Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O CAMINHO
QUE LEVA A DEUS
19.l7
EDITORA "\/UZES" PETROPOLIS
NIHIL OBSTAT. Petropolis, die
1 octobris anni MCMXXXVII. Fr.
Fridericus Vier, O. F. M. Censor
_______________
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CARTA DE DOM JOSE' RUMEAU, BISPO UE ANGERS
Senhor capelão.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
PREFACIO
v v m il tã n o
�;�v1r-�e :��e �::�d�:10 ::;b�t� - p!\� � sc1ar����-� 1 s � 1�:�����!
ao bem.
E ste livro, em que eu quisera exp or as regras do santo amo r.
ofereço-o a todas as almas ãvidas de p erfeição, a todos aqueles
�
u
ci:�:ã�
�
s ;;���t:. e s e
�ãoj :: e'm;�e��� ���f:
1
?6
�·ão. mas em corre sponder ao seu amor com um verdadeiro amor.
e çã
:m�la� d� �ra�
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
nHls ufanam-se dessa \·itõria, mas há de passar. Então as queri
das ""secularizada5" chegarão mais râpidamente ao fim de sua
provação, se lhe aceitarem todas as privações e se mostrarem,
sempre, e apesar de tudo, fiéis a nosso Senhor. ""Tudo redunda
em beneficio daqueles que amam a Deus". O Senhor sen·e-se
das tribulações e das perseguições para aperfeiçoar seus verdadei
ros amigos. Se estas poucas páginas pudessem, cm parte, suprir os
meios de santificação de que foram privadas essas almas e ajudâ
la.� a tirar proveito de seus sofrimentos, cu estaria hem pago dos
meus trabalhos.
E võs, queridas religiosas do Bom Pastor? Alegra oferecer
\'OS, tambêm, este novo trabalho. Vossas irmãs da Casa-Mãe
fü•eram-lhes as primicias e reconhecerão nestas páginas muitas
\•erdades que jâ lhes foram expostas. Sinto-me feliz, hoje, em
fazê-las chegar àquelas dentre võs que trabalham e se dedicam
nos outros conventos da Congregação, àquelas, principalmente, a
quem o divino Mestre me havia encarregado de formar à piedade
e à vida interior durante os dias tão importantes de seu novicia
do. A todas, professas e noYiças desta benemérita Congregação.
folgo em declarar pitblicamente minha adesão à sua tão bela obra
e minha estima pela sua dedicação e seu zelo. Nunca me ufanei
tanto de meu titulo de capelão da Casa-Mãe do Bom Pastor.
como desde que o inferno se le\'antou contra vós por não vos per
doar de lhe arrancardes tantas pobres almas! Tendes a honra
de estar, mais que outras, expostas aos ataques dos inimigos
de Oeus. A imprensa impia de todos os países, referindo-se a
,'Os, divulga as calúnias mais in...-crossímeis (1 ), mas vôs vos con
i;olais com a lembrança das palavras de Jesus, que vos quadram
admirâvelmente: "Bem-aventurados sois quando vos injuriarem e
,·os perseguirem, e disserem contra võs todo o mal por minha
causa; alegrai-\'os e exultai, pois é grande a ,·ossa recompensa
no cêu''.
Não posso terminar este prefácio, sem dirigir um ªJradL'
cim�ilto discreto, porêm vivo, âqueles que puseram a minha disposi
ção preciosos manuscritos; servi-me deles profusamente e 11e este
Ir.oro fizer algum hem, cabe-lhes a maior parte.
1 l Quando estas linhas foram escritas, em 1903, a Congrega
ção tio benemérita cio Bom Paator era alvo dos mais odiosos
ataques da parte dos jornais. Esse rumor infernal cemiou, e a
Con1rre�çã.o. visivelmente protegida por Deus, pôde continua.r suas
obras em todos os paiae.s cio universo, rejublla.ndo os verd&deiros
à'lnlgos do Senhor.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO 1
Da criação
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Foi este, com efeito, o escopo que se propôs o Se
nhor ao fazer a natureza tão bela: deleitar o espírito e con
quistar o coração de seus filhos. Para fazer-se amar pe
los homens, forçoso era fazer-se conhecer e, não poden
do ser conhecido diretamente, não podendo ser visto tal
qual é, em si mesmo, soube admiràvelmente manifestar
seus atributos invisiveis, revelar suas grandezas e perfei
ções nas obras que produziu: lnvisibilia enim ipsius per ea
q11ae /acta sunt inlellecla conspiciunlltr. Fez, da natureza, um
livro divino excelente para a instrução de seus fiéis. Ai de
nós! nem todos sabem ler nesse livro. As almas não abrasa
das pelo amor divino pouco se lembram de Deus, e con
templam a obra, sem cogitar do obreiro, vêem o reflexo,
sem pensar na luz. A natureza é, portanto, vazia para a
alma vazia de Deus. Mas a alma cheia de Deus vê e des
cobre Deus em toda parte; aspira em tudo o perfume divino,
percebe em tudo um sorriso de Deus, ouve de todos os
lados palavras que o revelam. Os santos liam sem esforço
nesse magno livro da natureza, e tudo lhes falava do
Bem-amado.
Com efeito, tudo fala de Deus ao coração puro: Beati
mundo carde quoniam ipsi Deum videb1ml: "bem-aven
turados os corações puros, porque verão a Deus''. Vê-lo:.ão,
sem dllvida, no céu, e esta será a esplêndida recompensa de
sua pureza; mas se aqui na terra o não podem ver, face
a face, podem pressenti-lo, contemplá-lo em suas obras;
quanto maior for a pureza, mais penetrante será o olhar
ela alma. Quando as nuvens das paixões e as espessas né-•
voas do pecado não obscurecem o céu da alma, o Sol divino
mostra-se-lhe a descoberto e seus raios iluminam e abrasam.
Filhos dos homens, purificai, pois, vossas almas, não
sômente das máculas do pecado que as desfiguram,· como
tambCm das imperfeições e dos afetos naturais que lhes
deslustram a beleza; lançni, então, os olhos acima e ent
torno ele vós, e os cC11s e a terra vos falarão de Deus. Os
astros que brilham sobre vossas cabeças vos dirão: Olhai
para n6s; admirai esses fachos acesos pelo Senhor do mun-
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
do para guiar-vos os passos e recrear-vos a vista. Se nos
so brilho nunca desmaia, se a luz que difundimos não nos
empobrece, imaginai a inesgotável opulência, compreendei
o i�finito esplendor daquele que nos criou e que é a ori
gem de toda luz, de toda beleza, de toda verdade.
Lançai os olhos sobre os seres mais humildes que vos
rodeiam e também esses vos farão o elogio do Criador.
Oh! Como deve ser belo e suave aquele que espalhou sobre
a terra, neste mundo inferior da matéria, tanta beleza e tan
ta suavidade; como é rico e benfazejo aquele que semeou,
em profusão, sobre toda a superfície terrestre, plantas tão
diversas, tantas árvores férteis e frutos· nutritivos: aquele
que depositou tesouros até nas profundezas da terra, que
povoou-de animais tão variados a terra e os ares, os rios e
os mares. E', de fato, rico, poderoso e bom, pois todas essas
obras, fê-las para o homem, sua criatura privilegiada, a
quem deq o dominio do mundo terrestre: o-mnia subjecisti sub
pedibus ejus, oves et boves universos, insuper el pecora
campi: "Colocastes tudo, Senhor, sob nosso poder, os re
banhos da terra, as aves do céu e os peixes que habitam
o oceano".
3. Mas o mundo material é, apenas, a imagem simbóli
ca do mundo espiritual; e aquilo que as criaturas irracionais
fazem inconscientemente, pois proclamam sem o saber a
glória de Deus, os homens devem fazê-lo livrementé e com
maior razão. Quão belo é, visto do céu dos eleitos, o es
petáéulo das almas já nesta terra, fiéis a Deus: cada qual
tem· sua beleza particular, sua forma e sua cor, segundo
as virtudes que pratica e a missão que lhe é confiada; à
graça santificante, que as penetra, transfigura-as e lhes
comunica um brilho que, invisivel aos nossos olhos carnaiS,
encanta os olhos dos anjos e dos santos. Assim como a
multidão de estrelas, que a Escritura tão bem é.lenomina
o· exército dos céus, nos enleva o olhar, assim também
a multidão de almas justas, aqui disseminadas, acolá reuni
das em grupo compacto, mas formando um todo maravilhosa-
li
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
mente harmônico, um exército disposto em posição de batalha,
encanta o olhar dos eleitos.
4. Se os justos, na terra, são transformados pela gra
ça, quão resplandecentes serão quando, terminado o exílio
e apagada toda mancha, a glória houver sucedido à graça!
F1l/gebunt sicut stelltre in perpett1as aeternitates. "Brilharão
como estrelas na perpetua ctern idade", canta o profeta
Daniel; todos, porém, não lerão o mesmo esplendor, diz
São Paulo, pois, se entre os astros há diversidade de luz,
o mesmo se dará com os bem-aventurados.
Quão belo será, quão belo jâ e este exército celester
Jesus, o Sol divino, é o seu rei, e, em sua presença, as es
trelas perdem o seu clarão, e se apagam. Maria, a quem a
Igreja aplica a palavra da Escritura: pulchra 11t tuna, "bela
como a lua", é o astro que sobrepuja aos demais e não cede
em brilho senão ao fulgor de seu divino Filho. Dele, além
do mais, recebe a luz, para reproduzi-la suavizadà., é certo,
porém não embaçada; menos deslumbrante, porém sem
mancha, pois nunca um corpo estranho, uma nuvem, uma ne
blina sequer veio interceptar-lhe os raios do Sol divino e
impedir a lua mística de receber-lhe todo o fu1gor. Sua
clareza é, portanto, perfeita e o Sol divino nela se reflete com
maravilhosa pureza.
Assim, as estrelas do firmamento, os astros do dia e
da noite, são feitos para Deus. Os justos na terra, e os elei
tos no céu são feitos para Deus; Maria, a rainha dos anjos
e dos homens, o espelho fidelíssimo das perfeições divinas,
C feita para Deus e lhe proclama a grandeza, o poder e
a santidade.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Escutai, almas cristãs, a linguagem da huli1ilde plan
ta: "Vivo para Deus, que Deus me fez para si. Encanto a
vista, espalho o meu perfume, porque ele assim o quer; se
nenhum olhar humano me contempla, não sou menos feliz,
pois é ainda a sua vontade". E, uma vez murcha, poderá
dizer: "Alcancei o meu fim, cumpri a vontade de meu Senhor.
Ele está satisfeito, e a mim $Ó me resta morrer e desaparecer!"
"filhos dos homens, aprendei de mim a representar bem
o papel que vos foi designado pelo soberano Senhor de to
das as coisas. Como eu, deixai-vos cultivar, podar, desbastar;
então vos tornareis arbustos graciosos, flores magnificas, ou,
se for do agrado divino, plantas mais humildes, mais füeis,
formando-se assim o jardim perfeito onde o útil se une ao
agradável. O Senhor se regozijará, ufano, e ali gozará suas
delicias".
E quão mais magnifico seria o mundo das almas, já
tão belo, se estas se amoldassem dàcilmente aos desígnios
de Deus, se aceitassem sobretudo o papel que a Providência
lhes quer designar! "Quisera ser uma flor, di,rá esta, para
encantar os olhos do Senhor". Mas se a flor aqui é inútil, se
o lugar em que ele vos colocou é o de uma erva modesta,
menos brilhante, sem· dúvida, mas não menos útil, não deverá
a sua vontade ser a norma da vossa?
6. Este principio evidente, aceito em teoria por todos,
é muilo esquecido na prática. E' esquecido, primeiro, por
aqueles que amhicionam posições ou empregos agradáveis
à natureza, visando o bem-estar, as honras, ou a isenção
de certas dificuldades, de preferência à simples vontade
de Deus. Procuramos evitar a cruz, temos horror às contra
dições ou às humilhações, e embalamo-nos na frívola es
perança de que, mudando de posição, não teremos mais
de sofrer semelhantes provações.
Nunca procuram subtrair-se ao plano divino aqueles
que permanecem onde a Providência os colocou. Se, entre
ocupações múltiplas que se apresentam, preferem as mais
agradáveis; se, entre virtudes a praticar, optam pelas mais
13
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
fáceis óu inais brilhantes, eles perturbam também a ordem
estabelecida pelo Senhor e expõem-se aos seus castigos.
Consinta, pois, cada qual em ser aquilo que o Senhor
o quis fazer, e não prefira seus projetos vãos aos decretos
da infinita Sabedoria. Consinta, também, em deixar-se amol
dar segundo a vontade divina sem opor urna resistência cri
minosa ao labor do jardineiro que recebeu o encargo -de
cultivá-lo.
7. Com efeito, o Senhor muniu-se de auxiliares para a
obra irnportanlíssima da cultura das almas. Se é ele quem
fertiliza, quem dá vida e crescimento, é Paulo quem planta,
C Apolo quem rega, é o ministro de Deus quem corta, poda
e desbasta o jardim do divino Mestre. Uma árvore, que
brotasse por si mesma, sem cullura, sem enxerto, sem re
ga, uma árvore que a tesoura do jardineiro nunca defendes
se das gomeleiras e não fosse desembaraçada das plantas
parasitas que lhe devoram a seiva, ou da vizinhança do mato
ou das outras árvores que a comprimem e sufocam, seria
uma árvore selvagem que produziria frutos pouco abundantes
e sem sabor. A árvore carece, pois, de ser podada e des
galhada. Se ela fosse dotada de entendimento e de sen
sibilidade, não \'cria, por certo, sem receio, aproximar-se-lhe
o jardineiro, com a tesoura na mão; mas, se fosse, ao mes
mo tempo, inteligente e sensata, alegrar-se-ia, ao pensar que
uma operação, dolorosa sem dúvida, mas necessária, ia re
tirar-lhe tudo quanto lhe prejudicava a fertilidade, ou dar
lhe uma forma mais graciosa, com a qual agradaria mais ao
senhor do jardim.
8. Há, no jardim da Igreja, muitas árvores que resis
tem à poda e ·não se deixam desgalhar, como deveriam;
não são raros aqueles que não se submetem, ou imperfeita
mente, à cultura necessária. E' que nos repugna deixar exa
minar nossos atos, descobrir o ardor de nossas paixões, a
. baixeza de nossa concupiscência, os nossos muitos defeitos.
Receamos ouvit certos conselhos que estorvariam talvez os
-planos que nos traçamos, que exigiriam esforço, e nos. obri
.gariam a uma vigilância incessante, a atos muito penósos de
·14
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
renuncia. Custa-nos ver contrariados os nossos gostos, mo
derada a nossa atividade natural e sermos constrangidos a
permanecer continuamente no esquecimento e na humildade.
Que desejamos, em geral, quando nos chegamos ao nosso
diretor espiritual? Queremos que nos dê provas de sua es
tima, que aprove os nossos atos, que nos dê razão nas con
tradições que experimentamos; queremos ser consolados, ou
ver censurados aqueles que nos fazem sofrer. Se ouvimos
a voz da graça, a exigir sacrifícios, procuramos qualquer
motivo para nos isentarmos, queremos ser animados a lison
jear a natureza, na esperança de adormecer as reclamações
da consciência e descansarmos em uma doce tranquilidade.
Para alcançar esse fim, quanta habilidade não desenvolvem
certas pessoas, por vezes sem o confessar a si mesmas; como
sabem dissimular suas ambições, fazer valer pretextos fú
teis, faiscar os acontecimentos! Quando recorremos à dire
ção com essas intenções humanas e esse espírito mal in
tencionado, quando nos iludimos a nós mesmos, antes de
iludirmos ao nosso diretor, tornamos a direção improficua
e abusamos de um dos nossos melhores meios de progresso
que o Senhor proporcionou a seus filhos.
9. A alma humilde, cujo único desejo é progredir, cus
te o que custar, no amor divino, compreende, de modo com
pletamente oposto, a direção, e dela consegue preciosos auxí
lios. Não se dissimulando a si mesma seus defeitos, dá-los
a conhecer com grande simplicidade e inteira franqueza;
sabe que o resultado da direção depende dela, tanto quan
to de seu guia; que não deve esperar iniciativas da parte de
le, mas, de si mesma, solicitar conselhos, indicar suas fra
quezas intimas, suas dificuldades, o obstáculos que atraves
sam seu caminho; quer ser animada, não a dispensar-se
do que a constrange e incomoda, mas a combater corajosa
mente e a nunca ceder ã moleza, nem às reclamações mal
fundadas da natureza.
10. As plantas de nossos jardins dão-nos outra lição
preciosa; ensinam-nos como devemos portar-nos nas tempesta
des que, por vezes,· assaltam nossas almas.· Entre as ·plan-
15
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
tas, umas, com efeito, vergam sob a borrasca, enquanto ou
tras mantêm-se inflexíveis, enfrentando, destemidas, o tem
poral. Estas, porém, se forem ainda frágeis, não resistirão
ao choque dos ventos; quebrar-se-ão e, com seus despojos,
irão juncar o solo. Mas as que se vergam não se partem; sob
a pressão violenta da tempestade, talvez se mancharão; o
solo embebido, que roçam, lhes deixará, nas folhas, alguns
salpicos de lama; mal, porém, o temporal acabado, algumas
gotas derramadas pelo jardineiro os farão desaparecer. En
tão as plantas brilharão com novo esplendor, animadas pelos
raios benfazejos cio sol.
Quando uma alma for assaltada por violentas tempes
tades, seu primeiro dever é humilhar-se e apelar para o
Senhor. Se, confiante em si mesma, gaba-se de não vergar,
arrisca-se muitíssimo, pois procura a força onde esta não
se encontra; não tarda em sucumbir, e sua presunçosa con
fiança cede ao abatimento, ao despeito, ao desânimo.
Quem se humilha, ao contrário, confessa, envergonha
do, suas más tendências e sua grande fraqueza e, não con
fiando senão em Deus, recorre à oração e sai vitorioso da
luta. As pessoas que sofrem incessantes e mui injustas con
tradições, que estão expostas a repetidos vexames, são levadas
a impacientar-se e a murmurar; assim também aquelas, cujas
lutas são secretas, e quiçá mais penosas ainda, sofrem por
sentir em si mesmas tendências más e, por vezes, mui violen
tas. O melhor, o único meio de conservar a paciência, de man
ter intata a virtude, C começar por se humilhar ante as revol
tas c;(a natureza e implorar auxílio junto àquele que é o único
a poder fortalecê-las contra si mesmas e contra seus inimi
gos. A tal preço a vitória está garantida. Nessas grandes
provações a fragilidade humana leva-nos, por certo, a co
lneter faltas, pois sómente as almas muito perfeitas podem sus�
tentar esses rudes assaltos sem ter que lamentar fraqueza
alguma; as almas generosas, mas não heróicas, contam tri
unfos e perdas; mas as vitórias sobrepujam as derrotas. De
mais, os atos de virtude praticados pela resistência a esses
impetos violentos denotam uma vontade forte e meritória,
16
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
enquanto os momentos de fraqueza, devidos a um ligeiro des
falecimento, a um esquecimento passageiro da vontade, só
acarretam uma responsabilidade diminuta e são fàcilmente
perdoados. Uma confissão sincera apaga todas essas manchas
e a alma sai da provação mais gloriosa e mais querida de
Deus.
11. Mais querida de Deus, porque o glorificou imensa
mente. Se as criaturas e os astros, se as flores e. os ar
bustos celebram a glõria de Deus, nenhum ser o honra nem
o glorifica como a alma fiel e, principalmente, comv a al
ma experimentada.
Não são aqueles que ocupam as mais altas posições
os que mais brilham aos olhos dos anjos, nem os que re
fletem, com maior pureza, o esplendor da Divindade; ao
contrário, são, com frequência, as almas desconhecidas e
desprezadas pela maioria, que, com maior perfeição, imi
tam as virtudes de Jesus e, por isso mesmo, as perfeições do
Pai celeste. A vida de Jesus foi, durante trinta anos, uma vi
da toda escondida, toda de sofrimentos: in laboribt1s a ju
rt1ntl1te mea. Houve sempre na Igreja almas ignoradas cuja
vida foi uma imolação contínua, e que parecem não ter pas
sado sobre a terra, senão para reproduzir as dores do divi
no Mestre. A contradição é sua bebida e o sofrimento seu
alimento; dir-se-ia, por vezes, que todas as criaturas com•
piram para atormentá-las, enquanto os acontecimentos mai:.
insignificantes redundam-lhes em desvantagem. E' a Providên
cia que lhes prepara essas múltiplas ocasiões de sofrer. Pou
cos são, porém, entre os homens, aqueles que lhes compreen
dem o caminho e se compadecem dos seus males. O Senhor,
porém, aufere grande glória dessas almas escondidas.
12. Outros servos de Deus também o glorificam so
hremodo, irradiando, todavia, maior brilho e atraindo sobre
si maior atenção. São aqueles que, recebendo do alto vivas
luzes, têm por missão fazê-las recair sobre seus irmãos. O
Senhor os ilumina com fulgor tanto maior, quanto melhor
souberem preservar-se do espírito do mundo e voltar os
olhares e os pensamentos às altas regiões da fé. Então quan,-
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
tQ. mais permanecem isentos de preocupações naturais, e
atentos aos genuinos interesses de Deus, tanto mais se exer
cerá. sobre eles a influência divina. Mas a vida lhes está tam
bl?m semeada de provações e a missão que têm a cumprir
(• fl?rtil cm cruzes.
Esses mártires desconhecidos e esses apóstolos zelo
sos são, entre os homens, os que maior glória rendem a
Deus; formam, já neste mundo, a guarda. a escolta de hon
ra do soberano Mestre e serão lambem no cCu os que de
le se aproximarão mais de perto, ocupando os primeirns
lugares em sua corte.
13. Outras almas têm uma vocação toda particular,-que
convêm assinalar aqui. As cortes reais têm, anexa, a casa
da rainha. E' composta de oficiais, camareiros, damas de
honra, que não deixam, por isso, de fazer parte do serviço
do rei. E' ao rei que servem, servindo à rainha, mas a esta
consagram seu tempo, e prestam assiduos serviços. Neste
mundo lambem há almas, que Deus parece reservar, de mo
do todo especial, para o serviço de sua gloriosa Mãe. Tais al
mas procuram a Deus, sem dúvida, e não vivem senão para
Deus, mas vão sempre a ele por Maria. O pensamento dessa
Mãe querida apresenta-se sem cessar ao seu espírito e nada
fazem senão por ela e com ela. O espírito que as inspira,
atrai constantemente sua atenção sobre a bondade e as ama
bilidades dessa santa Mãe. E o caminho dessas almas é
simples, mas cheio de paz e mui seguro.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO li
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
lhe o Senhor a memória que conserva a lembrança desses be
nefícios e permite ao homem considerar-lhes a abundância
e a variedade. Mas Deus lhe deu, principalmente, a inteligên
cia, sem a qual todos esses bens permaneceriam incompreen
didos e não atingiriam o fim para o qual foram criados.
Pois, se todos os seres falam de Deus, se lhe revelam o
poder, a riqueza, a sabedoria, a bondade, o amor, falam
uma linguagem misteriosa que eles mesmos, seres inferiores,
não podem entender. O Senhor cuida dos lírios dos cam
pos e dos humildes passarinhos, mas nem o llrio nem a ave
zinha compreendem que a vida lhes fo! dada e lhes é con
servada por um ser superior; a natureza, tão rica e tão bela,
nada revela à águia que, planando a grande altura, abrange
com seu olhar penetrante tantas belezas ao mesmo tempo.
Um livro C um mistério para quem não sabe ler.
Então, para coroar sua obra, o Senhor colocou no meio
desses seres irracionais um ser inteligente, capaz de ren
der um tributo de glória ao autor de tamanhas maravilhas
e um tributo de gratidão ao Benfeitor supremo que o cumula
de dons.
15. Não C sômente pela inteligência e pelo louvor das
grandezas divinas que o homem proporciona glória a Deus.
Ele mesmo C, neste mundo, a prova mais evidente da sa
bedoria, do poder, da bondade do Altíssimo; é a obra pri
ma do artista divino que lhe imprimiu o cunho de suas per
fei_ções. Não foi ele feito à imagem de Deus?
Deus é o ser sumamente inteligente; Deus Pai se co
nhece, contempla-se, e esse conhecimento infinito produz
o Verbo, igual ao Pai, de quem é o espelho fiel, e de quem
reproduz, sem mancha alguma, o esplendor infinito.
O homem tambCm produz seu verbo quando, por um
ato de inteligência, representa-se, a si mesmo, em concep
ção fiel, o objeto de seu conhecimento, encarnando sua idCia
em uma palavra, �•erb11m, que pronuncia interiormente, mes
mo quando permanece silencioso em relação aos outros ho•
20
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
mens. Essa produção do verbo humano que não ê, sem dú
vida, senão uma imitação imperfeita e vulgar da filiação
divina, resulta, não em uma pessoa semelhante e igual
à pessoa que pensa, como na Santíssima Trindade, mas
a 11111 puro acidente, a uma manifestação do seu intelecto.
O pensamento humano não se assemelha, pois, senão mui
to de longe, ao Verbo divino. Entretanto, nada existe, no
mundo material, que mais se aproxime da geração do Verbo,
pada de mais belo, em toda a natureza, que um só ato de
inteligência.
Não será lícito dizer que, quanto mais puros e eleva
dos forem os pensamentos suscitados em nossa inteligência,
menos imperfeita será a iniagem de Deus em nós? Quando,
principalmente, fazemos um ato de fé, quando, sob a in
fluência da graça, com o auxilio das luzes sobrenatura.is,
nos repelimos, a nós mesmos, as grandezas de Deus, é Deus
quem opera em nós, conosco, e essa operação sobrenatural
reproduz mais fielmente a geração do Verbo no seio da
Trindade; esse alo de fé resplandece de uma beleza su
perior, de certo modo divina, que sobrepuja a todos os es
plendores de ordem puramente natural.
Além do conhecimento, há, em Deus, amor. O Pai e
o Filho se amam com um amor perfeito, infinito, e o termo,
o fruto desse amor ê o Espírito Santo, elo eterno, incriado,
vivo, que une o Pai e o Filho. Ora, se o ato de inteligência,
produzido na alma humana, representa a concepção do Ver
bo, o ato de vontade ou de amor é a imagem imperfeita,
sem dtivida, e distante, porém verdadeira, da espiração do
Espírito Santo. Não podemos ainda dizer, neste caso, que,
quando nossa vontade produz atos sobrenaturais de caridade,
com o concurso e sob o impulso da graça, se forma tam
bém em nós uma semelhança menos grosseira da espiração
do Espírito Santo?
Assim, a união dessas duas operações sobrenaturais,
operação da inteligência que crê e da vontade que ;una, pro
·duz cm nós a verdadeira semelhança com a santa Trindade.
21
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Transfigura-nos a alma e redunda em honra e glória daque
le que a fez tão bela e lhe permite produzir atos tão subli
mes. Assim também, por si só, a alma fiel glorifica o Se
nhor mais que todas as criaturas inferiores reunidas; quan
to mais santa, e, por conseguinte, mais bela for, tanto
maior glória renderá ao seu Criador.
16. Temos a liberdade de produzir esses atos sobre
naturais que imprimem às nossas almas uma beleza celes
te; a glória que rendemos a Deus depende, pois, de nossa
cooperação. A planta honra aquele que a criou; sua forma,
suas qualidades, sua vida, seu crescimento, sua florescên
cia, sua reprodução, manifestam o poder divino, mas ela
mesma não tem consciência disso e não lhe ê dado aumen
tar essas propriedades, nem diminuir-lhes a beleza e o
esplendor.
O homem, ao contrário, pode prestar-se mais ou me
nos aos designios divinos; pode render a Deus, conforme
quiser, uma brilhante homenagem, ou uma ligeira glória. A
planta glorifica a Deus, por necessidade, e o homem por
atos de plena liberdade, mais ainda, por atos que equiva
lem de fato a vitórias. Vitórias, sim, pois o homem foi fei
to para vencer, e, pela plena vitória, honra-se a si mesmo,
enquanto honra a Deus.
' Foi uma vitória que o Senhor quis que nossos primei
ro!'> p11.is obtivessem quando os submeteu à prova no paraíso
tcnestre. Se tive'!sem vencido o tentador, imensos teriam
sido os resultados desse triunfo. Já antes deles, foi por uma
vitória que os anjos fiéis alcançaram a felicidade eterna.
Depois do pecado original, a dificuldade aumentou;
.!�vemos, não sõmente vencer nossos inimigos, mas vencer
nos a nós mesmos. As potências interiores e exteriores d9
homem contrihuiram para o pecado; sua natureza trans
íormou-se; em todo o seu ser manifesta-se a revolta con
llii o bem, a tendência para o mal; é-lhe mister reprimir
essa revolta, dominar essa tendêncin; C-lhe mister subjugar
iWa natureza e vencer todas as resistências que esla lhe opõe.
22
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Nada C mais belo que a vitória, nada mais vergo
nhoso ql!1.: a derrota. Assim C que quem não sabe triun
far de �i mesmo, se envergonha e procura frequentemente
encobrir sua queda; não quer confessar que sucumbiu, quer,
antes, fazer crer que não foi vencido, prestando um magní
fico testemunho à beleza da vitória. Os povos pagãos sa
crificavam tudo para alcançar uma vitória sobre seus ini
migos, mas compreendiam também que mais vale vencer
se a si mesmo. Nada, de fato, sobrepuja esta vitória so
bre si mesmo, e o Espírito Santo proclama: "é mais glorioso
V("r,ccr-se a si mesmo, que tomar de assalto as cidades" (P:1
IG, 32),
17. O homem fiel glorifica assim melhor a Deus que os
outros seres, porque ele mesmo lhes é incomparàvclmente
mais belo, e porque pratica obras incompar.àvclmentc mais
honrosas.
E' mais belo porque Deus lhe comunica, pela graça,
um fulgor ma"gnífico, um brilho que outra coisa não C se
não uma participação ao esplendor divino, um reflexo, uma
imagem da Trindade santíssima.
Realiza obras gloriosas, porque são obras vitoriosas e,
ao mesmo tempo, sobrenaturais, isto é, obras humanas I!
também divinas, feitas de acordo com Deus, cuja parte exce
de a do homem. E' Deus, com efeito, quem opera cm pri
meiro lugar, inspirando a idéia do bem, atuando sobre as
faculdades humanas para incitá-las a obrar sobrenatural
mentc. Do Sol divino se desprendem como que três raios que
penetram cm nossas almas: um se une à nossa memória,
lembrando-nos a idéia do bem a fazer, ela virtude a pra
ticar; outro se une à nossa inteligência e torna sobrenatural
mente luminosos os motivos que nos levam a agir; o outro,
enfim, se une à nossa vontade, excita-a, impele-a e comunica
lhe uma força divina. Desta tríplice influência resulta um
ato único, sobrenatural, que glorifica a Deus porque dele
pnm.'.-m, a ele deve sua beleza intrinseca, e porque o pró
prio homem, na parte que lhe cabe nessa obra sobrenatural,
23
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
não pode agir senão pelo poder que recebe de Deus e
não quer agir senão para a glória de seu Senhor e de seu
Deus.
Como ê grande esse ato. sobrenatural praticado pela
alma fiel, embora passe despercebido aos olhos das cria
turas; é de origem divina, é divino por participação e, por
conseguinte, os frutos que produz são imortais como Deus
mesmo. E quais os frutos desses atos sobrenaturais, e atê
de um só ato sobrenatural? São acréscimos da graça, o em
belezamento da alma, o merecimnto que, no céu, se trans
formará em acréscimo de glória e de felicidade eterna pa
ra o homem que agiu sobrenaturalmenle e, por isso mesmo,
em acréscimo de glória exterior para Deus, que durará to
da a eternidade.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO Ili
L Obediência.
19. A primeira qualidade de um soldado é o espírito
de disciplina; C-lhe exigido, antes de tudo, que obedeça,
que avance quando for dada ordem, ou permaneça em
seu posto, com risco da própria vida, quando os chefes
assim o ordenarem. Um exército em que cada soldado se
guisse suas próprias idéias e procedesse a seu bel-prazer,
estaria condenado a uma derro.ta certa. Com maioria de
razão, o soldado de Deus, que só pode vencer se for sus
tentado por Deus, deve combater conforme Deus quer; de
ve ir, não aonde lhe agrada, mas aonde Deus o quer; de
ve agir não segundo seu gosto ou capricho, mas segundo os
desígnios de Deus; deve empregar os meios que a Providên
cia lhe prepara, ou que o Espírito divino lhe inspirar, e não
atender às suas idéias individuais; deve renunciar a seus pró
prios projetos e submeter-se à opinião e às ordens daqueles
que têm por encargo esclarecê-los e conduzi-los.
25
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
São Francisco de Assis, submisso às msp1raçocs que
recebera, funda sua ordem sobre as bases da pobreza e
da humildade. Este grande santo era de uma simplicidade
encantadora e tudo quanto respirasse altivez, convenção,
grandeza, ·lhe era estranho. Entre seus primeiros discípulos,
11111 dos mais notáveis pela inteligência, pela energia e
mesmo pelo fervor, foi Frei Elias; mas seu espírito não era
o �o santo fundador; às idêias de Francisco, entretanto,
tão conformes à doutrina do Evangelho, queria substituir
suas próprias idéias. julgava, sem dúvida, a simplicidade
ingênua de seu Pai indigna de uma ordem destinada ao
apr1slolado, apta sômente a inspirar desprezo aos fiéis:
parecia-lhe necessário maior dignidade, maior nobreza. Não
era o Espirita do Senhor que o inspirava e o impelia nes
se caminho, e sim o espírito do mundo. O fim deste ho
mem célebre provou bem que as maiores qualidades de es
pírito e de coração, se não forem aliadas a uma perfeita
submissão à graça, de nada servem, e antes fazem sobres
sair a fraqueza humana.
Quantos esforços perdidos, quantas lutas improfícuas
naqueles que agem segundo a sua própria prudência e
vontade, em vez de procurar conhecer e seguir a vontade di
vina. O povo de Israel - como no-lo demonstra toda �
sua história - era vencido infalivelmente quando marcha
va para o combate antes de receber as ordens do Senhor;
era-lhe, ao contrário, garantida a vitória quando consul
tava cuidadosamente os oráculos divinos e a eles se confor
mava. Deus nunca abandona quem combate por ele e só
quer cumprir a sua santa vontade. Este alcançará sempre,
graças a Deus, vitória sobre todos os seus inimigos.
li. Paciência.
26
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
tontra-marchas, nem as vigílias, nem as privações, nem a·s
intempéries, aquele que não se queixa se for mal alimen
tado, mal alojado, mal vestido; que supor.ta, alegre, todos
os sofrimentos, feliz de poder, mesmo a tal preço, contri
buir para a defesa e o triunfo de sua pátria.
A luta que dev�m sustentar os soldados de Cristo é
fértil cm trabalhos duros e o cristão que quer alcançar a
vitória deve armar-se de uma paciência a toda prova. Os
sofrimentos lhe vêm, quer de Deus; que experimenta seus
fiéis, afastando-se deles e parecendo abandoná-los a si mes
mos; quer dos homens, que são os instrumentos de que Deus
se utiliza para purificar e santificar os seus servos; e quem
. murmura, pois, contra o próximo, inconscientemente murmura
contra Deus; quer enfim dos demônios, que, ansiando pe
la sua perda, não o deixam em repouso.
O sofrimento é indispensável ao desenvolvimento da
virtude, como a água á planta; a virtude que não é expe
rimentada se estiola, como a planta num solo árido, che
gando mesmo a secar e morrer. O sofrimento é um dom de
Deus, pois oferece ocasiões de mérito, ajudando a reprimir
os ímpetos da natureza, a diminuir-lhe o ardor, a moderar
lhe as tendências, a mantê-la sob o domínio da razão e da
fé. Oh! que grande ciência adquire quem sabe sofrer!
O sofrimento fortifica a v�:-tude. Doce é o espetáculo
de uma alma que se abre à vida de piedade; semelhante
â planta pequenina, cujo caule brota da terra, tem uma apa
rência delicada que encanta; mas, se a plantinha agrada
porque é tenra, também é frágil e sensivel, um nada a ma
chuca. uma rajada de vento pode abatê-la, um raio de sol,
murchá-la; quando houver experimentado a aridez, as tem
pestades, as intempéries de toda espécie, será mais forte
e estará exposta a menos perigos. Assim o soldado de
Cristo que sofreu a aridez, as tentações, as tribulações de to
da sorte, adquire grande energia, se, conluclo, souber su
portar essas tristezas com paciência e amor. A tal rrcç,:
sómente será invencivel, e os inimigos nada poderão con
tra ele.
27
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
HI. Humildade.
21. Quando os chefes de exército se preparam para
conduzir seus soldados ao combate, apresentam-lhes a vi-
1ória como certa, e, para aumentar-lhes a confiança, cumu
lam-nos de elogios, exaltam-nos como se fossem os pri
meiros guerreiros do mundo. Todos os soldados de Deus
são destinados a vencer e devem lutar com a esperança, com
a certeza do triunfo, como os dos exércitos humanos, mas,
longe de porem a confiança cm si mesmos, C pela arma
da humildade que devem comhater e que poderão alcan
çar a vitória.
Quando Gedeão, para repelir os madianitas, reuniu
um exercito, o Senhor achou-o numeroso demais e redu
ziu-o, por duas vezes, até formar um número irrisório. Tre
zentos guerreiros, apenas, bastaram para esmagar a mul
tidão imensa de inimigos. "Não quero, dissera o Senhor, que
Israel se glorie contra mim e diga: "Fui libertado pelas
minhas próprias forças". E' por meios mui simples e hu
mildes que o Senhor opera constantes prodígios em favor
de seu povo. E' também menos por atos de ostentação que
por obras ignoradas ou de pouco valor ao juízo do mundo,
mas inspiradas numa grande pureza de intenção, em um
amor ardente, cheio de delicadezas, que Deus eleva seus
eleitos à perfeição. Os feitos brilhantes favorecem o or
gulho e não convêm senão às almas já adiantadas na hu
mildade. Abraão não começou pelo sacrifício de Isaac; quan
do. Deus o submeteu a esta prova, ele já atingira uma con
sumada virtude, adquirida pela fidelidade aos deveres e pela
piedade constante, que o levava a erguer um altar em todo
lugar por onde passasse, bem como por outras obras insigni
ficantes, porém preciosas diante de Deus. Este grande patriar
ca era humilde de coração, como prova sua conduta em re
lação ao seu sobrinho Lot, cedendo-lhe de tão bom gra
do a melhor parte; era bom e afetuoso, como toda a
sua história o demonstra. Foi pela prática dessas virtudes
que se elevou, pouco a pouco, ao heroísmo. Essa mesma
simplicidade, essa humildade, essa fidelidade às virtudes
28
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
· da vida comum, encontram-se também nos outros santAs
patriarcas, em Isaac, Jacob, José; foi seguindo igual cami
nho que se tornaram verdadeiros servos de Deus e seus ami
gos prediletos.
Não é de supor que essas humildes virtudes só exi
jam pequenos esforços: exigem, pelo contrário, esforços
generosos e constantes, mas que em geral passam desper
cebidos; são desconhecidos dos homens, porém apreciados
por Deus, e quem, continuamente, pratica essas pequenas
virtudes, é, na realidade, um valente lutador e um insig:ne
vencedor.
E', d� fato, muito merecedor quem, na luta sem trC
guas, que deve ser a de todos os homens neste mundo, não
visa atos de realce, postos de honra, reputação brilhante,
mas cumpre fielmente com seu dever, alheio â opinião dos
homens, e se dedica, sem aparato, com o llnico intuito de
realizar sua tarefa. Esta disposição de alma, entretanto,
não -basta para constituir um humilde soldado de Cristo.
E' mister, para ter direito a esse titulo, não sômente não
procurar a glória exterior, como também não se vangloriar
a si mesmo; é mister reconhecer sua miséria e aceitar, de bom
grado, ser imperfeito, cheio de defeitos, digno de compaixão.
E'-nos um grande sofrimento verificar nossos defeitos;
foi até este o castigo imediado do primeiro pecado, a cau
sa dessa vergonha, muito bem fundada, que levou Adão
e Eva a se esconderem depois da falta cometida. Tal so
frimento é justo, e temos o dever ele submeter-nos a ele.
Devemos lastimar as nossas faltas, sem, porém, nos dei
xarmos abater, sem nos irritarmos contra nós mesmos. A
humildade que produz abatimento e desânimo é falsa e
ilusõria e- não provém de Deus, mas do demônio. Reconhe
ce-se a árvore pelos frutos.· Quando uma disposição de alma
nos leva a suspender, por um instante sequer, a obra de
nossa santificação, quando nos interromp-e o impulso pa
ra o bem e nos paralisa as forças, então essa disposição é
sugerida pelo nosso inimigo. O maldito perturba as almas
ou as desanima a fim de perdê-las; sob a capa da humildade,
29
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
excita o amor próprio, amor próprio despeitado da alma
que contava consigo mesma, que se aflige com sua fraqueza
e se envergonha ao reconhecer-se vil e desprezível. Há um
recôndito despeito de orgulho em toda alma desanimada.
O Senhor inspira uma humildade muito diversa e a
põe, não sômente no espírit'o, esclarecendo a alma sobre
suas misérias, como também no coração, levando-a a con
sentir, de bom grado, em se humilhar, em se confessar pe
quenina e má. Então, nada se opõe à segunda graça, que
acompanha sempre a verdadeira humildade, graça de con
fiança e de paz. Nada posso por mim mesmo, diz o hu
milde soldado de Jesus, ao experimentar mais uma vez a
sua fragilidade, nada sou, tametsi nillil sum, mas tudo pos
so naquele que me fortifica: omnia posswn in eo q11i me con
fortai. Levanta-se, então, cheio de coragem, e corre a vin
gar a derrota por novas vitórias.
30
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
opõe sua atividade humana ao impulso da graça, sentirá for
çosamente em si os sinais da ação divina, permanecendo, por
tanto, forte e calma, venha o que vier. Se, ao contrário, ceder
ao impeto da natureza, outros serão os caracteres dessa ação,
mas nesse caso que valem suas obras, que resultado pro
duzem seus esforços?
Quem vive na paz, recebe as puras luzes de Deus;
quem se entrega à agitação e à angllstia, ou quer, a todo
custo, satisfazer suas inclinações e ver realizar-se sua pró
pria vontade, obsta o esclarecimento divino; seu espirita
obscurecido, velado, qual nCvoa, pelas inquietações que aceita,
ou não procura afastar, pelos desejos naturais que lhe pren
dem a atenção, pelo receio de ver falhar-lhe os planos,
não recebe mais os raios do Sol divino. Tal alma não
pensa senão em seus temores, vive mergulhada cm suas pre
ocupações, como lhe podem chegar as santas inspirações?
Está, pois, muito exposta a enganar-se; pode, por exen,
plo, conhecer mal seus deveres, exagerar-lhes as dificuldades,
rião perceber bem as razões que lhe sustentariam a cora
gem; daí, muitas derrotas. Sômcnte quem vive na paz será
um valoroso soldado; a luz divina lhe mostrará, por certo,
os perigos que corre, os sacrificios que deve fazer, mas ao
:ncsmo tempo lhe fará compreender que tudo se torna fá
cil com o auxilio de Deus. Então, a alma porá mãos à obra
sem hesitar.
Os israelitas antes de entrar na terra prometida es
colheram doze homens e ali os e11viaram como explorado
res. Alguns, sob a influência de suas paixões, não viram a
terra tal qual era, e, cedendo ao medo e à covardia, jul
garam que seria loucura e temeridade tentar conquistá-la.
Dois sômentc, entre eles, mais calmos, mais senhores de
si, porque, sem dúvida, possuiam mais que os outros a paz
da alma, apreciaram ponderadamente a situação e não per
deram a coragem. A posse, o gozo de Deus, a união com
Deus, mesmo neste mundo, eis a terra prometida da al
ma cristã. Mas, ai de nós! pouquíssimas são as almas que
a consideram com as devidas disposições e a apreciam ao
31
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
seu justo valor; a maior parte, como os enviados de Moisés,
consideram a sua conquista como impossível; os obstáculos
a vencer os intimidam, a visão de sua fraqueza os desanima.
Sómente aqueles que não cedem ao temor, que permanecem
firmes e calmos, aqueles que possuem a paz da alma, põem a
sua confiança em Deus e tentam generosamente a conquista.
Não pensemos, como acontece com demasiada frequên
cia, que a paz da alma seja um dom reservado, de que
Deus é cioso, e que só concede a alguns privilegiados. E' opi
nião corrente que a paz da alma não pode coexistir com a
·luta. "Não posso gozar da paz nas circunstância,; em que
a Providência me colocou; entre multíplices lides e os cui
dados que me cercam; não posso gozar dela com o meu gê
nio, inclinado ora à agitação, ora aCl abatimento; tomo mui
to a· peito proceder bem e ver que os outros procedam
hem, como então conservar a paz quando cometo tanta, fal
tas e vejo os outros caírem cm tantos erros?" Descul
pas flltcis, com as quais nos iludimos a nós mesmos e
deixamos de prosseguir na conquista de tão inestimável bem.
Não caem neste erro aqueles que compreendem toda a im
portância dessa paz; pensam, com razão, que Deus, in
finitamente bom. não quer recusar às almas de boa von
tade um dom tão necessário. Aqueles que não lhe sabem
o valor e não empregam todos os esforços por adquiri
lo, mostram que estão pouco esclarecidos a respeito e que
desconhecem o caminho que le\'a a Deus.
Quando uma alma provar a paz, com que carinhoso
desvelo a deve conservar! Como se deve esmerar por não
a perturbar!
Quer triunfe, quer sucumba, deve sempre conservar· a
paz, ate que suas quedas e suas vitórias, seus pecados e
suas virtudes desapareçam na paz. Ao considerar seus ini
migos, procurando descobrir-lhes os ataques e os meios de
ação e, ao mesmo tempo, reconhecer os seus próprios pon
tos fracos, deve fazer esse exame dentro da paz como nu
ma fortaleza inexpugnável. Deveria aspirar e respirar essa
paz, e dela impregnar todos os seus atos.
32
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO IV
33
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
sem de sua fertilidade. De lá trouxeram frutos magníficos.
Foi com razão, disseram, que a denominaram uma terra
em que corre leite e mel. Mas essa terra era habitada por
povos valorosos, defendida por cidades fortes. A conquis
ta desse pais, tão belo e tão rico, exigiria uma longa e
terrível guerra. Já dissemos que, cedendo ao medo, a maior
parte dos exploradores exageraram as dificuldades e quise
ram afastar o povo de Israel da dita empresa. O povo, in
felizmente, os atendeu; murmurando contra Deus, quis fugir
da luta e voltar para o Egito. O Senhor irritou-se; prometera a
vitória, e duvidavam agora da sua promessa; desejava que
obtivessem pela luta, e re�uavam covardemente diante da
necessidade de combater. Era tornar-se indigno da felicida
de prometida.
O castigo infligido pelo Senhor foi exemplar, pois
devia servir de lição a todas as gerações vindouras. Escute
mos essa linguagem severa: "Vossos cadáveres ficarão esten
didos neste deserto. Vós todos que fostes recenseados, de
vinte e mais anos, e que murmurastes contra mim, não en
trareis na terra em que eu havia jurado introduzir-vos, exceto
Caleb, filho de Jefné, e Josué, filho de Nun. Vossos filhos
viverão errantes na solidão durante quarenta anos; carregarão
a.pena de vossa apostasia até que os corpos de seus pais se
jam consumidos no deserto. Explorastes a terra durante qua
renta dias; um ano pagará por um dia, e durante quarenta
anos carregareis o castigo de vossas iniquidades e conhe
cereis minha vingança" (Nm 14, 29-34).
Desagradam, ·portanto, ao Senhor os homens pusi!Jlni
mes. As almas fortes e ardentes na fota, ao contrário, agra
dam-lhe e encantam-no. Poi por isso que o Senhor, mesmo
depois da conquista da terra prometida, deixou subsistir en
tre os israelitas alguns vestígios da raça de Canaã; quis
que os filhos dos conquistadores aprendessem a guerrear
o inimigo como seus pais e que seu povo não perdesse o
hábito do combate, pois ê tãb temível uma vida indolen
te e mole quanto é vantajoso à alma ter inimigos a repelir
e a vencer.
34
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
24. São principalmente as almas que o Senhor chamou
a uma virtude mais alta, às quais concedeu graças mais
numerosas, que devem travar combates mais rudes. Iludem
se, pois, completamente, esses piedosos fiéis que não com
preendem que a vida de uma alma toda dedicada ao ser
viço de Deus seja cheia de lutas. Desejariam, por certo, ser
vir fielmente a Deus, amá-lo de todo o coração, mas sem
que isso lhes custasse muito à indolente natureza. "Serei
religioso, piedoso, fiel ao meu dever, sustentarei alguns com
bates, mas terei, espero, muitos intervalos de repouso; em
minhas lutas serei auxiliado, animado e, em caso de neces
sidade, carregado. Os impulsos de meu coração, afetivo por
natureza, me tornarão generoso i as doçuras da oração, as
alegrias da comunhão, os conselhos paternais de meu guia
me consolarão dos sofrimentos, e atravessarei a vida pro
tegido, apoiado, até o dia do triunfo final".
Ilusão! As almas a quem Deus reserva uma magna re
compensa, não é tão fácil o triunfo final. A felicidade eter
na será um bem laboriosamente conquistado; e isto cons
titui a glória dos eleitos e lhes aumenta a alegria. E' evidente
que os trabalhos serão mais penosos na terra, para aqueles
a quem está reservada uma eternidade mais feliz; terão
períodos consecutivos, por vezes muito longos, de lutas con
tinuas, de tentações horríveis, de aridez, de incapacidade;
faltar-lhes-á então todo apoio exterior, e só Deus permane
cerá oculto no fundo da alma, sem deixar sentir sua presença.
E' preciso contar com essa luta terrivel, perceber-lhe de an
temão os horrores, e aceitá-los corajosamente. Depois, cl1e
gada a provação, quando as consolações cessarem e os sen
timentos parecerem sufocados, será preciso apoiar-se ímica
mente na fé, na esperança e na caridade: na fé - acreditan
do, apesar de tudo, no poder, na sabedoria, no amor de
DeuSi na esperança - abandonando-se-lhe entre as mãos,
com plena confiança em sua bondade infinita; na caridade
- multiplicando atos de absoluta conformidade à vontade
divina, e consolando-se com o pensamento de que, graças
35
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
a essas provações, no céu, grandezas divinas serão mais co
nhecidas, e Deus amado com maior perfeição.
Aqueles que estão preparados para a luta mostram uma
constância muito maior quando é chegado o momento do
combate; aqueles que contavam com as consolações da pie
dade e não esperavam esse estado de desolação, estão mui
to mais expostos a perder a coragem. Quantos, então, não
caem no relaxamento! irritam-se contra as dificuldades, agas
lam-se contra si mesmos e contra a própria fraqueza, dei
xam de lutar e caem num estado deplorável; ou então, o
que acontece as mais das vezes, lutam com indolência e
não lucram nesses combates as imensas vantagens das al
mas generosas.
25. Imensos são, com efeito, os resultados dessas lutas
para os corações valorosos! Cada vitória é uma conquis
ta; triunfando de um defeito, adquirem maior domínio so
hre si mesmos e, quanto mais fortes forem, mais capazes
serão de fazer o bem.
Roma começou modestamente; no tempo dos reis, era
uma simples aldeia. Mas as lutas travadas de início contra
seus vizinhos imediatos, e terminando sempre por conquis
tas, ampliaram-lhe o poder. Tornara-se, pouco a pouco, se
nhora de toda a ltãlia até que as guerras contra Cartago,
felizmente terminadas, estenderam-lhe o domínio até a Es
panha e a África. Novas lutas permitiram-lhe abranger em
suas fronteiras a Oãlia, grande parte da Europa, da África
setentrional e da Ásia ocidental, e cada nova guerra, dilatando
as suas fronteiras, aumentava o seu poder e a tornava cada
vez mais temível a seus inimigos. Deu-se o mesmo com
lodas as grandes nações; foi só devido a numerosos com
hates, a árduas vitórias, que conseguiram es1ender seu do
mínio, intensificar suas forças e tornar-se aptas a exercer
grande influência, e encetar e terminar de modo satisfatório
importantes empreendimentos. Outros povos, ao contrãrio,
mais amigos da paz, ou menos favorecidos pelas circunstân
cias, permaneceram dentro de limites mais modestos; con
tentando-se em representar no teatro da história um papel
36
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
apagado; assim o grão-ducado de Luxemburgo, e mormen
te o principado de Mônaco ou a república de São Marinho
em nada podem modificar a marcha dos negócios humanos.
