que choram ... Em verdade, vos digo, chorareis
e gemereis, mas vossa tristeza se há de converter em gáudio e
essa alegria ninguém vo-la tirará. Sereis felizes quando vos
carregarem de injúrias, por causa do Filho do homemj re­
gozijai-vos e exultai de alegria, pois grande é vossa re­
compensa!"
142. Palavras consoladoras. Menos, porém, que seus
exemplos. Quem aprendeu com ele a suportar valorosamente
os sofrimentos, vê em cada provação a mão benfazeja de
Deus. Contenta-se cm assemelhar-se a Jesus. Sabe que, "tor­
nado conforme a imagem do Filho unigênito", tornou-se tam­
bém, com ele, o objeto das complacências do Pai eterno,
tanto mais caro ao Coração de Deus. quanto mais se asse­
melhar ao Filho.
A tal tende a ação do Esplrito Santo em nossas al­
mas, a tornar-nos, segundo a palavra de São Paulo, seme­
lhantes ao Cristo, modelo perfeito, exemplar sublime, que
devemos reproduzir conforme depender de nós. Ele é o cepo,
nós os ramos; suas perfeições, suas qualidades devem viver
cm nós. Ele praticou a adoração, a satisfação, a confor­
midade à vontade do Pai em grau supereminente; essas
virtudes, nosso divino Chefe as quer ver reproduzidas, de
algum modo, em nossas almas.
f!1anifestaram-se nas tribulações do Homem-Deus; de­
vem manifestar-se agora, cm nós, pela provação.
143. Devemos, portanto, estudar a Jesus, procurar em
que o podemos imitar. Vendo-lhe as mãos pregadas na cruz,
elevo perguntar-me que pregos atravessarão as minhas mãos,
onde estará a cruz que as firmará. Minha cruz é o dever,

160

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o dever de estado ao qual a vontade divina me quer manter
unido. Os pregos que me atravessarão as mãos, os golpes
que me hão de ferir são as dificuldades que encontrarei
na prâtica de meus deveres e que precisarei dominar, re­
dobrando os esforços; são os incidentes que se apresen­
tarem impedindo-me o repouso; são as obrigações que mé
retiverem quando o prazer me chamar alhures. Ou então,
pelo contrário, minha cru.z é a inação; os pregos são a en­
fermidade, a incapacidade, é a perseguição, que me proíbe
as obras ativas.
Quando Deus quiser que eu me dedique, que me en­
tregue a fadigas penosas, poderei considerar Jesus em seu
trabalho de Nazaré ou em suas caminhadas evangélicas,
perseguindo com seu amor as ovelhas desgarradas. Quando
me suspender o trabalho, poderei conternplâ-lo em oração,
enquanto seus apóstolos pregavam e operavam milagres
em seu nome. Em meus reveses, poderei pensar em Jesus
agonizante, abandonado, renegado pelos discípulos e dei­
xando aos apóstolos a honra de fundar a Igreja, de pro­
pagá-la por toda a terra. Morto ele, sua obra estava, aparen­
temente, perdida, a derrota não podia parecer mais com­
pleta. Humilhando-se, porém, aceitando todos os opróbrios
da Paixão, os sarcasmos dos inimigos que se regozijavam
do triunfo alcançado, merecia e preparava o futuro êxito
elos apóstolos.
Jesus quis passar por Íoda sorte de provações, a fim
de que, em todas as nossas dificuldades, encontrássemos as
graças particularçs que nos mereceu e fôssemos sustentados
pelos exemplos que nos deu.
A alma que passa por numerosos sofrimentos, cami­
nhando sempre nos passos de Jesus, merece ser purificada
de suas manchas e enriquecida com todas as virtudes. Asse­
melha-se ao modelo divino; jesus desce em sua alma, une­
se intimamente a ela e ela pode exclamar cm· toda sin­
ceridade: "Já não vivo eu, mas Jesus é quem vive cm mim".

Ó caminho - 11 161

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CAPiTULO XVIII

Do amor de Deus e dos meios de dilatâ•lo

Dtus carltas esl: qul manei ir, carilate. ln l)co


m1111et et Dtus ln ro.
Deus ,! amor; quem permanece no amor, rcr­
manett cm Deus e Deus nele (1 Jo 4, Ili),

1. A caridade em ses relações com as outras virludes teologais.

144. A caridade é a rainha das virtudes. "Amarás o


Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma,
de todo o teu espírito, eis o primeiro e o maior de todos os
mandamentos", disse nosso Senhor. Sem a caridade, as de­
mais virtudes, os demais dons, não têm valor diante de
Deus. "Ainda que fale as línguas dos homens e dos anjos,
disse São Paulo, se não tiver caridade, sou como o metal
que soa ou como o címbalo que tine. E ainda que tenha o
dom de profecia e conheça todos os mistérios e todas as
ciências; ainda que tenha fé, ao ponto de transportar mon­
tanhas, se não tiver caridade, nada sou; e ainda que dis­
tribua aos pobres todos os meus bens, e que entregue o
meu corpo às chamas, se não tiver caridade, nada disto
me aproveita" (1 Cor 13, 1-3).
Há três grandes virtudes, a fé, a esperança e a ca­
ridade; mas a caridade é a maior de todas. As outras pas­
sam; no céu a fé e a esperança não existirão mais; a ca­
ridade, porém, subsistirá de modo muito superior ao que
é neste mundo, onde tantos obstáculos a comprimem, tan­
tas imperfeições a desfiguram, e tantas ocupações lhe sus-

162

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pendem o curso. No céu, sem empecilhos, será perfeita,
ininterrupta.
145. Mas, se no céu a caridade se pode exercer livre­
mente, só se exercerá, entretanto, na medida exata que tir
ver atingido na terra. Se não é dado ao gigante e à criança,
presos por sólidas algemas, manifestar as respetivas forças,
todavia, por certos movimentos, o gigante provará que C
mais robusto. Se lhes forem cortados os grilhões, nem um
nem outro adquirirá novas forças, mas, incontinenti, poderão
revelar aquelas que possuem. Assim, quando chegarmos ao
cCu, os obstáculos que encadeavam nosso amor desaparecl?­
rão; amaremos a Deus com todas as nossas forças, mas nosso
amor não será maior, pois seu progresso cessa no mo­
mento da morte; tal era naquela hora suprema, tal será
por toda a eternidade. Como há na terra alguns cristãos
perfeitos, que são de certo modo gigantes de amor, e outros,
muito mais numerosos, cujo amor é menos ardente, assim
será também no céu. Todos amarão cabalmente, é verdade,
e gozarão de seu amor; mas a potência de amar e o gozo
que lhes proporciona, variam conforme o eleito.
146. Se as outras virtudes teologais não têm a sobe­
rana importância da caridade, abrem-lhe os caminhos e dis­
põem os corações a praticá-la; quanto mais perfeitas forem,
mais perfeito será o amor. A alma fervorosa velou cuidado­
samente sobre sua inteligência, privou-a dos pensamentos
vãos e alimentou-a das grandes verdades. Deus, em troca,
comunicou-lhe vivas luzes; ela goza de uma fé esclarecida.
Soube também mortificar as tendências de seu coração, e
já não deseja os bens naturais por si mesmos, nem se en­
trega a alegrias puramente humanas, nada receia senão
ofender a Deus e não se deixa paralisar pela tristeza. Seu
coração está livre e lança-se com ímpeto em busca de Deus,
seu bem supremo, a quem deseja ünicamente. E' a esperança
ardente e perfeita.
Mas este Deus, que constitui a felicidade da alma fiel,
é não sõmente o seu Bem, mas é o Bem absoluto, digno de
toda admiração, de toda estima. A alma fiel, esclarecida

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pela fé viva, elevada a Deus pelo impulso vigoroso da es
perança, deleita-se com o pensamento das grandezas in
finitas de Deus, de sua beleza, de seu amor, e encontr.
nesse ser sublime encantos inesgotãveis, que a enlevam. De
seja, então, unir-se de novo a ele, não só pela felicidadl
que lhe advirã dessa união, mas pela necessidade impres
cindível, pela ternura instintiva de seu amor. A este Deu:
tão bom, tão belo, tão encantador, ela deseja todos os bens
alegra-se com a sua felicidade e evita tudo que lhe desa­
grada e procura, a todo custo, o que lhe apraz. Não se con
teAta com desejos estéreis, mas procede de acordo com seu:
sentimentos.
Eis o amor verdadeiro, isento de qualquer mescla. Sen­
timento tão justo, tão razoável e tão perfeito, rarament«
se encontra só; em geral, une-se a outros, menos elevados
como o temor do castigo, a procura da felicidade eterna
não se tolhem, porém, uns aos outros; cada qual tem se,.
merecimento próprio, se souber conseguir da vontade urn�
determinação sincera de fazer o bem e de evitar o mal.

li. Extenaio da caridade.

147. São Paulo deseja que os efésios conheçam ben


o comprimento, a largura e a elevação da bondade de Deu:
e do amor que tem aos homens. Terá também dimensões e
amor do homem para com Deus, esse fogo da caridade qu(
se encontra em toda alma em estado de graça? Será umc
simples chama, uma fogueira, ou um vasto incêndio? Su1
largura depende da extensão do bem que o homem que1
abraçar. Se pretende, para agradar a Deus, cumprir apena:
com seus deveres essenciais, evitando tudo quanto poss.i
provocar um rompimento entre Deus e ele, estreito é set
amor. Se procura evitar toda falta venial deliberada, alarga-si
sua caridade; se quer realizar, para Deus, obras de su­
pererrogação, principalmente as que custem à natureza, ess.:
caridade alarga-se ainda. Se, finalmente, para honrar 1
alegrar a Deus, está decidido a não se poupar em nada 1

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a escolher sempre entre as coisas permitidas a mais per­
feita, então sua caridade se dilata inteiramente. O com­
primento do amor depende da firmeza e da intensidade da
vontade em prosseguir no bem. O amor produzido por
uma vontade fraca e mole não vai longe, e pira diante da
primeira dificuldade; se, ao contrário, provier de uma von­
tade enérgica, dominará todos os obstáculos, e sua influ­
ência se estenderá a inúmeros atos. A elevação do amor
depende do grau de estima que a alma tem por Deus e
do modo pelo qual essa estima influi nos diversos atos que
ela pratica. Até as almas vulgares compreendem que Deus
seja preferível a todas as criaturas; mas essa estima e o
desejo que têm de não desagradar a um ser tão admirável
exerce sobre elas bastante força para levá-las a renunciar
ao pecado; devem acrescentar ainda motivos do interesse
próprio junto ao temor de incorrer em severos castigos.
As almas já adiantadas, que têm de Deus um conhecimenh>
mais elevado, desejam também evitar o inferno e se preparar
uma eternidade feliz. Evitam, por conseguinte, e a todo custo,
o pecado, mas procuram também dar prazer a Deus e não
ofender a um Deus tão digno de amor. Estão, portanto,
decididas a não pecar. Quanto maior for o conhecimento
de Deus, quanto maior a admiração por Deus, tanto mais
elevado será o amor. Nas almas santas, a quem a fé es­
clarecida dá tão belas noções de Deus, o amor atinge uma
altura sublime.
IIL O amor de Deus, modelo do nosso.

148. Quanto mais cresce o nosso amor, tanto mais agra­


dáveis nos tornamos a Deus. O amor, mais que qualquer ou­
tra virtude, embeleza nossas almas porque, mais que qual­
qner outra, nos torna semelhantes a Deus.
Deus é caridade. Deus carilas est, diz o apóstolo São
João. "Tu me chamas teu grande Deus, teu Mestre e teu
Senhor, disse Jesus a uma de suas esposas, e dizes bem,
porque eu o sou. mas sou também caridade. Amor é o meu
�orne, e assim desejo que me trates doravante. Os homens
165

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dão-me muitos nomes, nenhum, porém, me agrada mais
nem exprime, melhor que este, o que eu sou em relação a
eles" ( 1 )
Deus Pai, ao contemplar seu Filho, cuja maravilhasa
beleza o encanta, produz como que uma onda infinita de
amor e alegria, e o Filho, ao contemplar a suprema beleza
do Pai, lhe devolve essa onda de amor e alegria, que vai
assim de um a outro, que é única, pois é a mesma vontade,
comum ao Pai e ao Filho, que produz esse amor, e é a
mesma bondade, comum ao Pai e ao Filho, que é amada.
Esse suspiro de amor, essa onda de amor, que é o Espirito
Santo, é, portanto, o vínculo perfeito da Santíssima Trin-
dade. As três pessoas divinas são unidas no amor e pelo
amor; o amor lhes é alimento e vida.
Foi também o amor que decidiu o Senhor a comuni-
car seus bens às criaturas. Por amor, ele criou os anjos e
os homens; por amor, ofereceu-lhes os mais preciosos dons,
e, ainda por amor, santifica e glorifica aqueles que aceitam
esses dons. Em Deus há, pois, um só ato, cujo verdadeiro
nome é amor. O mesmo calor solar que seca e endurece a
argila, amolece também a cera; o mesmo fogo que nos aque-
ce e nos torna apetitosos os alimentos, pode consumir e
destruir ó que possuímos de mais precioso; a causa é uma,
mas os efeitos variam segundo as circunstlncias, ou as
disposições daqueles que lhes sofrem a ação. O amor faz
brotar do coração de Deus como um eflúvio luminoso e abra-
sador que deve produzir a santidade e a beatitude; esse
eflúvio, não encontrando obstáculo no justo, santifica-o e
fá-lo feliz; no pecador arrependido, com boas disposições,
mas com apegos a destruir, gera simultaneamente dor e
alegria; no condenado, porém, diante de sua resisti!ncia te-
naz, produz a tortura, que é tanto mais cruel, quanto mais
viva for a oposição, mais ardente o ódio, mais insolente a
revolta.
Em Deus, que não carece de ninguém, o amor é todo
desinteressado; não deixa, porém, de tender à união, pois
1) Vida da Ven erável Maria da Encarn ação (Ur11.1lin a), pelo
Padre Cbapot, 1• parte, cap. lV.
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Deus quer unir-nos a ele. O amor que Deus nos tem não é
um amor de simples compaixão, qual o do rico para com
o mendigo, mas de amizade. O amor que nasce da ambi­
ção tende também à união, porque quer possuir tudo que
lhe apetece, mas o amor desinteressado, sendo um amor
de amizade, tende à união afetiva; quer fundir-se com o
ente querido, quer partilhar seus sentimentos íntimos, seus
segredos recônditos, seus bens preciosos.
Tal é o amor de Deus para conosco; a nós retribuir­
lhe o mesmo amor, que se deve modelar no dele. E' verdade
que, em nós, que temos necessidade de Deus, o amor de am­
bição é legítimo, e Deus não deixará de nos aprovar se
nele procuramos a nossa felicidade. Mas quando, esquecidos
.de nós mesmos e vencidos por seus encantos, empolgados
na admiração de seus atributos, tendemos a ele por uma
pL,1,ra afeição, então tal ato de verdadeiro amor lhe é muito
mais agradável.

IV. Os elementos do amor.

149. O amor comporta dois sentimentos igualmente


distintos e necessários: a complacência e a benevolência. As
qualidades dos entes queridos nos enlevam: é a complacên­
cia; queremos bem àqueles cujos dotes nos cativam: é a
benevolência. Suscitar tais sentimentos no próprio coração
ê praticar o amor afetivo. E é sobretudo na oração que o
amor afetivo para com Deus se exerce e se dilata.
Esse amor só será sincero se for acompanhado do amor
afetivo, que opera e pelo qual servimos a Deus. Amará sin­
ceramente quem, afirmando querer bem a alguém, se re­
cusa, no entanto, a lho fazer? Pilatos, ao encontrar-se na
presença de Jesus, estimou-o e quis-lhe bem; sua conduta,
porém, desmentiu tão belos conceitos, ou antes, provou que
sua benevolência não era real. Houve desejo, veleidade, não
houve, porém, vontade sincera de salvar o Justo. Nossas vir­
tudes devem provar a realidade de nossos sentimentos in­
teriores e manifestar-lhes o valor exato. Querer julgar da

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intensidade do amor pelos surtos do coração é expor-se a
ilusões certas. A renúncia à própria vontade e a aceitação
amorosa e inteira da vontade divina, manifesta nos mídti­
plos acontecimentos da vida, eis a prova do verdadeiro amor.
Se o amor perfeito não pode nascer nem crescer sem o exer­
cício da oração e a prática constante do amor afetivo, tão
pouco se pode desenvolver sem as obras, sem a luta ge­
nerosa contra os defeitos, e a fidelidade às virtudes cristãs.

V. O amor perfeito.

150. Que significa: amor perfeito? Em rigor, pode signi­


ficar um ato passageiro de caridade perfeita; não passa en­
tão da resolução sincera de evitar todo pecado mortal, a
fim de não ofender o Deus infinitamente bom, infinitamen­
te digno de amor. Esta disposição basta à alma para alcan­
çar o perdão das faltas graves e recuperar a graça santifi­
cante que perdera. Não é este, porém, o sentido que damos
a estas duas palavras: amor perfeito. Não é tão pouco o
amor sem interrupção nem desfalecimento, que só pode exis­
tir no céu.
Uma alma atinge, na terra, o amor perfeito quando se
encontra na disposição habitual de renunciar a tudo quan­
to lhe possa arrefecer o ardor da caridade; quando não
tem, portanto, apego algum voluntário, nem às faltas ligeiras,
nem às imperfeições; quando se propõe a fazer, em tudo.
o que Deus quer, e como Deus quer; quando esta resolu­
ção não é fruto de mn impeto de entusiasmo, em que a
imaginação e a sensibilidade têm parte saliente, e sim uma
determinação calma, firme e constante da vontade, que co­
nhece as dificuldades, os obstáculos, mas sabe vencê-los.
O amor perfeito supõe um amor de complacência, mui­
to desenvolvido, que só é dado àqueles a quem empolga
a beleza de Deus, e que têm por esse Deus tão grande e
tão bom estima ardente e viva admiração. Nessas almas não
é só de longe em longe que seu pensamento se eleva a Deus.
Seria razoável dar o nome de amor perfeito ao seu amor,

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se passassem horas inteiras esquecidas de seu Deus? O amor
perfeito supõe, portanto, um amor afetivo intenso e frequen­
te; supõe também, como já dissemos, um amor efetivo, ge­
neroso, habitual, e, acrescentemos, delicado. Dá provas de
amor vulgar e pouco desinteressado, quem não sabe pres­
tar serviços a um amigo sem deixar perceber o que isso lhe
custa. O verdadeiro amor nunca pensa fazer bastante para
o ente amado, desprezando suas fadigas e seus trabalhos;
raramente fala de seus sacrifícios, e, se falar, é para dizer
que é pouca coisa e que está pronto a fazer outros, maiores
ainda.

VI. Os progressos do amor.

151. Cada uma das virtudes sobrenaturais tem uma


extensão incomensurável. Podemos praticá-las durante muito
tempo sem lhes atingir o termo; dá-se isso com a fé, com
a esperança, mas principalmente com a caridade, que não
tem limites possíveis, pois, como disse Santo Agostinho.
a medida do amor é amar sem medida. Inúmeros são, por­
tanto, os graus do amor. Há muitas almas de piedade sincera
que, durante longos anos, progridem catla dia, sem nunca
atingir, na terra, ao amor perfeito. No entanto, quantas ora­
ções, quantos exercícios de piedade, quantos atos de virtude
não praticaram essas almas, que lhes aumentaram a ca'­
ridade ! Outras, desde cedo, se elevam ao amor perfeito e
progridem continuamente, caminhando a passos largos. Seus
menores atos têm um valor imenso, que acrescem de modo
considerável a sua caridade, sem que, entretanto, jamais al­
cancem o amor heróico dos Santos.
Os autores espirituais gostam de comparar o progresso
raa virtude à ascensão de uma montanha altissima. Na par­
te inferior, próximo à planicie, reina a bruma espessa e
fria; à medida que subimos, aproximamo-nos do sol di­
vino, cuja luz nos ilumina e cujo calor nos abrasa. Diversos
caminhos, porém, se apresentam aos \liajantes desejosos de
subir. Alguns, ligeiramente inclinados, frescos e agradá-

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veis, contornam a montanhaj outros, cobertos de moitas de
espinhos, são tanto mais rudes e penosos, quanto mais di­
retamente levam ao cume. Entre os viajantes há muitos que,
inimigos de fadigas, sobrecarregados de roupas pesadas .e
de bagagens que não queiem abandonar, escolhem os ata­
lhos e, entre os atalhos, aqueles cuja inclinação é menor.
Vão a passos contados, caminham muito tempo, elevam-se
regularmente, mas não atingem, depois de longos anos, se­
não uma altura medíocre. Ultrapassam todavia aqueles que
se detêm na estrada ou, após uma queda, permanecem co­
vardemente por terra. Outros, mais ardentes e intrépidos,
livres de tudo que lhes possa dificultar a marcha, escolhem
os atalhos mais escarpados sem nunca se deter e, quanto
mais sobem, mais consolidam as suas forças. Estes atin­
gem ràpidamente a grandes alturas: são os perfeitos. Entre
estes, porém, há alguns que, mais intrépidos ainda e inteira­
mente despojados, ultrapassam seus companheiros. Ao atin­
girem os altos cimos opera-se neles maravilhosa metamor­
fose; sobre os ombros ensanguentados, nascem-lhes asas
que, a principio, os sustentam, e depois, pouco a pouco, se
vão tornando bastante fortes para levantá-los. Então, essas
almas não caminham mais; correm, voam, alcançam alturas
tais que, aos outros viajantes, antes parecem estar no céu
que na terra. São aqueles que chegam ao amor heróico, são
os Santos.
152. E' do progresso do amor que nos cabe falar, as­
sunto grave e importante entre todos, cheio de interesse pa­
ra os leitores piedosos. Amamos o nosso amor, como já
observamos; por conseguinte, quanto mais se dilata o amor,
mais se quer dilatar. São dignos de lástima aqueles que
se mantêm indiferentes ao seu progresso espiritual; se não
aspiram a amar mais vivamente a Deus, é porque seu amor
C fraco e tíbio. Ouvimo-los afirmar sem pesar que o ardor
de sua mocidade arrefeceu, que suas idéias mudaram; fe­
licitam-se de não ser tão ingênuos, de se terem despojado
das ilusões de outrora. São, de fato, dignos de lástima.
Se contemplamos condoídos esses pobres indivíduos, cujo
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crescimento se paralisa pela enfermidade e que, sobre o cor­
po pequenino, como o de uma criança, trazem uma ca­
beça enorme e sem inteligência, devemos nos compadecer
mais ainda desses monstros espirituais, que paralisaram cm
suas almas o desenvolvimento da caridade divinal, e que se
agradam do seu estado. Ao contrário, quem sentir em seu
coração um desejo sincero de progresso, deve concluir,
embora lhe restem ainda graves defeitos, que já ama a Deus;
e como é Deus quem lhe incute este amor e lhe desperta
este desejo, deve reconhecer que Deus deseja também seu
progresso.
E' de Deus e da própria alma que depende esse pro­
gresso, das graças que Deus concede à alma e da fideli­
dade com que esta souber corresponder. Podemos reduzir
a três os meios de que dispomos para aumentar a santa vir­
tude da caridade: os sacramentos, a prática das virtudes, a
oração. Pelos sacramentos Deus atua mais diretamente
e derrama Ele mesmo a caridade no coração dos fiéis. Pela
prática das virtudes, o amor se firma e se dilata; os obstá­
culos que talvez lhe impedissem o surto são destruídos;
a vontade torna-se mais enérgica e capaz de um amor mais
intenso. Pela oração, a alma conhece melhor a Deus, seus
encantos divinos nela produzem vivas impressões. Os afetos
se multiplicam, uma doce familiaridade se estabelece entre
Deus e a alma fiel, e, graças a essas comunicações recí­
procas, o amor se torna mais íntimo, mais suave, �ais
ardente.

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CAPITULO XIX

Dos Sacramentos
Haaridls 111111111 ln 11oudio dt /anli/J111 .�ol�ot,,r/�.
lburireifi com altitria as f.1un da& lontu do Sa1-
udnr (Is 12. 3).

153. Os sacramentos são uma admirável criação do


amor divino. Instituídos para derramar e aumentar em nós
a graça, atuam ao mesmo tempo de modo misterioso e efi­
caz. Deus, para formá-los, emprega objetos sensíveis, adap­
tando assim sua operação ãs necessidades de nossa na­
tureza. A alma, embora toda espiritual, não pode dispen­
sar os sentidos, nem sem eles adquirir conhecimentos mais
elevados. E' por meio dos sentidos que recebe mil impulsos,
muitas vezes maus. Pertencia, pois, ao plano da sabedoria
divina comunicar-lhe, pela mesma via, os mais preciosos bens.
Ao mesmo tempo e por cs�e meio, oeus realça a di­
gnidade da matéria, utilizando-a para fins inteiramente so­
brenaturais. Assim, as almas de fé habituam-se a apreciar
as obras divinas e a admirar a sabedoria e o poder do Criador.
Algumas gotas de água servirão para purificar a alma, co­
mo servem para lavar o corpo; o óleo sagrado, misturado
com bálsamo, darâ força e luz; o grão de trigo se transfor­
mará no corpo de Cristo e se tornará o alimento espiritual
dos cristãos. A natureza material não é, portanto, feita só­
mente para nos fazer sofrer, embora desde o pecado de
Adão se mostre rebelde, parecendo querer nos causar única­
mente desgostos e trabalhos. Seríamos levados a desprezã-
172

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la, se Deus, fazendo-a servir a um tão santo uso, nos en­
sinasse que nada do que lhe sai das mãos deve ser des­
prezado, que suas mínimas obras trazem, mais ou menos,
impresso o cunho de sua origem e, apesar de suas imperfei­
ções, têm grande valor.
E quanto aos homens, noSsos irmãos, que tantas ,•ezes
nos são instrumentos de dor, em vez de desprezá-los como
nos seria talvez natural, saibamos amá-los, venerá-los, es­
timá-los, pois Deus escolhe entre eles os ministros de seus
sacramentos, e faz passar por suas mãos benefícios ines­
timáveis e torna a efusão de suas graças dependente de sua
vontade, constituindo-os em seus auxiliares e conferindo­
lhes uma dignidade sublime.
Esta economia da graça é muito misteriosa. Nosso espí­
rito, tão fraco, que não compreende como o corpo material
pode atuar sobre a alma, que é espiritual, compreendera
menos ainda os efeitos sobrenaturais produzidos com o au­
xílio da matéria e por que objetos santificados pelas ora­
ções da Igreja, tal a água benta, torturam os demônios, ou
a efusão da água batismal apaga a mácula original ( 1 ) ;
não compreenderá, mas se calará, acreditando no poder de
seu Deus, que obtém com vis instrumentos preciosos efeitos,
e adorando a sua bondade, que, pelos sacramentos, quer
enriquecê-lo de tesouros divinos.

1) Muitos teólogos eruilnam que os sacramentos agem como


causa moral, assim como a letra de câmbio ou a cédula de um
titulo de renda agem sobre o banqueiro e o decidem a entregar a
soma mencionada sobre o papel; outt'08 viem, noa sacramentos, cau�
su fí■ic:as da graça. Não pretendem011 tomar decisão nessa contro•
vérala. mas, deixando de lado a queatâo de fato, não jUlgamoe
acima do poder de Deu■ aervil'-fle doa sacramento. como de causas
fíaicu para produzir efeitos espirituais. "Não há razão para se
admirarem, diz Santo Agostinho, cita.do por Santo Tomâs, 3, q. 62,
a. f, ad 3, quando dizemoa que a á&U&, substância corporal, chega
atê a alma para pu1iflcá-la. Sim, ela ai atinge e penetra todas
u dobras da con■ciêncla; já lave e suUI por natureza, tonta.-8e,
pela bênção de Cristo, mais sutil ainda, vai a.tê as origens ocul•
toa da vida. e atravessa com seu orvalho sútll oa reeessos mais
íntimos: d11. alma".

173

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154. Todo cristão sincero admite a eficácia dos sacra­
mentos; porém, quanto maior for sua fé, mais viva será sua
estima e Veneração por esses meios de salvação. No sacra­
mento é Deus quem opera, Deus, cujo poder é ilimitado
e que opera pondo ao nosso alcance os tesouros adquiridos
pelos méritos de Jesus, de valor infinito. Assim não podemos
compreender tudo quanto encerra um sacramento, nem o
conjunto das graças que pode comunicar às almas santas.
Os anjos e os eleitos se extasiam diante dos sacramentos,
cujas belezas contemplam e cujo valor compreendem tanto
mais quanto mais esclarecidos são pelo brilho da glória.
Do mesmo modo, as almas cristãs fazem dos sacramentos
uma idéia tanto mais elevada e justa, quanto mais ilumina­
das são pelas luzes da graça.
155. Quão deplorável é a negligência de tantos cris­
tãos pelos sacramentos! Jesus Cristo conquistou-lhes, com
o preço de seus suores e de seu sangue, tesouros inapre­
ciáveis. Enquanto o céu vive maravilhado e os bem-aventu­
rados não sabem como louvar tamanha generosidade, os
homens, a quem os sacramentos são oferecidos, não querem
deles se aproveitar. Os sacramentos comunicam-nos a gra­
ça e, cada vez que os recebemos, cresce a soma de graça
santificante que possuímos, e, com ela, a medida de caridade
habitual, que se mede sempre à graça santificante. Cresce
por conseguinte a felicidade que nos será dado gozar nos
séculos eternos.
Poucas pessoas lembram-se que os sacramentos lhes
são oferecidos para embelezar e dilatar, em proporções in­
comparáveis, a felicidade que lhes está reservada. Algumas
só raramente os recebem e se apresentam sem a devida pre­
paração; outras são mais assíduas; poucas, porém, se che­
gam com as necessárias disposições para tirar grande pro­
veito. Embora as comparações sejam sempre aquém da rea­
lidade em se tratando de fatos de ordem sobrenatural, re-
corremos entretanto a algumas.
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156. Imaginemos um rio caudaloso, cheio de ouro fun­
dido. A gente da ribeira pode sacar à vontade o liquido e
o saca, com efeito, segundo a capacidade dos vasos utiliza­
dos. Uns levam às margens do rio uma pequena casca de
noz e o ouro que apanham é precioso e lhes aumenta as
riquezas, mas a maior parte raramente se dá o trabalho de
ir buscar o precioso metal. Alguns, mais assíduos, servem­
se de um copo, outros de um cântaro; sua carga é mais pe­
sada, mas é também de subido valor. Outros enfim - é
a minoria - mais laboriosos e inteligentes, munem-se de
tonéis enormes, colocados sobre carroças; enchem-nos cada
vez sem receio de fadiga, e multiplicam suas viagens quan­
to pcssfvel. Quão g1andes serão os tesouros acumulados de­
pois de anos de semelhante labor!
O sol brilha para todos, esparge luz e calor sobre a
terra; ilumina e aquece, igualmente, a cabana do pobre e
o palácio do rico; mas requer livre passagem para seus raios.
As prisões de muros espessos, os castelos medievais, onde
a luz sb penetra por frestas ou trapeiras, permanecem es­
curos e frios; as casas de janelas largas, as estufas inteira­
mente envidraçadas, tornam-se imediatamente luminosas e
quentes ao brilhar do sol de verão.
E' o espírito de fé, são sobretudo as disposições de
amor, com que nos aproximamos dos sacramentos, que au­
mentam, em proporções incalculáveis, o proveito que deles
retiramos. Todos, sejam quais forem suas virtudes, devem
exercitar sua fé quando se ajoelham no tribunal da peni­
tência ou se apresentam à sagrada mesa. Aqueles, cuja fé·
ê ainda fraca, não podem, é verdade, chegar-se aos sacramen­
tos com luzes preciosas de que gozam em geral as almas
adiantadas, mas podem e devem concentrar a atenção no
mistério que se vai realizar em seu interior; podem e de­
vem empregar todos os meios ao seu alcance e recordar,
na medida de sua fé, as razões que os impelem a praticar
dignamente tão santas ações. Se pequeno é o vaso, que se en­
cha até ao bordo. Se estreita é a janela, que se abra de par
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em par, a fim de que penetrem, com ampla liberdade, a
luz e o calor do sol divino. Com frequência as janelas da
alma ficam cerradas e só recebem os raios da graça por uma
fresta. Os cristãos mais esclarecidos devem também esfor­
çar-se para recolher-se, para abster-se das preocupações ia­
feriores, dos pensamentos profanos, para unir-se estreita­
mente a Deus na gratidão, na confiança e no amor. Deus
não pede à criança, que se confessa e comunga, os mes­
mos sentimentos dos adultos piedosos e instruídos, da re­
ligiosa que se vai unir ao Esposo celeste, do sacerdote que
celebra o santo Sacrifício. O inseto que se desaltera no ria­
cho não precisa nem pode absorver, para estancar sua sede,
a mesma quantidade de água que o cervo sedento. Mas to­
dos devem preparar-se segundo os meios de que dispõem:
então receberão uma graça proporcionada às necessidades
de cada qual; in mensuram 11ni11scujusque membri (Ef 4, 16).
157. Despertar a fé, colocar diante dos olhos a grandeza
do ato a praticar, eis o primeiro dever de quem vai rece­
ber um sacramento; mas deve também excitar em seu co­
ração sentimentos ele gratidão para com o Deus que lhe ofe­
rece, com tanta liberalidade, os tesouros da graça, para com
Jesus que lhe mereceu essa graça por meio de tão rudes
trabalhos e tão horriveis sofrimentos. Não será considerado
crime tomar uma criança lugar à mesa de família sem se
lembrar do quanto os alimentos com que se vai nutrir cus­
taram de esforços ao pai e de cuidados à mãe; que pense
às vezes nisto, é um simples dever; que se lembre a cada re­
feição, os pais não lho pedem; a comida que lhe é oferecida
não lhe comunicaria maior força por ser mais viva sua gra­
tidão. Mas toda a vantagem dos alimentos espirituais re­
side nas disposições interiores de quem os recebe; as ai­
. mas mais agradecidas são as que tiram maior proveito. À
gratidão, devem unir-se a confiança, o desejo lle receber
graças abundantes cujo valor a fé nos revela, bem como a
esperança de enriquecer a nossa alma, de torná-la mais
agradável a Deus. Então, é o amor que se exerce e o amor
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é a disposição mais eficaz para dilatar o efeito do sacramento
e fazê-lo produzir grandes frutos. Esse amor deve exis­
tir no coração, mas será confirmado pelos atos. Quanto
mais o cristão, que se aproxima dos sacramentos, se es­
forçar por moldar sua conduta nos seus sentimentos, e maior
prova dar de generosidade e de coragem no sacrifício, mais
forte será a ação divina em sua alma e mais se desenvol­
verá o seu amor. Se, por uma admirável retribuição, o amor
torna mais proveitosa a recepção dos sacramentos, o sacra­
mento produz por seu lado, em superabundância, um acrés­
cimo de amor.

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CAPITULO XX

Do sacramento de. penitência


Lavamlni, n111ndl tstote ••• �i J11eri11t pecct1to 1-,.,.
1.-0 1,11 eocclnum q1111sl nrr deal/Ja/nlnlur.

l.ani-1·os. purificai-vos ... embora •·osso& r,�,•


dos fossem como o cscarlalc. 1orn1r-st-la:r
brancos c:omo a neve (Is 1. 16-UI).

L A vergonha, consequência do pecado,

158. Antes do pecado original o homem podia fita,


complacentemente os olhos em si mesmo, não para se de­
leitar em suas perfeições como numa propriedade sua, -
saiba�se um pura nada - mas para admirar os dons de
Deus e, desse modo, excitar em sua alma a gratidão. E'
munida desses sentimentos de humildade e gratidão que a
alma santa se considera. Não se cansa de admirar a mise­
ricórdia e a bondade de Deus, que se apraz em embelezar
e enriquecer uma criatura tão pobre, criatura que o ofendeu
e que se tornou, pelo pecado, indigna dos benefícios divinos.
Tais são também os sentimentos dos próprios eleitos, que
não se podem contemplar sem render homenagem ao in­
finito amor de Deus.
A culpa dos nossos primeiros pais despertou-lhes na
alma um sentimento desconhecido até então que, não sen­
do nem a felicidade nem o reconhecimento, se impunha im­
periosamente, e que, por ser penoso, já lhes era o castigo
de seu pecado. Era a vergonha. O que experimentaram Adão
e Eva, experimentam-no também seus descendentes quan­
do lhes imitam a conduta criminosa, e essa confusão poderá
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ser útil ou prejudicial.. Com efeito, ao sentimento de vergonha,
que depois do pecado lhes brota espontâneamente do co­
ração, o pecado pode unir outro, de humildade. Encontruá
então a paz no arrependimento, pois a humildade morti­
fica, mas não fere. O humilde apraz-se em reconhecer .as
justas humilhações que sofre, gosta de homenagear a ver­
dade. Mas a vergonha que não produz a humildade gera efei­
tos contrários; o peqtdor envergonhado não encontra prazer
algum na verdade, que o mortifica, e quisera escapar, ocultar­
se a si mesmo a sua fealdade, ocultá-la também a Deus e
aos homens. A humildade, porém, produz a simplicidade, a
confiança, a paz. Quando o culpado se entrega à vergonh�.
esta suscita falsas desculpas, mentiras, perturbações, an­
gústias. Para evitar sentimentos tão penosos, o pecador,
não podendo negar sua falta, procura esquecê-la, atordoar­
se e essa dissipação, que o afasta de Deus, prejudica enor­
memente a alma, fá-lo negligenciar os deveres, entregan­
do-o, presa fácil, a novos ataques do-tentador. Assim o pecado
gera a vergonha; e a vergonha o pecado.
159. O remédio a esses males Deus o pôs no Sacra­
mento da Penitência, onde o orgulho é rebaixado e a humil­
dade torna-se um dever inevitável. Em vez de nos ocultar­
mos às nossas próprias fraquezas, devemos procurá-las cui­
dadosamente e confessá-las sinceramente; em vez de rea­
girmos contra a humilhação, e querermos encobrir nossas
faltas com desculpas falazes, devemos expô-las com toda
a sinceridade aos olhos de um de nossos irmãos, homem e
pecador como nós, Deus nos obrigando assim a triunfar
de um dos sentimentos mais profundamente enraizados no
coração humano. Se nos entregarmos, pois, plenamente aos
desígnios divinos e se recebermos com perfeitas disposições
tão grande sacramento, produzirá em nossas almas frutos
admiráveis. Qui se humiliat exaltabitur. "Aquele que se hu­
milha será exaltado". As humilhações praticadas de bom
grado no tribunal da penitência serão compensadas ao cên­
tuplo pela glória que nos proporcionarão na eterna hem­
a-venturança.

179

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Aqueles, ao contrário, que cumpriram imperfeitamenk
com esse dever de humildade e de arrependimento, pouco,
frutos ti_rarão de suas confissões; terão ainda que expiai
o amor próprio, e essa expiação forçada será muito mai�
dolorosa que à. outra, que teriam podido praticar de bom
grado.
160. Havia, na antiga legislação francesa, uma pena in­
famante que não consta dos códigos modernos. Certos delito�
eram punidos pela exposição pública. Nos dias de feira,
quando o povo se reunia, os condenados eram expostos so­
bre um estrado, chamado pelourinho, e sua falta divulgada
aos transeuntes. A vergonha, à qual não podiam furtar-se,
era para eles um justo castigo e, para as testemunhas, uma
lição salutar. Quando pensamos nas penas da outra vida
e nos representamos os tormentos do purgatório e· as tor­
turas do inferno, só consideramos, em geral, as dores pro­
venientes das chamas ou a pena causada pela privação de
Deus; mas a justiça divina pune o homem iiegundo pecou
( Sab 11, 17). Quem pecou por orgulho, serã castigado pe­
la humilhação. E', portanto, muito provável que quem não
tiver reparado as faltas de vaidade ou de orgulho neste
mundo, seja, no outro, coberto de confusão. "Nada há de
oculto que não deva ser revelado, disse nosso Senhor, nem
de secreto que não deva ser conhecido" (Mt 10, 26). Não
poderá essa manifestação de consciência mesmo no pur­
�atório revestir um caráter de castigo e reparar a ofen­
sa feita a Deus pelo orgulho? Será o pelourinho dos or­
gulhosos, e aqueles que não quiserem humilhar-se aqui co­
mo deviam, sofrerão humilhações tremendas. As faltas co­
metidas, com seus pormenores mais recônditos e suas cir­
cunstâncias agravantes, os baixos motivos que viciaram atos
outrora louvados e aplaudidos, os pensamentos escondidos
com tanto cuidado e que cobririam o homem de confusão
se fossem revelados, Deus tudo pode tornar público. Deus
pode também mostrar todas as graças que foram oferecidas
a certas almas e o abuso que delas fizeram, o bem que
deviam ter praticado, o grau de glória ao qual eram cha-

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madas. Pode ainda tornar conhecidas a outras almas, mais
santas ou já parcialmente purificadas, as faltas e imper­
feições que castiga e permitir aos anjos que as censurem aos
culpados. Que descufpa poderão alegar então essas infelizes?

IL Eleitos do Sacramento de Penitênda,

161. A confissão bem feita é uma reparação do orgulho,


causa e principio de tantos pecados; é um remédio contra
as consequências funestas de nossas faltas, que o amor
próprio envenena e torna ainda mais perigosas; é tambêm
um meio eficaz de purificar a alma de suas manchas. "La­
vai-me, Senhor, diz o santo rei David, lavai-me cada vez
mais das minhas faltas, apagai o meu pecado com o hissopo,
para que eu seja puro; purificai-me e serei mais branco
que a neve". O pecado perdoado deixa ainda vestígios na
alma, pois nem toda mancha desaparece com o primeiro
ato de arrependimento. Se o pecado é perdoado ao ser de­
testado, deve todavia ser reparado, e a alma, enquanto não
pagar sua divida para com a justiça divina, não recupera
sua beleza imaculada. As almas do purgatório arrepe.n­
dem-se de seus pecados, se não neste mundo, ao menos
no outro, ao lhes ser revelado o estado de sua consciên­
cia. E Deus logo lhes perdoa as faltas; entretanto, só se
purificam pouco a pouco, à medida que se opera a expiação.
No Sacramento de Penitência é o Sangue de Jesus que
corre misteriosamente sobre a alma culpada e alarga de
modo maravilhoso a virtude purificadora da contrição. Se
esla for imperfeita, e, por conseguinte, incapaz de obter o per­
dão de uma falta grave, o sacramento lhe supre essa insu­
ficiência. O arrependimento que provém de um verdadeiro
amor basta para alcançar o perdão e, se a alma estiver cm
estado de graça, esse ato de arrependimento perfeito dilata ..
lhe a caridade e diminui-lhe a dívida de expiação. Mas, quan­
do ao valor do sacramento se junta contrição perfeita, tanto
a graça santificante como a caridade habitual recebem no­
vo ·e considerável impulso e, na alma manchada, opera-se

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uma grande purificação. O olhar do Deus infinitamente
santo pode então fitar com complacência essa alma pu­
rificada. Deus, a quem a menor mácula ofende, não encon­
lrando obstáculos às suas liberalidades, derramará sobre
a alma graças muito mais abundantes.

Ili, Disposições a levar ao Sacramento da Penitênda

162. Os efeitos do sacramento de penitência, que ac.a­


bamos de explicar, são muito preciosos e variam segundo
as disposições daqueles que o recebem, como já dissemos
dos outros sacramentos. Quais as disposições com que vos
aproximais do sagrado tribunal, piedosos leitores? Será ar..
dente a vossa fé, profunda a vossa humildade, intenso o
vosso arrependimento? Qual a parte do amor em vossa
contrição?
163. O mesmo espirito de fé que nos faz descobrir a
Deus em suas obras, que no-lo reveta na natureza, no-lo
patenteia mais claramente ainda no sacerdote. Nele Deus
se mostra e se esconde. Mostra-se, pois a autoridade com
que o padre julga e absolve, a paz que invade a alma quando
pronuncia a sentença do perdão, deixam perceber que, ali,
há mais que um homem. Só se mostra, porém, através
de um véu, deixando à virtude da fé todo o mérito. Quanto
mais viva for esta virtude, tanto mais claramente descobrifá
a "Deus sob este véu, que é o sacerdote. Os cristãos, cuja
fé é fraca e pouco esclarecida, que contemplam a criação
sém pensar no Criador, não cogitam tampouco em ver a
Deus em seu ministro; consideram antes as qualidades ou
os defeitos naturais do sacerdote que o seu caráter de mi­
nistro de Deus. E' este um escolho para inúmeras almas,
um obstáculo que lhes impede encontrar a Deus na con­
fissão, gozar largamente das luzes e da paz que dimanam
de Deus. Se nos entregarmos ao desgosto causado pela
verificação de certos defeitos, aproximar-nos-emos constran­
gidos do sacramento; como então colher frutos abundantes?
Se procurarmos no sacerdote qualidades humanas, C porque

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queremos consolações naturais, queremos fortalecer o lado
humano. Ora, na medida em que procuramos satisfações
humanas, privamo-nos das vantagens divinas. Mesclam-si!
com frequência, é verdade, considerações espirituais e na­
turais e então, se assim podemos dizer, o resultado é misto;
haverá alguns efeitos sobrenaturais, mas serão pouco sen­
slveis. Entretanto julgamo-nos reconfortados, animados, por­
que aliviamos o coração, fomos sutentados, acolhidos com
bondade, e aprovados. Mas, se tal coragem for só momen­
tãnea, se essa suposta força for só superficial, incapaz de
resistir a ligeiras dificuldades, é de recear que nos apoiamos
em sentimentos que não tiveram a fé por principio, nem
Deus por autor.
Quem procura a Deus, encontra a Deus, quaer;te el in­
vtnietis. Procuremos, pois, imicamente a Deus; ponhamos
a nu todos os nossos delitos, todas as nossas cobardias; vi­
semos antes de tudo reparar nossas muitas faltas, outras tan­
tas ofensas à sua bondade, purificar nossas almas e torná­
las mais dignas dos olhares divinos. A fé e o amor se dila­
tarão em nosso coração, e nossas confissões terão maior
mérito e nos serão mais salutares.
164. O amor tornará sobretudo nosso modo de pro­
ceder mais proveitoso. Não é pela tristeza causada pelas
faltas cometidas que devemos julgar dos frutos do sacra­
mento, e sim pelo amor que pode, em uma medida maior
ou menor, suscitar a dor na alma. Há almas que se chegam
.:10 sagrado tribunal com sentimentos de profunda mágoa,
mas que antes se afligem com sua própria miséria do que
con1 a ofensa feita a Deus. Tais almas recebem graças in­
feriores a outras que, embora mais calmas, têm um amor
mais forte e mais puro.
O am0r deve encontrar-se em germe naqueles mesmos
cuja contrição é imperfeita e que renunciam ao pecado com
medo do castigo. Se a lembrança de Deus não basta para
levá-los à conversão, devem ao menos estimar esse Deus
tli:o bom, tão digno de amor e ter algum desejo de não O

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ofender. Se não tiverem esse a1nor incipiente, se o mero
egoísmo inspirar sua resolução, como poderão ser perdoados?
O verdadeiro cristão, porêm, não se contenta com amor
tão rudimentar e procura despertar cm seu coração a con­
trição perfeita. Devemos detestar o pecado e propor-nos sin­
ceramente evitá-lo, pela só ofensa a Deus, e tal motivo, sem
eliminar outro, de interesse espiritual bem entendido, deve
ser o motivo dominante de nossa contrição. Assim seria ....:....
e abundantes frutos produziria então o do Sacramento de
Penitência - se nos aproximássemos cio sagrado tribunal
com maior desprendimento e mais vivo amor, pensando an­
tes em Deus que em nós mesmos.
165. O amor próprio, que corrompe tantas boas obras·,
tantos atos piedosos, acompanha-nos com frequência até 'nesse
ato de humildade e arrependimento, que é a confissão. V.i­
mos a ela 1>ara lavar nossa alma cio lodo do pecado; não
devemos, portanto, dissimular-nos a nós mesmos, nem ter
receio de dar a conhecer as nódoas que nos maculam. Não
devemos. todavia. concentrar a atenção nesse espetáculo
desolador ate nos absorver na consideração de nossas misé­
rias, deixando de levantar os olhos a Deus. Só devemOs
tocar nessa lama do pecado para fazê-la desaparecer, evitan­
do revolvê-la continuamente. pois exala um cheiro nausea­
bundo, capaz de sufocar-nos e fazer-nos perder as forças
e coragem. Voltemo-nos, e conosco essa lama repulsiva, para
o sol puríssimo. Exposta a seus raios abrasadores, ficará
seca e purificada. A introspeção ê um dever que nos expõe
a um perigo, por isso o olhar dirigido sobre a alma deve
ser orientado e iluminado por Deus e sempre precedido e
seguido de um olhar de admiração e de amor dirigido sobre
o próprio Deus. Ltkifer contemplou-se a si mesmo, mas co­
mo Deus não lhe dirigia o olhar, ele perdeu de vista a Deus,
e sua complacência orgulhosa lhe foi fatal. Judas também
se considerou a si mesmo sem olhar para Deus, e sem que­
rer ver a bondade misericordiosa de Deus. Foi um olhar de
desespero, que o perdeu.

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166. Nossos pecados não nos parecerão menos odiosos,
nem menos detestáveis, se os examinarmos ã luz de Deus;
ao contrãrio, teremos uma noção mais clara do mal que nos
causam, dos castigos que merecem, e, principalmente, da in­
gratidão e da insolência que encerram. O pecado grave se­
para-nos de Deus, coloca-nos no rol de seus inimigos, torna­
nos dignos da companhia dos demônios, priva-nos das lu­
zes divinas e mergulha nossas almas nas trevas. Tão tris­
les efeitos provêm de que o pecado ofende os atributos in­
finitos do Altíssimo, desmorona os planos divinos, violando­
lhes as santas leis, e tende à negação e à supressão da justiça.
da santidade, da bondade, da sabedoria de Deus. As faltas
vcniais não nos separam de Deus, não levantam uma espessa
muralha entre Deus e alma, mas produzem uma espécie
de nevoeiro, mais ou menos denso, que, sem encobrir in­
teiramente a Deus, obsta a sua ação. Se tais faltas visam
destruir-lhe os planos, e alterar-lhe a justiça, a sabedoria
e seus demais atributos, ferem-nos, entretanto, e impedem
parcialmente que esses atributos divinos produzam seus be­
néficos efeitos.
Eis o que percebe a alma, abrasada do amor, quando
C!'Jnsidera o pecado em relação a Deus. E quanto mais ar­
dente for o seu amor, tanto melhor perceberá a absoluta
oposição que existe entre Deus e o pecado, e a grosseria da
ofensa, a gravidade da injúria, a insensatez e odiosidade da
revolta do pecador. Quanto mais o filho ama o pai e a mãe
tanto mais sensível é ao ultraje que os atinge; e se ele mes­
mo, num momento de desvario, faltou ao respeito que lhes
é devido, seu arrependimento será tanto mais profundo quan­
to mais viva for a afeição que lhes dedica.
167. A alma amante e esclarecida vê, no pecado, an­
les o mal feito a Deus que a si mesma. Deus não pode to­
lerar o pecado. Jesus era o Filho bem amado do Pai. Nele
repousavam as complacências do Todo-Poderoso, e nenhuma
palavra humana f? capaz de dar uma idéia da ternura de
Deus Pai para com seu Filho único. Na hora da agonia
Jesus quis apresentar-se ao Pai, carregado de nossas ini-

185

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quidades, e concentrar em si todos os raios da justiça
divina. O amor de Deus · para com seu Filho pareceu
então estar suspenso e Jesus sentiu a sua alma santa oprimida
pe­lo peso das vinganças celestes. Tão terrível foi a
impressão causada pela dor da cólera divina que, sem um
milagre, teria sucumbido em Getsêmani: "Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonastes?" clamou ele no Calvário. E'
que Deus tendo colocado sobre os seus ombros o peso de
nossos pecados (Is 53, 6), devia à sua justiça descarregar
seus golpes sobre a santa vitima: Propler scelus populi mei
percussi e11m.
A alma de J�sus ficou triste até à morte, não
sómente à vista dos suplícios que o esperavam, das
ingratidões daqueles que desejava salvar, mas também, e
antes de tudo, â vista da ofensa feita pelo pecado à
majestade e à bondade divina. Seu olhar, mais possante
que o de todos os aej08 e homens reunidos, contemplava,
como ninguém jamais o fará, o respeito, a adoração e o
amor que merece o abismo insondável de perfeições que é
Deus. Contemplava também tudo quanto há de horrível e
de odioso na revolta da criatura contra Deus.
Compreendia o castigo que devia caber a semelhante
desordem e portanto quais seriam os suplícios do inferno
para inúmeras almas, a quem amava e desejava salvar.
Não permaneceu todavia prostrado sob o peso da justiça
divina: S11rgitt eamus, disse a seus discípulos, "levantai-
vos, vamos. pois está próximo aquele que me deve trair".
Tardava-lhe ser batizado no batismo de sangue:
haptismo haheo baptizari, e não podia conter esse desejo, cuja
demora lhe causava verdadeiras angústias, - quomodo
coarctor usq11ed11m perficiall,r (Lc 12, 50), o desejo que tinha
de reparar a ofensa feita ao Pai.
168. Eis o nosso modelo. Se quisermos que nossas
con­fissões sejam agradáveis a Deus, e nos purifiquem
grande� mente a alma, devemos imitar as disposições de
Jesus, e in­cutir-nos em nosso coração profundos sentimentos
de respeito � de amor para com Deus. Devemos detestar
nossas faltas, principalmente porque o ofendem e, longe
de permanecermos abatidos sob o peso de nossos pecados, to-
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mar a resolução de· expiá-los e repará-los.
169. A contrição torna-se então um misto de amargor
e doçura, de dor e de paz, que não exclui uma suave alegria..
Madâ.]ena chora aos pés de Jesus. Pensará apenas em si e
�m seus desmandos? Ser.ão suas lágrimas, lágrimas de
vergonha e de abatimento? Ah! ela chora de arrependimento
e de alegria: de arrependimento, porque ofendeu a
Deus; de alegria, porque beija os pés de Jesus; sabe que
o contato com a carne sagrada do Homem-Deus purifica
as manchas de sua carne pecaminosa. Madalena não
pensa mais em sua beleza, não procura realçar-lhe os
encantos com adornos fúteis, não receia deslustrar sua bela
cabeleira enxugando a poeira e o suor presos aos pés de
Jesus. Sua atitude causa surpresa e provoca sussurros.
Ela, todavia, não se impressiona. Embevecida pela
bondade, pela santidade, pelo fulgor suave e forte, mas
todo divino do Mestre, pensa mais nele que em .'ti. Se fita os
olhos em sua miséria, é para lamentar que suas faltas tenham
ofendido o olhar puríssimo de Jesus, mas também para se
regozijar ao pensar que Jesus lhe comu,iicará algo de suas
graças e de suas virtudes, que a cobrirá com seus méritos
e a ornará com seu amor.
170. Quando o amor domina na contrição, as resolu­
ções de mudança de vida são mais generosas e a conversãt,
mais completa. Zaqueu quer ver a Jesus. O Salvador, que
lia nos corações e apreciava as boas disposições desse che­
fe publicano, foi-lhe carinhosamente ao encontro e pediu­
lhe hospitalidade, dando-lhe preferência sobre outros que,
julgando-se mais dignos de tal honra, murmuraram. Z!l-queu
rejubilou-se: suscepit illum gaudens; mas a alegria que lhe
dilatava o coração era uma alegria de amor. E desse amor
que cresceu e logo lhe abrasou a alma, sob a ação de Jesus,
deu uma bela prova quando, no dia seguinte, Jesus o deixou
�m caminho de Jerusalém. "Senhor, disse-lhe Zaqueu, eis
que eu dou a metade de meus bens aos pobres e, se fiz
ma! a alguém, pago-lhe a q�ádruplas vezes".

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Muita gente, que recebeu a Jesus em sua casa, não
soube se aproveitar como Zaqueu de sua visita. Mas Zaqueu.
o chefe dos publicanos, o pecador que se enriquecera num
emprego justamente desprezado, entregou-se inteiramente
a Jesus. Em poucas horas conheceu e amou o divino Mestre
e seu amor foi puro e desinteressado, sem mescla de egoís­
mo. Dai, esse ato de despojamento heróico que, por si só,
reparava todo o passado.

IV. Preparação �mota. A pureza da alma.

171. Rápida foi a conversão de Madalena, rápida a de


Zaqucu. Deus pode, num instante, mudar as disposições do
pecador, mas esses exemplos não nos autorizam a contar
com graças repentinas. Muito ao contrário, se desejamos
tirar grande proveito de nossas confissões, não deixemos
a preparação para a última hqra.
Poderíamos, é verdade, limitar-nos a uma preparação
próxima, mas, se lhe acrescentarmos a preparação remota,
a disposição habitual, então o efeito será mais completo e
mais seguro.
Quanto tempo ficamos, infelizmente, sem pecar? Qual
o dia em que nada temos a nos censurar? O caminho da
vida é impuro e lodoso, e apenas damos alguns passos, lo­
go somos salpicados. Havemos de permanecer enlameados
em presença do Deus puro e santo, que não tolera em seus
filhos a menor mácula? Oh! se soubéssemos como o pecado.
ainda nãn reparado, _çuspende a efusão, 011 constrange a
a operação da graça divinal Assim se explicam os poucos
progressos de tantos pessoas piedosas; não reparam su­
ficientemente suas faltas, não mantêm suas almas bastante
puras.
172. E' pura, santa e maravilhosamente fecunda a gra­
ça que Deus derrama na alma justa. Manada do Coração
de Jesus, conquistada por ele ao preço de cruciantes sofri­
mentos, produzida pela aç_ão do Espírito Santo, possui to­
das as virtudes aptas a gerar obras inteiramente sobrenat�rais.

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E que maravilhas opera nos corações puríssimos, que pro­
dígios realiza, por exemplo, nos espíritos angélicos, nas
almas dos Santos, particularmente na alma imaculada de
Afaria! E' que a graça se derrama em profusão nos corações
puros, onde nada a repele, nada a altera, nada lhe diminui
o brilho nem a força, nada lhe impede de invadir os re­
cessos da alma. Dimana, pois, ininterrupta, do Coração di­
vino, estende-se por toda parte, impregna-se em todas as
faculdades; na memória, enchendo-a de santas recordações,
no espírito, inundando-o de p·reciosas luzes, no coração,
abrasando-o de amor. Mas na alma que conserva resquícios
tio pecado, de faltas não reparadas e que, embora perdoa­
das, deixam sinais funestos, Deus só distribui sua graça
com parcimônia.
173. E a alma, não purificada, recebe não sómente cm
menor abundância a graça divina, mas ainda entrava àquela
que lhe é comunicada, pois só aceita em parte seus im­
pulsos salutares. A graça opera com delicadeza. A voz de
Deus ressoa com fragor em se tratando de arrancar a alma
ao pecado grave ou dele preservá-la, mas, em se tratando
de precavê-la contra uma falta ligeira - de conseguir dela
um ato mais ,perfeito, ou algum conselho a dar para a con­
duta de outrem, ou governo do próximo, a inspiração se­
rá discreta, será um convite suave. Se a graça for repelida,
voltará reiteradas vezes para depois se calar. Ora, quan­
tas almas cedem de bom grado às inspirações referentes a
certas virtudes, como, por exemplo, à obediência, à regu­
laridade, à castidade, à oração vocal, e abafam outras que
exigem maior abnegação, como sejam atos de pobreza, de
humildade, de recolhimento; ou, se aceitarem determinados
sacrifícios, recusarão outros; querem dedicar-se, mas não
se mortificar; consentem em prestar serviços, mas não se
obrigam a velar sobre suas palavras, a julgar com indulgên­
cia. Passado algum tempo, continuam a receber graças de
obediência, de oração, não pensam mais, porém, em pra-
1icar os atos de renúncia, de pobreza, de mortificação, de
henevoli!ncia que repeliram outrora. A principio custava-

189

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lhes recusar certos serviços, mas hoje ficam indiferentes.
Existe nessas almas uma cegueira parcial, por que então
lhes enviaria Deus inspirações que seriam logo abafadas?
A graça, portanto, não opera mais em seu coração com
a força nem a intensidade passadas. Penetra pelas frestas
aferecidas e. estaca diante as barreiras que não cuidaram
de retirar. Tal estado dura, às vezes, uma vida inteira e
quantas almas só serão esclarecidas sobre si mesmas no mo­
mento do juízo.!
E quão profundas são as ilusões! Enquanto todos co­
nhecerão os defeitos de certas pessoas, estas serão as llnicas
a ignorá-los. Descontentes com os outros, queixando-se a
todo propósito, estão sempre satisfeitas consigo mesmas;.
consideram suas pequenas qualidades, falam, a miudo, de
seus sofrimentos, de sua �esignação, de sua dedicação; sú
levam, às vezes, ao tribunal de penitência, acusações in­
significantes; não dizem, por lhes passar despercebido, que
têm mau gênio, que murmuram com frequência, que cri­
ticam e condenam com extrema facilidade, que não querem
ser contrariadas. E' a ilusão plena, a cegueira deplorável.
Se qualquer imperfeição voluntária, qualquer resistência
à graça, se, mormente, qualquer pecado obscurece a in­
teligência e provoca uma cegueira parcial, tais causas pro­
duzem na vontade efeitos igualmente funestos. Se a alma
cristã, impelida a praticar um ato de virtude, se recusar,
sentirá diminuir sua atração por essa virtude e crescer a
inclinação oposta; precisará, então, despender maior es­
forço para praticar, no futuro, os mesmos atos que repelira.
até que novas vitórias lhe tenham reparado a covardia e
reslituido, à sua vontade, as boas disposições perdidas.
174. Almas piedosas, que ledes estas linhas, existem.
indiscutivelmente, em vós obstáculos à graça, obstáculos pro­
venientes de faltas cometidas, e não reparadas. Pedi sempre
a Deus que vo-los faça conhecer, a fim de mais segura­
mente poderdes suprimi-los. Fazei uma generosa penitência
tanto pelas faltas que conheceis, como por aquelas que igno­
rais. Só a tal preço recuperareis as luzes que vos foram
l!IO

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>ferecidas e que não soubestes aproveitar, e dobrareis a
vossa vontade, que, não tendo querido se vergar sob o
impulso da graça, perdeu sua maleabilidade e já não é
tão dócil ao Espírito de Deus.
Quando as provações vos atingirem, recebei-as como
castigos hem merecidos: "Agradeço-vos, meu Deus,
esta ocasião que me dais de expiar as faltas passadas. E' uma
justa punição, para quem tanto vos ofendeu; agradeço-vos
ainda ajudar-me a reparar minhas ingratidões para
convosco e a purificar minha alma, coberta de tantas
manchas". Não vos contenteis; todavia, com as penas
permitidas pela Providência para o vosso bem, mas sede
corajosos e tratai-vos conforme mereceis. Expiai, pela
modéstia da vista, os olhares demasiado curiosos; pelo
si.lêncio, as palavras culpadas; por algumas austeridades, a
moleza e sensualidade do corpo; e, principalmente, pela
abnegação de vossos gostos, pela repressão de vossos
desejos, tantos atos repreensíveis da vontade. Cada noite,
depois de pedirdes perdão das faltas do dia, expiai-as de
algum modo. Se vosso amor for sincero e profundo, a
penitência não vos custará; será até uma necessidade para
vosso coração vingar a Deus e punir-vos de vossas faltas.
Então, vossa alma, que sem isso ficaria cada vez mais
manchada, adquirirá uma grande pureza e quando fordes
implorar perdão ao ministro de Deus, não vos será difícil
despertar em vosso coração sentimentos de verdadeira
contrição e encontrar no sacramento da penitência g(aças
eminentemente preciosas de purificação, de convCrsão e de
amor.

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CAPITULO XXI
Da Eucaristia

IJ,•sl�:':, d�sidtrfllll hoc Prucha ma11d,.carr �abls­

llncjci ar.t�nlcmtnlc �omcr csln l'�,co:1. convo,­


· co (Lc22, 16).

1. A Eucarisfla, memorial de jesus.

L 75. Seria loucura querer aprofundar o mistério da En­


carnação, querer compreender toda a caridade do Verbo
feito homem. Ante tamanha grandeza e tamanho abai�amen­
to, os céus vivem em admiração e os espíritos bem-aven­
turados adoram em silêncio, descobrindo, realçadas pelos
refulgentes clarões da luz de glória, maravilhas que nós
não podemos sequer suspeitar. Mas sabem também que
é um abismo de amor que só Deus pode sondar, pois só
Deus podia conceber, como só Ele pôde operar semelhante
prodígio. Aquilo que a nós nos parece imposslvel não passa
de um joguete em suas mãos. Só Deus, também, podi.a não
sõmente realizar, como também conceber a Eucaristia, pro­
dígio este que é, por assim dizer, o complemento da En­
carnação e que causa igual espanto e admiração aos elei­
tos. Revestir um Deus a forma humana é um mistério in­
sondável de amor; revestir um Deus a forma do pão e du
vinho é outro mistério de amor, não menos incompreensível.
176. A Eucaristia, justamente chamada o sacramento
de amor, é o fruto bem como o memorial do amor divino.
Quando dois amigos se separam, costumam trocar lembran­
ças, temendo que a distância venha a diminuir a afeição re-
192

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ciproca. "Longe dos olhos, longe do coração", diz o pro­
vérbio. Mesmo quem deu prova de grande dedicação, receia
que esta seja um tanto esquecida. "As novas preocupações,
as novas relações de meu amigo não lhe permitirão pen­
sar cm mim com tanta frequência; não me vendo o semblante
e não me ouvindo a voz, lembrar-se-á ainda de tudo
quanto fui para ele, de tudo quanto fiz por ele? Quero
deixar-lhe um objeto que, sempre sob seus olhos, lhe fale de
mim". Tai deve ter sido o pensamento do meigo
Salvador, na véspera de deixar seus filhos da terra. E'
natural que receasse ser esquecido de nós, pois é só
reinando em nossos orações e penetrando-nos de seus
exemplos que nos faz o bem. Em sua vida toda de amor,
de desprendimento, de pobreza, de zelo, de doçura, de
bondade; em suas palavras tão profundas e seus
ensinamentos tão celestesj cm suas dores, sua Paixão e
sua mortej em sua ressurreição, seu triunfo, sua glória e
seu poder, encontramos as mais salutares lições, os mais
fortes encorajamentos, as mais vivas chamas de amor.
·
Desgraçado de quem perder de vista os benefícios e as virtudes
sublimes de Jesus. Privando-se de tantos auxílios e
desperdiçando suas forças, fatalmente hão de cair cm extrema
fraqueza!
Oh! Jesus não quer ser esquecido, não quer que se percam os
frutos de sua dedicação. Os evangelistas conserva-nos a história
de sua vida, mas isto não nos basta. O Evangelho é feito para
todos e pouco nos impressiona um beneficio em geral. Jesus quis,
pois, deixar uma lembrança pessoal a cada filho e por isso
instituiu a Eucaristia. Ali estará para todos em geral e para cada
qual em particular; ali, os grandes e os pequenos, os sãos e os
doentes, os fortes e os fracos, poderão encontrá-lo e cada um
recebê­lo todo inteiro. "Fazei isto em memória de mim". Quando
Jesus ordenou aos Apóstolos que batizassem, que perdoassem os
pecados, criava meios de salvação que, sem dúvida, recordariam
às gerações vindouras sua passagem na terra, nas não disse destes
sacramentos o que disse da Eucaristia: "Fazei isto em memória de
mim". E' que os outros sacramentos lembram algo de Jesus, não
lembram toda a sua vida.
193
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A Eucaristia é o mesmo Jesus. Jesus, que nasceu
em Belêm, que fugiu para o Egito, que, em Nazaré,
conheceu os rudes trabalhos da vida de operário, que
percorreu vastas regiões, ensinando as mais altas
verdades, curando doentes espalhando benefícios; é o
Jesus que foi traído, zombado flagelado, coroado de
espinhos, crucificado por nós; que agora, ressuscitado,
subiu ao céu, partilha o poder supremo do Pae e nos
cumula de graças. Se o cordeiro pascal da Lei Antiga
recordava aos judeus o grande benefício da saída do
Egito, o Cordeiro Pascoal da nova aliança nos 1cmbra
maiores benefícios ainda e de modo muito mais vivo. Na
Eucaristia, o Filho de Deus está como no presépio e
ainda mais aniquilado, desconhecido, que no presépio.
Está imolado como no Calvário e entretanto cheio de
glória, de poder e de bênçãos como na Ascensão.
Eis o que Jesus quis fixar em nossa memória ao
i11stituir a Eucaristia, eis o que não deven1os esquecer
quando nos aproximamos do altar, quando assistimos
ao santo sacrifício, ou quando comungamos. Lembremo-
nos, pois, do humilde Filho de Maria, de Jesus, modelo
de todas as virtudes; de Jesus que, por seus exemplos,
nos prega a humildade, a doçura, a dedicação, o
zelo, o amor divino. A só lembrança dos atos que
praticou, da vida que levou, nos será mais
proveitosa que as mais profundas considerações sobre
as vantagens da virtude. Esta lembrança fará tam-
hém brotar em nossas almas sentimentos de estima, de
admiração, de amor por ele, desejos de imitar seus
exemplol:; e nos será uma ótima preparação para recebê-
lo bem.
PIiho de Deu s na Encarnação e na inslilulção
_IL �:sir�::r1::fa.
177. Tudo que nos leva a conhecer melhor nosso Senhor
nos dispõe a recebê-lo com maiores frutos. Medias vestrun
.detit quem 110s nescitis. "No meio de vós está quem não· co­
nheceis", dizia São João aos judeus (Jo 1, 26). Ai de nós

194

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muitos cristãos sabem que Deus, na verdade, se fez homem
e se digna residir entre eles, mas parecem não o conhecer
ou só de leve. E' precisamente porque o conhecem mal, por­
que não compreendem as perfeições, o poder, as disposições
admiráveis do Coração de Jesus, que pouco se aproveitam
de sua presença no· templo e mesmo de sua visita ern seus
corações.
178. E' grande o Verbo de Deus, esplendor de glória,
imagem perfeila da substância do Pai. E' eterno, imenso,
infinito. Este vasto universo, cuja imensidade nos causa ad­
miração, C menos que um grão de areia para Ele. Pela vir­
tude de sua palavra, sustenta todos os seres; com seu Pai
e como seu Pai, é a Onipotência, a Sabedoria ilimitadas,
é lambém amor, o amor sem fim. Oh! quem jamais poderá
dizer, que_m jamais poderâ compreender o amor do Verbo
eterno por seu Pai! o zelo do Filho de Deus, desde toda a
eternidade, pela glória desse Pai infinitamente digno de
respeito! Regozija-se de poder render-lhe, no seio da Trin­
dade, uma glória infinita, mas quer também que, neste mun­
do das criaturas, que tudo deve ao Criador, seu Pai receba
uma glória exterior, digna dele. Essa glória, o Deus in­
finitamente grande e infinitamente bom a merece tanto pe­
la majestade quanto pelos seus inumeráveis benefícios. Ele
espalha exteriormente uma profusão inesgotável de dons, en­
riquecendo as criaturas com os mais preciosos bens; é jus­
tissimo, portanto, que seja louvado, bendito, adorado, glorifi­
cado, agradecido. Assim devia ser, mas, infelizmente, assim
não é. Quão pouca glória, quão pouca gratidão recebe Deus
de suas criaturas! Dá com uma liberalidade sem par e as cria­
turas lhe prestam apenas homenagens imperfeitas, produzem
obras insignificantes, falhas, defeituosas, quando desgraçada­
mente não correspondem ao seu amor com a revolta e o
pecado.
Esse quadro das ingratidões humanas esteve presente ao
Verbo desde toda a eternidade. E' porque quis vingar a honra
do Pai e reparar as faltas das criaturas, encarregando-se

.195

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ele mesmo dessa obra de reparação. E' porque se fez ho­
mem e habitou entre nós.
Encarnando-se, vingou a honra divina, pois pela pri­
meira vez Deus receberã homenagens realmente dignas de­
le. Deus jã encontrara, é verdade, nas legiões angélicas,
servos fiéis que, sem desfalecimento algum, se submeteram ;l
sua vontade e O amaram com toda a intensidade de amor
de que eram capazes e nisto temos como que uma compen­
sação aos pecados dos homens. Não basta, porém, à glória
desse grande Deus, e o Verbo eterno pode fazer muito mais.
As homenagens que prestarã a seu Pai, encarnando-se, se­
rão humanas, pois se efetuarão em uma natureza humana,
mas serão homenagens de um valor infinito, porque serão
prestadas por uma Pessoa divina e participarão da dignida­
de infinita do Filho de Deus. E assim alcançará o Verbo di­
vino o seu fim.
179. Não basta, porém, ainda, ao seu amor. Ele quer
unir as criaturas humanas às homenagens que presta ao
Pai, quer que os homens também glorifiquem a Deus à se­
melhança dos anjos seus irmãos primogênitos. Quis mesmo
que, deste mundo terrestre, partisse a mais bela homenagem
jamais prestada a Deus. Para esse fim destinou uma cria­
tura sua a uma dignidade que ultrapassa a dignidade de
qualquer outra, a dignidade de Mãe de Deus; dotou-a tam­
bém de um poder de glorificação que supera a intensidade
de glorificação de todas as criaturas reunidas. Uniu-a In­
timamente a si, fazendo-a participar de sua obra. Subiu en­
tão para Deus, do mundo inferior, uma homenagem que lhe
rendeu real glória, e o Senhor fitou com complacência os
olhos naquilo que lhe saíra das mãos. Nunca a criação lhe
parecera tão bela, tão digna de Deus.
180. Assim como a Maria, o Verbo quis associar as ou­
tras criaturas à sua obra de glorificação. Quis, por nosso
intermédio, glorificar seu Pai: Se nos fornece tantos meios
de salvação, se fundou a Igreja e instituiu os sacramentos,
e de modo particular a Eucaristia, ocultando-se sob as es­
pkies sacramentais, se se dá a nós na comunhão, é, antes

l"!16

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de tudo, para proporcionar por nós ao Pai homenagens
mais dignas.
A principal homenagem que lhe quer oferecer é o amor
de suas criaturas. Com efeito, nada agrada tanto a Deus,
nada o glorifica tanto quanto o amor. Amá-lo é o grande
mandamento que nos impõe, o primeiro de todos e o resumo
de todos os outros; ele tem um desejo que não podemos
conhecer, tem uma sede ardente de ser amado por nós. Ele
aprecia, em nossas ações, principalmente o amor que as
inspira. Ora, pela Eucaristia, jesus obtém sobretudo o amor;
nela, revela-se o verdadeiro Deus de amor e por isso mes­
mo desperta o amor e o dilata.
181. Facilita-lhe também a prática. O amor com efeito
quer dar. A tendência de quem ama ê brindar o amigo e
tanto mais feliz se sente quanto mais preciosas são essas
dádivas. Quem comunga dá-se a jesus, ouve-lhe a voz suave
no mais íntimo do ser. Praebe, fili, cor tuum mihi; "meu filho,
dá-me o teu coração". Mas pode dar mais ainda: pode ofe­
recer Jesus a seu Pai. Jesus pertence-lhe, tornou-se a sua
propriedade, pode portanto dar Deus a Deus. Foi o que fez
a Virgem Santíssima quando ofereceu o seu divino Filho ao
Pai celeste, não só no dia da Purificação, não só no Cal­
vário, mas imlmeras outras vezes! Foi o que Jesus mes­
mo fez, oferecendo-se como vítima ao Pai. Dar Deus a Deus,
homenagem suprema que excede todas as ofertas, todos os
protestos de amor, todas as provas de respeito e de adoração,
homenagem em verdade agradável a Deus, homenagem em
verdade digna de Deus! Essa dádiva sublime, o comungante
não a oferei;:e sem dúvida senão de modo imperfeito; entre­
tanto une-a à dádiva tão perfeita de Maria; associa-a â
oferta que Jesus fez, e ainda faz, de si mesmo na Eucaris­
tia, cujo prolongamento é e que lhe imprime todo o seu valor.
182. O Filho de Deus, encarnando-se, quis glorificar
o Pai; quis também oferecer ao Pai um meio de contentar
o seu amor, de satisfazer o desejo que tem de distribuir

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seus dons. Tudo que é bom, repetimos, tende a difundir-se."
O Ser infinitamente bom gosta, portanto, de comunicar seus
dons. Deus Pai dá todo o seu Ser ao Filho; o Pai e o
Filho dão-se inteiramente ao Espírito Santo, doação eter­
na, infinita, incomunicável a tudo que não é Deus. Mas,
se Deus não se pode dar todo inteiro, exteriormente, apraz­
se em fazer-nos participar de suas riquezas, de sua beatitude,
de maneira finita. mas superabundante. Infelizmente as cria­
turas prestam-se mal aos desígnios da infinita Bondade.
Apresentam vasos pequenos às mãos benfazejas do Senhor,
obrigando-o assim a conter seus dons. Quando o Verbo di­
vino se encarnou, a santa Humanidade de nosso Senhor
se ofereceu ao Pai como um canal eminentemente aPto a
receber-Lhe as liberalidades { 1) e o Pai nelas pôde ex­
travasar em profusão sua munificência. Ofereceu-lhe, con­
juntamente, sua santissima Mãe, sobre quem as graças de
Deus se derramaram copiosas, sem todavia transbordarem,
qual vaso de capacidade superior a todos os outros juntos.
Assim como os rios desaguam no mar sem lhe inundar as
margens, assim também todas as graças se dirigem a Maria,
e Maria a todas pode receber. Já as recebera mais abun­
dantes que todos os anjos e santos reunidos, quando o Vcrbc;
de Deus, indo habitar em seu seio no dia da Anunciação,
aumentou-lhe ainda os tesouros e aperfeiçoou-lhe a san­
tidade.
O que iniciara em sua santa Mãe, o Salvador o continua
em nós pela comunhão. Unindo-se às nossas almas, fá-las
111ais aptas a receber os dons divinos; realça a nossa digni­
dade, pela sua presença, e nossa capacidade, tornando-nos
mais amantes. Pela comunhão tornamo-nos mais semelhan­
tes a ele, mais purns, mais santos, por isso mesmo mais ca-
l) A graça dada. a nosso Senhor, &egundo célebres te6logo11,
fui a graça insuperãvel. P1-obabile cst dlcere, secundum Magls­
trum (Petrus LombarduaJ quod. Deus tantam gratlam el coatu-·
Jerit quantum potuit; potult autem conrerre SUMMA.M gratiam
creabilem. Ven. Scotus, 3 d. 13 p. n." 9. Cf. S. Th. 3 p. 7 a. 12
Suarez, De lncarn. Dlsp. 22. Sect. 2. E' certo. ao menos, que Sáo 1oio
a denomina "a plenitude da gra.c;a." (Jo 1, H-16).

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pazcs de sermos divinizados pela graça. Deus Pai pode
então Ontentar plenamente o seu amor, inundando-nos
com seus dons.

li. As h11milhações do Deus da Eucaristia.

183. Tais são os designios do Verbo eterno. Tais eram


quando se fez o Deus-Homem, tais continuam a ser
quando se faz Deus-Hóstia. Desígnios todos de amor,
inspirados n0 amor ardente que tinha ao Pai celeste.
Admiraremos ainda mais esses desígnios de ·amor, se
considerarmos que, para realizá-los, imaginou as mais
estupendas humilhações; rcbaixou-se até aniquilar-se,
exinanivit semetipsum. Ele, igual ao Pae enquanto Deus,
tornou-se seu servo enquanto homem, formam servi
a ccipiens . Quis, como verdadeiro servo, não ter outra vontade
senão a de seu Senhor: "Vindo ao mundo, o Cristo disse: Já
que não aceitastes os holocaustos pelo pecado, eis-me, meu
Deus, para fazer a vossa vontade!" (Heb 10, 5. 9). O Verbo
feito servo, que prodígio, que mistério de rebaixamento!
já conhecemos a vontade do Pai, que o Verbo veio
cumprir. E', a um tempo, a reparação do pecado e a
salvação do gênero humano. Deus ama muito suas
criaturas, e o Coração de Jesus partilha desse amor. As
almas são a obra dileta de Deus. Feitas à sua imagem,
reproduzem alguns traços de sua beleza divina. E'
impossível, pois, amar a Deus sem amar essas almas que
lhe são tão caras. "Deus tanto amou ao mundo, disse
Jesus a Nicodemos, que lhe deu o seu unigênito" (Jo 3,
16). "Entregou-o por todos" (Rom 8, 30). Enviou-o ao
mundo para que o salvasse. Abrasado pelo mesmo amor, o
Filho de Deus aceitou cordialmcntc esta missão. Foi,
portanto, o amor que tem ao Pai e nos tem a nós que o
levou a aceitar, com alegria, os· rebaixamentos da
Encarnação e os sofrimentos da Redenção.
184. Fez-se, por conseguinte, não sô o servo de seu Pai como
também o nosso. Não ousaríamos afirmá-lo, se Ele mesmo o não
tivesse dito. Non veni ministrari sed ministrare: "Não vim para ser

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servido, mas para servir". (,luã comovente é o meigo
Salvador, fazendo-se servo dos homem seus irmãos, dos
homens, suas criaturas! Obedece-lhes hu mildemente. Nos
trinta anos de sua vida retirada, obedece a José, a Maria;
no correr de sua vida evangélica, fez-s tudo a todos; não
se pertencendo mais, extenuando-se er busca das ovelhas
desgarradas da casa de Israel, não dei xando de aliviar
miséria alguma e chegando a lavar os pé dos Apóstolos,
para frisar o estado de servidão voluntári. ao qual se quis
reduzir. Nos llltimos dias de sua vida mortai a sua
dependência atinge o auge pela submissão aos seu
mesmos inimigos. Não obedece ele aos algozes, quando o
levam ao suplício, quando lhe colocam a cruz aos ombros
quando o pregam? Pedem-lhe o pé, e ele o apresenta
para que o transpassem; pedem-lhe a mão, e ele a
estende.
185. Jesus é. pois, o servo do Pai, o servo dos homens
seus irmãos, sendo que esta condição deriva daquela, por
quanto foi por nós, propter nos homines et propler
nostram .,alutem, que o Pai o enviou à terra. E tão
humilde papel desempenhou como convinha a um Deus.
Rebaixa-se, mas suas humilhações são vitórias; entrega-se,
mas suas derrotas fazem novas conquistas. Ainda hoje,
unindo os extremos aliando o aparentemente
inconciliável, continua, enquanto rei, a ser servo: servo ele
todos e Senhor do mundo, tal é Jesus.
Pelas suas humilhações, pelos seus trabalhos, "pela
efusão de seu sangue, conquistou a Igreja" (At 20, 28).
Esta lhe pertence e ele se utiliza do domínio adquirido
sobre ela para torná-la "gloriosa, sem mácula, sem ruga,
santa e imaculada" (Ef 5, 27). Fez-se nosso, deu-se a
nós e dá-se-nos ainda. Entregando-se desse modo a suas
criaturas vivifica-as e santifica-as. Como os membros
recebem da cabeça força, movimento e vida, recebemos
nós de Jesus cujos membros místicos somos, força
sobrenatural e vida da graça; como os ramos recebem do
cepo a seiva que 0s frutifica, recebemos, por ele, a seiva
misteriosa qu<" nos santifica e diviniza.
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186. E, sem dúvida, é Deus mesmo e não a humani­
dade santa de Jesus, que nos difunde a graça; mas a que
titulo a recebemos, quem nos habilitou a recebê-la? quem
cobriu nossa indignidade com seus méritos? Foi Jesus. So­
mos os remidos de Jesus, pertencemos-lhe plenamente: dabo
tibi gentes hereditatem tuam. "Somos aos olhos de Deus
Pai como que um prolongamento de seu Filho; participan­
tes da dignidade daquele que é nosso chefe, aptos,· por esta
razão, a receber os dons divinos. A alma de Jesus foi en­
riquecida plenamente com esses dons divinos, e a graça que
recebemos C como que uma participação de sua plenitude;
"de plenitudine ejus omnes nos accepimus" (Jo t, 16).
Jesus não nos mereceu sómente a graça. Do alto do
céu vela ainda sobre nós. Sua alma santa conhece todas
as nossas necessidades e o seu Coração nos tem um amor
ardente e deseja intensamente o nosso bem. "Sempre vivo,
sempre pronto a interceder por nós" (Heb 7, 2�). O nosso
"advogado" celeste nos obtém, pelos rogos de sua santíssi­
ma humanidade, aquilo que nos dá, como Deus. Mostra a
seu Pai suas chagas gloriosas enquanto pela sua intercessão
onipotente nos alcança· todos os beneficias que nos são
dispensados. E' "Mediador" (Heh 9, 15) de fato, entre
Deus e nós, é sempre e verdadeiramente sacerdote, pois, cm­
hora não renove o sacriflcio cruento do Calvário, continua
a aplicar-nos os seus frutos.
Só isto? Jesus é sômente nosso Redentor, nosso advoga­
do? Não continuará ele, que passou pela terra fazendo o
hem, a espalhar do alto do céu seus benefícios? Se nossos
anjos da guarda nos iluminam, nos dirigem e nos protegem
com tanto zelo, quem dirá com que solicitude nosso Senhor se
desempenha dos mesmos cuidados? Só nos será dado a co­
nhecer, no dia cm que tudo nos for revelado, tudo quanto
lhe devemos, de santos entusiasmos e inspirações que nos
comunicou, perigai; de que nos preservou, favores que nos
concedeu.
Então Lhe testemunharemos nossa gratidão por toda a
eternidade.

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187. Ora, assim como está no céu, está também no al­
tar. E' o mesmo Jesus glorioso e humilde, nosso rei e nossu
servo, que se dá a nós na Eucaristia. "Ele está à des�ra
da Majestade de Deus, no mais alto dos céus" (Heb I, 3),
e põe-se à nossa disposição, qual servo dócil. Que significa:
"Está à destra da Majestade de Deus?" A destra do prin­
cipe, entronado, é o lugar de honra, reservado à mais alta
aµtoridade presente e a mais chegada ao poder soberano.
Enquanto Jesus rccehc, no céu, as homenagens devidas à
sua dignidade e continua a cumprir a missão de sacerdote
e de mediador, que lhe foi confiada, aniquila-se na hóstia,
obedece às suas criaturas, aos seus padres a quem confere
o poder de manejá-lo à vontade, de colocá-lo onde quise­
rem, de levá-lo aonde desejarem, de guardá-lo prisioneiro
no tabernáculo ou expô-lo sobre um trono luminoso, de im­
por-lhe na santa missa as intenções pelas quais se oferecerá
ao Pai. Põe-se à disposição dos fiéis. Se quiserem enriquecer
a alma pela recepção de seu divino corpo, Jesus se en­
tregará; se quiserem que seu sacrifício sirva às suas necessida­
des individuais ou ao alívio daqueles que sofrem, Jesus se
oferecerá por eles. lnefãwl mist�rio de aniquilamento e d.:
amor!

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CAPiTULO XXII

Da Comunhão
Q•il mand1u-al meam car11em d llibil meum :stm•
1111lnem, ln me tnalltf, tt ego ln Ulo.
,\quelt que comt a minha carne t hcb� o n1cu
sangue rcrmanec� cm Mim e F.u nele (ln ti, 57) .