Os negociantes não têm todos um mesmo espírito de
iniciativa nem dedicam ao comércio uma mesma atividade;
nem dispõem tampouco dos mesmos meios de divulgar seus
negócios. Alguns, amigos de uma vida tranquila, continuam
a gerir simplesmente o estabelecimento legado pelos ante
passados, sem se esforçarem por alargar o circulo de sua
freguesia; os lucros, que lhes bastam à manutenção da
vida, não lhes permitem arriscar-se em novas emprêsas.
Outros, mais trabalhadores e mais ambiciosos, são também
mais esforçados e sujeitam-se a grandes fadigas; cada ne
gõcio, corajosamente empreendido e continuado, em que
dispendem habilidade e dedicação, multiplica-lhes os capitais
e os habilita a realizar outros e maiores empreendimen
tos, a obter lucros mais consideráveis.
Dá-se o mesmo na vida espiritual: as almas fracas,
pouco generosas ou pouco tentadas, levam uma vida rela
tivamente calma; as lutas que sustentam são pouco temí
veis e como não patenteiam nem grande coragem nem gran
de energia, tais lutas, deixando-as mais ou menos no mesmo
nível de virtude, não as tornam capazes de aumentar seus
tesouros espirituais. Muitas almas permanecem toda a vida
num estado apenas acima do estado inicial. Não é que
seus méritos não se acrescentem uns aos outros, e que não
se enriqueçam um pouco pela repetição de certos atos vir
tuosos; mas, se seus ganhos se adicionam, não progridem;
essas almas ganham hoje o que já ganhavam há dez, vinte,
trinta anos, atrás. Assemelham-se aos operários indolentes,
cujo dia de trabalho, após um longo tirocínio, não produz
mais do que produzia durante o aprendizado. Nesses cris
tãos, que combateram frouxamente, existem sempre mui
tas lacunas; suas virtudes não se desenvolveram; há, em ·sua
conduta, uma quantidade de imperfeições contra as quais
deixaram de lutar, e que já não percebem; suas disposições
de renúncia, de humildade e de amor permanecem medíocres
37
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
e as obras, aparentemente as mais brilhantes, realizadas nes
sas disposições, não podem ter, aos olhos de Deus, senão
um valor medíocre.
Inteiramente outros são os resultados obtidos pelos co
rações generosos que, caminhando de conquista em conquis
ta, passados alguns anos dobraram, quadruplicaram, de
cuplicaram, centuplicaram, talvez, suas forças.
Todas as virtudes se lhes tornaram familiares e por con
seguinte praticam eles atos com mais frequência e mais per
feição do que na juventude, já fervorosa. Não se contenta
ram em afastar molemente o inimigo e conservar as posições
conquistadas; atacaram-no com ardor, com perseverança,
dizendo como David: Persequar inimicos meos et comprehen
dam eos, nec dimittam donec deficiant. "Perseguirei meus
inimigos, esperá-los-ei, não os abandonarei sem que os te
nha vencido" (SI 17, 38).
Tratar-se-á de dissipação? Cuidaram tanto em velar
sobre os sentidos, em reprimir os desvios da imaginação,
em fugir às divagações, em suprimir os pensamentos inú
teis, que se tornaram, após anos de luta, senhores de seu
interior; governam, quase à vontade, as potências da alma.
Desde então, não pérdem mais a presença de Deus e per
manecem intimamente unidos a ele por atos de amor, es
pontâneos e muito frequentes.
Se outrora sofreram vivamente as revoltas do amor pró
prio, julgaram não fazer bastante confessando-as, e aspira
ram à humildade perfeita. Para obtê-la de Deus, deram pro
va de boa vontade, multiplicaram os atos de humildad�,
mesmo os que mais lhes custavam. Confessaram a si mesmos
a própria fraqueza; não se envergonharam de dá-las a
conhecer; foram voluntàriamente ao encontro das humilha
ções e agradeceram ao Senhor aquelas que lhes couberam
espontâneamente. Chega então o momento em que as hu
milhações nada mais custam e a humildade se exerce co
mo que naturalmente e sem restrições.
Se combateram, com igual ardor e constância, a viva
cidade do caráter, a sensualidade, o amor às comodidades,
38
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
e praticaram corajosamente as virtudes contrárias, estas aca
barão por lhes serem fáceis e ch�garão a praticá-las, não
pela metade, como os principiantes, ou só com o auxílio
de graças sensíveis e sob o impulso de uma imaginação
entusiasta, mas com uma decisão amadurecida, tranquila e fir
me, em que a ·vontade opera com força muito maior e, por
tanto, com mérito muito superior.
Os hábitos adquiridos pela prática de repetidos atos,
sem suprimir de todo a luta, facilitam a virtude; deixam
lhe o mérito intato, pois tais hábitos, frutos de longos es
forços, são voluntários e quem os possui, feliz de tê-los ad
quirido, aceita-lhes todas as consequências. Sua vontade, ape
gada mais que nunca ao bem que procurou durante longo
tempo, não carece mais de reações enérgicas para decidir-se
a praticar tal ato de virtude, embora suas decisões sejam
mais absolutas e mais intensas.
26. Mas a graça opera com maior liberdade sobretudo
no coração do cristão plenamente senhor de si. Outrora, a
vitória custava-lhe caro; era mister, para obtê-la, empre
gar violentos esforços, que causavam vivas emoções. Esses
abalos sensíveis, que alguns julgam necessários à aquisi
ção de grandes méritos, não são, ao contrário, senão uma
deplorável consequência da impureza e um obstáculo à per
feição de nossos atos. Quando as paixões estão ainda mui
to vivas, dá-se um choque entre elas e a graça impulsora
para o bem; então esta será, senão afastada, ao menos re
tardada e prejudicada em sua obra salutar. Quando a gra
ça triunfa e a paixão é vencida, a alma fica satisfeita, ufa
na-se mesmo de se ter constrangido, de ter sofrido muito para
cumprir seu dever; é inclinada a.comprazer-se em si mesma
e a medir seus méritos pela violência que se fez. E' erro, pois,
muitas vezes, nessas lutas violentas dos primeiros tempos,
a natureza mesclar sua ação à da graça. Para repelir o mal,
cumprir um dever difícil, ou fazer um sacrifício penoso, a al
ma recorre não sómente aos motivos sobrenaturais, que não
exercem ainda bastante influência sobre ela, mas a razões
humanas, pelo menos a razões pouco elevadas, como a ver-
39
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
gonha de si mesma e de suas misé�ias, a procura da estima
de outrem ou o amor de sua própria perfeição. E' tão agra
dável à natureza poder dar-se um bom atestado! Sob a in
fluência desses motivos, a natureza se torna inflexivel para
consigo mesma e a vitória não é devida ao puro dominio
da graça.
 medida que a alma progridC, as revoltas da nature
za, embora nunca desapareçam de todo, tornam-se menos
violentas, e a graça, menos embaraçada, opera com mJior
poder. A vitória custa muito menos e entretanto os atos de
virtude são mais puros, mais eficazes; as faculdades sen
siveis agitam-se pouco a pouco, a imaginação permaneçe
mais calma, o apetite irascível mantém-se em repouso, o
espírito não raciona tanto. Então Deus opera com maior
liberdade.
E' Deus, pois, quem opera na alma e esta age nele,
por ele, para ele, dando aos seus mínimos atos um valor su
perior: uma breve oração, um ato simples de uma alma
santa mais valem aos olhos de Deus que os esforços vio
lentos de um principiante. A santissima Virgem não sentia
lutas e entretanto quão perfeitas, quão meritórias, quão
maravilhosamente sobrenaturais eram as suas menores ações!
Nós precisamos lutar, mas, à força de vencer, aproximamo
nos dessa tranquilidade, desse domínio sobre nós mesmos,
dessa força de ação que imprime aos atos humanos seu pleno
,·alor. Sem dlivida, os atos virtuosos praticados pelos prin
cipiantes já merecem, e seu eterno tesouro vai crescendo, mas
são moedas baixas que lhes acrescentam cada dia; mais tar
de, depois de longas lutas, valentemente sustentadas, não se
rão mais moedas de prata, porém peças de ouro e notas ele
banco que acumularão. Oh! como serão ricas as almas gene
rosas, no dia da prestação de contas, quando for dado, e pa
ra sempre, a cada um, segundo suas obras!
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
C.-IPITULO V
L Os apetites sensitivos.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
to que lhe parece bom, sente-se logo atraído ao dito obje
to. Mas esse impulso para o objeto cobiçado pode ir de en
contro a um obstáculo e seria então sustado, se Deus não
nos tivesse dado outra faculdade, o apetite irascível, que
nos leva a afastar ou a romper o obstáculo para alcançar
mos, apesar dele, o gozo desejado.
Esses apetites ou impulsos instintivos da alma são im
petuosos, mas cegos; tendem � todos os objetos lícitos ou
ilícitos que se lhes apresentam sob aparências sedutoras. Não
nos é dado, portanto, obedecer, a esses impulsos, mas, ao
contrário, devemos dirigi-los e, com frequência, reprimi-los.
O homem, se quiser adestrar os animais a seu serviço, deve
domar-lhes as tendências instintivas; quanto mais, deve ele
submeter e dominar seus apetites sensitivos, se quiser per
manecer fiel às prescrições da razão e, principalmente, às
regras da fé!
28. Um longo trabalho impõe-se a quem deles se qui
ser tornar senhor. Os sentidos representam um papel salien
te, têm uma influência considerável na vida humana: en
quanto não forem reprimidos e vencidos, exercerão ascen
dente sobre as outras faculdades em vez de a elas se sub
meterem. De todas as nossas faculdades, as sensitivas são
as primeiras a despertar, sempre prontas a entrar em exer
cício, a tomar a dianteira sobre as faculdades espirituais.
Se não soubermos, portanto, vencer as primeiras, nunca con
seguiremos dominar as segundas. Não poderemos impor um
freio à nossa imaginação, se não soubermos impô-lo aos
nossos olhos; não poderemos vencer nossa vontade, se não
soubermos dirigir nossa língua.
E' sobre esse terreno que o soldado de Cristo deve tra
var a luta inicial, luta obscura e inglória, porém necessária
e fecunda, luta em que triunfa, não do próximo, mas de
"Si mesmo. Uma mãe realmente cristã, em primeiro lugar, de
veria ensinar aos filhos a dominar seus sentidos, pois a cri
ança, antes de se tornar orgulhosa, mentirosa, ou pregui
çosa, é ávida de ver, de ouvir, de falar, de saborear; ávida,
-em uma palavra, de gozar de todos os prazeres sensitivos,
42
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
e se mostrará irascível quando for tolhida em seu desejo.
Habituada, porém, a reprimir suas inclinações, será mais for
te para dominar as outras paixões e, na luta contra estas,
suas vitórias serão mais complexas e mais duradoras.
Oh! que paz e que tranquilidade frui aquele que, por
uma longa constância na luta, chega a dominar quase com
pletamente os sentidos! Assim, soube subjugá-los essa ad
mirável Margarida Maria, quando dizia: "Não quero outro
prazer senão o de me ver mergulhada nas dores de um pu
ro amor" (1).
Os prazeres dos sentidos não contavam mais para ela.
Antes de chegar a esse ponto, precisou conquistar muitas
vitórias, mas, graças a essas vitórias repetidas, tornou-se
inteiramente submissa aq domínio da graça e gozou então
da paz verdadeira.
Moderar os sentidos não é coisa fácil; sàmente quem
tal empreendeu pelo amor de Deus, chegará a vencê-los.
Muitos conseguem obter um certo domínio sobre si mes
mos porque compreendem os excessos a que os poderiam
arrastar os seus apetites, se fossem sempre satisfeitos. Mas,
se não obedecem a razões superiores, se impõem aos sen
tidos esse constrangimento, quer para evitar consequências
lamentáveis, quer para serem reputados homens probos, já
receberam sua recompensa; Deus, para quem não trabalha
ram, não lhes deve nenhum salário. Visto terem combatido
com suas próprias forças, sua vitória será incompleta, e ine
vitáveis derrotas virão, com frequência, recordar-lhes a
fraqueza.
Com efeito, é só Deus que nos pode fazer adquirir es
se domínio sobre os sentidos que, permitindo que se exer
çam dentro dos devidos limites, torna-os inofensivos, pois
é mister dirigi-los e não destruí-los, é mister utilizá-los ou
adormecê-los, conforme for necessário.
l) O reino do _aagrado Coração, tomo I, pág. 22:5.
43
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
li. O sentido visual.
29. De todos os sentidos, a vista é o mais rápido, o
que escapa mais fàcilmente à censura da razão, exigindo
portanto uma vigilância mais atenta. Deus nos deu o senti
do da vista, primeiro, para contemplar-lhe as obras, e, se
gundo, para mil empregos necessáriosj não há função útil,
nem dever importante, que possamos desempenhar sem ele.
Quem é responsável por outros, deve usá-lo para velar so
bre seus inferiores. E' preciso, portanto, moderá-lo e não
destruí-lo.
De quantos olhares inúteis nos podemos privar; a quan
tos espetáculos-curiosos podemos renunciar; quantos objetos
· fúteis podemos deixar de considerar! Ao lado destes, a vis
ta encontra, não raras vezes, objetos perniciosos. Quem não
sabe desviar o olhar de espetáculos frívolos, está muito ex
posto a não se privar cJe olhares indiscretos e ilícitos. Vir
tudes que pareciam inabaláveis, falharam, fracassaram por
esse meio. David servira fielmente ao Senhor em ocasiões
difíceis, dera provas de confiança, de coragem, de piedade,
de zelo, e eis que um olhar que não soube reprimir exci
tou-lhe na alma paixões ardentes que lhe custaram danos
pavorosos.
Quão mais felizes, quão mais garantidos estão aqueles
que, como o santo patriarca Joh, fizeram um pacto com
seus olhos e não lhes permitem satisfazer a todos os ca
prichos! A paz de que gozam transparece, reflete-se no ex
terior. E' a modéstia. Não é virtude sem importância esta
da qual nosso Senhor nos deu tão cabal exemplo: "Suplico
vos pela modéstia do Cristo", dizia São Paulo aos cristãos
de Corinto (2 Cr 10, 1 ).
30. Assim como muitos não dão a devida importãncia
à paz interior, assim também outros não compreendem o
valor dessa paz exterior, dessa virtude que modera e dirige
os sentidos, principalmente o da vista, como a paz interior
domina e dirige as potências da alma. Sem a paz, o espí
rito se entrega a mil divagações, e a vontade a toda sorte de
desejos frívolos: a imaginação cria contim�mente e persegue
44
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ilusões e fantasias. Sem a modéstia, os sentidos abrem-se
de todos os lados e pelas aberturas entram os inimigos da
alma; quem não for modesto, nunca será senhor de si; os
minimos objetos o preocuparão e lhe excitarão a concupis
cência; os menores acontecimentos o dissiparão; as tentações
lhe penetrarão na alma livremenlej querera tudo ver, sa
ber, provar, exceto aquilo que é bom e salutar. Sem a guarda
dos sentidos, os cuidados, mais assíduos e carinhosos, dis
pensados à alma, serão inúteis: como um vaso fendido dei
xa escapar os mais preciosos líquidos, assim tamhém es
sa alma toda difundida pelos sentidos perderá rãpidamentc
as boas impressões recebidas.
A modéstia C o baluarte que nos protege a débil virtu
de e a põe ao abrigo das incursões do inimigo; é a muralha
que defende nossa riqueza; é também o adorno das almas
fiCis, cujos encantos realça, tornando-as mais belas e atraen
tes aos olhos do Esposo divino. O mundo, todavia, não aprecia
as almas modestas; sabe que nada tem a esperar delas; sua
atitude recolhida repele os espíritos mundanos, que instin
tivamente delas se afastam, deixando-as servir em paz ao
divino Mestre.
E' utillssimo, pois, adquirir essa modéstia cristã, e nun
ca será demasiado o ardor e11lpregado em sua conquista.
Custa mortificar os sentidos, custa conter o sentido da vista,
sempre tão errante; mas, de fato, reprimir a liberdade do
olhar é privar-se de uma satisfação pequena e passagei
ra, para alcançar outra muito maior e eterna. No céu, go
:zaremos de Deus com todas as potências de nossa alma,
atingi-lo-emos em si mesmo, pelas nossas faculdades es
pirituais, inteligência e vontade; quanto às faculdades sen
sitivas, de que nos será dado fruir depois da ressurreição
geral, serão mergulhadas no deslumbramento por espetá
culos maravilhosos, melodias de uma suavidade inefivel e
perfumes deliciosos. Quem, pelo amor de Deus, se tiver
privado na terra da satisfação dos sentidos, dos prazeres
da vista, go:zará, em maior abundância, de todos os bens
celestes. Sua inteligência, mormente, penetrará, mais a fun-
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
do, as infinitas grandezas de Deus; seu coração se delei
terá mais suavemente no amor divino; luzes mais cinti
lantes lhe iluminarão o espírito, delícias mais inebrientes lhe
inundarão a alma. Tais pessoas renunciariam a prazeres
fllteis e, em troca, Deus mesmo a elas se comunicará, Deus,
o alimento dos eleitos, o pão eterno que terão ganho com
o suor de seu rosto, ele as alimentará, as saciará, sem ja-
mais as enfastiar.
DL O sentido auditivo.
31. O ouvido é um sentido sutil e perigoso, mais peri
goso talvez que a própria vista. Diante de um espetáculo in
conveniente, fecham-se os olhos; os ouvidos, ao contrário,
não se fecham, e tudo ouvem. Há um meio de evitar os da
nos que podem advir do sentido auditivo: é fugir aos coló
quios perigosos, interromper as conversações nocivas ou pe
lo menos desviar-lhes hàbilmente o curso.
Quem não deverá bater no peito e exclamar: mais de
11ma vez prestei ouvidos a certas falas, a certas palavras
que introduziram em minha alma sentimentos lamentáveis,
e despertaram tristes e deploráveis dissipações, vaidade, des
contentamento, murmuração, azedume e antipatia? E estes
são os menores males causados pelo sentido auditivo, os
erros sobre princípios da maior importância, a incredulidade
aos ensinamentos da fé, urna curiosidade inconveniente, pen
samentos e desejos inconfessáveis não são consequências,
por vezes, de conversações perversas? Quantas almas se
perderam por terem escutado o que nunca deveriam ter
ouvido! Qual o começo da perdição de quase todos aq1:1eles
que levam uma vida irregular? Por onde lhes penetrou o vi
cio na alina? Quase sempre por conversas licenciosas, im
prudentemente ouvidas.
Velar sobre os ouvidos é, pois, urna necessidade abso
uta, já que estes são os canais de que se utilium as pes
:oas sem virtude para derramar o mal em nossas almas.
A.ais. Acontece que pessoas hem intencionadas nos preju
iquem, que palavras muito inocentes nos sejam funestas.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
E.' que, muitas vezes, ouvimos o que queremos ouvir, ou
pelo menos julgamos ouvir o que não foi dito; ouvimos
antes os nossos próprios pensamentos que os da pessoa que
fala, adaptamos às nossas idéias as palavras ouvidas; en
feitamos com cores da nossa imaginação as narrativas que
são feitas; interpretamos, segundo o nosso modo de ver,
frases cujo sentido é inteiramente diverso. Não acontece
frequentemente que quem escuta encontra nos discursos
alheios argumentos em favor de suas opiniões errôneas, exorta
ções às suas fraquezas, desculpas às suas faltas? Acrescen
tam, inconscientemente, pormenores que dão aos fatos um
caráter inteiramente outro, ou então, omitem circunstân
cias que lhes são desfavoráveis. As mesmas palavras, ou
vidas por pessoas de sentimentos opostos, revestem um as
pecto diferente; algumas, nelas encontram uma aprovação
para si e seus amigos, e condenação para aqueles que não
estimam, enquanto outros tiram conclusões contrárias. Ou,
então, se tais palavras desagradam, se não são suscetíveis de
uma interpretação favorável, são julgadas com severidade,
criticadas, contestadas; alimentam então as antipatias, agu
çam os ressentimentos. Em ambos os casos, recordamos as.
palavras, seja para iludir-nos, seja para irritar-nos ainda
mais e repetimo-las, pesamo-las, aprofundamo-las, exage
rando-lhes a importância e assim alimentamos nossas paixões,
falseamos nosso juízo, tornamos inevitável a dissipação e
impossível o recolhimento. Então, quantos momentos per
didos, quantas orações, mesmo, empregadas em relembrar
as. palavras ouvidas, cm tirar conclusões, em imaginar ou
·tras conversações, em lamentar não haver respondido desta
ou daquela maneira, em inventar belas respostas!
A boca fala da profundeza do coração e, então, as pa
lavras imprudentes, as apreciações injustas, os conselhos
funestos, as aprovações culpáveis, são o fruto dessa imprudên
cia do ouvido mal governado.
Esses males não são simultâneos; mas um ou outro
caberá, inevitàvelmente, a toda pessoa ansiosa por tudo ou
vir. Quanto ill)porta, pois, à alma reprimir esta tendência,
47
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
governar os ouvidos, como os olhos, saber privar-se de
novidades, fugir às conversações in(Jteis, manter-se na dis
crição, no recolhimento e na paz!
Se formos obrigados a ouvir, não prestemos senão uma
atenção comedida; as almas verdadeiramente fiéis prestam
se aos deveres da vida social, e a tudo quanto não é o
próprio Deus, mas só a ele se dão inteiramente. Os cristãos
;mperfeitos, ao contrário, engolfam-se até submergir nas
conversações em que tomam parte, assim como se deixam
cativar pelos objetos que lhes atraem o olhar; sua alma es
tando entregue a tais divagações, os sentidos dominam por
completo suas potências interiores.
Não é, pois, senão por uma reação enérgica e por ge
nerosos sacrifícios que chegaremos a governar o sentido au
llitivo. Sõmente após lutas penosas, após nos termos pri
vado repetidas vezes do prazer das conversações, após ha
vermos mortificado generosamente nossa curiosidade, re
nunciando a saber noticias fúteis, após havermos amado e
praticado a solidão, poderemos, sem perigo de dissipação,
enfrentar as conversas necessárias, e cumprir, conforme com
pete aos verdadeiros filhos de Deus, os deveres de sociedade.
48
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
próximo, de criticar, de murmurar. Embora não sejam mo
tivos indignos os que nos levam a empreender a conversação,
embora a prosa fôra inocente de início, tais inconvenien
tes se insinuam com facilidade, sem que os possamos per
ceber. ln multiloquio non deerif peccatum: "onde as palavras
abundam, não falta o pecado". A humildade é ferida; apro
veitamo-nos de uma ocasião para nos fazer valer, atribuir..
nos vantagens insignificantes, ou fazermos notar nossa ha
bilidade, nossa prudência, nossas virtudes, nosso talento. A
caridade é ofendida; dizemos aquilo que deveríamos calar;
narramos aquilo de que não temos certeza; transmitimos uma
impressão como se fosse uma realidade; julgamos, baseados
em dados falsos ou incertos, ou sem levar em conta as cir
cunstAncias, sem conhecer as intensões; aumentamos os fa
tos, exageramos pormenores sem importância, generaliza
mos fatos isolados; numa falta de fragilidade discernimos
um defeito habitual.
Será, pensamos nós, que o Senhor, atacado em seus mem
bros, ferido em suas afeições, pois deu a vida por esses
que estão sendo difamados e alimenta-os com sua carne, vi
ve neles, quer unir-se-lhes por toda a eternidade, será que
possa ver com prazer esse falador, que se deixa impressionar
pelo seu espirita, por suas palavras mordazes, que veja com
satisfação usurpar o direito, que só a ele pertence, de julgar
os homens? Não, as palavras contra a caridade afastam as
graças, privam as almas das bênçãos divinas, e muitas pes
soas, que se queixam de não mais receber as consolações
da piedade, devem-no à imoderação da lingua.
As paixões se irritam com essas conversações culpá
veis; animamo-nos, excitamo-nos ao falar; o ressentimento
motivado por uma injustiça, ou aquilo que' assim julgamos,
aumenta à medida que a ela nos referimos; a aversão, que
experimentamos, cresce quando relembramos as faltas do
próximo, ou apontamos os seus defeitos, e essa aversão se
comunica aos nossos ouvintes. O recolhimento torna-se en
tão impossivel, pois as idéias, revolvidas pelas palavras, ocu
pam o espírito e pouco lugar deixam aos pensamentos pie-
Otllmlaho-4 49
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
dosos, à lembrança de Deus; os sentimentos assim despertados
invadem o coração, comprimem e sufocam o amor divino ou,
pelo menos, não permitem senão raras elevações a Deus.
Além do mais, o que foi dito será talvez repetido e de uma
palavra imprudente, levada a pessoa interessada, nascem fre
quentes descontentamentos, rupturas, discórdias, ódios, pa
lavras lascivas, ímpias, blasfemas.
33. "Uma pequena chama, diz São Tiago, pode cau
sar um incêndio capaz de devorar uma grande floresta; a
lingua C esse "fogo destruidor aceso pelo inferno", que po
de "consumir todo o curso de nossa vida", "é um mundo
de iniquidades", que, colocado junto a outros membros, "con
tamina-os todos", e pode levar o corpo inteiro à perdição.
Entretanto, se a língua pode causar danos terríveis, po
de também ser o principio de grandes bens; "por ela bendize
mos a Deus, nosso Pai, e também por ela falamos mal dos
homens, feitos à imagem de Deus"; "benção e maldição",
a oração, o louvor divino, assim como a maledicência, a
blasfêmia e a impiedade, saem do mesmo órgão. Feliz de
quem a sabe reger; quem modera e regula suas conversa
ções e "não peca por palavras C um varão perfeito"; di
rige a sua natureza inteira com suas concupiscências; é se
nhor de suas inclinações, governa todo o seu ser pela lín
gua, qual cavaleiro, que, pelo freio, dirige o animal; qual
piloto que, com o leme, dirige todo o navio".
"Mas o homem - é sempre São Tiago quem fala -
que sabe domar as feras, não pode", por suas próprias forças,
"vencer a língua", carece do auxílio de Deus, e Deus não dá
esse auxilio senão aos homens sinceros e generosos que prati
cam o silêncio, se abstêm de palavras inúteis, procuram a
solidão, e se privam de conversar com as criaturas para me
lhor conversar com Deus.
Quando o Senhor, para salvar seu povo, elegeu a Moi
sés, dirigiu de tal sorte os acontecimentos que esse Ultimo
precisou deixar a corte agitada do rei do Egito, retirar-se
para uma terra pouco habitada, e aí levar a vida tranqui
la e solitária dos pastores. Era grande a tribulação entre
50
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
os· filhos de Israel; parece que havia urgência em socorrê
los; entretanto, o Senhor deixou Moisés durante quarenta
anos nesse pais meio selvagem; e só o julgou apto a cum
prir com a grande missão que lhe queria confiar depois des
se longo retiro.
Foi no deserto que, desde sua infância, se refugiou São
João Batista pata aí crescer no amor divino e preparar
se a exercer seu ofício de precursor.
O próprio Jesus, nosso divino modelo, depois de trin
ta anos de uma vida escondida e frequentemente silenciosa,
vai passar quarenta dias no deserto antes de iniciar sua pre
gação evangélica.
Desde então, todas as almas ávidas de perfeição de
sejaram o recolhimento e a solidão e os santos fundadores
de ordens religiosas, sem exceção alguma, impuseram o si
lêncio como uma das regras fundamentais, um dos grandes
meios de formação à vida interior, e reconhecem-se as al
mas fervorosas na maneira pela qual observam essa gran
de lei do silêncio.
Mesmo no meio do mundo, quem aspira a uma vida
perfeita deve recear o turbilhão dos negócios, evitar, mes
mo no exercicio do zelo, o excesso das obras exteriores e
impor-se horas de recolhimento, em que, só, com Deus só,
se entregue a expansões afetivas e go�e as doçuras de um
colóquio todo celeste.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
uma alma nobre não se desobriga senão com certo pudor.
Também nos envergonha n"ienos o desejo de ver, a curio
sidade de ouvir, do que a gulodice. Procurarmos aberta
mente. distrair os olhos com espetáculos variados, saciar os
ouvidos com novidades, mas nos escondemos para satisfa
zer nossa voracidade, recorremos a estratagemas ou então
procuramos desculpas. O homem tem cdnsciência de re
baixar-se quando excede os limites marcados pela razão,
quando se incorpora alimentos ou absorve bebidas, não mais
por necessidade, mas para satisfazer uma paixão. Sente o
quanto se avilta em deixar aos instintos sensuais o pre
domínio sobre as faculdades.superiores, pois não se coloca
ele ao nível dos animais, desprezando a razão para seguir
as tendências grosseiras?
Assim o efeito da gulodice é diminuir a vivacidade da
inteligência e tornar a alma menos apta para receber as lu
zes da graça. Esaú, homem sensual, que vendeu seu direito
à benção paterna por um prato de lentilhas, não sabia ava
liar as vantagens espirituais e, depois de ceder mais uma
vez à gula, parece tê-las apreciado ainda menos: "Comeu
e bebeu, diz a Escritura, e pouco se incomodou de ter ven
dido o direito de primogenitura". Não. percebiam tampouco
a vantagem de terem sido arrancados à escravidão e ao pe
rigo da idolatria, como seus opressores, esses hebreus que,
no deserto, sentiam falta das cebolas do Egito e murmura
vam por tê-las perdido. Os filhos de Heli também não com
preendiam os privilégios e os deveres �e seu cargo, pois vio
lavam as prescrições do culto e escandalizavam o povo,
exigindo que lhes fosse entregue a carne das vítimas sem
que passasse pelo fogo, a fim de poderem prepará-la a seu
gosto. Pouco lhes importava de, por esse meio, desviar o
povo dos sacrifícios prescritos pela lei,. enquanto lhes fos
se satisfeita a sensualidade. Tal conduta atraiu a vingança
do céu, e eles mesmos foram as primeiras vítimas.
Será digno de um ser racional preocupar-se com a
qualidade dos alimentos, saboreá-los antecipadamente, en
tregar-se com delícias a prazer tão grosseiro ou lamentar-
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
se se as iguarias não satisfazerem às exigências de um gos
to requintado? Quanto mais cedemos a essa vil tendência,
menos nos interessamos pelas coisas espirituais, menos fa
cilidade temos para recebê-las e gosto para procurá-las:
animalis homo non percipit ea quae sunt Spiritus Dei:
"o homem animal, diz São Paulo, não percebe as coisas que
são do Espírito de Deus" (1 Cr 2, 14). "Velai sobre vós,
recomendava nosso Senhor a seus discípulos, e cuidai a
fün de que vossos corações não se façam pesados com as
demasias do comer e do beber" (Lc 21, 34).
35. Quem se torna escravo desse sentido material do
gosto e deixa a carne dominar o espírito, expõe-se muito a
cair sob um jugo ainda mais humilhante. "Eis qual foi
a iniquidade de Sodoma, tua irmã, diz o profeta Ezequiel
a Jerusalém: o orgulho, a vida lauta, e a extrema pros
peridade" (Ez 26, 49). Segundo São Paulo, o abuso do
vinho acarreta a luxúria (Ef 5, 18). O autor dos Provérbios
já o havia observado: Luxuriosa res vinum (Pv 20, 1).
Ao contrário, quem sabe governar esse sentido gros
seiro, quem sabe reduzi-lo e vencê-lo pela mortificação, a
abstinência e o jejum, ,eleva-se acima das vis preocupações
do apetite inferior e se torna apto a receber as luzes da
sabedoria, enquanto atrai sobre si as graças do céu. Bona
est oratio cum jejunio: "a oração acompanhada do jejum
é boa", é eficaz, diz Rafael a Tobias. Moisés jejuou quarenta
dias e quarenta noites antes de receber a Lei. A sagrada
Escritura nos diz que os israelitas jejuavam em circunstân
cias graves, animados pelos profetas, cujo exemplo seguiam,
a fim de obterem por esse meio a proteção divina. Nosso
Senhor consagrou também por seu exemplo a utilidade do
jejum. Todos os santos da nova Lei imitaram nesse ponto
o Modelo divino e praticaram, por vezes com rigor extremo,
a abstinência e o jejum.
Ai de nós! em nossos dias o jejum se tornou raro, tão
raro, quanto comum o requinte e o esmero na alimentação,
mesmo entre os bons cristãos. E' indubitável que esta seja
uma das razões que levam inúmeras almas, boas e piedo-
53
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
sas, mas que não souberam adquirir o domínio absoluto so
bre os sentidos, a sentirem muitas vezes pouca energia até
parecerem incapazes de virtudes viris.
Os hábitos modernos tão propensos ao requinte, à fa
cilidade, cada vez maior, em todas as classes da sociedade
de conceder ao paladar tudo quanto lhe apetece, favorece
ram semelhante abuso. Sobram, portanto, ainda muitas opor
tunidades de privações: a pobreza, a enfermidade ou pe
lo menos a inapetência, os caprichos de um estômago fra
co, impedem, com frequência, o comer alimentos apetitosos.
E quantas pessoas nada podem escolher, devendo conten
tar-se com os pratos que lhes são servidos! E quantas
não sabem dar, a tais privações, um valor divino; que,
quando não se irritam, ludo aceitam estóicamcnte, como s�n
do inevitável, enquanto se deveriam resignar de boa von
tade por amor a Deus, felizes de lhe poder oferecer tão
pequeno sacrifício.
54
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
da carne é inimiga de Deus ... Os que vivem segundo a
carne não podem agradar a Deus" (Rm 8, 5).
Não bastarão estas palavras do apóstolo, tão justas
e tão fortes, para demonstrar quão -necessário é mortificar
a carne e quão pernicioso é o erro daqueles que não re
conhecem a importância dessa mortificação? "Grande é a
ilusão, diz o Padre Surin, desses espirituais delicados que,
por covardia, por amor de si mesmos, querem persuadir
se de que a mortificação corporal é de menor importância
e que só a interior é tudo. Baseados neste principio, não
impomos ao corpo sacrificio algum, não lhe recusamos ne
nhuma satisfação, tratamo-lo bem; passeamos, procuramos
diversões e a alma, num simples olhar a Deus, se julga
fixada na vida mística. Esta doutrina foi desconhecida dos
santos ... Existe hoje uma espiritualidade suave e cômoda
à natureza, que consta apenas de idéias belas e sentimen
tos sublimes, de palavras estudadas e de um recolhimen
to afetado" (Dia!. tomo 1, 1. IV, cap. Ili).
"Tenho medo, diz o Padre Faher, quando ouço falar
muito em mortificação interior; isto me parece a confissão
implícita de que a alma leva uma vida confortável'' (Progres
so na Vida Espiritual, cap. 11).
São Paulo falava de um modo inteiramente diverso:
"Não somos devedores à carne, para que vivamos segundo
a carne. Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis,
mas, se pelo espírito mortificardes as obras ela carne, vi
vereis" (Rm 8, 12). "Caríssimos irmãos, rogo-vos como es
trangeiros e viajantes, dizia São Pedro, renuncieis aos de
sejos carnais, que combatem contra o espirita" (1 Pd 2,11).
Esses grandes santos praticavam aquilo que recomen
davam. "Castigo o meu corpo, dizia São Paulo, e o redu
zo à escravidão" ( 1 Cr 9, 27). "Trazendo sempre e em to
da parte em nosso corpo a mortificação de Jesus, a fim
de que também em nosso corpo se manifeste a vida de Jesus.
Embora vivos, estamos a cada instante entregues à morte
por amor de Jesus, para que tambêm a vida ele Jesus se
manifeste cm nossa carne mortal" (2 Cr 4, 10).
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
37. Nunca lemos na Vida dos Santos a narrativa de
suas mortificações, sem nos admirar. E como não havia de
ser assim? Poderiam esses grandes corações apaixonados
pelo amor divino tratar com delicadeza uma natureza tão
rebelde? Teriam eles atingido a esse grau de amor, que o.r
tornou ávidos de sofrimento, se não tivessem sustentado
um generoso c_ombate contra a carne ao iniciarem sua vida
espiritual?
De fato, urge empreender tal luta desde o primeiro
instante, logo que começamos, sêriamente, a cuidar do ser
viço de Deus; mesmo quem não visa um grau sublime de
virtude, e quer ser apenas um sincero e perfeito cristão, de
ve lutar contra o corpo. Quando recusamos a este os praze
res permitidos, diz Santo Afonso de Ligório, ele não procura
rá os proibidos, mas, se lhe concedermos todas as satis
fações lícitas, cairemos, breve, nas ilícitas" (Verdadeira Es
posa, cap. VIII). O esmero no traio do corpo e a sólida vir
tude nunca se encontram juntos; não podemos procurar o
hem estar, as comodidades, e, ao mesmo tempo, dedicar
nos inteiramente ao serviço de Deus e do próximo; não po
demos, ao mesmo tempo, lisonjear-nos e imolar-nos. "Os
que pertencem a Cristo, diz São Paulo, isto é, todos os ver
dadeiros cristãos, crucificaram sua carne com os vícios e
concupiscências" ( Gál 5, 24).
A alma cristã tem três inimigos a combater: a carne,
o mundo e o demônio. Enquanto estes dois estão sós, são
fáceis de vencer porque os ataques são no externo; mas se
o inimigo interior, que é a carne, estando ainda cheio de
,•igor, unir-se aos outros dois, o combate será muito rude,
e a vitória plena quase impossível. E' mister, pois, enfra
quecei este inimigo doméstico; t�atá-lo com delicadeza seria
fortalecê-lo; manter uma atitude defensiva, alegar que bas
ta não ceder às suas exigências, seria ilusão. Quem adota
semelhante norma não tarda em lhe fazer concessões la
mentáveis, em sofrer numerosas derrotas; é preciso, portanto,
atacá-lo, persegui-lo, maltratá-lo, para vencê-lo e subjugá-lo.
E o combate é de todo momento. As exigências da
56
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
carne se renovam constantemente e crescem sempre; se• a
alma lhe resistir galhardamente, a tentação, um instante
depois, volta à carga; se lhe ceder torna-se mais arrogan
te; quanto mais lhe for dado, mais reclama; se lhe ceder
de novo, os baixos instintos da natureza acabarão por pre
dominar e os apetites sensuais, tornando-se tirânicos, fa
zem da vida humana uma vida toda animal.
Esta continuidade da luta a torna particularmente pe
nosa. D1tSejaríamos transigir com o inimigo; procuramos e
infelizmente encontramos mil pretextos para abster-nos de
tratá-lo com o devido rigor. Agrada-nos poder alegar ra
zões fúteis e ainda mais quando essas razões conseguem
aprovação, quando encontramos conselheiros prudentes, -
da prudência da carne, - que, demasiado tolerantes pa
ra consigo mesmos, não querem permitir aos outros aquilo
que não praticam. Consideram a mortificação corporal su
pérflua, a ser substituída com vantagem pelas lidas dos
deveres de estado e pelas provações da vida; como se fosse
possível cumprir perfeitamente com esses deveres sem su
jeitar a carne, como se pudesse ser verdadeiramente paciente
quem -não for mortificado!
38. Pela lei do jejum, que a Igreja impõe a todos, ela
mostra o quão necessária é essa mortificação ativa da na
tureza. E é tanto mais necessária quanto mais alta for a
perfeição a que nos chama o Senhor. Será, portanto, mais
generosa da parte daqueles, cuja vocação de esposas de Je
sus, dé ministros do Cristo, obriga a uma virtude mais ele
vada. Impõe-se particularmente àqueles que, amando pro
fundamente a Igreja, a ela se querem dedicar. Devem se
guir os exemplos de Jesus, unir seus sofrimentos e suas ex
piações aos sofrimentos e às expiações de Jesus. Seria um
grande erro pensar em continuar a obra de Jesus, querer
associar-se à sua missão de salvar as almas e não querer
empregar os meios que Jesus empregou. Somos os membros
do Cristo; uma união misteriosa existe entre ele e nós, co
mo entre o tronco e os ramos, entre ·a cabeça e os membros.
E Jesus, que amou a Igreja ao ponto de -entregar-se à
57
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
morte, não podendo mais sofrer por ela em sua própria
carne, pede-nos a nossa para em nós continuar sua obra.
E' o que nos ensina São Paulo, é o que fazia esse grande
apóstolo: "Acrescento aos sofrimentos do Cristo o comple
mento necessário, sofrendo em minha carne pelo corpo do
Cristo que é a Igreja". Pelos seus sofrimentos, Jesus apla
cou a justiça divina; derramou bênçãos sobre os homens,
cm vez dos castigos merecidos. Aqueles que se impõem o
sofrimento com Jesus a fim de completar-lhe a obra, obtêm
os mesmos resultados. Pelas suas orações, já eram poderosos,
mas como às orações acrescentaram o sacrifício, Deus não
lhes sabe resistir; alcançam tudo quanto desejam. "E' in
crível, diz o Padre Surin, o quanto Deus se apraz cm ver
a carne humilhada e submetida ao espírito. A coragem que
a alma assim revela, arranca-lhe das mãos, como por vioiên
cia, aquilo que dele ela quer obter". (Dia!. espir. tomo 1, 1
cap. Ili).
O que acima de tudo obtêm esses cristãos generosos,
o que solicitam com maior ardor, é um acréscimo de amor:
o amor leva à penitência, e a penitência dilata o amor. "Uma
alma ferida pelo amor de Jesus, dizia o Padre Baltazar Al
varez, tem necessidade, para sentir-se satisfeita, de que o
seu corpo participe dessa ditosa ferida; de outro modo,
tem a impressão de não o amar bastante, nem o imitar su
ficientemente". Tem mil vezes razão de pensar assim, e
certo C que não estão abrasados pelo fogo da caridade os
que não querem impor-se alguma mortificação corporal.
Aqueles que a praticam com reta intenção, agem, portanto,
por amor, e um amor tanto maior, quanto mais custa â
natureza. Cada nova tortura que se infligem, clama: meu
Deus, e como C o exercício do amor que o faz crescer,
esse amor toma proporções admiráveis nos corações ge-
nerosos (1).
1) As pessoas quo desaconselham, e, muitas vezes, proibem
sem motlvoa justoa as práticas de penitência corporal, não te•
1·lam coragem <le apagar a lâmpada que arde diante do Santísslm9
Sacramento. Mesmo Independentemente do preceito litúrgico, COD•
siderariam, com razão, tal ato como reprovã.vel. Mas quem propor•
58
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
No cCu, a alma mortificada amarâ mais a Deus, e a
felicidade eterna não sendo senão a satisfação do amor, gran
de serâ a sua ventura! Quantas provas de afeto, quantas
carícias suaves e puras não receberá de seu Deus, pelo
amor do qual se martirizou no mundo; quantó o amará,
quanto será P'?r ele amada! São Pedro de Alcântara, um dos
santos mais austeros que jamais existiu, apareceu depois
ele sua morte a santa Teresa cercado de uma glória reful
gente: "O' bem-aventuradas penitências, disse ele, que me
valeram tamanha glória!"
ciona maior glória a Deus, a lâmpada que se consome inconsciente•
mente em sua honra, ou o cristão generoso, cujo. aof1iment0111
,·oluntárioe formam uma lon1a série de atos de amor e oferecem
ii. justiça div:lna expiações po1· demais neceuárias?
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO VI
60
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
o vício dominar-lhe o coração como senhor absoluto, ele
se degrada e se avilta vergonhosamente.
Mas, sobretudo, se recusa a Deus o domínio que só a
ele pertence exercer, e presta à criatura homenagens devi
das Unicamente à majestade divina, renova o erro da ido
l{ltria que, na antiga Lei, excitava tão fortemente a cólera
do céu, e atraía sobre o povo escolhido tão horríveis calamida
des. Os outros pecados eram ger�lmente punidos nos pró
prios culpados, mas, quando os israelitas toleravam a idola
tria, o povo todo se tornava responsável, e os castigos fe
riam a nação inteira, que era, então, submetida aos ini
migos enquanto os povos infiéis se constituíam em instru
mentos das vinganças celestes.
Os dirigentes do povo de Israel, Moisés, os juízes, os
reis, os profetas precisaram, repetidas vezes, combater a
idolatria e renovar seus esforços para extirpar esse pavoro
so desmando que reaparecia continuamente, pois grande é
a tendência da misera humanidade a criar ídolos.
A justiça divina parece, em nossos dias, irritada con
tra o povo cristão. O Senhor permite que os inimigo-, de st'u
nome persigam os crentes. Não terão estes, por algo de se
melhante, merecido os castigos que os ating.:111:>
Os homens não adoram mais, é verdade, idolos de ma
deira ou metal; não dobram os- joelhos ante estátuas inanima
das, haviam de corar de tal loucura; mas será menor a cul
pa de quem se entrega às paixões? Não foge à soberania
de Deus quem se abandona, sem lutar, ao pecado mortal?
O Senhor não pode reinar no coração que presta homena
gem e adoração a falsas divindades.
40. Que ninguém se admire se classificarmos de ido
latria a conduta do cristão que se deixa levar pelas inclina
ções viciosas, sem opor resistência. O Espirita Santo, pe
la palavra de São Paulo, não denominou também idolatria
a avareza e o gozo da vida lauta? "Seu deus, disse ele, é
o ventre" (Fp 3, 19). E alhures: "O avaro que é um idó
latra" (E! 5, 5).
6.1
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Uma lmica paixão não combatida pode tornar-se cm
ídolo e não nos elevemos considerar ao abrigo da idolatria
por não ser ainda completa a nossa sujeição. Quando co
meçamos a ceder a uma tendência culpável, somos inclina
dos a iludir-nos; julgamo-nos ainda livres, proclamamos
sinceramente que, tomando tal decisão e mantendo-a apesar
das objeções e dos obstáculos, não fazemos mais que se
guir a razão e dar prova de energia; na realidade, obede
cemos a uma paixão inconfessada, e fortalecemo-la, obedecen
do-lhe. Se cedermos com frequência, virá um dia em que
exercerá abertamente seu domínio; será então difícil re
sistir-lhe.
Para descobrir o valor de uma alma e saber se ela é
realmente escrava do vicio, é mister verificar o que lhe des
perta as concupiscências, lhe excita as faculdades e lhe de
licia o coração. A paixão não combatida estende seu domí
nio ate ao recôndito da alma; assim os olhares, as conver
sações, as leituras preferidas, os devaneios habituais, de
notam-lhe as inclinações e revelam o falso deus que adora.
Quais são os objetos que lhe atraem os pensamentos, e as
recordações que lhe entretêm a memória? Se os objetos que
a alma procura de bom grado forem ilícitos; se, embora
não proibidos em si mesmos, ela os prezar excessivamen
te, ao ponto ele os desejar a todo custo, ou desprezar as
!eis divinas, para frui-los, essa alma é verdadeiramente
idólatra.
Ficará, então, como que fascinada pelo objeto de sua
adoração. Quando um espetáculo magnífico nos prende o
olhar, quando uma melodia suave nos encanta os ouvidos,
estes sentimentos nos impressionam fortemente e c;timos
em uma espécie de êxtase, que nos faz esquecer todos os
seres, que deixam, por assim dizer, de existir para nós. As
sim, também a alma que, atraída por um objeto criado, que
lhe parece fascinante, não se obriga a afastá-lo, será seduzi
da sem demora e perderá a noção de tudo; sua vida en
tão se concentrará na contemplação do objeto que lhe pren-
62
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
de os pensamentos, como se fosse para ela o único ne
cessário. Tal e o estado da alma idólatra. Sente pela cria
tura o que experimentam por Deus as almas generosas que
desejaram, procuraram e obtiveram o perfeito amor; al
mas que, compreendendo a beleza de Deus, se apaixona
ram pelos seus encantos, pensando nele, lembrando-se de
le, aspirando a ele. E Deus reina plenamente em seu es
pirita, em sua memória e em seu coração.
41. E' preciso ainda, para conhecer o valor de uma al
ma, sondar-lhe as disposições das faculdades superiores,
a inteligência, e sobretudo a vontade. Deus reina sobre um
povo quando as autoridades que o governam· fazem pro
fissão de lhe seguir as leis. Reina sobre uma alma quando
as faculdades superiores lhe estão submetidas, principal
mente a vontade, rainha de todas as potências. Que fim
se propõe a vontade, que impulso motiva -suas resoluções?
Visa a alma ao praticar este ou aquele ato a sua salva
ção, o agrado de Deus? Se tal C a intenção que formula
sinceramente antes de agir, embora perca por algum tem
po a lembrança de Deus, os atos que pratica lhe serão agra
dáveis. Entre as recordações que lhe ocupam a memória,
entre as visões que lhe invadem a imaginação, entre os en
cantos que lhe comovem o coração e os desejos que a so
licitam, pode haver algo de involuntário, que procura afas
tar sem conseguir. E' mister descobrir a verdadeira intenção
que motiva os atos, e à qual obedece livremente. Se em ge
ral a alma obedece aos instintos sensuais, leva uma vida
degradante e bestial; se obedece à razão, conduz-se como
filósofo; se obedece a motivos sobrenaturais, vive da fê.
Não é raro, infelizmente, encontrarem-se, mesmo en
tre os cristãos, almas que só se propõem a satisfação dos
instintos da concupiscência. A vontade pervertida põe en
tão ao serviço do ídolo as demais potências ela alma. Em
vez de aplicar os recuras da inteligência em obras úteis,
emprega-as na procura dos gozos; alimenta livremente a
imaginação com idéias nascidas da paixão; entretem a me-
63
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
mória com fatos passados, em que se nutriam os maus de
sejos. Vai, às vezes, até a sacrificar tudo ao idolo: fortuna,
saúde, a própria honra; mergulha na dor pais dignos de to
do respeito e de todo afeto; despreza amigos os mais dedi
cados; não leva mais cm conta nem Deus, nem os homem1.
42. Não vemos, em torno de nós, exemplos ele seme
lhante loucura? Famílias inteiras desprezam as leis divinas.
Em muitos lares Deus é destronado, enquanto vê suas cria
turas prestarem homenagem ou ao "deus dinheiro", ou ao
"deus orgulho", ou ao "deus volúpia", ou aos três de uma
vez. Todas as preocupações dessas pessoas voltam-se pa
ra o gozo e a vaidade, e parece que só foram postas no
mundo para si mesmas e para seus ídolos:
Poupará a justiça divina esses insolentes, cuja vida equi
vale a um desafio ao Criador? Qu; habitat in caelis irridebil
eos et Dominus s11bsannabit eos. Rir-me-ei de vós, diz aos
pecadores esse Deus temível, julgais que vos esqueço por
que vos deixo mergulhar nos baixos gozos de vossas pai
xões, mas virá o dia cm que sentireis o peso de minha có
lera. Clamareis então: Senhor, Senhor, salvai-nos. E poderia
responder-vos: Eu não sou mais vosso Senhor e vosso Deus;
vós me preferistes ídolos vãos; onde estão hoje esses falsos
deuses, objeto de vosso culto profano? Invocai-os e vêde
se vos poderão salvar de vossos males.
A idolatria reinou no mundo durante séculos. Engen
drou males horríveis. Os costumes bárbaros dessa triste época
foram-lhe, ao mesmo tempo, consequência e castigo. Deus,
porém, não castigava tão severamente o crime de idolatria
nos povos pagãos, como no seu povo escolhido. Sua jus
tiça exigia mais daqueles a qL1em mais deu. A culpa dos
israelitas, caindo na idolatria, era muito superior à das
outras nações, que não haviam recebido tantas luzes, nem
ouvido com tanta frequência a voz de Deus, chamando-as
a seus deveres. As nações católicas têm a plenitude da ver
dade; recebem com prodigalidade os recursos para vive
rem conforme as leis de Deus; quando deles abusam, gran
de é sua responsabilidade, e terrível o castigo que as aguar-
64
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
da. A França, que foi tão abundantemente favorecida pelos
dons do céu, que ouviu tão amiúde os avisos e as exorta
ções dos amigos de Deus, que viu tantos santos exemplos,
e onde as obras de salvação fÓram tão numerosas, abusou
de tais graças agravando assim a sua culpa, e sacrificando
aos ídolos ( t ) .
São numerosos os ídolos modernos e os principais são
fáceis de distinguir. O que reina hoje, o que domina no co
ração de muita gente, o que rouba a Deus o lugar que lhe
é devido, é o amor aos prazeres sensuais, é o orgulho.
O r.1m!nbo-1 65
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
tros, outrora afetuosos e respeitosos, produziu a dureza de
coração e a mais negra ingratidão.
Além do mais, o viciado não guarda, em si mesmo, a
corrupção de que se alimenta e que aspira por todos os po
ros; seu coração que se tornou qual reservatório, em que
se acumulam as impurezas recolhidas pelos sentidos, trans
borda em torno de si; sua língua distila o lodo envenenado,
que, com demasiada frequência, mancha aqueles que de
le se aproximam.
Sem dúvida, se a sensualidade não causa sempre esses
pavorosos estragos, nunca deixa, porém, de causar uma
degradação, um enfraquecimento das potências superiores
da alma naquele que domina, e de lançar os germes do mal
em outras almas. O viciado exerce sempre, embora, talvez,
inconscientemente, uma influência perniciosa.
nL O orgulho.
44. Se a paixão da volúpia é a mais aviltante, não é a
mais perigosa, nem a mais difícil de curar. As separações,
e, sobretudo, as decepções, as traições das pessoas em cuja
amizade confiava, podem reconduzir o homem idólatra das
criaturas ao culto do verdadeiro Deus; a enfermidade po
de obrigar o viciado a reprimir suas inclinações grosseiras;
grandes infortúnios podem desapegar o avaro dos bens da
terra. Por vezes também o exemplo de homens virtuosos
levará o libertino a refletir consigo mesmo; o ébrio, cujos
excessos já lhe comprometeram a saúde, lamentará sua fu
nesta tendência; uma salutar vergonha apoderar-se-á da
queles que têm a fraqueza de ceder a todos" esses vícios
e, ao menos de longe em longe, sentirão o desejo de sair
de sua baixeza, mas .o orgulho, essa vã adoração das pró
prias qualidades, essa idolatria do eu, quem poderá sanar
tão grave enfermidade? O orgulhoso está contente consigo
mesmo, não reconhece seus erros, não sente a necessidade
de mudar de vida.
O orgulhoso encontra em si o seu próprio idolo; e se
prende muito mais a ele do que o avaro ao seu dinheiro,
66
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
o sensual, às iguarias, o amante à pessoa amada na liga
ção pecaminosa. Quem queima incenso a outros ídolos, re
conhece, por isso mesmo, que lhe falta algum bem, e vai
procurá-lo fora de si; o orgulhoso, ao contrário, não con
fessa, de maneira alguma, sua pobreza, e nada quer dever
a uma criatura; as penas, as contradições, que muitas ve
zes desconcertam os outros pecadores e os refreiam em sua
revolta, irritam o soberbo e lhe atiçam o orgulho em vez
de enfraquecê-lo; insurge-se contra a humilhação e tan
to mais se envaidece quanto mais humilhado for.
45. Que terrível desregramento é o orgulho, quando,
nunca combatido, se desenvolve ao ponto de merecer o no
me de idolatria! E' realmente idólatra de si mesmo, quem
se constitui a si como centro de tudo, quem se compraz na
contemplação de suas pretensas qualidades, quem julga se
veramente seus semelhantes, desprezando-os enquanto se
considera superior a todos. Nada pode desiludi-lo; a sua
arrogância, a sua néscia presunção inspiram horror a quem
dele se aproxima, mas não deixa por isso de comprazer-se
em si mesmo. Está de tal forma enamorado de sua pessoa,
menospreza de tal maneira tudo quanto não lhe diz res
peito, que ao próprio Deus pouco considera. Não sente
necessidade do auxilio divino, tal é a confiança em seu pró
prio engenho, em seu talento; pretende, aparentémente, viver
sem Deus, aspira a usurpar-lhe o lugar e a dirigir os ne
gócios deste mundo. Se lhe for observado que os desígnios
de Deus podem ser contrários , aos seus e inutilizar-lhe
os esforços, revolta-se; nele existe, como em germe, a pre
tensão de Lúcifer: "Subirei além das nuvens e serei igual
ao Altíssimo" ( Is 14, 14).
Adora-se e quer ser adorado. Saber que os outros pen
sam nele, que se preocupam com ele, é-lhe uma espécie
dç volúpia. Ao ver-se admirado, prezado, sua alegria aumenta,
sem, todavia, ficar ainda satisfeito. Quer que todos se sub
metam a ele; tem sede de domínio, e, para sentir-se con
tente, deverá impor as leis de sua vontade e os decretos de
sua sapiência.
.. 67
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Que meios não empregará para conquistar a admira
ção? Em presença dos intelectuais, procura passar por in
teligente, faz alarde de sua veia, de seu saber, de sua ha
bilidade; com as pessoas virtuosas, mostra-se partidário
da virtude, afeta a linguagem da honestidade, da lealdade,
levanta-se com energia contra o vício. A preocupação de
se fazer admirar nunca o abandona e faz-lhe compor o sem
blante, preparar frases, disfarçar os pensamentos, ignoran
do por completo a amável simplicidade. "Que pensará de mim
meu interlocutor?" - eis seu único cuidado. Em caso de
necessidade saberá renunciar às suas idéias, contrariar seus
gostos, pronto a tudo sácrificar ante o desejo de despertar
admiração. Se por um lado faz valer seus méritos, por ou
tro desculpa suas faltas, dissimula suas fraquezas. Toma
a máscara das virtudes que lhe faltam; por vezes mesmo,
reprime outras paixões para satisfazer ao orgulho; pregui
çoso, sacudirá a moleza, realizará obras difíceis na esperan
ça de elevar-se aos próprios olhos e aos do próximo. Tais
eram os fariseus soberbos que mereceram a censura de nosso
Senhor porque praticavam a virtude para serem vistos pe
los homens. O orgulhoso não sàmente é capaz de fazer
esmolas e de jejuar, como esses pérfidos inimigos do Se
nhor, mas é tão ávido de provocar a admiração que por ve
zes recorrerá a atos que, inspirados em outros motivos, se
riam chamados heróicos! Quantos gladiadores, e outros per
sonagens sequiosos de glória, ostentaram calma e impas
sibilidade diante da morte, não pensando, em tão grave mo
mento, senão em legar à posteridade um bom conceito de
sua pessoa.
46. Quanta cegueira não causa o orgulho? O humilde
é leal, sincero; convicto de sua miséria, confessa-a a Deus
e não procura ocultá-la aos homens e assim vive na ver
dade; é simples e reto em toda sua conduta, ante grandes
e pequenos, sábios e ignorantes. Permanece em paz, não
lhe perturbando a preocupação do que for pensado ou dito
a seu respeito; desconhece as angústias do orgulhoso, tão
numerosas quanto as pessoas com as quais tem relação.
68
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O soberbo não procura a verdade, mas sim iludir o pró
ximo com aparências sedutoras, tão preocupado está em
agradar ou causar admiração. Procura também iludir-se a
si mesmo, querendo, a todo custo, crescer em sua própria
estima, e chegando, de fato, a julgar-se inteiramente dife
rente do que é. Sô descobre a verdade quem sinceramente
deseja conhecê-la. Ora, o orgulhoso teme a verdade, que
lhe manifestaria seus defeitos e assim foge dela para pre
cipitar-se no erro oposto. Será necessário acrescentar que
o demônio, pai da mentira, favorece esta funesta tendência,
circunda em suas dobras o soberbo e o envolve numa quan
tidade de erros e de idéias falsas, obscurecendo-lhe a inte
ligência e cobrindo-a com densas trevas? Dentro em breve,
esses erros aceitos, desejados, procurados, tornam-se, por
assim dizer, invencíveis, e o orgulhoso chega a convencer-se
de que ninguém pode divergir do seu modo de pensar. Se
tivesse receio de enganar-se, talvez rezasse, pedisse a Deus
a luz que ele sempre concede aos humildes; mas, compra
zendo-se cm seu erro, continua a admirar-se, a idolatrar-se.
Daí, quantas consequências deploráveis! Inveja, em re
lação a quem o poderia eclipsar; antipatia, ódio mesmo,
contra quem não o admira, ou recusa submeter-se; cólera,
se for contestado ou contrariado.
47. O orgulhoso é um instrumento dócil nas mãos de
Satanás, e o ínilt1igo das almas o prefere ao avaro, ao sen
sual e mesmo ao impudico, para ajudá-lo em sua obra de
perversão; o orgulhoso, com efeito, contanto que saiba es
conder sua �esprezivel audácia e não inspirar horror, do
mina os fracos, forçando-os a aceitar-lhe os erros, ou en
tão, insinua-se pelas adulações. Todos os meios lhe convêm,
contanto que faça partilhar suas falsas idéias, contanto que
seja considerado como um doutor que merece ser ouvido,
como um homem hábil, cujos conselhos devem ser seguidos.
Desse modo arrasta em seus desvarios muita pobre gente
que se deixa fascinar por ele.
Os heresiarcas foram sempre grandes orgulhosos. Em
todos os tempos, os fundadores de escolas de erro, os mes-
69
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
tres ou meros propagadores de falsas doutrinas, que per
turbaram ou destruíram a fé de muitos de seus irmãos, fo
ram levados a essas novidades pela confiança exagerada
que tinham em suas próprias luzes. Constituíram-se em ído
lo da própria ciência e do próprio talento; tinham, incons
cientemente a princípio, e conscientemente depois, afas
tado a Deus de seu coração, renegando o ensinamento di
vino; tais homens são legitimas agentes de Satanás.
Assim também aqueles que, na luta contra a Igreja,
tomam o partido de seus inimigos, que, sem romperem aber
tamente com ela, tendem à rebelião, pondo em dúvida os
seus ensinamentos, comprazendo-se em criticar as autoridades
eclesiásticas, a que móvel obedecem, o mais das vezes, se
não· à infatuação de si mesmos?
48. São menos raros do que parecem esses exemplos
de insano orgulho que torna o homem idólatra de sua pró
pria pessoa. O leitor pensará talvez: "Estou longe de cair
em tão deploráveis loucuras; não me iludo a tal ponto;
não sacrifico tudo ao desejo de agradar ou brilhar, tenho
pouca humildade, convenho, mas não encontro em mim esse
orgulho néscio". E' verdade. Quem lê estas páginas, não
chegou, graças a Deus, aos excessos que acabamos de des
crever; mas para conhecer um monstro é preciso estudá-lo
adulto; para avaliar uma árvore é mister examiná-la ao bro
tar da terra a primeira haste. A serpente que acaba de nascer
não pode matar pela mordedura; a planta venenosa que co
meça a elevar-se acima do solo não pode causar dano; mas,
se a serpente for agasalhada, alimentada, se a planta for.
cultivada, um dia virá em que ambas poderão tirar a vida ao
homem imprudente que lhes dispensou cuidados.
A volúpia que nasce, o orgulho que aponta, contêm
em si um princípio de perdição que, se não matam ainda,
todavia paralisam, aniquilam as forças e o vigor espiritual.
Quem combate molemente estes vícios e lhes faz concessões,
quem sem se deixar arrastar pelas paixões a excessos de
uma gravidade evidente, é por elas atingido, quem cede de
livre propósito, e sobretudo de modo habitual, ao amor do
70
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
bem-estar, aos gozos sensuais, a sentimentos de complacên
cia própria, faz à sua alma um mal, cuja gravidade des
conhece; veda-se o progresso no caminho da verdadeira
virtude e priva-se, por toda a eternidade, da superabundân
cia de alegria e de glória que o Senhor reserva, no céu,
aos que na terra foram seus fiéis amigos. Quem, ao contrá
rio, avalia a monstruosidade destes dois vicias e sabe quan
to desagradam ao Senhor, quem os guerreia sem dó, se faz
jus aos favores divinos.
Piedosos leitores, embora não tenhais sequer a cen
surar-vos qualquer fraqueza para com esses piores inimigos
de vossa salvação, embora vossa alma generosa não este
ja manchada senão por faltas ligeiras que escapam à fra
gilidade humana e não provêm de um consentimento re
fletido e deliberado, cabe-nos entretanto instruir-vos sobre
as desordens graves em que caem tantos irmãos vossos: vos
sa compaixão para com os pecadores se dilatará, e com
preendereis melhor quantas orações, quantos sacrifícios são
necessários para lhes obter a conversão e a salvação.
Compreendereis também quantas expiações reclamam
tais desregramentos. Foi a uma alma inocente que a Virgem
Imaculada repetiu em Lourdes as palavras - Penitência, pe
nitência, penitência! - Maria desejava que este apelo, di
rigido a Bernadete, fosse ouvido, não só pelos justos, como
também pelos pecadores. E foi por acaso obedecida? - Não
será porque os bons não souberam expiar pelos culpados,
que a justiça de Deus hoje nos fere?
As expiações dos amigos de Deus têm, a seus olhos,
grande valor e são necessárias para aplacar-lhe a justiça. E,
se não forem feitas vohmtàriamente, não as exigirá ele d�
uma maneira muito mais terrível?
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO VII
1. A vaidade.
72
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
o amor criminoso das criaturasj o amor legítimo dos pais
e um amor por eles condenado. Da mesma maneira, o homem
vaidoso, que não luta senão com moleza, ama no fundo
sua vaidade, e esta inclinação, da qual talvez se envergonhe,
lisonjeia-o, agrada-lhe. Quem se deixa levar pela suscep
tibilidade, preza esta susceptibilidade, e protesta altamente
que está a zelar pela sua honra e que se julgaria fraco e
sem caráter se deixasse o próximo tratá-lo sem a devida aten
ção e �espeito.
E', pois, contra esse sentimento intimo, contra esse
amor, mais ou menos confessado, a tão funesto defeito que
urge combater em primeiro lugar, excitando em nosso coração
um grande horror ao amor próprio, e convencendo-nos bem
da desordem que dele resulta.
50. O amor próprio é uma grande desordem, quer se
manifeste pela vaidade, pela susceptibilidade, quer pela ex
cessiva preocupação de si mesmoj é a criatura a reclamar
o que não lhe pertence, a roubar para si o que é devido a
Deus.
Alma cristã, alma piedosa, dizei fielmente e de todo o
coração: Glória ao Padre, .e ao Filho., e ao Espírito Santo,
e já que este desejo é sincero, por que, em vez de prestar,
à adorável Trindade, toda a glória que lhe pertence, quereis
roubar-lhe uma parte sequer? O Senhor disse: não darei
minha glória a outros: gloriam meam alteri non dabo (Is 42,
8). Ora, quando quereis ser glorificada, admirada, louvada
nos dons que ele vos concedeu, pelas boas disposições que
em vós depositou, pelas virtudes que sua graça em vós fez
nascer e crescer, vós vos apoderais da glória que lhe é de
vida. Quid habes quod non acoepisti "que tens, pergunta o
Espírito Santo, que não tenhas recebido, e se recebestes tudo,
por que te ufanas como se não o tivesses recebido"? (1 Cr
4, 7). Se há glória num rico e garboso traje, dizia São Fran
cisco de Sales, essa glória não pertence antes ao alfaiate que
o fez do que a quem o traz? Teria, seh1 o alfaiate, que se en
vergonhar de sua nudez. Ai de nós! Sem os dons de Deus,
só haveria cm nós miséria e nudez!
73
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Eis a verdade, da qual o vaidoso não se quer conven
cer, da qual, ao menos, não sabe compenetrar-se. E'-lhe agra
Pável receber elogios, ser-lhe atribuída toda sorte de vir
tudes e qualidades; julga ter direito a tais encômios e quer
persuadir-se de que lhe são devidos. "Meu talento será no
tado; minha destreza, admirada; minha opinião, acatada;
minha gentileza, minha distinção, louvadas; passarei por ter
bom coração, por ser muito dedicado, hábil, enérgico, pru
dente. E será justo que assim seja". Quantos pensamen
tos semelhantes se encontram nos pobres cérebros humanos,
mesmo nos cérebros de bons cristãos. Não digo que o proce
der das almas virtuosas vise lmicamente suscitar admiração,
mas, nem sempre, sua intenção é pura; decidem-se a cum
prir o dever, mas não o fazem sõmente para agradar a Deus,
pois querem também que lhes advenha disso alguma glória.
51. E' com razão denominada vã glória, esta glória .de
que os vaidosos se mostram tão ávidos. Procuram a esti
ma dos homens, estima tão frágil e tantas vezes injusta! E
que vantagens lhes advêm da boa ou má opinião que faz
deles o seu próximo? A censura de nossos semelhantes não
nos torna piores; seus elogios não nos fazem melhores; que
nos critiquem ou nos admirem, não teremos maior ou me
nor valor.
A glória humana foi injustamente comparada à fumaça,
que é intangível, e que logo se dissipa. E' comparada ainda
à sombra, que não passa de uma aparência vã. Assim tam
bém a estima dos homens é apenas um fantasma ilusório;
parece ser algo e nada é. A sombra é inconstante e variá
vel; às vezes muito menor que o objeto que representa. Ou
tras vezes, maior, tanto assim que cometeria erros ridícu
los quem se baseasse na sombra dos objetos para lhes me
dir as dimensões. O conceito do mundo é também incons
tante e variável; por vezes, favorável demais, por vezes se
vero demais; e quem julga seus semelhantes pela opinião
geral corre grande risco de os apreciar mal. A sombra é
caprichosa, foge àqueles qL1e a perseguem, apega-se àqueles
que dela fogem; assim também aqueles, que procuram de-
74
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
masiadamente a glória ou a estima de seus semelhantes, a
perderão; aqueles que, desprezando um motivo tão mes
quinho, são levados por considerações mais nobres, serão
dentro em pouco os mais estimados.
Perseguir um fantasma, querer alimentar-se de fumaça,
não é o proceder de um louco? E os vaidosos não podem
desculpar-se, alegando não conhecerem· o pouco valor da
opinião; como os outros, talvez mais que os outros, nos dias
de decepções, eles se queixaram de injustiça do juizo humano;
e não se enganavam, pois a cada instante o mundo se ilude:
ora eleva às nuvens aqueles que nenhum elogio merecem,
ora critica e censura aqueles que deveria admirar; ora é
severo para com os bons, ora é indulgente para com os cul
pados. Por que então não desprezar esses pareceres e dizer
como São Paulo: mihi au.tem pro minimo est u.t a vobis ju
dicer: Pouco me importa ser julgado por vós ou por juízo
humano; não me julgo a mim mesmo ... i quem me julga é
o Senhor (1 Cor 4, 3, 4).
52. A desordem é maior ainda quando a preocupação
com o juízo dos homens conduz ao respeito humano. Não
falamos desse respeito humano que leva à covardia, a ne
gligênciar os deveres inerentes à virtude cristã. Isto é pu
ra idolatria, é o culto da opinião substituindo o culto de Deus.
Mas falamos desse respeito humano que se encontra mesmo
nas almas fiéis, nas pessoas que deveriam dar exemplo de
piedade e de generosidade. Consentem em praticar os deve
res essenciais ao seu estado, porque podem fazê-lo sem se
expor à crítica, pois o cumprimento de obrigações tão graves
é aceito, em geral, por todos. Aplicar-se-ão também em re
zar a sós com fervor, mas quanto a viver do puro espírito
do Evangelho, a fazer profissão de amar . a humildade, a
mortificação, a vida retirada, a fugir às conversações iní1-
teis, a se mostrar reservadas e modestas a fim de levar uma
vida interior mais segura, isto seria expor-se às críticas,
passar por ser um espírito estreito, escrupuloso; então pre
ferem não desagradar às pessoas tibias e fogem para não
ser objeto de seu escárnio.
75
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
53. Vive em paz aquele que, como São Paulo, se põe
acima do juizo humano; cumpre com seu dever, aconteça o
que acontecerj não trabalha senão para Deus; e como Deus
não lhe pede que se vença, mas que combata, está certo ele
obter a recompensa.
Mas quem se preocupa com a própria glória teme os
reveses, apressa-se, agita-se e perturba-se, receando uma
humilhação! Tais indícios mostram que não é pura a sua in
tenção, nem sem mescla o seu zelo. O insucesso é frequente,
pois não deve contar com as bênçãos divinas quem não pro
cura a glória de Deus, quem demais antes confia em si
que em Deus: ecce homo qui non posuit Deum adjutorem
suum (SI 51, 9). Deus abandona o homem às suas próprias
forças; este fracassa, e o revés, que é uma provação para
a alma humilde, é para o vaidoso um castigo. Revela-se então
o fundo de seu coração; sua irritação, seu mau humor, suas
recriminações amargas denotam uma vaidade despeitada,
e isso significa que a alma se busca a si mesma enquanto
procura os interesses de Deus. Quantas obras, aparenten1en
te excelentes, desagradam ao Senhor e produzem poucos fru
tos, ou nenhum mesmo, prejudicadas que são pelos fins de
masiado humanos dos seus dirigentes!
li. A suscetibilidade.
54. Os vaidosos recebem já neste mundo sua recompen
sa, disse Nosso Senhor: receperunt mercedem suam, e a
vaidade dessa recompensa não os desabusa; quando vierem,
porém, a sofrer castigos, decepções, dissabores, julgar-se
ão curados? Não, o amor próprio, fonte de tantas amargu
ras, não é repudiado por aqueles cuja desgraça faz. Nota
mos isso nos suscetíveis, que se criam continuamente no
vos aborrecimentos, e cogitam tão pouco em corrigir-se. As
criticas, as censuras, afligem-nos desmedidamente; uma re
provação causa-lhes um verdadeiro desgosto; ante qualquer
contrariedade, suas alegrias se esvaem, as demais preocupa
ções se dissipam, e ficam absorvidos pela tristeza. Basta,
muitas vezes, para magoá-los, uma simples palavra dita ami-
76
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
gàvehnente, uma leve advertência, feita com boas intenções,
ou mesmo uma ligeira falta de atenção, um esquecimento,
um sinal de indiferença. Outras vezes ainda o melindre é
provocado por uma simples aparência: julgar-se-ão ofendidos,
quando aquele de quem se queixam jamais pensou em lhes
ser desagradável. Oh! se, ao menos, esses, que se mostram
tão suscetíveis quando sua honra está em jogo, se mostrassem
igualmente melindrosos em suas relações para com Deus,
igualmente sensíveis no que lhes fere a honra, igualmente
pressurosos em não a prejudicar.
55. Sua exagerada suscetibilidade já é, porém, uma
ofensa à honra divina, porque é contrária à humildade, à
justiça, à verdade, e porque dá origem a muitas discórdias.
Haverá algo de mais belo que essa divina caridade tão
hem praticada pelos primeiros cristãos, que, segundo ouvi
mos, tinham um só coração e uma só alma? Haverá algo de
mais admirável, de mais nobre, que a união perfeita dos co
rações que vemos reinar em certos meios verdadeiramente
cristãos? Ora, por que não existe sempre essa harmonia?
por que, entre almas feitas para se entenderem, esses melin
dres, esses sentimentos de antipatia mal disfarçados, ou aber
tamente declarados? por que essas palavras amargas, essas
censuras mais ou menos injustas, essas asserções ofensivas?
Procurai a causa dessa desordem; interrogai aqueles
que praticam tão pouco a caridade para com seus irmãos e
quase sempre tereis a seguinte resposta: ofenderam-me o
amor próprio, fizeram-me repreensões imerecidas; levan
taram contra mim acusações falsas. Tal é geralmente a ori
gem desses ressentimentos; fomos ou nos julgamos ofendi
dos; então o amor próprio se revoltou; em vez de esquecer
mos o que não tinha maior importância, voltamos a repisã
lo a miúdo; repassamos no espírito os procedimentos pouco
amáveis, as injustiças de que nos consideramos vitimas. Só
alargamos e agravamos a ferida. Daí esses sentimentos de
aversão, ou, pelo menos, esses juízos desfavoráveis, injus
tos, cuja falta de fundamento nos escapa e de que não quere
mos, de que, talvez, não possamos mais nos desfazer. Uma
77
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
pessoa suscetível não sabe fazer justiça àquelas de quem
pensa ter motivo de queixa.
56. Desse modo a suscetibilidade ainda impede o bem.
Nas circunstâncias em que deveríamos praticar algum ato
Util, cooperar em alguma boa obra, recusamos agir ou pres
tar nosso concurso e permanecemos entregues ao nosso mau
humor. Devido a essa teima néscia, com frequência, impor
tantes empreendimentos virão a falhar.
Se é contra os superiores que estamos despeitados, mur
muramos, e só obedecemos contrariados, semeamos o mau
espírito, criticando e excitando os outros à indocilidade e
à revolta. Se é contra os iguais, difamamo-los no espírito
do próximo; não sómente diremos contra eles o mal que
sabemos, mas enxagerar-lhes-emos os erros; aumentar-lhes
emos as faltas; não lhes reconheceremos as qualidades; fa
remos deles apreciações injustas, suspeitas desfavoráveis,
que nada de sério autoriza; e indisporemos contra eles pes
soas que, de outro modo, os estimariam e amariam.
78
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
da; os auxílios espirituais, se foram menos numerosos, en
tretanto, não lhe faltaram. Se a interrogarmos, se lhe pergun
tarmos donde lhe vem a diminuição do fervor, queixar-se-á,
atribuindo toda a culpa aos outros; padeci tanto, não encon
trei senão antipatia, levantaram contra mim acusações fal
sas, humilharam-me, perseguiram-me, e, no meio desses so
frimentos, não fui consolada, mas antes repelida, ou, pelo
menos, desamparada. Se insistirmos, contar-nos-á histórias
insignificantes, fatos sem importância que, a essa alma apai
xonada de si mesma, pareceram grandes vexames, porquan
to vê através de vidros de aumento tudo que lhe diz res
peito. Não a consolaram; mas por que não procurou ela
esse consolo junto de Deus, o único verdadeiro consolador?
Não, Deus não lhe basta; se lhe propondes os exemplos
de Jesus, e.sses exemplos não a comovem, continua a falar de
suas tristezas, do abandono a que está reduzida; não que te
-nha deixado inteiramente de voltar-se a Deus, mas, no quadro
que tem geralmente diante dos olhos, ele está bem longe, no
fundo, enquanto que ela mesma se acha no primeiro plano.
58. Vede tal pessoa, pela manhã, ao despertar; é mis
ter estudá-la aí para conhecer as tendências de seu coração.
A alma apaixonada por Deus, logo ao acordar à vida, pen
sa em Deus, preocupa-se com os interesses de seu bem-amado:
"Meu Deus, que farei hoje por vós?" Outras pensam em
seus trabalhos, em seus projetos; tais pensamentos não são
santos, e podem prejudicar o recolhimento, embora não se
jam em si repreensíveis. Quanto à alma egoísta, essa reco
lhe-se em si mesma, e se aflige: "Que me acontecerá ho
je? corno me tratará tal pessoa? e tal outra? como se por
tará comigo, que me dirá? Começam então as lamentações,
pois a alma toda entregue a si mesma julga ter muitas ra
zões de queixa; queixa-se de seus trabalhos, como se fora
a úniç_a a trabalhar; de suas indisposições, da frieza de seus
superiores, da indiferença do próXimo, da ingratidão daque
les a quem presta serviço; não é querida, nem amparada,
nem auxiliada, nem recompensada de seus esforços. E' ela,
sempre ela!
79
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Tão triste disposição exerce grande influência sobre sua
maneira de julgar. Por que motivo eleva até às nuvens tal
pessoa cujas qualidades são mediocres, e rebaixa injusta
mente tal outra cujos dotes e cujo mérito são muito superio
res? E' que a primeira é mais amável, mais solicita com
ela, enquanto que a outra é mais reservada e talvez lhe fa
ça sombra. Assombra-nos a variedade de apreciações que
faz sobre uma mesma pessoa, segundo os motivos que jul
ga ter para queixar-se ou para regozijar-se.
59. Quando nos ocupamos tanto de nós mesmos, que
remos também que os outros se preocupem conosco. E não
derramamos sobre eles o que há de bom em nós. No co
ração do cristão Deus estabelece sua morada. "Sois o tem
plo do Deus vivo", dizia São Paulo: Vos estis templum Dei
vivi (2 Cor 6, 16). Respeitamos nós esse templo, quando aí
derramamos as impurezas de nosso amor próprio? Entretan
to o Senhor se revolta quando lhe profanamos o templo: Con
laminare non debet sanctuarum meum. (Lv 21, 23).
E o templo mais precioso aos olhos de Deus é o cora
ção de seu sacerdote. Profanos, aí não penetreis! E' o san
tuário do Altíssimo, o Santo dos Santos! Recorrei ao espírito
do sacerdote apenas o necessário para saber dele o caminho
que conduz a Deus; se o ocupardes por mais tempo, empre
gareis para um uso profano o templo de Deus. Vós que não
sois senão um amontoado de misérias, não lhe deveis pren
der a atenção além do necessário; fazei passar vossas im
perfeições sob seus olhos para serdes delas purificados e
preservados para o futuro; depois procurai a Deus, aguardai
a Deus, e, afastando-vos, não leveis senão a Deus. Sois um
grão de pó, não vos torneis em lodo: um sopro, um mo
vimento basta para tirar a poeira; a lama adere e permanece.
Não desejeis, pois, que o ministro de Deus se preocupe de
masiadamente convosco, nem que vossa lembrança o acompa
nhe; seria querer deslocar a Deus, porquanto só Deus deve
ser o objeto de seus pensamentos e de suas preocupações.
Não procureis junto a ele conversações ou consolações hu
manas; não viseis obter dele senão um acréscimo de luz e a
80
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
graça dos sacramentos. As pessoas muito ocupadas con
sigo mesmas pretendem encontrar junto ao sacerdote tran
quilidade e conforto; é antes uma secreta sensualidade es
piritual que procuram satisfazer. O sacerdote pertence a Deus
e devemos nos abster de fazer servir a uma satisfação pura
mente natural esse tesouro vivo e sagrado.
60. Religiosos e religiosas, não profaneis o templo do
Senhor, que é o coração dos vossos superiores; não lhes
façais ouvir o ruido importuno de vossas queixas, de vossas
maiedicências, de vossas murmurações. Não venha vossa
voz abafar ali a voz de Deus, lançando a perturbação na
alma dos superiores que, preocupados com vossa malícia,
estão impedidos de ouvir em paz as inspirações divinas.
Não devem pensar em vós senão pensando em Deus; vossa
lembrança não deve ser um obstáculo à sua contínua ora
ção. Vinde queimar nesse templo o incenso de vossas vir
tudes, oferecendo a Deus o holocausto de vossos gostos, de
vossa vontade, de vossa opinião, de vossas idéias individuais;
não torneis, porém, esse santuário num lugar profano, em
que ides tratar de toda espécie de insignificâncias, ou pas
sar agradàvelmente o tempo, satisfazendo ao desejo que
tendes de falar de vós mesmos. Não procureis, sobretudo,
monopolizar as boas graças de vossos superiores, captar-lhes
os favores pela adulação, pelas atenções indevidas e in
teressadas, usurpando em seu coração, que é o ·santuário
da Divindade, um lugar ao qual não tendes direito algum.
61. Enfim, almas fiéis, seja qual for vosso estado, não
profaneis o templo do Senhor introduzindo o temor e a dis
sipação no coração de vosso irmão. Deus ali está! respei
tai sua presença. Não derrameis, em sua frente, o excesso de
vosso amor próprio, de vossas antipatias, de vossas frivolida
des; e mormente as impurezas de colóquios perigosos. Se
vos esquecerdes a vós mesmos, se não pensardes em vós
senão pensando em Deus, o amor próprio não virá mais
prejudicar vossas palavras; vossas conversações serão sem
pre puras e dignas de uma alma cristã, e levarão ao cora
ção de vossos irmãos o suave aroma de Jesus Cristo.
81
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO VIII
Da virtude da fé, sua natureza,
seus efeitos
1. Esclarecimento da inteligfncla.
62. Indicamos nos capítulos precedentes a necessidade
da luta. "Aparta-te do mal, diz o Espirita Santo, repele-o
com todo o vigor de teus braçosj e se te perseguir, se 5C
apegar a ti, deves a todo custo afastar-te dele: "declina a
maio. Mais isso não basta, é preciso que faças o bem, et fac
bonum (SI 36,-27).
Faze, pois, o bem. Desenvolve em ti a vida sobrena
tural que te dei. Já dissemos como o sobrenatural transfi
gura a criatura humana, comunicando-lhe uma admirável
semelhança com Deus. A base dessa ordem sobrenatural
em nós é a fé. Para aprendermos a cultivar esta virtude fun
damental, convém primeiro estudá-la, analisar os elementos
do ato de fé, ver a parte de Deus e a parte da criatura
na produção dos atos dessa virtude, o primeiro elo que une
a alma fiel a Deus.
63. Para podermos fazer um ato sobrenatural de fé
- dá-se o mesmo, aliás, em se tratando das outras virtu
des - é preciso que Deus atue sobre nossa inteligência, que
a divinize, de certo modo, dando-lhe a faculdade de ver sob
um novo aspecto as verdades de ordem sobrenatural.
Podemos acreditar que Deus existe sem termos fé; as sim-
82
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
pies luzes da razão demonstram a sua existência. Se não ca
recemos de um auxilio sobrenatural para deduzirmos, da
existência do relógio, a do relojoeiro, não carecemos tão pou
co da graça para deduzirmos da existência das criaturas
a do Criador. "Os demônios crêem e tremem", diz São
Tiago; mas sua fé "nada tem de sobrenatural. Lutero, ten
do rejeitado a fé, acreditava ainda na divindade de Jesus,
e em sua presença na Eucaristia; as simples luzes da ra
zão bastavam para demonstrar-lhe a verdade desses dogmas.
Mas, na alma dócil e reta do cristão fiel, a operação
da graça precede o exercício da razão; essa graça divina
se apossa das faculdades da alma e as torna capazes de fa
zer, divinamente, o que, por suas próprias forças, só po
deriam fazer humanamente. Há, pois, uma diferença imensa,
posto que insensível, entre a crença em Deus, de um herege
obstinado, e o ato de fé em Deus, de um verdadeiro fiel.
83
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
vidar! Por que chegamos, raramente, nas discussões, a
um acordo entre as partes? E' porque o amor próprio não
se quer convencer. Se os fatos verídicos forem incômodos
o·u comprometedores; se parecerem prejudiciais aos interes
ses sustentados, à causa defendida; se forem desfavoráveis
a um amigo ou favoráveis a um adversário, serão sempre
aceitos com repugnância, senão rejeitados com obstinação.
As testemunhas serão tidas por suspeitas; será aproveitada
tal inverosimilhança; tal outra difiouldade exagerada; numa.
palavra, se uma verdade não agrada, encontrará mil objeções;
se um fato nos aborrece, serão alegadas mil razões boas pa
ra não o admitir, tanto a vontade influi na inteligência.
Logo, o papel que desempenhá no ato de fé é com
preensível. As verdades apresentadas são exatasj é fácil, pois,
delas nos certificarmos. Deus· mesmo age sobre a alma para
ajudá-la a obter uma convicção inabalável. Se a alma for
reta e sincera, se a vontade for criteriosa e justa, a fé for
ma-se e se desenvolve. Mas pode se dar o contrário. A von
tade pode ser rebelde; a alma, desagradando-se das ver
dades que a religião lhe propõe, pode conceber contra elu
uma aversão culpável; então, apesar da evidência dos fatos,
da garantia das provas, e do poderoso impulso da graça, o
homem pode resistir. Permanece capaz de esquivar-se à ação
de Deus; pode, voluntàriamente, desviar a atenção das pro
vas, apegar-se obstinadamente às objeções, não lhes querer
ouvir as soluções e tornar-se incrédulo. Por mais brilhante
que seja o sol, podemos sempre interceptar-lhe o trajeto
dos raios e envolver-nos nas trevas.
Por que motivo, pergunta Santo Agostinho, os judeus,
testemunhas das virtudes divinas de Jesus Cristo, de seus
inúmeros milagres, permaneceram incrédulos em tão grande
nirmero? E o santo doutor responde: "não creram porque
não quiseram crer: non credebant quia nolebant.
A fé exige, pois, em primeiro lugar, que o coração do
homem não seja rebelde e, em segundo, um ato de boa von
tade, uma submissão amorosa ao ensinamento divino. Deus
dignou-se falar aos homens. As verdades que ele mesmo
84
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
veio ensinar ao mundo, quis que fossem logo apresentadas
às nossas almas. Pela sua graça, age sobre nosso espirita
e sobre nosso coração para fazer-nos aderir a essas verda
des. Permanecer indiferente, seria resistir à ação íntima da
graçaj seria desprezar os convites que Deus nos faz; seria
desdenhar o grande dom da revelação, seria ofender gra
vemente a Deus.
Quem crê teve, portanto, uma vontade reta; amou li
vremente a verdade proposta; aceitou de bom grado o en
sinamento de Deus. Se o fez generosamente, maior serã o
mérito; se, para fazê-lo, precisou inclinar a razão ante os
mistérios que não compreende, seu mérito cresce ainda.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
do Espírito Santo, ser-lhe-á comunicado de modo a ·en
cantar os olhares dos anjos e dos eleitos.
66. Mas que dizer daqueles a quem o Santo batismo
-fixou no sobrenatural e uniu tão fortemente a Deus? ln cari
tate radicati et fundati (Ef 3, 17). Antes mesmo que sua
inteligência se abrisse às luzes da razão e da graça, os ger
mes da fé jaziam em suas almas. Enquanto a água san
la lhes banhava a fronte, Deus realizava neles uma obra
maravilhosa: · plasmava-lhes um espírito e um coração de
crente, transmitia-lhes uma aptidão scibrenatural para com
preender as verdades divinas, e uma santa disposição para
aceitá-las. Logo, pois, que lhes sejam apresentados os dog
mas cristãos, o ato de fé lhes será fácil.
Essa fé que Deus dá a seus filhos é uma fé forte. Por
ela a alma é levada a crer firmemente na palavra de Deus;
a vontade humana, arrebatada pela graça, está plenamente
disposta a aceitar com amor os ensinamentos divinos. Essa
fé que provém de Deus é uma inabalável fé, pela qual a
alma crê, sem hesitar, as verdades religiosas.
Então, não se assustará com os mais profundos mis
térios e nada será capaz de abalá-la, nem os escãndalos
mais deploráveis, nem as objeções mais especiosas, nem os
argumentos mais pérfidos dos incrédulos, nem as tentações
mais terríveis dos demônios. A fé, implantada por Deus no
coração humano, não poderá ser desarraigada; só o pró
prio crente pode arrancá-la e rechaçá-la de seu seio; e
ainda será necessário um ato culpável, mui grave, contra
a própria fé, seja uma dúvida voluntária e refletida, real
mente injuriosa à honra de Deus, seja um prazer perver
so em ver os ensinamentos divinos combatidos e negados.
Mas todos esses assaltos exteriores, a fé os pode repelir.
E o que é mais admirável ainda, o que em verdade é fru
to da infinita misericórdia do Senhor, é que as mais gra
ves faltas contra as outras virtudes, revoltas, blasfêmias,
volúpias, escândalos, não extirpam• da alma esta virtudt
fundamental; a base da ordem sobrenatural subsiste no pe
cador, a fim de lhe permitir reerguer todo o edifício; nada,
86
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
portanto, pode destruí-la, senão a própria liberdade da al
ma cristã, liberdade que os dons de Deus despeitam sempre.
67. Gratias De(! super inenarrabili dono ejus: "Graças
a Deus pelo seu dom inenarrável!" (2 Cor 9, 15). E não é
esta, alma cristã, a única graça que recebestes no santo ba
tismo. Estimai, pois, devidamente, o favor que vos concedeu
o Senhor, marcando-vos, desde a vossa entrada na vida,
com o sinal da regeneração.
O batismo nos une forte e estreitamente a Deus, es
tabelecendo uma espécie de comunhão que nada pode des
truir; é, para empregar uma comparação vulgar, como um
canal misterioso, que, vindo de Deus, se soldasse à parte
superior da alma. Por esse canal, a graça, luminosa e ope
rante, ·passa de Deus em nós, permite-nos uma participa
ção real aos atributos divinos, à sabedoria e à força divina,
e nos torna aptos a produzir atos que visem Unicamente
à glória de Deus.
68. O pecado mortal pode, naturalmente, obstruir esse
canal, porém não o rompe. Se a luz não entra mais, entretanto
o obstáculo não é espesso ao ponto de impedir que um
\'islumbre possa ainda penetrar na alma de forma a deixar
o pecador perceber as horríveis impurezas que estão nele.
E, enquanto a ilumina, o Senhor atua nela, corno na alma
justa, com todos os seus atributos - santidade, bondade,
ternura - sua justiça, ao menos, não fica tolhida; pode mo
ver a alma, sacudi-la pelo remorso, pode fazer-lhe chegar
aos ouvidos como que um trovão que a amedronte. E' verdade
que certos pecadores se tornam empedernidos, até despreza
rem as ameaças divinas, mas esta surdez voluntária supõe
um abuso da graça realmente extraordinário.
69. A luz divina encontra sempre entrada na alma jus
ta; é o demônio que será constrangido a ficar de fora e
agir exteriormente, fazendo, muitas vezes, grànde alarido com
as ·tentações que sugere e as perturbações que suscita no
interior; entretanto, continua a reinar a graça. Essa gra
ça, que vem de Deus, tende a alçar toda a alma, a trans-
87
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
figurar mesmo o que é baixo e carnal, e o mais grosseiro dos
sentidos humanos, o mais inclinado a seguir as tendências
naturais, pode, sob a ação purificadora e santificadora da
graça, tornar-se o principio de atos de um valor eterno e
produzir, na fé, obras santas, enrubescidas pelo sangue
ele Jesus, germes preciosos da glória celeste.
Enquanto a graça se esforça para realizar sua obra,
o demônio encontra um cúmplice em nós mesmos; é a na
tureza, cujas inclinações são o justo oposto das santas dis
posições incutidas em nós pela graça. Enquanto a natureza
animada, excitada pelo inimigo infernal, clama sempre:
para mim! a graça clama: para Deus e contra ti! brados con
trários, que não se sufocam um ao outro e que ressoam a
um tempo, no íntimo de nosso ser. E' a luta ardente entre
a natureza e a graça. Qual das duas vencerá? De nós de
pende a vitória; mas temos uma obrigação tanto maior de
ouvir a voz da graça, quanto maior for a nossa dívida pa
ra com Deus, que se mostrou tão liberal para conosco.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
C.�PITULO IX
Da vida da fé
89
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
antes por gosto do que por motivos de fé, ou porque a ra
zão lhes patenteia a sua necessidade; pennitem-se, e pro
-curam as satisfações que se podem proporcionar sem que
a consciência se revolte e inúmeros atos seus não visam ou
tro fim, senão satisfazer as aspirações da natureza. Sua
fé não é bastante forte para imprimir em toda sua con
duta uma direção santa; as luzes que recebem são poµco
refulgentes, e confirmam, em vez de ultrapàssarem, as ver
dades que a razão está apta a apreender. Ninguém dirá
que esses cristãos vivem de fé.
Mesmo entre as almas piedosas, muitas não vivem ple
namente a vida da fé. Embora esta virtude já exerça so
bre sua vida uma grande influência, muitas de suas ações
ainda se inspiram, ao menos em parte, em motivos humanos
e egoístas. O pensamento de sua pessoa se impregna de
n1asiadamente ao pensamento de Deus, impedindo que as
grandezas, a santidade e o amor de Deus as impressionem
vivamente.
71. Viver da fé é dirigir todos os atos, e não sõmen
te alguns, para um fim sobrenatural. E' viver para Deus. E',
também, viver de Deus, pois é alimentar assiduamente o
pensamento com a lembrança das perfeições divinas; ·é vi
vificar a vontade pela adesão completa e continua â von
tade divina. Isto requer, não uma fé fraca e medíocre, nem
mesmo uma fé comum, mas uma fé forte e intensa, capaz
de comunicar à alma luzes que vão muito além dos tênu"es
vislumbres da razão. Assim essa vida da fé é uma vida mis
teriosa, incompreensível àquelas que vivem da outra vida.
A operação da graça que a produz é misteriosa; as verdades
que alimentam a alma e pelas quais se orienta, são cheias
de mistérios; é, principalmente, cheio de mistério o seguinte
pensamento de Deus, que domina o homem de fé: Deus lhe
aparece como um ser insondável e quanto mais a idéia de
O_eus se eleva e se aperfeiçoa, mais profundo é o mistério
que a alma começa a entrever. E o homem de fé se vai fa
miliarizando com essas profundezas misteriosas; percebe
que tudo o mais, tudo que não ultrapassa o alcance de sua
90
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
inteligência, é superficial e de pouco valor; compreende que
só Deus é tudo; só Deus vê tudo; só Deus é sábio, e que
nossa pretensa sabedoria, ao lado da sabedoria divina, é
mera loucura.
Mas, para atingir tão alto grau de fé, urge renunciar
às apreciações humanas, dominar o orgulho da razão; acei
tar, sem os compreender, os planos divinos; dar a Deus, sem
reserva, tudo quanto exigir; deixar-se conduzir cegamen
te pela sua providência, chegando - se ele o pedir - a
praticar atos de virtude verdadeiramente heróicos.
91
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
73. Abraão é a imagem do cristão perfeito. Este tam
bcm deve deixar seu pais, isto é, a região dos sentidos e
da pura razão, para elevar-se a uma esfera superior; de
ve renunciar às próprias luzes para receber as luzes divinas.
O Senhor lhe diz, como outrora ao pai dos crentes: Aban
dona os baixos atalhos das reflexões humanas, sobe mais
alto, eleva-te até às paragens em que eu vivo; ai te fala
rei, aí te ensinarei. Levaste até aqui uma vida honesta, ra
zoável, aplaudida pelos homens; de ora em diante, anda em
minha presença, ao clarão de minha luz, e tua vida será
perfeita. Sobe até à parte superior, a mais nobre de teu ser,
e daí, divinamente alumiado, reina sobre os teus sentidos,
dirige a tua vida, e mostra-te filho genuíno da luz.
De onde te vem essa luz? Vem-te de Deus, que reside
cm ti, e em ti faz brilhar sua pura claridade i vem de Deus e
te revela Deus, o ser misterioso, incompreensivel, o ser
superadmirável, superadorável, diante do qual nada tens a
fazer senão calar-te e prostrar-te.
O' santa luz que a fé comunica, luz superior, apanágio
dos verdadeiros amigos de Deus, quão longe estás de ser
apreciada como mereces! Muito poucos são aqueles que te
recebem, que procuram o teu fulgor, que seguem os cami
nhos iluminados por ti. Luz preciosa, incompreensivel como
2 Divindade de que emanas, nenhum espírito criado te pode
conter, nenhum gênio te pode compreender perfeitamente.
Tudo quanto iluminas reveste uma profundeza insondável;
os tesouros contidos numa Unica palavra de Deus, esclarecida
por ti, estão muito acima da inteligência humana, e quem
a examina ao teu clarão, confessa entrever algo apenas do
que essa palavra encerra.
Quando mostras as· virtudes sobrenaturais, elas sur
gem belas, grandes, incomensuráveis e logo vemos, pelos
multíplices graus que manifestam, a parte mínima que pos
suímos de cada uma delasj pudemos progredir dia a dia,
durante longos anos, na prática dessas virtudes, antes de
lhe alcançar a plenitude. Aqueles a quem esclareces, perce
bcn1 então sua pobreza e gemem de sua miséria. Fazes ver,
92
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ao mesmo tempo, quanto os defeitos mancham a alma e,
ao teu fulgor, aparecem nódoas que os imperfeitos nem
sequer suspeitam, montanhas de imperfeições que escapam
aos cristãos vulgares. Não são falsas convicções, corno as
dos escrupulosos, que vêem o mal onde não existe, ou nãB
o vêem onde se encontra; o juízo dos escrupulosos é fal
so e, se não o reformarem, não receberão luzes abundantes;
sua humildade não é profunda; muitas vezes, não passa de
uma humildade, que diminui a confiança em Deus, quando
nãO a suprime de todo (1). Os homens de fé, ao contrá
rio, vêem claro; são esclarecidos pelo próprio Deus, a quem
basta revelar a verdade para incutir a humildade.
Os homens de grande fé têm, portanto, um profundo
respeito por Deus; formam um alto conceito de suas gran
dezas, de seu poder, de sua sabedoria, de sua santidade, de
sua infinita bondade e têm também uma idéia elevada e
justa das perfeições da alma de Jesus, do amor de seu di
vino Coração, das ternuras, da pureza, da santidade de Maria.
Que vastos e misteriosos horizontes do mundo espiritual
abrem-se aos verdadeiros amigos de Deus! Em que abis
mos mergulham seu olhar. Eles mesmos não sabem expri
mir o que vêem e o que sentem, porque são pensamentos e
sentimentos que a linguagem humana não pode traduzir.
Não sabem tampouco explicar o que lhes é dado compreen
der do nada das criaturas, de horror ao pecado e das man
chas causadas pelas menores imperfeições.
1) Grande é o erro de quem supõe que o escrúpulo denota uma.
fé arden.te. A ré a6 faz aderll' à. verdade, e, quanto maior for,
mais juatu serão as idéias a. reapeito dN perfeições divinas. Os
escru.puloaos - aquelea, ao menos, que não reagem vltoriosa
meDte contra sua.a perturba,;;õea - têrn, ao contrário, uma noção
inexata d& justiça. de Deus, que julgam irritada por taltu involun
táriu, e desconfiam d& bondade e do amor de Jeawi. lilstN ra1aas
convl01;óe11, de que ee a.llmenta o espirito, ofendem a De-Ull.
Neles a. esperança. é tão mediocre quanto a. fé, e diminuta tam•
bém é a caridade, pois, estando cont1nuamente reconcentra.doa,
atentoa à lembrança de suas faltas, fazem poucos a.tos de amor, e
eue rneamo amor é despido de energia, ji que ruas vezes consegue
fazer dominar o temor no cumprimento do dever.
9J
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO X
94
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
só -pensam em si, que raciocinam em excesso, que querem
saber tudo, e opinar sobre todas as coisas, que não reconhe
cem um limite à sua inteligência nem admitem que sua ciên
cia não possa alcançar os caminhos divinos, são pouco es
clarecidos por Deus. Por vezes mesmo, o orgulho da ra
zão ocasiona revoltas em que a fé perece, pois é loucura
e audácia insolente querer medir e compreender a Deus.
De fato, com demasiada frequência, esquecemos a gran
deza infinita de Deus, sua sabedoria sem limites, a profunde
za impenetrável de sua ciência e a ínfima pequenez do es
pírito humano. Tratamos Deus como urna criatura que, em
bora excedendo-nos, se nos assemelhasse e com quem pu
déssemos raciocinar e discutir. "Vossos pensamentos não são
meus pensamentos e vossos caminhos não são meus cami
nhos", disse o Senhor. "Quanto os céus estão acima da
terra, estão meus caminhos acima de vossos caminhos e
meus pensamentos acima de vossos pensamentos" (Is 65, 8).
Querer compreender os planos divinos, apreender os desígni
os, os juízos de Deus, seria tentar atingir com a mão a abó
bada celeste e apanhar as estrelas.
Eis o que esquecem os cristãos que parecem querer
pedir contas a Deus da maneira pela qual governa o mundo;
que, diante dos acontecimentos que sua pobre inteligência
de criatura humana não compreende, se admiram, se escan
dalizam, ou aparentam ceticismo; que, diante da narrativa
ele uma maravilhosa intervenção de Deus, em vez de verifi
car prudente e imparcialmente se as provas são satisfató
rias, mostram-se a priori desdenhosos, incrédulos, regateando
a Deus o direito de fazer sobressair seu poder e afastando,
o mais possível, e além do possível, toda explicação que
não seja puramente natural. Não compreendendo por que
Deus teria realizado um prodígio em tal ocasião, dizem que
não o deve ter realizado. O mínimo de sobrenatural parece
ser sua divisa e aplicam-na, na história da Igreja, não só
mente aos acontecimentos presentes como também à Sagra
da Escritura. Obscurecem as:sim a noção da Providência,
preocupados em explicar a marcha do mundo baseados ape-
95
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
nas em razões humanas. Os fatos que se desenrolam sob
seus olhos não os fazem pensar em Deus; consideram os
homens, suas qualidades e defeitos, suas habilidades e ina
bilidades, as intrigas e circunstãnci:is favoráveis ou desa
gradáveis, e nada vêem além disso; não compreendem que
as causas segundas são instrumentos nas mãos de Deus que
governa o universo. E' fácil perceber em tudo isto obstá
culos à dilatação da fé e quem tem estas disposições nun
ca poderá se aplicar as palavras da Escritura: Jusl11s ex /i
de vivit, "o justo vive da fé".
75. Por que será que tantos cristãos têm tamanha di
ficuldade em se conformar com as provações da vida? E'
porque querem discutir em vez de aceitar cegamente a von
tade divina; não querem lembrar-se do grande principio de
que, sendÔ Deus infinitamente sábio e nós essencialmente
limitados, não devemos discutir com ele, e sim adorar a
conduta da Providência e deixar-nos levar pelos caminhos
que nos traçou. Em tais pessoas a fé será forçosamente fra
::a e débil.
Entre estas provações, existe uma, pela qual devem
passar todos aqueles que Deus chama a uma fé perfeita. E'
a desaparição das graças sensíveis, as privações espirituais,
os sofrimentos íntimos.
Em tão penosa crise, inúmeras almas não sabem in
clinar o seu parecer e a sua vontade perante os decretos
da sabedoria divina; não sabem resignar-se, nem envere
dar pelo eaminho que Deus lhes indica.
Quando, ao contrário, a razão se submete humilde
mente, tudo se esclarece. Vemos então que a fé genuína, a
fé pura, é obscura e insensível, e que nela devemos per
manecer sem ver, sem sentir, sem compreender; vemos que
as almas que buscam sempre o prazer e as doçuras no ser
viço de Deus, se mancham, ficam cegas e se privam das
puras luzes da fé.