I. Disposição a apresentar à Comunhão.


188. Acabamos, almas cristãs, ele vos recordar quem é aquele
que recebeis ao comungardes. Pensais nele? Conheceis bem
suas grandezas, sua bondade? Sabeis o que representam em
poder, em imensidade, em perfeições de toda sorte, as
palavras: Verbo eterno? Considerais atentamente, quando
ides recebê-lo, sua majestade infinita, sua condescendência
tão comovedora, tão animadora, seu amor para com o Pai
celeste e para conosco? "Fazei isto em memória de mim",
disse-nos ele. Quanto mais viva e fiel for a lembrança de
Jesus, Filho eterno de Deus, Filho muito humilde de Maria,
tanto mais ardentes serão os sentimentos de respeito, de
confiança e de amor.
E deste modo purificareis também a vossa intenção. Ora, os
frutos do Sacramento dependem em grande parte da intenção
com que o recebeis. Que ides buscar junto à mesa sagrada?
Pretendeis apenas cumprir um simples dever? Mas o vosso
proceder já demonstra fé, obediência e um amor incipiente. O
doce Salvador cumprirá também o seu dever, ou melhor,
realizará a sua missão, e sua visita vos proporcionará
algumas graças, já preciosas. Quereis o consolo da piedade,
a resignação nas provações, o apaziguamento das paixões, a
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força para combatê-las, a reforma do caráter? Jesus possui a
plenitude desses bens e vo-los comunicará em abundância. Mas
se, inflamadas de amor divino, esclarecidas pelas luzes superiores
da fé, quiserdes alimentar-vos da Divindade; se desejardes, com
desejo ardente, unir-vos a Deus, transformar-vos em Deus,
recebendo maior efusão de luzes e de amor; se tiverdes a peito
produzir, graças a essa transformação, atos que o glorifiquem
perfeitamente e lhe agradem inteiramente, se vosso desejo fo_r tal
que estejais prontas a sacrificar tudo quanto sorri à natureza,
então uma chuva de graças cairá sobre vossas almas! Vosso
desejo, com efeito, corresponde ao desejo de Jesus. E' a_ glória do
Pai que ele quer acima de tudo e deseja glorificá-lo,
comunicando-vos seus mais preciosos dons. Que felicidade para
ele encontrar em v6s os mesmos desejos, o mesmo zelo pela glória
divina, o mesmo amor! Com que afeto vos acolherá e como se há
de sentir hem em vosso coração!
189. Sim, almas cristãs, vossos sentimentos alegram a Jesus,
que, vindo para vos fazer o bem, se regozijará tanto mais quanto
melhores forem vossas disposições e maiores riquezas vos puder
conceder.
A Eucaristia é como um enxerto: ninguém enxerta num
galho morto, e sim num tronco vivo, enraizado no solo, num ramo
em que circula a seiva. Se o cavalo for fraco e débil, o ramo
enxertado vegetará miseravelmente e poucos e sem sabor serão
os frutos. Jesus, o jardineiro divino, chega-se à alma santificada
pela graça e nela enxerta nova graça, que produzirá frutos de
virtude tanto mais abundantes e mais preciosos, quanto mais
forte e mais rica for a graça inicial
Vindes comungar, isto é, aproximar-vos de Deus, de maneira
a fundir-vos nele. Mas, para que essa união íntima si realize
plenamente, deveis antes de tudo e na medida do possível tornar-
vos semelhantes a ele, reproduzindo em vós suas perfeições. A
união entre dois seres é tanto mais perfeita quanto mais
semelhantes forem e tanto mais imperfeita quanto mais diferentes
forem. Que visam eles, de fato, a, associarem-se? Visam unir suas
forças, comunicar-se suas luzes, prestar-se auxílios mutuos. Ora,

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isto só será possível se houver uma certa afinidade de
vistas, uma certa analogia de gostos, de outro modo os
laços serão frouxos e essa união não dará bons
resultados. Havendo semelhança e simpatia, os associados
exercerão boa influência um sobre o outro; chegarão a
compartilhar das mesmas idéias, dos mesmos sentimentos,
a fazer os mesmos planos, a formar um só coração e uma
só alma.
Na união íntima que se opera entre Deus e vôs na mesa
sagrada, Deus, o Ser imutável e infinito, nada pode
receber; só pode dar. Vem, pois, comunicar-vos suas luzes
para fazer-vos partilhar de seus sentimentos, para
transformar-vos nele. Só realizará, porém, este plano de
misericória de acorda com a vossa boa vontade. A
Eucaristia é, antes, um alimento que um remédio. Os
alimentos não cortam a febre, não expulsam os humores,
mas mantêm e desenvolvem a saúde. E' no Sacramento de
Penitência, nos atos de contrição e nas obras expiatórias que
encontramos o remédio para nossos pecados. Outro é o fim da
Eucaristia; alimenta, sustenta, fortifica e desenvolve �s
qualidades que encontra na alma, aumentando-lhe a fé, a
esperança e o amor. E quanto mais essas virtudes estiverem
implantadas na alma, tanto mais a Eucaristia lhes dará
impulso e vida.
190. Quantos obstáculos põem à ação de Jesus-Hóstia os
comungantes que se apresentam cheios de sentimentos opostos
aos seus! Pode o fogo unir-se ao gelo, a calma à tempestade, o
dia à noite?
Jesus é a própria humildade. Esta bela virtude, da qual
deu e dá na Eucaristia tão comovedores exemplos, ele a quer
cultivar e fazer frutificar naqueles a quem visita. Ora, que
encontra neles com frequência? Sentimentos de amor próprio,
que não querem confessar. Escutai tal pessoa contando as
ligeiras humilhações que sofreu, e que seu orgulho ora
exagera. Desejará ela, porventura, lutar contra as revoltas do
amor próprio e receber de Jesus força para reprimi-las? Se
assim fosse, a comunhão lhe seria mais proveitosa. Não! "Não
me deixarei tratar assim, diz ela; não suportarei taes injustiças
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sem reclamar; meus iguais não são atenciosos para
comigo, meus superiores não me mostram bondade; mas
saberei vencê-los pela força". Ou então é movida pela s<l
vaidade; sua grande preocupação é alcançar êxito,
estima, aplauso, glória humana. E eis que tal pessoa vai
comungar. Que poderá fazer Jesus nessa alma, o Jesus
manso e humilde de coração, que não procurou sua
glória que não desviou o rosto ao ser esbofeteado e
coberto de escarros? Dar-lhe-á as virtudes que ela não
quer, enchê-la­á de sentimentos divinos quando ela está
carregada de sentimentos humanos, - senão diahólicos -
que quer conservar?
Tal outra não é dedicada; n_ão se quer molestar,
não consente em sacrificar seus caprichos para dar
prazer o prestar algum serviço penoso; ou então, se
por vezes o prestar, fá-los pagar caro pelas suas
palavras que estão sempre a ofender a caridade; julga
tudo com severidade, difama, critica sem se preocupar com
a reputação do próximo. Quão mal se sentirá Jesus, que
tanto amou os homens, nesse coração sem amor!
Outra alma ainda é muito apegada à vontade
prõpria. Quer que todos lhe cedam, que aprovem tudo quanto
faz, que lhe venham ao encontro dos desejos. Demasiado
confiante em sua própria inteligência, quer impor sempre
sua opinião. Não se agrada senão daquilo que ela mesma
faz. Ante uma contestação ou uma qualquer
contrariedade, enxaspera-se, irrita-se. Enquanto não
procurar ciJrrigir-se, enquanto não praticar renúncia,
como poderá esperar associar-se àquele que disse: "Não
desci do céu â. terra para fazer minha vontade'� (jo 6, 38).
Eis agora pm cristão que prefere o prazer ao
dever; sua grande preocupação é passar agradàvelmente
os anos de sua vida; procura passatempos alegres;
consagra-se ao jogo horas inteiras; dedica semanas
seguidas a viagens de puro recreio. Como poderá aquele,
de quem o Espírito Santo disse: Chrislus non sibi
plac11it: "O Cristo não procurou o seu prazer" (Rom 15,
3), apreciar-lhe a companhia?
206

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191. Os defeitos, não reconhecidos nem desaprovados
são qual muro de bronze, a interceptar a graça; se forem
muito numerosos, a graça divina se comprime poi todos os
Ilidos e as comunhões, embora frequentes, não produzirão
grandes frutos. Os defeitos dêbilmente combatidos são qual
cerca alta e espessa, que não deixa passar, senão por fres­
tas, os raios benéficos da graça. Toda reserva no dom de
si mesmo a Deus, todo apego deliberado à vontade ou à
opinião prõpria ou a qualquer hábito menos perfeito, toda
busca deliberada das comodidades da vida, todo sentimento
não reprimido de amargor contra o próximo, embora não
impeça o sacramento de fazer bem, prejudica a efusão abun­
dante da graça.
E tais outros comungantes que, sem ter defeitos no­
táveis, vivem na dissipação, quando sua vocação, a posição
que ocupam e as funções que exercem, exigem deles uma
vida verdadeiramente interior? Tais almas não se recolhem,
rezam pouco e sem fervor, deixam-se invadir por preocupa­
ções humanas, absorver por negócios todo materiais. Quando
o doce Salvador se chega a elas com as riquezas que lhes
destina, pouco se ocupam delej entregues aos cuidados ha­
bituais, pouco ou nada lhe pedem, patentea�do um fraco
amor, consagrando-lhe dificilmente alguns instant�s de ação
de graças. Não podem, portanto, receber senão parcos dons,
e Jesus, que viera com as mãos cheias, deverá levar de volta
ao céu, ou oferecer a outras almas, a quase totalidade de
seus tesouros.
192. Seja outra a vossa conduta, cristãos que ides a
jesus. Preparai-lhe uma mansão digna, em primeiro lugar
afastando os sentimentos que lhe desagradam e praticando
as virtudes que constituem a beleza de seu divino Coração.
Esta preparação remota, tão importante, facilita a pre­
paração imediata, de recolhimento e de oração. Depois,
quando o possuirdes, adorai o vosso Deus, humilhai o vosso
nada em sua presença, uni vossos sentimentos aos dele. O
Salvador, ao descer em vós, procura logo a glória do Pai,
a quem dirige o seu primeiro olhar. Desse novo altar, que

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é o vosso coração, apraz-se em oferecer a Deus suas ho­
menagens, convidando-vos a unir-vos a ele. Que o nome
de Deus seja santificado, que venha a nós o seu reino, que
sua vontade seja feita, eis o primeiro pedido de Jesus. Se­
ja esta também a vossa primeira oração, feita em união
com ele. Em tão solene momento, do Coração de Jesus,
a pulsar em vosso peito, .erguem-se a Deus atos de amor
que o glorificam mais do que todos aqueles que por ventura
praticastes ou vierdes um dia a praticar. Deus é adorado,
amado, bendito, louvado e agradecido, por um Deus, no
mais íntimo de vosso ser. Não permaneçais frios e indiferen-
1es a ato tão sublime, mas alegrai-vos e participai dele
•> quanto possível. Aqueles que se recusam a cumprir com
o dever da comunhão e, por conseguinte, a servir de ins­
lrumento, ou antes de altar a Jesus, têm certamente culpa,
mas aqueles que, ao comungarem, não se associam aos
sentimentos de Jesus são também dignos de censura.
193. Será mister, então, esquecer as nossas necessida­
des e não aproveitar ela vinda de Jesus em nós para lhe
expor nossas misérias e solicitar-lhe suas graças? Não, por
certo; mas a alma apaixonada de amor não começa por ai;
a tal chegará, sem dí1vida, pois seu amor leva-a a querer
tornar-se mais pura para melhor servi-lo e amã-lo. Não
pensará todavia em si como a alma imperfeita, que, cheia
de si mesma, deseja sair-se bem em seus empreendimentos,
evitar os reveses humilhantes, satisfazer os caprichos da
natureza, aproveitando-se da visita de Jesus em seu coração
para fazer-lhe, desde logo, inúmeros pedidos pessoais. Tal­
vez esteja sendo provada, e entrega-se à tristeza; ou tal­
vez se sinta desolada com as feridas feitas ao seu amor
próprio, ou as oposições à sua vontade; ou ainda
causa-Ihe angústia a idéia de males que a ameaçam. Só
vê em tudo suas aflições. Como sofro, como sou
desgraçada! está sempre a repetir, ou então: meu Deus,
poupai-me, consolai­me! Quer conformar Deus a si em
vez de se conformar a Deus. Convém aconsélhar a tal alma
que pense mais nos interesses e na glória de Deus e menos
nos seus próprios interesses; que patenteie maior amor ao
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Deus que vem a ela por amor, ao Deus que, por ela, não
mediu sacrifício algum nem regaleou o menor sofrimento.

li. Os efeitos da Comunhão.

194. Quão felizes são aqueles que se chegam a Jesus


cheios de santo amor! Neles se realiza admiràvclmente o
provérbio que o Salvador gostava de repelir: "Ao que já tem,
mais lhe será dado e terá cm abundância" (Mt 13, 12; 25,
28). O Pai eterno, vendo, de um lado, esse abaixamento
prodig'ioso do Tudo que se encerra no nada, da Pureza in­
finita que se une â alma maculada, e, do outro, os esforços
dessa alma para corresponder a tanto amor, comove-se an­
te tal espetáculo. Contempla, com infinita ternura, o seu
divino Filho aniquilado e também essa pobre criatura que
possui esse divino Filho, procurando unir-se e assemelhar-se
a ele, e suscitar em si os sentimentos e os desejos que nele
vê. A oração do Filho eterno de Deus e a oração do hu­
milde comungante são uma só mesma oração; seus pro­
testos de amor, suas homenagens de adoração, de reco­
nhecimento, reunidos, elevam-Se até ao trono de Deus. En­
tão o Pai todo-poderoso, como que vencido, não pode recu­
sar os pedidos da alma.
195. E o Verbo de Deus que, vivendo entre os homens,
os cumulava de benefícios e cujo poder e bondade se irra­
diavam de tal forma que um simples contato com suas ves­
tes curava doentes, quantas graças não hã de conceder àque­
le que, ser.do o seu templo e seu santuário, não lhe tolhe
a ação benfazeja? A comunhão é, na terra, como que o
termo dos desejos de Jesus, o alvo de seus esforços, o der­
radeiro escopo de seus trabalhos. Ai se completa a obra
da Encarnação; ai, a carne que recebeu no seio de Maria
se une à nossa carne para purificá-la; sua alma, à nossa
alma para santificá-la; seu coração, ao nosso coração pa­
ra nele derramar seu amor; sua inteligência, à nossa in­
teligência para iluminá-la com suas próprias luzes. Alegra­
se em fazer o bem aos cristãos fiéis, que por meio de es-

O eamlnllo - 14 209

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forços generosos e perseverantes souberam adquirir virtu­
des e sentimentos que, embora ainda fracos, são porém se­
melhantes às suas virtudes e aos seus sentimentos. Que
bons amigos se mostram para o meigo Salvador! Jesus en­
contra neles perfeita harmonia de gostos. Os mesmos de­
sejos que lhe vibraram o Coração, desejos da glória do Pai
e da salvação das almas, são também os únicos desejos des­
ses cristãos fiéis. As tristezas que lhes causam a ingratidão
dos homens para com Deus e as desgraças qÍ.te ameaçam
os pecadores são as que arrancavam lágrimas a Jesus. Nes­
sas almas Jesus vê a mesma indiferença pelas alegrias pu­
ramente humanas, pelos prazeres mundanosj o Coração de
Jesus e o coração desses fiéis batem uníssonos. E como se
compraz ele na companhia desses amigos, quão estreita é
a união que se estabelece entre ambos, que riquezas espiri­
tuais derrama nessas boas almas!
196. O Espírito Santo ilumina-as e as abrasa, nelas
produzindo efeitos análogos aos que opera na alma justa de­
pois da morte. A alma, desprendida dos erros, das idéias
baixas que a penetravam na terra, elevada acima das névoas
terrenas, recebe vivas luzes que a esclarecem sobre a gran­
deza e a santidade de Deus e sobre a sua própriá miséria.
Sua vontade, libertada de todo desejo natural, de todo ape­
go imperfeito, só aspira a destruir os restos do pecado e a
fazer reinar a Deus em seu interior. Tal a atuação do Es­
pírito Santo nessa alma; e, como ela corresponde cabalmen­
te à sua ação, a operação divina se exerce de modo admi­
rável, embora não alcance de chofre, parece-nos, a plenitude
de seus efeitos, agindo antes progressivamente. O escla­
recimento e o ardor dessa alma tornam-se mais completos
à medida que se vai purificando, pelo menos, nada mais im­
pedindo a ação do Espírito Santo, e a alma faz contínuos
e maravilhosos progressos no conhecimento e no amor, pro­
gressos que s<l cessarão quando a alma inteiramente puri­
ficada puder exercer seu amor sem empecilhos, segundo o
grau de merecimento que atingira ao morrer.

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O Espírito Santo atua em verdade, de modo diverso:
na alma do comungante, aumentando-lhe a graça habitual:
entretanto sua ação não deixa de ter certa analogia com
a que exerce sobre a alma do purgatório. Cada comunhão,
feita com as devidas disposições, ilumina e santifica, em prc­
porções admiráveis, as almas que pertencem inteiramente
a Deus. Percebem, cada vez melhor, o que Deus é e o que
elas mesmas são, o que Deus pode e o que elas podem,
o que Deus quer e o que quer sua natureza viciada. O tu­
do de Deus e o nada da criatura, o poder divino e a fraqueza
humana, a santidade de Deus e a perversidade da natureza
são quais abismos em que podemos sempre mergulhar o
olhar sem nunca atingir o fundo. Ao mesmo tempo, e tal­
vez melhor ainda, percebemos o amor de tudo quanto &
bom e justo e santo. O amor de Deus, bondade e santidade
por essência, é sobretudo suscetível de um desenvolvimento
indefinido. Tal a operação do Espírito Santo na alma do
comungante; torna a este mais esclarecido e mais ardente,
não afastando pouco a pouco, como à alma do purgatório.
os obstáculos que lhe tolhem a fé e o amor, mas desenvol­
vendo-lhe a faculdade de crer e de amar.
197. Qual é pois a potência espiritual da alma sanla
que comunga com frequência? Os demais cristãos nem se­
quer a suspeitam e ela mesma a ignora, tanto o mundo es­
piritual foge ao entendimento humano. Podemos possuir em
grau supereminente, em medida sempre crescente, as . vir­
tudes sobrenaturais sem termos consciência dos progressos
admiráveis que nelas fizemos. Tal cristão, por exemplo, -
permitam-nos exprimir com algarismos o que não tem nem
quantidade nem medida - tal cristão é hoje cem vezes,
mil vezes mais rico em fé, em esperança, em amor, em hu­
mildade, em abnegação, em caridade do que hã um ano
atrás. Estas virtudes, já então bem desenvolvidas, continua­
ram a crescer, embora isto lhe passasse despercebido. Como
tais virtudes se encontram na parte superior da alma, onde
NADA SENTIMOS, é-lhe impossível avaliar-lhes a profun­
deza e a intensidade. Muito mais fácil lhe será verificar os
211

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defeitos, pois continuam na parte inferior e sensivel. Em­
bora reprovados pela vontade, firmemente apegada às vir­
tudes contrárias, tais defeitos podem exercer grandes vio­
lências.
Se podemos ter apenas uma idéia vaga do grau de Vir­
tudes que alcançamos, como havemos de aquilatar os méri­
tos acumulados, o esplendor sobrenatural da alma, incompa­
ràvelmente mais vivo?
E' um mundo maravilhoso que a fé nos entreabre, mas
que sõ havemos de conhecer quando a luz da glória iluminar
as nossas almas. Veremos então os frutos produzidos pela
comunhão nas almas puras, e como cada visita do divino
Salvador a seus fiéis amigos foi-lhes uma fonte de graças
profusas e abundantes.

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CAPITULO XXII!

Das virtudes
l'llloll, non dilltam"� ,·,·rim nr,,ur lin11,.,,. u,1
nptr<' ·r1 �erltalr .
•\leus lillll11l1os. nio a111cmo� d� palt.-ras 11�m
de linitua, n,111 por obras e fn1 nrd�dc (1 Jo3. ll'J.

198. E' pelas suas obras que Deus nos prova o seu
amor; é também pelas nossas obras que lhe devemos pro­
var o nosso amor. Nossas obras têm ainda a vantagem de
tornar nosso amor mais firme e mais enérgico. Deus, que
nos quer levar à caridade perfeita, nos impele, portanto, à
prática das virtudes, querendo assim dar às nossas almas
forças sempre novas e adornos variados e encantadores.
Uma força e um adorno, eis o que é a virtude; engran­
dece a alma e a embeleza; torna-a digna do respeito dos
homens que, frequentemente, quando a paixão não os cega,
se afeiçoam à alma virtuosa, ou, pelo menos, estimam-na.
Mas como a virtude encanta o coração de Deus! Ele vê, na
virtude, aquilo que escapa aos nossos olhos, isto é, uma força
sob►enatllral e, por conseguinte, bastante poderosa para re­
pelir todos os assaltos dos demônios e todas as perseguições
dos homens, para dominar todas as inclinações viciosas e,
mesmo, para fazer as paixões vencidas servir à glória de
Deus. Considera também a virtude como um magnífico ador­
no e, como cada virtude tem seu esplendor peculiar, a alma
que pratica muitas virtudes oferece. aos olhos do Altíssimo
um espetáculo maravilhoso.
199. Mas agrada principalmente ao coração ele Deus
ver a alma, ornada de virtudes sobrenaturais, apresentar-se
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a seus olhos como a imagem de seu divino filho. Jesus é
o modelo dado ao mundo e as virtudes mais heróicas dos
Santos são apenas uma reprodução das virtudes de Jesus,
reprodução encantadora, na verdade, porem imperfeita e mui­
to aquém cio nosso modelo. Mais ainda, essas virtudes so­
hrenaturais devem sua existência aos méritos do Verbo
encarnado.
Assim nossas virtudes são para Deus como que o per­
hlme de seu Filho. Ide, disse um dia um rei a seus pajens,
ide às minhas estufas a fim de impregnar-vos do suave aro­
ma das flores que meu filho cultiva para mim. E voltai de­
pois para junto de mim, quando estiverdes bem penetrados
dos diversos aromas; tu, do perfume da rosa; tu, do perfume
da violeta; tu, do perfume do bálsamo; e, quando me cer­
cardes, o cheiro de todos esses aromas formando um só será
tanto mais delicioso quanto o deverei ao meu Filho bem
amado.
200. Que valem, porém, estas comparações, e como po­
dem palavras humanas descrever os brilhos das virtudes
sobrenaturais, e demonstrar-lhes o valor? O sobrenatural C
uma participação da natureza divina. A beleza que estas
virtudes imprimem às nossas almas C portanto uma beleza
toda celeste, uma participação do esplendor divino. Só mes­
mo os ml!ritos, de valor infinito, do Homem-Deus poderiam
obter-nos tais virtudes junto à faculdade de lhes praticar
os atos!
Deus nelas se compraz. O menor ato de virtude, feito,
pois, com espírito de fé, por uma alma em estado de graça,
é digno de suas infinitas complacências, e isso explica que
um copo de água dado em seu nome nos merece uma re-
compensa eterna.
201. Que prova de amor dá, pois, a Deus aquele que
lrata de 11raticar as virtudes! Deus se alegrará se eu for
suave, humilde, caridoso, paciente. E que felicidade para
mim poder fazer algo de tão agradável a Deus! A virtude
praticada espontâneamente já é bela; será, porém, mais
hela ainda, mais agradável a Deus, se for inspirada pela

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car-idade. A alma que se mantém pura pelo horror que tem
ao vício, ou pela estima sobrenatural que tem à pureza,
pratica ato meritório; aquela, porém, que guarda castidade
para agradar a Deus, faz melhor ainda, pratica um atü
genuíno de amor, dilata-o ainda e dá passo adiante no ca­
minho do perfeito amor. E serão tanto mais rápidos seus
progressos quanto mais pura for a intenção e quanto mais
a busca da virtude não nascer do intrínseco valor da mesma,
mas visar ünicamente agradar a Deus. Quão mais completo
será então o êxito de seus esforços! Quando a virtude descansa
nas cinzas do vicio; quando o amor venceu as mais fogosas
paixões, quando as tendências más, sempre contrariadas,
se esgotarem; quando os inimigos encarniçados da alma,
sempre repelidos, se cobrirem de opróbrio; quando as san-
1as disposições para o bem se firmarem e se desenvolverem,
que belo espetáculo serã para os olhos de Deus! A graça
que Jesus mereceu triunfou; Jesus obteve que um reflexo
de sua beleza sublime apagasse a fealdade dessa alma, trans­
Hgurando-a. Do vício exterminado restam simples despojos
que lhe recordam a ruína; as nódoas, porém, se apagaram
e desses despojos eleva-se urna coluna, trazendo esta lumino­
sa inscrição: Jesus venceu.
Todo ato de virtude glorifica, pois, a Jesus, glorifica
a Deus. Foi a graça adquirida por Jesus, a preço de todos
os labores, que conquistou a vitória; foi a graça dada por
Deus mesmo, a graça, que é obra Unicamente de Deus, a
graça, participação de Deus, que suscita e desenvolve a vir­
tude na alma fiel. Assim, no céu, onde tudo é luz e verdade,
no:.sas 11irlt1des glorificarão mt1ito mais a Deus que a nós
mesmos.
201. bis. As nossas virtudes o glorificarão tanto mais
quanto mais frequentes e mais perfeitas tiverem sido. O
espírito do homem não pode conceber, aqui na terra, as pro­
fundezas de virtude que se lhe abrem. São João da Cruz fala
das imensas cavernas da alma. Com efeito, podemos trazer
em nós mesmos abismos de iniquidade ou abismos de virtude.
Tal pessoa vaidosa, encantada consigo mesma, que não cui-
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da de se emendar, indagará dezenas de vezes por dia,
durante os sessenta ou oitenta anos, que lhe foi dado vi­
ver, do que dizem ou pensam dela. E cada nova falta a
mergulhará mais avante em sua vaidade. Dá-se o mesmo
com o sensual, o impudico, o ambicio�o, o avarento. E
essa pobre gente nem sequer percebe o abismo de seus
defeitos! Por vezes, obstáculos providenciais, tal a pre­
ocupação da própria honra, ou, melhor ainda, uns restos
de virtudes os impedirão de se entregar cabalmente aos
seus defeitos, que não podem então produzir em suas almas
efeitos proporcionados à sua intensidade. Tais defeitos, po­
rém, não deixam de ter uma profundeza: assustadora, e
imensa será a surpresa dessas almas quando, logo depois
da morte, se virem lé is quais são.
Ao contrário, a a.ma mui generosa possui abismos de
virtudes que nem ela nem ninguém neste mundo suspeita.
Então cada ato de humildade, de paciência, de doçura, de
caridade, de zelo, de pureza, de amor divino dilata-lhe ainda
as virtudes e as aumenta segundo a intensidade, a firmeza
e a pureza desses mesmos atos. Que grau terão alcançado
essas virtudes sobrenaturais, após longos anos de fidelidade,
de provações santamente suportadas, de lutas e de vitórias?
Que proporção terão atingido? Nos séculos sem fim que
se seguirão a esses poucos dias de prova, os eleitos conser­
varão suas virtudes na medida em que as tiverem adquirido,
e gozarão das doçuras inefáveis que estas lhes proporcio­
narão, e de acordo com seus méritos. Que felicidade para
eles! Que alegria e que triunfo para Jesus, que lhes me­
receu alcançar tais virtudes! Que glória para Deus, cuja
bondade, sabedoria, poder, santidade souberam produzir tão
belas obras.

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CAPITULO XXIV

Da conformidade à vontade de Deus

lõtla quae Jl/1"111' ,iunl �; /atin re,np,r.


l'aço sempre o <111e ,:; do agrado tio n1c11 l'a•
(Joll, 29).

I. lmportlnc:ia do dever de eslado.

202. A conformidade da nossa vontade à vontade de


Deus é virtude pela qual provamos a Deus de modo
especial o nosso amor, ou, melhor ainda, é a forma
habitual de nosso amor. Esse amor de conformidade
pode exercer-se semprc e em toda parte, engrandecendo
e santificando os atos mais triviais da vida.
"Ou comais, ou bebais, ou façais qualquer outra coisa,
dizia São Paulo, fazei tudo para a glória de Deus"( 1 Cor
1O, 31 ). Os trabalhos e as ocupações que compõem os de.,
· veres de estado rendem glória para Deus e são muito
meritórios para o cristão, quando feitos com alegria, por
serem desejados e impostos pelo Mestre hem-amado.
203. Grandioso e esplêndido é o plano do Mestre ben­
dito, do Rei, infinitamente sábio, do céu e da terra e,
nesh: plano, concebido desde toda a eternidade, cada
criatura tem um lugar à parte, uma missão própria. Para
que todos p0ssam seguir o caminho que lhes foi traçado,
o Senhor dirige os acontecimentos, prepara as
circunstâncias, dá aptidões e atrativos particulares. Um
gosta das coisas militares, outro sente-se chamado para a
medicina; este tem inclinação pela advocacia, aquele para o
comércio. A Providência cstabeleceu sabiamente essa diversi-
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dade de gostos e aptidões distribuindo, devidamente, por
esse meio, as funções sodais segundo as necessidades
tão diversas da humanidacle. A essa variadade de
atrações na ordem natural, corresponde outra, não menos
admirã.vel, de inclinações e aptidões sobrenaturais. Deus
não pede a todos que sobressaiam na mesma virtude;
cada vocação tem suas exigências cada situação impõe
deveres próprios. Daí uma variedade maravilhosa, pois
cada virtude, diversamente praticada, imprime à alma
cristã um aspecto próprio. As plantas de toda espécie,
as flores de cores variadas, dispostas com arte, num
jardim, oferecem um quadro encantador. lncom-
paràvelmente mais belo se nos apresentaria o mundo
das almas se nos fosse dado vê-lo. Entretanto, na terra,
é um simples esboço do espetáculo, mil vezes mais belo,
que contemplaremos no céu, onde brilhará aos nossos
olhos, e com indizível encanto, essa multidão de almas
que, no mune!o já formam tão harmonioso conjunto. Nada
lhes deslustrará o esplendor; irradiarão umas nas outras,
destacando, reciprocamcnte, a beleza de cada qual. Entre elas
reinará uma Ordem perfeita, uma unidade completa, numa
admirável multiplicidade.
204. Saibamos, pois, apreciar nossos deveres de estado. Que
consolo para o menor artífice poder dizer: excrcendo
minha rude profissão, torno-me o executor das vontades
divinas, realizo o plano eterno, glorifico a meu Deus
neste mundo da forma pela qual quer ser glorificado
por mim; preparo-me para ocupar no céu o lugar que me é
destinado e render a Deus, durante toda a eternidade, a
glória que espera de mim. Meus duros trabalhos
equivalem portanto a um cântico cm honra da Divindade.
Enquanto meu corpo se inclina sobre os instrumentos,
meus olhos considcram atentamente os objetos que devo
trabalhar, enquanto meus braços se cansam e minhas
mãos se agitam, o meu espírito calcula, toma medidas,
delineia seus planos, entâo todo o meu ser vos obedece,
meu Deus, tudo cm mim ,·os pertence, todas as minhas
forças se despendem por vôs, toda a minha natureza vos
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entoa um hino de louvor. Tais não seriam os sentimentos
com que trabalhavam cm Nazaré os membros da sagrada fa-
•milia, José, Maria e Jesus? Coubesse-nos o mais humilde
dos papéis aqui na terra, conformidade à vontade de
Deus torná-lo-ia verdadeiramente nobre. Destinando-nos
esse papel, Deus praticou com0 sempre um ato
de sabedoria e de bondade. Os operários que
fabricam brinquedos deviam considerar-se felizes por
poderem se associar à obra divina que consiste em
espalhar a alegria entre os homens, em lhes
proporcionar prazeres honestos e satisfações legítimas.
Outros, cujo trabalho está preso à constrnção das casas
onde vivemos ou do preparo dos alimentos que nos
sustentam, ou das roupas que n0s vestem, estão
associados à obra benfazeja ele Deus e .são os
auxiliares daquele que abre "a mão e cobre de bênçãos
todo ser vivente", que zela pela nossa morada, pela nossa
roupa e pela nossa comida. Outros são escolhidos para
prestar a seus irmãos serviços de ordem mais elevada; para
esclarecer-lhes o espirito, alimentar-lhes as almas com o pão
da verdade e dirigi-la no caminho da salvação. Cabe a Deus
designar a cada qual o seu papel, e cabe a nós o ac�itar
amorosamente aquele que a Providência nos confiou. A espiga
de trigo cresce, alheia ao seu destino, sem saber se servirá de
sustento aos pássaros, de alimento aos homens, ou de
substância ao sacrifício eucarístico, nem mostra a menor
preferência. Assim também o homem deve mostrar-se dócil à
vontade divina, mantendo-se em uma santa indiferença.
E' de joelhos que todo cristão deveria receber, cada
manhã, as ordens cio seu Deus: Eis-me aqui, Senhor,
que quereis vós de mim? que tarefa me impondes para
hoje? Bater a bigorna, cavar sulcos, levar vida
contemplativa, ensinar, estou pronto para tudo quanto
me pedirdes. Vossa vontade é a única norma da minha vida;
é, como dizia Jesus, o meu único alimento: meus cibus est ut
faciam voluntatem ejus qui misit me, alimento saboroso,
substancial, fortificante; alimento que é o próprio Deus, pois
não é a vontade divina Deus? E nutri-se dessa vontade não é
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nutrir-se de Deus, unir-se a Deus, transformar-se em Deus?
205. Se nossos deveres de estado se nos
apresentam como a manifestação da vontade divina
infinitamente respeitável, devemos cumpri-los com
religioso desvelo. Outras ocupações nos hão de solicitar
que, mais atraentes e não necessàriamente frívolas,
podem ter sua utilidade; mas se lhes sacrificarmos
embora parcialmente os nossos deveres de estado,
tornam-se nocivas. Serão ainda mais nocivas se nada
omitindo de essencial cm nossos deveres de estado
todavia deles nos desempenharmos com negligência ou
se os fizermos com pressa e como que de mau grado.
Quem oferecesse a um amigo como penhor de seu afeto um
objeto não direi sujo ou repulsivo, mas empanado 01,1
quebrado se mostraria pouco delicado; se oferecesse esse
triste prcsente a um superior e benfeitor, passaria por ser
pouco respeitoso. Como então deve Deus julgar aqueles
que cumprem mal com os seus deveres de estado, que
os cumprem com negligência e preguiça?
Nossa cobardia no cumprimento dos deveres de
estado f'rovém, em geral, de querermos gozar as vantagens
de nossa vocação, sem lhe suportar os encargos, ou, pelo
menos procurarmos diminuir, tanto quanto passivei, as
dificuldades inerentes. Esquecemo-nos de que nunca
cumpriremos oom os deveres de estado se não
estivermos imbuídos do espírito de sacrifício. Deus, que
colocou em nossas alma uma forte inclinação para o
estado que abraçamos e nele nos faz encontrar gosto
e prazer, deixou, porém, o espinho sob a rosa, para
que o dever, sendo penoso, nos fosse um meio
de santificação. E os desígnios de Deus se realizam
nos corações generosos; os deveres de estado, sejam
quais forem, santificam as almas de boa vontade. Não
existem Santos em todas as condições de vida? Com
efeito em todas as profissões há numerosas ocasiões de
sofrimen10 e de sacrificio. Uma alma, por conseguinte,
fiel e corajosa, que se desempenhe com invencí-
vel amor de todos o seus deveres, se elevarã até
a perfeição.
220
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206. E', portanto, o amor, não o gênero ele vida, que
torna a alma perfeita, que faz heróis e Santos. Aqueles
que passam a vida no exercício da oração e da penitência,
escolheram, por certo, a melhor parte e dispõem de piedosos
auxílios para a santificação. Mas o lavrador que, durante
o verão abrasador, suporta o peso do dia e do calor e
que, durante o inverno, se expõe às rudes intempéries da
estação, ou o operário, condenado por vezes a tão duros la­
bores, podem também elevar-se ao heroísmo; podem mes­
mo, se estiverem cheios de amor, apresentar a Deus ofe­
rendas mais agradáveis, holocaustos mais perfeitos, que os
religiosos contemplativos, não bastante desapegados de si
mesmos.
Marta foi censurada por Jesus, não pelo que fazia,
mas pelo ardor demasiado humano com que o fazia. Devia
agir só por amor, ciosa dos alimentos que iam ter a honra
insigne de nutrir o Homem-Deus, ele se tornarem na carne
sagrada destinada a resgatar o mundo, ciosa também dos
humildes utensílios que iam servir à sua refeição. Cada passo
que dava, cada gota de suor que lhe caía da fronte deviam
ser-lhe um novo ato de amor, um testemunho radioso de
sua dedicação. Estivesse ela toda penetrada de amor, e não
teria sequer cogitado do abandono em que a deixava Maria;
feliz em trabalhar pelo Mestre, alegrando-se por não re­
partir com outrem o prazer de servi-lo. Se tivesse recebido
de joelhos, pela manhã, as ordens de Deus, compreenderia
que ele mesmo a encarregara de prover ao festim, de dar
comida a seu Filho, teria então aceito esse encargo com
reconhecimento, tê-lo-ia cumprido com calma. E o divino
Mestre, ao receber de suas mãos os alimentos preparados
com tanto carinho, lhes teria saboreado o perfume sobre­
natural, recompensando o corajosa dona de casa com um
aumento de fé e de caridade. A continuação, porém, da nar­
rativa evangélica mostra bem que Maria tinha maior amor;
foi ela, e não sua irmã, quem acompanhou Jesus ao Calvã­
rio e procurou ansiosamente, depois da ressurreição, o cor­
po de Mestre. E' porque foi a Madalena e não a Marta,

221

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que o Senhor se dignou aparecer em primeiro lugar,
antes mesmo de se mostrar aos Apóstolos.
O coração amante não considera a obra imposta,
mas aquele que a impõe. Pouco importam os trabalhos
que Ihe são determinados, dirá, basta-me que sejam
para o meu Bem-amado. Demais, deseja aquele que C
todo amor outra coisa senão o meu bem? Ao seu amor
responderei com o meu. Se me couberem árduas tarefas,
tanto melhor lhe provarei quanto eu o amo. Se meu corpo se
vergar pelo cansaço se minha alma for entregue a
sofrimentos íntimos, por vezes tão vivos e tão dilacerante�,
pouco importa. Se de minha fronte correr o suor e se eu
me ferir e perder sangue, pedirei a Jesus que misture
essas gotas às gotas de seu próprio suor e do seu
próprio sangue, a fim de comunicar à minhas penas algo
da eficácia de seus trabalhos e de seu sofrimentos.

li. Maria, modelo de conformidade à vontade divina.

207. Que harmonia entre os gostos e a vida da San-


tissima Virgem no templo! Entregue ao culto de Deus,
levava, o quanto era então possível, a vida contemplativa!
E eis que é chamada a deixar essa vida e tornar-se
esposa e mãe; a deixar as ocupações divinas a que se
dedicava p'ara cuidar de uma família e dirigir um lar
operário. Ter-lhe­á essa vocação suscitado objeções? Não,
de certo, pois prezava demais a vontade de Deus. Os
trabalhos, aparentemente os mais grosseiros, se
obedeciam â vontade divina, eram nobres demais a seus
olhos, para que formulasse sequer uma objeção.
Os progressos dessa admirâvel Rainha das Virgens
já tão santa e tão elevada no amor, não se arrefeceram
com o casamento. Enquanto se entregava às humildes lidas ca-
seiras, crescia continuamente na santidade, causando admi-
ração aos anjos e deliciando o coração de Deus.
Foi nessa vida simples e modesta, e não no templo
de Jerusalém, que Maria recebeu o mais alto favor jamais

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concedido a criatura alguma. Se milhares de vezes, no
céu e a terra, espíritos angélicos e filhos dos homens
se proclamaram servos submissos do Senhor, prontos a
executar-lhe as ordens: ecce ancilla Domini, fiai mihi
secundam verbum tuum; nunca, porém, nenhum desses
protestos teve a maravilhosa eficácia do protesto de
Maria, porque nenhum fora jamais pronunciado com tanto
amor! E isto prova que, perante Deus, o valor do ato está
na medida de amor que encerra e nunca �ríatura alguma
agiu com éllllOr tão pnro e tão forte como Maria!

iii. União da oração e da ação.


208. Damos, de fato, a Deus uma grande prova <le amor em
nos aplicando aos trabalhos de nossa profissão com
desvelo e no intuito de lhe ser agradável. Devemos, cn­
tretanto, acrescentar que, se quisermos nos desempe-
nhar como verdadeiros cristãos dos nossos deveres de estado,
nunca nos devemos deixar absorver por eles; nem tão pouco
devemos nos mergulhar nas ocupações, mesmo necessárias ao
ponto de perdermos de vista o Senhor e menos ainda nos
sobrecarregar com trabalhos em prejuízo do reconhecimento e
da vida interior. E' mister retemperar-nos com freqUência na
oração, na intimidade com Jesus; é mister retemperar-nos com
frequencia na oração na intimidade com Jesus; é mister saber
arrancar-nos aos nossos trabalhos para procurar junto ao
altar um aumento de fé e de caridade. E' principalmente aí que
Jesus faz sentir sua ação, que toca os corações, que ilumina os
espíritos; e aí que a piedade se dilata, que buscamos novas
forças para as lidas do dia junto a pensamentos de fé para
sobrenaturalizá-los e torná-los meritórios. Não é nas visitas
quotidianas ao Deus do tabernáculo e na assistência ao santo
Sacrifício que os verdadeiros cristãos alimentam suas almas
de piedade e de energia? que os homens maduros e as
mulheres diligentes encontram repouso e ânimo? que as almas
jovens sobretudo vêem firmarem-se suas virtudes incipientes?
Quae placita sunt ei facio semper. "Procuro fazer semprc
aquilo que é do agrado de meu Pai". Estas palavras de

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tle Jesus, que lhe resumem toda a vida, devem também
cunhar a vida de cada um de nós. Na união, constante da von­
tade humana com a vontade divina está a perfeição da ca­
ridade; devemos tender a este fim seja qual for o nosso
estado. Fazer o que Deus quer, como o quer, porque o quer.
Deus quer que nos desempenhemos dos deveres de estado
sem negligência; não quer, porém, que os pratiquemos lc�
vados pelo ardor natural, nem pela paixão. Quer que só é
ele nos entreguemos completamente, e que nos prcstemot
apenas a tudo quanto não for ele. Se não dedicarmos ao:
exercícios piedosos e à oração uma boa parte do nossc
tempo, não nos será possível fugir à dissipação, nem con­
servar a lembrança habitual de Deus na união afetiva con­
o Bem-Amado, como bem o demonstra a experiência de
inúmeros cristãos, que sacrificam sem receio a vida interior
à vida puramente exterior. Ai de nós! Os poucos frutos
que essas almas colhem, a ausência manifesta das virtudes
perfeitas, provam que não segu�m o verdadeiro caminho.
Tal caminho é aquele que trilharam os Santos e todas as
almas que se· deixaram guiar pelo Espírito de Deus. E' o
caminho em que a oração e a ação se mesclam sem se pre­
judicarem, em que há o trabalho para Deus e o repouso
com Deus e em Deus.

IV. A Imolação completa da vontade humana, ou a prática do mais


perfeito.

209. Esforçai-vos pois, generosamente, eiedosos lei­


tores, para conservar a constante lembrança· de Deus e sub­
meter-lhe a cada momento a vossa vontade. Essa vontade
humana não se deixa fàcilmente dominar; é tenaz e astuciosa
e muitas vezes, mesmo quando pensa ceder à vontade di­
vina, está empregando rodeios e recorrendo a falsos pre­
textos para atingir os seus fins. Tal alma sente um desejo
qualquer, inspirado pela natureza e cuida logo de encon­
trar um motivo sobrenatural que o justifique, agindo depois
tranquilamente; tal outra sente aversão por uma obra lttil
224

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procura os inconvenientes que dela poderiam advir, feliz
de poder desculpar sua inação; a consciência talvez lhe
diga que o partido escolhido não é o melhor, mas ela se
lranquiliza, alegando que não é reprovável. Acabai de
uma vez com esses artifícios da vontade, prometendo a
nosso Senhor, ao recebê-lo na sagrada comunhão, que
sempre, entre dois atos licitos, escolhereis, não aquele que
mais vos grada, mas aquele que sabeis ser mais agradável
a Deus; que vos aplicareis cm todas as coisas a fazer
aquilo que os parecer o mais perfeito. Por que hesitar, alma
fervorosa, em tomar semelhante resolução? Prevedes nu-
merosos sacrifícios, penosas privações? Devereis con-
trariar de continuo vossos gostos, dominar vossas
repugnâncias? E' vcrdade. Deus, porém, não vos basta?
Desejais outra coisa neste mundo senão o prazer d·e lhe
ser agradável? Dando-lhe essa prova de amor, imolando
constantemente vossa vontade para cumprir mais
perfeitamente com a sua, não adotais, mesmo cm relação
aos vossos interesses, o partido mais prudente? não
trabalhais tanto para a vossa felicidade como para a glória
de Deus?

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CAPITULO XXV

Da humildade
Omnes invincem humilitatem insinuate quia
Deus superbis resistit humilibus autem dat gratiam.
Insinuai todos, uns aos outros. a humildade;
porque Deus resiste aos soberbos e dá a graça aos
humildes (1 Pd 5, 5)

1. Fundamento divino da humildade.


210. Não podendo falar de todas as virtudes que a alma cris-
tã deve praticar para provar a Deus o seu amor
mencionaremos de preferência as de maior importância.
Já falamos da conformidade à vontade de Deus, porque
resume nossos deveres para com ele. Estudaremos
agcira a humildade, à qual se prendem aparentemente
os nosso deveres para com nós mesmos. Em
seguida, trataremos da obediência e da caridade que
compreendem nossos deveres para com o próximo. A
humildade, além do mais contribui tanto para dar
incremento à caridade, que merece um lugar à parte.
21t. "A humildade é a verdade", tal o axioma
adotado pelos autores espirituais. Humilhar-se é dar a
Deus o lugar que lhe é devido e dar-nos a nôs mesmos aquele
que compele à criatura. A humildade não se encontra em
Deus formalmente, como dizem os teólogos, isto é, com
sua torma própria, pois supõe pequenez e inferioridade,
ou um certo rebaixamento. Nele, porém, se encontra,
eminentemente, isto é, há em Deus disposições mais
perfeitas que, transferidas para as criaturas e adaptadas à

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sua capacidade, revestem nessas criaturas, como a água no
vaso, a forma peculiar ao seu estado e se tornam a humilda-
de.
Deus é Verdade. Na Santíssima Trindade, cada Pessoa
preenche a função que lhe é própria, sem usurpar as das
outras duas, e rende a essas outras duas Pessoas toda a
glória a que têm direito. No ser humano, para recorrer a
uma comparação grosseira, cada órgão - o cérebro que
pensa, a língua que fala, o coração que comunica a todo o
corpo calor e vida, - cumprem o seu papel, e exercem um
sobre o outro uma mútua influência, sem todavia invadir as
funções próprias a cada qual. O cérebro pensa a palavra
que a língua exprime; o coração recebe o influxo do cérebro
e devolve, ao cérebro e à língua, força e movimento. Entre
estes três úrgãos reina, portanto, uma completa harmonia,
e, se cada um fosse inteligente, invejaria o papel do outro.
Quão mais perfeita e mais maravilhosa é a harmonia que rei­
na entre as três Pessoas divinas: o Pai, contemplando-se.
produz o seu Verbo. Estas duas Pessoas divinas, não se.
podendo ver sem se amar, produzem um Amor substancial
e vivo, que é o Espírito Santo. O Filho de Deus, assim
engendrado do Pai, recebendo dele todas as suas perfeições,
unido a ele pelo Amor vivo que é o Espírito Santo,
devolve­lhe tudo quanto dele recebe. Reconhece-o como
seu Pai, e assim o proclama an1orosamente, glorificando-o
segundo merece ser glorificado, infinitamente feliz de ser
Filho, in­finitamente feliz de ter um tal Pai. O que
dizemos do Fi­lho é igualmente verdade do Pai,
infinitamente feliz de ter um tal Filho e prestando a esse
Filho hem-amado toda a veneração e glória que e!e
merece. E' ainda verdade dil Espirita Santo, que recebe
do Pai e do Filho tudo quan­to possui, feliz de proceder
de um e de outro, e devolvendo ao Pai e ao Filho a
glória infinita que deles recebe. Tal é a vida divina,
sempre ativa, sempre feliz, vida em que tudo é verdade e
perfeita harmonia, vida em que cada uma das três Pessoas
divinas recebe a homenagem que merece, e rende às
outras duas a glória que lhes é devida.
22i
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212. Esse sentimento de justiça e de verdade, cm vir­
tude do qual rendemos a Deus o que lhe é devido, e nc,s
alegramos por ocupar o lugar que nos compete a nós, cs�c
sentimento que, em Deus, é infinitamente perfeito, transfe­
rido à criatura, produz a humildade. A criatura, com efeito,
se quiser ser justa e leal, deve reconhecer que Deus é ludo
e. que ela é nada; que tocla a força, toda a virtude, toda
a beleza, toda a bondade provêm de Deus, e que, por si mes­
ma, não é senão fraqueza e miséria, ou antes é o próprio na­
da. A criatura, se quiser ser justa e sincera, não pode des­
conhecer as grandezas de Deus, e, aproximando instintiva­
mente sua própria pequenez dessas grandezas infinitas, se­
rã levada a se rebaixar e aniquilar-se. Há de ver que Deus
l• santo, e ela, pecadora; que Deus é justo e benfazejo.
e ela, injustiça e egoísmo; que Deus é paz e misericórdia
e ela, ira e maldade; que Deus é a própria Verdade, e ela
é mentira e duplicidade. E tal contraste a impressionará tan­
to mais quanto mais for esclarecida, e, quanto melhor conhecer
a Deus, tanto melhor se conhecerá a si mesma. Se, ao con­
trário, ela se entregar à complacência própria, enamorando­
se e ocupando-se demasiadamente de si, prova que só tem
um conhecimento muito imperfeito de Deus.

Ili. Jesus, o Verbo encarnado, modelo de humildade heróica.

213. Sl, descrevemos até agora a humildade comum.


Existe outra, mais difícil e mais meritória, que consiste em
nos rebaixarmos além do que merecemos. Desse modo pres­
tamos homenagem à Divindade, pois, rebaixando-nos, exal­
tamo-la, damos�lhe aquilo que perdemos em grandeza, fa­
zemos recair sobre ela a glória de que nos privamos volun­
tàriamente. E' preciso ainda erguer os olhos ao céu para
conhecer, não sõmente o principio e o fundamento, mas
o acabado modelo desse outro gênero de humildade. E' o
Homem-Deus, o Verbo Encarnado, de quem São Paulo es­
creveu: Humiliavit semetipsum: "Ele humilhou-se, e humilhou­
se até ao aniquilamento", semetipsum exinanivit (Filip 2, 7-8}.
228

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O Verbo í.: feliz desde toda a eternidade por glorificar
ao Pai no seio da Trindade, )],tas esse ni.esmo ardor, que
levou Deus a comunicar seus bens exteriormente, e derramá­
los pela criação em um mundo inferior, impeliu o Verbo
divino a glorificar o seu Pai exteriormente, de maneira digna
dele. Procurou, então, no mundo criado, como que um taber­
náculo onde pudesse aprisionar-se, reparar as ofensas fei­
tas ao Pai e render-lhe glória em nome de todas as criaturas.
Foi o Pai eterno, de quem o Verbo recebe todo o seu ser
e todas as suas perfeições, quem lhe comunicou esse pen­
samento e esse desejo de aniquilamento; o Espírito de amor
vivificou esse desejo, aceito pelo Verbo com infinita ale­
gria. E não constituiu esSa aceitação de tamanha e tão
incomparável humilhação o mais admirável alo de humil-
dade que se possa conceber?
O que aumentava ainda a grandeza dessa humilhação
é que, no estado que ele aceitou, o Verbo incarnado, as­
sumindo uma natureza finita", sabia que não poderia honrar
adequadamente o seu Pai. Os atos de adoração, de sub­
missão, de amor, operados pela alma humana de nosso Se­
nhor, revestem-se, é verdade, de uma diginidade e de um
valor infinitos, porque pertencem a uma Pessoa divina; não
deixam, todavia, em si, de ser limitados e nunca pod1.'in
igualar a grandeza sem limites de Deus que glorificam. O
Verbo não pode, em sua natureza humana, ostentar todos
os seus atributos, nem exercer os atos sublimes que exerce no
seio da Trindade. Ter ele consentido em se colocar nesse
estado de incapacidade relativa, deve penetrar-nos de ad­
miração. E' aí que o aniquilamento, de que nos fala São
Paulo, parece mais admirável. E' ai que Jesus é o modelo
acabado da humildade.
214. O Verbo, fazendo-se carne, praticou, pois, um
ato sublime de humildade, inaugurando assim sua vida ter­
!"CStre. E soube acabá-la como a começara. Sua vida foi uma
série ininterrupta de atos desta bela virtude. Ele viveu no
aniquilamento contínuo de tudo quanto alimenta o orgulho
229

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humano: atividade natural, honras, reputação e estima dos
homens.
A atividade natural é, com ef"eito e frequentemente, o
pu11to de apoio do amor próprio. Comprazemo-nos cm nosso
juizo, em ·nossa penetração de espirita, em nossa energia
cm prol do bem, felizes de fazer sobressair essas quali­
dades da natureza. !3ntão a graça, prejudicac;la pela ati­
vidade natural, produz atos menos puros e de menor valor.
Demais, aqueles que assim procedem são menos fiéis em
render a Deus a gll1ria que lhe deve advir de todas as nossas
obras. Essa atividade natural nunca se exerceu em nosso
Senhor. A natureza deixou livrS! campo à graça para rea­
lizar suas obras enquanto a vontade humana de Jesus foi
plenamente submissa à vontade divina, nunca a preceden­
do, nunca dela se afastando, nunca lhe mesclando nada
de puramente natural, mas recebendo da graça todo o im­
pulso, seguindo, em tudo, esse influxo sobrenatural, a ela se
conformando inteiramente. Não que o livre arbítrio nele fosse
sufocado, nem mesmo comprimido, mas se exerceu aceitan­
do o bel prazer de seu Pai. Longe de agir de encontro
ou fora do impulso sobrenatural operado em sua ahna
pelo Espírito Santo, ele o aceitou com amor e submeteu­
lhe a sua vontade natural. O grito que lançou tão espon­
tâneamente em Getsêmani: non mea volunta., sed lua fiai,
"Seja feita a vossa vontade e não a minha", é o resumo de
toda a sua vida.
Se ele renunciou constantemente a essa atividade na­
tural, de que os homens tanto se ufanam, renunciou, com
heroísmo não menor, à estima, ã consideração, à reputação
de que os homens se mostram tão ciosos. As circunstâncias
tão humilhantes de seu nascimento em Belém, a fuga para
o Egito, a vida escondida em Nazaré, as ignomíniás e os
opróbrios de Getsêmani, do pretório, do Calvário, -. basta
relembrar esses fatos - revelam a sede de rebaixamento,
ele aniquilamento que o consumia, e o quanto ansia-va hu­
milhar-se para exaltar o Pai.

230

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III. Pratica da humildade.
215. Já conhecemos o modelo acabado de humildade. Foi con-
siderado esse modelo divino tão digno de admiração e
de amor, que os Santos compreenderam todo o valor da
humildade, se aplicaram em reproduzir, na sua própria
vida, esses mistérios de aniquilamento que os encantavam
na vida do Salvador. Vendo rebaixar-se tão profundamente
o Homem-Deus, cujas grandezas e dignidade sobrehumana
podiam avaliar melhor que ninguém, julgavam nunca poder
descer eles bastante baixo. Habituados a contemplar,
através da luz resplandecente que lhes era comunicada, a
infinita beleza, a infinita santidade, a infinita majestade
do Verbo divino, encantados com suas grandezas e suas
amabilidades, e não podendo depois, por uma espécie de
revolta do coração, fitar os olhos na sua própria miséria, que a
mesma luz da graça lhes revelava em toda a sua fealdade, que
não deviam eles pensar ao se verem quiçá estimados, louvados e
glorificados, enquanto seu Jesus permanecia tão humilhado?
Assim se explicam as palavras de desprezo para consigo mesmo,
que às vezes taxamos de exagero, e o desdém, o ódio dos
louvores humanos, junto às santas loucuras de humildade
que se encontram em sua vida.
· 2 16. Cristãos que ledes estas linhas, talvez não te-
nhais ainda recebido de Deus essa luz preciosa e
superior da graça, que Unicamente comunica a verdadeira
humildade. Nem a podeis conseguir pelos vossos
próprios esforços, mas podeis obtê-la do céu. Pedi
constanteménte essa luz a Deus, fazei-lhe violência, para
que vo-la conceda e que essa oração seja ardente e de
uma invencível perseverança. Pedindo a humildade, pedis
uma fortuna espiritual que vale be.m longos anos de
sl1plica. Depois, tanto para provar a sinceridade do vosso
desejo como para vos dispor a receber tamanha graça,
praticai o quanto depende de vós esta grau­
de virtude. Fazei-vos pequenos aos vossos próprios olhos,
compenetrai-vos do vosso nada, de vossos pecados e colocai
sempre vossa pequenez em face da grandeza infinita de Deus:
23-1

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"Mergulha em minha grandeza, dizia nosso Senhor a
Santa Margarida Maria, e cuida em nunca dela afastar".
De nós mesmos, nada somos: "Aquele que julga se
alguma coisa, diz o Apóstolo, engana-se a si mesmo" (Gl
6, 3). Fomos criados do nada; durante toda uma
eternidade não existimos; se tivéssemos permanecido no
nada, nenhuma falta faria ao mundo. E só conservamos
este nosso ser emprestado, graças à ação contínua de Deus;
se ele deixasse de nos sustentar, ou nos abandonasse a
nós mesmos um instante sequer, voltaríamos ao nada
como a luz que desaparece quando a chama se apaga;
somos míseros sercs sempre a pisar sobre o nada!
Somos incapazes de coisa alguma por nós mesmos
"Sem mim, nada podeis fazer", disse o Senhor (Jo 15, 5)
Não poderiamas mexer um dedinho sem o auxílio
divino. Nenhuma palavra nos sairia dos lábios, nenhum
pensarnento se nos apresentaria ao espírito, nenhum
desejo ao coração, nenhuma resolução â vontade e, com
maior razão ainda, seriamos incapazes de praticar
qualquer ato sobrenatural: "Ninguém pode dizer:
Senhor Jesus, senão pc\o Espírito Santo" ( 1 Cor 12, 3).
Mesmo com o auxílio de Deus, quão fracos
somos. Impelidos para o hem, ficamos imóveis, ou, se
aceitamos a princípio o impulso da graça, um nada hasta
para deter-nos, para desanimar-nos; um fantasma de nossa
imaginação: um temor quimérico, um mau conselho, uma
sugestão diah6lica, um motivo desarrazoado
paralisam-nos; C preciso que Deus nos inste novamente,
nos multiplique suas graças redobre de cuidados.
Fraqueza, torpor, incapacidade, eis o que somos!
217. E que dizer de nossas faltas, de nossa ingrati-
dão para com o maior dos benfeitores, de nossa
insoU!ncia para com nosso soberano Mestre? Ele no•las
perdoou, mas devemos, por isso, deixar de nos humilhar?
Além do mais ficam•nos as marcas dos pecados que s6
se apagarão à medida que fizermos penitência, neste mundo

232

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ou no outro. E' verdade que, se considerarmos os dons
sobrenaturais que ornam as nossas almas, podemos dizer
que somos belos de uma beleza toda divina e que Deus põe
em nós suas complacências; mas essa beleza, que perdura
enquanto não perdemos a graça santificante, nõs a
deslustraremos; o ouro continua inalterado, mas nós o
cobrimos de lodo.
Quando uma criancinha apanha a tinha de leite não
perde o carinho da mãe, que continua a llcscobrir nela as
graças infantis e se compraz em contemplar os olhos meigos e
brilhantes do doentinho, seus membros delicados, seus
gestos graciosos, enquanto lamenta ver a crosta horrível
que lhe desfigura o pequenino rosto. Tal a imagem da nossa
alma, com uma diferença, contra nós, de que a criança
e inocente da enfermidade que a enfeia, enquanto nós nos
cobrimos a alma com as crostas do pecado. Deus, na ver­
dade, ainda nos ama com um amor infinito, mas esses ves­
tígios do pecado lhe desagradam e lhe causam horror.
São, além do mais, um obstáculo às suas graças. Que
seria hoje de nós se não tivéssemos, pelos nossos pecados,
contrariado em parte os desígnios da misericórdia de Deus
a nosso respeito? Que grau de amor jã feriamos atingido, e­
quanto hem teríamos espalhado em torno de nós?
Tais pensamentos nos devem ser familiares. Se
nos­sas reflexões não bastam para nos dar a luz plena de
que carecemos para ser verdadeiramente humildes, são ao
me­nos necessárias para nos comunicar os seus
rudimentos e nos preparar a receber de Deus uma humildade
mais perfeita.
218. Devemos acrescentar que Deus só nos concederá
essa humildade perfeita se nós procurarmos praticar os atos
próprios desta virtude? Todo ato de humildade sincera
obtém logo de Deus uma graça que o llilata. Ama nesciri,
diz a Imitação, et pro nihilo reputari, gostai de ser des­
conhecido, esquecido, tido em conta de nada; evitai tudo
quanto lisonjeia o amor próprio; regozijai-vos quando vos
puderdes fazer bem pequeninos, vos esconder aos olhos
dos homens ou vos entregar a ocupações humilhantes. Con-
233

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siderai como uma grande fortuna poder, por vezes, ceder
os vossos direitos, obedecer, sem queixas, a exigências in­
justas, pagar a descortesia com a doçura e a gentileza.
Sede sempre simples, reto, sem rodeios, sem prevenções,
agindo em tudo segundo a verdade. Oh! que ótimo modo
.de praticar a humildade, e como é. raro!
''.Nada me alegra mais que saber que meus filh.os ca­
minh.am na verdade", dizia o Apóstolo São João (3 Jo 4).
Caminhar na verdade é permanecer firme na verdadeira
doutrina, mas é também ser sincero cm toda a conduta, é
não se iludir a si mesmo, nem aos outros, alegando belos
pretextos, para disfarçar intuitos orgulhosos ou egoístas.
Sede humildes, nunca visando em vosso proceder o
olhar dos homens. De onde provêm as preocupações, os
cuidados de muitas pessoas piedosas? De onde esse receio
de não proceder bem que as persegue e lhes prejudica o
recolhimento? Temem as críticas, as censuras. Se procuras­
sem Unicamente agradar a Deus, sem cogitar da opinião
alheia, não perderiam a ·p,az e a união com Deus.
Não temais as humilhações; são indispensáveis para
conduzir as almas à· humildade, e a Providência certamente
não vo-las negará se, de todo o coração, quiserdes vos tor­
nar humildes. As humilhações são favores insignes, benefí­
cios altamente salutares. Se a natureza se revolta, se a parte
inferior estremece, a parte superior, onde reina a fé, deve
alegrar-se. Sem elas jamais seríeis verdadeiramente humil­
des; mas elas vos tornam semelhantes a Jesus e sois tra..
tado como ele o foi; por elas, podeis expiar vossos pecados,
obter grandes graças, adquirir preciosos méritos. Seria, pois,
pura ingratidão não testemunhardes a Deus o vosso vivo reco­
nhecimento pelas humilhações.

IV. Vantagens da humildade.

219. Humildade, virtude sublime, quão agradável és


ao Coração de Deus! Exerces sobre ele uma atração indizí­
vel. "Quanto mais te retiras em teu nada, dizia nosso Senhor

234

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1 Santa · Margarida Maria, tanto mais a minha grandeza
se baixa para te encontrar". E ainda falando de Santa Ger­
trudes: "Não posso de maneira alguma deixar de acom­
panhar aquela que, por tão fortes atrações de humildade,
levou consigo meu divino Coração".
A humildade C irmã mais velha da dor: nasceu no pró­
prio seio de Deus e é maior, mais bela, mais necessária
que a dor. Existiria sem o pecado; os anjos em sua prova­
:;ão não sofreram, mas se humilharam. Subsiste no céu, onde
os eleitos, que não sofrem, são mais humildes que nunca.
220. E' o alicerce sobre o qual descansam as outras
virtudes; pois quem deseja levar uma vida virtuosa deve,
antes de tudo, firmar-se na verdade, isto é, dar a Deus o
lugar que lhe compete e colocar-se a si mesmo naquele que
lhe pertence, para então praticar atos agradáveis a Deus.
Os feitos mais admiráveis de virtude e · as obras mais no­
táveis aos olhos dos homens desagradam ao Senhor, se
o coração que os produz não tiver humildade.
As outras virtudes destroem, um a um, os obstãculos
que tolhem o reino de Deus na alma, e conduzem esta, pas­
so a passo, ao conhecimento de Deus e de si mesma. Mas
a humildade, quando sincera e perfeita, destrói com um só
golpe todos os obstãculos, dando à criatura humana uma
visão clara de seu nada junto a um sentimento profundo de
sua incapacidade. Será levada então a renunciar a tudo
quanto procede dela mesma, e� por conseguinte, a todos os
seus defeitos. Deus está na alma humilde como no céu,
pois, ali, tudo lhe é submisso; mas se retira, ou ao menos
opera com menos vigor, quando a criatura procura agir
por si mesma e se compraz em suas próprias forças. E',
pois, a humildade que mantém a alma unida a Deus e
lhe permite exercer todas as virtudes.
A humildade produz a paciência. Quem C realmente
humilde acha justo que todas as provações recaiam sobre
de. Julga-se indigno de consolação e, quanto mais as tem,
mais se rebaixa; mais se julga digno de castigos e pemm
sempre merecer tribulações superiores às que Deus lhe man-
235

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da. feliz, aliás, por assemelhar-se desse modo a Jesus,
não pode querer mal àqueles que, mesmo por
tratamentos injustos, ou repreensões imerecidas, ou vis
calúnias, lhe pro porcionem essa felicidade.
Daí provém a paz imperturbável dos humildes e
que irradiam cm torno deles. Que podem recear se as
humilhações e as tribulações não os perturbam? Vemo-los
sempre tranquilos e calmos e, ao mesmo tempo, suaves
e enérgicos Deles nos aproximamos com confiança,
pedindo-lhes, de bom grado, auxílio e conselho, estímulo
e consolo.
221. Os humildes são fortes contra o inferno. Os
demônios cheios de orgulho, cientes de que o Senhor
recobre os humildes com urna proteção especial,
detestam-nos mas temem-nos. Já foram tantas vezes
repelidos, vencidos por eles e não sabem, aliás, como·
lhes fazer mal, certos de que suas armadilhas serão
descobertas de antemão e seu ataques rebatidos.
Os verdadeiros humildes permanecem fàcilmente unidos a
Deus. Aniquilando continuamente a ação da natureza e
afastando tudo quanto se opõe à ação divina, recebem, sem
interrupção, graças mui elevadas, que lhes permitem pensar em
Deus com frequência e produzir atos de amor ardente. Sua vida
é como que prelúdio do céu, onde os eleitos, vendo a descoberto
a ação poderosa que Deus exerce sobre eles,
comunicando-lhes inteligência, amor, felicidade e vida
não podem comprazer-se em si mesmos e se unem a
Deus num ato ininterrupto de contemplação, de reconl1e•
cimento e de caridade.

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CA PITULO XXVI

Da obediência

ObHUt praeposllls �r,lris n su1,;au1,· ris.


Obedecei a \'O&&OS �uperlorc� � scd�-lhcs �11hmis­
�o, (11th 13, 17).

I. O homem, ente sociável.


222. Se amamos a Deus, amamos também a obra de Deus
e aceitaremos tudo quanto ele estabeleceu em sua sabedoria
e sua vontade. Deus fez do homem um ente sociável. Em
;eral, nas ordens inferiores, cada indivíduo se basta a si
'nesmo. O animal, salvo raras exceções, não carece do au­
:dlio de seus semelhantes para obter o que lhe é necessário.
D homem, porém, tira vantagens tão grandes da sociedade,
�ue dela não prescinde. A sociedade vem, pois, de Deus,
e as leis, sem as quais não poderia subsistir, são impostas
por ele e devem ser tidas como a expressão de sua
vontade.
Se essas leis fossem fielmente observadas, quão bela
scria a sociedade humana e que ordem admirável nela rei­
naria. Então o mundo seria uma imagem do céu, que é
uma sociedade perfeita, onde as hierarquias santas são
justapostas na ordem estabelecida por Deus. No céu cada
qual permanece em seu lugar, sem invejar nem prejudicar
os outros, mas antes favorecendo-os, quando é de sua incum-
bência. Não transmitem os anjos superiores, aos
inferiores, as luzes que recebem de Deus? Cada ordem
tem uma missão própria, cada anjo um cargo que
desempenha sem invadir o domínio alheio. Existem espíritos
angélicos encarregados de velar sobre o mundo material,
outros a quem são confiados os interesses das almas, e ainda
237

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outros - e segundo a visão de Daniel (Dan 7, 10) são
estes os mais numerosos - que ficam em presença do
Altí�simo, ocupado Unicamente em prestar-lhe
homenagens. Com que amor executa cada qual aquilo
que o Senhor lhe pede! Como fulge então a harmonia
perfeita do céu e como transparece a sabedoria divina que
estabeleceu uma ordem tão admirável!
Diária e repetidamente, pedimos que a vontade de Deus
se faça na terra como no céu. Se tal pedido fosse
sempre ardente e sincero, se soubéssemos sobretudo
cumprir fielmente com nossos deveres para com o
próximo, se afastáss;emos, na medida do passivei, tudo
que fosse apto a perturbar a ordem determinada por
Deus, a sociedade humana seria mais parecida com a
sociedade angélica, a terra seria uma imagem mais fiel
do céu.
223. A nossa primeira obrigação social é de
deixar que nossos irmãos cumpram seus deveres sem os
suplantar, os estorvar, sem lhes dificultar a tar�fa com
julzos malévalos e críticas acerbas. A prudência popular
manda que ninguém se ocupe daquilo que não lhe diz
respeito; mas quantas vezes aqueles mesmos que
proclamam em altas vozes este principio, ciosos -de vê-lo
respeitado em se tratando do seu próprio interesse, não
hesitam em violá-lo quando lhes convém. Os costumes
modernos, a leitura dos jornais que, por necessidade ou por
dever, atacam o mal e a injustiça e condenam tudo quanto
julgam condenável, nos levam a opinar sobre todas as coisas.
Constitui, entretanto, desordem e fonte de muitos ressen-
timentos, antipatias e discórdias o imiscuir-se nos negócios
alheios. Grande seria a harmonia se cada um só cuidasse do seu
dever e só cogitasse do próximo para lhe ser útil! Não nos bas-
Iam os deveres de estado para nos ocupar a alma? Quem lhes
compreende a importância e a extensão, quem vê nos trabalhos
que lhes cabem a expressão da vontade divina e tem em alta
conta a missão, receando cumpri-la mal, não, fita os olhos no
domínio alheio. Ao contrário, são os mais negligentes que
condenam com maior facilidade os outros; foi destes que Jesus
238
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Cristo disse que eles viam o argueiro no olhos do vizinho
e não percebiam a trave nos seus próprios olhos.
n. Submissio à autoridade.
224. Toda sociedade descansa na autoridade, funda­
mento necessário. Deus, que estabeleceu a sociedade humaua,
quer, portanto, que haja subordinação entre os homens, que
t111s ordenem e outros obedeçam. Eis por que ele escreveu:
toda autoridade 1•em de Deus. Convém hoje mais que nun­
ca lembrar este princípio. Aqueles que exercem autoridade
civil deformam-na; forjam tantas leis contrárias às leis de
Deus e tomam tantas medidas para destruir o reino de
Jesus Cristo, que compete a todo cristão denunciar-lhes
o delito e trabalhar ativamente. - as próprias leis lhe dão
este direito, - para derrubá-los do poder, mostrando
quanto são nocivos e impios. A caridade para com as ove­
lhas exige que o lobo seja denunciado quando este ameaça
degolar aquelas.
A autoridade civil, em revolta contra Deus, s(l deve
imputar à sua própria perversidade a oposição que - pra­
za a Deus fosse mais viva! - lhe é feita pelos fiéis discí­
pulos de Cristo. Demais, lutando contra um governo que
calca o direito de Deus e das consciências, o cristão pro•
cede como bom cidadão e presta ótimo serviço ao seu país,
pois trabalhã para salvaguardar a verdadeira noção do po­
der, que é uma simples delegação do poder infinitamente
justo de Deus. Salva, segundo pode, o seu país da anar­
quia e o. governo da ruína.
Todavia, dessa luta tão necessária do cristão contra
as autoridades podem advir consequências funestas. Não
contribui de fato muitas vezes para espal!iar o espírito de
indisciplina e de revolta? De todos os lados surgem quei­
xas de que a autoridade não é acatada nem respeitada co­
mo outrora, mesmo quando merece respeito. Certas auto­
ridades, a quem nada de grave e imputável, vêm a sofrer
da desconsideração que acarretaram justamente outros co­
legas s"eus. Almas cristãs, obedecei pressurosas àqueles qm::
239

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Deus vos deu por chefes, sempre que suas ordens não con­
trariem à lei divina; testemunhai-lhes real respeito; orai por
eles, a fim de lhes facilitar uma tarefa penosa e suavizar­
lhes as pesadas responsabilidades que lhes incumbem.
Feliz de quem sabe ver a Deus em seus superiores,
reconhecendo e venerando a parcela de autoridade divina
que neles foi depositada. Se houver em sua conduta par­
ticular alguma falha, sabe que não deve divulgá-la. No
exórdio da Bíblia, o Senhor nos dá um belo exemplo desse
respeito dívinci aos superiores. Noé, pai de Sem, Cam e
Jafet, tendo pela primeira vez fabricado vinho, foi surpreen­
dido pelos efeitos dessa bebida, cuja ação não suspeitava.
Cam, encontrando-o estendido na nudez inconsciente, foi
logo dizer aos irmãos o que linha visto, querendo divertir­
se com eles do pai; Sem e Jafet, porém, caminhando de
costas, cobriram respeitosamente o pai, adormecido. Estes
dois tlltimos receberam então a bênção, de que ainda go­
zam seus descendentes, enquanto que a. posteridade de Cam
se ressente até hoje do castigo que atingiu o seu antepassado.
225. Entre os superiores, cabe aos padres um lugar à
parte. O sacramento que os constitui sacerdotes é chamado
ordem, talvez por ser a base mais sólida de toda a ordem
social: sem padres, que seria da religião, e sem religião, que
!leria da sociedade? Nenhum superior representa tanto a
Deus como o sacerdote. Assim como o céu paira acima da ter­
ra, assim também os poderes que lhes são comunicados pai­
ram acima dos poderes conferidos por Deus a magistra­
dos e príncipes. Absolv"er, celebrar, distribuir o Corpo de
um Deus, abrir às almas as portas celestes, que maravilha!
Não foi sõmente uma parcela de sua autoridade, que Deus
concedeu aos sacerdotes; foi uma delegação admirável de
sua onipotência.
O respeito e a dedicação ao padre é uma das provas
mais seguras do reinado do amor divino na alma. Tudo
quanto é feito pelo sacerdote, tudo quanto é feito contra
ele, atinge diretamente o próprio Deus. Assim se explicam
as bênçãos que Deus concede aos fiéis que se dedicam

240

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aos seus ministros e os castigos que ferem, com tanta
frequência e modo visível e evidente, aqueles que os
atacam. Quem vos recebe, me recebe, dizia o Filho de
Deus aos setenta e dois discípulos; quem vos ouve, me
ouve, quem os despreza, me despreza". Guardai•vos, diz
u Senhor, de toCar naqueles que me são consagrados,
naqueles que receberam a unção santa, e de exercer vossa
malícia
· contra!'i meus profetas" (�I 104, 15).
226. Esse pensamento de fé, que faz ver a Deus nos
superiores, torna a obediência fácil e meritória. Sejam
quais forem as qualidades ou os defeitos dos superiores,
sejam eles demasiado bondosos ou severos até à dureza,
e quiçii até à injustiça, quando eles ordenam, Deus ordena.
Obedecer é fazer um ato de amor a Deus. Sob a ordem de
seus chefes, o soldado destemido cumpre com entusiasmo
as mais arduas tarefas e lança-se sem hesitar ao encontro
da morte certa. Quando os couraceiros em Reichshoffen e
os ·zuavos pontifícios em Patay receberam ordem de carregar,
sabiam que, investindo, tão pouco numerosos, contra as
fileiras cerradas do inimigo, caminhavam para a morte.
Nenhum, entretanto, recuou e o amor da pátria fê-los heróis.
Assim o amor de Deus faz, da alma perfeitamente obediente,
um verdadeiro herói. Seu superior lhe diz: "para a frente'' e
ele parte imediatamente, sem calcular as fadigas, sem medir os
trabalhos. Deus o quer, é quanto basta; Deus o qu�r, e a
obediência será pronta, será alegre, pois é muito doce, a quem
ama, fazer a vontadede Deus.
Obedecer é sacrificar, entre ·todos os bens, aquele a
que mais apego temos, isto é, a liberdade, a própria
vontade. Por vezes, quando a obediência se cst�nde às
minúcias da vida, torna se para a natureza um martírio
4

continuo, mas um martirio suave para a alma embebida


de amor divino. Com os olhos filos em Jesus, que
consagrou trinta anos de sua vida a ensinar esta virtude, que
foi obediente até à morte e à morte da cruz, a alma encontra
também alimento no exercício da vontade divina, feliz por ver
essa vontade fielmenle traduzida nas ordens de seus superiores.

241

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CAPiTULO XXVII

Da caridade fraterna
A 11te amn/(1 muluam in �oblsmetlpa/11 corlfo/em
contlm111111 habentt:s, q11/a carl!ar opulf mul-
ltl11dlntm pucatorum.
Tende sobreludo entre vós uma mil.tua e con11nua
earidade, porque a caridade cobre uma 111ul-
1idlo de pecados (1 Pd .i. li)�

I. O fundamento da caridade.

227. Ver a Deus nos superiores é o meio mais seguro


de ter para com eles sentimentos de respeito e
submissão; ver em nossos semelhantes almas feitas à
imagem de Deus e o verdadeiro, o único meio de ter
para com eles sentimentos de caridade cristã. Esse
homem, essa mulher, esse vizinho, que vos inspirava urna
viva aversão, que vos deu talvez frequentes motivos de
queixa, é filho de Deus, resgatado por Jesus que
derramou pór ele todo o seu sangue e o irmão, o co-
herdeiro do meigo Salvador, o tabernáculo vivo
da adorável Trindade; ou, se ele estiver em
estado de pecado, lembrai-vos que é um predestinado
à graça, quem Deus deseja perdoar, enriquecer com seu
amor, fazer participante de sua vida íntima, de sua
felicidade, de sua glória nos séculos dos séculos.
Oh! como esta reflexão é um auxflio precioso ao
amor do próximo e como é salutar ouvir estas palavras do
Espírito Santo, ditas pelo Apóstolo bem-amado: Se
alguém disser: Eu amo a Deus, e odiar seu irmão, é um
mentiroso" ( 1 J 4, 20). Um dia virá, não será longe, em
que tudo nos há de levar a querer bem àqueles que nos
rodeiam e que hoje talvez nos fazem sofrer. Então será vivo
242

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Então será vivo nosso amor e duradouro.
Entre dois irmãos gêmeos, levando uma mesma vida
no lar paterno, surgem numerosos dissentimentos a res­
peito de seus brinquedos, de suas pequenas iniciativas e
uma bagatela qualquer dá lugar a disputas infantis. Se esses
irmãos se encontrarem vinte anos mais tarde, após uma
separação forçada, não se lembrarão mais das
insignifican­tes rixas de outrora, cujos motivos agora lhes
pareceriam tão pueris, mas cheios de alegria e de amor
cairão nos braços um do outro! No céu, segundo a
comparação de São Paulo ( 1 Cor 13, 2), seremos como
adultos que abandanaram tudo que era da meninice e
então quão fúteis nos parecerão os motivos que ora nos
separam uns dos outros! E não servirão para acrescer os
nossos méritos e para a nossa felicidade as próprias
penas que nos infligimos mütuamente? Mesmo oas
pessoas que nos foram mais antipáticas na terra, nada
restará que nos possa melindrar; seus defeitos terão
desaparecido, e seus pecados estarão consumidos pel:is
chamas do purgatório e só permanecerão as virtudes, a
fé, o apego a Deus. Essas virtudes sobrenaturais,
resplandescentes, tornarão essas almas belas de uma
beleza divina. Deus será visível nelas, pois "será tudo em
todos": erit Deus omnia in omnibus, e lhes comunicará
atrativos e encantos que serão nosso enlevo. Oh! então
havemos de amá-las com um amor a que nenhum outro
na _terra se compara, e esse amor será eterno. Por que,
então, não as amarmos desde já?
228. Amemo-los por Deus, amemo-los como Deus os
ama; amemo-los por Jesus, amemo-los como Jesus. "E'
es­te meu mandamento, disse ele, o mandamento novo
que trago à terra: amai-vos uns aos outros como Eu vos
amei". Que acabado modelo de caridade nos oferece o
divino Salvador, nosso bom Jesus! Não difamou, não
desacreditou pessoa alguma, mas suportou aqueles cujos
defeitos, entre­tanto, lhe deviam ser muito desagradáveis;
amo!J aqueles mesmos que o humilharam, o combateram, o

243

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perseguiram e não amaldiçoou seus algozes, nem se
furtou· ao beijo de Judas. Hoje ainda, em seu Sacramento
bendito, oculta sob profundo silêncio os novos Judas que,
por suas comunhões sacrílegas, o forçam a entrar em
seus corações cheios de lodo e o entregam ao demônio.
Faz-se o servo de todos a fim de poder fazer bem a
todos. Tornar os filhos dos homens santos e felizes para
sempre, eis sua ambição; que a felicidade eterna seja o
seu quinhão, que por eles seu Pai seja eternamente
glorificado, é o único desejo do seu Coração. Para
alcançar esse escopo, nada poupou; deu o seu sangue, a sua
vida, e não excluiu desse amor os seus mais encarniçados
inimigos, aqueles que o trataram e ainda o tratam tão
indignamente. Também a esses procura vencer, fazendo
transbordar sobre eles o seu amor, cumulando­os de
benefícios, sofrendo e morrendo por eles. eis o verdadeiro
amor. Foi do Pai, que é todo amor, que Jesus o aprendeu, pois
nele aprendeu tudo quanto nos ensinou: omnia quaecumque
audivi a Patre meo, nota feci vobis ()o 15, 15).
n. mas llrme.
Caridade indulgente,

229. Devemos amar como Jesus amou, procurando tor­


nar felizes e santos aqueles com quem vivemos. Tratare­
mos, por conseguinte, de nunca lhes causar uma tristeza.
Cuidaremos de não tirar aos nossos irmãos um llem cuja
perda lhes seria mais dura que qualquer outra, isto é, sua
reputação. E', principalmente, quando se trata da reputação
do próximo que nos devemos lembrar da máxima evangé­
lica: "Não façais a outrem o que não quereis que vos fa­
�·am". Somos extremamente ciosos de nossa própria repu­
tação, e nada nos dói mais que uma ofensa ao nosso nome.
Çomo explicar a facilidade com que atacamos o de nos­
sos irmãos? Nem a lembrança do mal que nos- fazemos a
nós mesmos consegue nos deter; entretanto, o nosso pre­
juízo é maior que o dano causado ao próximo. Na medida
em que privamos nossos irmãos da boa opinião que os
homens tinham deles, perdemos a estima de Deus.
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São, pois, culpados aqueles que desvendam as
faltas secretas do próximo e mais culpados ainda os
que lhe interpretam desfavoràvelmente as intenções que
lhes é impossível conhecer. "Não posso, porém, deixar
de ver o que é evidente", alegarão para desculpar
seus juízos severos. Mas, com frequência, podeis e
deveis deixar de julgar. Partimos do principio de que
a conduta de tal pessoa lhe parecia a ela tão
repreensivel quanto a nós mesmos e que, portanto, ela
obedeceu a motivos culpáveis; mas não temos o direito de
aceitar tal suposição, se não for evidente, e pecamos se
nela nos detivermos e, mais ainda, se a comunicarmos
a outrem.
Quando os defeitos do próximo são conhecidos, podc­
mos comentá-los sem faltar à justiça, mas, nem sempre sem
ofender a caridade. São as qualidades do próximo, é o
pensamento do sobrenatural que nele existe, daquilo que
encanta os olhos de Deus que nos leva a prezá-los. Se,
deixando de lado suas qualidades, voltarmos nossa
atenção e dos outros sobre seus defeitos, se frisarmos o
que nele desagrada e choca, diminuimos no coração de
nossos irmãos os sentimentos de afeto que tinham, e
ferimos essa virtude tão delicada que é a caridade.
230. Mas, se devemos calar e suportar os defeitos do
próximo, não devemos, de- maneira alguma, favorecê-los.
Não lhe devemos apreciar os defeitos, as fraquezas, os
vícios, nem alimentar-lhe o amor próprio e a vaidade,
por meio de aprovações importunas, ou lisonjas, nem
entreter suas antipatias ou excitar sua irritação, fazendo
eco às suas críticas e às suas queixas; não devemos
levá-lo à dissipação, nem ajudá-lo a satisfazer sua
sensualidade, seu amor ao conforto. E' mister não dilatar
essas feridas abertas mas cicatrizá-las. Estimlllar o
mal, fortalecer os defeitos de nosso próximo, é uma
fraqueza culpada e infelizmente f_requentc, é uma
falsificação diabólica da caridade divina.
Será, então, possível sarar as chagas do nosso
próximo? Em geral as censuras irritam sem corrigir.
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Se não é possível tratar e sobretudo curar tais chagas,
entretanto, a caridade bem compreendida impõe-nos muitas
vezes, como um dever, tentar-lhes a cura. Por vezes ainda
o dever da correção se impõe, imperiosamente, àqueles cujo
encargo é velar sobre seus irmãos. Seria mais agradável
guardar silêncio, mas lembrem-se eles de que, se não
perseguirem o pecado, se não lutarem energicamente para
aniquilar esse inimigo de De11s e dos homens, serão eles
dignos de cen.i:ura e incorrerã0; em pesadas
responsabilidades. Se, ao contrario, se fizerem violência
para cumprir com esse de11er, maior serd o seu mtrito ante
Deus do que se praticarem rude.i: austeridades. Devem
cercar a repreensão, se forem superiores, ou o conselho
caridoso, em se tratando de iguais, de prudência e de
doçura; façam com que o culpado reconheça que quem o
repreendeu só o fez levado pelo zelo da glória de Deus e
por um vivo interesse pela própria alma. Por que eram os
Santos tão fortes em suas lutas contra o pecado? Não se
procuravam evidentemente a si mesmos, não cogitavam da
sua glbria, ou da sua satisfação pessoal. Sua firmeza em
nada se parecia com a paixão, com a prevenção; não se
ressentia tão pouco da dureza de certos cristãos, cujo zelo
acerbo é antes fruto da natureza que da graça.