Eis o que a alma depreende quando curva o espírito
diante da sabedoria de Deus. Tendo empregado então, do
melhor modo possível, esse grande dom da fé, dela recebe
96
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
um novo impulso, tornando-se-lhe, pouco a pouco, mais
fácil pensar nos atributos de Deus; saberá conhecê-los me
lhor e melhor apreciá-los. Não nos cabe a nós dirigir, tan
to quanto possível, nossos fracos olhares para esse ser imen
so, infinito, digno objeto de nossos pensamentos, de nossas
recordações, de nossa admiração e de nosso amor? E não
devemos encontrar nossa suprema felicidade em pensar que
ele é tão grande que jamais poderemos entrever senão uma
parcela mínima de suas grandezas? e que só ele pode se
conhecer, admirar e glorificar segundo merece?
97
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
não era entretanto senão o esboço da lei evangélica, ele en
contrava a palavra de Deus, a doutrina divina, e as ver
dades, que lhe eram reveladas, transportavam-no de ad
miração. Eis por que investigou, aprofundou esse livro da
lei, repassou-lhe as razões, tirou-lhe as consequências e
descobriu, assim, profundas verdades. A sabedoria divina
a ele se revelou, a ele aplicou a sua própria vida, comparou
os seus atos com as prescrições dessa lei santa, dirigiu sua
conduta pela luz do ensinamento divino, e obteve assim ex
celentes regras de vida.
Esse estudo dos livros sagrados ensinou-lhe a melhor
conhecer a Deus, deu-lhe uma idéia cada vez mais alta e, por
conseguinte, cada vez mais justa, das grandezas divinas;
ele se extasia ao ver Deus tão condescendente para com o
homem, cuja miséria e cujo nada percebe melhor. Daí, os
gritos de admiração, as palavras de louvor que lhe brota
vam dos lábios, a cada momento, mau grado seu. Domine,
Dominus nosler, quam admirabile esl nomen luum in uni
versa terra. "Senhor, Senhor ilosso, quão admirável é o vosso
nome em toda a terra. . Que é, pois, o homem para que
nele penseis; que é o homem para que com ele vos
preocupeis?"
Os santos do novo Testamento, como os da antiga ali
ança, examinaram as Escrituras, encontrando abundantes
esclarecimentos. Se todo livro que revela Deus aviva e au
menta a fé, ilumina a inteligência e abrasa o coração, toda
via os livros inspirados, nos quais é tão grande a parte de
Deus, oferecem, mais que os outros, um alimento salutar a
quem os lê com o devido respeito. Toda a Escritura divina
mente inspirada, nos diz o apóstolo, é útil para ensinar,
para repreender, para corrigir, para instruir na justiça, a
fim de que o homem de Deus seja perfeito, habilitado pa
ra toda a obra boa (2 Tm 3, 16).
Quem, no tempo de miséria, se alimenta de pão mistura
do com palha, dificilmente prolongará sua vida lânguida;
quem, em vez de nutrir sua alma com leituras puras e sãs,
lê sàmente livros frívolos e r.evistas fúteis, não tardarã em
98
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ressentir os efeitos de tão funesto alimento; sua fé se en
fraquece e se altera. Quem, sem excluir as boas leituras, re
serva-lhes poucas horas, destinando outras, mais numerosas,
20s passa-tempos vãos ou às leituras profanas, jamais atin
girá tão pouco a perfeição do espírito de fé.
99
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
seu Espírito; a divina Eucaristia; as glórias indescritíveis
da Mãe de Deus, sempre virgem; o esplendor dos anjos;
os méritos e os triunfos dos santos. Não há um só ponto
da doutrina cristã que não seja, não sõmente enunciado no
decorrer do ano litúrgico, mas inculcado com a autoridade e
a unção que a santa Igreja soube depositar em sua lingua
gem e em seus ritos tão expressivos. Assim, de ano para ano,
a fé do cristão se esclarece, o seu senso teológico se for
ma, a oração o conduz à ciência. Os mistérios continuam mis
térios, mas seu esplendor é tão vivo que o espírito e o co
ração se sentem enlevados, e ele se faz uma idéia das ale
grias que lhe dará a contemplação dessas belezas divinas,
que, através das nuvens, já lhe causam tantos encantos.
"De fato, quais foram as épocas de grande fé e de
grande ciência religiosa? Aquelas em que os fiéis mais vive
ram da vida da Igreja, sua mãe, mais rezaram unidos a ela,
mais fielmente lhe observaram as festas e as cerimônias.
Assim, iniciados no ciclo divino dos mistérios do ano cris
tão, os fiéis sabiam os segredos da vida eterna, e, muitas
vezes, sem outra preparação, tal homem era escolhido para
ser sacerdote, ou pontífice mesmo, a fim de derramar so
bre o povo cristão os tesouros de doutrina e de amor reco
lhidos em sua fonte...
"E que manancial de progressos para a alma do cris
tão, quando o objeto da fé surge cada vez mais luminoso,
quando a esperança da salvação lhe é como que imposta pe
lo espetáculo de tantas maravilhas operadas pela bondade
de Deus em favor do homem e quando o amor nele se in
flama sob o influxo do Espírito divino, que estabeleceu a
Liturgia como centro de suas operações nas almas! Não
será a formação de Cristo em nós o resultado da comunhão
a seus diversos mistérios, gozosos, dolorosos e gloriosos?
Ora, esses mistérios penetram em nós, incorporam-se a
nós cada ano, pelo efeito da graça especial que traz sua co
municação à liturgia, e o homem novo se estabelece insen
sivelmente sobre as ruínas do antigo. Se é mister que a im
pressão do tipo divino seja favorecida em nós pela apro-
100
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ximação entre os membros da familia humana que me
lhor a realizaram, não nos vêm o ensino prático e o ânimo dos
nossos queridos santos, cujo ciclo é como que estrelado?
Contemplando-os, descobriremos o caminho que leva a Cris
to, assim como Cristo nos oferece, em si mesmo, o caminho
que leva ao Pai ...
"Que a alma, esposa de Cristo, prevenida pelo desejo
da oração, não receie abater-se à borda dessas águas ma
ravilhosas da liturgia, que ora murmuram qual regato, ora
rolam, roncando qual torrente, ora inundam, qual mar. Apro
xime-se a alma e beba da água límpida e pura que jorra até
a vida eterna, pois essa água dimana das próprias fontes, e
o Espírito de Deus a fertiliza com sua virtude, a fim de
torná-la doce e nutritiva ao cervo sedento" ( Ano litúrgico,
Prefácio geral).
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPiTULO XI
102
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
79. Devemos, portanto, antes de tudo, não tolher a ação
fecunda do Senhor; devemos regularizar e governar as facul
dades de nossa alma, de maneira a permitir e favorecer as
operações da graça.
Ai de nós! Quantas faltas a este dever! "Senhor, vós
me havieis confiado cinco talentos, eis aqui mais cinco que
ganhei fazendo render os primeiros", dirá o servo bom e fiel.
Os talentos que Deus nos confia são antes de tudo, segun
do São Gregório, as potências de nossa alma; se não lhes
soubermos fazer render algum proveito, seremos condena
llos como o servo infiel.
Essas potências da alma não podem permanecer ocio
sas; e produzirão, necessàriamente, obras, quer de salva
ção, quer de perfeição. Se produzirem obras de salvação, -
frutos de amor, - serão devidamente recompensadas, e
cada uma receberá seu justo salário. Magníficos espetáculos,
doces harmonias, suaves perfumes, puras caricias, ou, mais
exatamente, alegrias espirituais adequadas a essas di
versas sensações, serão a recompensa da modéstia dos olhos
e da guarda dos sentidos; a inteligência, que se tiver ali
mentado na terra com o pensamento de Deus, ficará enle
vada com os conhecimentos admiráveis que lhe serão dados
sobre a divindade; a vontade, que tiver amado a Deus, en
contrará, num amor exatamente proporcionado ao que te
ve no mundo, a medida de felicidade de que gozará eterna
mente.
80. Deus será tão justo quão bom na recompensa, e
tão terrível quão equitativo no castigo. Torturas variadas,
correspondentes a cada um dos olhares ilícitos, dos can
tos obscenos, das conversações culpáveis, dos contactos im
puros, serão infligidos àqueles que abusaram dos sentidos.
Recordações cruéis punirão aqueles que macularam a me
mória. Mas sobretudo as faculdades superiores, a inteligên
cia e a vontade, serão a fonte dos tormentos do condenado.
Assim como é preciso considerar estas duas faculdades pa
ra compreender cm que consiste a felicidade essencial do
eleito, que será feita de conhecimento e de amor, assim
IOJ
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
também é preciso considerar o que a inteligência e a von
tade se tornarão no inferno, para compreender em que con
sistirã a pena essencial que aumentará segundo a culpabili
dade do réprobo. Rejeitou a luz? - a luz o perseguirá, tor
turando-o. Na terra a luz deleita os olhos sãos e fere os
doentios. Na outra vida uma luz mais brilhante encantará
o .eleito mais merecedor, enquanto uma luz mais abundan
te punirá o condenado mais culpado. Os demônios mais in
teligentes foram, na hora da revolta, os mais perversos; na
morada do eterno suplicio continuarão a ser os mais in
teligentes e por isto mesmo os mais infelizeSj compreendem,
melhor que os outros, o que é a eternidade; seu olhar pe
netra mais avante na série interminável dos séculos cm
que durarão suas tortui-as; compreendem melhor, principal
mente, o tamanho e o valor dos bens que perderam; ava
liam, portanto, melhor a extensão de sua desgraça. Assim
o condenado será esclarecido pela justiça de Deus na medi
da em que tiver sido esclarecido na terra por sua misericór
dia; e sua inteligência será torturada pelas luzes vingadoras
que a inundarão, mau grado seu, na medida em que tiver abu
sado das luzes recebidas.
Sua vontade afastou a Deus e apegou-se ao pecado.
Então, conforme a culpa, será o castigo. Se procurou com
sofreguidão os bens ilícitos e enganadores, ansiará agora
pela felicidade suprema que lhe será sempre recusada; te
rá uma sede de gozo, proporcionada aos gozos proibidos
que livremente aceitou na terraj e quanto maior for essa as
piração, sempre decepcionada, maior será seu tormento.
O tormento da vontade virá também do ódio sempre
insaciado. Com efeito, toda a natureza achando-se revolvida,
a potência de amor torna-se em potência de ódio: ódio a
Deus, ódio a tudo que é bom, ódio também aos companhei
ros de infortúnio; esse desgraçado não saberá mais se
não odiar e seu ódio será proporcionado à sua malícia e
às faltas cometidas. Assim como o amor satisfeito fará a
felicidade do eleito, assim também o ódio insaciado âo con
denado será o seu suplício.
104
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O condenado comprazia-se em si mesmo, na força de
sua inteligência, na energia de sua vontade? Ver-se-á en
tão cm todo o horror de sua fealdade: as potências de que
tanto se ufanava, deformadas, falseadas, a inteligência pro
curando o erro, sofrendo com a verdade, a vontade odiando
tudo quanto é bom e visando o mal sem poder nele se com
prazer; terá o horror de si mesmo e sofrerá por não. poder
esconder-se aos seus próprios olhos.
81. Não são somente os réprobos que encontrarão nos
dons que receberam, nas faculdades da alma de que abusa
ram, a origem de suas penas; as almas do purgatório tam
bém, pagando sua dívida para com a justiça divina, serão
punidas segundo os seus pecados. Mas essas almas, queridas
de Deus, encontrarão, ao mesmo tempo, alivio a seus males
nas faculdades que souberam empregar para o bem. Aquelas
que procuram alimentar o espírito com pensamentos de fé
e submeter a vontade ao querer divino, receberão, no meio
dé seus sofrimentos, grandes consolações, por meio de lu
zes que lhes manifestarão com maior clareza a justiça e a
bondade de Deus, e pelo amor ardente que sentirão pelos
decretos de sua sabedoria ( 1).
E', pois, da maior importância para um cristão, fazer
bom uso das faculdades de sua alma, porque, então, lhe
valerão tesouros preciosos; ao contrário, ser-lhe-ão pedidas
rigorosas contas.
1) Os autores que tratam do purgatório, depois de lhe pintarem
u aorrlmentu borrivei1, falam daa alegrlu que u alma ali
experimentam. O pen1amento de que estã a1■egurada sua aalva
ç.io, & neceuldade que aentem de expiar aeua pecados, toma os
sofrimento■ mala suportáveis. Parece-nua, entretanto, rnale jus
to não afirmar que toda, indiaUntamente, experimentem verdadei
ras alegrias. Aquelu que viveram na canelante p.reocupa.çi.o de ai.
mumaa, na buaca dos go.zoe terreno■, que abuaa.ram multo du
graças, serio vlUmas de amargos peeares que, ao menos no prin
cipio de sua atada no lugar de expiação, não lhes permttlri.o o
gozo de suaves alegria. Aquelas, ao contd.rlo, que amaram o
sacrlficio, que encontraram aua felicidade na terra dedlcando-ae
à glória de Deus, que suspiraram pelo du enquanto lament&vam
sua ligeiras fraquezas, sentem-e felizes cm ver aproxlmar-ae
a hora da recompensa, felizes principalmente em eatlafazer a jus
tiça divina, e essas alegrias podem ultrapanar os sofrimentoe.
105
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
li. Subordinação das diversas potências da alma.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
dirigido pela vontade para ter, aos olhos de Deus, qualquer
mérito. Debalde virão luzes brilhantes iluminar-me a in
teligência; se minha vontade permanec�r indiferente, nulo
será meu mérito. Se, ao contrário, a vontade as aceitar, se
se alegrar e se decidir a segui-las, essas luzes esclarecerão
minha inteligência e serão para meu espírito um alimento
substãncial e todo divino; minha alma ficará reconfortada;
minha fraqueza de criatura humana, transformada em força;
minha malícia, trocada em bondade; minha indignidade, mi
nha impureza de criatura, substituídas pela santidade que
a graça comunica.
E', por conseguinte, muito importante o papel da von
tade, pois sua intervenção decide do mérito ou da culpa
bilidade dos atos das demais potências. Mas para que pos
sa desempenhar convenientemente sua missão, deve se go
vernar a si mesma pelas luzes da fé. Estas luzes penetram
a inteligência, são aceitas pela vontade, e esta, por elas es
clarecida, governa em seguida as outras potências e lhes
dirige os atos para o fim sobrenatural, que é Deus.
107
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
pessoas, ê necessário, ou que atinjam os sentidos exteriores,
ou movam a imaginação; é preciso tambêm suscitar emoções
suaves na parte sensível, chamada pelos doutores de apetite
sensitivo; as faculdades superiores ainda não libertadas ca
recem de força para agirem por si mesmas. Será preciso,
por exemplo, que os cantos, as belas cerimônias, as ima
gens piedosas, impressionem os ouvidos e a vista, ou que
a imaginação, evocando certos quadros, venha em auxílio
da razão; será preciso que o coração se enterneça, a fim
de facilitar fervorosas resoluções, e generosos sacrificios.
85. As pessoas, cuja sensibilidade é ainda forte, não
compreendem infelizmente que o seu estado é um estado in
ferior e imperfeito; julgam os seus sentimentos justos e
necessários, atribuem às emoções de alegria ou de tristeza
uma importância que, certamente, não têm; tomam a sen
sibilidade por amor e pensam não amar mais �uando nada
sentem, e amar muito quando experimentam fortes emoções;
não querem reconhecer que esses fenômenos sensíveis se pro
duzem na parte baixa de sua natureza e que, muito menos
nobres que os atos da razão e da vontade, não devem pre
ceder o exercício destas faculdades, mas acompanhá-lo e
ser-lhe inteiramente submissas.
Se a alma, portanto, não sai senão dificilmente desse
estado inferior, em que dominam a imaginação e a sensi
bilidade, é precisamente porque, em geral, não quer sair de
le. Acham-no tão natural. Todavia, se aqueles que se en
contram neste estado quissessem refletir sobre os males que
lhes causa a sensibilidade, e sobre os erros a que os arras
ta a imaginação, verificariam a necessidade de reprimir
essas faculdades e governá-las pela razão e por uma gran
de força de vontade. Quando a sensibilidade se comove, a
imaginação logo se aquece e o raciocínio se turba; deixa
mo-nos enganar pelas impressões, iludir pelas simpatias ou
antipatias; tomamos nossos desejos e receios como realida
des; cedemos ao entusiasmo ou então ao abatimento; a
pobre razão não sabe mais discernir; a vontade não é mais
108
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
soberana, mas precede cegamente, e as decisões que toma
são, não raras vezes, funestas.
Em uma pessoa por demais sensivel, a imaginação per
turba, com frequência, o raciocínio, exagerando tudo quan
to lhe apresenta. Tal pessoa assusta-se com as menores
provações; suas cruzes parecem-lhe muito má.iores e mais
pesadas do que na realidade são; amplia as menores ten
tações; aprecia inexatamente os fatos que a impressionam,
quer sejam bons, quer não, mormente se lhe forem pessoal
mente favoráveis ou desfavoráveis, dando-lhes uma repercus
são que não têm e dcixando:.se levar antes pelas impressões
que pela razão.
A uma impressão, sucede fàcilmente outra. Assim, aque
les que, em vez de governarem a sensibilidade e a imagina
ção, se deixam por elas governar, são fatalmente volúveis
e inconstantes; passam depressa da alegria à tristeza, da
confiancia ao desânimo; hoje estarão de bom humor, cheios
de coragem e ardor, pois tudo lhes sorri; amanhã, estarão
lúgubres, sem entusiasmo, sein energia, entregues às idéias
mais negras; um incidente sem importância, uma pequena
contrariedade, umas referências nem sempre exatas, por ve
zes uma ligeira indisposição motivaram tal mudança para
a qual a razão em nada concorreu. A imaginação e a sen
sibilidade, Cinicamente, ocasionaram essa reviravolta e, em
breve, acarretarão outras.
86. E' verdade, e o repetimos, que, se a imaginação se
inflama e a sensibilidade se enternece para o bem, estas
duas potências auxiliam a prática da virtude, e produzem
obras meritórias, mas a parte da fé é fraca demais para
que o mérito seja grande. O mérito provém da fé que está
na inteligência, e do amor que está na vontade e nada de
ve nem à imaginação nem ao sentimento. Ora, nas pessoas
de quem tratamos, a inteligência e a vontade desempenham
apenas uma ação restrita; as luzes da fé não lhes serão,
pois, dadas em abundância; sua inteligência será pouco es
clarecida e sua vontade procurará o bem com uma firme-
109
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
za mais aparente que real, porquanto cm seu manifesto ar
dor hâ maior sobreexcitação que energia.
Quando a piedade for sõ sentimental, será por isso
mesmo superficial; a vontade poderá experimentar, de vez
em quando, vivos impulsos para o bem, mas habitualmente
serâ mole e sem força; dai, apesar de entusiasmos passa
geiros, muitos desejos ineficazes, muita inconstância e pou
ca virtude sólida. Não basta, portanto, possuir um coração
afetivo, ser sensível aos sofrimentos alheios, ter pendor pe
la dedicação; se tão belos dons não forem esclarecidos por
\•ivas luzes, se não forem acompanhados de uma energia vi
ril, de um pleno domínio sobre si, aquele que os recebeu po
de tornar-se sentimental, apaixonado, sujeito a impressões
ilógicas; terá entusiasmos fúteis e manifestará ardor pelos
trabalhos ou pelas obras que forem do seu agrado; será
muito fraco em se tratando dos verdadeiros deveres.
110
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
nõs esses desejos, julgamos possuir excelentes disposições.
Pilatos, pensando consigo mesmo: "Gostaria muito de sal
var este justo", lavou as mãos e julgou-se inocente. Assim,
aqueles que não têm senão veleidades, acreditam-se virtuosos
e não passam de covardes.
São covardes também aqueles que, perante deveres pe
nosos e árduos, porém necessários, esquivam-se, alegando
ser-H1es impossível, e não estar em seu poder praticar tal
ato de virtude. Se conseguem iludir-se a si mesmos e descon
fiar da força que Deus lhes pôs no fundo da alma, se re
cusam empregar toda sua energia para vencer as repugnân
cias da natureza, então sua vontade, longe de se fortificar,
se entorpece; não é mais rainha, mas escrava.
Este dever de fortalecer a vontade obriga ainda aque
les que são sujeitos a acessos de excitação nervosa a bem
se acautelarem. Os nervos vão exercendo ascendente do
mínio na medida em que lhes cedemos; quem não procura
dominá-los, perde, em parte, seu livre arbítrio e a vontade
atrofiada torna-se incapaz de praticar as virtudes perfeitas.
88. E' mister, enfim, prestar-se à ação de Deus, quan
do, na hora marcada por ele, após um período inicial de
fervor sensível cm que o ardor do entusiasmo facilitou a
prática da virtude, retira à alma o sentimento, para lhe co
municar, pelas faculdades superiores, graças muito mais ele
vadas. E' um momento penoso. A ação das potências su
periores, quando se produz sem o concurso das faculdades
sensíveis, se subtrai, sobretudo no princípio. A alma parece
não fazer coisa alguma, e estar despida de fé, de esperança,
de amor. Muitos cristãos não querem então desprender-se
do sensivelj não se resignam a permanecer na arid"ez, a
servir a Deus sem gozar das consolações da piedade; pro
curam ta!Vez outras consolações, ou, ao menos, não se apro
ximam tão amitldo de Deus; diminuem o tempo consagra
do aos exercícios piedosos, principalmente à oração, ou os
desempenham com negligência. Deixam-se absorver pelas
obras exteriores, e as grandes virtudes que unem a alma
a Deus, - a fé, a esperança e a caridade - não se de-
111
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
senvolvem mais. Não poderão atingir a expansão perfeita
que Deus lhes reservava.
As almas fiéis, ao contrário, apegam-se tanto mais a
Deus quanto mais ele parece se esquivar; afastam fielmen
te os pensamentos profanos aptos a importuná-las, e voltam
se continuamente a Deus; aceitam de bom grado a pri
vação de todo gozo sensível i são tão assíduas em perma
necer diante de Deus na aridez e na impotência, como ou
trora nas doçuras da oração; contentam-se com simples atos
de fé, que multiplicam, sem prazer, mas sem relaxamen
to, e com atos de submissão à vontade divina, adorando-a
e bendizendo-a, por mais que lhes contrarie a própria von
tade. Então a fé se purifica, se desenvolve, se fortalece e
Deus derrama na alma novas luzes. Não é porque reflete,
ou raciocina, que a alma se enriquece com dados precio
sos, ou adquire convicções mais profundas. O Senhor mes
mo a ilumina, comunicando-lhe uma visão espiritual mais
perspicaz e mais extensa, e fá-la penetrar muito avante nas
verdades que, já conhecidas 1 se tornam agora muito inten
sas. A fé, mais luminosa, brilha com maior fulgor e influi
poderosamente sobre toda a sua conduta.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XII
Do recolhimento e da união a Deus
113
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
mes divinos quem aspirou Deus, e o respira na medida em
que o aspirou. Quem se contentar, cada dia, com raras as
pirações terá uma vida espiritual fraca e lânguida, e, se
não se impregnar, senão de longe em longe, dos perfumes
divinos, como poderá trescalá-lo o dia todo?
E' grande o erro dos que pensam permanecer unidos
a Deus pela conformidade da vontade, mas que o perdem
de vista durante um tempo considerável, pois, insensivelmen
te, se afastam dele; a atmosfera do ambiente em que vivem
penetra-os pouco a pouco; as preocupações naturais, superan
tes, os invadem e absorvem, a vontade dé servir a Deus,
sem ser destruída, é comprimida e não exerce mais senão
uma influência ligeira e intermitente sobre os atos da vida.
E assim a vida espiritual declina, substituída finalmen
te por uma vida toda natural, ou quiçá toda mundana.
Quem chega ao ponto de nunca mais aspirar a Deus, de se
alimentar exclusivamente com o ar viciado do século, quem
nas conversações, nos pensamentos, nos sentimentos aspira
tão sàmente os miasmas contaminados pelo pecado, só po
de exalar um .hálito impuro. Desgraçado de quem dele se
aproxima; corre o risco de se contagiar e de lhe pegar a
horrlvel enfermidade.
114
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
inúteis reflexões. Preocupam-nos fatos que em nada podemos
modificar. As faltas do próximo, suas inabilidades, seus
erros, excitam nossa indignação e recriminamos interior
mente contra nossos irmãos, em vez de pedirmos a Deus
que os ilumine e corrija. A política também nos fornece seu
contingente de considerações vãs, pois não modificam de
modo algum a marcha dos acontecimentos. Mas são prin
cipalmente os casos pessoais que formam o objeto de nossas
divagações: detemo-nos em considerar as críticas que so
fremos ou podemos vir a sofrer, os elogios que julgamos
merecer; imaginamos como poderiamas ter procedido em tal
circunstância e que resultado teríamos obtido. E como são
tenazes e loucos esses pensamentos vãos! afastados, voltam,
quais moscas importunas que não podemos afugentar; re
começam o mesmo zumbido, repetindo. sempre o que já
disseram.
Ainda mesmo quando são legitimas, tais cálculos, se
forem prolongados, se tornarão inúteis. E' por certo lou
vável refletir sobre os meios de cumprir bem com as nos
sas obrigações, estudar as medidas a tomar, pesar as con
sequências de nossos atos; uma vez, porém, que examina
mos ponderadamente e traçamos o caminho a seguir, a re
petição desses cálculos se torna uma inútil preocupação de
espírito, e geralmente vem provar que nos inquietamos mais
com o êxito pessoal e com as humilhações possíveis, do
que com o desejo de agradar a Deus.
Se nos basta uma meia hora de reflexão e todavia pas
samos a metade do dia a repetir as mesmas objeções e as
mesmas respostas; se recaímos sempre nas mesmas preo
cupações; se fazemos constantemente brilhar diante de nos
sos olhos as mesmas esperanças, quanto tempo perdido!
91. Que esse trabalho de espirita seja, as mais das ve
zes, inútil, todos o convêm; que seja prejudicial ao progres
so na virtude, todas as almas fervorosas o reconhecem e
lamentam; poucos, porém, são aqueles que empregam, nes
sa repressão, a necessária coragem e energia. A mortifica
ção da imaginação e da memória é mais rara do que as
115
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
austeridades corporais, todavia tão pouco apreciadas. E'
que essa mortificação é mais árdua, mais penosa. Aqui, po
deriamos aplicar, desviando-o um pouco do seu significado
original, o princípio de São Francisco de Assis e de San
to Inácio: "Sede qual cadâ\•er", perinde ac cadaver,· sede
qual morto a todos os acontecimentos da terra, aqueles,
ao menos, que não vos dizem respeito, ou aos quais nada
podeis alterar; não presteis senão ligeira atenção a tudo que
acontece, atenção suficiente apenas para cumprir com os de
veres sociais e não parecer um estranho entre vossos ir
mãos; não vos apliqueis senão ao que é de vosso encargo
e que essa aplicação seja livre de toda contenção, de to
da solicitude inquieta. Voltai, finalmente, a Deus vosso es
pirita desprendido dos pensamentos terrenos.
116
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
rito divino e nos voltarmos fielmente às verdades que ele
nos apresenta como mais luminosas e _atraentes.
Para alguns o principal atrativo C a salvação das almas,
e têm constantemente os olhos no bom Pastor, indo em
busca das ovelhas desgarradas, prodigalizando-lhes sua de
dicação, querendo a todo custo arrancá-las à desgraça que
as ameaça. A tais almas o divino Mestre comunica o seu ze
lo ardente. Outras se sentem atraídas pelo tabernáculo, e
a divina Eucaristia C sempre o centro de seus pensamentos,
de sua solicitude, de todos os seus afetos. Alguns se alimen
tam com a lembrança da infância de Jesus e da Sagrada
Familia; estes se impregnam do espírito de simplicidade e
de humildade que reinava em Nazaré. Outros só se agra
dam do Calvário; a paciência e o amor das cruzes os enlevam.
Seja qual for a virtude que maior atração exerce so
hre cada alma, importa não a considerar em si mesma, co
mo os filósofos, limitando-se a examinar-lhes as bases e a
pesar-lhes as vantagens, pois grande seria o perigo de não
as considerar bastante sob seu aspecto sobrenatural, pãssan
do involuntàriamente do pensamento dessa virtude ao pen
samento dos objetos profanos. Além do mais, o coração fei
to para Deus carece do próprio Deus. E' em Jesus, o mode
lo de todas as virtudes, que as devemos considerar. Con
templemos, portanto, a Jesus, depois elevemo-nos do pensa
mento de sua humanidade santa ao pensamento de sua di
vindade. Jesus é o caminho que conduz ao Pai; ele convida
a alma fiel a lançar-se nesse oceano infinito de beleza e
de amor, onde mergulhe com delícias e de onde nunca mais
saia inteiramente, nem mesmo para ocupar-se de seus de
veres ordinários e profanos. Assim, seja qual for o caminho
que leva a Deus, a alma, quando encontrou a Deus e nele
se deleitou, nunca mais dele se separa, nele encontra sem
pre sua luz, sua força, sua felicidade e seu tudo. Eis a vi
da da fé cm toda a sua plenitude, eis como a alma justa
vive da fé: J11slt1s ex /ide vivil.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XIII
Da virtude da esperança
118
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
más, qu1ça paixões inveteradas ao par de uma fraqueza
imensa, atestada, no passado, por numerosas reincidências.
Mas Deus o prometeu, e Deus não engana. Sua miseri
córdia é infinita, sua bondade incansável; ele quer salvar
todos os homens e seu poder ilimitado sustentará a ex
trema fraqueza de quem a ele se confia. A alma pode, por
tanto, esperar atingir esse fim sublime que é a posse de Deus.
Não sõmente pode, mas deve esperá-lo; a esperança
é para ela um grande dever. A falta de fé é uma ofensa a
Deus porque é admitir que ele possa nos enganar; a fal
ta de esperança é uma injúria igual: é acreditar que ele
possa faltar às suas promessas, ou então, é duvidar de seu
poder e de sua bondade. Os pecados contra essas virtudes
são funestissimos porque ofendem diretamente os atribu
tos divinos.
O objeto, pois, da esperança é Deus, conhecido como
o único bem verdadeiro, como o único bem digno das aspi
rações da alma cristã; e a razão de esperar esse bem su
premo é a bondade misericordiosa de Deus, seu infinito po
der e sua promessa que não pode falhar.
95. A esperança acompanha a fé; é-lhe o prolonga
mento e como que a dilatação. De uma fé pouco firme, bro
lará uma esperança vacilante; de uma fé viva e esclarecida,
uma esperança ardente e sólida. Quanto melhor compreen
dermos, graças às luzes da fé, as grandezas divinas, as do
çuras da posse de Deus e o nada dos outros bens que so
licitam a vontade, tanto melhor aspiraremos a Deus. E, quan
to melhor compreendermos que Deus é poderoso, sábio, cheio
de misericórdia em sua imensa bondade, ansiando por se
dar às pobres criaturas, tanto mais esperaremos que ele
saiba destruir os obstáculos, tirar o bem do mal e levar-nos
à felicidade que nos reservou.
Alegam péssima desculpa aqueles que baseiam a fra
queza de sua esperança na lembrança de seus pecados.
"Conheço a misericórdia de Deus, dizem eles, mas conheço
também minha miséria e minha fraqueza e daí minhas afli
ções". Não, eles não conhecem, ou muito mal, a misericôr-
119
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
dia divina; diminuem-na em sua estima; ofendem-na recusan
do acreditar que seja ilimitada e sempre eficaz, logo que
a contrição seja sincera; não querem compreender toda a
grandeza do amor de Deus; sua fé é imperfeita, pois que,
por sua culpa, não fazem uma justa idéia dos atributos
divinos.
96. Se a esperança provém da fé, conduz ao amor. Des
de que aceitamos o impulso que nos leva a esse bem tão de
sejável, como não nos encantarmos com suas infinitas per
feições, e procurarmos agradar áquele de quem a esperança
nos recorda as promessas benévolas, a paternal indulgên
cia, a clemência infatigável?
O amor diminui na alma que desanima, e desaparece
completamente naquela que cede ao desespero. Então a ·al
ma não vê mais em Deus um pai cheio de bondade, e sim
um Senhor inflexível; afasta-se dele e começa então a sentir
as primeiras feridas do ódio que devora o coração dos de
mônios e dos condenados, esses eternos desesperados. Ora,
pelo contrário, do uma grande esperanç� nasce um grande
amor, amor ardente e forte, que as dificuldades estimulam,
que as lutas aumentam, que as vitórias tornam invencível.
97. Existe uma maravilhosa harmonia entre as diver
sas virtudes sobrenaturais, que se auxiliam, se sustentam
e se fortificam mutuamente, restituindo cada uma à outra
aquilo que dela recebeu. O amor ativo, estimulado pela
esperança, por sua vez, a fortalece e aperfeiçoa. A esperan
ça sem amor se tornaria fâcilmente em presunção. Citemos
um exemplo. Um homem, desejoso de melhorar sua sorte, en
trou para o serviço de um senhor generoso; o preço, conven
cionado de parte a parte, lhe seria pago após um ano de bons
e leais serviços. Logo de inicio, o servo, cedendo aos rogos
de alguns amigos, passou a dar-lhes todo o seu tempo, ne
gligenciando por completo os negócios do amo. No domingo,
o servo desculpou-se junto a este; fez-lhe mil promessas,
mil protestos de dedicação inteira, de apego inalterável, pa
ra, na semana seguinte, recomeçar: ''Men senhor ê tão bom,
120
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
pensou ele, que, apesar de tudo, me pagará o preço com
binado". O senhor era bom, com efeito, e de uma paciência
a toUa prova, mas era também inflexivelmente justo. Ao ter
minar o ano, o empregado reclamou seu salário. "Ide re
clamá-lo daqueles para quem trabalhastes, respondeu-lhe
o amo; vosso serviço me foi inútil, não vejo um sinal se
quer ele vossos esforços; nada semeastes, portanto nada re
colhereis". Os amigos aduladores, que haviam desviado o
empregado infiel do seu dever, achando-se desgraçada
mente em condições de nada lhe poderem fazer, sua sorte
não pôde ser senão a mais negra miséria. O senhor é Deus,
a própria justiça, que recompensa, não os protestos hipócri
tas, mas as obras. Os amigos sedutores são a imagem do
mundo, incapaz de dar algo de sólido e de precioso àque
les que por ele trabalham.
Quando um amor verdadeiro se une à esperança, não
hã nada que recear; a esperança, apoiada nas obras, só po
de crescer, enquanto dilata o amor. Nas almas perfeitas, in
teiramente abrasadas na mais pura caridade, a esperança se
confunde com o amor, dissolve-se nele, pois a lembrança do
céu em que o fiel há de ver a Deus, e dele gozar, onde
há de amá-lo a seu bel-prazer e glorificá-lo na medida do
passivei, deleita-lhe o coração. Espera poder amar com todas
as suas forças. E não constitui já isso um amor ardente? E
essa alegria que experimenta ao pensar na liberdade de seu
amor, não provirá antes do amor que da esperança? Quan
ta.s vezes não passa a lembrança do amor ao primeiro pla
no, levando a alma generosa" a só cogitar do prazer a dar
ao bem-amado; sem se preocupar com qualquer resultadci
pessoal, chegando mesmo a afirmar que faria tudo quan
to faz com igual prazer, embora não devesse retirar para
si a menor vantagem.
D Vantagens da esperança.
98. A esperança é uma necessidade da alma. Vivemos
de esperança. Quase todos os nossos atos visam um futuro
que não C nosso. O lavrador só semeia com a esperança
121
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
de colher, só colhe com a esperança de vender. Se o co
merciante se agita, se trabalha e tanto se esforça é na es
perança de obter maior lucro; um jovem, em suas obras,
em seus labores, é estimulado pelos planos de futuro que
fez para si; o pai de família, pelos que forma para seus
filhos. A esperança é a força da alma, o princípio de nos
-sos esforços, o segredo da coragem e da atividade.
Todos aqueles que perseveraram em obras longas e
difíceis, só o fizeram sustentados por uma esperança viva
e firme. Moisés quer salvar seu povo, mas o êxito do em
preendimento parece impossível, e os obstáculos insuperá
veis. Os egípcios opressores não querem deixar sair os he
breus, empregados em todos os serviços, sobrecarregados
com trabalhos pesados e cuja partida seria urna catástrofe
para toda a nação. Ao primeiro apelo de Moisés, aumen
tam ainda suas exigências e os próprios israelitas se re
voltam contra aquele qlle os quer libertar. Moisés, porém,
com o auxilio de Deus, vence todas as dificuldades, que,
entretanto, se multiplicam a todo propósito. Consegue re
tirar o povo de Israel do Egito, mas, apenas livres da es
cravidão, os israelitas se mostram indisciplinados, murmu
ram contra o Senhor que já operou em seu favor tamanhos
prodfgios. Moisés os tranquiliza, obtém novos milagres e
leva o povo ao arrependimento. Dentro em pouco, novos
brados contra o chefe; os israelitas clamam que vão mor
rer de fome, e Deus faz logo chover o maná. O povo, po
rém, não tarda em se desgostar, anseia por voltar ao Egito.
Adora em seguida o bezerro de ouro. E' Aarão, é Maria, que
murmuram contra Moisés, seu irmão. Os espiões enviados
à terra prometida sublevam o povo; Coré, Datan e Abiron
provocam uma sedição. A falta de água ocasiona novas quei
xas. Finalmente, os diversos povos do país tentam opor-se
pelas armas à passagem dos israelitas: é necessário combater
e esmagar sucessivamente os amalecitas, os habitantes de
Canaã, os amorreus, os madianitas, Og, rei de Basã, enquan
to os moabitas, mais temíveis ainda, arrastam parte do po
vo às abominações pagãs. Não podemos ler a narrativa
122
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
da saída do Egito, e da estada do povo de Deus no de
serto, sem admirar a constância de Moisés, que não se abateu
com tantas provações e se mostra inabalável até ao fim.
E' forte, de uma força sobre-humana e, ao mesmo tem
po, é o mais suave dos homens. Essa constância heróica,
ele a haure em sua esperança invencfvel. Quando, em tor
no dele, reina o terror e o desânimo, Moisés nunca deixa
de confiar no Senhorj levanta os lnimos abatidos; pros
segue, sem fraquear, em seu empreendimento e leva sua
missão a cabo.
99. A história atesta, por numerosos exemplos; o que
pode uma esperança firme e a garantia de êxito que encerra.
Por que será, então, que os homens põem suas esperanças em
falsos bens e se lançam em empresas arriscadas, conde
nando-se a rudes esforços, em vista de bens ilusórios? Quan
to trabalho não se dão os ambiciosos para conquistar as
honras, e os avarentos para aumentar suas riquezas! Os
riscos não os detêm, as contradições não os intimidam, os
reveses não os desanimam. Vão sempre para a frente. Se
fracassarem, tentarão novos esforços; se, ao contrário, al
cançarem êxito, servirá para estimular-lhes ainda o ardor,
pois, enquanto não ganham tudo, parece-lhes que não ganha
ram nada. Que pena ver tanta coragem, tanta perseveran
ça despendidas em vão! Filii hominum usquequo. . . diUgitis
vanitatem et quaeritis mendacium? "Filhos dos homens, até
quando amareis as futilidades e procurareis os bens ilusó
rios?" Ah! se aspirásseis, com igual ardor, aos bens reais.
se tivésseis igual confiança de os obter, empregaríeis, em
persegui-los, igual energia e igual perseverança. Elevar-vos
iam a um alto grau de virtude, e mais cedo ou mais tar
de serieis recompensados generosamente de vossos trabalhos!
Se o demônio investe com tanta fúria contra a virtude
ela esperança é que esta decuplica as forças, e que a alma
animada de firme confiança é capaz de elevar-se à mais
alta perfeição. Das três virtudes teologais esta é a mais vi
sada para os ataques do inimigo e, muitas vezes, mesmo as
tentações contra as outras virtudes, contra a fé, ou a pure-
123
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
za, não passam de ataques simulados. O inimigo não pre
tende destruir essas virtudes, quer sõmente perturbar as al
mas e solapar-lhes a esperança. Quantas almas devotas são
tentadas pelo desânimo e quantas se rendem! Não temem
os desfalecimentos da esperança; não compreendem o mal
imenso que se fazem; não percebem sequer, pobres cegas
que são, que tais pensamentos de desânimo são sugestões
de satanás. A excessiva preocupação parece-lhes muito na
tural; julgam-na uma prova de prudência, de discrição, e
talvez tomem sua covardia por humildade. Mas, sobretudo,
não querem ver a ofensa que fazem à bondade, ao poder,
à sabedoria de Deus, quando perdem a confiança. Que são,
de fato, suas misérias, perante as riquezas de Deus, sua fra
queza perante a força infinita? Suas próprias iniquidades,
por mais graves e numerosas que sejam, uma vez que forem
lamentadas sinceramente, não passam de salpicos de lama
lançados no oceano da misericórdia divina.
100. Quem cede ao desânimo, afasta a graça, pois
Deus, ferido em pleno coração pela falta de confiança, di
minui os seus auxílios; tal alma destrói sua energia, e asse
melha-se ao soldado que foge à luta, ao operário que aban
dona seus instrumentos, ou, antes, a um louco que en
tregasse os hraços a um mortal inimigo para ser por ele
acorrentado e reduzido à incapacidade de agir.
E de que desolação não se enche sua alma? Para ela
a amargura é sem alívio, a bruma sem raio de sol, a noite
sem estrela.
Procurará então consolar-se, distrair-se com futilidr.
des e bagatelas, com conversações imoderadas que dissi
pam e lhe serão novas ocasiões de pecado. O mal vai sem
pre piorando. A alma, oscilando entre a dissipação e o aba
timento, acaba por desanimar, perde o gosto pela virtude,
deixa de se esforçar, e comete faltas deploráveis.
101. A esperança, ao contrário, é o mais doce consolo
do cristão exilado. A fê nos serve de alimento, instruindo
nos a inteligência com as verdades divinas; a esperança
faz as vezes de uma bebida refrigerante, tão agradável
124
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
quão salutar; é o vinho generoso que alegra o coração do
homem e o torna mais ativo e mais forte.
A alma fiel sabe que verá a Deus, que gozará de Deus,
que se desvanecerá em Deus, e este pensamento a sustenta
e a enleva. Desde já goza de sua felicidade, deleita-se nu
antegozo dessa alegria indescritível, e suas fadigas e tra
balhos se tornam não sómente suportáveis, mas suaves.
Não é esta a bebida saborosa que torna agradável o ban
quete da vida, enquanto reconforta e delicia aqueles ql1c a
procuram com avidez?
102. f-lá, todavia, almas fiéis que, longe de gozarem
dessas suaves consolações da esperança, estão expostas aos
assaltos de um sombrio desespero; perguntam-se a si mes
mas se hão de se salvar, cruéis angústias as oprimem, esten
dendo sobre toda a sua vida um véu de tristeza. Será que
a esperança desapareceu desses corações infelizes? Não, por
certo; a esperança neles subsiste intata, embora oculta .,;,,
quiçá, imperceptível aos próprios olhos do interessado. Este,
por vezes, não é capaz sequer de produzir atos preciosos,
não sabe avaliar a firmeza de sua esperança, nem pode
gozar em paz das doçuras que geralmente proporciona.
Entretanto, de onde lhe vem a fidelidade, a força que a
anima nesses assaltos tão rudes, senão da convicção inabalá
vel, que conserva, de que, apesar de tudo, Deus, justo e
hom, a recompensará um dia? Em meio dessa tempestade
sua esperança se purifica e se dilata, seu amor se apura
e se desenvolve. Quantas vezes não exclamará: "Deus é
infinitamente bom, sua misericórdia é sem limites, e ele me
ama com o mais terno amor, por que então recear? Não
cogitemos do futuro e, seja este qual for, esforcemo-nos
hoje por agradar a Deus e servi-lo bem". E' este um ato de
amor excelente, utilíssimo ao progresso da alma. Compreen
de-se perfeitamente o fim providencial dessas provações:
quem as souber suportar com coragem, desprende-se de si
mesmo e se une mais intimamente a Deus.
103. Outra é a atitude da alma que aceita as suges
tões do eterno desesperado; imobiliza-se e cessa todas as
125
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
obras boas, considerando-as inúteis; o desânimo a coloca
em uma verdadeira paralisia espiritual, extremamente funes
ta. E essa alma não é sómente tentada, mas peca contra a
esperança e seu pecado é tanto mais perigoso, quanto menos
o reconhece e mais a ele se apega. Julga ter razão e pos
suir motivos legítimos para perder a coragem; não quer con
fessar que não rende homenagem à bondade, ao amor de
seu Deus i não tendo horror à sua falta, a ela se entrega
sem resistência e sem querer acreditar naqueles que procu
ram esclarecê-la e tirá-la de seu torpor.
104. Entre estas duas almas, ambas tentadas contra a
esperança, uma triunfando sempre e a outra sempre desani
mada, poderíamos colocar muitas outras que permanecem
vacilantes, indecisas, combatendo frouxamente sem todavia
desanimar de todo. Sua esperança é fraca, porque fraca
é sua fé e fraco seu amor. Tais almas, se não merecem as
doces consolações que a esperança dá aos cristãos mais
esclarecidos e mais ardentes, podem entretanto alcançar a
salvação pela observância da lei de Deus. Mas como po
deriam gozar de Deus? Não lhe estão intimamente unidas,
nem possuem a paz profunda, que nasce da confiança absoluta
e do completo abandono nas mãos de Deus.
105. E' principalmente na oração que a esperança ma
nifesta seu valor e seu poder. O fato de rezarmos é em si
um ato de esperança; o fervor na oração, os meios difí
ceis aos quais recorremos para torná-la mais proveitosa,
o retiro, os sacrifícios, provam a vivacidade desta virtude;
os efeitos da graça obtidos por meio de uma oração fer
vorosa atestam o quanto a esperança é agradável a Deus.
O velho Tobias, ao ver sua mulher irritar-se contra as
desgraças que fundiram sobre ele, julga que lhe seria pre
ferível e mais vantajoso morrer. Então pede a Deus a morte
em uma oração humilde e comovedora. Na mesma ocasião,
mas muito longe dali, uma de suas jovens parentas, Sara,
persuadida também de que melhor fora morrer, dirige a
Deus o mesmo pedido, com igual submissão e confiança.
Ambos bendizem o Senhor e proclamam-lhe a bondade e a
126
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
justiça; ambos, ao fazerem suas orações, abandonam-se en
tre as suas mãos, mostrando assim quão firme é sua esperan
ça; ambos falam a linguagem da mais profunda humildade e
da mais viva gratidão e, apenas acabam de rezar, consideram
se já atendidos. Ao verem que, longe de morrer, continuam
a viver, sua esperança não diminui nem se desmente sua cons
tante e amorosa submissão â vontade de Deus. Foram aten
didos, de fato, mas de outra maneira e muito melhor do
que esperavam.
Quem rezar com semelhantes disposições não pode dei
xar de ser ouvido, pois essa esperança ardente é uma ho
menagem prestada à bondade e à sabedoria divina, homena
gem poderosíssima junto ao coração de Deus. Não foi gra
ças â sua confiança, tão comovente, que.não desanimou ante
a repulsa do Salvador, que a cananêia obteve a salvação
de sua filha? Quando São Pedro, cheio de confiança, atirou
se ao mar, indo ao encontro de Jesus, as águas se soli
dificaram sob seus pés, para logo se entreabirem ao fra
quejar a esperança.
127
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
empregados pelos apóstolos de todos os tempos, à oração
constante, à generosa prática da penitência, à dedicação,
à caridade infatigável. Então o Senhor, com vagar, lhes
abençoaria os esforços e lhes faria frutificar o zelo.
Tampouco tem esperança muito sobrenatural ou mui
to viva, quem deixa de lado esses meios evangélicos, contan
do únicamente, no exercício do apostcilado, com as habilida
des humanas. Ecce homo qui non posuit Deum adjutorem s11-
11m (SI 51, 91). Eis aí homens qtie não esperam o auxilio
de Deus, que não contam com ele para o êxito de seus em
preendimentos e, entretanto, pretendem fazer obra de Deus!
Na obra de nossa santificação, é ainda em Deus que
devemos colocar toda a nossa esperança. Se nossos esforços
são necessários, visam antes dispor-nos a receber os seus
dons do que nos formamos nós mesmos às altas virtudes e,
se Deus o exige, é para patentearmos a sinceridade de
nossos desejos e afastarmos os obstáculos que tolhem sua
ação. Então, Deus mesmo intervém, pois só ele por sua ação
direta, por graças realmente superiores, pode incutir virtudes
perfeitas nas almas que se entregam a ele em toda con
fiança. Eis o que nos cabe saber, enquanto não de\'emos
perder de vista o quanto Deus nos quer enriquecer com seus
dons. "Deus, disse Santo Afonso Rodriguez, não dá nada
de tão bom grado como o seu amor".
107. A esperança cresce, portanto, â medida que nos
persuadimos do poder, da benevolência, da ternura de Deus,
pois esta é a razão de ser da esperança. Mas para que
possa crescer, urge desenvolver a estima e o desejo dos
valiosos bens que Deus nos promete e que constituem o
objeto dessa esperança.
Esperar é uma necessidade de nossa natureza; é a pri
meira das quatro paixões, ou tendências, do coração humano.
Essas paixões, que estão intimamente ligadas entre si e
devem ser vigiadas simultâneamente e governadas igual
mente, são a esperança ou o desejo, a alegria, o temor e
a dor. O coração humano oscila de contínuo entre esses di
versos sentimentos; os prazeres que lhe são apresentados
128
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
aos olhos ou lhes vêm à lembrança, atraem-no, e, quando
lhe são dados, deleitam-no i os sofrimentos que o ameaçam,
afligem-no, e, quando o ferem, entristecem-no. E, como a
vida de todo ser inteligente se compõe sucessivamente do
bem e do mal, assim também esses sentimentos se sucedem
uns aos outros sem interrupção. Segundo a direção tomada,
a alma se orientará para o bem ou o mal, para a virtude ou
o vicio; terá méritos ou culpas conforme a natureza dos
bens aos quais aspira e dos males que deseja evitar. Quem
só deseja e espera os prazeres ilícitos, mergulhará no lodo
e no pecado; precipitar-se-á nos abismos para onde o quer
arrastar o anjo maldito. Quem se interdisser toda esperànça
e todo desejo que não seja a esperança sobrenatural, elevar
se-á cada dia mais nas altas regiões da virtude.
Não depende, portanto, absolutamente de nós ter ou
não ter esperança, como não depende de nós pensar ou não
pensar; mas podemos e devemos escolher o objeto de nossas
esperanças. Se soubermos rejeitar a simples lembrança de
coisas indignas de nossas aspirações, e, se nos aplicarmos,
pelo contrário, a ter sempre presente a lembrança dos gran
des bens, dos bens eternos que nos aguardam, nossa es
perança tomará uma santa orientação e dirigirá toda a nossa
vida pelos caminhos que levam a Deus.
Os hebreus, no deserto, não tinham essa esperança toda
sobrenatural que distinguia o seu santo condutor. Com efei
to, Moisés, diz São Paulo, mantendo sempre o olhar fito
nos bens prometidos, isto é, nos bens eternos, saudando-os
de longe, considerava-se qual estrangeiro e viandante sobre
a terra e só aspirava à recompensa eterna. O desejo do
céu sustentava-lhe a coragem heróica. Seus concidadãos, ao
contrário, como o prova a Escritura, recordavam-se dos
alhos e das cebolas do Egito, dos pepinos e dos melões, dos
peixes e das marmitas cheias de carne (Nm I t, 5). O
pensamento dos bens terrestres cativava-os mais que o dos
bens celestes. Daí provinham suas contínuas revoltas, daí
a dureza de seu coração que não se enternecia com os mais
insignes prodígios, nem com os constantes favores de Deus.
Oeamlnho-1 129
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
108. Piedosos cristãos, quais são as vossas esperanças?
Perguntai-vos a vós mesmos se cuidais de dirigir sempre pa
ra os bens celestes o curso de vossas aspirações, se vos es
forçais constantemente por .fazer morrer em vós os desejos
puramente naturais? Sem dúvida quereis ir para o céu, e
não quereríeis, de modo algum, procurar os bens terrenos
em prejuízo de vossa salvação; mas, quando as vantagens
1errestres e as satisfações da natureza podem ser obtidas
sem falta grave, não julgais legitimo tal desejo, esforçando
vos por adquiri-los?