III. Perdio das injúrias.

231. Impedir a injúria a Deus é obra excelente.


Todavia, devemós ser tão sensiveis aos ataques feitos à
honra divina, quanto indulgentes às ofensas que nos são
feitas 3 nós, pois não deixaremos de sofrê-las por parte do
pr6xil11o, e a tentação será reagir, responder a um ataque
com outro ataque, a uma malícia com outra malícia. �m
vez de ceder a esses impulsos da natureza, saibamos, a
exemplo de Jesus, pagar o mal com o hem. "Se o teu
inimigo tem fome, dá-lhe de comer; se tem sede, dá-lhe de
beber; porque, fazendo isto, amontoareis carvões em
brasa sobre a sua cabeça" e que acenderão cm seu
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coração, mau grado eu, o fogo da caridade. "Não te
deixes, pois, vencer pelo mal, mas vence o mal com o
bem" (Rom 12, 20-21).
Se à injúria ou à injustiça opusermos a rigidez das
paixões, a impaciência ou a astúcia do amor próprio
ferido, haverá choque entre as paixões do nosso
adversário e as nossas próprias pai?<ões e desse choque
só pode resultar o mal. O que nos fere, nos irrita é
quase sempre fruto do pecado. E' uma vontade rija, que
quer tudo vergar em sua frente, e que parece ir de encontro às
regras do direito e da prudência; é uma pessoa que obedece
ao orgulho, à vaidade, ou que pretende, à custa de outros,
satisfazer seus gostos, impor suas preferências, fazer aceitar
seus caprichos. Mas o mal causado pelo pecado não será
curado com outro pecado, mas Unicamente com o bem que é
Deus. Ora, difundir o nosso amor no próximo é nele difundir
a Deus, é derramar o divino no humano, é submergir o mal no
bem. O mal existe de fato em nossos irmãos, e neles o pecado
produz efeitos lamentáveis. E' impossível que isto não nos
faça sÓfrer; mas o mal está também em nós, o pecado em nós
também produz frutos venenosos que farão sofrer igualmente
nossos irmãos. Se sofremos, portanto, fazemos também sofrer
e isso nos deve tornar indulgentes e bons.
"Se teu irmão, diz o Apóstolo, caiu irrefletidamente em
alguma falta, levanta-o com espírito de bondade, conside­
rando a ti mesmo que não venhas também a ser tentado.
Carregai assim os fardos uns dos outros e cumprireis a lei de
Cristo" (GI 6, 2).

IV. Dar-se a si mesmo e dar Deus ao próximo.

232. "A medida que tiverdes aplicado aos outros" cm


vossos -juizos e em vossos benefícios "será a medida que
vos será aplicada; não julgueis e não sereis julgados; dai
I! ser-vos-á dado; dai muito, e ser-vos-á dada uma boa
medida bem cheia, compacta, transbordante" (Lc 6, 37-38).
Dai, pois, e antes de tuc\o dai-vos a vós mesmo. Jesus fez-

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se vosso servo, fazei-vos o servo de vossos irmãos, confo
me o conselho de São Paulo: Servite invicem. Jesus
lavou os pês aos seus Apõstolos para ensinar-nos que
"devemos lavar os pés uns dos outros" (Jo 13, 14),
isto e, prestar-nos serviços mútuos sem receio de nos
rebaixar como também, sem idéia de retribuição, segundo
recomenda ainda o divino Mestre, nihil inde sperantes , a
exemplo do Altíssimo, que faz o bem pelo bem e se encarrega
de recompersar-nos. "Darei tudo, diz São Paulo, mais ainda,
dar-me-ei a mim mesmo pelas almas". Tudo quanto me
pertence o meu eu, meus bens, meu tempo, minha saüde,
minha vida, tudo darei às almas. Eis aí admiràvelmente
expressa pelo grande Apóstolo a fórmula da verdadeira
caridadade.
233. Dai-vos a vós mesmo, mas sobretudo dai a Deus é
este o dom perfeito. Se souberdes penetrar-vos de Deu� dos
pensamentos de Deus, das luzes de Deus, do amor ardente de
Deus, irradiareis Deus, dareis Deus. Toda virtude
sobrenatural é uma participação de Deus; difundir em torno
de si a Virtude, a fé, a doçura e a dedicação cristã é difundir a
Deus.
Não deveis, pois, dar Unicamente vosso dinheiro, vossos
bens, vossos serviços, mas sim comunicar vosso espirito de fé,
vossos sentimentos de amor divino. Dai a Deus pelos vossos
exemplos, pelas vossas palavras. Se toda a vossa conduta
respirar Deus, se vossos conselhos, vossos estímulos, vossa
linguagem falar de Deus, se, ao ver-vos, ao ouvir-vos, ao
experimentar os efeitos de vossa dedicação vossos irmãos se
sentirem levados a Deus, e cheios de amor divino, ter-lhes-eis
feito um dom que ultrapassa todo os dons.
Então, Deus se dará a vós, nele encontrareis tudo quanto
tiverdes dado. A quem não dá Deus, Deus também não, se dá.
Não será este o motivo pelo qual muitas almas cristãs não
recebem de Deus o que nele esperam? Foram severas,
estreitas, injustas em suas apreciações, azedas e duras em
seus sentimentos, ásperas em sua linguagem, frias quiçã
egoístas cm seu proceder, e admiram-se de que Deus não lhes
seja o Deus de toda consolação!

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Quanta aridez, quantas trevas, quanta incapacidade na
oração procedem de faltas contra a caridade! Deus
nos trata como tratamos os nossos irmãos. Ao contrário,
"quem ama seu irmão permanece na luz" ( 1 Jo 2, 10).
Passará talvez por provações interiores, pela aridez;
porém, esclarecido, fortificado por Deus, saberá
humilhar-se e conservar a paz.
234. Dai Deus embora vos custe e seja em detrimento
da natureza, até sofrer para merecer aos justos maior vir­
tude e aos pecadores a graça da conversão.
Quão grande e consolador é o mistério da comunhão
dos santos, que nos ensina que, pelas nossas obras, e prin­
cipalmente pelos nossos sofrimentos, podemos obter a sal­
vação e a santificação das almas! Deus, é verdade, não pre­
cisa de nós e poderia dispensar nosso concurso, porém não
o quer.. Quer, ao contrário, associar-nos a essa sua obra,
a mais divina de todas, se nos fosse possível medir os graus
de perfeição entre as obras de Deus; é entretanto aquela
em que mais se destacam sua sabedoria, sua hondadt!
e seu amor.
Que honra insigne faz Deus à criatura quando lhe pede
o seu auxilio em obra sublime! Que honra insigne lhe faz
esse Deus todo-poderoso, a quem bastou um simples ato
da vontade para tirar do nada todo o universo, quando diz
.a essa criatura que é fraqueza e miséria: "Vem em meu
auxilio; ofereci minhas graças, foram recusadas; bati ã
porta desse coração, fui repelido; minha bondade está atada
por essa obstinação; minha justiça agravou-se e vai fe­
rir se não for impedida. Vai tu procurar esse pecador, fa-:
la-lhe em meu nome; eu me servirei de tuas palavras para
esclarecê-lo e comovê-lo; sofre por eles, sacrifica-te, imo­
la-te. Tuas expiações suspenderão minha justiça, pronta
a castigar; romperão os laços que prendem minha miseri­
cõrdia; alcançarão graças mais poderosas que outras já
concedidas a esse pobre cego que, desta vez, verá a luz, à
qual sua vontade rebelde se render!, enquanto tu partilha­
rás comigo da g16ria de salvar teu irmão. Oh! como te

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amarei então, a ti, a quem deverei o retorno de um
filho perdido, como te indenizarei de teus sofrimentos,
com que glória te envolverei, com que delicias te inebriarei
na morada da eterna beatitude por uma só alma a quem
tiverdes tornado mais santa, por um pecador a quem
tiverdes feito voltar a mim, teu Deus".

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CAPITULO XXVIII

Do amor afetivo. Da oração


Ott:illonl lnlllale, 11t,1tanlt6 ln ra ln gro/ior11111
actlonr.
Perseverai na or&ÇIO, velando m:la com 1çlo de
,:r,ças (CI 4. 2).

235. O Cântico dos Cânticos, esse hino dos corações


enamorados do santo amor, mostra-noS a esposa procurando
ansiosamente o Esposo: "Procurei aquele que meu coração
ama, procurei-o e não encontrei. Levantei-me e percorri a
cidade; procurei nas praças e viaS públicas a meu bem­
amado, e não o encontrei. Topei com os guardas que fa­
zem a ronda na cidade e perguntei-lhes: "Vistes aquele
que meu coração ama?" E logo que passaram encontrei
o meu bem amado; tenho-o comigo e não o deixarei mais
ir". O amigo fiel de Deus sente necessidade cl� lhe pro­
\·ar seu amor pelas obras, pelos sacrifícios e pelos sofri­
mentos, mas aspira também a descansar no Bem-Amado,
a passar com ele suaves momentos, a gozar de sua pre­
sença, a derramar seu coração no coração de Deus.
Santa aspiração! feliz de quem a sente, feliz de quem
procura a Deus com esse ardor, de quem se põe a caminho
para encontrá-lo, decidido a vencer todos os obstáculos, a
evitar todos os rodeios, a não parar sem ter chegado ao fim.
Mas qual é o caminho que leva a essa posse de Deus?
E' o caminho da oração, da meditação, pois é na oração, na
contemplação, que se estabelece essa união intima, essa
união de gozo, como diz a Imitação, que satisfaz o amor, en­
quanto o dilata.

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L A oraçlo vocal.

236. A oração vocal ê a oração à qual nos entregamos


-em primeiro lugar, e muitas pessoas parece nem suspeita­
rem que haja outra. Tal oração tem• grande valor, se sou­
bermos observar-lhe as regras e dela nos desempenhar com
as devidas disposições. Nosso Senhor recomendava a seus
discípulos que não imitassem os pagãos, os quais imagilla­
vam que quanto maior o número de palavras maior também
as probabilidades de serem atendidos. Há pessoas que se
preocupam antes com a quantidade do que com o sentido
das suas preces; pronunciam muitas palavras e todavia re­
zam pouco; não seguem o caminho reto que leva a Deus,
e sim um atalho, extraviando-se sem atingir o fim. Pode­
mos dizer o mesmo de certas comuni_dades, sempre pron­
tas a acolher novas orações, acrescidas de midtiplas ladai­
nhas que as mais das vezes tolhem a oração intima; co­
munidades em que não se podem fazer exercícios sem im­
por a quantos deles participam fõrnmlas e métodos obri­
gatórios. E' comprimir as almas, é sufocar e não favorecer
a verdadeira piedade.
237. Entretanto, a oração vocal, quando brota de um
coração ardente, pode levar até à posse de Deus; bastam
então algftmas palavras, pois cada expressão, tocando o co­
ração de Deus, como a vara de Moisés, tocando o rochedo
de Horeb, dele faz manar ondas de misericórdia e de bon­
dade. Palavras, poucas e curtas, podem produzir maior efei­
to que uma oração mental longa, porém lânguida. E se, en­
quanto as palavras se sucedem na recitação do oficio ou
do terço, a alma continua os pedidos, ou multiplica os atos
de amor, sua oração será perfeita. Quem consegue encon�
trar a Deus por assim dizer sem esforço não carece de outros
meios, pois que as menores pulsações do coração lhe tra­
zem a luz divina e o abrasam no santo amor.

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li, A oraçio mental. Sua importincia.

238. Rara, entretanto, é a alma que chega à união di­


vina pela simples oração vocal. O caminho normal é a ora­
ção mental. E' um caminho penoso, íngreme,· semeado de
obstáculos, atravessado por desertos, e ao longo cio qual cs­
tâ� ã espreita inimigos pérfidos e encarniçados. Apesar de
grandes clificuldades e inúmeros perigos, toda alma, desejosa
de trilhar esse caminho, se estiver firmemente decidida a
seguir sempre para a frente, chegará ao termo. Que é, pois,
preciso para tomar uma resolução tão enérgica e não mais
interromper a carreira? E' só preciso saber avaliar a no­
breza do empreendimento, a beleza e as vantagens dos bens
em questão. Esse hem é a posse de Deus pela fe perfeita e
j,etn amor perfeito, ao menos tanto quanto é possível neste
mundo. Deus mais conhecido, Deus gozado na união de
amor. Não será a esperança de um tal bem capaz de susten­
tar as almas corajosas? E o motivo pelo qual tantas almas
desanimam em meio caminho, ou retrocedem, não será por­
que perdem de vista este bem tão nobre e tão precioso?
O caminho da oração é, pois, a estrada que deve se­
guir quem quer que aspira ã perfeição. Os fundadores de
ordens religiosas assim o entenderam. A vida que propu­
nham a seus discípulos era uma vida superior às forças hu­
manas. Cientes disto, faziam-nos recorrer à oração, como ao
meio poderoso que, decuplicando as forças, comunica a luz
e a força divina. A oração, com efeito, põe a alma em con­
tato com a Luz viva; mostra que Deus é tudo, e que o
homem nada é, e por si mesmo nada pode, mas que em
Deus é capaz de tudo e assim, desconfiando de si e con­
fiando em Deus, fará prodígios.
Os santos fundadores sabiam igualmente que o coração
humano é ávido de paz e de repouso, de alegrias puras
e de colóquios amorosos, que carece de um coração amigo
para nele derramar seus sofrimentos. Por esse motivo obri­
garam ainda seus discípulos a voltar amií1do junto do Ami­
go divino, do celeste Consolador.

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Do bom uso que a alma faz desse tempo precioso da
oração depende o merecimento do dia. A oração alimenta
a vida interior, e dá à vida exterior valor e mérito.
239. Assim compreendem a oração aqueles a quem ani­
ma o mesmo espírito dos santos fundadores e que, como
eles, estão ávidos de encontrar a Deus. Mas aqueles em
quem este desejo não é sincero, que, abraçando o estado
religioso e nele permanecendo, não procuraram Unicamente
a Deus, ou aqueles que, procurando-o a princípio, não vi­
sam mais· agradar-lhe - o que é mais frequente ainda -
esses não encontram nem paz, nem felicidade na oração.
Dai as vocações vacilantes, o relaxamento nas ordens re­
ligiosas, outrora tão fervorosas. A quem não procura exclui­
sivarnente a Deus, as provações da vida religiosa sãó pe­
nosas demais e as rudes obrigações que impõe, a abnegação
constante que exige, parecem um jugo intolerável; então,
com o auxilio do demônio, a vocação se torna num peso.
Para a alma assim perturbada há só um remédio, a oração.
Se abandon_ar a oração, tudo periga, mas se, dominando
suas repugnâncias, ·aplicar-se a orar, multiplicar os brados
do coração a Deus: "Meu Deus, fortificai minha vontade
e dai-me vosso santo amor", triunfará das tentações e per­
manecerá fiel a Deus apesar de tudo.
Aquele, porém, que procura simplesmente a Deus na
oração, sem desanimar, que considera como sagrado o te'm­
po destinado a este santo exercício, que nunca o dispensa
nem o abrevia, acaba por nele encontrar tesouros inefá­
veis. "Do seio daquele que crê em mim, diz o Senhor, cor­
rerão rios de água viva, e essa água viva jorrará até à vida
eterna". Nosso Senhor não promete, àquele cuja fé é viva
e sincera, favores extraordinàrios, visões, revelações, e sim
graças mais intimas, menos surpreendentes, porém igual­
mente eficazes e consoladoras. A solidez, os efeitos dura­
douros provam que são divinas; são rios impetuosos de amor
que impelem a alma, precipitando-a e abismando-a no
oceano da Divindade.

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m. A medltaçio.

240. Tal o fim que alcança quem procura a Deus com


·perseverança. Digo com perseverança, pois é só depois de
um longo tirocínio que a alma atinge essa plena posse de
Deus. A primeira região a atravessar no caminho que leva
a Deus é a meditação, onde serã preciso, às vezes, per­
manecer muito tempo. Aí a alma considera os motivos que
a solicitam a servir a Deus; estuda os meios de praticar a
virtude; procura descobrir suas enfermidades e os remédios
que lhes são próprios; empenha-se em conhecer a fundo
a vida, os ensinamentos, as perfeições, as amabilidades do
divino Salvador. As virtudes que ele praticou são tão be­
las, as vantagens inerentes lhe parecem tão preciosas, que
cresce o desejo de possuí-las, enquanto as súplicas fervo­
rosas feitas ao Senhor atraem sobre a alma inúmeras graças.
Nem todos os assuntos convêm igualmente a quem pra­
tica esta oração. Se é bom, sobretudo no começo, refletir
sucessivamente nos diversos deveres da vida cristã e lhes
percorrer o ciclo, mais tarde a alma, já suficientemente ins­
truída, não encontrará o mesmo interesse em meditar indi­
ferentemente sobre Iodas as verdades; algumas atraem de
preferência e outras lhe prendem mais fàcilmente a aten­
ção. Deverá, pois, seguir essa inclinação sem receio de es­
tar sempre a repetir as mesmas reflexões, nem sobretudo
de reiterar sempre os mesmos protestos, os mesmos de­
sejos, os mesmos pedidos.
Que a alma procure principalmente convencer-se bem
do amor de que é objeto por parte de Deus e medite de
preferência nas provas desse amor; quanto mais se persuadir
desta verdade, tanto mais rápidos serão os seus progres­
sos na oração e, por conseguinte, na caridade. Assim, a de­
voção ao Sagrado Coração, a lembrar constantemente esse
amor de Jesus, favorece enormemente a meditação, tor­
nando-a fácil e proveitosa.
241. Nesle gênero de oração, a natureza opera, as fa­
culdades da alma se ativam, o espírito reflete e raciocina,
255

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e as asas da imaginação têm com frequência livre curso-,
enquanto piedosas representações vêm impressionar o espí­
rito de quem medita, suscitando doces emoções", e a sen­
sibilidade, fortemente abalada, produz surtos afetuosos, vi­
vos e suaves. E quem os experimenta julga por esse meio
chegar ao perfeito amor ( 1).
E', porém, um erro profundo, que a alma não tarda
em descobrir! Chega o dia em que o servo fiel, cuja gene­
rosidade não se alterou e que não se deixou arrastar à dis­
sipação, experimenta grandes dificuldades em fazer ora­
ção (2). As emoções sensíveis se acalmam, os impetos de
amor se tornam raros; a alma fica gélida; parece-lhe im­
possível pi'oduzir pensamentos de ternura e seguir piedosas
reflexões. Mas só então poderá a alma fazer reais progressos.

IV. Passagem da meditação à oração de uniio amorosa ou coa•


templaçlo.

242. Os designios de Deus, ao colocar a alma fervorosa


nesse estado de secura, são fáceis de compreender. Que­
rendo comunicar-lhe uma fé mais perfeita, começa por des­
pojar-lhe o espírito de certos atos que envolvem o ato de
fé, mas que dele são distintos. Esses atos que acabamos
de descrever, isto é, as reflexões nas quais o espírito se com­
praz, as belas considerações, as representações imagina­
tivas dos mistérios cristãos, as emoções sensíveis cheias
de suavidade, causadas pela lembrança das bondades di­
vinas, os surtos do coração suscitados pelos santos pen­
samentos são indubitàvelmente atos bons, mas são antes
o prelúdio ou a consequência do ato de fé, que o ato em si.
1) Existem Inúmeros liv1-os cujo fim é facilitar o exerciclo da
meditação; é-nos pois desneeeuirlo Insistir sobre este gênero de
oração, bem como sobre n. oração afetiva, que é a eegunda. rase da
meditação. O leitor podará encontra.r-lhl's as regras nos "Def:Té5
de la Vle splrltuelle". Linos 3 e 4.
2) Não Calamoa aqui dos que caem, por culpa ptiipria, na ari•
dez e nas diatrações. e que devem evidentemente suprimir em pri­
meiro lugar as ca.wiu dessa dlfleuld.ade, moatrando-a,e generosos
no serviço de Deus, e sobretudo mais recolhidos e· n:iai1 desprendldo,a.

256

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Se procurarmos desenvolver amplamente esse trabalho do
espírito e as emoções da parte sensitiva, o ato de fé fi­
cará comprimido, prejudicado em seu desenvolvimento. E
serâ mui lastimável, pois o ato de fé e o de caridade, que
o acompanham, são todo sobrenaturais, enquanto que os
exercícios das potências da alma pelas considerações, pe­
las imaginações e pelos séntimentos, se mesclam fàcilmentc
do natural e, não raras vezes, é a satisfação dada à na­
tur.eza que a eles nos apega. E tudo isto é, na verdade,
um poderoso auxilio para a fraqueza humana. O homem,
tão diferente do anjo, apóia-se muito em suas reflexões e
suas emoções e terá com frequência de recorrer a elas para
chegar aos atos mais simples e mais elevados da pura in­
teligência e da pura vontade. Mas quando Deus o priva des­
ses apoios, quando lhe paralisa, por assim dizer, as fa­
culdades, é que pretende levar seu servo à renuncia das sa­
tisfações mais íntimas, e à liberdade do uso dos bens mais
pessoais, isto é, as faculdades da alma; quer aniquilar-lhe
todo o humano, a fim de que não viva mais senão dele e nele.
243. Não é no começo da vida espiritual que o des­
pojamento e o aniquilamento das potências da alma se ope­
ram. A alma, muito fraca, não se contentaria com esses
a tos tão simples, mas áridos, de fé e de caridade, e havia
de procurar alhures as satisfações que não lhe fosse dado
encontrar aí e de que não quer ficar privada. Além do mais,
não estaria bastante adiantada na virtude para receber as
graças elevadas que tal estado supõe e que são derrama­
das na parte superior da alma. E' só depois de longas lu­
tas, e de numerosas vitórias alcançadas sobre a dissipação
e as paixões, quando a parte inferior estiver fraca e a
parte superior forte, que a alma se torna apta a receber
graças tão eminentes.
Seria, pOis, temerário quererem as almas ainda débeis
colocar-se por si mesmas no estado de pura fé; antes de­
vem esperar que o Senhor nele as introduza. Enquanto
puderem racionar sobre as verdades cristãs, enquanto a
imaginação for capaz de se representar vivamente certos

O CIUl!lnllo-17 257

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mistérios, enquanto o coração, cheio de emoções, sentir im­
petos de amor, que lhes são um certo alívio, seria impru­
dente procurar suspender essas potências; seria ir de en­
contro à graça, que as movimenta e que não se comunica
de outra forma.
244. E' um momento critico esse cm que Deus
convida a alma a entrar num caminho novo, que é o
caminho da contemplação. Se as luzes superiores da fé lhe
fossem logo comunicadas, vivas e abundantes, se o
atrativo de amor que as acompanha fosse forte e
poderoso, ela não hesitaria e abandonaria sem tristeza
seu método atual de oração. Mas não é em geral assim.
Por vezes, é verdade, almas fcrvorosas mas jovens ainda
na vida espiritual, são introduzidas num estado
contemplativo ardente e suave; mas será só por algum
tempo, a provação da aridez não tardará em atingi-las. Só
depois de terem sofrido, de terem sustentado lutas penosas,
é que receberão de novo, e de modo mais perfeito e
mais durável, as luzes superiores da fé.
A graça opera, pois, progressivamente e sua ação
a principio é suave e quase insensível; à medida, porém,
que a alma, pela fidelidade, afasta os obstáculos e se
dispõe a receber as operações divinas, a graça opera
com mais liberdade e vigor. As primeiras fases da vida
contemplativa são, por conseguinte, penosas, e a alma
fiel, que não pode mais meditar e não conhece um gênero
de oração mais elevada, fica indecisa. Tem uma idéia geral
das grandezas divinas e um atrativo surdo por Deus,
mas não percebe que essa idéia confusa de Deus lhe seja
dada pelo Espírito Santo, nem que esse atrativo amoroso
seja um impulso direto do mesmo Espírito. Tem um
desejo vivo e constante de amar a Deus, distinguindo-se
assim daqueles que caem na secura por culpa própria;
mas, custando a persuadir­se de que o amor divino possa
existir sem os ímpetos sensíveis aos quais não se pode
mais entregar, assusta-se e sofre.
245. Quantas almas, então, se desolam e caem no aba­
timento! As potências infernais aproveitam-se com fre-
258

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quência dessa crise para multiplicar os ataques e convencê­
Ias que o seu estado é mais triste e mais difícil de curar do
que de fato é. Ai das almas que aceitam, sem reagir, as
sugestões do inimigo; acabam por se assemelhar aos po­
bres maníacos, sempre preocupados com a satlde e sempre
a sonhar com novas moléstias; acompanha-as a idéia de
seus defeitos, de sua incapacidade; tomam as atenções por
pecados, vêem o mal onde não existe e se julgam perdidas,
quando a confiança em Deus as havia de curar infalivel­
mente. Seu estado é muito mais lamentável que o dos doen­
tes imaginários, porque as consequências de seu erro são
muito mais funestas. E' o desânimo com o seu séquito terrível.
Sem ceder ao desânimo, intlmeros fiéis, mesmo entre
os mais fervorosos ( 1), recolhem-se demasiado em si mes­
mos, examinam-se constantemente, pensam demais em suas
misérias. Se vivem de inquietação e de receios - e isso é
natural a quem assim procedeu - como não se hão de tor­
nar pusilânimes e sem energia? Embora não cedam de todo
aos temores, que tanto deprimem e abatem a coragem, en­
quanto não se alimentarem mais àvidamente dos atributos
de Deus, raros serão os seus atos de amor e muito lentos
os seus progressos.
Há outros fiéis que se obstinam em recorrer à medi­
tação (2) e às práticas próprias dos primeiros tempos. Se
l) Lemos na vida da Madre Tereaa. da São .José, carmelita de
Tours, as palavras que o Padre Glnhac, S • .J., de tão santa me•
mória, lhe escrevia.: "Aconselho-lhe que se conaldere menos a si
mesma, e que mantenha os olhos da alma 'fito& em Nosso Senhor".
Entre as ruoluçóes toma.das por esta admirável religiosa durante
um retiro pregado pelo mesmo sacerdote, em 1883, eaü. a. seguinte:
"Em V(oZ de pensar em mim, a6 me ocuparei do divino Rei, de
lhe fazer a vontade, de lha provar o mau amol' e da promover os
interesses de sua glôria" (Cap. XIII. Eeta religiosa. faleceu em
1890, em odor de santidade.
2) A tais pessoas são muito útei.11 s aconselbã.veis os livros de
Grou, Manual du almas interiores (Ed. Vozes Ltda.J, bem como
as obras tio preciosas quão úteis de Sio João da. Cruz. Pal'a
facilitar a leitura dBSW últimas, sugerimos a. excelente brochut·a
do Padre C&lave1·: A terminologia de São .Joio da Cruz. (Ancers,
G. Grusin).

259

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ninguém vier cortar os laços que lhes prendem as asas,
nunca levantarão vôo; nem receberão as luzes da fé perfei-
1a, nem atingirão o grau de amor a que são chamados.
A alma prudente e coraJosa, se for bem dirigida, acei­
tara plenamente, seja qual for a causa, o estado de aridez
a que está re;âuzida, submetendo-se suavemente à vontade.
diviÍ'la. Mas, enquanto essa submissão amorosa não lhe for
habitual, suas orações deverão ser, na medida do possível,
longos atos de resignação, exaltando e bendizendo a von­
tade de Deus e multiplicando os atos de confiança absoluta
na vontade divina.

V. A oração de união amorosa ou de coatiemplação.

246. Se, como acabamos de dizer, a alma for fiel no con­


vite divino, à ansiedade que experimentava de não poder
amar à vontade, sucede, pouco a pouco, uma paz profunda.
Feliz por estar onde Deus a quer � como Deus a quer, de­
sapega-se das mt'.lltiplas práticas em que outrora julgava
encontrar a santidade; deixa de contar consigo mesma, com
sua sensibilidade, sua inteligência, suas qualidades íntimas,
renova a resolução de servir a Deus fielmente e só conta
como ele para progredir. A princípio, sentia-se contente
ou descontente, conforme os sentimentos mais ou menos
vivos que experimentava; hoje, porém, seu único prazer é
ser aquilo que agrada a Deus. Está pronta para tudo; acei­
ta as trevas ou a luz; mantém-se, quando é preciso, em
uma espera silenciosa, como a tela diante do pintor, ate
que agrade ao artista divino traçar-lhe na alma a imagem
viva de seu Filho.
E', pois, para Deus, que ela se voltará constantemente,
desde que consiga afastar as distrações. Deve manter, com
s,:rnta obstinação, os olhos fitas nele, e, sem grande reciocínio,
lembrar-se simplesmente da bondade infinita, do amor, do
poder, da santidade de Deus, quer pense diretamente na
Divindade, quer se sirva da Humanidade santa de Jesus
para elevar-se ao pensamento das grandezas infinitas.

260

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247. Então, a graça nela opera mais livremente. A prin-.
dpio produz um amor quase insenslvel, porém suave e pro­
fundo, que tranquilizará o contemplativo e lhe provará que
não perde o seu tempo. Não faz ato de amor, e de amor
muito meritório, quem se acha tão bem com Deus, quem
se sente feliz de permanecer em sua presença, de possui-lo
em seu coração, quem adere tão puramente à vontade c.li­
vina? Depois, à medida que a alma se purifica, que se de­
sapega completamente das criaturas e de si mesma, que con­
segue fazer calar os ruídos importunas que a ensurdeciam,
ser-lhe-ão concedidas luzes mais abundantes, que lhe in­
tensificarão ainda mais o amor. Sem refletir, e melhor do
que se refletisse, sentirá uma viva impressão e se fará uma
idéia empolgante da imensidade e da grandeza de Deus,
de sua sublime beleza, de sua inefável bondade.
O contemplativo chega-se assim ao santuário da Di­
vindade e adquire a ciência dos atributos divinos. Não po­
de, é verdade, entendê-los, mas vê, como não lhe era dado
ver, até então, o quanto são inefáveis e incompreensíveis,
o quanto precisa ser puro para melhor fixar os olhos num
objeto tão santo e para penetrá-lo melhor. A comparação
que faz entre Deus e sua alma inspira-lhe urna humildade
que lhe era desconhecida, tanto mais que a luz que lhe re­
vela as belezas divinas mostra-lhe também sua própria bai­
xeza, suas imperfeições, suas misérias. Se for, pois, fiel a
esta graça eminente, com que novo cuidado evitará o pecado,
como se censurará as menores fraquezas, como procurará
purificar-se das manchas inevitáveis a toda vida humana!
Humildade e desprezo de si, de um lado; admiração e amor
de Deus, do outro. No contemplativo esses dois sentimen­
tos caminham a par.
248. A alma, como já dissemos, deve comprazer-se i!m
Deus. Se souber guardar o olhar fielmente nele, encantar­
se-á com o pensamento dessa maravilhosa vida das três
Pessoas divinas, vida intensa e infinitamente ativa. Ai Deu�
goza de uma felicidade que só ele pode compreender, ai
obtém tudo quanto possa desejar, tudo quanto lhe é devido.

261

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Infinitos são seus desejos, infinitos os direitos que tem a.
ser amado e glorificado, infinita, porém, é sua satisfação,
infinita sua glória, infinito o amor com que é amado. Nada
no· mundo pode obstar essa felicidade sem limites de que
gozam as três Pessoas divinas em suas relações mútuas de
contemplação e de amor. Todas as criaturas juntas não a
podem perturbar, todos os acontecimentos do mundo não
a podem alterar. Deus habita uma luz inacessível, que ne­
nhum mortal jamais viu ou pôde ver; está num abismo, ou
an"tes ele é um abismo insondável, em que só podemos pe­
netrar se nos perdermos e aniquilarmos. Este pensamento
loca ao coração do contemplativo com uma suavidade ex­
traordináriaj o transporte que frequentemente o enleva, e
ptlo qual se lança e se perde em Deus, é todo de amor,
� inefável, é glorioso para Deus, é de grande proveito para
a criatura. As delícias todas da contemplação são dadas
à alma Unicamente para terminar nesse naufrágio divino,
em que a alma, despojando-se, como de uma veste incômoda,
de toda preocupação e de toda idéia profana, afogando to­
das as suas potências, mergulha e se abisma no oceano da
incompreensível Divindade.
E' como que um surto de amor, um impulso que a im­
pele para um transporte cheio de delícias. A contemplação
nem sempre proporciona à alma essa união de gozo. Por
\'ezes, reveste outra forma; então o amor é tranquilo e calmo,
a paz profunda, mas despido de qualquer prazer sensfvel.
Se a alma goza menos, não deve todavia se preocupar,
pois o mérito da contemplação não é menor.
O contemplativo pode também experimentar uma grande
incapacidade de amar esse Deus, que se apresenta tão
bom; pode, também, considerar-se indigno de se manter na
presença divina e esse duplo sentimento lhe causará um
profundo pesar. Outras vezes não conseguirá fixar as po-
11:ncias da sua alma, e, enquanto se mantiver unido a Deus
pda vontade, a imaginação continuará, mau grado seu,
suas divagações, e o espírito seus cálculos. São estados pe­
nosos, porém mui meritórios, pois a alma fiel conserva· sem-

262

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pre uma id�ia elevada de Deus, infundida pela luz mística,
e ama-o com um amor intenso, como bem o provam seus
desejos ardentes e a dor que sente de não· poder exprimir
seus afetos. A grande regra que se impõe ao contemplativo
C a de seguir os impulsos da graça, de receber as impressões
que lhe são comunicadas, tanto as que purificam como as
que confortam, e de não contrariar a ação divina, mesclan­
do--lhe uma ação demasiado humana.
Sejam quais forem as circunstâncias acessórias desse
1:stado, a elevada idéia que o contemplativo faz de Deus
leva-o a não querer de forma alguma se rebelar contra ele
enquanto adquire, também, maior firmeza na luta. Se esse
estado se tornar habitual e a alma corresponder fielmente
às graças recebidas, grandes serão os progressos; as vir­
ludes de fé, de esperança e de caridade que se exercem per­
feitamente na contemplação, tomam um incremento maravi­
lhoso, e o Espírito Santo faz germinar em seu tronco as de­
mais virtudes.
249. A luz contemplativa não revela Unicamente as gran­
dezas e as amabilidades divinas, mas esparge con1 frequên­
cia seus raios sobre os mistérios da vida de Jesus. A medita­
ção, perscrutando a história evangélica e mormente a Pai­
xão do Homem-Deus, já soube esclarecer bem a alma fiel
e lhe dar uma noção do amor com que Jesus amou seus
filhos. Mas, quando a luz contemplativa ilumina com seus
clarões, de uma vez, a majestade infinita do Verbo e seus
inefáveis sofrimentos, então a alma compreende de outro
modo o amor do Coração de Jesus. As passagens da vida do
Salvador, causando uma impressão muito mais profunda
e mais forte, dilatam-lhe o amor e a generosidade.
Admira-nos que o contemplativo se afeiçoe à oração, e
veja com prazer chegar a hora em que a deve fazer? E' a
luz da contemplação que almeja, pois é-lhe uma verdadeira
'felicidade perceber, embora confusamente, o quanto esse
Deus, objeto de seu amor, é grande, santo, amável. Aspira,
porém, mais ainda à união de amor, fruto da contemplação.
Ficar como que submergido cm Deus pelo amor, ser trans-

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formado nele, desfazendo-se de seus defeitos, aniquilando
tudo quanto existe de natural, de humano, é-lhe penhor de
uma alegria muito mais profunda e mais viva. Os efeitos
dessa contemplação obscura, pois na terra as perfeições
divinas oferecem apenas uma visão geral e confusa, são
mais preciosos que o das visões e de outros favores exce­
pcionais. A contemplação abafa as preocupações humanas,
destroi os cuidados pelos interesses pessoais, substituindo­
os pelo único desejo dos interesses divinos. Ver esse Deus,
boníssimo, amado por seus irmãos, é o supremo anelo da
alma contemplativa. Vê-lo glorificado por aqueles mesmos
de quem muito teve que sofrer, é para essa alma, que des­
conhece a inveja, um imenso consolo. Que zelo a envolve
então e como se esquece continuamente de si para só ver
a Deus! O eu humano desapareceu quase que inteiramente
e sobre as ruínas do amor próprio ergueu a Deus um trono,
donde ele comanda como Soberano sempre acatado.
O estado de contemplação e de união apresenta diver­
sos graus em número igual ou superior aos estados prece­
dentes. Antes da união a Deus se tornar em estado habitual,
a alma deverá sofrer repetidas purificações, passar por ai�
ternativas de duras provações e de inebriantes delícias. Am­
bas visam aniquilar tudo que for humano, para nela fa­
zer reinar o divino. A alma deve prestar-se à ação divina,
aceitando as luzes e os impulsos que lhe são comunicados
e consentindo, cordialmente, quando assim aprouver a Deus,
em permanecer na incapacidade imensa e no sentimento
de sua miséria. Quando Deus quiser, agindo desse modo,
conseguir dela a renúncia a toda atividade e toda satisfação
natural, que se deixe, cheia de gratidão, despojar e como
que aniquilar, lembrando-se da palavra enérgica de São
João da Cruz: é preciso passar pelo nada para obter o TUDO.

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CAPITULO XXIX

Das relações intimas com o


mundo invistvel

ltl o$ccndil fuinu, l11ctn,or1un dt orollonlbat< Sonc­


torum dt manu 411,:tll corom Deo.
E o aroma dn orações dos Santos subiu d• mão
do anjo at•i presença de�as (Ap8, 4).

1. Quanto e úHI a lembrança habitual do mundo invisível.

250. Tendo compreendido o que é a oração contem­


plativa, não desejais, piedosos leitores, obter a graça de
deixar a meditação, que é, segundo São João da Cruz, "o
estado dos p_rincipiantes", para serdes elevados à contem­
plação que C, diz São Francisco de Sales, a exemplo de to­
dos os grandes Mestres da vida espiritual, "<? fim e o es­
copo ao qual tendem todos os exercicios"? ( 1) Tendes ra­
zão, e Santa Teresa a isso vos anima. "Segui sempre, diz
esta grande Santa, o caminho que leva à contemplação;
combatei como almas valorosas, perseverai, até morrer, em
vosso santo propósito.. Lucramos em seguir este caminho
um tesouro imenso e aquilo que nos parece muito custoso
à natureza, nada é comparado àquilo que nos é dado. Aque­
les, pois, que empreendem essa viagem, que não querem
parar antes de lhe atingir o termo, e de se desalterarem
1) "A meditação deve chegar à contemplação como a seu fim",
São Joio da Cruz. Máxima 242: "A meditação e demais fUnções
do e11pirito na oração se dirigem todas à. contemplaçio e são co­
mo oa degrãu11 pelos quais devemos subir"'. Rodriguez. Da oração,
ee.p. XII.
265

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nessa fonte de água viva, devem tomar - e isto é de gran­
de importância - uma resolução firme de não suspender
os esforços enquanto não alcançarem o fim, aconteça o que
acontecer, venha o que vier, seja o que for, murmure quem
quiser murmurar. "Proceder de outra forma, isto é, apli­
car-se à oração com a idéia de não ultrapassar a meditação,
seria, segundo São Lourenço Justiniano, tão desarrazoado
quanto empreender uma viagem para parar a melo caminho,
ou semear para não colher, ou iniciar uma construção para
não terminar (2).
Como não desejar a contemplação, quando sabemos
que outra coisa não é senão o exercicio perfeito das virtudes
de fé, de esperança e de amor, pelas quais se opera a união
da alma com Deus? Como não pedir a Deus essa luz mís­
tica, isto é, a luz preciosa da fé, cuja excelência já demons­
tramos, e que dá, das grandezas de Deus e de sua bondade,
uma noção elevada que todas as reflexões juntas não po­
deriam dar? (3). Pedi essa luz e destrul todos os obstá­
culos aptos a vos impedir de recebê-la. "Essa luz, diz São
João da Cruz, que transformo a alma l' a introduz no estado
2) Ver estes textos e muitos outros nio m.eliOs lntereaat.Dtea
na Vida da Unlio a Deus.
3) São Francisco de Sale.s, coment.ando a passagem da &·
crltura: Os teus selos são superiores ao vinho, diz: "O loite, que
ê um alimento cordial e todo do amor, repreaen.ta. a ciência e
teologia mlstlea, isto ê, o delicioso saborear que o espirita re­
cebe quando medita. u perfeições da. bondade divina; mas o vi­
nho slrnlflca a ciência ordh1árla e adquirida. que e obtida à for­
-ça de eapeculaçi.o, sob a preed.o de muitos argumentoa e debat•.
Ora, o leite que nossu almas sugam no selo da caridade de nos­
so Senhor vale incomparàvelmente maia que o vtnbo que UrlUDD'll
dos discursos humanos, pola esse leite se origina no amor cel•te,
que o prepara a seus filhos antes me.amo que estes dele cogltetD"
tAmor de Deus, Livro V, cap. ll>. Podemos ver no Estado mb­
tico que tal é realmente o sentido tradicional das palo.vraa "din­
cla mlstica"; não é uma ciência e�peional e qua..e milagr(ISIL.
mas eaaa ciência ·eminente de Deua que é dada âs almu "\--erdadel·
ramente fiêis. Certos autores, o.o contrário, ,-lem nas graças ni:i.s•
ticu, graças extraordlná.ri.a.s e acoss6ria.s, ante.s uma anlmll.çâ.o que
um meio perfeito; censuram por conseguinte o desejo da contem­
plação. Nós nos contentamos com a doutrina. dos Santos e dos
grandes :MHtres.

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de p.e,rfeição, está sempre pronta a difundir seus clarões
na alma. Fazei desaparecer os obstáculos, tirai os véus e
incontinenti vossa alma, simplificada e purificada pelo
despojamento espiritual, se transformará na pureza e na
simplicidade da sabedoria divina, que C o Verbo de Deus.
A medida que a alma, enamorada do amor divino, se
desprende do elemento natural, o elemento divino nela
se derrama sobrenaturalmente, pois Deus nunca deixa
de encher o vácuo".
251. Quais São estes obstáculos? Já os indicamos nos
capitulos precedentes. E' tudo quanto ocupa inlltilmente o
espirito, tudo quanto, fora de Deus, cativa a vontade,
impede a operação das graças mlsticas e a
transformação da alma cristã. Se quiserdes, pois, obter as
graças de luz e de amor que produzem a união divina,
lutai contra os pensamentos fúteis, contra os sentimentos
naturais e vivei recolhidos e desprendidos.
Já nos referimos a este combate nos capítulos
anteriores, principalmente ao tratarmos da fé e da
esperança. Falamos sobre os inconvenientes de vivermos em
um mundo imaginário, no meio dos fantasmas que
cria continuamente a imaginação, essa potência
desregrada, e de que maneira devemos sufocar, na
medida do possível, os desejos, as alegrias, os temores,
as tristezas, quando são o produto da natureza. Mas
como substituir essas divagações do espírito e esses
impulsos do coração? Os deveres de estado, as obras
impostas por Deus bastam para absorver a atividade
das potências da alma, e é impossível mantê-las
suspensas.
Em torno de vós, cristãos fiéis, estão seres a quem não
podeis ver, mas que vos vêem a vós, que vos contemplam,
que se interessam por tudo quanto vos diz respeito,
e quc se podem tornar em amigos ·dedicados, em
protetores poderosos. Por que pensais tão pouco neles?
Por que preferis viver com os fantasmas, os
cálculos, as hipóteses, os receios, as preocupações
excessivas, as esperanças quiméricas, em vez de
viver com esses seres invisíveis, porém reais, cuja
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ação se une continuamente à vossa, e cuja influência sobre a vossa poderá
ser considerável?
n. Nosaos inimigos invlsivei1,
252. Antes de falar de vossos amigos invisíveis, con­
vêm indagar se pensais algumas vezes nos inimigos de vos­
sas almas, que não vos deixam, e que são tanto mais temi­
veis quanto operam de preferência na sombra. Aqueles que
esquecem o ódio encarniçado dos demônios e não se pre­
cavêm contra inimigos tão pérfidos, não compreendem qut
muitos dos pensamentos que os perseguem e os importunam
tais os que provocam a irritação, a impaciência, a criticõ
maldosa, a desolação, a perturbação, o abatimento, são meras
sugestões infernais. A natureza produz, sem dúvida, pen­
samentos semelhantes. mas que passam logo que a causa
desaparece; ao contrário, o demônio se dá a conhecer pela
sua tenaciadde odiosa. E' ele que nos apresenta esses qua­
dros negros que nos perturbam, nos exasperam, e dos quais
não podemos desviar os olhos. Por não perceber a ação do
demônio, muitas pessoas entregam-se a essas idéias, cul­
tivando-lhes os sentimentos inerentes e prejudicando-se gran­
demente. Os cristãos vigilantes e esclarecidos, porém, re­
conhecem ao primeiro toque a ação do tentador e repelem,
com maior horror, suas sugestões.

10. Como distinguir os anjos das almas separadas de seus corpos.

253. Se a lembrança dos anjos rebeldes nos torna mais


vigilantes e mais firmes na luta, a lembrança dos anjos
fiéis e dos eleitos nos traz consolo, força e felicidade. E'
tão suave manter boas relações com nossos bem-aventurados
irmãos e amigos. Mas, antes de tudo, devemos procurar co­
nhecer o estado que lhe é próprio, os seus sentimentos.
as alegrias de que gozam, o poder que possuem, o amor
que nos dedicam.
Sua natureza é muito diferente da nossa, suas facul­
dades são muito superiores às nossas. E' mister compre­
ender, ou ao menos entrever o "que é esse conhecimento es­
piritual, que hoje é o dos anjos e que, um dia, quando a
alma abandonar o corpo, será nosso. Aqui, na terra, depen-
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dentes como somos dos órgãos humanos, só podemos atin­
gir de maneira direta os objetos particulares e os indiví­
duos; são eles que conhecemos em primeiro lugar, é, com­
parando-os, que nossa inteligência descobre o que há de
comum entre eles e vai obtendo noções gerais. Conhecemos
tais e tais homens, antes de termos uma idéia geral de ho­
mem; vemos os objetos brancos, ou pretos, antes de ad­
quirirmos a noção do branco e do preto. Depois, aproximan­
do as idéias concebidas, formamos o nosso juízo; unindo,
·por exemplo, a noção de Deus à noção da bondade, de­
claramos que Deus é bom. Enfim, reunindo diversos julzos,
de dois, deduzimos um terceiro: Deus é bom, devemos amar
o que é bom; portanto devemos amar a Deus.
Assim procede o espirita humano; caminha passo a
passo e o campo de sua visão será forçosamente muito re­
duzido, incapaz como é de abranger ao mesmo tempo senão
um n(tmero limitado de pensamentos. Tal o conhecimento
humano. Se um abismo o separa da recepção puramente
sensível dos animais, que, destituídos de uma idéia geral,
não podem julgar nem refletir, como é todavia inferior ao
conhecimento puramente intelectual. Este, que é próprio dos
espíritos, dos anjos, das almas do purgat6ri9, aprende, ao
mesmo tempo, todo um conjunto de verdades sem precisar
recorrer pessoalmente a uma e outra. Vê, por exemplo, cla­
ramente, e sem raciocínio que Deus merece ser amado,
e vê igualmente muitas outras verdades morais ou cien­
tíficas; abraça, com um só golpe de vista, um número
incalculável de objetos; mergulha profundamente num abis­
mo de verdades. O Senhor digna-se, por vezes, de favorecer
certas almas privilegiadas com essas visões intelectuais e
então, num abrir e fechar de olhos, um mundo novo se re­
vela à sua contemplação. Santo Afonso Rodriguez teve um
dia a visão do céu; "viu e conheceu todos os bem-aven­
turados juntos e separadamente, como se tivesse passado
toda a sua vida com eles" (Vida, n. 275). Outra vez "dis­
cerniu cada anjo em particular, como se sua alma estivesse

269

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simultâneamente toda inteira em cada um e toda inteira
em todos" (Jbid. n. 6).
Os espíritos possuem, portanto, uma faculdade de per­
cepção muito vasta, da qual nada nos pode dar uma idêia.
No momento de deixarmos este mundo, em vez da palavra
fatal: ''está morto", seria mais justo que todos dissesselli'
"ele agora vive de uma vida muito mais intensa, de uma
vida intelectual que não terá descanso, nem fadiga, nem
sono; sua inteligência centuplicou-se, um mundo inteiro aca­
ba de abrir-se a seus olhos, segredos que nunca imaginara
acabam de lhe ser revelados. Existe uma diferença muito
maior entre as luzes que ora possui e as que possuía há
pouco, do que entre a ciência de uma criança de seis anos
e a de um adulto.

IV. Nossos amigos do purgatório.

254. Esta faculdade da inteligência angélica permite


con1preender como as almas do purgatório podem ter co­
nhecimento de tudo que se passa neste mundo e em nossa
vida. Seus anjos da guarda, com os quais mantêm relações
intimas, podem, de relance, revelar-lhes esses acontecimen­
tos melhor do que o fariam nossos longos discursos; pois
a linguagem espiritual, despida de palavras e frases, é mui­
to mais clara e mais completa, enunciando, num instante,
verdades cm 11i1111ero muito superior à fraca linguagem
humana. Podemos, portanto, entrar em comunicação com
elas e esperar que nossos pensamentos lhes sejam fielmen­
te transmitidos.
Nessas almas não existem os defeitos que talvez nos
desagradassem em vida; nenhum sentimento de amor pró­
prio, nenhuma busca de si mesmas, nenhuma preocupação
natural, nenhum torpor ou moleza na execução da vontade
divina. A separaç�o com o mundo, a perda de tudo quanto
podia seduzi-las, de tudo quanto a natureza cobiçava e pre­
zava e, principalmente, uma ação toda particular de Deus
em sua inteligência e sua vontade, romperam-lhes os ape-

270

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gos imperfeitos e puseram-nas para sempre ao abrigo do
pecado. Purificaram-se e desprenderam-se de todos os em­
pecilhos criados pelas suas faltas. Constantemente novas
luzes lhes revelam de modo mais cabal a bondade de Deus
e as maravilhas de misericórdia que encerram os mistérios
cristãos. Ah! como essas almas avaliam melhor que nós
a vaida<lc das coisas terrenas! Como penetram mais avan­
te na ciência dos atributos divinos, da santidade, da jus­
tiça, da bondade, da ternura de Deus! Como são mais es­
clarecidas sobre as festas cristãs e celebram com maior
admiração e reconhecimento o nascimento do Salvador, sua
Paixão, sua Ascensão, ou os mistérios da vida de Maria!
Como compreendem melhor também o valor da santidade,
o poder de seus padroeiros celestes, de São José, dos Após­
tolos, dos Santos que invocaram outrora com fervor!
Enquanto o espírito se ilumina, a contrição se vai tor­
nando mais viva e mais pura, e a vontade pode exercer mais
livremente o amor. Os laços que o prendiam caindo um a
um, esse amor se exercerá na mesma plenitude em que se
exerceu na hora da morte e que será, para essa alma, a
medida de sua felicidade eterna.
O purgatório é o vestíbulo do céu, onde a alma se pre­
para para penetrar na morada de toda santidade. Não sô­
mente ela aí se purifica das manchas que lhe enfeavam as
vestes nupciais, mas vê dissiparem-se as névoas que lhe
velavam os olhos. Sobe de clarão em clarão e experimenta
surtos de amor cada vez mais ardentes. Assim os últimos
dias de purgatório, quando a alma já está quase pronta
para o céu, devem ser antes dias de luz e de paz que de
luto e de lágrimas.
Se fizéssemos uma idéia mais exata do que parecem
nossos amigos de alélh-túmulo, teríamos necessidade de lhes
transmitir os nossos sentimentos. Sentimentos de condolên­
cias por penas tão dolorosas, tão temíveis: de regozijo por
suas virtudes, pela iluminação brilhante que neles se
operou e pela transformação de sua vontade; de desejo de
aliviá-los, de apressar o momento de sua hem-aventurança;
271

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de esperança de sermos, nós mesmos, auxiliados pelas suas
orações! Não seriam alguns colóquios deste gênero, com
nossos queridos mortos, mais suaves e mais íiteis que os diá­
logos imaginários, inventados de fio a pavio, em que in­
dagamos e respondemos a um tempo, cabendo-nos sempre
um belo papel? Não seriam, também, mais proveitosos que
a maior parte das conversações que temos com os vivos?
Não lucraríamos muito mais em abreviar estas, ou mesmo
suprimi-las, às vezes, para dar mais tempo às outras?

V. Os eleitos.

255. Chegado o termo da expiérção, nossos caros· de­


funtos penetram a morada da bem-aventurança. Ali, um
novo esplendor lhes está reservado e a luz de glória lhes
transfigura a inteligência, enquanto éontemplam a Deus fa­
ce a face. Na morada da purificação foram, sem dúvida,
conhecendo melhor a Deus do que na terra, mas não é pos­
sível comparar esse conhecimento que lhes foi dado com a
própria contemplação da essência divina. (1).
Que transportes de delícias não lhes causará a visão
daquele que é a infinita Beleza! Passarão os séculos e eles
estarão sempre a contemplá-lo e sem que essa felicidade
causada pela visão beatífica de Deus jamais se altere.
Amigos santos, parentes queridos, que nos precedes­
tes e ora gozais da verdadeira vida, como me alegra vossa
1) Certas peuoas imaginam que, no momento da morte, u
almas vêem a Deus; é erro. As alma.e são Julgada■, ieto é, o esta­
do de sua consdêncla lhas é revelado eom u penaa que mereoe-
1·am. Talvez n0880 Senhor lhes •�a em sua Hwnanldade para
pronunciar a sentença, embora não tenhamos prova nenhuma
dlart0; mu a visão da Divindade, que exige a lu,; da. glória e uma
perfeita semelhança. com Deus, só lhes lll&râ conc<!did.a no ciu;
eua visão é a felicidade essencial dos eleitos e p1·oduz, forÇ06&­
mente, um esta.do de amor que apagaria todo o pecado e toda
pen& devida ao pecado. Afirmamos uma ve1-dadC! certa - que tal­
vez surpreenda alguns leitores - quando d.izemoa que os demóuios
nunca viram a Deus. Se não o puderam \"er durante a prov�.
como o poderiam ver quando", revolt&dos. perderam & "11,Ç&
santificante?

272

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felicidade, que excede a toda expectativa! E como vos fe­
licito pela vossa sorte! Regozijo-me também com a idéia
de que semelhante felicidade será um dia a minha quando,
juntos, contemplarmos os mesmos espetáculos e gozarmos
do mesmo amor, das mesmas delícias! Este pensamento
também vos alegra, pois o amor que tínheis por mim, longe
de diminuir, se dilatou no céu de modo admirável e vosso
coração, cujo impulso nenhum sentimento natural ou egoís­
ta entrava, tornou-se maravilhosamente terno e, ao verdes,
então, a descoberto, em minha alma, o dom ela graça que
vos enleva, amais-me com um amor que ultrapassa todos
os amores terrenos!
256. Não (• indiretamente, por um intermediário, que
os eleitos acompanham a nossa vida; em Deus vêem eles
tudo quanto lhes interessa e, assim, conhecem melhor que
nós mesmos o que somos e o que fazemos. Se lhes falamos,
compreendem a nossa linguagem e alegram-se em ouvir­
nos falar-lhes de sua felicidade, e ainda mais de Deus, a
quem amam com um amor tão puro e tão ardente. Quando
viviam no mundo conversávamos com eles de seus amigos;
aos pais falávamos dos filhos, aos amigos, dos amigos, e
seus corações se regozijavam. E agora, com o amor dilatado,
mais viva ainda é a satisfação que lhes proporcionamos,
quando lhes falamos daqueles a quem amam, quando, prin­
cipalmente, lhes falamos desse grande Deus que lhes ocupa
toda a inteligência e todo o coração. Se vêem que desejamos
conhecê-lo melhor, amá-lo mais, se lhes pedimos para aju­
dar-nos a servi-lo melhor, causar-lhes-emas uma verda­
deira alegria, uma dessas alegrias acessórias, acidentais, co­
mo as denominam os teólogos, que se acrescentam à sua fe­
licidade fundamental e essencial, mas que, embora pequenas
em relação a estas, são, entretanto, tão puras, tão vivas
e tão delicadas. E eles se apressam em favorecer nossos
desejos, oram por nós e nos alcançam um preciosíssimo
acréscimo de graças.

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CAPITULO XXX
Da hierarquia celeste
Nlmls llonorlflcall sunl amlt:I lul De11s, nlmls um­
forlatas esl prlndpatus corum.
Qu5o eltvados cni dlr;nldadc es110 vossos ami-
1:os e quio firme t seu poder (SI 138, 11),

L Os anjos.
257. Em que medida podem nossos amigos celestes
beneficiar-nos? Na medida de sua santidade e de seu po­
der. Existe no céu uma admirável hierarquia e os anjos de
Deus dividem-se em nove coros distintos. Em cada um des­
ses coros há, sem dúvida, diferenças muito maiores do que
as que existem entre os homens. Em uns a inteligênciá é
mais vasta, a vontade é capaz de resoluções mais fortes, o
poder de ação é mais extenso que em outros, enquanto os
dons sobrenaturais da graça e os méritos apresentam igual­
mente diferenças de grau. Não há, de certo, dois espiritos
angélicos da mesma ordem e grande é a distância entre Um
coro e outro, mormente entre os coros inferiores e os su­
periores!
Ora, todos esses anjos conhecem-nos e amam-nos; to­
dos vêem em nós filhos de Deus como eles também são e
irmãos em Jesus Cristo; todos se interessam pela santifica­
ção de nossas almas. Um só pecador que se converte, disse­
nos nosso Senhor, causa-lhes viva alegria. Pensamos nós,
como deveríamos, nesses irmãos tão dedicados e tão pode­
rosos? Pensamos nos anjos do coro que, um dia, será o
nosso? Eles já nos consideram como um dos seus. E no
céu nossos amigos serão tão numerosos quantq a milicia· an­
gélica, e seu afeto será sincero e mui ardente. Quanto mais
elevados estão, tanto mais admiráveis são suas virtudes,
274

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seus dons sobrenaturais e seu poder e quanto mais recorrer­
mos a eles, tanto mais bem nos poderão fazer.
258. Um desses anjos recebeu de Deus o encargo par­
ticular de nos dirigir e nos proteger - e com que solici­
tude esse guarda fiel vela sobre nós! De quantos perigos
nos preserva, quantas boas inspirações nos incute! Iluminar
sobrenaturalmente nosso espírito para que aprenda as ver­
dades da fé, fortalecer diretamente nossa vontade para que
produza atos de amor mais intenso, é obra de Deus, autor
único da graça; mas os anjos da guarda, os eleitos e os
Santos podem prestar-nos os mesmos serviços que nós pres­
tamos uns aos outros, e com maior perfeição; podem co­
municar-nos bons pensamentos, atrair nossa atenção sobre
os motivos que determinarão nossa conduta, sobre as van­
tagens desse ou daquele modo de proceder; podem desper­
tar-nos a imaginação, insinuar-nos comparações que nos
esclareçam, comover-nos a sensibilidade. E tais serviços
já nos prestaram não sómente o nosso anjo da guarda,
tnas também os eleitos e os Santos. Não temos, sobre a
terra, benfeitores tão carinhosos, amigos tão poderosos!
E seus bons préstimos se multiplicariam se pensássemos ne­
les mais vezes, se conversássemos com eles mais a miúdo!

IL As almas bem-aventuradas.
259. A hierarquia tão perfeita, estabelecida entre os
anjos, existe também entre os eleitos, e está mais ao alcance
da nossa inteligência, embora façamos uma idéia muito in­
completa a respeito; pode nos ajudar a subir de degrau
em degrau, até ao trono de Deus, e dar-nos uma noção mui­
to fraca, é verdade, porém impressionante, de sua infinita
majestade.
Muitas almas, nossas conhecidas, levaram uma vida
pouco virtuosa, talvez uma vida culpada, e só se reconci­
liaram com Deus na l1ltima enfermidade. Outras, crianças,
foram colhidas prematuramente antes de acumularem gran­
des méritos. Estas últimas - não podemos ter certeza
quanto às outras - provàvelmente já terminaram sua ex-

275

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piação e podemos recorrer a elas, mas não ocupam luga­
res elevados no mundo dos eleitos. Entretanto, se sua gló­
ria nos fosse manifestada, se víssemos o esplendor com
que brilham suas almas bem-aventuradas, o ardor de cari­
dade que as abrasa, e o amor com que as ama esse gran­
de Deus, que as deixou viver de sua vida e compartilhar
de sua felicidade, ficaríamos enlevados e es�upefatos ( 1).
Mas conhecemos outras almas, mais perseverantes e
fiêis, que levaram na terra uma vida genuinamente cristã.
Praticaram inúmeros atos de virtude, adquiriram inúmeros
mêritos pelo seu espírito de fé, pela sua obediência aos
mandamentos divinos! Se um copo de água dado por amor
de Deus aumenta em nós a vida divina, quão grande de­
ve ser hoje a riqueza dessas almas, quão perfeitas suas
virtudes, quão queridas serão de Deus!
E essas almas, vimo-las cheias de piedade, entregues
a seus deveres, fiéis a seus exercícios! Apesar dos defeitos
que lhes restavam, sua fé era mais viva que a de muitos
cristãos, e exercia sobre toda a sua conduta uma influência
maior, enquanto mais ardente era o seu amor. Entre essas,
diversas se elevaram até ao fervor. De todas elas digamos
apenas que são muito mais ricas, muito mais belas e muito
mais poderosas que as precedentes.
260. Muito mais elevadas estão, entretanto, outras al­
mas que conhecemos igualmente e cuja vida exemplar ex­
citou nossa admiração. Todo o seu tempo pertencia a Deus
e seus dias eram preciosos aos olhos divinos, dies pleni in­
venientur in eis; preciosos, de fato, porque viviam intima­
mente unidas a Deus e todas as suas obras eram verdadei­
ramente sobrenaturais. Repartiam sua vida entre a oração,
a dedicação e o sacrificio. Sua abnegação, seu zelo pela gló­
ria de Deus eram admiráveis; frequentavam assiduamente a
sagrada mesa e cada comunhão aumentava-lhes enormc-
u O Senho1· anunciou um di& a Santa Matilde que lhe ia
moatrar o últhno dos eleitos: Era um ladrão, um malfeitor que
nunc& praticara. um& 16 bo& açio c que se convertera à últlm&
bor&. Paasara cem &nos no purgatório e apa.receu, à sant.&. extraor­
dlnâ.rlamente belo. (Revel&Ç6es de Sant& MaWde, I Parte, c:ap. 33).

276

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mente os tesouros espirituais. Passaram assim anos inteiros
na prática perfeita da caridade. Oh! se nos fosse dado con­
templá-las, se pudéssEmos suportar o brilho refulgente que
as envolve, compreender o vasto horizonte que se abre à
sua inteligência, os olhares penetrantes que lançam nos es­
petáculos divinos, nos segredos celestes; se pudéssemqs
sondar a profundeza de seu amor, a extensão e a intensi­
dade de suas alegrias intimas, como ficaríamos maravilha­
dos! E se víssemos as provas de ternura que Deus lhes
prodigaliza, grande seria nossa confiança no poder de sua
intercessão. E nada teremos a lhes dizer? Nós, que prolon­
gamos tão fàcilmente palestras fúteis, nunca havemos de
conv(,rsar com essas almas bem-aventuradas cujo único _de­
sejo é testemunhar-nos o carinho de seu "afeto? Elas já nos
amam com um amor celestial; como nos eleitos, sua in­
tensidade de amar varia segundo o grau de glória que lhes
é dado; sua caridade para conosco, simples consequência
de sua caridade para com Deus, atinge então proporções
que não podemos imaginar.
IIL Os Santos.
261. A linguagem humana é falha para exprimir as
coisas do céu. Já esgotamos, por assim dizer, as palavras de
admiração e estamos longe ainda dos degraus superiores
de escada celeste. Muito acima das almas perfeitas de que
acabamos de falar. estão aquelas que praticaram as virtu­
.des até ao heroísmo. E que energia de alma isto denota,
pois o heroísmo está em praticar, sem hesitação e com ale­
gria, - e em todas as ocasiões que se apresentarem - vir­
.tudes difíceis e superiores às forças comuns. Dissemos -
em todas as ocasiões que se apresentarem - e são mui
frequentes, para as almas de escol! No céu, veremos de
quantos sacrifícios, de quantas lutas ocultas e quiçá terri­
veis, de quantos atos admiráveis de renúncia se compõe o
dia de uma âlma santa. Em certos dias, sobretudo, o demô­
nio se enfurece de modo particular contra os Santos; então,
no espaço de uma hora, esses alcançam centenas de vitórias,
todas de alto valor. Suas provações duras e numerosas
277

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são aceitas com uma força de vontade sempre renovada,
com um ímpeto de generosidade de que os cristãos vulgares
nem sequer suspeitam. Que força de amor adquirem então!
Um Santo exclamando: "Meu Deus, eu vos amo", ou "Meu
Deus e meu tudo", fará este ato tão simples, com um amor
talvez mil vezes superior ao nosso quando pronunciamos
com sinceridade idênticas palavras.
E, quanto aos Santos do céu, que será deles! Qual a
sua riqueza, a sua beleza, o seu poder? Deus lhes c01n11-
nica a sua força, como lhes comunica o seu esplendor. Em
que medida receberão eles um e outro? Quando foi dado
a Santa Madalena de Pazzi ver a glória de que gozava a
alma de São Luís Gonzaga, esta Santa, a quem todavia
tinham sido reveladas tantas outras maravilhas, ficou en­
levada; nunca pensara, até então, que pudesse haver no
céu ·tamanha glória para os amigos de Deus.
262. Entre os Santos existem também inúmeros graus.
Os grandes fundadores de ordens religiosas, aqueles a quem
o Senhor confiou importantes missões, os Apóstolos, São
Paulo, São João, São Pedro, ocupam lugares privilegiados.
E que diremos de São José? São maravilhas e mistérios!
Mas como são cegos aqueles que, tendo no céu protetores
tão poderosos e tão prontos a lhes fazer o bem, deixam de
recorrer a eles ou só o fazem raras vezes e sem ardor!
Há Santos cujo culto se impõe e que devemos invocar
todos os dias. Há outros que devem ser invocados por quem
tem um direito especial a seus favores. São nossos padroei­
ros de batismo, os que levaram o mesmo gênero de vida
que nós, os da nossa diocese, ou família religiosa. E', prin­
cipalmente, nos dias de sua festa, quando toda a Igreja lhes
presta homenagem e nos convida a unir nossas orações ãs
suas, quando os habitantes do céu se juntam para felici­
Já-los e honrá-los, que devemos recorrer em particular ã
sua proteção. Nesse dia, o Senhor quer glorificar aqueles
de quem ele mesmo recebe tanta glória e presta um ouvi­
do mais atento aos seus pedidos, concedendo maiores gra­
ças às almas que confiam em sua intercessão.

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C,\PITULO XXXI
De Maria

ultar filia� con11n,:rwtru111 dl�lllas, t11 s1111rr,:rr�•


sa u uni�usos,
,\h1llu mulheres amon1oaram te1011ros, mu •6•
a lOdU superHltl (Pl'O\' 31, 29).

1. Maria, obra-prima de Deus e intermediaria ealre Deus e nós.

263. Almas piedosas, uni agora, em um pensamento,


todas as perfeições, todo o poder, toda a santidade, todo
o esplendor dos anjos e dos santos, cuja glória começais
a entrever. Juntai toda a magnificência desses milhares de
anjos e milhares de eleitos; alguns, - as criancinhas cei­
fadas no inicio da vida, - serão quais lâmpadas suaves e
vacilantes; outros, as almas generosas, quais braseiros ar­
dentes, ou vastos incêndios; os Santos, quais globos de fogo,
imensos como a terra e os planetas, e alguns, como São
Miguel, São Pedro, São José, terão um fulgor incomparável.
Pois bem, reuni em uma só fornalha todas essas chamas,
l·ssas luzes resplandecentes, e obtereis um admirável cla­
rão. Ora, tal fulgor e tal brilho desaparecem ao lado do
fulgor e do brilho da Rainha do céu, que, sàzinha, supera
cm belezas, em esplendor e em majestade o Paraíso todo.
Segui o mesmo critério em relação ao poder e à ciência
das perfeições divinas, ao conhecimento das grandezas e
dos segredos de Deus. Fareis assim uma fraca idéia daquilo
que contempla o olhar de Maria, olhar que abrai:ige mara­
vilhas maiores do que podem abranger todas as criaturas
celestes.
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Raciocinai igualmente sobre o amor, a bondade, a ter­
nura. Um eleito, de virtude comum, está no céu muito mais
abrasado de amor do que estava na terra, não sõmente por
Deus, mas por todos os entes queridos. As almas fervoro­
sas são ainda mais afetuosas. E os Santos? Maria, porém,
essa Mãe tão boa, tão terna, já amava a Deus no mundo,
e o ama agora, no céu, mais que todos os santos juntos
e ama-nos a nós também, com um amor que excede ao
de todos os anjos e eleitos.
O eleito é a gota de água; a alma perfeita, a ânfora
repleta; o Santo, o lago que transborda, e Maria, o mar que
cdntém mais água que todos os vasos e lagos reunidos.
Mas quão pobres são essas comparações, quão indignas
daqueles a quem as aplicamos!
264. Maria é obra-prima de Deus, obra-prima de seu
poder, de sua bondade, de sua sabedoria, só dele conhecida,
pois nenhuma criatura, .nenhum serafim, pode aprofundar,
nem cingir com o olhar todas as perfeições da Mãe de Deus,
que a criou como intermediária entre ele e nós. Teria podido,
sem dúvida, não nos ter dado tal mediadora e fazer-nos che­
gar a ele por outro caminho; preferiu, porém, dar-nos essa
Mãe celeste, que nos facilita maravilhosamente o acesso
junto de Deus. Segundo a visão do companheiro de São
Francisco, ela é a escada, resplandente de alwra, que nos
conduz ao Senhor. Aquele a quem fosse retirada a escada
se encontraria em apuros para subir apenas com o esforço
dos braços. Assim, sem Maria, seria para nós mui difícil
chegarmos ao trono de Deus.
Maria está toda impregnada de Deus, Deus é tudo cm
Maria e nada lhe chega senão com Deus e por Deus; não
ama e não vê, pois as coisas criadas senão em Deus e por
Deus. E' ·também em Deus que nos ama, e com uma in­
comparável força de amor que nada pode igualar. Seme­
lhante aos eleitos, e melhor do que eles, Maria não deseja
nos proporcionar satisfações passageiras e fúteis, e sim nos
ajudar a alcançar os bens imperecíveis e eternos, embora ao
preço das provações e das cruzes. Ama-nos, porque somos

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filhos de Deus, e vê, em nossas almas santificadas pela
graça, um reflexo da Divindade. Ama-nos, porque pode­
mos glorificar a Deus, e o amor incompreensível que tem
por esse Deus, a quem conhece perfeitamente, fá-la dese­
jar, com um desejo ardente, ver-nos proporcionar imensa
glória ao seu Filho amado, ao seu Deus.
E tudo quanto nos deseja, ela no-lo pode obter e sa­
he como no-lo obter e no-lo obtém de fato na medida em
que não pomos obstáculos aos seus favores. Deus Pai, com
efeito, revestiu-a de seu poder; Deus Filho encheu-a de
sua sabed9ria, associou-a à sua obra de salvação e à sua
realeza universal; o Espírito Santo abrasou-a de seu amor�
uniu-se a ela, vive nela, nela e por ela opera.

li. Nossos deveres para com Maria.

265. Nada façamos sem Maria. Não nos contentemos


com algumas orações em sua honra, com algumas palavras
que lhe dirigimos em ocasiões graves, · mas procuremo-la
constantemente. Maria pensa sempre em nós, seus olhos não
se afastam de nós. Recorramos a ela em nossas clificuldades,
cm nossas tentaçõos e não comecemos nenhum trabalho, não
façamos nenhum exercício de piedade, sem primeiro o con­
fiar a Maria; mas sobretudo não nos aproximemos de Jesus­
Hóstia sem nos fazer apresentar por ela. Maria anunciou
e preparou o Deus da Eucaristia, foi em seu seio que o
Verbo tomou o sangue do qual formou o seu próprio corpo;
é chegando-nos a ela, fonte bendita do sangue divino, que
nos preparamos para saciar-nos do sangue de Jesus, e
alimentar-nos de seu corpo sagrado.
Imploremo-la pela Igreja, pelos justos, pelos pecadores.
O mundo é muito culpado, e a terra transborda de impieda­
de, de blasfêmias, de revoltas contra Deus. Essas iniquida­
des· clamam vingança e o peso infinito da santidade divina�
da justiça divina, se prepara para esmagar os povos pre­
varicadores. Quem nos salvará? Será o Coração de Jesus?
Ele só deixará cair as torrentes de misericórdia que lavarão

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a terra, em resposta à súplica de uma voz pura e poderosa
de uma advogada eloquente com direitos a alegar e que,
por seus méritos, exerça sobre o Juiz um ascendente le­
gitimo e lhe aplaque a justa cólera.
Os anjos sofrem por ver ·seu Deus tão ultrajado e al­
mejam cobrir o espetáculo de tamanhos horrores, ocultan­
do-os ao olhar três vezes santo do Senhor do mundo; de­
sejariam, ao menos, com seu amor, abrandar-lhe a ira, mas
estão aquém de semelhante missão. Só Maria, a Virgem
puríssima, santíssima, a Virgem poderosa, a Mãe dos peca­
dores, acalmará o seu filho e conseguirá mais· urna vez a
salvação do mundo.
Não nos niostrou ela que devemos confiar em sua pro­
teção? Não despertou essa Virgem imaculada a fé e não
inflamou a caridade? Os peregrinos que vão orar nos san­
tuários de Lourdes, de La Salette, de Pontmain, de Pel­
levoisin, voltam melhores; os milagres que ela opera, res­
tituindo a saúde aos enfermos, são as menores de suas gra­
ças; o bem que faz às almas é um prodlgio muito maior.
Já implorais a Maria, piedosos leitores, e seria portan­
to Supérfluo insistir sobre este ponto. Deixai-me, todavia,
dizer-vos que vossa confiança se dilatará à medida que lhe
conhecerdes as grandezas e a bondade. Estudai-a bem, re­
cordai-vos sempre da imensidade de seus méritos, da su­
blimidade de sua sabedoria, da extensão de seu poder, da
viveza, da intensidade, da força, da ternura de seu amor, e
vossas orações serão mais ardentes e mais eficazes.
A imensidade de seus méritos provém das luzes que ela
recebeu e da capacidade de amor que lhe foi dada desde
a sua conceição e que de início foi muito superior à dos mais
excelsos serafins. E essa potência de amor foi sempre au­
mentando. Maria foi esclarecida, de modo inconcebível, so­
bre a grandeza e as amabilidades do Altíssimo. O Senhor,
é verdade, não lhe revelou todas as coisas; vemos, pelo
Evangelho, que certos atos na vida de seu Filho, como o
desaparecimento no templo, foram mistérios para ela. Era
necessário que a Mãe de tantos aflitos conhecesse a incer-
282

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teza e a angi1stia. Mas Maria sempre teve luzes incompará­
veis sobre as verdades que auxiliani o mérito, que permi­
tem atos sublimes de caridade. E ar está o princípio de
suas grandezas e a causa de seu poder.
Bastará então dirigirmos nossas orações a Maria?
Existem almas que parecem põr na súplica toda a sua de­
voção para com essa boa Mãe. Tal devoção é incompleta.
Devemos pagar-lhe nossa dívida de reconhecimento, fe­
licitá-la pela sua grandeza, regozijar-nos com sua felicidade
e proporcionar-lhe alegrias suaves, imitando-lhe as virtudes.
Foi Maria quem, depois de Deus, mais nos cumulou
de benefícios, pois foi ela quem, depois de Deus, mais nos
amou, e seu amor é o mais poderoso e o mais eficaz. De
quantos perigos nos preservou! Quantas inspirações boas,
quantos estímulos e quantas carinhosas repreensões nos vie­
ram dela ou por ela! Quantas graças de luz e de força pe­
diu e obteve para nós! No céu o havemos de saber; não es­
peremos, porém, até lá para lhe dizer nossa gratidão.
A gratidão, acrescentemos o testemunho de nossa ad­
miração, honremos-lhe a dignidade, rendamos glória às suas
extraordinárias qualidades e grandezas.
Uma das grandes alegrias celestes será venerar Maria,
exprimir-lhe nosso respeito, felicitá-la pelos dons que lhe
foram concedidos, e desde já este dever nos deveria ser mui
suave. Assim o compreende a Igreja, e bastaria dizermos
do fundo do coração as palavras que ela nos sugere para
cumprirmos dignamente com este dever. A oração predileta
que a Igreja dirige a Maria é tão bela quanto comovente.
E' uma oração vinda do céu, pois é a repetição da mensagem
enviada pelo Pai celeste à sua Filha bem-amada. Começa
por um louvor às suas grandezas: Ave Maria grafia pleno,
Dominus tecum, benedicta tu in mulieribus et benedictus
fructus ventris tui, Jesus. E' só depois de havermos felicitado
a Santíssima Virgem pelos seus privilégios, depois de nos ter­
mos alegrado com sua dignidade, que lhe pedimos, com uma
simplicidade enternecedora, para rogar por nós, pobres pe­
cadores, agora e na hora de nossa morte.
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Ah! regozijemo-nos com sua felicidade. Não a pode­
mos avaliar, é certo, mas devemos lembrar-nos de que a fe­
licidade consiste na contemplação das belezas divinas e no
amor satisfeito. Então Maria, que penetra tão fundo no co­
nhecimento das infinitas belezas de Deus, e o ama com tão
intenso amor, goza de uma satisfação que ultrapassa de muito
a satisfação de todas as criaturas juntas. Oh! quão doce
é este pensamento ao coração do cristão que preza sua
Mãé! E, entretanto, ele pode ainda dilatar essa felicidade,
pois, à alegria essencial de que goza Maria, pode acrescen­
tar prazeres acidentais pela prática d� virtude e pela glória
que rende a Deus.
Se Maria ama a Deus com um amor sublime, tudo quan­
to for feito por Deus lhe causará uma alegria viva e de­
licada, mais viva e mais delicada que o júbilo causado aos
bem-aventurados. E se ela nos ama com um amor carinho­
síssimo e todo sobrenatural, deleita-se mais que o nosso anjo
da guarda, mais que os nossos pais e amigos, no bem que
nos vê praticar e que deve aumentar nossa felicidade por
toda a eternidade. Proporcionai a Maria alegrias tão suaves,
almas cristãs, mostrai-lhe, por generosos sacrifícios, pelo
exercício das mais árduas virtudes, que nada vos custa
em se tratando de lhe agradar. Então, mais que nunca, ex­
perimentareis os efeitos de sua poderosa proteção.

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CAPITULO XXXII
De Jesus
ln q110 sunt omnrs llltn11ri ·'"l'irnlia� ,t scitntlat
abscomlltl.
\ln, Jcsu& Crlslo �slilo cn«rr11das lodos n� 1esu11ru1
da sabedoria e da cifncla (CI 2, 3).

1. · Maravilhoso poder de sua lntelliêacia.

266. Aprendemos a amar melhor a Maria, conhecendo­


ª melhor. Procuremos compreender agora as grandezas e
as amabilidades de seu divino Filho e o amor que lhe te­
mos aumentará igualmente.
Para conhecermos a alma de Jesus, estudemos em pri­
meiro lugar a sua inteligência (1), faculdade esta que im­
prime às demais o seu valor. A própria vontade, potência
tão nobre, que ama, que se dedica, que merece, que é o prin­
cipio de toda virtude, acompanha a inteligência, pois só
amamos aquilo que conhecemos; deve mesmo haver certa re­
lação de intensidade e de extensão entre o conhecimento e
o amor.
Jesus possuía a plenitude da verdade, plenum veritatis,
diz São João. Quanto difere nisto dos outros homens! Tan­
tas verdades nos escapam e são tão poucas as que possuí­
mos. "0 que sei, deve dizer todo homem sensato, é que
quase nada sei. As verdades que conhecemos foram adquiri­
das lenta e penosamente, e nossa memória é incapaz de re-
1) Sob1·e a ciência da alma humana de Jesus, ver Monsabré,
Quaresma 18'19. Ch. Sauvé, Juus Intimo, cap. VI. E' um doa melho­
res capitulos deste excelente trabalho. ·

285

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1ê-las todas. A ciência humana, já tivemos ocasião de dizer,
desaparece ao lado da ciência angélica, que não foi adquiri­
da nem pelo estudo nem pela observação, mas foi infundida
diretamente por Deus e que, não estando ligada a oração
alguma, escapa às falhas da memória. Deus pode comuni­
car a uma inteligência criada uma soma tão vasta de conhe­
cimentos, que, ao seu lado, toda a ciência adquirida pelo
maior gênio humano que estudasse durante séculos a fio,
sem nada esquecer, seria diminuta. Existem anjos, cuja
formidável inteligência pode reter e cingir num só olhar uma
quantidade de verdades e de fatos que ultrapassam tudo
quanto poderíamos aprender sucessivamente no decorrer de
uma longa vida. Mas a inteligência de jesus é imensamente
superior à dos anjos mais perfeitos; é um abismo profundo
onde podem entrar e manter-se à vontade todos os conheci­
mentos angélicos e humanos.
A missão de Jesus não podia exigir menos. A cada ser,
Deus fornece as luzes necessárias para se desempenhar do
papel que lhe foi confiado. Ora, nos deslgnios de Deus,
Jesus, primogênito de toda criatura, é-lhes o modelo e o ideal
acabado. Dele dimana tudo, a ele tudo se refere. E' o re
dos anjos e dos homens. Dele provêm todos os nossos mé­
ritos, por eles nos são concedidas todas as graças; tudo quan­
to é nosso lhe pertence. Ele deve por conseguinte conhecei
tudo quanto nos diz respeito. Omnia vestra sunt, vos autem
Christl.

D. Operaç6es celestes da alma de Jesus,

267. Havia na alma de nosso Senhor três ciências: a


ciência celeste ou beatifica, a ciência infusa ou angélica, a
ciência humana ou adquirida. A ciência celeste, que é a vi­
são de Deus contemplado face a face, pertence-lhe de direi­
to. Filho de Deus, não por adoção, mas por natureza, nãc
podia deixar de ver a seu Pai. Esta visão intuitiva, de qm
gozam os hem-aventurados, foi-lhes merecida pelo Cristo que

286

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sendo-lhe o princípio, não podia ficar privado daquilo que
ele mesmo dá.
Desde o primeiro momento da Encarnação, a alma bem­
aventurada de Jesus gozou da visão divina; no presépio,
e mesmo no seio de Maria, a alma de Jesus via Deus face
a face e possuía, em grau inexcedível, esse conhecimento
da Santíssima Trindade que é uma fonte inesgotável de jú­
bilo e de amor; não que conhecesse a Deus como Deus se
conhece a si mesmo, pois essa ciência infinita é só passi­
vei à natureza di'Vina, mas via-o tão perfeitamente como o
vê agora, e penetrava tão a fundo no abismo das perfeições
divinas como jamais seria dado fazer aos eleitos, aos espíritos
angélicos e a Maria, sua santíssima Mãe. Assim, de todo tem­
po, mesmo quando as outras partes de sua alma estavam
entregues a dores incalculáveis e sem limites, na parte su­
perior da alma realizavam-se fenômenos inefáveis e celestiais.
Em Deus, a alma de Jesus via se não todos os seres
passiveis, pois esses, sendo sem número, só uma inteligência
infinita os poderia abranger, mas os seres criados; via o
mundo natural tão vasto, tão belo, tão bem ordenado; via o
mundo sobrenatural, as almas justas, os anjos, os Santos
presentes e futuros, via-se a si mesma, mais bela que todos;
via que, por um s6 ato, glorificava mais a Deus que todas
as criaturas possíveis durante uma eternidade de amor.
Em Deus, a alma de Jesus via, sem se perturbar, a
Paixão com todas as circunstãncias e consequências ineren­
tes; via o bem que Deus sabe tirar do mal, a bondade, a
justiça, a misericórdia, a sabedoria divina na salvação dos
homens; as obras de santificação, os sacramentos, a Igreja
e todo o bem que seus méritos iam produzir enquanto duras­
se o mundo.
Os olhos dos homens não viram, seus ouvidos não ouvi­
ram, seu coração não pode conceber o que a alma de Jesus
via, nem a alegria que o inundava, nem o amor de que ar­
dia pela Divindade.

287

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m. Ciência infusa, amor Hvre e meritório da ahna de Jesus.
268. Mas esse amor celeste não podia merecer, por­
quanto o amor que provém da visão de Deus impõe-se ir­
resistivelmente. Ora, Jesus devia merecer. Além, pois, desse
amor que tinha por seu Pai e por nós, amor que procedia
do conhecimento beatífico, a alma de Jesus tinha outro amor
por seu Pai e por nós, amor livre e meritório, que procedia
de outro gênero de conhecimento. Podemos dizer que ele
teve duas formas de amor, livres e meritórias, o amor an­
gélico e o amor humano, porque, além da visão beatífica,
Jesus teve duas formas de conhecimento, o conhecimento
angélico e o conhecimento humano. Teve a ciência angélica,
que o Pai eterno não podia recusar à alma de seu Filho, já
que a concedeu não só aos anjos e a todas as almas hu­
manas quando a morte as separa do corpo, mas também,
e muitas vezes, a seus amigos ainda presos nos laços da
carne. Graças a essa ciência, não houve interrupção na vida
meritória de Jesus. Ele mereceu no seio de Maria, mereceu
em sua infância, mereceu durante o sono, pois nada in­
terrompe uma vida que não depende dos órgãos corporais.
Quantos conhecimentos estavam encerrados nessa ci­
ência infusa? Por ela, Jesus conhecia a Deus, não lhe pe­
netrando a natureza, o que é próprio da visão intuit�va,
mas contemplando-lhe as perfeições com uma maravilhosa
sagacidade, antevendo os povos e os indivíduos de todas as
gerações e de todos os países. Se, em uma longa viagem,
encontrando gente tão diversa, nos lembrarmos que só vi­
mos uma parte· ínfima da atual geração, ficaremos impres­
sionados com a quantidade imensa de seres humanos que
Deus criou e pelos quais Jesus quis morrer. Ora, a alma hu­
mana de Jesus pela ciência infusa conheceu todas essas al­
mas, com seus pecados e seus méritos, e as menores cir­
cunst.ãncias de sua vida. Jesus conheceu assim todas as
gerações da terra, passadas e futuras, e conheceu-as por­
que devia resgatá-las.
A ciência angélica, derramada na alma do Salvador, di­
feria da ciência celeste; os seres que lhe manifestava, e

288

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que sua alma via como que em um segundo quadro, não
lhe produziam a mesma impressão. Tudo quanto via em
Deus, pela ciência intuitiva, sõ lhe podia causar alegria.
Nas perfeições divinas, na justiça, na santidade de Deus via
sua própria Paixão e só lhe podia ser motivo de júbilo ver
essas perfeições divinas e todos os seus efeitos. Mas os ob­
jetos que via em si mesmo, pela ciência infusa, causavam­
lhe prazer ou tristeza, conforme a natureza de cada um.
269. Se houve, portanto, novas e indescritíveis alegrias
na alma de Jesus, houve, também, indizíveis sofrimentos.
Para compreender as alegrias e as dores do Coração
de Jesus, é necessário compreender o seu amor. O amor
é algo de grande, é um dom precioso que Deus fez às mais
nobres de suas criaturas. A estas, Deus deu em primeiro
lugar a inteligência, depois acrescentou-lhes o amor, não
querendo que permanecessem inertes diante do bem. Mas
estas duas qualidades não são concedidas a todos igual­
mente; há espíritos limitados, há outros perspicazes; assim
também há corações frios e há outros afetivos. Ora, Oeus
jamais criou um coração tão terno como o Coração de Jesus,
e seu amor, semelhante à sua ciência, ultrapassa o de to­
das
· as criaturas juntas.
Mais vale calar-nos que procurarmos, por meio de mi­
seras palavras, por uma fraca idéia do amor livre e meritõ.­
rio que o Coração de Jesus teve pelo Pai celeste e pelo
Espírito Santo, amor substancial do Pai e do Filho. Mais
vale também calar-nos que procurarmos exprimir o amor livre
e meritório da alma de Jesus pela sua Mãe santíssima e por
todos nós. Quem jamais nos desejou tanto bem? Quem se
sensibilizou tanto pelos nossos males? Quem se alegrou
tanto com a nossa felicidade?
A medida que crescem o conhecimento e o amor, mais
vivas são as alegrias e mais amargas as tristezas. As dores
que Maria sofreu em vida foram tantas que a tornaram
Rainha dos mártires, porquanto, sendo seu amor maior que
o amor dos anjos e dos homens, sua aflição também foi
maior do que tudo quanto estes pàderiam sofrer, foi vasta
289

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como o Oceano: Magna est velut mare contritio tua (Lam 2,
13). E que pensar, que dizer, de Jesus? Pela ciência infusa
conhecia melhor a Deus do que Maria e do que todos os
seres juntos, e o amava com insuperável amor; quanto deve
ter sofrido, por conseguinte, ao vê-lo desconhecido, ofen­
dido por criaturas rebeldes! E não era sômente a visão ge­
ral das iniquidades do mundo que afligia a alma de Jesus,
pois a ciência infusa lhe dava a conhecer claramente os
menores pecados dos homens, e cada um desses pecados
causava-lhe novo sofrimento. Quanto sofreu, portanto, ao
ver as nossas resistências à graça, as nossas inúmeras fal­
tas; ao contemplar a perda e a condenação eterna de tan­
tas almas! Sua incomensurável potência de amor tornou-se
uma incomensurável potência de dor.
Como se alegrou também à vista de nossas boas obras,
das virtudes heróicas dos Santos, da multidão inumerável
de almas salvas por seus méritos? No céu, acabados os so­
frimentos, perduram as alegrias causadas, como nos dias
de sua vida mortal, pela nossa generosidade e pelas nossas
virtudes. Agora, como então, essas alegrias são tão vivas
quanto viva é a afeição que nos tem. Oh! como se alegra
o nosso bom Jesus, quando praticamos o bem, como se
regozija com a idéia de que um dia estaremos com ele.
felizes de uma felicidade sem nuvens, e de que poderá sa­
tisfazer então o seu amor e inundar-nos de benefícios!