Se examinardes diversas vezes por dia as disposições
de vosso coração, o motivo que rege os vossos atos, o fim
que perseguis, verificareis que são sentimentos demasiada
mente humanos e deveríeis reconhecer que muitas de vossas
ações não tendem puramente a Deus. Se nunca fizerdes este
exame, desconhecereis o vosso coração e tereis grandes sur
presas no dia em que o juiz, que não se engana, vos re
velar, desenrolando-o sob os olhos de vossa alma, o quadro
de toda a vossa vida. Descobrireis, então; porém tarde de
mais, um dos maiores obstáculos que vos impediu de al
cançar em vida a perfeição do amor. Enquanto é tempo
ainda, afastai para longe de vós lodo desejo humano; sede
qual um morto disposto a tudo suportar, caricias e golpes,
censuras e elogios. Colocai-vos em uma completa e santa
indiferença em relação a todas as satisfações ou incomodida
des da natureza; e não estendais vossos desejos e espe
ranças senão às coisas santas, aos bens espirituais, às vir
tudes cristãs, principalmente a Deus, que quer ser vossa
recompensa e vossa felicidade eterna.
l09. Para avivar a esperança do céu, aplicai-vos a
compenetrar-vos - talvez ainda não o fizestes bastante -
das alegrias que ali vos aguardam. Quando refletimos sobre
a felicidade acidental e secundária do paraíso, ficamos des
lumbrados. Ser-nos-á dado conhecer todos os segredos da
natureza que, aqui na terra, os grandes sábios apenas en
trevêem, mas que bastam entretanto para enlevá-los e apai
xoná-los. Contemplaremos os espetáculos variados do mundo
130
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
terrestre, que fascinam qualquer alma de artista, e admirare
mos outros, incomparàvelmente mais belos, do mundo es
piritual;· encontraremos, mil vezes mais amáveis que na
!erra, aqueles que aqui nos foram caros; teremos por ami
gos os sanlos anjos, cujas perfeições, bondade, ciência e
beleza celestial, nos deleitarão, e cujas relações afetuosas
nos encontrarão. E Maria, nossa boa mãe, tão majestosa e
entretanto tão afável, tão bela a contemplar, tão doce a
amar; uma hora apenas passada ao seu lado pagaria todos
os sofrimentos de nossa vida. Que delicias, maiores ainda,
não inundarão nosso coração ao gozarmos da amizade
de Jesus! Cada traço de sua vida, tudo quanto fez e so
freu por nós, nos será claramente revelado e as maravilhas
de seu amor nos serão manifestadas. Este mêigo Salvador
se dará, a todos, com uma perfeição maior e de modo mais
delicioso do que em sua Eucaristia; comunicar-se-á às nossas
almas em uma comunhão ininterrupta, cujas delícias serão
tio grandes e tão inebriantes, que só mediante uma força
extraordinária as poderemos suportar. E essas alegrias desa
parecem ao lado da felicidade essencial, principal, que con
sistirá para nós na contemplação e no amor da Divindade.
Não poderemos contemplar a Deus e amá-lo, senão possuin
do-o. Possuir o Deus em três pessoas, gozar do Deus infinita
mente admirável, infinitamente suave, gozar dele na medida
em que o permitirem nossos méritos, que sublime esperan
ça! Felizes as almas que receberam vivas luzes de fé a res
peito dessas grandes verdades; elas sabem que um só grau
de glória é mil vezes mais precioso que todas as alegrias
�a terra, e, por conseguinte, para adquiri-lo, para obter a
posse de Deus em maior abundância, nenhi.Jm esforço lhes
custa, nenhum sacrifício lhes parece penoso demais.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XIV
Da alegria
Gr,udde ln Domino srmptr, iltrum dito, l!lf/Jdlllll.
Alterai-vos sempre no Senhor, repilo-o, alc1n,i
vos (Fllip 4, 4),
1. As alegrias naturais.
1:12
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Alegrai-vos, portanto, segundo o conselho do apóstolo:
"Alegrai-vos sempre no Senhor, repito-o, alegrai-vos". Deus
quer que sejamos felizes. Ele mesmo é a alegria infinita,
a única verdadeira, que irradia onde quer que se encontre.
Aspirando a Deus, aspiramos à alegria e à felicidade; vi
vendo de Deus, vivemos de felicidade e de alegria.
Mas não nos iludamos com as falsas alegrias que tanto
seduzem os pobres mortais. Não as procuremos, pois são
alegrias enganadoras e indignas de nós.
111. Há também as alegrias diabólicas. Lucifer e seus
súditos infernais comprazem-se no mal que causam, nos
pecados que provocam, nas torturas que infligem. Conse
guem seduzir-nos, fazer-nos cair em alguma cilada, aparen
tam certa satisfação e, por meio de sinais, outros tantos
. risos de escárnio, comunicam a seus companheiros a vitó
ria alcançada. Riem-se ainda quando exercem seu ódio sobre
os infelizes condenados, que arrastaram ao abismo. Esta
não é uma alegria genuína, pois a alegria é o amor satisfei
to e os demônios não têm amorj o ódio não proporciona
alegria porque nunca está contente, nunca se pode saciar.
Toda alegria que provém do mal praticado, da vingança
exercida, é uma alegria diabólica que o cristão não deve
jamais procurar.
112. H.ã as alegrias mundanas, ruidosas talvez, porém
mais atordoantes que duradouras, e que deixam após si o
vazio e a fadiga. São as que procuramos quando cedemos
às paixões; é a alegria do sensual, que pensa encontrar a
felicidade na boa mesa i do ambicioso, quando alcança hon
ras ardentemente desejadasj do vaidoso, que suscita admi
ração; do mundano, que mergulha nos multíplices prazeres
dissipadores. Entregar-se a essas alegrias é aumentar as pai
xões e prejudicar enormemente a almaj um cristão deve con
dená-las, ao sentir-lhes as primeiras manifestações.
113. Há as alegrias naturais. A natureza é ávida de ver,
de ouvir, de saborear, de sentirj gosta de recrear-Sei o jogo,
os passeios, os divertimentos, são-lhe outros tantos atrativos.
Quem quer amar a Deus com um amor perfeito, não deve
133
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
nunca procurar essas alegrias por si mesmas, mas prestar
se a elas quando as necessidades do corpo o exigirem, ou
a caridade o reclamar. Então, o móvel sobrenatural que
anima o cristão purifica e santifica suas alegrias, mas de
verá velar cuidadosamente sobre seu coração para prevenir
qualquer complacência nesses gozos humanos, qualquer
apego a esses prazeres naturais! Se os soldados em presen
ça do inimigo, que multiplica os ataques, em vez de re
tribuírem bala por bala se entregassem à caça, a colher
flores, ou a jogar cartas, seriam traidores da pátria; s.!
os lavradores, no tempo da sementeira, fossem passear, de
sistindo de qualquer colhe!ta futura e expondo-se a carecer
de pão para sua família, quão grande seria sua responsa
bilidade. A vida é um luta, em que combatemos para a gló
ria e os interesses de Deus, é um campo em que semeamos
para o céu. Todo e qualquer momento dado â natureza sem
móvel sobrenatural, Unicamente para satisfazê-la, é tempo
perdido para a glória divina e para a nossa felicidade eter
na. E como Deus nos põs na terra a fim de glorificá-lo,
como todos os instantes de nossa vida lhe pertencem, é
um roubo feito a Deus.
Depois, essas alegrias humanas, quando nelas nos com
prazemos, depravam o coração, tornando fastidiosas as ale
grias espirituais. E' impossível servir de uma vez a dois se
nhores, ou encontrar prazer em coisas tão contrárias como o
sejam o gozo da natureza e as alegrias da piedade. Quem se
compraz naquelas, pouco a pouco perderá o gosto por estas,
esforçando-se vagamente por obtê-las. Finalmente essas
alegrias humanas que satisfazem não o amor e sim o egoísmo
retraem a alma em si mesma e, quanto rnai:. a natureza se
satisfaz, mas exigente se torna, e assim a dedicação se es
gota e o dom de si mesmo aos outros e a imolação da na
tureza a Deus se torna mais difícil.
Acima dessas alegrias, há outras que, embora perten
cendo também à natureza, são mais nobres, mais legítimas
e mais fãceis a sobrenaturalizar, são as alegrias da amizade,
as alegrias da familia. Deus, que as permitiu e declarou
134
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ser um dever do amor de que elas dimanam, as abençoa,
mas é necessário ainda velar para não se tornarem exigen
tes demais, ou ultrapassarem os justos limites e para que não
prejudiquem cm nada o amor divino. As almas generosas,
apaixonadas pelo santo amor, preferem muitas vezes privar
se do que se expor a perder a medida.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
missão dos setenta e dois discipulos. Jesus os enviara, em
sua frente, como para preparar-lhe o caminho; encarrega
os de instruir, de pregar, em uma palavra, de inaugurar o
ministério de toda a sua vida. Para torná-los aptos a rea
lizá-lo, concedeu-lhes dons preciosos, o dom de sarar os
enfermos, o de expulsar os demônios. Ora, depois de ini
ciada a sua missão, e de terem logrado êxito, voltam a
nosso Senhor cheios de alegria: Reversi sunt autem septua
�inta duo ct1m gaudio (Lc 10, 17).
Devemos encontrar alegria nos dons que recebemos de
Deus. Inúmeros são os benefícios divinos e não se passa
um só instante de nossa vida sem que Deus nos conceda
bens preciosos tanto na ordem natural como na sobrenatural.
Ora, a alegria deve ser o perfume da nossa graditão. Que
dirá um benfeitor ao ver seu agraciado receber-lhe os
benefícios com ar tristonho e agradecer-lhe com visível mau
humor? Testemunhar júbilo pelo benefício recebido é o pri
meiro dever de um coração reconhecido, que testemunha
assim o quanto aprecia os dons que lhe são feitos. Podere
mos, jamais, regozijar-nos bastante do dom da fé, do dom
do santo batismo, de tantas graças que nos iluminam, nos
impelem para a virtude, nos sustentam e nos santificam?
O segundo dever da gratidão é não medirmos esforços
em relação ao benfeitor. Devemos lutar com ele em genero
sidade e alegrar-nos em poder retribuir-lhe os benefícios.
A alegria que experimentamos em trabalhar para Deus é
a melhor prova de nosso reconhecimento e de nosso amor;
dá merecimento às nossas obras. Deus não pode se agra
dar daqueles que o servem com tristeza; ele ama, ao çon
trário, os que lhe dão com alegria: Hilarem datarem diligit
Deus (2 Cor 9, 7).
Tal a alegria dos setenta e dois discípulos que rece
beram grandes dons de Deus e que os despenderam nas ta
refas que lhes foram confiadas. Essa alegria, porém, não
é sempre pura; mesclam-se-lhe sentimentos de complacência
pessoal e, se a alma se regozija com os dons de Deus, re
gozija-se também por terem estes recaido sob�e sua querida
136
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
pessoa. A primeira alegria é sobrenatural, a segunda, na
tural. Regozijamo-nos por termos proporcionado glória a
Deus pelo nosso trabalho, mas também nos regozijamoS
por sermos nós a causa. Parece que os setenta e dois dis
cípulos não estavam isentos de algum sentimento de amor
próprio, pois nosso Senhor os repreendeu, dando-lhes este
paternal conselho: "Não vos regozijeis de que os demônios
vos sejam submissos, mas de que os vossos nomes estejam
escritos no céu".
A alma que aspira ao verdadeiro amor deve velar com
muito cuidado para purificar de toda satisfação de amor
próprio mesmo as alegrias espirituais. Se não o fizer, o sen
timento natural de contentamento, que experimentar nes
sas ocasiões, impedirá a Deus se comunicar a ela na mes
ma abundância, e sua união com o bem-amado ficará pre
judicada, suas orações serão menos fáceis e menos fervorosas.
As distrações das almas piedosas provêm, frequentíssimas
vezes, dessa invasão do natural em· seus sentimentos nos de
sejos do bem, no júbilo das boas obras realizadas, no te
mor do pecado ou na tristeza gerada pelas faltas cometidas.
116. A segunda referência do Evangelho à alegria dos
amigos de Jesus é aquela em que São João, depois de nar
rar a ressurreição do Salvador e a sua aparição aos após
tolos, nos diz: "Alegraram-se os discípulos ao verem o Se
nhor": gravisi sunt disclpuli, viso Domino (Jo 20, 20).
Tinham perdido o seu bom Mestre; uma morte cruel
parecia tê-lo arrebatado para sempre, e eis que de novo ele
lhes é restituido. Tinham-no perdido em circunstâncias que
lhes deviam despertar sentimentos dolorosos; um deles o
havia renegado, os outros, abandonado. Ora, o divino Salva
dor, ao aparecer-lhes, parecia haver tudo esquecido; nem sua
fisionomia estava agastada, nem sua voz menos doce, nem
seu olhar menos terno. Em vez de repreendê-los, desejou
lhes a paz: Pax vobis. Todo o seu ser estava transfigurado;
apresentava-se mais belo do que nunca; o esplendor de seu
corpo glorioso, embora ainda suavizado, para não lhes ferir
a fraqueza dos olhos, deixava-se perceber fàcilmente; uma
137
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
auréola de imortalidade iluminava-lhe a fronte. Os discípu
los compreenderam, ao vê-lo, que ele, agora vencedor da
morte, não mais morreria; não deviam, portanto, recear per
dê-lo novamente. Oh! quão compreensível é essa alegria!
E quão digna de compaixão é a alma que perdeu a Deus!
Sejam quais forem seus êxitos mundanos, se estiver separada
tle Deus pelo pecado, sua sorte é lamentável. Mas quão fe
liz é a alma que encontrou de novo a Deus e conserva a firme
esperança de não mais o perder! lnveni quem diligit anima
mea, tenui et1m nec dimittam. "Encontrei o bem-amado de mi
nha alma, guardo-o, não o deixarei mais ir" (Cânt 3, 4). Quão
feliz é também a alma que encontra a Deus na oração, que
goza as consolações da piedade, que prova a Jesus e se
delicia em sua presença na sagrada comunhão! Alegrias
doces e santas! Alegrias puras e salutares! Procuremo-las,
alimentos delas nossas almas, e, nessas doçuras, recupere
mos novas energias.
t 17. Quando nosso Senhor, depois de se despedir dos
apóstolos, se elevou majestosamente ao céu em presença dos
discípulos maravilhados, estes voltaram a Jerusalém cheios
de alegria, diz São Lucas: regressi sunt in /ernsalem cum
gaudio magno (Lc 24, 52).
À primeira vista esta alegria parece estranha. Com
efeito, o bom Mestre os deixara; não lhe verão mais o semblan
te tão meigo; não lhe ouvirão mais a voz melodiosa; como
então podiam se alegrar? Sem dúvida, tal alegria é mais
nobre, mais elevada, mais perfeita, que a alegria que lhes
encheu o coração na tarde da Páscoa; é, também, mais
desinteressada.
De onde lhes vem, de fato, essa alegria senão de ha
verem presenciado o triunfo de Jesus? Seu poder manifes
tou-se na majestade da ascei,são, na aparição dos anjos
que publicaram os seus louvores. Ah! como se vingou das
ignomínias da semana terrível! Diante de Jerusalém, que o
aviltou e crucificou, recebeu as honras mais pomposas. Dora
vante está sentado à direita do Pai; como não transborda
ria de felicidade o coração de seus amigos? Pouco lhes
138
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
importa que venham a sofrer pessoalmente. Ficarão, lle fato,
privados de sua presença; ele, porém, gozarã dos seus triun
fos e do lugar de repouso acompanhará as obras que eles
vão empreender, pois Jesus acaba de lembrar a missão que
lhes confiara. A sua vida de apostolado se inicia; vão rezar,
trabalhar, e ele, do alto do céu, para onde o viram subir,
lhes contemplará as obras. E a alegria inunda-lhes o coração.
Eis ai a alegria perfeita que Deus concede às almas
na medida em que renunciam às outras. A vida das almas
plenamente mortificadas é um festim perpétuo. Deus as
alimenta de suas próprias alegrias, que são as alegrias do
verdadeiro amor, e não espera a eternidade para recrear seus
filhos prediletos. São, portanto, felizes da felicidade de
Deus, felizes por saberem-no tão grande, tão perfeito, tão
belo. E esta é uma alegria tranquila, nem sempre sensi
vel, porém profunda, inexplicável. Sentem-se também felizes
em poder contribuir para essa alegria de Deus por meio
de uma vida toda de amor e de fidelidade.
118. Tal alegria os isentará, por ventura, do sofri
mento? Será a terra, para os amigos de Deus, um verdadeiro
paraíso, de onde estejam banidas as dores? Não, o sofri
mento se prende a toda vida terrena; aquele, porém, que se
elevou ao perfeito amor, encontra, nos próprios sofrimentos,
motivos de júbilo.
Pedro e João pregaram o Cristo; os sinedristas, en
furecidos com semelhante pregação, chamaram à sua presen
ça os dois apóstolos e os condenaram ao suplicio da fla
gelação. Ora, que nos diz São Lucas a este respeito? Fri
sa, ainda, a sua alegria e felicidade: ibant apostoli gauden
tes a conspectu concilii; quoniam digni habiti sunt pro
nomine Jesu contumeliam pali: "Os apóstolos voltaram do
conselho contentes de terem sido julgados dignos de so
frer afrontas pelo nome de Jesus" (At 5, 41).
A alma que ama a Deus anseia por agradar-lhe. Mas,
enquanto as obras que pratica lhe custam pouco, pensa nada
fazer pelo bem-amado. O coração que ama precisa sofrer
pela pessoa amada; daí as deliciosas alegrias do sacrifício.
139
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
E' também uma necessidade para quem ama, assemelhar-se
ao ente querido, imitá-lo quanto possível, reproduzir-lhe os
sentimentos e o modo de viver. E já que Jesus passou por
todas as dores, já que suportou todos os tormentos, sofrer
como Jesus sofreu é uma verdadeira alegria para a alma
_cheia de amor.
119. Estas alegrias de amor são muito superiores a
qualquer outra, pois se fundam na rocha inabalável da ver
dade. Não serão perturbadas pela prosperidade, nem altera
das pela adversidade, e tornam mais íntima e mais só
lida a união com Deus. A verdadeira união supõe unidade de
sentimentos; não pode haver união perfeita entre uma pessoa
alegre e outra triste. Deus é a suprema alegria e sõmente
aqueles que participam da sua alegria, alegria de amor, po
dem unir-se a ele. Em virtude desta alegria, o amor cresce
sempre, e a união entre Deus e a alma se torna cada vez
mais íntima.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XV
Do temor
141
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
imico mal absoluto que devemos temer e evitar, custe o que
custar, é o pecado; todos os outros são males relativos
que a sabedoria divina permite, muitas vezes, para o nosso
maior bem.
A natureza, ao contrário, não compreende o mal do
pecado e, por conseguinte, não o previne. Receia Unicamen
te o que lhe contraria os instintos e evita cuidadosamente,
mesmo em prejuízo dos interesses da alma, o sofrimento,
que, para ela, ê o mal supremo. Com que energia não devemos,
pois, reprimir esse temor, ouvir as lições da fé e fechar
os ouvidos à voz da natureza! O temor contrai o coração,
reprime o arrojo do amor, impede os desejos ardentes, tolhe
as resoluções enérgicas. E' o egoísmo que frequentemente
gera o temor e este, por sua vez, desenvolve o egoísmo;
qllem se entrega ao temor, recolhe-se em si mesmo, e deixa
de fazer por Deus ou pelo próximo tudo quanto poderia
fazer.
122. Não sómente os males reais levam a alma timo
rata à recuar; se não conseguir dominar o medo, chegará
a fugir das menores dificuldades. Então assusta-se ante os
esforços necessários para praticar o bem, ou empreender
alguma boa obra e se apavora com a idéia de um revés,
de uma humilhação, e, em lugar de se pôr corajosamente
à obra, permanece inerte.
Somos, é verdade, em virtude do estado atual de nossa
natureza, fracos e incapazes; custa-nos o esforço; toda obra
boa nos parece dificil. As criaturas que nos rodeiam já
!lão são servas humildes e submissas, como antes do pe
cado de Adão; longe de concorrerem pa:ra nossa felicidade
e nos facilitarem os deveres, erguem-se diante de nós, quais
obstáculos, ou procuram seduzir-nos e desviar-nos do bom
caminho. Cercados de tantas dificuldades exteriores e in
teriores, provàvelmenle não nos caberá realizar nenhuma
maravilha e as obras que empreendermos correrão grande
risco ele serem imperfeitas; ser5. isto motivo para abandonar
mos o dever e nos refugiarmos cm uma vil indolência?
142
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Temos todos nós um dever a cumprir na terra e seja
qual for nossa miséria temporal ou espiritual, temos nosso
lugar marcado neste universo, como o devemos ter um dia
no mundo dos eleitos. Aqui e lá, cabe-nos contribuir para a
harmonia do conjunto e cada qual recebe de Deus os meios
de cumprir com sua missão. Quem por excessivo temor se
furtar à tarefa, vai de encontro ao plano divino, enquanto
priva seus irmãos do bem que lhe competia fazer-lhes, não
presta a Deus as honras a que tem direito.
A alma simples e reta sabe de que vis instrumentos se
serve o Senhor para realizar suas obras, instrumentos de
lodo que deixam, com frequência, sua marca onde pousam.
A obra do Senhor fica um tanto embaçadaj mas, apesar
desse ligeiro deslustre, não deixa de ser admirável e divina.
Sem dúvida, quanto menores os vestígios que deixar o
instrumento, mais bela será a obra e é altamente de desejar
que o instrumento de que Deus se serve opere com a mi
nima imperfeição possível. Mas, se a obra divina não res
plandece com o devido fulgor, pelo menos existe, e produz
frutos primorosos. Ao contrário, se o instrumento de todo
recusasse o seu concurso, alegando não querer prejudicar
tão preciosa obra, esta não existiria, e esses ditosos fru
tos não teriam sido obtidos.
123. Quão querida de Deus e estimada dos homens I:
a alma corajosa que, para fazer o bem, afronta qualquer
obstáculo. Ao contrário, a alma pusilânime desagrada tan
to a Deus quanto aos homens. E' pesada a si mesma e pesa
sobre aqueles que a cercam. Comunica-lhes seu temor, abate
lhes a coragem, paralisa-lhes os esforços, ou, se resisti
rem à sua perniciosa influência, dificulta-lhes a ação, re
cusando seu concurso ou rejeitando ouvir-lhes os conselhos.
Prejudica-se, porém, principalmente a si mesmaj sua
imaginação gera inúmeros fantasmas, suscita mil suposições
desagradáveis, multiplica e exagera os inconvenientes e cria
sc, desse modo, toda espécie de receios. Parece, ao ouvi
la, que o mundo está cheio de feras, prestes a devorá-la,
ou eriçado de cumes escabrosos que precisa escalar.
143
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
124. Dominar o medo é o melhor meio de curá-lo. Indo
com energia para onde temos receio de ir, verificamos logo
a ausência de perigo i os nervos se acalmam, a imaginação
se tranquiliza, a razão recupera o seu domínio, a vontade
se fortalece. Em circunstãncia análoga, o esforço para vencer
o medo será muito menor, e não tardarã a desaparecer de
todo. Tratemos da mesma maneira a qualquer receio, sem
nunca temer os males flsicos ou morais que nos possam
atingir. "Não temais, disse Jesus, aqueles que podem ma
tar o corpo e não podem matar a alma". Não quer o doce
Salvador que nos deixemos levar pelo medo, mesmo diante
dos suplícios. E por que? E' que os cabelos da nossa ca
beça estão todos contados e nenhum cai à terra, sem licença
do Pai celeste. Deus sabe tudo. Deus pode tudo. Deus vos
ama. Por que temer então, homens de pouca fé? "Não vos
preocupeis com o dia de amanhã", disse Jesus. Feliz de quem
compreende e segue este conselho, um dos mais práticos
e mais úteis de todo o Evangelho; feliz de quem lança lodo
o seu temor no coração de Deus e caminha sempre em di
reção do dever, corajoso e intrépido.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XVI
Da dor
145
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
a obstinação; longe ele aceitar a expiação, exigida pela honra
divina, erguem-se contra Deus, no orgulho e na revolta;
então a pena que atraem sobre si, torna-se numa tortura que
lhes excita o rancor e aumenta o ódio. Na terra, ao con-
1rário, o homem pode reconhecer sua falta, detestá-la, e
submeter-se ao castigo; a pena assume então um caráter in
teiramente diverso: é a dor resignada e amorosa, amorosa,
porque o amor que os benefícios de Deus não puderam pro
duzir, a dor o fará brotar do coração.
Tal é, pois, o escopo da dor, reparar a honra de Deus,
punir o pecado, destruir todas as consequentes corrupções.
O fogo terrestre purifica, devorando tudo quanto é corrup
tivel e separando as escórias dos elementos incorrup
tiveis. Edificamos, diz o apóstolo, firmados em Cristo, um
t"<lifício em que se mesclam ouro e prata, pedras preciosas
e lenha, feno e palha; o fogo porá esse edifício à prova, re
velando tudo quanto continha de puro e de sólido. E' o fogo
da justiça, o fogo da dor, que produz semelhante efeito; no
inferno, no purgatório, o fogo vingador atinge tudo quanto
está maculado; não atua, porém, sobre o que se conservou
puro.
126. A dor é, pois, filha do pecado. O Deus de toda
bondade, que poderia não a ter excluído a princípio do pla
no divino, só a introduziu, de fato, no mundo, em seguida
ao pecado. Antes da queda original o homem não sofria a
tirania das paixões e só devia esperar alegrias do convívio
com sua companheira e as criaturas só lhe proporcionavam
prazeres, enquanto elevavam o seu coração a Deus pelo
reconhecimento.
Mas o pecado desmoronou toda a ordem da natureza.
Para colher, o homem deve primeiro semear no labor e na
fadiga; deve ganhar o pão com o suor de seu rosto. As
rosas que o encantam estão cercadas de espinhos, aptos a
ferir quem as quiser colher. Cada criatura parece dizer em sua
linguagem muda: Que uso pretendes fazer de mim? Fui en
carregada, pelo nosso comum Criador, de te pôr à prova.
Ou então: Sou de tal natureza que o só fato de me encon-
146
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
irares em teu caminho, será penoso para ti. Ou ainda: se
te sou lltil, obrigo-te a -esforços árduos, e, não raras vezes,
sou rebelde a essel:õ esforços e te imponho crueis privações.
Mais acerbos ainda que os sofrimentos exteriores são
os sofrimentos íntimos; angústias do coração dilacerado pe
las separações, pelos lutos, pela visão dos males de nossos
irmãos; dores da alma causadas pelos nossos insucessos, pe
las nossas próprias misérias, pelos nossos defeitos e pecados.
Esses sofrimentos visam todos corrigir e reparar as con
sequências do pecado; são urna força destruidora e é isto
que os torna tão pungentes. Há na alma humana, maculada
pelo pecado original, tendências egoístas, apegos maus que
se desenvolveram e se fortaleceram com as faltas individuais;
são outros tantos obstáculos que impedem e tolhem as san
tas inclinações depositadas em nós pela graça. O fogo ela
dor visa devorar essas impurezasj Deus quer consumir em
nós O que lhe ofende a pureza do olhar, e, sobre as cinzas
de nossos defeitos, fazer germinar belas virtudes.
127. Quão viva e penetrante é por vezes a dor da alma
cheia de imperfeições, mas que procura purificar-se! Dir
se-ia. uma fogueira que consome muitas achas, e em cujo mon
tão de cinzas esperamos encontrar ocultas algumas moedas
de ouro. Levarã muito tempo para consumir todo esse lenho
que, verde ainda, gemerá ao torcer-se e ao lançar ondas de
fumaça; e só se deixará destruir depois de opor viva resis
tência às chamas. Assim também as almas imperfeitas têm
tanto afeto às coisas deste mundo e tanto apego à sua opinião
e à sua vontade, têm um amor próprio tão desenvolvido que,
tudo quanto tende a consumir esses defeitos, isto é, as prí
vações, as contradições, as humilhações mais insignificantes,
tudo lhes parece extremamente penoso. E tal sofrimento,
que perdurará enquanto não fizerem reais progressos na
renúncia, é necessário às almas imperfeitas.
A sensualidade será destruída pela dor física; a avareza,
pela perda ou diminuição dos bens; o orgulho, pelos des.
prezos, pelas criticas, ou pelas calúnias; o egoísmo, pelo
abandono, pela indiferença do próximo. Quando, ao contrá-
147
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
rio, a alma está livre de tais apegos, cheia de amor de Deus
e disposta a tudo aceitar de suas mãos, aquilo que outro
ra· lhe fazia sofrer, agora a deixa indiferente; suas dores
são menos acerbas; o fogo devorador tem nela pouco ali
mento; encontrando apenas um lenho seco ou já meio quei
mado, acaba de consumi-lo cm silêncio. Isso não significa
que essa alma purificada esteja isenta de toda dor, mas essa
dor é geralmente suscitada por causas mais nobres e assim
sofrerá pelas ofensas feitas a Deus. Demais, a essas penas
une-se uma paz cheia de doçura, uma resignação total que
alivia, que torna amáveis as próprias dores.
148
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
laboriosa está presc1,, talvez, ao seu temperamento ardente;
esforça-se e dedica-se, mas quanto a moderar o seu entusias
mo não lhe seria possivel. Que a provação o atinja, que a
enfermidade o prostre, que a dor lhe torture os membros,
e logo cessará todo desejo de atividadej não poderá mais
dedicar-se senão por meio de corajosos esforços. Se tal
homem continuar a labutar, então não poderemos mais pôr
em dúvida a sua energia: a dor é, pois, a pedra de toque
da virtude.
129. A dor C sobretudo a pedra de toque da hulUildade.
E' agradável, é uma felicidade para o cristão generoso tra
balhar para a glória de Deus, esforçar-se por lhe ganhar
almas, por torná-lo mais conhecido e mais amado. Mas,
se vier a fracassar em seus mais santos empreendimen
tos, enquanto outros alcançam êxito, como aceitará ele a
humilhação do revés? como assistirá ao êxito de outrem? .Se
só procura a Deus, que lhe importa por quem Deus seja
servido, por quem seja glorificado? "Eldade e Medad pro
fetizam", disseram um dia os hebreus a Moisés. "Por favar,
não os deixeis", exclama Josué. "E por que, responde o ho
mem de Deus, por que esta inveja? Ah, praza aos céus
que todo o povo profetize e que o Senhor os penetre a to
dos de seu Espírito!" São Paulo, na prisão, não podia mais
pregar o Evangelho; então alguns de seus irmãos, invejo
sos e disputadores, entregaram-se à pregação com a idCia
de que seu êxito, despertando a inveja do prisioneiro do
Cristo, lhe tornasse. mais pesados os grilhões. "Que importa!
exclama o apóstolo; contanto que o Cristo seja conhecido,
alegro-me e me alegrarei sempre" (Filip I, 18). Quando a
provação não desperta logo em nós esses protestos sinceros
de desinteresse, patenteia claramente que, no próprio bem
praticado, visávamos nossa satisfação pessoal ao mesmo
tempo que a glória de Deus.
Se na óbra que empreendemos surgem contradições,
se nosso procedimento ê censurado, se o acerto de nosso
intento, ou a prudência de nossas decisões forem contesta
das, se nos retirarem a Obra começada, para confiá-la a ou-
149
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
tros, da maneira pela qual recebemos essas humilhações, in
fere-se a pureza de nosso propõsito.
Dá-se o mesmo com as demais virtudes, a doçura, o
amor do próximo. A provação denota-lhes a sinceridade ·e
perfeição. Ensina-nos, pois, a nos conhecermos a nós mes
mos, e a melhor conhecermos a Deus. Adquirimos, na pro
vação bem aceita, uma idéia mais justa de sua santidade,
que exige uma purificação severa, mesmo das almas apa
rentemente muito puras; de sua sabedoria insondável, cujas
veredas são tão diferentes das nossas; de seu poder, que
pode tirar o bem do mal; de seu amor, que se manifesta
mesmo quando castiga: quos amo castigo, e que sabe unir
a paz e o consolo às mais duras provações.
130. A provação ilumina a alma sincera, desvenda-lhe
o mal o.culto nas dobras de seu coração. Faz mais, porém,
que revelar o mal, ataca-o, contanto que saibamos tirar pro
veito de sua ação benfazeja.
A dor, humilhando-nos, torna-nos melhores. Faz-nos
sentir mais vivamente nossa incapacidade e nosso nada. Um
ferido, que não pode mais levantar-se, recorre aos transeun
tes, não se prevalece mais de suas forças. Assim também
aquele a quem o sofrimento feriu, humilha-se e solicita
socorro e alívio, mesmo junto a seus inferiores, ou àqueles
a quem não estima. Se, como é frequente, os homens são
incapazes de consolar aquele que sofre, então este volta-se
para Deus_. implorando-o humilde e insistentemente. Quan
tas vezes a dor aproximou de Deus homens que a pros
peridade dele afastara? Abençoado o sofrimento que leva
o filho pródigo ao lar paterno.
131. Se a dor converte IIluilos pecadores, santifica tam
bCm muitas almas piedosas. Parece até impossível que cer
tas almas alcancem a perfeição sem passar pelo sofrimen
to. Purificam-se, primeiro, de tudo quanto nelas é impuro,
imperfeito, de tudo quanto, em suas obras, não C sobre
natural. Temos ótima ocasião de desaprovar e de afastar para
longe de nós as preocupações egoístas, que nem sequer
suspeitávamos, e que se manifestam nas separações, nos re-
150
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
veses e contradições, aceitando alegre e amorosamente a
vontade divina. Sim, meu Deus, permitindo vós esta separa
ção, este malogro, estas críticas, quisestes privar-me dos pra
zeres humanos que se misturavam à alegria de trabalhar
para vós; só me resta agora a satisfação de haver feito o
bem e procurado agradar-vosj as consolações naturais que
teria encontrado, além do êxito, nos aplausos e na estima
do próximo, vós mas retirais; a dor que sinto, prova quan
to as desejava; mas de bom grado renuncio hoje a elas e
me regozijo de não ter outra recompensa senão a de vos
agradar.
Este ato de verdadeiro amor é tão agradável a Deus,
que, para no-lo fazer praticar, permitirá por vezes o fra
casso de obras, excelentes em si (1).
Teremos assim ocasião de nos tornarmos mais puros
e mais santos, o que Deus deseja antes de tudo. Ele pre
fere ser glorificado pelas nossas virtudes do que pelas nossas
obras, pela nossa humildade e nosso amor, do que pelos
mais brilhantes êxitos exteriores.
Quantos atos de virtude não poderá ainda a dor s11s
ci1ar? No sofrimento, a fé se ilumina, a esperança se torna
ardente e inabalável, o amor se fortificá e se dilata. A prá
tica destas três virtudes teologais brota espontaneamente
da alma fiel, entregue à dor;. e quantas outras virtudes
não as acompanham? a paciência, a ren(mcía, a suavidade,
\"irtudes tão belas, tão agradáveis a Deus, se exercem
como que naturalmente e acrescem muito aos méritos já
adquiridos.
Sem o sofrimento preparado pela Providência, quem
seria bastante corajoso para aplicar a si mesmo o ferro e o
fogo que suprimem e consomem os apegos imperfeitos, as
afeições puramente naturais, esses inúmeros laços que en
cadeiam as almas, impedindo-as de voar para as alturas da
perfeição?
1J Quando São Luís empreendeu as cruzadas, não tinha outro
rito senão a glóri:i, de Deus; entretanto, só encontrou rev88el:I e du
graças; Dl!US, permitindo tais prov...;ões, fez dela um. santo.
151
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XVII
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
çada por ardentes preces, não dominarem essa força irasci
vel, a mínima contrariedade produzirã um movimento de
impaciência ou de cólera, que é uma desordem, sempre pre
judicial à alma.
Na criança, a quem a razão não ilumma e a educação
ainda não formou, podemos estudar esses impulsos instin
tivos de impaciência e de cólera; ver o quanto são desordena
dos e indignos de uma criatura racional e submissa a Deus.
Retirai da criança o seu brinquedo e pôr-se-á a chorar, a
sapatear fitando àvidamente os olhos no objeto que lhe foi
retirado; parece sair de si mesma e passar-se toda para essa
bagatela, esse nada que a cativava; se não lho devQlverdes,
parece-lhe que lhe retirais a vida. Ai de nós! Seremos mais
razoáveis cm nossas impaciências? Quando nos é retirado
algum objeto ao qual estávamos apegados, saúde, bens de
fortuna, estima dos homens, não patenteiam, com frequência,
as impaciências, a cólera contida, ou a dor e o abatimento,
que nossa alma estava unida a esse objeto, sem o qual
não podemos viver?
Caia doente uma pessoa que não sabe governar e mo
derar seus sofrimentos, e pensará constantemente na saúde
perdida, representando as alegrias de que poderia ainda go
zar, as satisfações que se poderia conceder, enumerando
minuciosamente os inconvenientes, os dissabores, as tri
bulações da enfermidade. E esses cálculos vãos, essas quei
ns estéreis, a preocuparão a tal ponto que perderã de vista
coisas muito mais úteis, chegando mesmo, tão absorvida estã
pela dor, a negligenciar seus deveres. Se essa desordem se
prolongar, será uma vida perdida, talvez uma alma deses
perada para sempre.
133. Deus poderia sem dúvida dissipar essas idéias som
brias e fazer reinar a paz na alma, acalmando-lhe os de
sejos e, por conseguinte, diminuindo-lhe os sofrimentos que
lhe causam as decepções. Quem nada deseja, com nada se
aflige. Deus jã concedeu semelhante graça a almas. herói
cas, a fim de recompensã-las de longos e penosos sacrifícios.
As almas generosas, que combateram por largo tempo, em-
153
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
hora sem obter um completo apaziguamento, vêem diminuir
as atrações inferiores e, consequentemente, os sofrimentos.
Quando as aflições provêm de apegos naturais e im
perfeitos, é mister renunciar sinceramente a esses apegos
e agradecer ao Senhor que nos ajuda na obra tão necessá
ria quão dificil do despojamento.
Mas nossos sofrimentos podem nada ter de repreen
sível. As próprias almas perfeitas sobram ocasiões de dor;
pessoas legitimamente amadas lhes serão arrebatadas, bens
de gram.le utilidade lhes serão retirados, verdadeiras des
graças virão feri-las. E como os impulsos do coração para
o ente querido que desapareceu nascem de uma afeição
permitida por Deus, a dor que provocam ê licita; não deixa:,
·todavia, de entrar, nos planos divinos, como punição ao
pecado e meio de progresso.
134. Como então governar a dor, moderá-la e impedir
que se torne nociva? Por um ato de resignação, de sub
missão à vontade divina, que deve substituir em nosso co
ração a tristeza causada pela provação. Tal ato não será sin
cero e perfeito st não pr.ocuramos afastar da mem6rla, tan
to. quanto possível, a lembrança daquilo que nos causa pesar.
Se largarmos as rédeas aos nossos pensamentos, permitin
do que se entreguem livremente ao objeto querido de que
estamos privados, ou ao mal que ora nos aflige, nossa dor
aumentará cada vez mais e oprimirá pesadamente nosso
pobre coração, que ficará como que esmagado. Cada olhar
dirigido ao objeto amado excita a afeição; o atrativo sem
pre vivo que move o coração torna-se irJ'esistivel; a tris
teza, que resulta da perda dos objetos, não sendo senão
essa atração invertida, torna-se dominante e irresistlvel co
mo a própria atração. Quem se presta a essa ação invasora
da tristeza, quem se deixa dominar por ela, perde, por cul
pa própria, parte de sua liberdade; ver-se-á dentro em pouco
como que acorrentado, paralisado pela dor, não dispondo,
para agir, da força de outrora.
Esse entorpecimento da alma se produz naqueles que
pensam demasiadamente em seus defeitos e pecados, ou an-
154
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
tes, que neles pensam sem acrescentar, como de dever, a
lembrança das bondades e das misericórdias divinas. Ocu
pando-se muito mais de si e pouco de Deus, trazem cons
tantemente presente o triste espetáculo de suas misérias; as
semelham-se às pessoas vaidosas que, tendo no rosto uma
ferida, se desolam com sua fealdade, e miram-se constante
mente no espelho para verificar se o mal jã cicatrizou.
135. Serã então necessário procurar um derivativo à
dor, entregar-se a novos atrativos que substituam as satis
fações perdidas, recorrer a consolações humanas, dando a
outros objetos, ou pessoas, o lugar daqueles que nos fo
ram arrebatados?
Essa maneira de acalmar a dor não é por certo a me
lhor e vai, com frequência, de encontro aos planos de Deus.
Que se propõe, com efeito, o Senhor quando nos retira os
bens deste mundo, ou nos separa dos entes queridos? Quer
désprender-nos das criaturas para unir-nos mais intima
mente a si. Se, portanto, à medida que rompe os laços que
nos tolhem o vôo, forjamos outras correntes, não faremos
nós mesmos a nossa desgraça?
Hã sempre um desígnio misericordioso da Providência
nas provações que nos ferem. O saber humano, tão limitado,
vê na provação um obstáculo aos bens, à.os ditosos efei
tos por que suspirava. Assim a enfermidade, obrigando
nos a guardar o leito, afigura-se-nos como a ruina dos belos
projetos que havíamos formado. Mas os desígnios de Deus
não são os nossos e ele visa santificar-nos por meio da mo
léstia que, bem aceita, produzirã frutos maravilhosos. Se,
ao contrátio, o doente lamentar a satldc perdida, se pro
curar consolar-se com ilusões fomentadas cuidadosamente,
se se obstinar, mesmo, a continuar uma vida ativa, infor
mando-se àvidamentc de tudo quanto lhe diz respeito, en
tregando-se a toda sorte de cálculos, de previsões, de crí
ticas, levando, portanto, uma vida toda exterior e deixando
de tirar proveito, para sua santificação, da solidão à qual
o condena a enfermidade, obsta aos planos divinos. Deus
pretende destruir o ardor demasiado humano desse cristão
155
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
fiel, a atividade ultra-natural que lhe prejudicou as melho
res obras, enquanto gozou saúde. Deus quer fazê-lo morrei
a tudo quanto é imperfeito e pessoal; quer que esse servo de
dicado se esqueça de si mesmo e trabalhe, com uma intençãc
muito pura, para a glória de seu divino Mestre. Se ·soube1
renunciar com generosidade aos seus próprios gostos, acei
tando amorosamente esse estado de inutilidade, e de aniqui
lamento, que é a moléstia, chegará a não agir senão em vir
tude da vontade de Deus, tudo fazendo na medida e se
gundo o querer divino.
Quando a vontade do cristão está assim purificada pe
la resignação· absoluta, tudo quanto empreender será ab_en
çoado por Deus. Então, mesmo que suas obras não aparen
tem êxito, seu esforços produzirão efeitos que, embora ocul
tos, serão ótimos; mais ainda, seus próprios sofrirnentm
não são menos fecundos que suas obras, e do seu leito d1"
dor, talvez seja tão útil à Igreja quanto os operários mais
ativos, os apóstolos mais zelosos.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
tir de seus direitos; Deus deixaria de ser Deus se não cas
tigasse o pecado. Job, com todos aqueles a quem a santi
dade da vida valeu grandes esclarecimentos, compreendia
a equidade da sentença divina, que condena o homem pe
cador ao sofrimento. Como todas as almas perfeitas, sentia
em si um vivo desejo de pagar suas dividas à jllstiça di
vina. As mesmas luzes da graça revelavam-lhe ainda a
pureza que o Deus infinitamente santo reclama de seus
amigos e desejava ser purificado pelo sofrimento. Sabia
também que a Sabedoria incriada atinge seus fins por vias
inteiramente opostas às dos homens e conduz à felicidade
pelo sofrimento. Sabia que o Deus infinitamente poderoso
e infinitamente bom podia procurar-lhe, por este meio, os
mais preciosos bens. Como não pedir então ao Senhor que
fosse até ao fim, e completasse nele sua obra, amarga, sem
dúvida, porém benfazeja. Esse homem justo não deseja
contradizer os decretos do Deus santo, pois, se os planos
divinos são sabedoria e bondade, pode o homem, infelizmente,
fazê-los fracassar, ou, ao menos, impedir-lhe a plena rea
lização. Job deseja, portanto, e pede que não seja obstáculo
aos desígnios de seu Deus.
137. Deus ficará satisfeito e nisto encontrará sua glória.
Que importa, pois, que eu gema; que importa que lima míse
ra cr.iatura sofra, se Deus for glorificado, que importa que
um ser, utn nada, seja esmagado, se Deus ficar contente!
Haveria quem protestasse se, para agrado do rei, fosse
esmagado um pobre vermezinho, de cujo corpo moído exa
lasse suave perfume? ou quem criticasse o consumo de
grãos de incenso, queimados para aromatizar uma igreja,
deleitar os fiéis e honrar a Deus? Pois bem, somos nós
esses vermezinhos, esses pobres grãos de incenso; devemos
considerar-nos felizes se, por meio de sofrimentos santa
mente suportados, fizéramos subir até ao trono de nosso
Deus um delicioso perfume.
138. Tais os pensamentos a que devemos recorrer quan
do a dor nos oprime, em vez de recordar os fatos que nos
entristecem, ou reanimar, inllltilmente, uma ferida que o tem-
157
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
po cicatrizará. Quem maltratasse por prazer uma ferida sua
e lhe rasgasse continuamente os tecidos que se refazem,
procederia como um louco. Não é menos insensato quem
repassa constantemente na memória as causas de seus so
frimentos, as faltas de seus irmãos para com ele, as in
justiças de que se julga vítima, ou os golpes da Providência
que o fere. Ao contrário, devemos humilhar-nos e reconhe
cer que tais sofrimentos estão muito aquém do que mere
cemos, pois, se viéssemos a morrer, passaríamos por um
rigoroso purgatório para expiar nossos pecados. Merecemos
ser lançados ao fogo; como então podemos nos queixar?
Nossas pobres almas, tão manchadas pelo pecado, pelo
apego a nós mesmos e a toda espécie de imperfeições,
precisam ser purificadas pelo sofrimento para se tornarem
agradáveis aos olhos do Deus infinitamente santo. Há em
nós como que uma marca que nos desfigura e não pode
ser arrancada sem uma acerba dor. E é este o pensamen
to que torna as almas humildes cada vez mais pacientes,
enquanto que a falta de resignação indica um orgulho
recôndito.
139. Deus é justo quando nos experimenta; sua bon
dade, porém, brilha ainda mais que sua justiça. Com efeito,
ele quer que essa dor, ao lavar e purificar as almas, lhes
dilate, ao mesmo tempo, a beleza e os méritos. A dor passa,
o mérito perdura; tantas outras penas já passaram, de que
nem sequer nos lembramos. Deus, porém, conservou-lhes
a lembrança, a fim de recompensar. Momentaneum et leve
tribulalionis nosfrae aeternum gloriae pondus operatur in
nobis. Nossas penas são passageiras e leves, mas, no gran
de dia em que se fixar a nossa sorte, cada qual produzirá,
e para sempre, novo esplendor de glõria.
Deus é justo e santo, Deus é bom quando nos expe
rimenta. Se, na dor, elevarmos para ele o olhar, de nosso
coração partirá um fiai generoso, que será um ato de amor
perfeito. Talvez o esforço passageiro despendido será de
efeito transitório e a lembrança do sofrimento nos perseguirá,
mau grado nosso. A dor, afastada num momento pela re-
158
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
signação, voltaria ao coração; um novo esforço, porém, pro
duzirá novo ato de submissão. Se fitarmos outra vez os olhos
11.as grandezas e perfeições de Deus, na sua bondade e san
tidade infinitas, faremos então outro ato de amor. Tantas
ll'itórias alcançadas sobre a natureza, cem por dia talvez, tan
tos passos dados no caminho do amor e da perfeição.
159
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Quando nos sobrevier uma provação, saibamos dizer:
"E' uma ligeira picada da coroa de espinhos, um leve roçar
da vara da flagelação. Nossas mais penosas humilhações não
passam de uma pequena participação às afrontas e ignomí
nias de Jesus".
141. Que doutor de paciência foi o meigo Jesus e que
ciência de sublime resignação podemos adquirir em sua t:S
cola: "Bem-aventurados os que sofrem, disse ele, bem-aven
turados os que choram ... Em verdade, vos digo, chorareis
e gemereis, mas vossa tristeza se há de converter em gáudio e
essa alegria ninguém vo-la tirará. Sereis felizes quando vos
carregarem de injúrias, por causa do Filho do homemj re
gozijai-vos e exultai de alegria, pois grande é vossa re
compensa!"
142. Palavras consoladoras. Menos, porém, que seus
exemplos. Quem aprendeu com ele a suportar valorosamente
os sofrimentos, vê em cada provação a mão benfazeja de
Deus. Contenta-se cm assemelhar-se a Jesus. Sabe que, "tor
nado conforme a imagem do Filho unigênito", tornou-se tam
bém, com ele, o objeto das complacências do Pai eterno,
tanto mais caro ao Coração de Deus. quanto mais se asse
melhar ao Filho.
A tal tende a ação do Esplrito Santo em nossas al
mas, a tornar-nos, segundo a palavra de São Paulo, seme
lhantes ao Cristo, modelo perfeito, exemplar sublime, que
devemos reproduzir conforme depender de nós. Ele é o cepo,
nós os ramos; suas perfeições, suas qualidades devem viver
cm nós. Ele praticou a adoração, a satisfação, a confor
midade à vontade do Pai em grau supereminente; essas
virtudes, nosso divino Chefe as quer ver reproduzidas, de
algum modo, em nossas almas.
f!1anifestaram-se nas tribulações do Homem-Deus; de
vem manifestar-se agora, cm nós, pela provação.
143. Devemos, portanto, estudar a Jesus, procurar em
que o podemos imitar. Vendo-lhe as mãos pregadas na cruz,
elevo perguntar-me que pregos atravessarão as minhas mãos,
onde estará a cruz que as firmará. Minha cruz é o dever,
160
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
o dever de estado ao qual a vontade divina me quer manter
unido. Os pregos que me atravessarão as mãos, os golpes
que me hão de ferir são as dificuldades que encontrarei
na prâtica de meus deveres e que precisarei dominar, re
dobrando os esforços; são os incidentes que se apresen
tarem impedindo-me o repouso; são as obrigações que mé
retiverem quando o prazer me chamar alhures. Ou então,
pelo contrário, minha cru.z é a inação; os pregos são a en
fermidade, a incapacidade, é a perseguição, que me proíbe
as obras ativas.
Quando Deus quiser que eu me dedique, que me en
tregue a fadigas penosas, poderei considerar Jesus em seu
trabalho de Nazaré ou em suas caminhadas evangélicas,
perseguindo com seu amor as ovelhas desgarradas. Quando
me suspender o trabalho, poderei conternplâ-lo em oração,
enquanto seus apóstolos pregavam e operavam milagres
em seu nome. Em meus reveses, poderei pensar em Jesus
agonizante, abandonado, renegado pelos discípulos e dei
xando aos apóstolos a honra de fundar a Igreja, de pro
pagá-la por toda a terra. Morto ele, sua obra estava, aparen
temente, perdida, a derrota não podia parecer mais com
pleta. Humilhando-se, porém, aceitando todos os opróbrios
da Paixão, os sarcasmos dos inimigos que se regozijavam
do triunfo alcançado, merecia e preparava o futuro êxito
elos apóstolos.
Jesus quis passar por Íoda sorte de provações, a fim
de que, em todas as nossas dificuldades, encontrássemos as
graças particularçs que nos mereceu e fôssemos sustentados
pelos exemplos que nos deu.
A alma que passa por numerosos sofrimentos, cami
nhando sempre nos passos de Jesus, merece ser purificada
de suas manchas e enriquecida com todas as virtudes. Asse
melha-se ao modelo divino; jesus desce em sua alma, une
se intimamente a ela e ela pode exclamar cm· toda sin
ceridade: "Já não vivo eu, mas Jesus é quem vive cm mim".
Ó caminho - 11 161
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPiTULO XVIII
162
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
pendem o curso. No céu, sem empecilhos, será perfeita,
ininterrupta.
145. Mas, se no céu a caridade se pode exercer livre
mente, só se exercerá, entretanto, na medida exata que tir
ver atingido na terra. Se não é dado ao gigante e à criança,
presos por sólidas algemas, manifestar as respetivas forças,
todavia, por certos movimentos, o gigante provará que C
mais robusto. Se lhes forem cortados os grilhões, nem um
nem outro adquirirá novas forças, mas, incontinenti, poderão
revelar aquelas que possuem. Assim, quando chegarmos ao
cCu, os obstáculos que encadeavam nosso amor desaparecl?
rão; amaremos a Deus com todas as nossas forças, mas nosso
amor não será maior, pois seu progresso cessa no mo
mento da morte; tal era naquela hora suprema, tal será
por toda a eternidade. Como há na terra alguns cristãos
perfeitos, que são de certo modo gigantes de amor, e outros,
muito mais numerosos, cujo amor é menos ardente, assim
será também no céu. Todos amarão cabalmente, é verdade,
e gozarão de seu amor; mas a potência de amar e o gozo
que lhes proporciona, variam conforme o eleito.
146. Se as outras virtudes teologais não têm a sobe
rana importância da caridade, abrem-lhe os caminhos e dis
põem os corações a praticá-la; quanto mais perfeitas forem,
mais perfeito será o amor. A alma fervorosa velou cuidado
samente sobre sua inteligência, privou-a dos pensamentos
vãos e alimentou-a das grandes verdades. Deus, em troca,
comunicou-lhe vivas luzes; ela goza de uma fé esclarecida.