IV. Clê:nda humana de jesus.


270. Em sua vida terrestre, a alma de Jesus fruía, pois,
na parte suprema, de todos os privilégios dos eleitos e pos­
suía, na parte superior, todas as luzes que possuem na�
turalmente os anjos; mas como era uma alma humana, sua
vida, na parte inferior, se assemelhava à nossa; instruía-se
pouco a pouco, adquiria lentamente e por experiência o
conhecimento das pessoas e das coisas, "crescia em sabedoria,
em idade e em graça çliante de Deus e dos homens" (Lc
2, 52). Cumpre tennos uma idéia exata sobre essa ciência
290

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experimental da alma de Jesus, para avaliarmos os misté­
rios de sua vida.
Nada é mais interessante que o despertar da inteligên-·
da na criança. A principio não tem noção alguma. Sbmente
depois de um ou dois dias, os olhos começam a ver, sem
discenir os objetos; já no primeiro dia, é verdade, os ouvidos
ouvem, mas os ruídos são confusos. A inteligência está por
assim dizer inexistente; não pode raciocinar, nem sequer
formar o mais leve juízo. Com o andar do tempo, a criança
distingue o agradável do desagradável; é esta talvez a pri­
meira idéia que, graças à experiência e graças à lingua­
gem e aos gestos da mãe, se introduz no espírito da cri­
ança. Então compara as coisas, descobre-lhes qualidades
comuns, e, sem saber, generaliza; percebe que há coisas
hoas e coisas más, seres carinhosos para com ela, sua mãe
e seu pai, e outros que lhe parecem malévolos e lhe ins­
piram medo. De quanto tempo precisou para adquirir essa
ciência rudimentar! Pobre inteligência humana de que tau­
to se ufanam certas pessoas! Tão tardia em se manifestar;
tão fraca em seus primeiros surtos, tão pouco profunda
e incerta em seus primeiros raciocínios.
Ora, nosso Senhor fez-se filho dos homens, devendo
portanto assemelhar-se em tudo a seus irmãos, unde debuit
per omnia fralribus .i:imilari (Heb 4, 17). "Para melhor com­
padecer-se de nossas enfermidades, experimentou-as a todas,
exceto o pecado" (Heb 4, 15). Filho de Deus que era, não
podia deixar de ser maravilhosamente esclarecido; mas, ao
mesmo tempo, por um prodígio tão comovedor quão su­
blime, na parte inferior de sua alma, ignorava muitas coisas;
aprendia a conhecer sua Mãe, seu pai adotivo, seus ccnn­
panheiros de idade, os habitantes de Nazaré, os lugares
onde decorria a sua infância. Gaguejava aquele que, se
quisesse, podia desde então restituir a palavra aos mudos;
ensaiava os primeiros passos, cambaleando e caindo como
toda criança, aquele que podia curar coxos e paralíticos.
Mais tarde, recebia as lições de José, que lhe ensinava seu
ofício, sendo aprendiz antes de ser operário. Durante sua
291

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vida pública, por vezes mostrava a ciência sobrenatural
que possuía, mais vezes ainda não fazia uso, em sua vida
exterior, senão de seus conhecimentos experimentais e por­
tava-se como os olltros homens; por isso ele admirou com
uma surpresa genuína a fé do centurião e a humildade da
mulher cananéia.

V. O Homem-Deus.

271. Tal foi a alma de Jesus, tal o instrumento maravi­


lhoso de que se serviu o Verbo divino para reparar a ofen­
sa feita à Santíssima Trindade e salvar as nossas almas,
pois essa alma eminentemente santa não se pertence. Assim
como meu corpo e meus membros são meus, e posso dizer:
trabalho com minhas mãos, leio com meus olhos, assim tam­
bém o Verbo podia e pode ainda dizer: "Eu vos amo pela
minha Divindade com um amor comum às três Pessoas di­
vinas, e vos amo pela minha Humanidade. Fui eu quem, em
meu corpo e em minha alma humana, sofreu por vós, fui
eu, Verbo eterno, quem orou por vós, quem mereceu por
vós pela alma santa que tomei no dia de minha Encarnação.
Hoje, na morada da glória, deleito meus fiéis pela graça
de minha Humanidade e pela glória infinita de minha Di-
vindade".
Que júbilo causa aos eleitos a visão da alma de Jesus,
oceano de perfeições que os mais excelsos anjos não po­
dem aprofundar, e que, todavia, são um simples reflexo das
infinitas perfeições da Divindade! Os eleitos vêem a Deus
em si mesmos e são iluminados e transfigurados diretamente
pela Trindade santa, que a eles se une, de modo inefável;
então em cada bem-àventurado vê-se a Deus e Deus é tudo
em todos, segundo a palavra da Escritura. Mas, ao mes­
mo tempo, experimentam uma alegria indizível em contem­
plar a Humanidade glorificada de Jesus que lhes comunica
luzes suaves e cintilantes. Dedicam-lhe um amor ardente,
e esse amor satisfeito pelas relações íntimas que existem
entre eles e essa santa Humanidade causa-lhes uma felici-
292

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dade transcendente. Essas luzes, esse amor, essa felicidade
se unem tanto mais harmoniosamente às luzes que recebem
sobre a Santissima Trindade, ao amor que sentem por Deus,
à felicidade que gozam em Deus, quanto contemplam aber­
tamente a união íntima e pessoal dessa Humanidade gloriosa
com o Verbo divino.
Conheceis bem o vosso Jesus, piedosos leitores? Estu­
dastes todos os tesouros de seu Coração? Quem o conhece
bem, não pode permanecer muito tempo sem se voltar a efo,
sem o admirar, sem nele se comprazer, sem se regozijar
cm ter um tal amigo. Amigo, na verdade, pois assim se cha­
mou: Vos autem dixi amicos. "Viver sem Jesus, diz o autor
da Imitação, é um infernoj viver com Jesus é um paraíso sua­
ve". (Liv. II c. 8). Ai daqueles a quem não persegue a lem­
brança de Jesus! Não conh.ecem tal qual é, e, porque pouco
o conhecem, não podem, senão imperfeitamente, compreen­
der os mistérios de sua vida e de sua morte. Mas a quem
foi dado conhecê-lo, não se cansa de contemplã-lo. A sim­
ples lembrança de sua infância, de sua pregação evangélica,
de seus benefícios, de sua Paixão, enche-lhe o coração de
sentimentos que não sabe exprimir. Então as preocupações
�errenas não chegam a perturbã-lo nem os males do mundo
a intimidá-lo, enquaato as provações são-lhe fáceis de su­
portar. Tais almas vivem na esperança de possuí-lo um dia,
no desejo de agradecer-lhe, no consolo de amá-lo e de serem
por ele amadas.

VI. Conclusão.

272. Quantas maravilhas cercam por todos. os lados o


mundo sobrenatural em que vivemos! A maior parte dos ho­
mens, porém, pouco se preocupam com elas. Não nos é
dado ver esses seres belos, inteligentes, poderosos e cheios
de afeto e, para mantermos com eles relações íntimas, ca­
recemos de uma fé viva e esclarecidaj mas essa fé aumentará
se a soubermos exercitar. Recordemos, portanto, e a miúdo,
as qualidades desses amigos invisíveis, enlretenhamos com
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des suaves colóquios, mas principalmente aproveitemo-nos
deles para chegarmos a Deus. Quem galga repetidas vezes
os degraus da escada celeste, quem se compraz em elevar­
se assim de maravilha em maravilha, fará uma idéia menos
grosseira do mundo invisível, fará, sobretudo, uma idéia
menos imperfeita de Deus e de suas infinitas grandezas. E
como a piedade se baseia no conhecimento de Deus, a alma
alcançará com maior segurança uma piedade sólida (1).
Transportai-vos, portanto, e com frequência, almas cris-
1às, seja no início das orações, seja no decorrer do dia, para
o mundo dos eleitos; percorrei, sucessivamente, guiadas
µtia visão de fé, as diversas classes que constituem esses
bem-aventurados habitantes do céu; subi, subi ainda, subi
até Maria, depois até Jesus. E Jesus, o Homem-Deus, vos
abrirá os esplendores da Divindade.
1) Sobre as grandezas de Deus ver d'Argentan. COnfe1-ênciu;
:Monsa.bré, Quareama 1814; Leaaius. A.s perfelc;ões divinas.

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APENDICE

Dos atributos de Deus

273. Nossa tarefa está terminada. Indicamos o cami­


nho que leva a Deus. Permita-nos o leitor acrescentar aqui
um apêndice, no ql!al resumiremos o que a ciência sagra­
da nos ensina sobre esse grande· Deus. Há noções que toda
alma piedosa deve possuir, e que lhe devem ser familiares,
a fim de que possa cingi-las numa visão de conjunto e nelas
se deleitar. Falamos alhures (1) das altas luzes de fé que
Deus concede às almas generosas e que nem sempre em­
polgam de súbito, mas antes requerem que a alma se dis­
ponha a recebê-las. Julgamos que nesses casos o conhecimento
dos atributos de Deus pode ser de uma grande utilidade.

1. A obra de Deus no mundo visivel.

274. Iniciamos este pequeno tratado peta exposição


sumária da obra de Deus, tal qual se apresenta aos nossos
olhares. E' qual outra escada, a escada da natureza, menos
brilhante que a celeste, de que acabamos de falar, porém
mais sensível, pela qual também podemos elevar-nos até à
Divindade. Não se refletem, como diz São Paulo (Rom 1, 20),
üS atributos invisíveis de Deus sobre a criatura? Alguns
autores salientaram a sabedoria divina na obra da criação;
poder-se-iam escrever sobre estes assuntos numerosos vo-
1) O estado míslico, n.0 170.

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lumes sem esgotar a matéria. Citaremos, porém, para dar uma
idéia das maravilhas que nos oferece o mundo terrestre, al­
gumas páginas de um dos maiores escritores franceses, Fé­
nelon, em seu belo Tratado da existência de Deus.
275. "Quem suspendeu este globo da terra, que é imó­
vel? Quem lhe colocou as bases? Nada parece tão vil quanto
a terra, que é calcada pelos mais desgraçados. Entretanto,
é para possuí-la, que se despendem os maiores tesouros.
Se fosse mais dura, o homem não lhe poderia abrir o seio
para cultivá-la; se fosse menos dura ela não o poderia sus­
ter e o homem afundaria por toda parte, como afunda na
areia ou no lodaçal. E' do seio inesgotável da terra que
sai tudo quanto há de mais precioso. Esta massa informe,
vil e grosseira, reveste multiplices formas, e só ela se torna,
alternativamente, em todos os bens que lhe pedimos. Esse
barro tão sujo transforma-se em mil objetos lindos, que nos
encantam os olhos. Em um só ano será ramos, botões, fo­
lhas, flores, frutos e sementes, para renovar suas liberalida­
des em favor dos homens. Nad.a a esgota; quanto mais se
lhe rasgam as entranhas, mais generosa se torna. Passados
tantos séculos, em que tudo dela saiu, ainda não está
gasta nem sente a menor velhice; suas entranhas contêm sem­
pre os mesmos abundantes tesouros. Mil gerações passa­
ram pelo seu seio, tudo envelhece, exceto ela, que todos
os anos rejuvenesce na primavera.
"Tudo quanto a terra produz, ao corromper-se, volta
ao seu seio, tornando-se o germe de uma nova fecundidade.
Toma tudo quanto deu, para devolvê-lo novamente. A cor­
rupção das plantas e os excrementos dos animais, por ela
alimentados, alimentam-na por sua vez, perpetuando-lhe a
fertilidade. Assim é que quanto mais dá, mais toma, sem
jamais se esgotar, conquanto saibamos, pela cultura, res­
tituir-lhe o que nos deu. Tudo lhe sai do seio, tudo a ela
torna, onde nada se perde. As sementes que voltam, mul­
tiplicam-se. Confiai à terra grãos de trigo; ao se decompo­
rem, germinarão, e essa mãe fecunda vos devolverá mais
espigas do que grãos recebidos. Cavai-lhe as entranhas e en-
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contrareis pedras e mármores para os mais soberbos ediffcios.
Mas quem Jhe encerrou no seio tamanhos tesouros, com a
condição de se reproduzirem continuamente? Vede tantos
metais preciosos e liteis, tantos minerais destinados ao uso
do"homem.
276. "Admirai as plantas que brotam da terra; for­
necem alimentos aos sãos e remédios aos enfermos. Suas es­
Jlédes e suas virtudes são de uma variedade sem fim; en­
feitam a terra; produzem folhagens, flores odoriferas e fru­
tos deliciosos. Vêdes as florestas que parecem antigas como
o mundo? As raízes de suas ãrvores se fixam na terra, en­
quanto os galhos se elevam aos céus. Essas raízes defen­
dem-nas contra os ventos e, quais pequenos tubos subter­
râneos, vão em busca dos sucos destinados a alimentar o
tronco; este, por sua vez, reveste-se de uma dura casca, a
fim de abrigar o cerne delicado contra as asperezas do ar,
e os galhos distribuem pelos canos a seiva que as raízes re­
imiram no tronco. �o verão, esses ramos nos protegem com
sua sombra contra os raios solares; no inverno alimentam
a chama que nos conserva o calor natural. Seu lenho é não
sómente litil para o fogo, mas é ainda uma matéria maleãvel,
embora sólida e resistente, à qual a mão do homem dã sem
dificuldade as formas que lhe agradam, para os mais im­
portantes trabalhos de arquitetura e da navegação. De mais,
as ãrvores frutiferas, baixando os galhos à terra, parecem
oferecer seus frutos ao homem. Arvores e Plantas, deixando
cair frutos ou sementes, preparam em redor de si numerosa
posteridade. A planta mais fraca, o legume mais insignifi­
cante contém em pequeno volume, numa semente, o germe
de tudo quanto ostentam as plantas mais frondosas e as ár­
vores mais gigantescas. A terra, que nunca se transforma,
opera em seu seio todas essas transformações.
277. "Consideremos agora aquilo que chamamos água.
E' um corpo liquido, claro e transparente, que ora corre;
escapa, foge; ora toma todas as formas dos corpos que o
circundam, não a tendo nenhuma por si mesmo. Fosse a água
um pouco mais rarefeita, e se tornaria uma espécie de ar;

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toda a face da terra seria então seca e estéril e só haveria
animais voláteis, pois nenhum animal poderia nadar, ne­
nhum peixe poderia viver; tampouco haveria comércio pela
navegação. Que mão engenhosa terá sabido condensar a
água, subtilizando o ar, e distinguir tão bem esses dois
corpos fluidos?
Fosse a água um pouco mais rarefeita, e não poderia
suster esses prodigiosos edifícios flutuantes que se chamam
navios e os mais leves corpos afundariam logo.
Quem cuidou de escolher uma tão justa configuração
das partes, e um grau tão precioso de movimento, para tor­
nar a água tão fluida, tão insinuante, tão própria a fugir,
tão incapaz de consistência, e, entretanto, tão forte para
carregar, e tão impetuosa para arrastar as mais pesadas
massas? E' dócil; o homem dirige-a como um cavaleiro a
seu cavalo, pela ponta das rédeas; distribui-a conforme lhe
agrada; eleva-a sobre montanhas escarpadas, e serve-se de
seu próprio peso, para fazê-la produzir quedas, que a leva­
rão a subir tanto quanto desceu. Mas o homem, que, so­
branceiro, dirige as águas, é, por sua vez, po_r ela dirigido.
A água é uma das maiores forças motrizes de que o homem
dispõe para suprir, nas artes as mais necessárias, ao que
lhe falta, cm virtude da pequenez e fraqueza de seu corpo.
"Mas essas águas que, não obstantes sua fluidez, são
massas compactas, elevam-se acima de nossas cabeças, per­
manecendo suspensas por largo tempo. Vedes essas nuvens
que voam, levadas nas asas dos ventos? Se viessem a cair
repentinamente, em grossas colunas de água, rápidas como
torrentes, tudo submergiriam e destruiriam no local de sua
queda, enquanto as outras terras ficariam estéreis. Que po­
der as mantém nesses reservatórios suspensos, não lhes per­
mitindo cair senão gota a gota, como se alguém estivesse
a distilá-las de um regador?
"Assim a água desaltera não sómente o homem, mas
ainda os campos áridos, e aquele que nos deu esse corpo
fluido, distribuiu-o com tanto cuidado sobre a terra como
os canais de um jardim. As águas caem das altas mon-
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tanhas onde estão colocados seus reservatórios; nos vales,
formam ribeiros, depois os rios que serpeiam pelos vastos
campos para melhor regá-los e, por fim, se precipitam no
mar. As águas, distribuídas com tanta arte, circulam na
terra, como o sangue circula no corpo humano.
278. "Tendo considerado as águas, examinemos agora
outras massas, mais extensas ainda. Vedes aquilo que se
chama ar? E' um corpo tão puro, tão subtil e tão transpa­
rente, que os raios dos astros, situados a uma distância qua­
se infinita da terra, o atravessam instantâneamente sem a
menor dificuldade a fim de nos iluminar os olhos. Um pouco
menos de subtileza nesse corpo fluido nos teria roubado a
claridade, ou nos deixado uma luz fraca e confusa, qual
o ar carregado de espessa neblina. Vivemos mergulhados
nos abismos do ar, como os pei:X:es nos abismos da água.
Assim· como a ãgua, se fosse subtilizada, se tornaria numa
espécie de ar, que mataria os peixes, o ar, por seu lado, nos
privaria da respiração, se se tornasse mais espesso e mais
úmido e haviamas de perecer nessas ondas de ar conden­
sado, como o animal terrestre parece no mar. Quem terá
purificado com tanta precisão esse ar que respiramos? Fosse
mais espesso e nos sufocaria; fosse mais subtil e não pos­
suiria essa doçura que o torna num alimento constante
para a vida humana. O homem experimentaria então e por
toda parte o que experimenta nos cimos das altas montanhas,
onde o ar rarefeito não é suficientemente í1mido e nutri­
tivo para os pulmões.
"Mas que poder invisivel excita e acalma de súbito as
tempestades desse grande corpo fluido, e que trazem como
consequência as tempestades do mar?
"De que tesouro saem os ventos, que purificam o ar, que
abrandam as estações ardentes, que temperam o rigor do in­
verno, transformando num instante o aspecto do cêu? Le­
vadas nas asas desses ventos, as nuvens voam de uma a ou­
tra extremidade do horizonte. Sabemos que certos ventos
reinam cm certos mares em determinadas estações, e por
determinado tempo a serem sucedidos por outros, como que

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propositadamente para tornar as estações mais fáceis e re­
gulares. Fossem os homens pacientes e pontuais como oS
ventos, e poderiam empreender, sem receio, as mais longas
viagens.
279. "Vedes o fogo que parece estar aceso nos astros,
a irradiar a luz por toda parte? Vedes a chama lançada
por certas montanhas, e que a terra, em suas entranhas,
alimenta de enxofre? O homem soube acender esse mesmo
fogo e utilizar-se dele continuamente. Emprega-o para ver­
gar os mais duros metais; emprega-o para, com a lenha,
entreter, mesmo nos climas gélidos, uma labareda que lhes
substitua o sol que se afasta. O fogo empresta sua força
à fragilidade dos homens, e, num relance, arranca edificios
e rochedos. Mas, se lhe quisermos restringir o uso,- aquece
o homem e lhe coze os alimentos. Os antigos, admirando
o fogo, julgavam-no um tesouro celeste, que o homem
roubara aos deuses.
28 0. "E' tempo de levantarmos os olhos ao céu: Que
poder terá construido, acima de nossas cabeças, uma abó­
bada tão vasta e tão majestosa! Que admirável variedade
de objetos maravilhosos! Por vezes, vemos um azul som­
brio onde brilham as luzes mais puras; outras vezes, num
céu temperado, são suavíssimos tons, cujas nuanças a pin­
tura não pode copiar; outras vezes ainda, são nuvens que,
revestindo formas variadas e cores vivas, modificam a ca­
da instante a decoração celeste pelos mais deslumbrantes
efeitos de luz.
281. "Que significa a sucessão regular dos dias e das
noites? O sol, nesses longos séculos, nunca deixou de servir
aos homens, que dele não prescindem. Há milhares de anos
que a aurora nem uma só vez deixou de anunciar o dia;
começa-o no momento e no lugar determinados. O sol, diz
a Escritura, sabe onde se deve deitar cada dia, e assim
ilumina, alternadamente, os dois hemisférios, visitando. a
todos com seus raios. O dia é' o tempo da sociedade e do
trabalho; a noite, envolvendo a terra em trevas, põe fim,
pouco a pouco, a todas as fadigas e suaviza todas as penas.
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Tudo suspende, tudo acalma. Espalha em redor o silêncio
e o sono; e enquanto os corpos descansam, os espíritos
se renovam. Em breve volta o dia a chamar novamente o
homem ao trabalho e reanimar toda a natureza.
"Mas, além desse curso uniforme, que constitui os dias
e as noites, o sol apresenta outro, pelo qual durante seis
meses se aproxima de um polo, e, durante outros seis, visi­
ta com igual diligência o outro.
"Essa ordem perfeita permite que um único sol haste a
toda a terra. Se, dada a mesma distância, fosse maior, abra­
saria o mundo inteiro e a terra se desfaria em poeira; se fosse
menor, a terra se tornaria gelada e inabitável; se, dada ainda
a mesma dimensão, estivesse mais próximo de nós, nos quei­
maria; se estivesse mais longe, não poderíamos subsistir
no globo terrestre por falta de calor. Que compasso pôde,
contornando o céu e a terra, tomar tão justas medidas?
Esse astro não beneficia menos uma parte do globo quando
dela se afasta para temperá-la do que quando se aproxima
da outra para favorecê-la com seus raios. Seus olhares
benfazejos a tudo fertilizam. Essa mudança constitui a su­
cessão das estações, cuja variedade é tão agradável. A pri­
mavera faz calar os ventos glaciais, exibe flores e promete
frutos. O verão produz as abundantes colheitas. O outono
espalha os frutos prometidos pela primavera; e o inverno,
espécie de noite em que o homem descansa, concentra todos
os tesouros da terra, para permitir que a primavera seguin­
te os apresente com todos os encantos da novidade. A na­
tureza, tão diversamente ornamentada, oferece alternada­
mente espetáculos tão maravilhosos, que não dá tempo ao
homem de se desgostar daqueles que possui".
282. E o grande escritor continua suas descrições; fala
das estrelas do firmamento, estuda os animais e suas es­
pêcieis tão variadas, os pássaros do céu, os peixes; e embora
só toque de leve em assunto tão vasto, não deixa de des­
cobrir inl1meras provas da sabedoria do Criador. E que dizer
do homem, de seu corpo, com órgãos tão bem colocados,
tão perfeitamente aptos a cumprir com suas delicadas funções?
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Mas, por brilhante que seja este quadro, é necessària­
mente incompleto, pois, no tempo de Fénelon, tantas mara­
vilhas e energias da natureza, hoje conhecidas, ainda eram
desconhecidas! As formidáveis descobertas realizadas hã
dois séculos e às quais outras se acrescentam dia a dia, vie­
ram demonstrar, com maior esplendor ainda, o poder e a
sabedoria que o Criador revelou neste mundo inferior da
matéria.
Eis, portanto, a obra divina, tal qual se apresenta aos
nossos olhos. Mas, para realizar tamanhas maravilhas, esse
grande Deus não careceu de estudos, nem de investigações,
nem de cálculo. Um simples olhar - olhar que data de to­
da a eternidade - tudo decidiu; um só ato de vontade.­
igualmente eterno - decretou que, em determinado dia, to­
dos esses seres viriam à existência, que cada qual realizaria
uma missão e, assim, todos os acontecimentos do mundo
se desenrolariam numa ordem perfeita até ao fim dos tempos.

n, Imusidade, ciência, poder de Deus.

283. Quais são as relações de Deus com os seres que


criou? Tal a questão que ora vamos abordar.
Deus, em primeiro lugar, a todos encerra em sua imen­
sidade. Ele está em toda parte. "Se subo às alturas do fir­
mamento, aí estais, 6 meu Deus, exclama o santo rei David;
se desço aos mais profundos abismos, ai vos encontro. Se
levanto o voo e me dirijo às extremidades do mundo, é vossa
mão que me conduz" (SI 138, 8-10) e não me terei afastado
de vós. E, no entanto, imensos são os campos de espaço
e o espírito se perde em imaginá-los. A só distância da
terra ao sol nos assombra. Para dar-nos uma idéia, os sábios
calcularam o· tempo que seria necessário para percorrer esse
espaço. Se fizéssemos cem léguas por dia, levaria mil anos;
se uma bala tentasse o percurso, conservando sempre sua
,•elocidade inicial, levaria mais de der anos. E essa distância
é insignificante, comparada àquela que nos separa dos outros
astros, das estrelas que avistamos, e que estão umas mil

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vezes, e outras milhões de vezes mais longe. A bala precisa­
ria porfanto de milhões de anos para atingi-las, mil vezes
o tempo que se passou desde a criação do primeiro homem.
E se essa mesma bala fosse projetada de uma estrela a
outra, precisaria ainda de milhões de anos para afetuar cada
\'iagem, ião distante estão umas das outras mesmo aquelas
que nos parecem mais próximas. Se pudéssemos visitar su­
cessivamente todos os astros do céu, voando com a ve­
locidade de uma bala de canhão, milhares de séculos não
nos bastariam.
Depois de medir pelo pensamento tamanha grandeza,
continuamos a não ter idéia alguma da imensidade de Deus.
Não dissemos nada de parecido, e mil outros mundos, maio­
res que este, seriam diante de Deus menos que um grão
de areia comparado à imensidade dos céus. Deus poderia
durante toda a eternidade estar sempre a criar novos mundos,
sem que esses o pudessem conter ou limitar, pois haveria
sempre um termo, um ponto em que o mundo acabaria, e
Deus não conhece limites. E' um círculo infinito. Elevai-vos
ao alto ou mergulhai nos abismos inferiores, ide à direita
ou voai à esquerda, depois de terdes caminhado durante
milhares de séculos com a velocidade da luz ou da eletricida­
de ( 1), não vos tereis aproximado da circunferência, con­
tinuareis no centro, pois "o centro está em toda parte e a
circunferência não está em parte alguma".
Mais admirável ainda é que esse grande Deus não enche
o mundo da mesma forma que os seres corpóreos, dos quais
uma parte ocupa um ponto do espaço e outra parte, outro.
Não, Deus é espirita, portanto enche tudo sem se dividir,
está em toda parte, mas em toda parte está inteiro, como
inteiro está em cada lugar, inteiro em Ioda a imensidade.
284. Deus está, pois, em toda parte e como está em
toda parle, nada lhe escapa e sua ciência não tem limites.
Falamos da ciência adrnirãvel que possuía a alma de
Jesus. Tinha sempre presente todos os homens de todas as
1) Setenta mil léguas por minuto aproximadamente.

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épocas, conhecia-lhes os homens, os trabalhos, as ocupações,
as habilidades, o caráter, os afetos do coração, os sen­
timentos, os desejos, os temores, os mais recônditos pen.,.
sarnentos. Mas esse conhecimento universal e perfeito, de
toda a raça humana, que possuía a alma humana de Jesus
e que já nos parece tão admirável é uma simples parcela
da ciência divina.
Deus conhece igualmente todas as outras criaturas,
sabe o número de gotas de água do Oceano e a história que
acompanha a cada qual, desde a sua criaçã0i sabe, para
empregar a palavra de Jesus Cristo, o número de cabelos
de nossa cabeça, dos quais nenhum cai por terra sem sua
licençai sabe o nómero de grãos de areia, dos raminhos da
relva, das folhas das árvores. Que a nossa imaginação avalie,
se puder, a extensão deste universo, que calcule o nórnero
quase infinito de criaturas de toda espécie que o compõem,
animais tão diversos, peixes que enchem os rios e os mares,
insetos, micróbios, contidos às centenas, aos milhares, em
cada talo de verdura, cm plantas multiformes, minerais, pe­
dras ocultas no solo até às profundezas da terra, todas essas
criaturas, cuja simples enumeração nos assusta, Deus as
conhece a todas e a cada uma perfeitamente. Conhece as
criaturas inumeráveis dos outros astros, maiores em geral
que o nosso globo.
Assim como Deus vê 'simultâneamente a todos os seres
que existem hoje, vê tamb�m os que já não existem; vê
todos os fatos passados, todos os sentimentos, todos os pen­
samentos que agitaram o espírito e o coração das criaturas
racionais, todas as alterações que sofreram sucessivamente
os seres inanimados. Numa palavra, contempla todo o passado,
ou antes tudo lhe é presente e não hã passado para ele.
Também não há futuro. Todos os acontecimentos (lue
se sucederão atC ao fim dos tempos ele os conhece, nas suas
minúcias mais insignificantes; os séculos vindouros mais
remotos não lhe reservam segredo algum, não que aritevcja
o que possa acontecer, mas porque vê a todos os fatos
futuros como já existentes.
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285. Estas considerações nos deixam perceber quão
vasta é a inteligência de Deus, e entretanto, por mais inu­
meráveis que sejam os acontecimentos passados, presente.s
e futuros, desaparecem diante do número incomparàvel­
mente maior dos fatos possíveis, que Deus conhece igual­
mente. Cada acontecimento deste mundo poderia ser diferente,
poderia mudar em suas mil e uma circunstâncias; o menor
fato poderia variar até ao infinito e acarretar uma modifica­
ção em tudo que dele depende. Ora, Deus conhece todas
as alterações possíveis, tudo quanto teria podido se realizar
no passado, e que poderá ainda se dar no futuro. Sabe os
milhões e milhões de mundos que teria podido criar. "Conhece
todos os atos, todas as palavras, todos os pensamentos que
poderiam formar os homens com os quais encheria tais mun­
dos, todas as diferentes espécies de criaturas que neles po­
deria colocar com as virtudes, as propriedades e as dis­
posições de cada qual ( 1 ) .
286. Tal a extensão incomensurável da ciência de Deus.
Tal a multidão imensa de pessoas, de coisas, de fatos que
sua inteligência encerra. E, para tudo conhecer, Deus não
necessita de investigação alguma, de estudo algum; ocupa-se
tão pouco com a visão, com o conhecimento atual e dis­
tinto dessa infinidade de objetos, como se de nenhum co­
gitasse; entretanto vê a cada um tão perfeitamente como
se não olhasse para os outros. Sua ciência é eterna e in­
variável; desde toda a eternidade os olhos de Deus viram
o que vêem hoje e os séculos futuros nada lhe terão a revelar.
287. Mas de que modo conhece Deus tantos seres exis­
tentes e possíveis? Em si mesmo. E' em sua divina essência
que os vê, que os contempla; que os vê em suas causas com
sua l',!,atureza específica e todos os seus caracteres individuais.
Com efeito, Deus vê e contempla continuamente toda
a infinidade de suas admiráveis perfeições e vê os modos
pelos quais essas perfeições são participáveis. Vê toda a
extensão de seu poder e, por conseguinte, tudo quanto po-
1) Padre d'Argent1.n, op. clt.

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deria criar, conservar, aniquilar. Vê toda a sua sabedoria di­
vina; ora, é essa sabedoria que cuida, dirige e governa todas
as criaturas e nada acontece senão o que previu, o que quis
e permitiu. Em sua infinita sabedoria, Deus vê, portanto,
todos os acontecimentos presentes, passados e futuros, ou
possíveis, deste mundo e de todos os mundos imagináveis.
Vê todas as riquezas de sua bondade infinita e assim todo o
hem que quer e pode fazer às suas criaturas. Vê toda a
equidade de sua divina justiça, todas as sentenças que serão
pronunciadas sobre os eleitos e os réprobos, assim como
as recompensas que lhes serão dadas e os castigos que lhes
serão infligidos segundo os respetivos méritos.
Mas todos esses atributos que distinguimos em Deus,
poder, sabedoria, bondade, justiça, não são distintos uns
dos outros, como teremos ocasião de dizer, mas uma (mica
e mesma perfeição, ou, antes, são o próprio Deus, o Ser
essencialmente simples. E vendo-se a si mesmo, Deus vê
a tódos os seres, com um olhar uno e simples, que tudo vê,
tudo abrange, qLie não se multiplica, nem se reitera.
288. A ciência de Deus é universal, não é, porém, uma
ciência estéril; Deus não é um espectador ocioso; se nada
escapa ao seu olhar, nada tão pouco escapa à sua ação, e
o seu poder se exerce por toda parte e simultâneamente.
O poder de Deus é-nos também um justo motivo de
admiração. Manifesta-se, em primeiro lugar, na criação de
tantos seres diversos. De onde vêm essas criaturas? De onde
as tirou Deus? De que se serviu para formá-las? Tirou-as
do nada. Formou-as do nada. Se todos os habitantes da
terra juntassem as forças, recorrendo os mais destros operá­
rios à sua indústria, os maiores sábios à sua ciência, não
poderiam tirar do nada um grão sequer de areia; C axioma
incontestado da ciência humana que, do nada, nada se faz:
ex ni/1ilo nihil fit. Nem os espíritos angélicos teriam maior
habilidade lidando com o nada e, juntos, não poderiam pro­
duzir um grão de poeira, um simples átomo. Ora, Deus,
do nada, fez as criaturas; criou a matéria corpórea, a massa
dos corpos celestes, os objetos tão diferentes da natureza;

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criou o mundo dos espiritos que não lhes é inferior em ri­
queza nem variedade. E tudo isso sem esforço: lps� dixit
el facta sunt. Ele disse, e tudo se fez; quis e os seres que
não existiam surgiram logo em sua presença, exclamando:
eis-nos, adsumus.
289. Deus tudo criou, tudo conserva. Os seres, uma vez
criados, não poderiam por si mesmos conservar a existência
de empr(·stimo que receberam do Criador. Não se asseme­
lham ao quadro que subsiste, quando o pintor abandona os
pincéis; a�semclham-se, antes, aos sons que se extinguem
quando o instrumento deixa de vibrar, ou ao raio de luz que
se apaga, quando a lâmpada pródutora deixa de brilhar.
Assim, toda criatura seria imediatamente aniquilada. Deus
nos C tão necessário agora e a cada momento de nossa
vida como o foi para nos dar existência, e a conservação é
uma criação continuada. Para impedir que a multidão imensa
das criaturas volte ao nada, é mister ainda, a todo mo­
mento, um poder igual àquele que as tirou do nada.
290. Se as criaturas não podem subisistir, como pode­
riam então agir sem Deus? O mesmo Deus, que lhes con­
serva a vida, comunica-lhes, a cada instante, ação e mo­
vimento. Essas criaturas de toda espécie que povoam o mun­
do, estão sujeitas à ação divina e Deus se ocupa de cada
uma em particular. Empresta seu concurso àquelas que fez
inteligentes e livres e que, sem esse concurso divino, per­
maneceriam inertes, enquanto a liberdade lhes seria um dom
inUtil; dirige as outras, quer em seus atos instintivos, quer
em suas operações vitais, quer em seus impulsos puramente
mecânicos. pois, embora tivessem recebido uma atividade
própria, essas criaturas não poderiam desenvolvê-la, se no
momen1o preciso Deus não lhes fornecesse os meios.
O espirita se perderia se fosse calcular o número desses
movimentos, desses atos das criaturas. Enumerem-se, se
possível, os habitantes da terra, os eleitos do céu, os réprobos
do inferno, os seres privados de liberdade. Esses seres,
tão diferentes, agem de modo diverso e, não raras vezes,
cm sentido oposto. Ora, nenhum ato, nenhum movimento

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se realiza sem o concurso de Deus. Deus basta a tudo e,
sem o menor esforço, sem trabalho algum de sua parte, atua
em toda parte e opera com tudo quanto opera: Omnia opera
nostra operatus es nobis: "Todas as nossas obras, Senhor,
vós as operastes em nós" (Is 2, 12).

HL Bondade, santidade de Deus.


291. Deus é essencialmente livre; o que quer, ele o quer
líVremente e o que faz, fá-lo com plena liberdade: Omnia
operatur secundum consilium voluntatis suae (1 Cor 12, 2).
Sua vontade é eterna porque não se distingue de seu Ser,
não se distingue dele mesmo. Mas é eternamente livre, pois
desde toda a eternidade Deus quer o que quer, e o quer
livremente.
E o que quer Deus? Que objeto visa sua vontade? A
vontade divina visa o bem e não pode querer amar senão
o bem. Não falamos aqui do bem absoluto que quer e ama
necessàriamente, porque esse bêm é o pr6prio Deus. Falamos
do bem relativo, do bem criado e dizemos: Deus quer o
hem, e, como este existe fora dele, Deus o produz. E nisto
consiste o seu amor, Deus charitas est. E é da essência do
amor querer e fazer o bem.
Recordemos ainda uma vez o princípio tão bem enun­
ciado pelos teólogos: Bon11m est diffusivum sui, o bem quer
difundir-se. Deus, o Bem supremo, o Ser essencialment'e
bom, quer comunicar sua bondade, quer reger suas perfeições.
"E porque é bom por essência e por natureza, diz o
grande doutor místico Dionísio ( 1), Deus espalha a bon­
dade sobre todos os seres". E' para derramar seus dons,
para fazer participar de seus bens infinitos, que Deus deu
a existência a inúmeras criaturas, que, elida qual, lhe deve
mil benefícios.
. 292. Deixemos, porém, de lado aos demais seres e ve­
jamos o que Deus fez por nós, os dons que recebemos de
sua liberalidade. Deu-nos primeiro a existê'hcia, preferindo-
u D01 nomes divinos, cap. rv, n. 1.

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nos a uma infinidade de outros seres que teria podido criar
en1 nosso lugar; só isso bastaria para fazer de Deus o
nosso maior benfeitor. Deu-nos a vida, que nos distingue
dos seres inanimados, e os sentidos que nos põem em relação
com os outros seres, beneficio precioso cuja importância
é tanto mais estimável quanto mais considerarmos a des­
graça daqueles que deles estão privados. Deu-nos a me­
mória, que nos recorda do passado, deu-nos a inteligência,
dom admirável, que nos eleva poderosamente acima das
outras criaturas e nos imprime uma primeira semelhança
ao próprio Deus; deu-nos a vontade, para amar e procurar
o bem; deu-nos, neste corpo vivificado pela alma, um ins­
trumento admirável, dotado de órgãos cuja perfeição nos
assombra à medida que melhor os conhecemos.
293. Devemos também à bondade divina o não termos
sido lançados sobre a terra sem apoio, abandonados aos
nossos próprios recursos. Deus deu-nos, em nossos pais,
um amparo e um auxílio indispensáveis, quis que fossem
seus primeiros representantes junto a nós, comunicou-lhes
parte de sua autoridade, colocou-lhes no coração uma cen­
telha de amor que nos tem, a fim de levá-los a velar sobre
nós com solicitude, a prover todas as nossas necessidades
e a cercar-nos de cuidados e de carinho. Deus é, pois, autor
inicial de todos os beneficias que a criança recebe dos pais
e a ele deve ela dirigir suas primeiras ações de graças.
Devemos também a Deus os benefícios que recebemos de
nossos semelhantes; é Ele quem lhes proporciona os meios
e a vontade de nos ser úteis, é ele quem fez do homem um
ser sociável, levando-nos assim, quer pelo interesse, quer
pela benevolência, a socorrer uns aos outros.
294. Se contemplarmos a natureza, encontraremos por
toda parte os beneficias divinos. As plantas que nos for­
necem alimento e roupa; o ar, que nos vivifica; a água, que
nos é tão necessária; o fogo que nos aquece; os astros que
nos iluminam; a terra que nos sustém; tudo enfim que nos
rodeia é 11111 dom divino; Deus tudo fez por nós; nós somos
suas criaturas privilegiadas: "O' meu Deus, exclama o

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Profeta inspirado, que é o homem mortal para que vos lem­
breis dele? Todavia, apesar de sua pequenez, apesar de
sua miséria, vós o coroastes de glória e de honra, e o fi­
zestes dominar todas as obras criadas pelas vossas mãos,
colocastes tudo sob seus pés, ovelhas e reses, animais terres­
tres e aves celestes, peixes e tudo que se move nas águas
do mar, tudo déstes aos filhos dos homens".
295. Não seria, por certo, pequena tarefa enumerar
todos os benefícios que recebemos de Deus na ordem na­
tural, mas como falar dos benefícios muito mais preciosos,
que nos concede na ordem sobrenatural? Oferece-nos a gra­
ça, dom tão elevado que todas as criaturas juntas jamais
o poderiam atingir ou sequer imaginar. Pela graça, Deus
nos faz participar it sua própria natureza; pela graça, passa­
mos de súdito e escravo, a revestir uma natureza nova,
que nos torna verdadeiro filho de Deus e nos diviniza de
certo modo. E' como que uma emanação da Divindade, que
comunica à alma uma beleza e uma energia divinais. Ora,
esse benefício, de inestimável valor, Deus o oferece a todos
nós e não deseja senão derramá-lo em abundincia sobre cada
um de seus servos; ao primeiro sinal, à primeira súplica
de seus fiéis ou em seguida a qualquer boa obra, ele au­
menta-lhes tão precioso tesouro. Que dizer então dos outros
benefícios espirituais, dos auxilias que nos concede com
tamanha liberalidade? pensamentos santos, piedosas inspira­
ções, ardentes desejos do bem; sacramentos, que cunharam
o preço de seu Sangue e que são quais imensos canais
onde derrama graças abundantes; qualidades sobrenaturais,
virtudes, dons, que se compraz em comunicar! Gosta de
espalhar seus bens, de espalhá-los cm profusão. Dá, dá
sempre; dá, sem se esgotar, qual sol que irradia a luz sem
diminuir o seu esplendor, que difunde o calor sem nunca
se esfriar; dá, assim, sem cessar e nada retém a efusão de
seus benefícios: Nec est qui se abscondal a calore ejus; sua
ação benfazeja se exerce em todos os lugares e ninguém
escapa à sua liberalidade. Nas palavras de um teólogo (1),
l) Contenson.