Soube também mortificar as tendências de seu coração, e
já não deseja os bens naturais por si mesmos, nem se en
trega a alegrias puramente humanas, nada receia senão
ofender a Deus e não se deixa paralisar pela tristeza. Seu
coração está livre e lança-se com ímpeto em busca de Deus,
seu bem supremo, a quem deseja ünicamente. E' a esperança
ardente e perfeita.
Mas este Deus, que constitui a felicidade da alma fiel,
é não sõmente o seu Bem, mas é o Bem absoluto, digno de
toda admiração, de toda estima. A alma fiel, esclarecida
163
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
pela fé viva, elevada a Deus pelo impulso vigoroso da es
perança, deleita-se com o pensamento das grandezas in
finitas de Deus, de sua beleza, de seu amor, e encontr.
nesse ser sublime encantos inesgotãveis, que a enlevam. De
seja, então, unir-se de novo a ele, não só pela felicidadl
que lhe advirã dessa união, mas pela necessidade impres
cindível, pela ternura instintiva de seu amor. A este Deu:
tão bom, tão belo, tão encantador, ela deseja todos os bens
alegra-se com a sua felicidade e evita tudo que lhe desa
grada e procura, a todo custo, o que lhe apraz. Não se con
teAta com desejos estéreis, mas procede de acordo com seu:
sentimentos.
Eis o amor verdadeiro, isento de qualquer mescla. Sen
timento tão justo, tão razoável e tão perfeito, rarament«
se encontra só; em geral, une-se a outros, menos elevados
como o temor do castigo, a procura da felicidade eterna
não se tolhem, porém, uns aos outros; cada qual tem se,.
merecimento próprio, se souber conseguir da vontade urn�
determinação sincera de fazer o bem e de evitar o mal.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
a escolher sempre entre as coisas permitidas a mais per
feita, então sua caridade se dilata inteiramente. O com
primento do amor depende da firmeza e da intensidade da
vontade em prosseguir no bem. O amor produzido por
uma vontade fraca e mole não vai longe, e pira diante da
primeira dificuldade; se, ao contrário, provier de uma von
tade enérgica, dominará todos os obstáculos, e sua influ
ência se estenderá a inúmeros atos. A elevação do amor
depende do grau de estima que a alma tem por Deus e
do modo pelo qual essa estima influi nos diversos atos que
ela pratica. Até as almas vulgares compreendem que Deus
seja preferível a todas as criaturas; mas essa estima e o
desejo que têm de não desagradar a um ser tão admirável
exerce sobre elas bastante força para levá-las a renunciar
ao pecado; devem acrescentar ainda motivos do interesse
próprio junto ao temor de incorrer em severos castigos.
As almas já adiantadas, que têm de Deus um conhecimenh>
mais elevado, desejam também evitar o inferno e se preparar
uma eternidade feliz. Evitam, por conseguinte, e a todo custo,
o pecado, mas procuram também dar prazer a Deus e não
ofender a um Deus tão digno de amor. Estão, portanto,
decididas a não pecar. Quanto maior for o conhecimento
de Deus, quanto maior a admiração por Deus, tanto mais
elevado será o amor. Nas almas santas, a quem a fé es
clarecida dá tão belas noções de Deus, o amor atinge uma
altura sublime.
IIL O amor de Deus, modelo do nosso.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
dão-me muitos nomes, nenhum, porém, me agrada mais
nem exprime, melhor que este, o que eu sou em relação a
eles" ( 1 )
Deus Pai, ao contemplar seu Filho, cuja maravilhasa
beleza o encanta, produz como que uma onda infinita de
amor e alegria, e o Filho, ao contemplar a suprema beleza
do Pai, lhe devolve essa onda de amor e alegria, que vai
assim de um a outro, que é única, pois é a mesma vontade,
comum ao Pai e ao Filho, que produz esse amor, e é a
mesma bondade, comum ao Pai e ao Filho, que é amada.
Esse suspiro de amor, essa onda de amor, que é o Espirito
Santo, é, portanto, o vínculo perfeito da Santíssima Trin-
dade. As três pessoas divinas são unidas no amor e pelo
amor; o amor lhes é alimento e vida.
Foi também o amor que decidiu o Senhor a comuni-
car seus bens às criaturas. Por amor, ele criou os anjos e
os homens; por amor, ofereceu-lhes os mais preciosos dons,
e, ainda por amor, santifica e glorifica aqueles que aceitam
esses dons. Em Deus há, pois, um só ato, cujo verdadeiro
nome é amor. O mesmo calor solar que seca e endurece a
argila, amolece também a cera; o mesmo fogo que nos aque-
ce e nos torna apetitosos os alimentos, pode consumir e
destruir ó que possuímos de mais precioso; a causa é uma,
mas os efeitos variam segundo as circunstlncias, ou as
disposições daqueles que lhes sofrem a ação. O amor faz
brotar do coração de Deus como um eflúvio luminoso e abra-
sador que deve produzir a santidade e a beatitude; esse
eflúvio, não encontrando obstáculo no justo, santifica-o e
fá-lo feliz; no pecador arrependido, com boas disposições,
mas com apegos a destruir, gera simultaneamente dor e
alegria; no condenado, porém, diante de sua resisti!ncia te-
naz, produz a tortura, que é tanto mais cruel, quanto mais
viva for a oposição, mais ardente o ódio, mais insolente a
revolta.
Em Deus, que não carece de ninguém, o amor é todo
desinteressado; não deixa, porém, de tender à união, pois
1) Vida da Ven erável Maria da Encarn ação (Ur11.1lin a), pelo
Padre Cbapot, 1• parte, cap. lV.
1'66
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Deus quer unir-nos a ele. O amor que Deus nos tem não é
um amor de simples compaixão, qual o do rico para com
o mendigo, mas de amizade. O amor que nasce da ambi
ção tende também à união, porque quer possuir tudo que
lhe apetece, mas o amor desinteressado, sendo um amor
de amizade, tende à união afetiva; quer fundir-se com o
ente querido, quer partilhar seus sentimentos íntimos, seus
segredos recônditos, seus bens preciosos.
Tal é o amor de Deus para conosco; a nós retribuir
lhe o mesmo amor, que se deve modelar no dele. E' verdade
que, em nós, que temos necessidade de Deus, o amor de am
bição é legítimo, e Deus não deixará de nos aprovar se
nele procuramos a nossa felicidade. Mas quando, esquecidos
.de nós mesmos e vencidos por seus encantos, empolgados
na admiração de seus atributos, tendemos a ele por uma
pL,1,ra afeição, então tal ato de verdadeiro amor lhe é muito
mais agradável.
167
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
intensidade do amor pelos surtos do coração é expor-se a
ilusões certas. A renúncia à própria vontade e a aceitação
amorosa e inteira da vontade divina, manifesta nos mídti
plos acontecimentos da vida, eis a prova do verdadeiro amor.
Se o amor perfeito não pode nascer nem crescer sem o exer
cício da oração e a prática constante do amor afetivo, tão
pouco se pode desenvolver sem as obras, sem a luta ge
nerosa contra os defeitos, e a fidelidade às virtudes cristãs.
V. O amor perfeito.
168
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
se passassem horas inteiras esquecidas de seu Deus? O amor
perfeito supõe, portanto, um amor afetivo intenso e frequen
te; supõe também, como já dissemos, um amor efetivo, ge
neroso, habitual, e, acrescentemos, delicado. Dá provas de
amor vulgar e pouco desinteressado, quem não sabe pres
tar serviços a um amigo sem deixar perceber o que isso lhe
custa. O verdadeiro amor nunca pensa fazer bastante para
o ente amado, desprezando suas fadigas e seus trabalhos;
raramente fala de seus sacrifícios, e, se falar, é para dizer
que é pouca coisa e que está pronto a fazer outros, maiores
ainda.
169
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
veis, contornam a montanhaj outros, cobertos de moitas de
espinhos, são tanto mais rudes e penosos, quanto mais di
retamente levam ao cume. Entre os viajantes há muitos que,
inimigos de fadigas, sobrecarregados de roupas pesadas .e
de bagagens que não queiem abandonar, escolhem os ata
lhos e, entre os atalhos, aqueles cuja inclinação é menor.
Vão a passos contados, caminham muito tempo, elevam-se
regularmente, mas não atingem, depois de longos anos, se
não uma altura medíocre. Ultrapassam todavia aqueles que
se detêm na estrada ou, após uma queda, permanecem co
vardemente por terra. Outros, mais ardentes e intrépidos,
livres de tudo que lhes possa dificultar a marcha, escolhem
os atalhos mais escarpados sem nunca se deter e, quanto
mais sobem, mais consolidam as suas forças. Estes atin
gem ràpidamente a grandes alturas: são os perfeitos. Entre
estes, porém, há alguns que, mais intrépidos ainda e inteira
mente despojados, ultrapassam seus companheiros. Ao atin
girem os altos cimos opera-se neles maravilhosa metamor
fose; sobre os ombros ensanguentados, nascem-lhes asas
que, a principio, os sustentam, e depois, pouco a pouco, se
vão tornando bastante fortes para levantá-los. Então, essas
almas não caminham mais; correm, voam, alcançam alturas
tais que, aos outros viajantes, antes parecem estar no céu
que na terra. São aqueles que chegam ao amor heróico, são
os Santos.
152. E' do progresso do amor que nos cabe falar, as
sunto grave e importante entre todos, cheio de interesse pa
ra os leitores piedosos. Amamos o nosso amor, como já
observamos; por conseguinte, quanto mais se dilata o amor,
mais se quer dilatar. São dignos de lástima aqueles que
se mantêm indiferentes ao seu progresso espiritual; se não
aspiram a amar mais vivamente a Deus, é porque seu amor
C fraco e tíbio. Ouvimo-los afirmar sem pesar que o ardor
de sua mocidade arrefeceu, que suas idéias mudaram; fe
licitam-se de não ser tão ingênuos, de se terem despojado
das ilusões de outrora. São, de fato, dignos de lástima.
Se contemplamos condoídos esses pobres indivíduos, cujo
170
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
crescimento se paralisa pela enfermidade e que, sobre o cor
po pequenino, como o de uma criança, trazem uma ca
beça enorme e sem inteligência, devemos nos compadecer
mais ainda desses monstros espirituais, que paralisaram cm
suas almas o desenvolvimento da caridade divinal, e que se
agradam do seu estado. Ao contrário, quem sentir em seu
coração um desejo sincero de progresso, deve concluir,
embora lhe restem ainda graves defeitos, que já ama a Deus;
e como é Deus quem lhe incute este amor e lhe desperta
este desejo, deve reconhecer que Deus deseja também seu
progresso.
E' de Deus e da própria alma que depende esse pro
gresso, das graças que Deus concede à alma e da fideli
dade com que esta souber corresponder. Podemos reduzir
a três os meios de que dispomos para aumentar a santa vir
tude da caridade: os sacramentos, a prática das virtudes, a
oração. Pelos sacramentos Deus atua mais diretamente
e derrama Ele mesmo a caridade no coração dos fiéis. Pela
prática das virtudes, o amor se firma e se dilata; os obstá
culos que talvez lhe impedissem o surto são destruídos;
a vontade torna-se mais enérgica e capaz de um amor mais
intenso. Pela oração, a alma conhece melhor a Deus, seus
encantos divinos nela produzem vivas impressões. Os afetos
se multiplicam, uma doce familiaridade se estabelece entre
Deus e a alma fiel, e, graças a essas comunicações recí
procas, o amor se torna mais íntimo, mais suave, �ais
ardente.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XIX
Dos Sacramentos
Haaridls 111111111 ln 11oudio dt /anli/J111 .�ol�ot,,r/�.
lburireifi com altitria as f.1un da& lontu do Sa1-
udnr (Is 12. 3).
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
la, se Deus, fazendo-a servir a um tão santo uso, nos en
sinasse que nada do que lhe sai das mãos deve ser des
prezado, que suas mínimas obras trazem, mais ou menos,
impresso o cunho de sua origem e, apesar de suas imperfei
ções, têm grande valor.
E quanto aos homens, noSsos irmãos, que tantas ,•ezes
nos são instrumentos de dor, em vez de desprezá-los como
nos seria talvez natural, saibamos amá-los, venerá-los, es
timá-los, pois Deus escolhe entre eles os ministros de seus
sacramentos, e faz passar por suas mãos benefícios ines
timáveis e torna a efusão de suas graças dependente de sua
vontade, constituindo-os em seus auxiliares e conferindo
lhes uma dignidade sublime.
Esta economia da graça é muito misteriosa. Nosso espí
rito, tão fraco, que não compreende como o corpo material
pode atuar sobre a alma, que é espiritual, compreendera
menos ainda os efeitos sobrenaturais produzidos com o au
xílio da matéria e por que objetos santificados pelas ora
ções da Igreja, tal a água benta, torturam os demônios, ou
a efusão da água batismal apaga a mácula original ( 1 ) ;
não compreenderá, mas se calará, acreditando no poder de
seu Deus, que obtém com vis instrumentos preciosos efeitos,
e adorando a sua bondade, que, pelos sacramentos, quer
enriquecê-lo de tesouros divinos.
173
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
154. Todo cristão sincero admite a eficácia dos sacra
mentos; porém, quanto maior for sua fé, mais viva será sua
estima e Veneração por esses meios de salvação. No sacra
mento é Deus quem opera, Deus, cujo poder é ilimitado
e que opera pondo ao nosso alcance os tesouros adquiridos
pelos méritos de Jesus, de valor infinito. Assim não podemos
compreender tudo quanto encerra um sacramento, nem o
conjunto das graças que pode comunicar às almas santas.
Os anjos e os eleitos se extasiam diante dos sacramentos,
cujas belezas contemplam e cujo valor compreendem tanto
mais quanto mais esclarecidos são pelo brilho da glória.
Do mesmo modo, as almas cristãs fazem dos sacramentos
uma idéia tanto mais elevada e justa, quanto mais ilumina
das são pelas luzes da graça.
155. Quão deplorável é a negligência de tantos cris
tãos pelos sacramentos! Jesus Cristo conquistou-lhes, com
o preço de seus suores e de seu sangue, tesouros inapre
ciáveis. Enquanto o céu vive maravilhado e os bem-aventu
rados não sabem como louvar tamanha generosidade, os
homens, a quem os sacramentos são oferecidos, não querem
deles se aproveitar. Os sacramentos comunicam-nos a gra
ça e, cada vez que os recebemos, cresce a soma de graça
santificante que possuímos, e, com ela, a medida de caridade
habitual, que se mede sempre à graça santificante. Cresce
por conseguinte a felicidade que nos será dado gozar nos
séculos eternos.
Poucas pessoas lembram-se que os sacramentos lhes
são oferecidos para embelezar e dilatar, em proporções in
comparáveis, a felicidade que lhes está reservada. Algumas
só raramente os recebem e se apresentam sem a devida pre
paração; outras são mais assíduas; poucas, porém, se che
gam com as necessárias disposições para tirar grande pro
veito. Embora as comparações sejam sempre aquém da rea
lidade em se tratando de fatos de ordem sobrenatural, re-
corremos entretanto a algumas.
174
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
156. Imaginemos um rio caudaloso, cheio de ouro fun
dido. A gente da ribeira pode sacar à vontade o liquido e
o saca, com efeito, segundo a capacidade dos vasos utiliza
dos. Uns levam às margens do rio uma pequena casca de
noz e o ouro que apanham é precioso e lhes aumenta as
riquezas, mas a maior parte raramente se dá o trabalho de
ir buscar o precioso metal. Alguns, mais assíduos, servem
se de um copo, outros de um cântaro; sua carga é mais pe
sada, mas é também de subido valor. Outros enfim - é
a minoria - mais laboriosos e inteligentes, munem-se de
tonéis enormes, colocados sobre carroças; enchem-nos cada
vez sem receio de fadiga, e multiplicam suas viagens quan
to pcssfvel. Quão g1andes serão os tesouros acumulados de
pois de anos de semelhante labor!
O sol brilha para todos, esparge luz e calor sobre a
terra; ilumina e aquece, igualmente, a cabana do pobre e
o palácio do rico; mas requer livre passagem para seus raios.
As prisões de muros espessos, os castelos medievais, onde
a luz sb penetra por frestas ou trapeiras, permanecem es
curos e frios; as casas de janelas largas, as estufas inteira
mente envidraçadas, tornam-se imediatamente luminosas e
quentes ao brilhar do sol de verão.
E' o espírito de fé, são sobretudo as disposições de
amor, com que nos aproximamos dos sacramentos, que au
mentam, em proporções incalculáveis, o proveito que deles
retiramos. Todos, sejam quais forem suas virtudes, devem
exercitar sua fé quando se ajoelham no tribunal da peni
tência ou se apresentam à sagrada mesa. Aqueles, cuja fé·
ê ainda fraca, não podem, é verdade, chegar-se aos sacramen
tos com luzes preciosas de que gozam em geral as almas
adiantadas, mas podem e devem concentrar a atenção no
mistério que se vai realizar em seu interior; podem e de
vem empregar todos os meios ao seu alcance e recordar,
na medida de sua fé, as razões que os impelem a praticar
dignamente tão santas ações. Se pequeno é o vaso, que se en
cha até ao bordo. Se estreita é a janela, que se abra de par
175
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
em par, a fim de que penetrem, com ampla liberdade, a
luz e o calor do sol divino. Com frequência as janelas da
alma ficam cerradas e só recebem os raios da graça por uma
fresta. Os cristãos mais esclarecidos devem também esfor
çar-se para recolher-se, para abster-se das preocupações ia
feriores, dos pensamentos profanos, para unir-se estreita
mente a Deus na gratidão, na confiança e no amor. Deus
não pede à criança, que se confessa e comunga, os mes
mos sentimentos dos adultos piedosos e instruídos, da re
ligiosa que se vai unir ao Esposo celeste, do sacerdote que
celebra o santo Sacrifício. O inseto que se desaltera no ria
cho não precisa nem pode absorver, para estancar sua sede,
a mesma quantidade de água que o cervo sedento. Mas to
dos devem preparar-se segundo os meios de que dispõem:
então receberão uma graça proporcionada às necessidades
de cada qual; in mensuram 11ni11scujusque membri (Ef 4, 16).
157. Despertar a fé, colocar diante dos olhos a grandeza
do ato a praticar, eis o primeiro dever de quem vai rece
ber um sacramento; mas deve também excitar em seu co
ração sentimentos ele gratidão para com o Deus que lhe ofe
rece, com tanta liberalidade, os tesouros da graça, para com
Jesus que lhe mereceu essa graça por meio de tão rudes
trabalhos e tão horriveis sofrimentos. Não será considerado
crime tomar uma criança lugar à mesa de família sem se
lembrar do quanto os alimentos com que se vai nutrir cus
taram de esforços ao pai e de cuidados à mãe; que pense
às vezes nisto, é um simples dever; que se lembre a cada re
feição, os pais não lho pedem; a comida que lhe é oferecida
não lhe comunicaria maior força por ser mais viva sua gra
tidão. Mas toda a vantagem dos alimentos espirituais re
side nas disposições interiores de quem os recebe; as ai
. mas mais agradecidas são as que tiram maior proveito. À
gratidão, devem unir-se a confiança, o desejo lle receber
graças abundantes cujo valor a fé nos revela, bem como a
esperança de enriquecer a nossa alma, de torná-la mais
agradável a Deus. Então, é o amor que se exerce e o amor
176
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
é a disposição mais eficaz para dilatar o efeito do sacramento
e fazê-lo produzir grandes frutos. Esse amor deve exis
tir no coração, mas será confirmado pelos atos. Quanto
mais o cristão, que se aproxima dos sacramentos, se es
forçar por moldar sua conduta nos seus sentimentos, e maior
prova dar de generosidade e de coragem no sacrifício, mais
forte será a ação divina em sua alma e mais se desenvol
verá o seu amor. Se, por uma admirável retribuição, o amor
torna mais proveitosa a recepção dos sacramentos, o sacra
mento produz por seu lado, em superabundância, um acrés
cimo de amor.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XX
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ser útil ou prejudicial.. Com efeito, ao sentimento de vergonha,
que depois do pecado lhes brota espontâneamente do co
ração, o pecado pode unir outro, de humildade. Encontruá
então a paz no arrependimento, pois a humildade morti
fica, mas não fere. O humilde apraz-se em reconhecer .as
justas humilhações que sofre, gosta de homenagear a ver
dade. Mas a vergonha que não produz a humildade gera efei
tos contrários; o peqtdor envergonhado não encontra prazer
algum na verdade, que o mortifica, e quisera escapar, ocultar
se a si mesmo a sua fealdade, ocultá-la também a Deus e
aos homens. A humildade, porém, produz a simplicidade, a
confiança, a paz. Quando o culpado se entrega à vergonh�.
esta suscita falsas desculpas, mentiras, perturbações, an
gústias. Para evitar sentimentos tão penosos, o pecador,
não podendo negar sua falta, procura esquecê-la, atordoar
se e essa dissipação, que o afasta de Deus, prejudica enor
memente a alma, fá-lo negligenciar os deveres, entregan
do-o, presa fácil, a novos ataques do-tentador. Assim o pecado
gera a vergonha; e a vergonha o pecado.
159. O remédio a esses males Deus o pôs no Sacra
mento da Penitência, onde o orgulho é rebaixado e a humil
dade torna-se um dever inevitável. Em vez de nos ocultar
mos às nossas próprias fraquezas, devemos procurá-las cui
dadosamente e confessá-las sinceramente; em vez de rea
girmos contra a humilhação, e querermos encobrir nossas
faltas com desculpas falazes, devemos expô-las com toda
a sinceridade aos olhos de um de nossos irmãos, homem e
pecador como nós, Deus nos obrigando assim a triunfar
de um dos sentimentos mais profundamente enraizados no
coração humano. Se nos entregarmos, pois, plenamente aos
desígnios divinos e se recebermos com perfeitas disposições
tão grande sacramento, produzirá em nossas almas frutos
admiráveis. Qui se humiliat exaltabitur. "Aquele que se hu
milha será exaltado". As humilhações praticadas de bom
grado no tribunal da penitência serão compensadas ao cên
tuplo pela glória que nos proporcionarão na eterna hem
a-venturança.
179
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Aqueles, ao contrário, que cumpriram imperfeitamenk
com esse dever de humildade e de arrependimento, pouco,
frutos ti_rarão de suas confissões; terão ainda que expiai
o amor próprio, e essa expiação forçada será muito mai�
dolorosa que à. outra, que teriam podido praticar de bom
grado.
160. Havia, na antiga legislação francesa, uma pena in
famante que não consta dos códigos modernos. Certos delito�
eram punidos pela exposição pública. Nos dias de feira,
quando o povo se reunia, os condenados eram expostos so
bre um estrado, chamado pelourinho, e sua falta divulgada
aos transeuntes. A vergonha, à qual não podiam furtar-se,
era para eles um justo castigo e, para as testemunhas, uma
lição salutar. Quando pensamos nas penas da outra vida
e nos representamos os tormentos do purgatório e· as tor
turas do inferno, só consideramos, em geral, as dores pro
venientes das chamas ou a pena causada pela privação de
Deus; mas a justiça divina pune o homem iiegundo pecou
( Sab 11, 17). Quem pecou por orgulho, serã castigado pe
la humilhação. E', portanto, muito provável que quem não
tiver reparado as faltas de vaidade ou de orgulho neste
mundo, seja, no outro, coberto de confusão. "Nada há de
oculto que não deva ser revelado, disse nosso Senhor, nem
de secreto que não deva ser conhecido" (Mt 10, 26). Não
poderá essa manifestação de consciência mesmo no pur
�atório revestir um caráter de castigo e reparar a ofen
sa feita a Deus pelo orgulho? Será o pelourinho dos or
gulhosos, e aqueles que não quiserem humilhar-se aqui co
mo deviam, sofrerão humilhações tremendas. As faltas co
metidas, com seus pormenores mais recônditos e suas cir
cunstâncias agravantes, os baixos motivos que viciaram atos
outrora louvados e aplaudidos, os pensamentos escondidos
com tanto cuidado e que cobririam o homem de confusão
se fossem revelados, Deus tudo pode tornar público. Deus
pode também mostrar todas as graças que foram oferecidas
a certas almas e o abuso que delas fizeram, o bem que
deviam ter praticado, o grau de glória ao qual eram cha-
180
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
madas. Pode ainda tornar conhecidas a outras almas, mais
santas ou já parcialmente purificadas, as faltas e imper
feições que castiga e permitir aos anjos que as censurem aos
culpados. Que descufpa poderão alegar então essas infelizes?
181
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
uma grande purificação. O olhar do Deus infinitamente
santo pode então fitar com complacência essa alma pu
rificada. Deus, a quem a menor mácula ofende, não encon
lrando obstáculos às suas liberalidades, derramará sobre
a alma graças muito mais abundantes.
182
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
queremos consolações naturais, queremos fortalecer o lado
humano. Ora, na medida em que procuramos satisfações
humanas, privamo-nos das vantagens divinas. Mesclam-si!
com frequência, é verdade, considerações espirituais e na
turais e então, se assim podemos dizer, o resultado é misto;
haverá alguns efeitos sobrenaturais, mas serão pouco sen
slveis. Entretanto julgamo-nos reconfortados, animados, por
que aliviamos o coração, fomos sutentados, acolhidos com
bondade, e aprovados. Mas, se tal coragem for só momen
tãnea, se essa suposta força for só superficial, incapaz de
resistir a ligeiras dificuldades, é de recear que nos apoiamos
em sentimentos que não tiveram a fé por principio, nem
Deus por autor.
Quem procura a Deus, encontra a Deus, quaer;te el in
vtnietis. Procuremos, pois, imicamente a Deus; ponhamos
a nu todos os nossos delitos, todas as nossas cobardias; vi
semos antes de tudo reparar nossas muitas faltas, outras tan
tas ofensas à sua bondade, purificar nossas almas e torná
las mais dignas dos olhares divinos. A fé e o amor se dila
tarão em nosso coração, e nossas confissões terão maior
mérito e nos serão mais salutares.
164. O amor tornará sobretudo nosso modo de pro
ceder mais proveitoso. Não é pela tristeza causada pelas
faltas cometidas que devemos julgar dos frutos do sacra
mento, e sim pelo amor que pode, em uma medida maior
ou menor, suscitar a dor na alma. Há almas que se chegam
.:10 sagrado tribunal com sentimentos de profunda mágoa,
mas que antes se afligem com sua própria miséria do que
con1 a ofensa feita a Deus. Tais almas recebem graças in
feriores a outras que, embora mais calmas, têm um amor
mais forte e mais puro.
O am0r deve encontrar-se em germe naqueles mesmos
cuja contrição é imperfeita e que renunciam ao pecado com
medo do castigo. Se a lembrança de Deus não basta para
levá-los à conversão, devem ao menos estimar esse Deus
tli:o bom, tão digno de amor e ter algum desejo de não O
183
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ofender. Se não tiverem esse a1nor incipiente, se o mero
egoísmo inspirar sua resolução, como poderão ser perdoados?
O verdadeiro cristão, porêm, não se contenta com amor
tão rudimentar e procura despertar cm seu coração a con
trição perfeita. Devemos detestar o pecado e propor-nos sin
ceramente evitá-lo, pela só ofensa a Deus, e tal motivo, sem
eliminar outro, de interesse espiritual bem entendido, deve
ser o motivo dominante de nossa contrição. Assim seria ....:....
e abundantes frutos produziria então o do Sacramento de
Penitência - se nos aproximássemos cio sagrado tribunal
com maior desprendimento e mais vivo amor, pensando an
tes em Deus que em nós mesmos.
165. O amor próprio, que corrompe tantas boas obras·,
tantos atos piedosos, acompanha-nos com frequência até 'nesse
ato de humildade e arrependimento, que é a confissão. V.i
mos a ela 1>ara lavar nossa alma cio lodo do pecado; não
devemos, portanto, dissimular-nos a nós mesmos, nem ter
receio de dar a conhecer as nódoas que nos maculam. Não
devemos. todavia. concentrar a atenção nesse espetáculo
desolador ate nos absorver na consideração de nossas misé
rias, deixando de levantar os olhos a Deus. Só devemOs
tocar nessa lama do pecado para fazê-la desaparecer, evitan
do revolvê-la continuamente. pois exala um cheiro nausea
bundo, capaz de sufocar-nos e fazer-nos perder as forças
e coragem. Voltemo-nos, e conosco essa lama repulsiva, para
o sol puríssimo. Exposta a seus raios abrasadores, ficará
seca e purificada. A introspeção ê um dever que nos expõe
a um perigo, por isso o olhar dirigido sobre a alma deve
ser orientado e iluminado por Deus e sempre precedido e
seguido de um olhar de admiração e de amor dirigido sobre
o próprio Deus. Ltkifer contemplou-se a si mesmo, mas co
mo Deus não lhe dirigia o olhar, ele perdeu de vista a Deus,
e sua complacência orgulhosa lhe foi fatal. Judas também
se considerou a si mesmo sem olhar para Deus, e sem que
rer ver a bondade misericordiosa de Deus. Foi um olhar de
desespero, que o perdeu.
184
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
166. Nossos pecados não nos parecerão menos odiosos,
nem menos detestáveis, se os examinarmos ã luz de Deus;
ao contrãrio, teremos uma noção mais clara do mal que nos
causam, dos castigos que merecem, e, principalmente, da in
gratidão e da insolência que encerram. O pecado grave se
para-nos de Deus, coloca-nos no rol de seus inimigos, torna
nos dignos da companhia dos demônios, priva-nos das lu
zes divinas e mergulha nossas almas nas trevas. Tão tris
les efeitos provêm de que o pecado ofende os atributos in
finitos do Altíssimo, desmorona os planos divinos, violando
lhes as santas leis, e tende à negação e à supressão da justiça.
da santidade, da bondade, da sabedoria de Deus. As faltas
vcniais não nos separam de Deus, não levantam uma espessa
muralha entre Deus e alma, mas produzem uma espécie
de nevoeiro, mais ou menos denso, que, sem encobrir in
teiramente a Deus, obsta a sua ação. Se tais faltas visam
destruir-lhe os planos, e alterar-lhe a justiça, a sabedoria
e seus demais atributos, ferem-nos, entretanto, e impedem
parcialmente que esses atributos divinos produzam seus be
néficos efeitos.
Eis o que percebe a alma, abrasada do amor, quando
C!'Jnsidera o pecado em relação a Deus. E quanto mais ar
dente for o seu amor, tanto melhor perceberá a absoluta
oposição que existe entre Deus e o pecado, e a grosseria da
ofensa, a gravidade da injúria, a insensatez e odiosidade da
revolta do pecador. Quanto mais o filho ama o pai e a mãe
tanto mais sensível é ao ultraje que os atinge; e se ele mes
mo, num momento de desvario, faltou ao respeito que lhes
é devido, seu arrependimento será tanto mais profundo quan
to mais viva for a afeição que lhes dedica.
167. A alma amante e esclarecida vê, no pecado, an
les o mal feito a Deus que a si mesma. Deus não pode to
lerar o pecado. Jesus era o Filho bem amado do Pai. Nele
repousavam as complacências do Todo-Poderoso, e nenhuma
palavra humana f? capaz de dar uma idéia da ternura de
Deus Pai para com seu Filho único. Na hora da agonia
Jesus quis apresentar-se ao Pai, carregado de nossas ini-
185
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
quidades, e concentrar em si todos os raios da justiça
divina. O amor de Deus · para com seu Filho pareceu
então estar suspenso e Jesus sentiu a sua alma santa oprimida
pelo peso das vinganças celestes. Tão terrível foi a
impressão causada pela dor da cólera divina que, sem um
milagre, teria sucumbido em Getsêmani: "Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonastes?" clamou ele no Calvário. E'
que Deus tendo colocado sobre os seus ombros o peso de
nossos pecados (Is 53, 6), devia à sua justiça descarregar
seus golpes sobre a santa vitima: Propler scelus populi mei
percussi e11m.
A alma de J�sus ficou triste até à morte, não
sómente à vista dos suplícios que o esperavam, das
ingratidões daqueles que desejava salvar, mas também, e
antes de tudo, â vista da ofensa feita pelo pecado à
majestade e à bondade divina. Seu olhar, mais possante
que o de todos os aej08 e homens reunidos, contemplava,
como ninguém jamais o fará, o respeito, a adoração e o
amor que merece o abismo insondável de perfeições que é
Deus. Contemplava também tudo quanto há de horrível e
de odioso na revolta da criatura contra Deus.
Compreendia o castigo que devia caber a semelhante
desordem e portanto quais seriam os suplícios do inferno
para inúmeras almas, a quem amava e desejava salvar.
Não permaneceu todavia prostrado sob o peso da justiça
divina: S11rgitt eamus, disse a seus discípulos, "levantai-
vos, vamos. pois está próximo aquele que me deve trair".
Tardava-lhe ser batizado no batismo de sangue:
haptismo haheo baptizari, e não podia conter esse desejo, cuja
demora lhe causava verdadeiras angústias, - quomodo
coarctor usq11ed11m perficiall,r (Lc 12, 50), o desejo que tinha
de reparar a ofensa feita ao Pai.
168. Eis o nosso modelo. Se quisermos que nossas
confissões sejam agradáveis a Deus, e nos purifiquem
grande� mente a alma, devemos imitar as disposições de
Jesus, e incutir-nos em nosso coração profundos sentimentos
de respeito � de amor para com Deus. Devemos detestar
nossas faltas, principalmente porque o ofendem e, longe
de permanecermos abatidos sob o peso de nossos pecados, to-
186
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
mar a resolução de· expiá-los e repará-los.
169. A contrição torna-se então um misto de amargor
e doçura, de dor e de paz, que não exclui uma suave alegria..
Madâ.]ena chora aos pés de Jesus. Pensará apenas em si e
�m seus desmandos? Ser.ão suas lágrimas, lágrimas de
vergonha e de abatimento? Ah! ela chora de arrependimento
e de alegria: de arrependimento, porque ofendeu a
Deus; de alegria, porque beija os pés de Jesus; sabe que
o contato com a carne sagrada do Homem-Deus purifica
as manchas de sua carne pecaminosa. Madalena não
pensa mais em sua beleza, não procura realçar-lhe os
encantos com adornos fúteis, não receia deslustrar sua bela
cabeleira enxugando a poeira e o suor presos aos pés de
Jesus. Sua atitude causa surpresa e provoca sussurros.
Ela, todavia, não se impressiona. Embevecida pela
bondade, pela santidade, pelo fulgor suave e forte, mas
todo divino do Mestre, pensa mais nele que em .'ti. Se fita os
olhos em sua miséria, é para lamentar que suas faltas tenham
ofendido o olhar puríssimo de Jesus, mas também para se
regozijar ao pensar que Jesus lhe comu,iicará algo de suas
graças e de suas virtudes, que a cobrirá com seus méritos
e a ornará com seu amor.
170. Quando o amor domina na contrição, as resolu
ções de mudança de vida são mais generosas e a conversãt,
mais completa. Zaqueu quer ver a Jesus. O Salvador, que
lia nos corações e apreciava as boas disposições desse che
fe publicano, foi-lhe carinhosamente ao encontro e pediu
lhe hospitalidade, dando-lhe preferência sobre outros que,
julgando-se mais dignos de tal honra, murmuraram. Z!l-queu
rejubilou-se: suscepit illum gaudens; mas a alegria que lhe
dilatava o coração era uma alegria de amor. E desse amor
que cresceu e logo lhe abrasou a alma, sob a ação de Jesus,
deu uma bela prova quando, no dia seguinte, Jesus o deixou
�m caminho de Jerusalém. "Senhor, disse-lhe Zaqueu, eis
que eu dou a metade de meus bens aos pobres e, se fiz
ma! a alguém, pago-lhe a q�ádruplas vezes".
187
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Muita gente, que recebeu a Jesus em sua casa, não
soube se aproveitar como Zaqueu de sua visita. Mas Zaqueu.
o chefe dos publicanos, o pecador que se enriquecera num
emprego justamente desprezado, entregou-se inteiramente
a Jesus. Em poucas horas conheceu e amou o divino Mestre
e seu amor foi puro e desinteressado, sem mescla de egoís
mo. Dai, esse ato de despojamento heróico que, por si só,
reparava todo o passado.
188
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
E que maravilhas opera nos corações puríssimos, que pro
dígios realiza, por exemplo, nos espíritos angélicos, nas
almas dos Santos, particularmente na alma imaculada de
Afaria! E' que a graça se derrama em profusão nos corações
puros, onde nada a repele, nada a altera, nada lhe diminui
o brilho nem a força, nada lhe impede de invadir os re
cessos da alma. Dimana, pois, ininterrupta, do Coração di
vino, estende-se por toda parte, impregna-se em todas as
faculdades; na memória, enchendo-a de santas recordações,
no espírito, inundando-o de p·reciosas luzes, no coração,
abrasando-o de amor. Mas na alma que conserva resquícios
tio pecado, de faltas não reparadas e que, embora perdoa
das, deixam sinais funestos, Deus só distribui sua graça
com parcimônia.
173. E a alma, não purificada, recebe não sómente cm
menor abundância a graça divina, mas ainda entrava àquela
que lhe é comunicada, pois só aceita em parte seus im
pulsos salutares. A graça opera com delicadeza. A voz de
Deus ressoa com fragor em se tratando de arrancar a alma
ao pecado grave ou dele preservá-la, mas, em se tratando
de precavê-la contra uma falta ligeira - de conseguir dela
um ato mais ,perfeito, ou algum conselho a dar para a con
duta de outrem, ou governo do próximo, a inspiração se
rá discreta, será um convite suave. Se a graça for repelida,
voltará reiteradas vezes para depois se calar. Ora, quan
tas almas cedem de bom grado às inspirações referentes a
certas virtudes, como, por exemplo, à obediência, à regu
laridade, à castidade, à oração vocal, e abafam outras que
exigem maior abnegação, como sejam atos de pobreza, de
humildade, de recolhimento; ou, se aceitarem determinados
sacrifícios, recusarão outros; querem dedicar-se, mas não
se mortificar; consentem em prestar serviços, mas não se
obrigam a velar sobre suas palavras, a julgar com indulgên
cia. Passado algum tempo, continuam a receber graças de
obediência, de oração, não pensam mais, porém, em pra-
1icar os atos de renúncia, de pobreza, de mortificação, de
henevoli!ncia que repeliram outrora. A principio custava-
189
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
lhes recusar certos serviços, mas hoje ficam indiferentes.
Existe nessas almas uma cegueira parcial, por que então
lhes enviaria Deus inspirações que seriam logo abafadas?
A graça, portanto, não opera mais em seu coração com
a força nem a intensidade passadas. Penetra pelas frestas
aferecidas e. estaca diante as barreiras que não cuidaram
de retirar. Tal estado dura, às vezes, uma vida inteira e
quantas almas só serão esclarecidas sobre si mesmas no mo
mento do juízo.!
E quão profundas são as ilusões! Enquanto todos co
nhecerão os defeitos de certas pessoas, estas serão as llnicas
a ignorá-los. Descontentes com os outros, queixando-se a
todo propósito, estão sempre satisfeitas consigo mesmas;.
consideram suas pequenas qualidades, falam, a miudo, de
seus sofrimentos, de sua �esignação, de sua dedicação; sú
levam, às vezes, ao tribunal de penitência, acusações in
significantes; não dizem, por lhes passar despercebido, que
têm mau gênio, que murmuram com frequência, que cri
ticam e condenam com extrema facilidade, que não querem
ser contrariadas. E' a ilusão plena, a cegueira deplorável.
Se qualquer imperfeição voluntária, qualquer resistência
à graça, se, mormente, qualquer pecado obscurece a in
teligência e provoca uma cegueira parcial, tais causas pro
duzem na vontade efeitos igualmente funestos. Se a alma
cristã, impelida a praticar um ato de virtude, se recusar,
sentirá diminuir sua atração por essa virtude e crescer a
inclinação oposta; precisará, então, despender maior es
forço para praticar, no futuro, os mesmos atos que repelira.
até que novas vitórias lhe tenham reparado a covardia e
reslituido, à sua vontade, as boas disposições perdidas.
174. Almas piedosas, que ledes estas linhas, existem.
indiscutivelmente, em vós obstáculos à graça, obstáculos pro
venientes de faltas cometidas, e não reparadas. Pedi sempre
a Deus que vo-los faça conhecer, a fim de mais segura
mente poderdes suprimi-los. Fazei uma generosa penitência
tanto pelas faltas que conheceis, como por aquelas que igno
rais. Só a tal preço recuperareis as luzes que vos foram
l!IO
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
>ferecidas e que não soubestes aproveitar, e dobrareis a
vossa vontade, que, não tendo querido se vergar sob o
impulso da graça, perdeu sua maleabilidade e já não é
tão dócil ao Espírito de Deus.
Quando as provações vos atingirem, recebei-as como
castigos hem merecidos: "Agradeço-vos, meu Deus,
esta ocasião que me dais de expiar as faltas passadas. E' uma
justa punição, para quem tanto vos ofendeu; agradeço-vos
ainda ajudar-me a reparar minhas ingratidões para
convosco e a purificar minha alma, coberta de tantas
manchas". Não vos contenteis; todavia, com as penas
permitidas pela Providência para o vosso bem, mas sede
corajosos e tratai-vos conforme mereceis. Expiai, pela
modéstia da vista, os olhares demasiado curiosos; pelo
si.lêncio, as palavras culpadas; por algumas austeridades, a
moleza e sensualidade do corpo; e, principalmente, pela
abnegação de vossos gostos, pela repressão de vossos
desejos, tantos atos repreensíveis da vontade. Cada noite,
depois de pedirdes perdão das faltas do dia, expiai-as de
algum modo. Se vosso amor for sincero e profundo, a
penitência não vos custará; será até uma necessidade para
vosso coração vingar a Deus e punir-vos de vossas faltas.
Então, vossa alma, que sem isso ficaria cada vez mais
manchada, adquirirá uma grande pureza e quando fordes
implorar perdão ao ministro de Deus, não vos será difícil
despertar em vosso coração sentimentos de verdadeira
contrição e encontrar no sacramento da penitência g(aças
eminentemente preciosas de purificação, de convCrsão e de
amor.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XXI
Da Eucaristia
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ciproca. "Longe dos olhos, longe do coração", diz o pro
vérbio. Mesmo quem deu prova de grande dedicação, receia
que esta seja um tanto esquecida. "As novas preocupações,
as novas relações de meu amigo não lhe permitirão pen
sar cm mim com tanta frequência; não me vendo o semblante
e não me ouvindo a voz, lembrar-se-á ainda de tudo
quanto fui para ele, de tudo quanto fiz por ele? Quero
deixar-lhe um objeto que, sempre sob seus olhos, lhe fale de
mim". Tai deve ter sido o pensamento do meigo
Salvador, na véspera de deixar seus filhos da terra. E'
natural que receasse ser esquecido de nós, pois é só
reinando em nossos orações e penetrando-nos de seus
exemplos que nos faz o bem. Em sua vida toda de amor,
de desprendimento, de pobreza, de zelo, de doçura, de
bondade; em suas palavras tão profundas e seus
ensinamentos tão celestesj cm suas dores, sua Paixão e
sua mortej em sua ressurreição, seu triunfo, sua glória e
seu poder, encontramos as mais salutares lições, os mais
fortes encorajamentos, as mais vivas chamas de amor.
·
Desgraçado de quem perder de vista os benefícios e as virtudes
sublimes de Jesus. Privando-se de tantos auxílios e
desperdiçando suas forças, fatalmente hão de cair cm extrema
fraqueza!
Oh! Jesus não quer ser esquecido, não quer que se percam os
frutos de sua dedicação. Os evangelistas conserva-nos a história
de sua vida, mas isto não nos basta. O Evangelho é feito para
todos e pouco nos impressiona um beneficio em geral. Jesus quis,
pois, deixar uma lembrança pessoal a cada filho e por isso
instituiu a Eucaristia. Ali estará para todos em geral e para cada
qual em particular; ali, os grandes e os pequenos, os sãos e os
doentes, os fortes e os fracos, poderão encontrá-lo e cada um
recebêlo todo inteiro. "Fazei isto em memória de mim". Quando
Jesus ordenou aos Apóstolos que batizassem, que perdoassem os
pecados, criava meios de salvação que, sem dúvida, recordariam
às gerações vindouras sua passagem na terra, nas não disse destes
sacramentos o que disse da Eucaristia: "Fazei isto em memória de
mim". E' que os outros sacramentos lembram algo de Jesus, não
lembram toda a sua vida.
193
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A Eucaristia é o mesmo Jesus. Jesus, que nasceu
em Belêm, que fugiu para o Egito, que, em Nazaré,
conheceu os rudes trabalhos da vida de operário, que
percorreu vastas regiões, ensinando as mais altas
verdades, curando doentes espalhando benefícios; é o
Jesus que foi traído, zombado flagelado, coroado de
espinhos, crucificado por nós; que agora, ressuscitado,
subiu ao céu, partilha o poder supremo do Pae e nos
cumula de graças. Se o cordeiro pascal da Lei Antiga
recordava aos judeus o grande benefício da saída do
Egito, o Cordeiro Pascoal da nova aliança nos 1cmbra
maiores benefícios ainda e de modo muito mais vivo. Na
Eucaristia, o Filho de Deus está como no presépio e
ainda mais aniquilado, desconhecido, que no presépio.
Está imolado como no Calvário e entretanto cheio de
glória, de poder e de bênçãos como na Ascensão.
Eis o que Jesus quis fixar em nossa memória ao
i11stituir a Eucaristia, eis o que não deven1os esquecer
quando nos aproximamos do altar, quando assistimos
ao santo sacrifício, ou quando comungamos. Lembremo-
nos, pois, do humilde Filho de Maria, de Jesus, modelo
de todas as virtudes; de Jesus que, por seus exemplos,
nos prega a humildade, a doçura, a dedicação, o
zelo, o amor divino. A só lembrança dos atos que
praticou, da vida que levou, nos será mais
proveitosa que as mais profundas considerações sobre
as vantagens da virtude. Esta lembrança fará tam-
hém brotar em nossas almas sentimentos de estima, de
admiração, de amor por ele, desejos de imitar seus
exemplol:; e nos será uma ótima preparação para recebê-
lo bem.
PIiho de Deu s na Encarnação e na inslilulção
_IL �:sir�::r1::fa.
177. Tudo que nos leva a conhecer melhor nosso Senhor
nos dispõe a recebê-lo com maiores frutos. Medias vestrun
.detit quem 110s nescitis. "No meio de vós está quem não· co
nheceis", dizia São João aos judeus (Jo 1, 26). Ai de nós
194
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
muitos cristãos sabem que Deus, na verdade, se fez homem
e se digna residir entre eles, mas parecem não o conhecer
ou só de leve. E' precisamente porque o conhecem mal, por
que não compreendem as perfeições, o poder, as disposições
admiráveis do Coração de Jesus, que pouco se aproveitam
de sua presença no· templo e mesmo de sua visita ern seus
corações.
178. E' grande o Verbo de Deus, esplendor de glória,
imagem perfeila da substância do Pai. E' eterno, imenso,
infinito. Este vasto universo, cuja imensidade nos causa ad
miração, C menos que um grão de areia para Ele. Pela vir
tude de sua palavra, sustenta todos os seres; com seu Pai
e como seu Pai, é a Onipotência, a Sabedoria ilimitadas,
é lambém amor, o amor sem fim. Oh! quem jamais poderá
dizer, que_m jamais poderâ compreender o amor do Verbo
eterno por seu Pai! o zelo do Filho de Deus, desde toda a
eternidade, pela glória desse Pai infinitamente digno de
respeito! Regozija-se de poder render-lhe, no seio da Trin
dade, uma glória infinita, mas quer também que, neste mun
do das criaturas, que tudo deve ao Criador, seu Pai receba
uma glória exterior, digna dele. Essa glória, o Deus in
finitamente grande e infinitamente bom a merece tanto pe
la majestade quanto pelos seus inumeráveis benefícios. Ele
espalha exteriormente uma profusão inesgotável de dons, en
riquecendo as criaturas com os mais preciosos bens; é jus
tissimo, portanto, que seja louvado, bendito, adorado, glorifi
cado, agradecido. Assim devia ser, mas, infelizmente, assim
não é. Quão pouca glória, quão pouca gratidão recebe Deus
de suas criaturas! Dá com uma liberalidade sem par e as cria
turas lhe prestam apenas homenagens imperfeitas, produzem
obras insignificantes, falhas, defeituosas, quando desgraçada
mente não correspondem ao seu amor com a revolta e o
pecado.
Esse quadro das ingratidões humanas esteve presente ao
Verbo desde toda a eternidade. E' porque quis vingar a honra
do Pai e reparar as faltas das criaturas, encarregando-se
.195
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ele mesmo dessa obra de reparação. E' porque se fez ho
mem e habitou entre nós.
Encarnando-se, vingou a honra divina, pois pela pri
meira vez Deus receberã homenagens realmente dignas de
le. Deus jã encontrara, é verdade, nas legiões angélicas,
servos fiéis que, sem desfalecimento algum, se submeteram ;l
sua vontade e O amaram com toda a intensidade de amor
de que eram capazes e nisto temos como que uma compen
sação aos pecados dos homens. Não basta, porém, à glória
desse grande Deus, e o Verbo eterno pode fazer muito mais.
As homenagens que prestarã a seu Pai, encarnando-se, se
rão humanas, pois se efetuarão em uma natureza humana,
mas serão homenagens de um valor infinito, porque serão
prestadas por uma Pessoa divina e participarão da dignida
de infinita do Filho de Deus. E assim alcançará o Verbo di
vino o seu fim.
179. Não basta, porém, ainda, ao seu amor. Ele quer
unir as criaturas humanas às homenagens que presta ao
Pai, quer que os homens também glorifiquem a Deus à se
melhança dos anjos seus irmãos primogênitos. Quis mesmo
que, deste mundo terrestre, partisse a mais bela homenagem
jamais prestada a Deus. Para esse fim destinou uma cria
tura sua a uma dignidade que ultrapassa a dignidade de
qualquer outra, a dignidade de Mãe de Deus; dotou-a tam
bém de um poder de glorificação que supera a intensidade
de glorificação de todas as criaturas reunidas. Uniu-a In
timamente a si, fazendo-a participar de sua obra. Subiu en
tão para Deus, do mundo inferior, uma homenagem que lhe
rendeu real glória, e o Senhor fitou com complacência os
olhos naquilo que lhe saíra das mãos. Nunca a criação lhe
parecera tão bela, tão digna de Deus.
180. Assim como a Maria, o Verbo quis associar as ou
tras criaturas à sua obra de glorificação. Quis, por nosso
intermédio, glorificar seu Pai: Se nos fornece tantos meios
de salvação, se fundou a Igreja e instituiu os sacramentos,
e de modo particular a Eucaristia, ocultando-se sob as es
pkies sacramentais, se se dá a nós na comunhão, é, antes
l"!16
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
de tudo, para proporcionar por nós ao Pai homenagens
mais dignas.
A principal homenagem que lhe quer oferecer é o amor
de suas criaturas. Com efeito, nada agrada tanto a Deus,
nada o glorifica tanto quanto o amor. Amá-lo é o grande
mandamento que nos impõe, o primeiro de todos e o resumo
de todos os outros; ele tem um desejo que não podemos
conhecer, tem uma sede ardente de ser amado por nós. Ele
aprecia, em nossas ações, principalmente o amor que as
inspira. Ora, pela Eucaristia, jesus obtém sobretudo o amor;
nela, revela-se o verdadeiro Deus de amor e por isso mes
mo desperta o amor e o dilata.
181. Facilita-lhe também a prática. O amor com efeito
quer dar. A tendência de quem ama ê brindar o amigo e
tanto mais feliz se sente quanto mais preciosas são essas
dádivas. Quem comunga dá-se a jesus, ouve-lhe a voz suave
no mais íntimo do ser. Praebe, fili, cor tuum mihi; "meu filho,
dá-me o teu coração". Mas pode dar mais ainda: pode ofe
recer Jesus a seu Pai. Jesus pertence-lhe, tornou-se a sua
propriedade, pode portanto dar Deus a Deus. Foi o que fez
a Virgem Santíssima quando ofereceu o seu divino Filho ao
Pai celeste, não só no dia da Purificação, não só no Cal
vário, mas imlmeras outras vezes! Foi o que Jesus mes
mo fez, oferecendo-se como vítima ao Pai. Dar Deus a Deus,
homenagem suprema que excede todas as ofertas, todos os
protestos de amor, todas as provas de respeito e de adoração,
homenagem em verdade agradável a Deus, homenagem em
verdade digna de Deus! Essa dádiva sublime, o comungante
não a oferei;:e sem dúvida senão de modo imperfeito; entre
tanto une-a à dádiva tão perfeita de Maria; associa-a â
oferta que Jesus fez, e ainda faz, de si mesmo na Eucaris
tia, cujo prolongamento é e que lhe imprime todo o seu valor.