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"Ele dá a todos, e isto já é grande; dá aos ingratos, e isto
é maior ainda; dá mau grado a vontade daqueles que o re­
pelem, e isto é o cúmulo; depois, nada mais tendo a dar,
dá-se a si mesmo, e isto é divino". Sim, dá-se a si mesmo,
palavra inefável que bem prova que a bondade divina é in­
finita. O céu, com efeito, é Deus mesmo comunicado à alma,
(• a alma enriquecida da Divindade, penetrada, transfor­
mada pela Divindade, tomando parte na vida intima, na
própria felicidade de Deus. Os demais dons confinam neste
e foi para isso que Deus nos criou. E' isso que tem continua­
mente em vista na conduta d.e sua Providência em relação
a nós: fazer-nos um dia comer à sua mesa, segundo a ex­
pressão da Escritura, tornar-nos felizes de sua felicidade.
Pobre criatura humana, quão digna és desse favor! Deus,
que possui tantos tesouros, não mais te poderia dar cum esset
ditissimus, plus dare rum pot11it, e esse dom que te faz de
si mesmo, e um dom eterno!
296. Eis, portanto, como Deus se compraz em distri­
buir os seus dons. Não é, porém, cego em sua liberalidade
e, se derrama benefícios em profusão, fá-lo com discerni­
mento e prudência, guiado pela sua infinita santidade. E
que C santidade? E' o ódio ao mal, é o amor ao bem, isto
é, o bem moral, que é a ordem perfeita. Ora, em Deus, é
infinito o ódio ao mal, infinito o amor ao bem.
E foi por querer esse bem moral que ele criou seres
livres, capazes de. atos honestos e virtuosos. Os seres in­
feriores cumprem, inconscientes, o papel que a Providência
lhes designou; o boi sulcando laboriosamente o solo, o cão
guardando e defendendo o dono, a galinha protegendo os
pintos, seguem a ordem estabelecida por Deus; como, porém,
obedecem fatalmente ao seu instinto, não têm mérito algum
e nenhuma santidade lhes é possível. Deus quis mais do
que isso, quis seres à sua imagem, livres de querer e de
amar o bem e, por isso mesmo, capazes de ser santos, como
ele mesmo é santo.
297. E' porque Deus nunca faz violência à nossa li­
berdade e não nos obriga ao bem. Nada omite, porém, para

311

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levar-nos a pratic'á-lo, e cuida de no-lo fazer conhecer. Jã
nos primeirós tempos da humanidade, revelou sua lei aos
homens, deu-lhes a conhecer, em suas linhas principais, as
hases da moral, de maneira a ninguém se pode·r iludir, jul­
gando bom o que é mau, e mau o que é bom. Gravou nos
corações sua lei moral; quis pela voz da consciência que
fôssemos sempre avisados de nossos deveres, de nossas
obrigações. Nossa consciência está, por conseguinte, sempre
alerta para nos advertir quando nos afastamos do caminho
reto, ou para nos impelir ao bem quando hesitamos.
Tudo isso, ai de nós! não bastou. Os homens abusaram
de sua liberdade, o mais belo dom que Deus lhes concedeu;
transgrediram a lei divina que o Deus três vezes santo lhes
ditara com tanto cuidado. Mas essas prevaricações só ser­
viram para salientar a santidade do Criador. O mundo não
conhece mais a virtude, o mundo se corrompeu; Deus man­
dará então seu Filho para tirá-lo do pecado e dar-lhe os
exemplos de santidade de que tanto carece.
298. Tal é, com efeito, o duplo fim da Encarnação, e
nada nos revela melhor a infinita santidade de Deus, seu
ôdio ao mal e ao pecado, e seu amor à virtude. Teve um
ódio infinito ao pecado, esse Deus que, para destrui-lo, deu
seu Filho ao mundo e deu-o para ser imolado; um ódio in­
finito teve ao pecado esse Filho de Deus que, para expiá-lo,
se humilhou ao ponto de revestir a forma de escravo, e
cuja vida inteira teve um só fim: destruir o pecado e im­
plantar a virtude. Lembremo-nos da vida de sofrimentos
do Homem-Deus, das privações que padeceu, de suas pre­
gações exaustivas, de suas excursões evangêlicas, de seus
trabalhos, de suas instruções admiráveis, de suas exortações,
cm uma palavra, de todas as obras de st1a vida e, acima
de tudo, das dores tremendas, indescritíveis de sua Paixão.
299. Que lhe restava ainda fazer para expiar o pecado
e hani-lo para sempre do mundo? A santidade de nosso
Deus exigiu, porém, mais ainda. Essa obra de santificação
que começara, quis vê-la continuada. Fundou, por conse-

3i2

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guinte, a Igreja e a conservará até ao fim dos séculos apesar
de todos os esforços em contráZ'io do inferno; por ela, con­
tinuará a pregar o afastamento do mal, a inspirar o horror
ao pecado, e levar as almas à prática da virtude. Sim, é­
ao Deus três vezes santo que remontam os mil meios de
apostolado de que a santa Igreja dispõe para a preservação
e a santificação das almas, para seu culto tão suave e salutar,
para suas instruções e missões, para os cuidados que dis­
pensa à educação, e seus variados trabalhos. Deus C a ori­
gem e o princípio de todas essas obras, é ele quem inspira
a seus filhos simultâneamente, em todos os pontos do globo,
tanto zelo e atividade, só a ele deve reverter toda a glória.
E todos os bens espirituais, que nos provaram a sua
bondade, não demonstram igualmente a sua santidade? Não
foi, por exemplo, para oferecer a seus filhos meios mais
suaves e eficazes de santificação que instituiu os sacramen­
tos, e mormente esse adorável Sacramento, cm que se torna
ele próprio alimento de seus débeis filhos?
E essa perfeição, chamada justiça de Deus, é tambêm
santidade de Deus. A justiça divina pune o mal e recom­
pensa o hem, porque está dentro da lei que o mal seja cas­
tigado e o hem recompensado, e também porque o castigo
afasta do pecado, enquanto a recompensa anima a virtude.
Deus recompensa o bem com uma justiça cuja exati­
dão e admirável, pois cada obra é tida ao seu justo valor e
a mais trivial e aparentemente insignificante, se for feita
num espírito sobrenatural, é contada por Deus e acresce­
nos a graça e a glória.

rv. justiça, pacif:ncia, misericórdia de Deus para com os pecadores..


_

300. Fossem fiéis as criaturas e a justiça de Deus só se


manifestaria para lhes remunerar as obras. Mas como em­
pregam mal a sua liberdade! Deus tudo fez para lhes facili­
tar a prática da virtude, ajuda-as, anima-as, sustenta-as.
continuamente, e o pecado está sempre de novo a macular
a terra. Que fará o Deus infinitamente santo ante a pavoro-

313

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sa desordem que é o pecado? Aí aparecem sua justiça, sua
paciência, sua misericórdia.
A justiça vingadora exige, impreterivclmente, que a
desordem causada pelo pecado seja reparada. Ora, o pecado
mortal é uma ofensa cuja gravidade é até certo ponto in­
finita, pois ultraja uma majestade infinita. Se não for, por­
tanto, apagado pelo ato contrário, que é a detestação da
falta, se a criatllra, que se desviara de Deus, não tornar a ele,
a Justiça divina infligirá um castigo que não terá fim.
Os eleitos aplaudem essa sentença irrevogável, enquanto
os próprios réprobos não podem deixar de reconhecer que
sua sorte foi bem merecida.
Quanto ao pecado destruído pela contrição, se o arre­
pendimento, como acontece quase sempre, não for bas­
tante vivo nem bastante forte para contrabalançar a ofensa
feita a Deus, sua justiça exigirá ainda uma expiação. E'
porque essa justiça se exerce constantemente, que todos os
males que afligem o mundo podem ser considerados como
obras suas. Em geral, os que são castigados merecem a
punição, pois raríssimos são aqueles que não têm divida
alguma para com Deus. Mesmo quando a provação atinge
os justos, é a justiça que se manifesta, pois os justos, a exem­
plo de seu divino Mestre, sofrem pelos culpados; assim se
paga, em parte, a dívida do pecado. Entretanto, as penas
da terra são ainda insuficientes; é preciso que as chamas
do purgatório venham terminar a obra de expiação. Sómente
então a inflexível justiça se dará por satisfeita.
301. Quem compreende a gravidade do pecado, e con­
sidera a maneira pela qual reina quase soberanamente sobre
a terra, longe de se admirar dos golpes da justiça divinn,
estranha não serem os castigos mais terríveis ainda. Tão
grande é a malícia do pecado, tão revoltante a insolência
desse miserável nada que se insurge contra Deus, tão in­
fame a perversidade desse cgoista que demonstra a mais
monstruosa ingratidão para com o maior dos benfeitores!
Quem peca, crucifica de novo a Jesus Cristo, segundo
a palavra de São Paulo. Com efeito, foi o pecado mortal
314

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que causou a morte de nosso Senhor e foi, por todos os
pecados em geral, e cada um em particular, que Jesus sofreu
os tormentos de sua Paixão. Cometer um único pecado
mortal ê, portanto, cooperar no deicidio, é renovar a ini­
quidade de Pilatos, de Judas e dos algozes, C tomar parte
cm todos os tormentos que lhe foram infligidos em sua do­
lorosa Paixão e assumir-lhes a responsabilidade.
Ora, tal é o espetáculo que fere diàriamente o olhar
de Deus, desse Deus tão bom, tão amável, a quem todas
as criaturas deviam estar pressurosas por servir e glorificar!
Suas infinitas perfeições, seus múltiplos benefícios, deveriam
ganhar-lhe todos os corações, submeter-lhe todas as von­
tades e, todavia, ninguém C tão ofendido, e bem numerosos
são aqueles que o injuriam! Haverá uma hora, um só ins­
tante, em que Deus não seja ultrajado? Só ele é assim ofen­
dido. Deus vê todas as ofensas que lhe são feitas, ouve
todas as blasfêmias que são proferidas contra ele, vê suas
leis violadas, suas vontades desprezadas, seus benefícios
pagos com ingratidões. Ele, que tem um horror supremo ao
pecado, e tem o pecado sempre presente.
302. Não nos deve pois surpreender que a justiça di­
vina reserve ao pecado penas eternas, mas sim que Deus
11 suporte com tamanha paciência, adiando os castigos que
lhe poderia infligir imediatamente. Poderia fazer calar de
si1bito as insolências da miserável criatura que se revolta con­
tra ele; poderia castigá-la incontinenti e vingar-se dessas
afrontas; mas assim não quer; retém seu poder, deixando
\'iver em paz seus inimigos e blasfemadores. Mas quan­
tos pecadores, longe de se aproveitarem dessa delonga, de
se comoverem com essa paciência, empregam-na para cair
em novas faltas. Mergulham cada vez mais profundo no
\'Ício, acumulam pecado sobre pecado, até desconhecerem
a extensão de suas próprias iniquidades. Enquanto isso,
a cólera de Deus vai aumentando, cada falta avoluma a
torrente de vinganças divinas. Que dique poderâ contê-la?
Que força poderâ suster a mão do Deus infinitamente justo?
Tal maravilha será devida à sua paciência infinita. Tão justa

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é a cólera divina que, para impedir-lhe a ação, será necessário
um milagre muito maior do que para impedir que o fogo
queime o objeto lançado na fornalha. E a paciência de
Deus realiza esse milagre; só ela sabe conter a justiça in­
finita, tão profundamente irritada; e ai está, segundo São
Paulo, a obra-prima da onipotência divina. "Deus, diz o
Apóstolo inspirado, querendo manifestar o seu poder, so­
freu com extrema paciência os vasos da ira, aparelhados
para a condenação" - Volens notam facere potentiam suam
sustinuit in multa 1Jatientia 1•osa irae apta in interitum
(Rom 9, 22).
303. Por que espera ele então? Porque quer perdoar.
A paciência retém a justiça para que a misericórdia se pos­
sa exercer. Essa misericórdia de Deus, mais que qualquer
outra perfeição sua, toca-nos o coração e enche-nos de ad­
miração e de confiança. Quem pensa na infâmia, na ingra­
tidão, na insolência do pecado, há de se admirar de que Deus
consinta cm perdoá-lo. E em geral não é um só pecado que
Deus perdoa, C uma longa série de faltas graves, talvez as
mais abomináveis, as mais horríveis que se possam cometer,
pois, por mais numerosos que sejam os pecados, por maiores
que pareçam, a misericórdia divina é sempre maior. E quan­
tas vezes terá o pecador, que solicita o perdão, abusado
dessa mesma misericórdia. Talvez já tenha sido perdoado
cem vezes, mil vezes e tenha prometido não cair mais, e caiu
novamente, violando sua promessa e insultando ainda a
hondade divina. Entretanto, Deus não se cansa; se perdoou
cem vezes, mil vezes, há de continuar. Conquanto o pecador
renove o ato de contrição sincero, será sempre perdoado.
E esse perdão Deus não o difere um instante sequer;
se a alma culpada manifestar arrependimento, logo lhe serão
restituídas as graças. Como se isto não bastasse, Deus, em
sua infinita bondade, dignou-se instituir um sacramento,
que facilita ainda o perdão, e que, aplicando os méritos do
Sangue de Nosso Senhor, apaga imediatamente as faltas
mesmo daqueles cujo amor C incipiente e cuja contrição C
imperfeita.

316

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304. Não se satisfaz, porém, a infinita misericórdia de
Deus em responder ao primeiro apelo da alma que implora
perdão. faz muito mais: previne essa alma rebelde, vai-lhe
ao encontro, oferece-lhé o perdão de que, sem ele, nem se­
quer cogitaria, inspira ao seu coração remorsos e salutares
temores, inunda-a com toda sorte de graças, interiores e
exteriores, a fim de levá-la a arrepender-se de sua falta,
a pedir e obter sua reconciliação.
Depois de Deus perdoar, esquece a falta, não querene.lo
que a lembrança do passádo tolha a efusão dos seus bc-­
nefícios; as Madalenas, os Agostinhos poderão receber tan­
tas graças quanto as almas mais inocentes, e tornar-se san­
tos, de uma santidade insigne.
Ao conceder o perdão, Deus não se contenta em dizer
ao pecador: "Teu pecado está perdoado, e não serás cas­
tigado"; mas acrescenta: "Restituo tudo quanto o teu pecado
te fizera perder, todos os bens que renunciaras, todos os
méritos anteriores à tua falta. Nunca o pecador arrependido
ousaria pedir espontâneamente o que Deus lhe concede.
Restitui o titulo de filho de Deus a essa alma que o ofendeu
gravemente e volta a habitar nesse coração donde fora
expulso indignamente.
Após tamanhas provas de bondade, que o pecador
absolvido jamais conhecerá devidamente, Deus se revela
de certo modo seu devedor. O pecador, solicitando o perdão,
cumpriu apenas o seu estrito dever, obedeceu ao próprio
interesse, cedeu às exigências da graça. Ora, Deus leva-lhe
em conta esse ato como uma boa obra exercida, recompen­
sa-o por ter pedido perdão, como se tivesse praticado um ato
de virtude. E depois de realizar tais maravilhas de bondade
e de misericórdia, manifesta viva alegria. O bom Pastor,
que perseguiu com tanto desvelo a ovelha ingrata, convida
todas as criaturas a se unir a ele. "Regozijai-vos e con­
gratulai-vos comigo, pois encontrei a ovelha desgarrada".
Oh! que razão tinha o Salmista de celebrar essa di­
vina misericórdia, que enche de fato a terra! Misericordia

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Domini plena est terra; e toda a eternidade não será demais
para celebrá-la condignamente: Miserico.rdia Domini in aeter­
num cantabo.

V, Deas é o Ente necessirio, simples, intutãvel, eterno.

305. Procuramos ver o que é Deus cm suas relações


com as criaturas; vejamos agora o que é em si mesmo, es­
tudando-lhe as perfeições intrínsecas. Se compreendêssemos
hem esses atributos divinos, faríamos de Deus urna idéia
muito mais exata, veriamas corno é essencialmente diferente
de todos os seres criados.
Todo ser criado é um ser contingente que poderia não
existir. Há cem anos, onde estávamos nós? O mundo po­
deria continuar a existir e a mover-se sem nós. E onde es­
tava este mundo hã alguns milhares de anos? Nós não somos
necessários, nada em nós ê necessário, estamos sujeitos a
mudanças, e tudo quanto temos poderia ter sido muito di­
ferente. Deus é o Ente necessário. Suponde um momento
que ele não existisse, nada então teria existido, nenhum ser
teria sido criado. A existência pertence-lhe necessàriamente
e dela não pode ser prjvado; nem podemos supor que ele
não a tenha, nem que estivesse um só momento sem a
possuir, nem que possa vir a perdê-la. Quanto a nós, antes
de sermos entes existentes, fomos entes possíveis e podemos
conceber nossa essência, nossa natureza, independente­
mente de sua existência. Em Deus, natureza e existência
identificam-se, uma acarreta a outra; se Deus não existe,
não há natureza divina possível; se há possibilidade de
uma natureza divina, Deus existe.
306. Deus é necessário tal qual é: não poderia deixar
de ter tudo quanto tem, pois, se não o tivesse, quem lho da­
ria? O que ele não tem é simplesmente o nada. Possui por­
tanto o Ser, necessária e eternamente. Nada há hoje em
Deus, nenhum pensamento, nenhuma vontade nova que não
houvesse há cem mil anos.
Com efeito, C mais perfeito agir que poder agir; e
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hoje somos mais perfeitos porque agimos, do que em cri­
anças, quando apenas tínhamos em germe a faculdade de
agir sem poder produzir os atos inerentes: ter um pensa­
mento, uma· vontade, é mais do que poder pensar e poder
querer. Ora, em Deus, nenhum aperfeiçoamento, nenhuma
aquisição, nenhuma produção é possível, nenhum ato novo;
por conseguinte ele opera e operou sempre idênticamente.
Em Deus não há, como em nós, diversas faculdades a
operar sucessivamente. Nós compreendemos e depois que­
remos; o ato de nossa vontade sucede ao ato de nossa in­
teligência. No Ente soberanamente perfeito não pode ser
assim. Nele nunca houve uma faculdade que descan­
sasse, que deixasse um só instante de agir; a faculdade,
portanto, confunde-se com o ato, e como não há sucessão
de atos, não há distinção de faculdade, ou, antes, não há
faculdade, há ato; ou, melhor ainda, Deus é ato, ato puro,
como diz Santo Tomás. Ele é toda ação e ação sempre idên­
tica, ele é toda atividade e atividade sempre igual.
307. Daí se segue que Deus é essencialmente simples.
Não tem dimensões, composição ou partes. lncomparàvel­
mcnte mais simples que os próprios anjos, nos quais dis­
tinguimos faculdades diversas; a vontade, diferente da in­
teligência, a ação da substância, e a graça da natureza; Deus,
ao mesmo tempo, é bondade e justiça, força e sabedoria,
vontade e ação, realidade única e inefável.
Em nossa linguagem e pensamentos somos obrigados
a estabelecer diferenças cm se tratando de Deus, a fazer
distinções porque não podemos compreender um Ente tão
simples, e porque uma simplicidade tão absoluta nos escapa
e ultrapassa os nossos sentidos. Quando dizemos, portanto:
Deus é bom, é belo, é justo, Deus cria, conserva, governa,
exprimimos estas verdades de modo tão perfeito quanto
nos C humanamente possível, isto é, exprimimos diversos
aspectos de uma mesma e única verdade eterna, mas nossas
palavras são falhas. Essas perfeições não são, de fato,
distintas em Deus, como na criatura; não formam senão
uma mes1na perfeição que não se distinguem em absoluto
319

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do próprio Deus; tanto que dizer "a perfeição de Deus" é
exprimir-se de maneira insuficente e inapropriada; Deus
é a sua própria perfeição, e isto de modo tão simples que
nos é inconcebível e inexprimível. Assim, também, Deus
age quando cria, conserva e governa, como quando recom­
pensa e castiga. Suas ações é que parecem diferentes, porque
os resultados são diferentes, mas a ação cm si é sempre a
mesma. A luz do sol deleita os olhos sãos e irrita os
doentios; seu calor faz germinar uma planta e desenvolve
outra, enquanto seca e murcha uma terceira; aqui estanca
rios e mares, acolá manda chuvas torrenciais pelas tem­
pestades que provoca. Seria lícito dizer que, nessas múl­
tiplas circunstâncias, o astrO procede diversamente? Os re­
sultados variam segundo as disposições dos seres atingidos
pela sua influência. mas os eflúvios provenientes do globo
solar são sempre de igual natureza. Assim; embora os efei-
1os sejam infinitos, a ação divina que as produz é sempre
a mesma. Mais ainda, não é distinta das perfeições de que
falávamos há pouco, não e distinta do próprio Deus, e dizer
"ação de Deus" e falar tão imperfeitamente quanto dizer
"bondade, sabedoria de Deus". Deus é o Ente essencialmente
incompreensível, essencialmente inexprimível.
308. Desta simplicidade do Ente supremo decorre sua
imutabilidade.
Todas as alterações produzidas nas criaturas se devem
à sua influência; ele é, como foi denominado, o grande Motor.
Com efeito, todo movimento -provém dele, segundo a pa­
lavra do Apóstolo: ln ipso vivimt1s, movenmr ,et sumus. Ora,
Deus, que assim leva cada ser a agir, a mover-se, estará
também sujeito ao movimento e à mudança? Não, ele per­
manece sempre o mesmo. Mas, sob sua ação, tudo se trans­
forma na natureza, as plantas que germinam, crescem, ama­
durecem e murcham; os seres vivos, que nascem, se desenvol­
vem, envelhecem e morrem; as próprias almas, cujos pen­
samentos e sentimentos se sucedem com rapidez; Deus, que
preside a todas essas variações, por nenhuma delas passa:
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Ego Dominus et non mulor - Mutabis eos el mulabunlur,
tu autem idem ipse ,es.
E por que havia de mudar? Não pode adquirir per­
feição alguma, pois a todas possui, nem conhecimento al­
gum, pois tudo sabe desde a eternidade. Deus é a verdade
eterna, a eterna beleza, a ,verdade perfeita, o hem perfeito.
E pode o perfeito se alterar? Deus é o Ente essencialmente
simples. E pode o simples variar? Apud quem non est trans­
mulalio, nec vicissiludinis obumbratio. Nele não há som­
bra de alteração, diz a Sagrada Escritura. Em Deus, por­
tanto, não há crescimento, nem minoração; não há mudança
de lugar, pois está em toda parte; nem variação de ciência,
pois é sempre infinitamente sábio; não há transformação
de sentimento, pois é infinitamente bom, nem mudança de
idade, pois é eterno.
309. Deus é eterno. Não teve começo, e a imaginação
se perderá, o pensamento se confundirá se lhe quiser sondar
o número de anos. Por mais longe que remontemos, sejam
quais forem as suposições que fizermos, sempre defron­
taremos um espaço ilimitado. Há milhões de anos, Deus
existia desde uma eternidade. Rémontemos ainda e· imagine­
mos de novo milhares de anos, milhares de séculos. Deus
existia desde toda uma eternidade. Remontemos ainda tan­
tos séculos para trás quantos foram os segundos decorridos
durante todo esse tempo imaginado há pouco, ainda en­
-contraremos Deus existindo desde toda uma eternidade.
Se passássemos nossa vida a fazer tais conjeturas, a mul­
tiplicar os séculos, por mais assombrosa que fosse a cifra
atingida, estaríamos sempre infinitamente aquCm ela eter­
nidade.
Eis quanto ao passado. A eternidade futura não C me­
nos impenetrável. Já foram aventadas diversas hipóteses
para dar uma idéia a respeito. Imaginemos, por exel11plo,
um pássaro que,· de mil em mil anos, viesse roçar a ferra
com a ponta da asa; acabaria por liquidar inteiramente a
esta, sem que a eternidade tivesse começado.

321

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Que é pois a eternidade? São Gregório tem razão
quando diz que tanto conhecemos a eternidade como o cego
conhece a luz.
310. Custa-nos sobretudo compreender o profundo e
adorável mistério que é para nós a simplicidade da eter­
nidade divina. Dll!'a sempre e se concentra toda no momento
presente. Quanto a nós, miseras criaturas, essencialmente
limitadas, estamos sujeitos à lei do tempoj nossa vida é
uma sucessão de momentos cujo curso não podemos in­
terromper. Â hora sucede a hora, ao minuto, o minuto, ao
segundo, o segundo, ao instante, o instante. A existência
nos é dada gota a gota; cada alegria, cada dor compõe-se
de uma infinidade de parcelas de alegria, ou de dor, que
passam com uma rapidez, que não podemos acelerar nem
reter. Assim, temos entre o passado, cuja lembrança conser­
vamos, e o futuro que ainda não é nosso, o presente, tão
curto, tão fugitivo, que Unicamente nos pertence. Para Deus
não há passado, nem futuro; tudo é presente: "0' meu Deus,
exclama Santo Agostinho ( 1 ) , não há vaivéns em vossos
anos; os que chegam não deslocam os que estão em anda­
mento, vossos anos formam um conjunto. E' um só dia, um
dia sem ontem e sem amanhã, um dia que é a eternidade".
Deus, portanto, de nada se recorda, nada prevê, mas, num
único olhar, abrange todos os tempos que lhe estão sempre
presentes. Quando dizemos: Deus criou, Deus julgará, fa­
lamos de acordo com as exigências da concepção humana
e nossa linguagem é forçosamente imperfeita e inadequada;
não traduz a inefável realidade da eternidade divina, dessa
eternidade que é, segundo a célebre definição de Boécio,
a posse total, simultânea e perfeita de uma vida interminável.
. 311. Em resumo, tudo quanto concebemos, tudo quanto
dizemos de Deus é infinitamente aquém da realidade. Em­
bora ele a nós se revelasse, seriamos incapazes de co­
municar a outrem semélhante conhecimento aplicado a ele;
os termos mais elogiosos nos pareceriam inj(1rias e blas-
ll Confissões, livro XI, cap. XIII.

322

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fêmias, por exprimirem tão mal a verdade. Como disse admi­
ràvelmente o célebre autor da teologia mística: "Deus não
é alma, nem inteligência; não tem imaginação, nem opinião;
não tem raciocínio nem entendimento; não é palavra m;m
pensamento; oão pode ser denominado nem compreendido;
não é número nem ordem; não é grandeza nem pequenez;
não é igualdade nem desigualdade; não é semelhança nem
dissemelhança; não está imóvel nem em movimento nem
cm repouso. Não tem poder e não é poder nem luz. Não
vive e não é a vida. Não é essência, nem eternidade, nem
tempo. Nele não há percepção. Não é ciência, verdade, do­
mínio, sabedoria; não é um, nem unidade, nem divindade,
nem bondade; não é espírito como entendemos os espí­
ritos; não é filiação nem paternidade, nem coisa alguma que
possa ser compreendida por nós ou por outros. Não é nada
daquilo que não é, nada também do que é. Coisa alguma
existente o conhece tal qual é. Nele não hã palavra, nem
nome, nem ciência; não é trevas nem luz; não é erro nem
verdade. Não podemos fazer a seu respeito afirmação ou
negação absoluta, e, afirmando ou negando as coisas que
lhe são inferiores, não saberíamos afirmá-lo ou negá-lo a
Ele, porque essa causa tinica e perfeita dos seres ultrapassa
Iodas as afirmações, e aquele que é plenamente independente
e superior ao resto dos seres sobrepuja todas as nossas
negações (1).

VI. A Santissima Tritidade.

312. Quanto mais nos elevamos na consideração das


grandezas divinas, quanto mais balbuciamos, uma silen­
ciosa adoração é preferivel a muitas palavras; motivo pelo
qual pouco nos estenderemos sobre o adorável mistério da
Santíssima Trindade.
Tres sunt qui testimonium danl in caelo, Pater, Ver­
bum et Spiritus Sanctus, el J,i tres unum sunt. Três são os
1J Dion.yalus Areopa.gita, De mysUca theoJogia, cap. 5.

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que dão testemunho no céu, o Pai, o Verbo e o Espírito
Santo; e esses três são um.
Nada é tão maravilhosamente simples quanto a natu­
reza divina, que, simples ao ponto de não ter sequer facul­
dades diferentes, nem tampouco atos distintos dessa facul­
dade, é comum às três Pessoas divinas. . O Pai, fonte
inefável de ciência e de amor, principio de toda a Divindade,
é essa própria Divindade. Sem prejuízo algum, comunica
esse mesmo Ser divino ao Verbo, e o Pai e o Verbo, em­
bora conservando integral sua natureza, comunicam-na ao
Espírito Santo. A natureza divina possuída pelo Pai é ad­
miràvelmente simples, a mesma natureza divina é possuída
também pelo Filho em sua simplicidade absoluta e igual­
mente pelo Espírito Santo. Tudo quanto dissemos da na­
tureza divina é comum às três Pessoas divinas. O Pai não
procede independentemente do Espírito Santo. O Pai, o
Filho e o Espírito Santo criam, conservam e governam
o mundo por um ato (mico que não é distinto de sua na­
tureza, ato que é o próprio Deus. O Pai, o Filho e o Es­
pírito Santo não são três partes de Deus: são Deus mesmo,
o Deus simples, uno, indivisivel. Não são substâncias, não
são operações distintas, são relações distintas e subsistentes.
313. Deus Pai se conhece; conhecendo-se, produz em
si uma imagem perfeita de si mesmo. Colocando-me diante
do espelho reproduzo, queira ou não queira, uma imagem
fidelfssima de minha pessoa, imagem, porém, que está fora
de mim. Quando penso em mim, quando me digo esta palavra
íntima "eu", reproduzo também, mas desta vez em mim
mesmo, uma imagem fidelíssima, e essa imagem, que é o
meu pensamento, é distinta de mim, mas está em mim.
Quando Deus Pai se conhece, diz-se uma palavra. ín­
tima Verbum, que é a imagem fidelíssima dele mesmo.
Esta palavra está nele, é-lhe infinitamente semelhante, pois
ele se conhece perfeitamente. Há relação entre o Pai, co­
nhecendo-se e produzindo desse modo sua palavra interior.
seu Verbo, e a Palavra infinita, imagem perfeita do Deus
que conhece o Verbo de Deus; essas duas relações distintas

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da mesma natureza são duas Pessoas divinas. A Pessoa que
produz é o Pai, que engendra um Filho; com efeito, é da
essência da geração produzir um ser semelhante àquele que
engendra; ora, como o Verbo, isto é, a palavra interior, é
necessàriamente a imagem do ser pensado, o Pai Eterno,
produzindo seu Verbo, gera uma Pessoa necessàriamente
semelhante a si. Quem poderá conceber a perfeição dessa se­
gunda Pessoa da Trindade, palavra viva, ciência infinita,
sabedoria incriada, inteligência suprema, em que tudo se
encerra?
314. O Pai e o Filho amam-se. O amor, por natureza,
não é uma imagem, é um suspiro, um sopro. "0 amor não
fala, não canta, não brada, mas se exala num sopro ardente
em que vibra toda a alma" ( 1 ). O Pai e o Filho, aman­
do-se, produzem, não um segundo Filho, mas um suspiro
divino, um sopro divino, o Espírito Santo.
O Espírito divino, amor pessoal do Pai e do Filho, não
C o ato de amor. E' o fruto do amor. O Pai e o Filho amam­
se por sua própria essência, havendo relação entre essas
duas Pessoas, que exalam seu amor e o amor que elas pro­
duzem j o termo desse amor é uma Pessoa divina, é o Es­
pirita Santo. Mas Deus é o seu amor como é a sua inteligên­
cia; amor e inteligência não se distinguem de sua essência;
o amor produz, portanto, em Deus uma Pessoa divina, 1nas
essa Pessoa, distinta das outras duas, tem a mesma na­
tureza, C' o mesmo Deus. Como imaginar esse amor, que é
Deus, amor de uma profundeza, de uma extensão, de um
?Oder infinito? lmpeto de amor veemente e calmo de uma
vez, que parece brotar da Divindade qual lava ardente, imen­
sa, mas viva, saindo da cratera, sem contornos e nem li­
mites, ou antes 11ão saindo, pois permanece em Deus, C o
próprio Deus.
315. Tal C o mistério das processões na Santíssima Trin­
dade, processões que são eternas. Deus se conhece e se
contempla eternamente; eternamente se repete a si mesmo
l) :Monsab1-é, 10.0 Conferência. Quaresma 18T4.

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essa palavra interior, esse Verbo divino, que exprime toda
a sua grandeza, todas as suas perfeições, todo o seu Ser,
esse Verbo infinito que diz o S�lJ. poder, os seus desígnios
cheios de sabedoria e de bondade. para com todas as cria­
turas. Nesse Verbo divino trata-se de mim e daqueles que
me cercam, trata-se de tudo que aconteceu e há de acontecer,
não _com abundância de pensamentos e· de palavras, pois
há sómente um pensamento, sómente uma palavra; Deus
tudo conhece e tudo vê, conhecendo-se e vendo-se a ii
mesmo. A palavra que exprime o seu Ser divino diz e ex­
prime todas as coisas. Tal é o colóquio eterno das Pessoas
divinas, colóquio perfeito e inesgotável, conversação de uma
alegria infinita, da qual jamais se podem cansar.
316. A Deus e sômente a Deus é devida toda honra e
glória. Ora, essa glória lhe é dada plenamente, segundo me­
rece. As três Pessoas divinas glorificam-se mU.tuamente;
reconhecem suas perfeições reciprocas, admiram e celebram­
nas conforme merecem.
317. Deus eternamente se contempla, Deus eternamente
se ama. Ama-se com um amor infinito, pois se vê infin.ita­
inente amável, e ama-se tanto quanto merece ser amado.
Ama-se e, amando-se, ama todas as participações de seu
Ser adorável, de suas perfeições infinitas; amando-se, ama
todas as criaturas na medida cm que mais a Ele se asse­
mdham. lpse prior dilexit nos: Ele nos amou primeiro, sem
que nada tivéssemos feito para merecer esse amor; ama-nos
com um amor eterno; caritate perpetua dilexi te.
Ama-se, e seu amor, como todo amor, tende à união.
H.á, entre as três Pessoas divinas, uma necessidade infinita
de união, que é continua e plenamente satisfeita; e uma união
mais íntima seria impossível. O Pai está no Filho e no Es­
pirito Santo, o Filho está no Pai e no Espírito Santo, e o
Espírito Santo está no Pai e no Filho, não à maneira de
conteúdo que está naquilo que o contém, pois o que con­
tl'm e o conteúdo são distintos de uma distinção de na­
tureza, mas de modo muito mais íntimo e verdadeiramente
iRefável, pois essas três Pessoas divinas têm a mesma natu-
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reza. Nada podem produzir exteriormente, nada podem que­
rer, senão por um ato único, uma vontade única, uma ope­
ração única.
318. Dessa união, dessa posse completa de si mesmas
sempre infinitamente desejada e sempre infinitamente satis­
feita, resulta uma felicidade ilimitada, uma complacência
mí1tua, um júbilo, um transporte de indizível alegria. O amor
reciproco que as três Pessoas se têm faz com que se desejem
uma à outra uma felicidade infinita, e, dando-se infinita­
mente uma à outra, proporcionam-se, uma à outra, essa mes­
ma felicidade. O Pai é infinitamente feliz em ver infinita­
mente feliz o seu Filho e o Espírito de amor; cada uma
das Pessoas divinas goza portanto também do júbilo das
outras duas.
Nada pode perturbar nem diminuir essa felicidade. Po­
<.lemos dizer, em toda verdade, que Deus se regozija com
nossas obras, mas dizer que ele se entristece com nossas
faltas é empregar um termo impróprio, pois a mais leve
nuvem de tristeza lhe alteraria sua felicidade. Em Deus
não há possibilidade de tristeza.
Deus é o Ser infinitamente conhecível, infinitamente
conhecedor, infinitamente conhecido; Deus é o Ser ao qual
é devida e tributada uma glória infinita; Deus é o Ser infi­
nitamente amável, infinitamente amante, infinitamente amado,
Deus é o Ser infinitamente feliz. Tal é Deus, tal é a San­
tíssima e mil vezes adorável Trindade. "0' meu Deus, can­
ta a Igreja, Pai sem principio, Filho unigênito do Pai, Es­
pirita Consolador, Trindade santa e una, com todo o fervor
de nosso coração, com toda a força de nossa voz, nós vos
confessamos, nós vos louvamos, nós vos bendizemos: glória
a vós em todos os séculos" ( 1 ) .
li Oficio d11. Santíssima Trindade.

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INDICE
Carta do Bispo de Angers .
Pref6cio .................

CAPiTULO 1
Da Criação
1. Os designios de Deus na obra da criação ............. 9
11. Como o homem deve dispor-se para glorificar a Deus..... 12

CAPiTULO li
Do homem, Imagem de Deus.. HI

CAPiTULO Ili
Das qu■Hdades do soldado de Deus
1. Obediência. 25
li. Paciência . ............•.....•... 26
111. Humildade . ....•............... 2>l
IV. Paz da alma e posse de si mesmo . ;I(}

CAPiTULO IV
Das vantagens da lula.. 33

CAPiTULO V
Do objeto da lata e da morflflc:açio dos senHdos
f. Os apetites sensitivos . 41
li. O sentido visual .. 44
1'11. O sentido auditivo ....... 46
1\1. A língua, órgão da palavra 48
V. A llngua, órgão do gosto ... 51
VI. O sentido do tato .. 54

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CAPiTULO VI
Da idolatria do povo cristão
1. Como as paixões se podem tornar em ídolos. 60
li. O amor aos prazeres dos sentidos.. 65
JII. O orgulho 66

CAPITULO VII
Do amor próprio nas pessoas de bem
1. A vaidade ............... 72
li. A suscetibilidade .................... 70
Ili. A demasiada preocupação de si mesmo.. 78

CAPiTULO VIII
Da virtude da lé: sua natureza, seus efeito&
1. Esclarecimento da inteligência ..... 82
li. O papel da vontade no ato de fê........... 83
Ili. A fê do não batizado e a fê do cristão.... 85

CAPiTULO IX

.,
Da vida da lê
1. Uiferentes graus da virtude da fé.. 119
li. Os efeitos da fé viva

CAPITULO X
Meios de obter a fé perfeita: a humildade das leituras piedosas
1. A humildade favorece os progressos da fê....
li. As leituras espirituais ...........
...
97
Ili. A LiturRia, fonte de luz e de amor 9!I

CAPíTULO XI
Do aumento de fé pele dlreçio das faculdade� da alma
1. Devemos prestar contas a Deus do uso de nossas faculdades 102
li. Subordinação das diversas potências da alma............. 106
Ili. Desordens causadas pelas faculdades inferiores prodomi-
. . . . . 1
1\1. Q>:� de�m"�� ;�;t�i���; �� ·,���id�d�� .:n·�i� -��b��s· ; 07
s

submeter as potências inferiores 110

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CAPiTULO XII
Do recolhimenlo e da uailo a Deus
\. A lembrança de Deus, principio necessário da fr.. 113
li. Luta contra os pensamentos inüteis ........ . . ... ........ 114
Ili. O espírito deve alimentar-se de pensamentos santos...... 116

CAPITULO XJII
Da virtude da esperança
1. R,dações da esperança com as demais virtudes teologais.. I IH
li. Vantagens da esperança . . ..... • ..... . 121
111. Como fortalecer nossa esperança ..... 127

CAPITULO XIV
Da alegria
1. As alegrias namrais ... 132
li. As alegrias sobrenaturais 13.i

CAPITULO XV
Do temor 141

CAPITULO XVI
Da dor
1. Fim providencial da doe 145
li. Vantagens da dor 1'8

CAPITULO XVII
Do aproveitamento da dor
1. Como praticar a resignação em nossos sofrimentos 152
11. As perfeições divinas e a dor........ ...... ... 156
Ili. Os exemplos de jesus 159

CAPITULO XVIII
Do amor de Deus e dos meios de dilatâ-10
1. A caridade cm suas relações com as 011traS virtudes tco-
logais . . ....................... ... 162
li. A ex1ensão da caridade ..... ... . ... 164

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Ili. O amor de Deus, modelo do nouo .. 165
IV. Os elementos do amor ... 167
V. O amor perfeito ....... 168
VI. Os prol?l'eSSOs do amor 16!1

CAPITULO XIX
Dos sacramentos . ......... ..... . 172

CAPITULO XX
Do Sacramento de Penitência
1. A vergonha, consequência do pecado.. . .. . 178
U. Efeitos do Sacramento de Penitência .. ... .. .. . .... 181
Ili. Disposições a levar ao Sacramento de Penitência.. 182
IV. Preparação remota. A pure:ia dá alma.. IRS

CAPITULO XXI
Da Eucarfatla
1. A Eucaristia, memorial de Jesus . . . .. ......... ... ... . . . 192
11 Designios do Filho de Deus na E11carnação e na institui-
ção da Eucaristia .. . .... . ... . . . .. . .. .... 194
Ili. As h11milhações de Deus na Eucaristia 19!)

CAPITULO XXII
Da Comunhlo
1. Disposiçf,es a apresentar ã Comunhão 203
li. Os efeitos da Comunhão 20<J

CAPITULO XXII!
Das Virtudes 213

CAPITULO XXIV
Da conformidade à vontade de Deus
1. Importância do dever de estado..................... . 217
li. Maria, modelo de conformidade ã vontade de Deus.. 222
Ili. União da oração e da ação............................ 223
IV. A imolação completa da vontade humana, 011 a pnl:tica do
mais perfeito 224

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CAPITULO XXV

Da bumlldade

CAPITULO XXVI

Daobedlfnda

1. O homem, ente sociável 237


li. Submissão il autoridade Zi9

CAPITULO XXVII
Da caridade fraterna

1. O fundamento da caridade ..... 242


li. Caridade indulgente mas firme 244
Ili. Perdão das injúrias ................... . 246
1\1. Dar.se a si mesmo e dar Deus ao prciximo 247

CAPITULO XXVIII
Do amor afeUvo. Da oraçlo 251

1. A oração vocal . . .. . 252


11. A oração mental. Sua importância . ... ... . . . 253
Ili. A meditação ..... . .. ... .. . . .. .. . ... . . ...... . . . . .... . . . 255
1\1. Passagem da meditação à oração de união amorosa ou
contemplação . . ........... , . . . • . .. . . ... . ...... 256
\1 . A oração de união amorosa ou de contemplação..... 260

CAPITULO XXIX

Das relações intimas com o mando inivisivel

1. Quanto � !"1ti_l a l�m�ran�a habitual do mundo invisivel.... 265


li. Nossos 1n1m1gos mv1slve1s . . . ..... .. . ...... .. .. . . . .... . 268
Ili. Como distinguir os anjos das almas separadas de seus
corpos . . ... 268
IV. Nossos amigos do purgatôrio .. 270
V. Os eleitos . ........ .. . . ... 272

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CAPITULO XXX
Da hierarquia celeste
1. Os anjos . ............ 274
li. As almas bem-aventuradas 275
Ili. Os Santos 277

CAPITULO XXXI
De Maria
A1aria, obra-prima de Deus e intermedi.i.ria entre Deus e nós 279
Nossos deveres para com Maria.. .. 281

CAPITULO XXXII
De Je••·
1 Maravilhoso poder de sua inteligência 285
li Operações celesles da alma de Jesus................... 286
Ili Ciência infusa, amor livre e meritório da alma de Jesus... 28R
IV. Ciência humana de Jesus 290
V. O Homem-Deus 292
VI. Conclusão 293

AP2NDJCE
Dos atrtb11tos de Deas
1. A obra de Deus no mundo visível. . . . .. .. . • ... .. . ...... 295
li. Imensidade, ciência, poder de Deus.................... 302
Ili. Bondade, santidade de Deus ...... , .. . ... .. . ..... . .. . .. 308
IV. Justiça, paciência, misericórdia de Deus para com os
pecadores . . . . . . .... . . 313
V. Deus é o Ente necessário, simples, imutável, eterno... 31R
V I. A Santíssima Trindade . . .................. .. .... 323

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