182. O Filho de Deus, encarnando-se, quis glorificar
o Pai; quis também oferecer ao Pai um meio de contentar
o seu amor, de satisfazer o desejo que tem de distribuir
197
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
seus dons. Tudo que é bom, repetimos, tende a difundir-se."
O Ser infinitamente bom gosta, portanto, de comunicar seus
dons. Deus Pai dá todo o seu Ser ao Filho; o Pai e o
Filho dão-se inteiramente ao Espírito Santo, doação eter
na, infinita, incomunicável a tudo que não é Deus. Mas,
se Deus não se pode dar todo inteiro, exteriormente, apraz
se em fazer-nos participar de suas riquezas, de sua beatitude,
de maneira finita. mas superabundante. Infelizmente as cria
turas prestam-se mal aos desígnios da infinita Bondade.
Apresentam vasos pequenos às mãos benfazejas do Senhor,
obrigando-o assim a conter seus dons. Quando o Verbo di
vino se encarnou, a santa Humanidade de nosso Senhor
se ofereceu ao Pai como um canal eminentemente aPto a
receber-Lhe as liberalidades { 1) e o Pai nelas pôde ex
travasar em profusão sua munificência. Ofereceu-lhe, con
juntamente, sua santissima Mãe, sobre quem as graças de
Deus se derramaram copiosas, sem todavia transbordarem,
qual vaso de capacidade superior a todos os outros juntos.
Assim como os rios desaguam no mar sem lhe inundar as
margens, assim também todas as graças se dirigem a Maria,
e Maria a todas pode receber. Já as recebera mais abun
dantes que todos os anjos e santos reunidos, quando o Vcrbc;
de Deus, indo habitar em seu seio no dia da Anunciação,
aumentou-lhe ainda os tesouros e aperfeiçoou-lhe a san
tidade.
O que iniciara em sua santa Mãe, o Salvador o continua
em nós pela comunhão. Unindo-se às nossas almas, fá-las
111ais aptas a receber os dons divinos; realça a nossa digni
dade, pela sua presença, e nossa capacidade, tornando-nos
mais amantes. Pela comunhão tornamo-nos mais semelhan
tes a ele, mais purns, mais santos, por isso mesmo mais ca-
l) A graça dada. a nosso Senhor, &egundo célebres te6logo11,
fui a graça insuperãvel. P1-obabile cst dlcere, secundum Magls
trum (Petrus LombarduaJ quod. Deus tantam gratlam el coatu-·
Jerit quantum potuit; potult autem conrerre SUMMA.M gratiam
creabilem. Ven. Scotus, 3 d. 13 p. n." 9. Cf. S. Th. 3 p. 7 a. 12
Suarez, De lncarn. Dlsp. 22. Sect. 2. E' certo. ao menos, que Sáo 1oio
a denomina "a plenitude da gra.c;a." (Jo 1, H-16).
198
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
pazcs de sermos divinizados pela graça. Deus Pai pode
então Ontentar plenamente o seu amor, inundando-nos
com seus dons.
199
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
servido, mas para servir". (,luã comovente é o meigo
Salvador, fazendo-se servo dos homem seus irmãos, dos
homens, suas criaturas! Obedece-lhes hu mildemente. Nos
trinta anos de sua vida retirada, obedece a José, a Maria;
no correr de sua vida evangélica, fez-s tudo a todos; não
se pertencendo mais, extenuando-se er busca das ovelhas
desgarradas da casa de Israel, não dei xando de aliviar
miséria alguma e chegando a lavar os pé dos Apóstolos,
para frisar o estado de servidão voluntári. ao qual se quis
reduzir. Nos llltimos dias de sua vida mortai a sua
dependência atinge o auge pela submissão aos seu
mesmos inimigos. Não obedece ele aos algozes, quando o
levam ao suplício, quando lhe colocam a cruz aos ombros
quando o pregam? Pedem-lhe o pé, e ele o apresenta
para que o transpassem; pedem-lhe a mão, e ele a
estende.
185. Jesus é. pois, o servo do Pai, o servo dos homens
seus irmãos, sendo que esta condição deriva daquela, por
quanto foi por nós, propter nos homines et propler
nostram .,alutem, que o Pai o enviou à terra. E tão
humilde papel desempenhou como convinha a um Deus.
Rebaixa-se, mas suas humilhações são vitórias; entrega-se,
mas suas derrotas fazem novas conquistas. Ainda hoje,
unindo os extremos aliando o aparentemente
inconciliável, continua, enquanto rei, a ser servo: servo ele
todos e Senhor do mundo, tal é Jesus.
Pelas suas humilhações, pelos seus trabalhos, "pela
efusão de seu sangue, conquistou a Igreja" (At 20, 28).
Esta lhe pertence e ele se utiliza do domínio adquirido
sobre ela para torná-la "gloriosa, sem mácula, sem ruga,
santa e imaculada" (Ef 5, 27). Fez-se nosso, deu-se a
nós e dá-se-nos ainda. Entregando-se desse modo a suas
criaturas vivifica-as e santifica-as. Como os membros
recebem da cabeça força, movimento e vida, recebemos
nós de Jesus cujos membros místicos somos, força
sobrenatural e vida da graça; como os ramos recebem do
cepo a seiva que 0s frutifica, recebemos, por ele, a seiva
misteriosa qu<" nos santifica e diviniza.
200
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
186. E, sem dúvida, é Deus mesmo e não a humani
dade santa de Jesus, que nos difunde a graça; mas a que
titulo a recebemos, quem nos habilitou a recebê-la? quem
cobriu nossa indignidade com seus méritos? Foi Jesus. So
mos os remidos de Jesus, pertencemos-lhe plenamente: dabo
tibi gentes hereditatem tuam. "Somos aos olhos de Deus
Pai como que um prolongamento de seu Filho; participan
tes da dignidade daquele que é nosso chefe, aptos,· por esta
razão, a receber os dons divinos. A alma de Jesus foi en
riquecida plenamente com esses dons divinos, e a graça que
recebemos C como que uma participação de sua plenitude;
"de plenitudine ejus omnes nos accepimus" (Jo t, 16).
Jesus não nos mereceu sómente a graça. Do alto do
céu vela ainda sobre nós. Sua alma santa conhece todas
as nossas necessidades e o seu Coração nos tem um amor
ardente e deseja intensamente o nosso bem. "Sempre vivo,
sempre pronto a interceder por nós" (Heb 7, 2�). O nosso
"advogado" celeste nos obtém, pelos rogos de sua santíssi
ma humanidade, aquilo que nos dá, como Deus. Mostra a
seu Pai suas chagas gloriosas enquanto pela sua intercessão
onipotente nos alcança· todos os beneficias que nos são
dispensados. E' "Mediador" (Heh 9, 15) de fato, entre
Deus e nós, é sempre e verdadeiramente sacerdote, pois, cm
hora não renove o sacriflcio cruento do Calvário, continua
a aplicar-nos os seus frutos.
Só isto? Jesus é sômente nosso Redentor, nosso advoga
do? Não continuará ele, que passou pela terra fazendo o
hem, a espalhar do alto do céu seus benefícios? Se nossos
anjos da guarda nos iluminam, nos dirigem e nos protegem
com tanto zelo, quem dirá com que solicitude nosso Senhor se
desempenha dos mesmos cuidados? Só nos será dado a co
nhecer, no dia cm que tudo nos for revelado, tudo quanto
lhe devemos, de santos entusiasmos e inspirações que nos
comunicou, perigai; de que nos preservou, favores que nos
concedeu.
Então Lhe testemunharemos nossa gratidão por toda a
eternidade.
201
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
187. Ora, assim como está no céu, está também no al
tar. E' o mesmo Jesus glorioso e humilde, nosso rei e nossu
servo, que se dá a nós na Eucaristia. "Ele está à des�ra
da Majestade de Deus, no mais alto dos céus" (Heb I, 3),
e põe-se à nossa disposição, qual servo dócil. Que significa:
"Está à destra da Majestade de Deus?" A destra do prin
cipe, entronado, é o lugar de honra, reservado à mais alta
aµtoridade presente e a mais chegada ao poder soberano.
Enquanto Jesus rccehc, no céu, as homenagens devidas à
sua dignidade e continua a cumprir a missão de sacerdote
e de mediador, que lhe foi confiada, aniquila-se na hóstia,
obedece às suas criaturas, aos seus padres a quem confere
o poder de manejá-lo à vontade, de colocá-lo onde quise
rem, de levá-lo aonde desejarem, de guardá-lo prisioneiro
no tabernáculo ou expô-lo sobre um trono luminoso, de im
por-lhe na santa missa as intenções pelas quais se oferecerá
ao Pai. Põe-se à disposição dos fiéis. Se quiserem enriquecer
a alma pela recepção de seu divino corpo, Jesus se en
tregará; se quiserem que seu sacrifício sirva às suas necessida
des individuais ou ao alívio daqueles que sofrem, Jesus se
oferecerá por eles. lnefãwl mist�rio de aniquilamento e d.:
amor!
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPiTULO XXII
Da Comunhão
Q•il mand1u-al meam car11em d llibil meum :stm•
1111lnem, ln me tnalltf, tt ego ln Ulo.
,\quelt que comt a minha carne t hcb� o n1cu
sangue rcrmanec� cm Mim e F.u nele (ln ti, 57) .
204
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
isto só será possível se houver uma certa afinidade de
vistas, uma certa analogia de gostos, de outro modo os
laços serão frouxos e essa união não dará bons
resultados. Havendo semelhança e simpatia, os associados
exercerão boa influência um sobre o outro; chegarão a
compartilhar das mesmas idéias, dos mesmos sentimentos,
a fazer os mesmos planos, a formar um só coração e uma
só alma.
Na união íntima que se opera entre Deus e vôs na mesa
sagrada, Deus, o Ser imutável e infinito, nada pode
receber; só pode dar. Vem, pois, comunicar-vos suas luzes
para fazer-vos partilhar de seus sentimentos, para
transformar-vos nele. Só realizará, porém, este plano de
misericória de acorda com a vossa boa vontade. A
Eucaristia é, antes, um alimento que um remédio. Os
alimentos não cortam a febre, não expulsam os humores,
mas mantêm e desenvolvem a saúde. E' no Sacramento de
Penitência, nos atos de contrição e nas obras expiatórias que
encontramos o remédio para nossos pecados. Outro é o fim da
Eucaristia; alimenta, sustenta, fortifica e desenvolve �s
qualidades que encontra na alma, aumentando-lhe a fé, a
esperança e o amor. E quanto mais essas virtudes estiverem
implantadas na alma, tanto mais a Eucaristia lhes dará
impulso e vida.
190. Quantos obstáculos põem à ação de Jesus-Hóstia os
comungantes que se apresentam cheios de sentimentos opostos
aos seus! Pode o fogo unir-se ao gelo, a calma à tempestade, o
dia à noite?
Jesus é a própria humildade. Esta bela virtude, da qual
deu e dá na Eucaristia tão comovedores exemplos, ele a quer
cultivar e fazer frutificar naqueles a quem visita. Ora, que
encontra neles com frequência? Sentimentos de amor próprio,
que não querem confessar. Escutai tal pessoa contando as
ligeiras humilhações que sofreu, e que seu orgulho ora
exagera. Desejará ela, porventura, lutar contra as revoltas do
amor próprio e receber de Jesus força para reprimi-las? Se
assim fosse, a comunhão lhe seria mais proveitosa. Não! "Não
me deixarei tratar assim, diz ela; não suportarei taes injustiças
205
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
sem reclamar; meus iguais não são atenciosos para
comigo, meus superiores não me mostram bondade; mas
saberei vencê-los pela força". Ou então é movida pela s<l
vaidade; sua grande preocupação é alcançar êxito,
estima, aplauso, glória humana. E eis que tal pessoa vai
comungar. Que poderá fazer Jesus nessa alma, o Jesus
manso e humilde de coração, que não procurou sua
glória que não desviou o rosto ao ser esbofeteado e
coberto de escarros? Dar-lhe-á as virtudes que ela não
quer, enchê-laá de sentimentos divinos quando ela está
carregada de sentimentos humanos, - senão diahólicos -
que quer conservar?
Tal outra não é dedicada; n_ão se quer molestar,
não consente em sacrificar seus caprichos para dar
prazer o prestar algum serviço penoso; ou então, se
por vezes o prestar, fá-los pagar caro pelas suas
palavras que estão sempre a ofender a caridade; julga
tudo com severidade, difama, critica sem se preocupar com
a reputação do próximo. Quão mal se sentirá Jesus, que
tanto amou os homens, nesse coração sem amor!
Outra alma ainda é muito apegada à vontade
prõpria. Quer que todos lhe cedam, que aprovem tudo quanto
faz, que lhe venham ao encontro dos desejos. Demasiado
confiante em sua própria inteligência, quer impor sempre
sua opinião. Não se agrada senão daquilo que ela mesma
faz. Ante uma contestação ou uma qualquer
contrariedade, enxaspera-se, irrita-se. Enquanto não
procurar ciJrrigir-se, enquanto não praticar renúncia,
como poderá esperar associar-se àquele que disse: "Não
desci do céu â. terra para fazer minha vontade'� (jo 6, 38).
Eis agora pm cristão que prefere o prazer ao
dever; sua grande preocupação é passar agradàvelmente
os anos de sua vida; procura passatempos alegres;
consagra-se ao jogo horas inteiras; dedica semanas
seguidas a viagens de puro recreio. Como poderá aquele,
de quem o Espírito Santo disse: Chrislus non sibi
plac11it: "O Cristo não procurou o seu prazer" (Rom 15,
3), apreciar-lhe a companhia?
206
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
191. Os defeitos, não reconhecidos nem desaprovados
são qual muro de bronze, a interceptar a graça; se forem
muito numerosos, a graça divina se comprime poi todos os
Ilidos e as comunhões, embora frequentes, não produzirão
grandes frutos. Os defeitos dêbilmente combatidos são qual
cerca alta e espessa, que não deixa passar, senão por fres
tas, os raios benéficos da graça. Toda reserva no dom de
si mesmo a Deus, todo apego deliberado à vontade ou à
opinião prõpria ou a qualquer hábito menos perfeito, toda
busca deliberada das comodidades da vida, todo sentimento
não reprimido de amargor contra o próximo, embora não
impeça o sacramento de fazer bem, prejudica a efusão abun
dante da graça.
E tais outros comungantes que, sem ter defeitos no
táveis, vivem na dissipação, quando sua vocação, a posição
que ocupam e as funções que exercem, exigem deles uma
vida verdadeiramente interior? Tais almas não se recolhem,
rezam pouco e sem fervor, deixam-se invadir por preocupa
ções humanas, absorver por negócios todo materiais. Quando
o doce Salvador se chega a elas com as riquezas que lhes
destina, pouco se ocupam delej entregues aos cuidados ha
bituais, pouco ou nada lhe pedem, patentea�do um fraco
amor, consagrando-lhe dificilmente alguns instant�s de ação
de graças. Não podem, portanto, receber senão parcos dons,
e Jesus, que viera com as mãos cheias, deverá levar de volta
ao céu, ou oferecer a outras almas, a quase totalidade de
seus tesouros.
192. Seja outra a vossa conduta, cristãos que ides a
jesus. Preparai-lhe uma mansão digna, em primeiro lugar
afastando os sentimentos que lhe desagradam e praticando
as virtudes que constituem a beleza de seu divino Coração.
Esta preparação remota, tão importante, facilita a pre
paração imediata, de recolhimento e de oração. Depois,
quando o possuirdes, adorai o vosso Deus, humilhai o vosso
nada em sua presença, uni vossos sentimentos aos dele. O
Salvador, ao descer em vós, procura logo a glória do Pai,
a quem dirige o seu primeiro olhar. Desse novo altar, que
207
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
é o vosso coração, apraz-se em oferecer a Deus suas ho
menagens, convidando-vos a unir-vos a ele. Que o nome
de Deus seja santificado, que venha a nós o seu reino, que
sua vontade seja feita, eis o primeiro pedido de Jesus. Se
ja esta também a vossa primeira oração, feita em união
com ele. Em tão solene momento, do Coração de Jesus,
a pulsar em vosso peito, .erguem-se a Deus atos de amor
que o glorificam mais do que todos aqueles que por ventura
praticastes ou vierdes um dia a praticar. Deus é adorado,
amado, bendito, louvado e agradecido, por um Deus, no
mais íntimo de vosso ser. Não permaneçais frios e indiferen-
1es a ato tão sublime, mas alegrai-vos e participai dele
•> quanto possível. Aqueles que se recusam a cumprir com
o dever da comunhão e, por conseguinte, a servir de ins
lrumento, ou antes de altar a Jesus, têm certamente culpa,
mas aqueles que, ao comungarem, não se associam aos
sentimentos de Jesus são também dignos de censura.
193. Será mister, então, esquecer as nossas necessida
des e não aproveitar ela vinda de Jesus em nós para lhe
expor nossas misérias e solicitar-lhe suas graças? Não, por
certo; mas a alma apaixonada de amor não começa por ai;
a tal chegará, sem dí1vida, pois seu amor leva-a a querer
tornar-se mais pura para melhor servi-lo e amã-lo. Não
pensará todavia em si como a alma imperfeita, que, cheia
de si mesma, deseja sair-se bem em seus empreendimentos,
evitar os reveses humilhantes, satisfazer os caprichos da
natureza, aproveitando-se da visita de Jesus em seu coração
para fazer-lhe, desde logo, inúmeros pedidos pessoais. Tal
vez esteja sendo provada, e entrega-se à tristeza; ou tal
vez se sinta desolada com as feridas feitas ao seu amor
próprio, ou as oposições à sua vontade; ou ainda
causa-Ihe angústia a idéia de males que a ameaçam. Só
vê em tudo suas aflições. Como sofro, como sou
desgraçada! está sempre a repetir, ou então: meu Deus,
poupai-me, consolaime! Quer conformar Deus a si em
vez de se conformar a Deus. Convém aconsélhar a tal alma
que pense mais nos interesses e na glória de Deus e menos
nos seus próprios interesses; que patenteie maior amor ao
208
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Deus que vem a ela por amor, ao Deus que, por ela, não
mediu sacrifício algum nem regaleou o menor sofrimento.
O eamlnllo - 14 209
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
forços generosos e perseverantes souberam adquirir virtu
des e sentimentos que, embora ainda fracos, são porém se
melhantes às suas virtudes e aos seus sentimentos. Que
bons amigos se mostram para o meigo Salvador! Jesus en
contra neles perfeita harmonia de gostos. Os mesmos de
sejos que lhe vibraram o Coração, desejos da glória do Pai
e da salvação das almas, são também os únicos desejos des
ses cristãos fiéis. As tristezas que lhes causam a ingratidão
dos homens para com Deus e as desgraças qÍ.te ameaçam
os pecadores são as que arrancavam lágrimas a Jesus. Nes
sas almas Jesus vê a mesma indiferença pelas alegrias pu
ramente humanas, pelos prazeres mundanosj o Coração de
Jesus e o coração desses fiéis batem uníssonos. E como se
compraz ele na companhia desses amigos, quão estreita é
a união que se estabelece entre ambos, que riquezas espiri
tuais derrama nessas boas almas!
196. O Espírito Santo ilumina-as e as abrasa, nelas
produzindo efeitos análogos aos que opera na alma justa de
pois da morte. A alma, desprendida dos erros, das idéias
baixas que a penetravam na terra, elevada acima das névoas
terrenas, recebe vivas luzes que a esclarecem sobre a gran
deza e a santidade de Deus e sobre a sua própriá miséria.
Sua vontade, libertada de todo desejo natural, de todo ape
go imperfeito, só aspira a destruir os restos do pecado e a
fazer reinar a Deus em seu interior. Tal a atuação do Es
pírito Santo nessa alma; e, como ela corresponde cabalmen
te à sua ação, a operação divina se exerce de modo admi
rável, embora não alcance de chofre, parece-nos, a plenitude
de seus efeitos, agindo antes progressivamente. O escla
recimento e o ardor dessa alma tornam-se mais completos
à medida que se vai purificando, pelo menos, nada mais im
pedindo a ação do Espírito Santo, e a alma faz contínuos
e maravilhosos progressos no conhecimento e no amor, pro
gressos que s<l cessarão quando a alma inteiramente puri
ficada puder exercer seu amor sem empecilhos, segundo o
grau de merecimento que atingira ao morrer.
210
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Espírito Santo atua em verdade, de modo diverso:
na alma do comungante, aumentando-lhe a graça habitual:
entretanto sua ação não deixa de ter certa analogia com
a que exerce sobre a alma do purgatório. Cada comunhão,
feita com as devidas disposições, ilumina e santifica, em prc
porções admiráveis, as almas que pertencem inteiramente
a Deus. Percebem, cada vez melhor, o que Deus é e o que
elas mesmas são, o que Deus pode e o que elas podem,
o que Deus quer e o que quer sua natureza viciada. O tu
do de Deus e o nada da criatura, o poder divino e a fraqueza
humana, a santidade de Deus e a perversidade da natureza
são quais abismos em que podemos sempre mergulhar o
olhar sem nunca atingir o fundo. Ao mesmo tempo, e tal
vez melhor ainda, percebemos o amor de tudo quanto &
bom e justo e santo. O amor de Deus, bondade e santidade
por essência, é sobretudo suscetível de um desenvolvimento
indefinido. Tal a operação do Espírito Santo na alma do
comungante; torna a este mais esclarecido e mais ardente,
não afastando pouco a pouco, como à alma do purgatório.
os obstáculos que lhe tolhem a fé e o amor, mas desenvol
vendo-lhe a faculdade de crer e de amar.
197. Qual é pois a potência espiritual da alma sanla
que comunga com frequência? Os demais cristãos nem se
quer a suspeitam e ela mesma a ignora, tanto o mundo es
piritual foge ao entendimento humano. Podemos possuir em
grau supereminente, em medida sempre crescente, as . vir
tudes sobrenaturais sem termos consciência dos progressos
admiráveis que nelas fizemos. Tal cristão, por exemplo, -
permitam-nos exprimir com algarismos o que não tem nem
quantidade nem medida - tal cristão é hoje cem vezes,
mil vezes mais rico em fé, em esperança, em amor, em hu
mildade, em abnegação, em caridade do que hã um ano
atrás. Estas virtudes, já então bem desenvolvidas, continua
ram a crescer, embora isto lhe passasse despercebido. Como
tais virtudes se encontram na parte superior da alma, onde
NADA SENTIMOS, é-lhe impossível avaliar-lhes a profun
deza e a intensidade. Muito mais fácil lhe será verificar os
211
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
defeitos, pois continuam na parte inferior e sensivel. Em
bora reprovados pela vontade, firmemente apegada às vir
tudes contrárias, tais defeitos podem exercer grandes vio
lências.
Se podemos ter apenas uma idéia vaga do grau de Vir
tudes que alcançamos, como havemos de aquilatar os méri
tos acumulados, o esplendor sobrenatural da alma, incompa
ràvelmente mais vivo?
E' um mundo maravilhoso que a fé nos entreabre, mas
que sõ havemos de conhecer quando a luz da glória iluminar
as nossas almas. Veremos então os frutos produzidos pela
comunhão nas almas puras, e como cada visita do divino
Salvador a seus fiéis amigos foi-lhes uma fonte de graças
profusas e abundantes.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XXII!
Das virtudes
l'llloll, non dilltam"� ,·,·rim nr,,ur lin11,.,,. u,1
nptr<' ·r1 �erltalr .
•\leus lillll11l1os. nio a111cmo� d� palt.-ras 11�m
de linitua, n,111 por obras e fn1 nrd�dc (1 Jo3. ll'J.
198. E' pelas suas obras que Deus nos prova o seu
amor; é também pelas nossas obras que lhe devemos pro
var o nosso amor. Nossas obras têm ainda a vantagem de
tornar nosso amor mais firme e mais enérgico. Deus, que
nos quer levar à caridade perfeita, nos impele, portanto, à
prática das virtudes, querendo assim dar às nossas almas
forças sempre novas e adornos variados e encantadores.
Uma força e um adorno, eis o que é a virtude; engran
dece a alma e a embeleza; torna-a digna do respeito dos
homens que, frequentemente, quando a paixão não os cega,
se afeiçoam à alma virtuosa, ou, pelo menos, estimam-na.
Mas como a virtude encanta o coração de Deus! Ele vê, na
virtude, aquilo que escapa aos nossos olhos, isto é, uma força
sob►enatllral e, por conseguinte, bastante poderosa para re
pelir todos os assaltos dos demônios e todas as perseguições
dos homens, para dominar todas as inclinações viciosas e,
mesmo, para fazer as paixões vencidas servir à glória de
Deus. Considera também a virtude como um magnífico ador
no e, como cada virtude tem seu esplendor peculiar, a alma
que pratica muitas virtudes oferece. aos olhos do Altíssimo
um espetáculo maravilhoso.
199. Mas agrada principalmente ao coração ele Deus
ver a alma, ornada de virtudes sobrenaturais, apresentar-se
213
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
a seus olhos como a imagem de seu divino filho. Jesus é
o modelo dado ao mundo e as virtudes mais heróicas dos
Santos são apenas uma reprodução das virtudes de Jesus,
reprodução encantadora, na verdade, porem imperfeita e mui
to aquém cio nosso modelo. Mais ainda, essas virtudes so
hrenaturais devem sua existência aos méritos do Verbo
encarnado.
Assim nossas virtudes são para Deus como que o per
hlme de seu Filho. Ide, disse um dia um rei a seus pajens,
ide às minhas estufas a fim de impregnar-vos do suave aro
ma das flores que meu filho cultiva para mim. E voltai de
pois para junto de mim, quando estiverdes bem penetrados
dos diversos aromas; tu, do perfume da rosa; tu, do perfume
da violeta; tu, do perfume do bálsamo; e, quando me cer
cardes, o cheiro de todos esses aromas formando um só será
tanto mais delicioso quanto o deverei ao meu Filho bem
amado.
200. Que valem, porém, estas comparações, e como po
dem palavras humanas descrever os brilhos das virtudes
sobrenaturais, e demonstrar-lhes o valor? O sobrenatural C
uma participação da natureza divina. A beleza que estas
virtudes imprimem às nossas almas C portanto uma beleza
toda celeste, uma participação do esplendor divino. Só mes
mo os ml!ritos, de valor infinito, do Homem-Deus poderiam
obter-nos tais virtudes junto à faculdade de lhes praticar
os atos!
Deus nelas se compraz. O menor ato de virtude, feito,
pois, com espírito de fé, por uma alma em estado de graça,
é digno de suas infinitas complacências, e isso explica que
um copo de água dado em seu nome nos merece uma re-
compensa eterna.
201. Que prova de amor dá, pois, a Deus aquele que
lrata de 11raticar as virtudes! Deus se alegrará se eu for
suave, humilde, caridoso, paciente. E que felicidade para
mim poder fazer algo de tão agradável a Deus! A virtude
praticada espontâneamente já é bela; será, porém, mais
hela ainda, mais agradável a Deus, se for inspirada pela
214
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
car-idade. A alma que se mantém pura pelo horror que tem
ao vício, ou pela estima sobrenatural que tem à pureza,
pratica ato meritório; aquela, porém, que guarda castidade
para agradar a Deus, faz melhor ainda, pratica um atü
genuíno de amor, dilata-o ainda e dá passo adiante no ca
minho do perfeito amor. E serão tanto mais rápidos seus
progressos quanto mais pura for a intenção e quanto mais
a busca da virtude não nascer do intrínseco valor da mesma,
mas visar ünicamente agradar a Deus. Quão mais completo
será então o êxito de seus esforços! Quando a virtude descansa
nas cinzas do vicio; quando o amor venceu as mais fogosas
paixões, quando as tendências más, sempre contrariadas,
se esgotarem; quando os inimigos encarniçados da alma,
sempre repelidos, se cobrirem de opróbrio; quando as san-
1as disposições para o bem se firmarem e se desenvolverem,
que belo espetáculo serã para os olhos de Deus! A graça
que Jesus mereceu triunfou; Jesus obteve que um reflexo
de sua beleza sublime apagasse a fealdade dessa alma, trans
Hgurando-a. Do vício exterminado restam simples despojos
que lhe recordam a ruína; as nódoas, porém, se apagaram
e desses despojos eleva-se urna coluna, trazendo esta lumino
sa inscrição: Jesus venceu.
Todo ato de virtude glorifica, pois, a Jesus, glorifica
a Deus. Foi a graça adquirida por Jesus, a preço de todos
os labores, que conquistou a vitória; foi a graça dada por
Deus mesmo, a graça, que é obra Unicamente de Deus, a
graça, participação de Deus, que suscita e desenvolve a vir
tude na alma fiel. Assim, no céu, onde tudo é luz e verdade,
no:.sas 11irlt1des glorificarão mt1ito mais a Deus que a nós
mesmos.
201. bis. As nossas virtudes o glorificarão tanto mais
quanto mais frequentes e mais perfeitas tiverem sido. O
espírito do homem não pode conceber, aqui na terra, as pro
fundezas de virtude que se lhe abrem. São João da Cruz fala
das imensas cavernas da alma. Com efeito, podemos trazer
em nós mesmos abismos de iniquidade ou abismos de virtude.
Tal pessoa vaidosa, encantada consigo mesma, que não cui-
215
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
da de se emendar, indagará dezenas de vezes por dia,
durante os sessenta ou oitenta anos, que lhe foi dado vi
ver, do que dizem ou pensam dela. E cada nova falta a
mergulhará mais avante em sua vaidade. Dá-se o mesmo
com o sensual, o impudico, o ambicio�o, o avarento. E
essa pobre gente nem sequer percebe o abismo de seus
defeitos! Por vezes, obstáculos providenciais, tal a pre
ocupação da própria honra, ou, melhor ainda, uns restos
de virtudes os impedirão de se entregar cabalmente aos
seus defeitos, que não podem então produzir em suas almas
efeitos proporcionados à sua intensidade. Tais defeitos, po
rém, não deixam de ter uma profundeza: assustadora, e
imensa será a surpresa dessas almas quando, logo depois
da morte, se virem lé is quais são.
Ao contrário, a a.ma mui generosa possui abismos de
virtudes que nem ela nem ninguém neste mundo suspeita.
Então cada ato de humildade, de paciência, de doçura, de
caridade, de zelo, de pureza, de amor divino dilata-lhe ainda
as virtudes e as aumenta segundo a intensidade, a firmeza
e a pureza desses mesmos atos. Que grau terão alcançado
essas virtudes sobrenaturais, após longos anos de fidelidade,
de provações santamente suportadas, de lutas e de vitórias?
Que proporção terão atingido? Nos séculos sem fim que
se seguirão a esses poucos dias de prova, os eleitos conser
varão suas virtudes na medida em que as tiverem adquirido,
e gozarão das doçuras inefáveis que estas lhes proporcio
narão, e de acordo com seus méritos. Que felicidade para
eles! Que alegria e que triunfo para Jesus, que lhes me
receu alcançar tais virtudes! Que glória para Deus, cuja
bondade, sabedoria, poder, santidade souberam produzir tão
belas obras.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XXIV
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
dade de gostos e aptidões distribuindo, devidamente, por
esse meio, as funções sodais segundo as necessidades
tão diversas da humanidacle. A essa variadade de
atrações na ordem natural, corresponde outra, não menos
admirã.vel, de inclinações e aptidões sobrenaturais. Deus
não pede a todos que sobressaiam na mesma virtude;
cada vocação tem suas exigências cada situação impõe
deveres próprios. Daí uma variedade maravilhosa, pois
cada virtude, diversamente praticada, imprime à alma
cristã um aspecto próprio. As plantas de toda espécie,
as flores de cores variadas, dispostas com arte, num
jardim, oferecem um quadro encantador. lncom-
paràvelmente mais belo se nos apresentaria o mundo
das almas se nos fosse dado vê-lo. Entretanto, na terra,
é um simples esboço do espetáculo, mil vezes mais belo,
que contemplaremos no céu, onde brilhará aos nossos
olhos, e com indizível encanto, essa multidão de almas
que, no mune!o já formam tão harmonioso conjunto. Nada
lhes deslustrará o esplendor; irradiarão umas nas outras,
destacando, reciprocamcnte, a beleza de cada qual. Entre elas
reinará uma Ordem perfeita, uma unidade completa, numa
admirável multiplicidade.
204. Saibamos, pois, apreciar nossos deveres de estado. Que
consolo para o menor artífice poder dizer: excrcendo
minha rude profissão, torno-me o executor das vontades
divinas, realizo o plano eterno, glorifico a meu Deus
neste mundo da forma pela qual quer ser glorificado
por mim; preparo-me para ocupar no céu o lugar que me é
destinado e render a Deus, durante toda a eternidade, a
glória que espera de mim. Meus duros trabalhos
equivalem portanto a um cântico cm honra da Divindade.
Enquanto meu corpo se inclina sobre os instrumentos,
meus olhos considcram atentamente os objetos que devo
trabalhar, enquanto meus braços se cansam e minhas
mãos se agitam, o meu espírito calcula, toma medidas,
delineia seus planos, entâo todo o meu ser vos obedece,
meu Deus, tudo cm mim ,·os pertence, todas as minhas
forças se despendem por vôs, toda a minha natureza vos
218
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
entoa um hino de louvor. Tais não seriam os sentimentos
com que trabalhavam cm Nazaré os membros da sagrada fa-
•milia, José, Maria e Jesus? Coubesse-nos o mais humilde
dos papéis aqui na terra, conformidade à vontade de
Deus torná-lo-ia verdadeiramente nobre. Destinando-nos
esse papel, Deus praticou com0 sempre um ato
de sabedoria e de bondade. Os operários que
fabricam brinquedos deviam considerar-se felizes por
poderem se associar à obra divina que consiste em
espalhar a alegria entre os homens, em lhes
proporcionar prazeres honestos e satisfações legítimas.
Outros, cujo trabalho está preso à constrnção das casas
onde vivemos ou do preparo dos alimentos que nos
sustentam, ou das roupas que n0s vestem, estão
associados à obra benfazeja ele Deus e .são os
auxiliares daquele que abre "a mão e cobre de bênçãos
todo ser vivente", que zela pela nossa morada, pela nossa
roupa e pela nossa comida. Outros são escolhidos para
prestar a seus irmãos serviços de ordem mais elevada; para
esclarecer-lhes o espirito, alimentar-lhes as almas com o pão
da verdade e dirigi-la no caminho da salvação. Cabe a Deus
designar a cada qual o seu papel, e cabe a nós o ac�itar
amorosamente aquele que a Providência nos confiou. A espiga
de trigo cresce, alheia ao seu destino, sem saber se servirá de
sustento aos pássaros, de alimento aos homens, ou de
substância ao sacrifício eucarístico, nem mostra a menor
preferência. Assim também o homem deve mostrar-se dócil à
vontade divina, mantendo-se em uma santa indiferença.
E' de joelhos que todo cristão deveria receber, cada
manhã, as ordens cio seu Deus: Eis-me aqui, Senhor,
que quereis vós de mim? que tarefa me impondes para
hoje? Bater a bigorna, cavar sulcos, levar vida
contemplativa, ensinar, estou pronto para tudo quanto
me pedirdes. Vossa vontade é a única norma da minha vida;
é, como dizia Jesus, o meu único alimento: meus cibus est ut
faciam voluntatem ejus qui misit me, alimento saboroso,
substancial, fortificante; alimento que é o próprio Deus, pois
não é a vontade divina Deus? E nutri-se dessa vontade não é
219
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
nutrir-se de Deus, unir-se a Deus, transformar-se em Deus?
205. Se nossos deveres de estado se nos
apresentam como a manifestação da vontade divina
infinitamente respeitável, devemos cumpri-los com
religioso desvelo. Outras ocupações nos hão de solicitar
que, mais atraentes e não necessàriamente frívolas,
podem ter sua utilidade; mas se lhes sacrificarmos
embora parcialmente os nossos deveres de estado,
tornam-se nocivas. Serão ainda mais nocivas se nada
omitindo de essencial cm nossos deveres de estado
todavia deles nos desempenharmos com negligência ou
se os fizermos com pressa e como que de mau grado.
Quem oferecesse a um amigo como penhor de seu afeto um
objeto não direi sujo ou repulsivo, mas empanado 01,1
quebrado se mostraria pouco delicado; se oferecesse esse
triste prcsente a um superior e benfeitor, passaria por ser
pouco respeitoso. Como então deve Deus julgar aqueles
que cumprem mal com os seus deveres de estado, que
os cumprem com negligência e preguiça?
Nossa cobardia no cumprimento dos deveres de
estado f'rovém, em geral, de querermos gozar as vantagens
de nossa vocação, sem lhe suportar os encargos, ou, pelo
menos procurarmos diminuir, tanto quanto passivei, as
dificuldades inerentes. Esquecemo-nos de que nunca
cumpriremos oom os deveres de estado se não
estivermos imbuídos do espírito de sacrifício. Deus, que
colocou em nossas alma uma forte inclinação para o
estado que abraçamos e nele nos faz encontrar gosto
e prazer, deixou, porém, o espinho sob a rosa, para
que o dever, sendo penoso, nos fosse um meio
de santificação. E os desígnios de Deus se realizam
nos corações generosos; os deveres de estado, sejam
quais forem, santificam as almas de boa vontade. Não
existem Santos em todas as condições de vida? Com
efeito em todas as profissões há numerosas ocasiões de
sofrimen10 e de sacrificio. Uma alma, por conseguinte,
fiel e corajosa, que se desempenhe com invencí-
vel amor de todos o seus deveres, se elevarã até
a perfeição.
220
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
206. E', portanto, o amor, não o gênero ele vida, que
torna a alma perfeita, que faz heróis e Santos. Aqueles
que passam a vida no exercício da oração e da penitência,
escolheram, por certo, a melhor parte e dispõem de piedosos
auxílios para a santificação. Mas o lavrador que, durante
o verão abrasador, suporta o peso do dia e do calor e
que, durante o inverno, se expõe às rudes intempéries da
estação, ou o operário, condenado por vezes a tão duros la
bores, podem também elevar-se ao heroísmo; podem mes
mo, se estiverem cheios de amor, apresentar a Deus ofe
rendas mais agradáveis, holocaustos mais perfeitos, que os
religiosos contemplativos, não bastante desapegados de si
mesmos.
Marta foi censurada por Jesus, não pelo que fazia,
mas pelo ardor demasiado humano com que o fazia. Devia
agir só por amor, ciosa dos alimentos que iam ter a honra
insigne de nutrir o Homem-Deus, ele se tornarem na carne
sagrada destinada a resgatar o mundo, ciosa também dos
humildes utensílios que iam servir à sua refeição. Cada passo
que dava, cada gota de suor que lhe caía da fronte deviam
ser-lhe um novo ato de amor, um testemunho radioso de
sua dedicação. Estivesse ela toda penetrada de amor, e não
teria sequer cogitado do abandono em que a deixava Maria;
feliz em trabalhar pelo Mestre, alegrando-se por não re
partir com outrem o prazer de servi-lo. Se tivesse recebido
de joelhos, pela manhã, as ordens de Deus, compreenderia
que ele mesmo a encarregara de prover ao festim, de dar
comida a seu Filho, teria então aceito esse encargo com
reconhecimento, tê-lo-ia cumprido com calma. E o divino
Mestre, ao receber de suas mãos os alimentos preparados
com tanto carinho, lhes teria saboreado o perfume sobre
natural, recompensando o corajosa dona de casa com um
aumento de fé e de caridade. A continuação, porém, da nar
rativa evangélica mostra bem que Maria tinha maior amor;
foi ela, e não sua irmã, quem acompanhou Jesus ao Calvã
rio e procurou ansiosamente, depois da ressurreição, o cor
po de Mestre. E' porque foi a Madalena e não a Marta,
221
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
que o Senhor se dignou aparecer em primeiro lugar,
antes mesmo de se mostrar aos Apóstolos.
O coração amante não considera a obra imposta,
mas aquele que a impõe. Pouco importam os trabalhos
que Ihe são determinados, dirá, basta-me que sejam
para o meu Bem-amado. Demais, deseja aquele que C
todo amor outra coisa senão o meu bem? Ao seu amor
responderei com o meu. Se me couberem árduas tarefas,
tanto melhor lhe provarei quanto eu o amo. Se meu corpo se
vergar pelo cansaço se minha alma for entregue a
sofrimentos íntimos, por vezes tão vivos e tão dilacerante�,
pouco importa. Se de minha fronte correr o suor e se eu
me ferir e perder sangue, pedirei a Jesus que misture
essas gotas às gotas de seu próprio suor e do seu
próprio sangue, a fim de comunicar à minhas penas algo
da eficácia de seus trabalhos e de seu sofrimentos.
222
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
concedido a criatura alguma. Se milhares de vezes, no
céu e a terra, espíritos angélicos e filhos dos homens
se proclamaram servos submissos do Senhor, prontos a
executar-lhe as ordens: ecce ancilla Domini, fiai mihi
secundam verbum tuum; nunca, porém, nenhum desses
protestos teve a maravilhosa eficácia do protesto de
Maria, porque nenhum fora jamais pronunciado com tanto
amor! E isto prova que, perante Deus, o valor do ato está
na medida de amor que encerra e nunca �ríatura alguma
agiu com éllllOr tão pnro e tão forte como Maria!
223
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
tle Jesus, que lhe resumem toda a vida, devem também
cunhar a vida de cada um de nós. Na união, constante da von
tade humana com a vontade divina está a perfeição da ca
ridade; devemos tender a este fim seja qual for o nosso
estado. Fazer o que Deus quer, como o quer, porque o quer.
Deus quer que nos desempenhemos dos deveres de estado
sem negligência; não quer, porém, que os pratiquemos lc�
vados pelo ardor natural, nem pela paixão. Quer que só é
ele nos entreguemos completamente, e que nos prcstemot
apenas a tudo quanto não for ele. Se não dedicarmos ao:
exercícios piedosos e à oração uma boa parte do nossc
tempo, não nos será possível fugir à dissipação, nem con
servar a lembrança habitual de Deus na união afetiva con
o Bem-Amado, como bem o demonstra a experiência de
inúmeros cristãos, que sacrificam sem receio a vida interior
à vida puramente exterior. Ai de nós! Os poucos frutos
que essas almas colhem, a ausência manifesta das virtudes
perfeitas, provam que não segu�m o verdadeiro caminho.
Tal caminho é aquele que trilharam os Santos e todas as
almas que se· deixaram guiar pelo Espírito de Deus. E' o
caminho em que a oração e a ação se mesclam sem se pre
judicarem, em que há o trabalho para Deus e o repouso
com Deus e em Deus.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
procura os inconvenientes que dela poderiam advir, feliz
de poder desculpar sua inação; a consciência talvez lhe
diga que o partido escolhido não é o melhor, mas ela se
lranquiliza, alegando que não é reprovável. Acabai de
uma vez com esses artifícios da vontade, prometendo a
nosso Senhor, ao recebê-lo na sagrada comunhão, que
sempre, entre dois atos licitos, escolhereis, não aquele que
mais vos grada, mas aquele que sabeis ser mais agradável
a Deus; que vos aplicareis cm todas as coisas a fazer
aquilo que os parecer o mais perfeito. Por que hesitar, alma
fervorosa, em tomar semelhante resolução? Prevedes nu-
merosos sacrifícios, penosas privações? Devereis con-
trariar de continuo vossos gostos, dominar vossas
repugnâncias? E' vcrdade. Deus, porém, não vos basta?
Desejais outra coisa neste mundo senão o prazer d·e lhe
ser agradável? Dando-lhe essa prova de amor, imolando
constantemente vossa vontade para cumprir mais
perfeitamente com a sua, não adotais, mesmo cm relação
aos vossos interesses, o partido mais prudente? não
trabalhais tanto para a vossa felicidade como para a glória
de Deus?
225
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XXV
Da humildade
Omnes invincem humilitatem insinuate quia
Deus superbis resistit humilibus autem dat gratiam.
Insinuai todos, uns aos outros. a humildade;
porque Deus resiste aos soberbos e dá a graça aos
humildes (1 Pd 5, 5)
226
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
sua capacidade, revestem nessas criaturas, como a água no
vaso, a forma peculiar ao seu estado e se tornam a humilda-
de.
Deus é Verdade. Na Santíssima Trindade, cada Pessoa
preenche a função que lhe é própria, sem usurpar as das
outras duas, e rende a essas outras duas Pessoas toda a
glória a que têm direito. No ser humano, para recorrer a
uma comparação grosseira, cada órgão - o cérebro que
pensa, a língua que fala, o coração que comunica a todo o
corpo calor e vida, - cumprem o seu papel, e exercem um
sobre o outro uma mútua influência, sem todavia invadir as
funções próprias a cada qual. O cérebro pensa a palavra
que a língua exprime; o coração recebe o influxo do cérebro
e devolve, ao cérebro e à língua, força e movimento. Entre
estes três úrgãos reina, portanto, uma completa harmonia,
e, se cada um fosse inteligente, invejaria o papel do outro.
Quão mais perfeita e mais maravilhosa é a harmonia que rei
na entre as três Pessoas divinas: o Pai, contemplando-se.
produz o seu Verbo. Estas duas Pessoas divinas, não se.
podendo ver sem se amar, produzem um Amor substancial
e vivo, que é o Espírito Santo. O Filho de Deus, assim
engendrado do Pai, recebendo dele todas as suas perfeições,
unido a ele pelo Amor vivo que é o Espírito Santo,
devolvelhe tudo quanto dele recebe. Reconhece-o como
seu Pai, e assim o proclama an1orosamente, glorificando-o
segundo merece ser glorificado, infinitamente feliz de ser
Filho, infinitamente feliz de ter um tal Pai. O que
dizemos do Filho é igualmente verdade do Pai,
infinitamente feliz de ter um tal Filho e prestando a esse
Filho hem-amado toda a veneração e glória que e!e
merece. E' ainda verdade dil Espirita Santo, que recebe
do Pai e do Filho tudo quanto possui, feliz de proceder
de um e de outro, e devolvendo ao Pai e ao Filho a
glória infinita que deles recebe. Tal é a vida divina,
sempre ativa, sempre feliz, vida em que tudo é verdade e
perfeita harmonia, vida em que cada uma das três Pessoas
divinas recebe a homenagem que merece, e rende às
outras duas a glória que lhes é devida.
22i
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
212. Esse sentimento de justiça e de verdade, cm vir
tude do qual rendemos a Deus o que lhe é devido, e nc,s
alegramos por ocupar o lugar que nos compete a nós, cs�c
sentimento que, em Deus, é infinitamente perfeito, transfe
rido à criatura, produz a humildade. A criatura, com efeito,
se quiser ser justa e leal, deve reconhecer que Deus é ludo
e. que ela é nada; que tocla a força, toda a virtude, toda
a beleza, toda a bondade provêm de Deus, e que, por si mes
ma, não é senão fraqueza e miséria, ou antes é o próprio na
da. A criatura, se quiser ser justa e sincera, não pode des
conhecer as grandezas de Deus, e, aproximando instintiva
mente sua própria pequenez dessas grandezas infinitas, se
rã levada a se rebaixar e aniquilar-se. Há de ver que Deus
l• santo, e ela, pecadora; que Deus é justo e benfazejo.
e ela, injustiça e egoísmo; que Deus é paz e misericórdia
e ela, ira e maldade; que Deus é a própria Verdade, e ela
é mentira e duplicidade. E tal contraste a impressionará tan
to mais quanto mais for esclarecida, e, quanto melhor conhecer
a Deus, tanto melhor se conhecerá a si mesma. Se, ao con
trário, ela se entregar à complacência própria, enamorando
se e ocupando-se demasiadamente de si, prova que só tem
um conhecimento muito imperfeito de Deus.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Verbo í.: feliz desde toda a eternidade por glorificar
ao Pai no seio da Trindade, )],tas esse ni.esmo ardor, que
levou Deus a comunicar seus bens exteriormente, e derramá
los pela criação em um mundo inferior, impeliu o Verbo
divino a glorificar o seu Pai exteriormente, de maneira digna
dele. Procurou, então, no mundo criado, como que um taber
náculo onde pudesse aprisionar-se, reparar as ofensas fei
tas ao Pai e render-lhe glória em nome de todas as criaturas.
Foi o Pai eterno, de quem o Verbo recebe todo o seu ser
e todas as suas perfeições, quem lhe comunicou esse pen
samento e esse desejo de aniquilamento; o Espírito de amor
vivificou esse desejo, aceito pelo Verbo com infinita ale
gria. E não constituiu esSa aceitação de tamanha e tão
incomparável humilhação o mais admirável alo de humil-
dade que se possa conceber?
O que aumentava ainda a grandeza dessa humilhação
é que, no estado que ele aceitou, o Verbo incarnado, as
sumindo uma natureza finita", sabia que não poderia honrar
adequadamente o seu Pai. Os atos de adoração, de sub
missão, de amor, operados pela alma humana de nosso Se
nhor, revestem-se, é verdade, de uma diginidade e de um
valor infinitos, porque pertencem a uma Pessoa divina; não
deixam, todavia, em si, de ser limitados e nunca pod1.'in
igualar a grandeza sem limites de Deus que glorificam. O
Verbo não pode, em sua natureza humana, ostentar todos
os seus atributos, nem exercer os atos sublimes que exerce no
seio da Trindade. Ter ele consentido em se colocar nesse
estado de incapacidade relativa, deve penetrar-nos de ad
miração. E' aí que o aniquilamento, de que nos fala São
Paulo, parece mais admirável. E' ai que Jesus é o modelo
acabado da humildade.
214. O Verbo, fazendo-se carne, praticou, pois, um
ato sublime de humildade, inaugurando assim sua vida ter
!"CStre. E soube acabá-la como a começara. Sua vida foi uma
série ininterrupta de atos desta bela virtude. Ele viveu no
aniquilamento contínuo de tudo quanto alimenta o orgulho
229
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
humano: atividade natural, honras, reputação e estima dos
homens.
A atividade natural é, com ef"eito e frequentemente, o
pu11to de apoio do amor próprio. Comprazemo-nos cm nosso
juizo, em ·nossa penetração de espirita, em nossa energia
cm prol do bem, felizes de fazer sobressair essas quali
dades da natureza. !3ntão a graça, prejudicac;la pela ati
vidade natural, produz atos menos puros e de menor valor.
Demais, aqueles que assim procedem são menos fiéis em
render a Deus a gll1ria que lhe deve advir de todas as nossas
obras. Essa atividade natural nunca se exerceu em nosso
Senhor. A natureza deixou livrS! campo à graça para rea
lizar suas obras enquanto a vontade humana de Jesus foi
plenamente submissa à vontade divina, nunca a preceden
do, nunca dela se afastando, nunca lhe mesclando nada
de puramente natural, mas recebendo da graça todo o im
pulso, seguindo, em tudo, esse influxo sobrenatural, a ela se
conformando inteiramente. Não que o livre arbítrio nele fosse
sufocado, nem mesmo comprimido, mas se exerceu aceitan
do o bel prazer de seu Pai. Longe de agir de encontro
ou fora do impulso sobrenatural operado em sua ahna
pelo Espírito Santo, ele o aceitou com amor e submeteu
lhe a sua vontade natural. O grito que lançou tão espon
tâneamente em Getsêmani: non mea volunta., sed lua fiai,
"Seja feita a vossa vontade e não a minha", é o resumo de
toda a sua vida.
Se ele renunciou constantemente a essa atividade na
tural, de que os homens tanto se ufanam, renunciou, com
heroísmo não menor, à estima, ã consideração, à reputação
de que os homens se mostram tão ciosos. As circunstâncias
tão humilhantes de seu nascimento em Belém, a fuga para
o Egito, a vida escondida em Nazaré, as ignomíniás e os
opróbrios de Getsêmani, do pretório, do Calvário, -. basta
relembrar esses fatos - revelam a sede de rebaixamento,
ele aniquilamento que o consumia, e o quanto ansia-va hu
milhar-se para exaltar o Pai.
230
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
III. Pratica da humildade.
215. Já conhecemos o modelo acabado de humildade. Foi con-
siderado esse modelo divino tão digno de admiração e
de amor, que os Santos compreenderam todo o valor da
humildade, se aplicaram em reproduzir, na sua própria
vida, esses mistérios de aniquilamento que os encantavam
na vida do Salvador. Vendo rebaixar-se tão profundamente
o Homem-Deus, cujas grandezas e dignidade sobrehumana
podiam avaliar melhor que ninguém, julgavam nunca poder
descer eles bastante baixo. Habituados a contemplar,
através da luz resplandecente que lhes era comunicada, a
infinita beleza, a infinita santidade, a infinita majestade
do Verbo divino, encantados com suas grandezas e suas
amabilidades, e não podendo depois, por uma espécie de
revolta do coração, fitar os olhos na sua própria miséria, que a
mesma luz da graça lhes revelava em toda a sua fealdade, que
não deviam eles pensar ao se verem quiçá estimados, louvados e
glorificados, enquanto seu Jesus permanecia tão humilhado?
Assim se explicam as palavras de desprezo para consigo mesmo,
que às vezes taxamos de exagero, e o desdém, o ódio dos
louvores humanos, junto às santas loucuras de humildade
que se encontram em sua vida.
· 2 16. Cristãos que ledes estas linhas, talvez não te-
nhais ainda recebido de Deus essa luz preciosa e
superior da graça, que Unicamente comunica a verdadeira
humildade. Nem a podeis conseguir pelos vossos
próprios esforços, mas podeis obtê-la do céu. Pedi
constanteménte essa luz a Deus, fazei-lhe violência, para
que vo-la conceda e que essa oração seja ardente e de
uma invencível perseverança. Pedindo a humildade, pedis
uma fortuna espiritual que vale be.m longos anos de
sl1plica. Depois, tanto para provar a sinceridade do vosso
desejo como para vos dispor a receber tamanha graça,
praticai o quanto depende de vós esta grau
de virtude. Fazei-vos pequenos aos vossos próprios olhos,
compenetrai-vos do vosso nada, de vossos pecados e colocai
sempre vossa pequenez em face da grandeza infinita de Deus:
23-1
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
"Mergulha em minha grandeza, dizia nosso Senhor a
Santa Margarida Maria, e cuida em nunca dela afastar".
De nós mesmos, nada somos: "Aquele que julga se
alguma coisa, diz o Apóstolo, engana-se a si mesmo" (Gl
6, 3). Fomos criados do nada; durante toda uma
eternidade não existimos; se tivéssemos permanecido no
nada, nenhuma falta faria ao mundo. E só conservamos
este nosso ser emprestado, graças à ação contínua de Deus;
se ele deixasse de nos sustentar, ou nos abandonasse a
nós mesmos um instante sequer, voltaríamos ao nada
como a luz que desaparece quando a chama se apaga;
somos míseros sercs sempre a pisar sobre o nada!
Somos incapazes de coisa alguma por nós mesmos
"Sem mim, nada podeis fazer", disse o Senhor (Jo 15, 5)
Não poderiamas mexer um dedinho sem o auxílio
divino. Nenhuma palavra nos sairia dos lábios, nenhum
pensarnento se nos apresentaria ao espírito, nenhum
desejo ao coração, nenhuma resolução â vontade e, com
maior razão ainda, seriamos incapazes de praticar
qualquer ato sobrenatural: "Ninguém pode dizer:
Senhor Jesus, senão pc\o Espírito Santo" ( 1 Cor 12, 3).
Mesmo com o auxílio de Deus, quão fracos
somos. Impelidos para o hem, ficamos imóveis, ou, se
aceitamos a princípio o impulso da graça, um nada hasta
para deter-nos, para desanimar-nos; um fantasma de nossa
imaginação: um temor quimérico, um mau conselho, uma
sugestão diah6lica, um motivo desarrazoado
paralisam-nos; C preciso que Deus nos inste novamente,
nos multiplique suas graças redobre de cuidados.
Fraqueza, torpor, incapacidade, eis o que somos!
217. E que dizer de nossas faltas, de nossa ingrati-
dão para com o maior dos benfeitores, de nossa
insoU!ncia para com nosso soberano Mestre? Ele no•las
perdoou, mas devemos, por isso, deixar de nos humilhar?
Além do mais ficam•nos as marcas dos pecados que s6
se apagarão à medida que fizermos penitência, neste mundo
232
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ou no outro. E' verdade que, se considerarmos os dons
sobrenaturais que ornam as nossas almas, podemos dizer
que somos belos de uma beleza toda divina e que Deus põe
em nós suas complacências; mas essa beleza, que perdura
enquanto não perdemos a graça santificante, nõs a
deslustraremos; o ouro continua inalterado, mas nós o
cobrimos de lodo.
Quando uma criancinha apanha a tinha de leite não
perde o carinho da mãe, que continua a llcscobrir nela as
graças infantis e se compraz em contemplar os olhos meigos e
brilhantes do doentinho, seus membros delicados, seus
gestos graciosos, enquanto lamenta ver a crosta horrível
que lhe desfigura o pequenino rosto. Tal a imagem da nossa
alma, com uma diferença, contra nós, de que a criança
e inocente da enfermidade que a enfeia, enquanto nós nos
cobrimos a alma com as crostas do pecado. Deus, na ver
dade, ainda nos ama com um amor infinito, mas esses ves
tígios do pecado lhe desagradam e lhe causam horror.
São, além do mais, um obstáculo às suas graças. Que
seria hoje de nós se não tivéssemos, pelos nossos pecados,
contrariado em parte os desígnios da misericórdia de Deus
a nosso respeito? Que grau de amor jã feriamos atingido, e
quanto hem teríamos espalhado em torno de nós?
Tais pensamentos nos devem ser familiares. Se
nossas reflexões não bastam para nos dar a luz plena de
que carecemos para ser verdadeiramente humildes, são ao
menos necessárias para nos comunicar os seus
rudimentos e nos preparar a receber de Deus uma humildade
mais perfeita.
218. Devemos acrescentar que Deus só nos concederá
essa humildade perfeita se nós procurarmos praticar os atos
próprios desta virtude? Todo ato de humildade sincera
obtém logo de Deus uma graça que o llilata. Ama nesciri,
diz a Imitação, et pro nihilo reputari, gostai de ser des
conhecido, esquecido, tido em conta de nada; evitai tudo
quanto lisonjeia o amor próprio; regozijai-vos quando vos
puderdes fazer bem pequeninos, vos esconder aos olhos
dos homens ou vos entregar a ocupações humilhantes. Con-
233
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
siderai como uma grande fortuna poder, por vezes, ceder
os vossos direitos, obedecer, sem queixas, a exigências in
justas, pagar a descortesia com a doçura e a gentileza.
Sede sempre simples, reto, sem rodeios, sem prevenções,
agindo em tudo segundo a verdade. Oh! que ótimo modo
.de praticar a humildade, e como é. raro!
''.Nada me alegra mais que saber que meus filh.os ca
minh.am na verdade", dizia o Apóstolo São João (3 Jo 4).
Caminhar na verdade é permanecer firme na verdadeira
doutrina, mas é também ser sincero cm toda a conduta, é
não se iludir a si mesmo, nem aos outros, alegando belos
pretextos, para disfarçar intuitos orgulhosos ou egoístas.
Sede humildes, nunca visando em vosso proceder o
olhar dos homens. De onde provêm as preocupações, os
cuidados de muitas pessoas piedosas? De onde esse receio
de não proceder bem que as persegue e lhes prejudica o
recolhimento? Temem as críticas, as censuras. Se procuras
sem Unicamente agradar a Deus, sem cogitar da opinião
alheia, não perderiam a ·p,az e a união com Deus.
Não temais as humilhações; são indispensáveis para
conduzir as almas à· humildade, e a Providência certamente
não vo-las negará se, de todo o coração, quiserdes vos tor
nar humildes. As humilhações são favores insignes, benefí
cios altamente salutares. Se a natureza se revolta, se a parte
inferior estremece, a parte superior, onde reina a fé, deve
alegrar-se. Sem elas jamais seríeis verdadeiramente humil
des; mas elas vos tornam semelhantes a Jesus e sois tra..
tado como ele o foi; por elas, podeis expiar vossos pecados,
obter grandes graças, adquirir preciosos méritos. Seria, pois,
pura ingratidão não testemunhardes a Deus o vosso vivo reco
nhecimento pelas humilhações.
234
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
1 Santa · Margarida Maria, tanto mais a minha grandeza
se baixa para te encontrar". E ainda falando de Santa Ger
trudes: "Não posso de maneira alguma deixar de acom
panhar aquela que, por tão fortes atrações de humildade,
levou consigo meu divino Coração".
A humildade C irmã mais velha da dor: nasceu no pró
prio seio de Deus e é maior, mais bela, mais necessária
que a dor. Existiria sem o pecado; os anjos em sua prova
:;ão não sofreram, mas se humilharam. Subsiste no céu, onde
os eleitos, que não sofrem, são mais humildes que nunca.
220. E' o alicerce sobre o qual descansam as outras
virtudes; pois quem deseja levar uma vida virtuosa deve,
antes de tudo, firmar-se na verdade, isto é, dar a Deus o
lugar que lhe compete e colocar-se a si mesmo naquele que
lhe pertence, para então praticar atos agradáveis a Deus.
Os feitos mais admiráveis de virtude e · as obras mais no
táveis aos olhos dos homens desagradam ao Senhor, se
o coração que os produz não tiver humildade.
As outras virtudes destroem, um a um, os obstãculos
que tolhem o reino de Deus na alma, e conduzem esta, pas
so a passo, ao conhecimento de Deus e de si mesma. Mas
a humildade, quando sincera e perfeita, destrói com um só
golpe todos os obstãculos, dando à criatura humana uma
visão clara de seu nada junto a um sentimento profundo de
sua incapacidade. Será levada então a renunciar a tudo
quanto procede dela mesma, e� por conseguinte, a todos os
seus defeitos. Deus está na alma humilde como no céu,
pois, ali, tudo lhe é submisso; mas se retira, ou ao menos
opera com menos vigor, quando a criatura procura agir
por si mesma e se compraz em suas próprias forças. E',
pois, a humildade que mantém a alma unida a Deus e
lhe permite exercer todas as virtudes.
A humildade produz a paciência. Quem C realmente
humilde acha justo que todas as provações recaiam sobre
de. Julga-se indigno de consolação e, quanto mais as tem,
mais se rebaixa; mais se julga digno de castigos e pemm
sempre merecer tribulações superiores às que Deus lhe man-
235
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
da. feliz, aliás, por assemelhar-se desse modo a Jesus,
não pode querer mal àqueles que, mesmo por
tratamentos injustos, ou repreensões imerecidas, ou vis
calúnias, lhe pro porcionem essa felicidade.
Daí provém a paz imperturbável dos humildes e
que irradiam cm torno deles. Que podem recear se as
humilhações e as tribulações não os perturbam? Vemo-los
sempre tranquilos e calmos e, ao mesmo tempo, suaves
e enérgicos Deles nos aproximamos com confiança,
pedindo-lhes, de bom grado, auxílio e conselho, estímulo
e consolo.
221. Os humildes são fortes contra o inferno. Os
demônios cheios de orgulho, cientes de que o Senhor
recobre os humildes com urna proteção especial,
detestam-nos mas temem-nos. Já foram tantas vezes
repelidos, vencidos por eles e não sabem, aliás, como·
lhes fazer mal, certos de que suas armadilhas serão
descobertas de antemão e seu ataques rebatidos.
Os verdadeiros humildes permanecem fàcilmente unidos a
Deus. Aniquilando continuamente a ação da natureza e
afastando tudo quanto se opõe à ação divina, recebem, sem
interrupção, graças mui elevadas, que lhes permitem pensar em
Deus com frequência e produzir atos de amor ardente. Sua vida
é como que prelúdio do céu, onde os eleitos, vendo a descoberto
a ação poderosa que Deus exerce sobre eles,
comunicando-lhes inteligência, amor, felicidade e vida
não podem comprazer-se em si mesmos e se unem a
Deus num ato ininterrupto de contemplação, de reconl1e•
cimento e de caridade.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CA PITULO XXVI
Da obediência
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
outros - e segundo a visão de Daniel (Dan 7, 10) são
estes os mais numerosos - que ficam em presença do
Altí�simo, ocupado Unicamente em prestar-lhe
homenagens. Com que amor executa cada qual aquilo
que o Senhor lhe pede! Como fulge então a harmonia
perfeita do céu e como transparece a sabedoria divina que
estabeleceu uma ordem tão admirável!
Diária e repetidamente, pedimos que a vontade de Deus
se faça na terra como no céu. Se tal pedido fosse
sempre ardente e sincero, se soubéssemos sobretudo
cumprir fielmente com nossos deveres para com o
próximo, se afastáss;emos, na medida do passivei, tudo
que fosse apto a perturbar a ordem determinada por
Deus, a sociedade humana seria mais parecida com a
sociedade angélica, a terra seria uma imagem mais fiel
do céu.
223. A nossa primeira obrigação social é de
deixar que nossos irmãos cumpram seus deveres sem os
suplantar, os estorvar, sem lhes dificultar a tar�fa com
julzos malévalos e críticas acerbas. A prudência popular
manda que ninguém se ocupe daquilo que não lhe diz
respeito; mas quantas vezes aqueles mesmos que
proclamam em altas vozes este principio, ciosos -de vê-lo
respeitado em se tratando do seu próprio interesse, não
hesitam em violá-lo quando lhes convém. Os costumes
modernos, a leitura dos jornais que, por necessidade ou por
dever, atacam o mal e a injustiça e condenam tudo quanto
julgam condenável, nos levam a opinar sobre todas as coisas.
Constitui, entretanto, desordem e fonte de muitos ressen-
timentos, antipatias e discórdias o imiscuir-se nos negócios
alheios. Grande seria a harmonia se cada um só cuidasse do seu
dever e só cogitasse do próximo para lhe ser útil! Não nos bas-
Iam os deveres de estado para nos ocupar a alma? Quem lhes
compreende a importância e a extensão, quem vê nos trabalhos
que lhes cabem a expressão da vontade divina e tem em alta
conta a missão, receando cumpri-la mal, não, fita os olhos no
domínio alheio. Ao contrário, são os mais negligentes que
condenam com maior facilidade os outros; foi destes que Jesus
238
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Cristo disse que eles viam o argueiro no olhos do vizinho
e não percebiam a trave nos seus próprios olhos.
n. Submissio à autoridade.
224. Toda sociedade descansa na autoridade, funda
mento necessário. Deus, que estabeleceu a sociedade humaua,
quer, portanto, que haja subordinação entre os homens, que
t111s ordenem e outros obedeçam. Eis por que ele escreveu:
toda autoridade 1•em de Deus. Convém hoje mais que nun
ca lembrar este princípio. Aqueles que exercem autoridade
civil deformam-na; forjam tantas leis contrárias às leis de
Deus e tomam tantas medidas para destruir o reino de
Jesus Cristo, que compete a todo cristão denunciar-lhes
o delito e trabalhar ativamente. - as próprias leis lhe dão
este direito, - para derrubá-los do poder, mostrando
quanto são nocivos e impios. A caridade para com as ove
lhas exige que o lobo seja denunciado quando este ameaça
degolar aquelas.
A autoridade civil, em revolta contra Deus, s(l deve
imputar à sua própria perversidade a oposição que - pra
za a Deus fosse mais viva! - lhe é feita pelos fiéis discí
pulos de Cristo. Demais, lutando contra um governo que
calca o direito de Deus e das consciências, o cristão pro•
cede como bom cidadão e presta ótimo serviço ao seu país,
pois trabalhã para salvaguardar a verdadeira noção do po
der, que é uma simples delegação do poder infinitamente
justo de Deus. Salva, segundo pode, o seu país da anar
quia e o. governo da ruína.
Todavia, dessa luta tão necessária do cristão contra
as autoridades podem advir consequências funestas. Não
contribui de fato muitas vezes para espal!iar o espírito de
indisciplina e de revolta? De todos os lados surgem quei
xas de que a autoridade não é acatada nem respeitada co
mo outrora, mesmo quando merece respeito. Certas auto
ridades, a quem nada de grave e imputável, vêm a sofrer
da desconsideração que acarretaram justamente outros co
legas s"eus. Almas cristãs, obedecei pressurosas àqueles qm::
239
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Deus vos deu por chefes, sempre que suas ordens não con
trariem à lei divina; testemunhai-lhes real respeito; orai por
eles, a fim de lhes facilitar uma tarefa penosa e suavizar
lhes as pesadas responsabilidades que lhes incumbem.
Feliz de quem sabe ver a Deus em seus superiores,
reconhecendo e venerando a parcela de autoridade divina
que neles foi depositada. Se houver em sua conduta par
ticular alguma falha, sabe que não deve divulgá-la. No
exórdio da Bíblia, o Senhor nos dá um belo exemplo desse
respeito dívinci aos superiores. Noé, pai de Sem, Cam e
Jafet, tendo pela primeira vez fabricado vinho, foi surpreen
dido pelos efeitos dessa bebida, cuja ação não suspeitava.
Cam, encontrando-o estendido na nudez inconsciente, foi
logo dizer aos irmãos o que linha visto, querendo divertir
se com eles do pai; Sem e Jafet, porém, caminhando de
costas, cobriram respeitosamente o pai, adormecido. Estes
dois tlltimos receberam então a bênção, de que ainda go
zam seus descendentes, enquanto que a. posteridade de Cam
se ressente até hoje do castigo que atingiu o seu antepassado.
225. Entre os superiores, cabe aos padres um lugar à
parte. O sacramento que os constitui sacerdotes é chamado
ordem, talvez por ser a base mais sólida de toda a ordem
social: sem padres, que seria da religião, e sem religião, que
!leria da sociedade? Nenhum superior representa tanto a
Deus como o sacerdote. Assim como o céu paira acima da ter
ra, assim também os poderes que lhes são comunicados pai
ram acima dos poderes conferidos por Deus a magistra
dos e príncipes. Absolv"er, celebrar, distribuir o Corpo de
um Deus, abrir às almas as portas celestes, que maravilha!
Não foi sõmente uma parcela de sua autoridade, que Deus
concedeu aos sacerdotes; foi uma delegação admirável de
sua onipotência.
O respeito e a dedicação ao padre é uma das provas
mais seguras do reinado do amor divino na alma. Tudo
quanto é feito pelo sacerdote, tudo quanto é feito contra
ele, atinge diretamente o próprio Deus. Assim se explicam
as bênçãos que Deus concede aos fiéis que se dedicam
240
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
aos seus ministros e os castigos que ferem, com tanta
frequência e modo visível e evidente, aqueles que os
atacam. Quem vos recebe, me recebe, dizia o Filho de
Deus aos setenta e dois discípulos; quem vos ouve, me
ouve, quem os despreza, me despreza". Guardai•vos, diz
u Senhor, de toCar naqueles que me são consagrados,
naqueles que receberam a unção santa, e de exercer vossa
malícia
· contra!'i meus profetas" (�I 104, 15).
226. Esse pensamento de fé, que faz ver a Deus nos
superiores, torna a obediência fácil e meritória. Sejam
quais forem as qualidades ou os defeitos dos superiores,
sejam eles demasiado bondosos ou severos até à dureza,
e quiçii até à injustiça, quando eles ordenam, Deus ordena.
Obedecer é fazer um ato de amor a Deus. Sob a ordem de
seus chefes, o soldado destemido cumpre com entusiasmo
as mais arduas tarefas e lança-se sem hesitar ao encontro
da morte certa. Quando os couraceiros em Reichshoffen e
os ·zuavos pontifícios em Patay receberam ordem de carregar,
sabiam que, investindo, tão pouco numerosos, contra as
fileiras cerradas do inimigo, caminhavam para a morte.
Nenhum, entretanto, recuou e o amor da pátria fê-los heróis.
Assim o amor de Deus faz, da alma perfeitamente obediente,
um verdadeiro herói. Seu superior lhe diz: "para a frente'' e
ele parte imediatamente, sem calcular as fadigas, sem medir os
trabalhos. Deus o quer, é quanto basta; Deus o qu�r, e a
obediência será pronta, será alegre, pois é muito doce, a quem
ama, fazer a vontadede Deus.
Obedecer é sacrificar, entre ·todos os bens, aquele a
que mais apego temos, isto é, a liberdade, a própria
vontade. Por vezes, quando a obediência se cst�nde às
minúcias da vida, torna se para a natureza um martírio
4
241
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPiTULO XXVII
Da caridade fraterna
A 11te amn/(1 muluam in �oblsmetlpa/11 corlfo/em
contlm111111 habentt:s, q11/a carl!ar opulf mul-
ltl11dlntm pucatorum.
Tende sobreludo entre vós uma mil.tua e con11nua
earidade, porque a caridade cobre uma 111ul-
1idlo de pecados (1 Pd .i. li)�
I. O fundamento da caridade.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Então será vivo nosso amor e duradouro.
Entre dois irmãos gêmeos, levando uma mesma vida
no lar paterno, surgem numerosos dissentimentos a res
peito de seus brinquedos, de suas pequenas iniciativas e
uma bagatela qualquer dá lugar a disputas infantis. Se esses
irmãos se encontrarem vinte anos mais tarde, após uma
separação forçada, não se lembrarão mais das
insignificantes rixas de outrora, cujos motivos agora lhes
pareceriam tão pueris, mas cheios de alegria e de amor
cairão nos braços um do outro! No céu, segundo a
comparação de São Paulo ( 1 Cor 13, 2), seremos como
adultos que abandanaram tudo que era da meninice e
então quão fúteis nos parecerão os motivos que ora nos
separam uns dos outros! E não servirão para acrescer os
nossos méritos e para a nossa felicidade as próprias
penas que nos infligimos mütuamente? Mesmo oas
pessoas que nos foram mais antipáticas na terra, nada
restará que nos possa melindrar; seus defeitos terão
desaparecido, e seus pecados estarão consumidos pel:is
chamas do purgatório e só permanecerão as virtudes, a
fé, o apego a Deus. Essas virtudes sobrenaturais,
resplandescentes, tornarão essas almas belas de uma
beleza divina. Deus será visível nelas, pois "será tudo em
todos": erit Deus omnia in omnibus, e lhes comunicará
atrativos e encantos que serão nosso enlevo. Oh! então
havemos de amá-las com um amor a que nenhum outro
na _terra se compara, e esse amor será eterno. Por que,
então, não as amarmos desde já?
228. Amemo-los por Deus, amemo-los como Deus os
ama; amemo-los por Jesus, amemo-los como Jesus. "E'
este meu mandamento, disse ele, o mandamento novo
que trago à terra: amai-vos uns aos outros como Eu vos
amei". Que acabado modelo de caridade nos oferece o
divino Salvador, nosso bom Jesus! Não difamou, não
desacreditou pessoa alguma, mas suportou aqueles cujos
defeitos, entretanto, lhe deviam ser muito desagradáveis;
amo!J aqueles mesmos que o humilharam, o combateram, o
243
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
perseguiram e não amaldiçoou seus algozes, nem se
furtou· ao beijo de Judas. Hoje ainda, em seu Sacramento
bendito, oculta sob profundo silêncio os novos Judas que,
por suas comunhões sacrílegas, o forçam a entrar em
seus corações cheios de lodo e o entregam ao demônio.
Faz-se o servo de todos a fim de poder fazer bem a
todos. Tornar os filhos dos homens santos e felizes para
sempre, eis sua ambição; que a felicidade eterna seja o
seu quinhão, que por eles seu Pai seja eternamente
glorificado, é o único desejo do seu Coração. Para
alcançar esse escopo, nada poupou; deu o seu sangue, a sua
vida, e não excluiu desse amor os seus mais encarniçados
inimigos, aqueles que o trataram e ainda o tratam tão
indignamente. Também a esses procura vencer, fazendo
transbordar sobre eles o seu amor, cumulandoos de
benefícios, sofrendo e morrendo por eles. eis o verdadeiro
amor. Foi do Pai, que é todo amor, que Jesus o aprendeu, pois
nele aprendeu tudo quanto nos ensinou: omnia quaecumque
audivi a Patre meo, nota feci vobis ()o 15, 15).
n. mas llrme.
Caridade indulgente,
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
São, pois, culpados aqueles que desvendam as
faltas secretas do próximo e mais culpados ainda os
que lhe interpretam desfavoràvelmente as intenções que
lhes é impossível conhecer. "Não posso, porém, deixar
de ver o que é evidente", alegarão para desculpar
seus juízos severos. Mas, com frequência, podeis e
deveis deixar de julgar. Partimos do principio de que
a conduta de tal pessoa lhe parecia a ela tão
repreensivel quanto a nós mesmos e que, portanto, ela
obedeceu a motivos culpáveis; mas não temos o direito de
aceitar tal suposição, se não for evidente, e pecamos se
nela nos detivermos e, mais ainda, se a comunicarmos
a outrem.
Quando os defeitos do próximo são conhecidos, podc
mos comentá-los sem faltar à justiça, mas, nem sempre sem
ofender a caridade. São as qualidades do próximo, é o
pensamento do sobrenatural que nele existe, daquilo que
encanta os olhos de Deus que nos leva a prezá-los. Se,
deixando de lado suas qualidades, voltarmos nossa
atenção e dos outros sobre seus defeitos, se frisarmos o
que nele desagrada e choca, diminuimos no coração de
nossos irmãos os sentimentos de afeto que tinham, e
ferimos essa virtude tão delicada que é a caridade.
230. Mas, se devemos calar e suportar os defeitos do
próximo, não devemos, de- maneira alguma, favorecê-los.
Não lhe devemos apreciar os defeitos, as fraquezas, os
vícios, nem alimentar-lhe o amor próprio e a vaidade,
por meio de aprovações importunas, ou lisonjas, nem
entreter suas antipatias ou excitar sua irritação, fazendo
eco às suas críticas e às suas queixas; não devemos
levá-lo à dissipação, nem ajudá-lo a satisfazer sua
sensualidade, seu amor ao conforto. E' mister não dilatar
essas feridas abertas mas cicatrizá-las. Estimlllar o
mal, fortalecer os defeitos de nosso próximo, é uma
fraqueza culpada e infelizmente f_requentc, é uma
falsificação diabólica da caridade divina.
Será, então, possível sarar as chagas do nosso
próximo? Em geral as censuras irritam sem corrigir.
245
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Se não é possível tratar e sobretudo curar tais chagas,
entretanto, a caridade bem compreendida impõe-nos muitas
vezes, como um dever, tentar-lhes a cura. Por vezes ainda
o dever da correção se impõe, imperiosamente, àqueles cujo
encargo é velar sobre seus irmãos. Seria mais agradável
guardar silêncio, mas lembrem-se eles de que, se não
perseguirem o pecado, se não lutarem energicamente para
aniquilar esse inimigo de De11s e dos homens, serão eles
dignos de cen.i:ura e incorrerã0; em pesadas
responsabilidades. Se, ao contrario, se fizerem violência
para cumprir com esse de11er, maior serd o seu mtrito ante
Deus do que se praticarem rude.i: austeridades. Devem
cercar a repreensão, se forem superiores, ou o conselho
caridoso, em se tratando de iguais, de prudência e de
doçura; façam com que o culpado reconheça que quem o
repreendeu só o fez levado pelo zelo da glória de Deus e
por um vivo interesse pela própria alma. Por que eram os
Santos tão fortes em suas lutas contra o pecado? Não se
procuravam evidentemente a si mesmos, não cogitavam da
sua glbria, ou da sua satisfação pessoal. Sua firmeza em
nada se parecia com a paixão, com a prevenção; não se
ressentia tão pouco da dureza de certos cristãos, cujo zelo
acerbo é antes fruto da natureza que da graça.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
coração, mau grado eu, o fogo da caridade. "Não te
deixes, pois, vencer pelo mal, mas vence o mal com o
bem" (Rom 12, 20-21).
Se à injúria ou à injustiça opusermos a rigidez das
paixões, a impaciência ou a astúcia do amor próprio
ferido, haverá choque entre as paixões do nosso
adversário e as nossas próprias pai?<ões e desse choque
só pode resultar o mal. O que nos fere, nos irrita é
quase sempre fruto do pecado. E' uma vontade rija, que
quer tudo vergar em sua frente, e que parece ir de encontro às
regras do direito e da prudência; é uma pessoa que obedece
ao orgulho, à vaidade, ou que pretende, à custa de outros,
satisfazer seus gostos, impor suas preferências, fazer aceitar
seus caprichos. Mas o mal causado pelo pecado não será
curado com outro pecado, mas Unicamente com o bem que é
Deus. Ora, difundir o nosso amor no próximo é nele difundir
a Deus, é derramar o divino no humano, é submergir o mal no
bem. O mal existe de fato em nossos irmãos, e neles o pecado
produz efeitos lamentáveis. E' impossível que isto não nos
faça sÓfrer; mas o mal está também em nós, o pecado em nós
também produz frutos venenosos que farão sofrer igualmente
nossos irmãos. Se sofremos, portanto, fazemos também sofrer
e isso nos deve tornar indulgentes e bons.
"Se teu irmão, diz o Apóstolo, caiu irrefletidamente em
alguma falta, levanta-o com espírito de bondade, conside
rando a ti mesmo que não venhas também a ser tentado.
Carregai assim os fardos uns dos outros e cumprireis a lei de
Cristo" (GI 6, 2).
247
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
se vosso servo, fazei-vos o servo de vossos irmãos, confo
me o conselho de São Paulo: Servite invicem. Jesus
lavou os pês aos seus Apõstolos para ensinar-nos que
"devemos lavar os pés uns dos outros" (Jo 13, 14),
isto e, prestar-nos serviços mútuos sem receio de nos
rebaixar como também, sem idéia de retribuição, segundo
recomenda ainda o divino Mestre, nihil inde sperantes , a
exemplo do Altíssimo, que faz o bem pelo bem e se encarrega
de recompersar-nos. "Darei tudo, diz São Paulo, mais ainda,
dar-me-ei a mim mesmo pelas almas". Tudo quanto me
pertence o meu eu, meus bens, meu tempo, minha saüde,
minha vida, tudo darei às almas. Eis aí admiràvelmente
expressa pelo grande Apóstolo a fórmula da verdadeira
caridadade.
233. Dai-vos a vós mesmo, mas sobretudo dai a Deus é
este o dom perfeito. Se souberdes penetrar-vos de Deu� dos
pensamentos de Deus, das luzes de Deus, do amor ardente de
Deus, irradiareis Deus, dareis Deus. Toda virtude
sobrenatural é uma participação de Deus; difundir em torno
de si a Virtude, a fé, a doçura e a dedicação cristã é difundir a
Deus.
Não deveis, pois, dar Unicamente vosso dinheiro, vossos
bens, vossos serviços, mas sim comunicar vosso espirito de fé,
vossos sentimentos de amor divino. Dai a Deus pelos vossos
exemplos, pelas vossas palavras. Se toda a vossa conduta
respirar Deus, se vossos conselhos, vossos estímulos, vossa
linguagem falar de Deus, se, ao ver-vos, ao ouvir-vos, ao
experimentar os efeitos de vossa dedicação vossos irmãos se
sentirem levados a Deus, e cheios de amor divino, ter-lhes-eis
feito um dom que ultrapassa todo os dons.
Então, Deus se dará a vós, nele encontrareis tudo quanto
tiverdes dado. A quem não dá Deus, Deus também não, se dá.
Não será este o motivo pelo qual muitas almas cristãs não
recebem de Deus o que nele esperam? Foram severas,
estreitas, injustas em suas apreciações, azedas e duras em
seus sentimentos, ásperas em sua linguagem, frias quiçã
egoístas cm seu proceder, e admiram-se de que Deus não lhes
seja o Deus de toda consolação!
248
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Quanta aridez, quantas trevas, quanta incapacidade na
oração procedem de faltas contra a caridade! Deus
nos trata como tratamos os nossos irmãos. Ao contrário,
"quem ama seu irmão permanece na luz" ( 1 Jo 2, 10).
Passará talvez por provações interiores, pela aridez;
porém, esclarecido, fortificado por Deus, saberá
humilhar-se e conservar a paz.
234. Dai Deus embora vos custe e seja em detrimento
da natureza, até sofrer para merecer aos justos maior vir
tude e aos pecadores a graça da conversão.
Quão grande e consolador é o mistério da comunhão
dos santos, que nos ensina que, pelas nossas obras, e prin
cipalmente pelos nossos sofrimentos, podemos obter a sal
vação e a santificação das almas! Deus, é verdade, não pre
cisa de nós e poderia dispensar nosso concurso, porém não
o quer.. Quer, ao contrário, associar-nos a essa sua obra,
a mais divina de todas, se nos fosse possível medir os graus
de perfeição entre as obras de Deus; é entretanto aquela
em que mais se destacam sua sabedoria, sua hondadt!
e seu amor.
Que honra insigne faz Deus à criatura quando lhe pede
o seu auxilio em obra sublime! Que honra insigne lhe faz
esse Deus todo-poderoso, a quem bastou um simples ato
da vontade para tirar do nada todo o universo, quando diz
.a essa criatura que é fraqueza e miséria: "Vem em meu
auxilio; ofereci minhas graças, foram recusadas; bati ã
porta desse coração, fui repelido; minha bondade está atada
por essa obstinação; minha justiça agravou-se e vai fe
rir se não for impedida. Vai tu procurar esse pecador, fa-:
la-lhe em meu nome; eu me servirei de tuas palavras para
esclarecê-lo e comovê-lo; sofre por eles, sacrifica-te, imo
la-te. Tuas expiações suspenderão minha justiça, pronta
a castigar; romperão os laços que prendem minha miseri
cõrdia; alcançarão graças mais poderosas que outras já
concedidas a esse pobre cego que, desta vez, verá a luz, à
qual sua vontade rebelde se render!, enquanto tu partilha
rás comigo da g16ria de salvar teu irmão. Oh! como te
249
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
amarei então, a ti, a quem deverei o retorno de um
filho perdido, como te indenizarei de teus sofrimentos,
com que glória te envolverei, com que delicias te inebriarei
na morada da eterna beatitude por uma só alma a quem
tiverdes tornado mais santa, por um pecador a quem
tiverdes feito voltar a mim, teu Deus".
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XXVIII
251
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
L A oraçlo vocal.
252
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
li, A oraçio mental. Sua importincia.
253
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do bom uso que a alma faz desse tempo precioso da
oração depende o merecimento do dia. A oração alimenta
a vida interior, e dá à vida exterior valor e mérito.
239. Assim compreendem a oração aqueles a quem ani
ma o mesmo espírito dos santos fundadores e que, como
eles, estão ávidos de encontrar a Deus. Mas aqueles em
quem este desejo não é sincero, que, abraçando o estado
religioso e nele permanecendo, não procuraram Unicamente
a Deus, ou aqueles que, procurando-o a princípio, não vi
sam mais· agradar-lhe - o que é mais frequente ainda -
esses não encontram nem paz, nem felicidade na oração.
Dai as vocações vacilantes, o relaxamento nas ordens re
ligiosas, outrora tão fervorosas. A quem não procura exclui
sivarnente a Deus, as provações da vida religiosa sãó pe
nosas demais e as rudes obrigações que impõe, a abnegação
constante que exige, parecem um jugo intolerável; então,
com o auxilio do demônio, a vocação se torna num peso.
Para a alma assim perturbada há só um remédio, a oração.
Se abandon_ar a oração, tudo periga, mas se, dominando
suas repugnâncias, ·aplicar-se a orar, multiplicar os brados
do coração a Deus: "Meu Deus, fortificai minha vontade
e dai-me vosso santo amor", triunfará das tentações e per
manecerá fiel a Deus apesar de tudo.
Aquele, porém, que procura simplesmente a Deus na
oração, sem desanimar, que considera como sagrado o te'm
po destinado a este santo exercício, que nunca o dispensa
nem o abrevia, acaba por nele encontrar tesouros inefá
veis. "Do seio daquele que crê em mim, diz o Senhor, cor
rerão rios de água viva, e essa água viva jorrará até à vida
eterna". Nosso Senhor não promete, àquele cuja fé é viva
e sincera, favores extraordinàrios, visões, revelações, e sim
graças mais intimas, menos surpreendentes, porém igual
mente eficazes e consoladoras. A solidez, os efeitos dura
douros provam que são divinas; são rios impetuosos de amor
que impelem a alma, precipitando-a e abismando-a no
oceano da Divindade.
254
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
m. A medltaçio.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
e as asas da imaginação têm com frequência livre curso-,
enquanto piedosas representações vêm impressionar o espí
rito de quem medita, suscitando doces emoções", e a sen
sibilidade, fortemente abalada, produz surtos afetuosos, vi
vos e suaves. E quem os experimenta julga por esse meio
chegar ao perfeito amor ( 1).
E', porém, um erro profundo, que a alma não tarda
em descobrir! Chega o dia em que o servo fiel, cuja gene
rosidade não se alterou e que não se deixou arrastar à dis
sipação, experimenta grandes dificuldades em fazer ora
ção (2). As emoções sensíveis se acalmam, os impetos de
amor se tornam raros; a alma fica gélida; parece-lhe im
possível pi'oduzir pensamentos de ternura e seguir piedosas
reflexões. Mas só então poderá a alma fazer reais progressos.
256
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Se procurarmos desenvolver amplamente esse trabalho do
espírito e as emoções da parte sensitiva, o ato de fé fi
cará comprimido, prejudicado em seu desenvolvimento. E
serâ mui lastimável, pois o ato de fé e o de caridade, que
o acompanham, são todo sobrenaturais, enquanto que os
exercícios das potências da alma pelas considerações, pe
las imaginações e pelos séntimentos, se mesclam fàcilmentc
do natural e, não raras vezes, é a satisfação dada à na
tur.eza que a eles nos apega. E tudo isto é, na verdade,
um poderoso auxilio para a fraqueza humana. O homem,
tão diferente do anjo, apóia-se muito em suas reflexões e
suas emoções e terá com frequência de recorrer a elas para
chegar aos atos mais simples e mais elevados da pura in
teligência e da pura vontade. Mas quando Deus o priva des
ses apoios, quando lhe paralisa, por assim dizer, as fa
culdades, é que pretende levar seu servo à renuncia das sa
tisfações mais íntimas, e à liberdade do uso dos bens mais
pessoais, isto é, as faculdades da alma; quer aniquilar-lhe
todo o humano, a fim de que não viva mais senão dele e nele.
243. Não é no começo da vida espiritual que o des
pojamento e o aniquilamento das potências da alma se ope
ram. A alma, muito fraca, não se contentaria com esses
a tos tão simples, mas áridos, de fé e de caridade, e havia
de procurar alhures as satisfações que não lhe fosse dado
encontrar aí e de que não quer ficar privada. Além do mais,
não estaria bastante adiantada na virtude para receber as
graças elevadas que tal estado supõe e que são derrama
das na parte superior da alma. E' só depois de longas lu
tas, e de numerosas vitórias alcançadas sobre a dissipação
e as paixões, quando a parte inferior estiver fraca e a
parte superior forte, que a alma se torna apta a receber
graças tão eminentes.
Seria, pOis, temerário quererem as almas ainda débeis
colocar-se por si mesmas no estado de pura fé; antes de
vem esperar que o Senhor nele as introduza. Enquanto
puderem racionar sobre as verdades cristãs, enquanto a
imaginação for capaz de se representar vivamente certos
O CIUl!lnllo-17 257
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
mistérios, enquanto o coração, cheio de emoções, sentir im
petos de amor, que lhes são um certo alívio, seria impru
dente procurar suspender essas potências; seria ir de en
contro à graça, que as movimenta e que não se comunica
de outra forma.
244. E' um momento critico esse cm que Deus
convida a alma a entrar num caminho novo, que é o
caminho da contemplação. Se as luzes superiores da fé lhe
fossem logo comunicadas, vivas e abundantes, se o
atrativo de amor que as acompanha fosse forte e
poderoso, ela não hesitaria e abandonaria sem tristeza
seu método atual de oração. Mas não é em geral assim.
Por vezes, é verdade, almas fcrvorosas mas jovens ainda
na vida espiritual, são introduzidas num estado
contemplativo ardente e suave; mas será só por algum
tempo, a provação da aridez não tardará em atingi-las. Só
depois de terem sofrido, de terem sustentado lutas penosas,
é que receberão de novo, e de modo mais perfeito e
mais durável, as luzes superiores da fé.
A graça opera, pois, progressivamente e sua ação
a principio é suave e quase insensível; à medida, porém,
que a alma, pela fidelidade, afasta os obstáculos e se
dispõe a receber as operações divinas, a graça opera
com mais liberdade e vigor. As primeiras fases da vida
contemplativa são, por conseguinte, penosas, e a alma
fiel, que não pode mais meditar e não conhece um gênero
de oração mais elevada, fica indecisa. Tem uma idéia geral
das grandezas divinas e um atrativo surdo por Deus,
mas não percebe que essa idéia confusa de Deus lhe seja
dada pelo Espírito Santo, nem que esse atrativo amoroso
seja um impulso direto do mesmo Espírito. Tem um
desejo vivo e constante de amar a Deus, distinguindo-se
assim daqueles que caem na secura por culpa própria;
mas, custando a persuadirse de que o amor divino possa
existir sem os ímpetos sensíveis aos quais não se pode
mais entregar, assusta-se e sofre.
245. Quantas almas, então, se desolam e caem no aba
timento! As potências infernais aproveitam-se com fre-
258
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
quência dessa crise para multiplicar os ataques e convencê
Ias que o seu estado é mais triste e mais difícil de curar do
que de fato é. Ai das almas que aceitam, sem reagir, as
sugestões do inimigo; acabam por se assemelhar aos po
bres maníacos, sempre preocupados com a satlde e sempre
a sonhar com novas moléstias; acompanha-as a idéia de
seus defeitos, de sua incapacidade; tomam as atenções por
pecados, vêem o mal onde não existe e se julgam perdidas,
quando a confiança em Deus as havia de curar infalivel
mente. Seu estado é muito mais lamentável que o dos doen
tes imaginários, porque as consequências de seu erro são
muito mais funestas. E' o desânimo com o seu séquito terrível.
Sem ceder ao desânimo, intlmeros fiéis, mesmo entre
os mais fervorosos ( 1), recolhem-se demasiado em si mes
mos, examinam-se constantemente, pensam demais em suas
misérias. Se vivem de inquietação e de receios - e isso é
natural a quem assim procedeu - como não se hão de tor
nar pusilânimes e sem energia? Embora não cedam de todo
aos temores, que tanto deprimem e abatem a coragem, en
quanto não se alimentarem mais àvidamente dos atributos
de Deus, raros serão os seus atos de amor e muito lentos
os seus progressos.
Há outros fiéis que se obstinam em recorrer à medi
tação (2) e às práticas próprias dos primeiros tempos. Se
l) Lemos na vida da Madre Tereaa. da São .José, carmelita de
Tours, as palavras que o Padre Glnhac, S • .J., de tão santa me•
mória, lhe escrevia.: "Aconselho-lhe que se conaldere menos a si
mesma, e que mantenha os olhos da alma 'fito& em Nosso Senhor".
Entre as ruoluçóes toma.das por esta admirável religiosa durante
um retiro pregado pelo mesmo sacerdote, em 1883, eaü. a. seguinte:
"Em V(oZ de pensar em mim, a6 me ocuparei do divino Rei, de
lhe fazer a vontade, de lha provar o mau amol' e da promover os
interesses de sua glôria" (Cap. XIII. Eeta religiosa. faleceu em
1890, em odor de santidade.
2) A tais pessoas são muito útei.11 s aconselbã.veis os livros de
Grou, Manual du almas interiores (Ed. Vozes Ltda.J, bem como
as obras tio preciosas quão úteis de Sio João da. Cruz. Pal'a
facilitar a leitura dBSW últimas, sugerimos a. excelente brochut·a
do Padre C&lave1·: A terminologia de São .Joio da Cruz. (Ancers,
G. Grusin).
259
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ninguém vier cortar os laços que lhes prendem as asas,
nunca levantarão vôo; nem receberão as luzes da fé perfei-
1a, nem atingirão o grau de amor a que são chamados.
A alma prudente e coraJosa, se for bem dirigida, acei
tara plenamente, seja qual for a causa, o estado de aridez
a que está re;âuzida, submetendo-se suavemente à vontade.
diviÍ'la. Mas, enquanto essa submissão amorosa não lhe for
habitual, suas orações deverão ser, na medida do possível,
longos atos de resignação, exaltando e bendizendo a von
tade de Deus e multiplicando os atos de confiança absoluta
na vontade divina.
260
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
247. Então, a graça nela opera mais livremente. A prin-.
dpio produz um amor quase insenslvel, porém suave e pro
fundo, que tranquilizará o contemplativo e lhe provará que
não perde o seu tempo. Não faz ato de amor, e de amor
muito meritório, quem se acha tão bem com Deus, quem
se sente feliz de permanecer em sua presença, de possui-lo
em seu coração, quem adere tão puramente à vontade c.li
vina? Depois, à medida que a alma se purifica, que se de
sapega completamente das criaturas e de si mesma, que con
segue fazer calar os ruídos importunas que a ensurdeciam,
ser-lhe-ão concedidas luzes mais abundantes, que lhe in
tensificarão ainda mais o amor. Sem refletir, e melhor do
que se refletisse, sentirá uma viva impressão e se fará uma
idéia empolgante da imensidade e da grandeza de Deus,
de sua sublime beleza, de sua inefável bondade.
O contemplativo chega-se assim ao santuário da Di
vindade e adquire a ciência dos atributos divinos. Não po
de, é verdade, entendê-los, mas vê, como não lhe era dado
ver, até então, o quanto são inefáveis e incompreensíveis,
o quanto precisa ser puro para melhor fixar os olhos num
objeto tão santo e para penetrá-lo melhor. A comparação
que faz entre Deus e sua alma inspira-lhe urna humildade
que lhe era desconhecida, tanto mais que a luz que lhe re
vela as belezas divinas mostra-lhe também sua própria bai
xeza, suas imperfeições, suas misérias. Se for, pois, fiel a
esta graça eminente, com que novo cuidado evitará o pecado,
como se censurará as menores fraquezas, como procurará
purificar-se das manchas inevitáveis a toda vida humana!
Humildade e desprezo de si, de um lado; admiração e amor
de Deus, do outro. No contemplativo esses dois sentimen
tos caminham a par.
248. A alma, como já dissemos, deve comprazer-se i!m
Deus. Se souber guardar o olhar fielmente nele, encantar
se-á com o pensamento dessa maravilhosa vida das três
Pessoas divinas, vida intensa e infinitamente ativa. Ai Deu�
goza de uma felicidade que só ele pode compreender, ai
obtém tudo quanto possa desejar, tudo quanto lhe é devido.
261
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Infinitos são seus desejos, infinitos os direitos que tem a.
ser amado e glorificado, infinita, porém, é sua satisfação,
infinita sua glória, infinito o amor com que é amado. Nada
no· mundo pode obstar essa felicidade sem limites de que
gozam as três Pessoas divinas em suas relações mútuas de
contemplação e de amor. Todas as criaturas juntas não a
podem perturbar, todos os acontecimentos do mundo não
a podem alterar. Deus habita uma luz inacessível, que ne
nhum mortal jamais viu ou pôde ver; está num abismo, ou
an"tes ele é um abismo insondável, em que só podemos pe
netrar se nos perdermos e aniquilarmos. Este pensamento
loca ao coração do contemplativo com uma suavidade ex
traordináriaj o transporte que frequentemente o enleva, e
ptlo qual se lança e se perde em Deus, é todo de amor,
� inefável, é glorioso para Deus, é de grande proveito para
a criatura. As delícias todas da contemplação são dadas
à alma Unicamente para terminar nesse naufrágio divino,
em que a alma, despojando-se, como de uma veste incômoda,
de toda preocupação e de toda idéia profana, afogando to
das as suas potências, mergulha e se abisma no oceano da
incompreensível Divindade.
E' como que um surto de amor, um impulso que a im
pele para um transporte cheio de delícias. A contemplação
nem sempre proporciona à alma essa união de gozo. Por
\'ezes, reveste outra forma; então o amor é tranquilo e calmo,
a paz profunda, mas despido de qualquer prazer sensfvel.
Se a alma goza menos, não deve todavia se preocupar,
pois o mérito da contemplação não é menor.
O contemplativo pode também experimentar uma grande
incapacidade de amar esse Deus, que se apresenta tão
bom; pode, também, considerar-se indigno de se manter na
presença divina e esse duplo sentimento lhe causará um
profundo pesar. Outras vezes não conseguirá fixar as po-
11:ncias da sua alma, e, enquanto se mantiver unido a Deus
pda vontade, a imaginação continuará, mau grado seu,
suas divagações, e o espírito seus cálculos. São estados pe
nosos, porém mui meritórios, pois a alma fiel conserva· sem-
262
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
pre uma id�ia elevada de Deus, infundida pela luz mística,
e ama-o com um amor intenso, como bem o provam seus
desejos ardentes e a dor que sente de não· poder exprimir
seus afetos. A grande regra que se impõe ao contemplativo
C a de seguir os impulsos da graça, de receber as impressões
que lhe são comunicadas, tanto as que purificam como as
que confortam, e de não contrariar a ação divina, mesclan
do--lhe uma ação demasiado humana.
Sejam quais forem as circunstâncias acessórias desse
1:stado, a elevada idéia que o contemplativo faz de Deus
leva-o a não querer de forma alguma se rebelar contra ele
enquanto adquire, também, maior firmeza na luta. Se esse
estado se tornar habitual e a alma corresponder fielmente
às graças recebidas, grandes serão os progressos; as vir
ludes de fé, de esperança e de caridade que se exercem per
feitamente na contemplação, tomam um incremento maravi
lhoso, e o Espírito Santo faz germinar em seu tronco as de
mais virtudes.
249. A luz contemplativa não revela Unicamente as gran
dezas e as amabilidades divinas, mas esparge con1 frequên
cia seus raios sobre os mistérios da vida de Jesus. A medita
ção, perscrutando a história evangélica e mormente a Pai
xão do Homem-Deus, já soube esclarecer bem a alma fiel
e lhe dar uma noção do amor com que Jesus amou seus
filhos. Mas, quando a luz contemplativa ilumina com seus
clarões, de uma vez, a majestade infinita do Verbo e seus
inefáveis sofrimentos, então a alma compreende de outro
modo o amor do Coração de Jesus. As passagens da vida do
Salvador, causando uma impressão muito mais profunda
e mais forte, dilatam-lhe o amor e a generosidade.
Admira-nos que o contemplativo se afeiçoe à oração, e
veja com prazer chegar a hora em que a deve fazer? E' a
luz da contemplação que almeja, pois é-lhe uma verdadeira
'felicidade perceber, embora confusamente, o quanto esse
Deus, objeto de seu amor, é grande, santo, amável. Aspira,
porém, mais ainda à união de amor, fruto da contemplação.
Ficar como que submergido cm Deus pelo amor, ser trans-
263
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
formado nele, desfazendo-se de seus defeitos, aniquilando
tudo quanto existe de natural, de humano, é-lhe penhor de
uma alegria muito mais profunda e mais viva. Os efeitos
dessa contemplação obscura, pois na terra as perfeições
divinas oferecem apenas uma visão geral e confusa, são
mais preciosos que o das visões e de outros favores exce
pcionais. A contemplação abafa as preocupações humanas,
destroi os cuidados pelos interesses pessoais, substituindo
os pelo único desejo dos interesses divinos. Ver esse Deus,
boníssimo, amado por seus irmãos, é o supremo anelo da
alma contemplativa. Vê-lo glorificado por aqueles mesmos
de quem muito teve que sofrer, é para essa alma, que des
conhece a inveja, um imenso consolo. Que zelo a envolve
então e como se esquece continuamente de si para só ver
a Deus! O eu humano desapareceu quase que inteiramente
e sobre as ruínas do amor próprio ergueu a Deus um trono,
donde ele comanda como Soberano sempre acatado.
O estado de contemplação e de união apresenta diver
sos graus em número igual ou superior aos estados prece
dentes. Antes da união a Deus se tornar em estado habitual,
a alma deverá sofrer repetidas purificações, passar por ai�
ternativas de duras provações e de inebriantes delícias. Am
bas visam aniquilar tudo que for humano, para nela fa
zer reinar o divino. A alma deve prestar-se à ação divina,
aceitando as luzes e os impulsos que lhe são comunicados
e consentindo, cordialmente, quando assim aprouver a Deus,
em permanecer na incapacidade imensa e no sentimento
de sua miséria. Quando Deus quiser, agindo desse modo,
conseguir dela a renúncia a toda atividade e toda satisfação
natural, que se deixe, cheia de gratidão, despojar e como
que aniquilar, lembrando-se da palavra enérgica de São
João da Cruz: é preciso passar pelo nada para obter o TUDO.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XXIX
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
nessa fonte de água viva, devem tomar - e isto é de gran
de importância - uma resolução firme de não suspender
os esforços enquanto não alcançarem o fim, aconteça o que
acontecer, venha o que vier, seja o que for, murmure quem
quiser murmurar. "Proceder de outra forma, isto é, apli
car-se à oração com a idéia de não ultrapassar a meditação,
seria, segundo São Lourenço Justiniano, tão desarrazoado
quanto empreender uma viagem para parar a melo caminho,
ou semear para não colher, ou iniciar uma construção para
não terminar (2).
Como não desejar a contemplação, quando sabemos
que outra coisa não é senão o exercicio perfeito das virtudes
de fé, de esperança e de amor, pelas quais se opera a união
da alma com Deus? Como não pedir a Deus essa luz mís
tica, isto é, a luz preciosa da fé, cuja excelência já demons
tramos, e que dá, das grandezas de Deus e de sua bondade,
uma noção elevada que todas as reflexões juntas não po
deriam dar? (3). Pedi essa luz e destrul todos os obstá
culos aptos a vos impedir de recebê-la. "Essa luz, diz São
João da Cruz, que transformo a alma l' a introduz no estado
2) Ver estes textos e muitos outros nio m.eliOs lntereaat.Dtea
na Vida da Unlio a Deus.
3) São Francisco de Sale.s, coment.ando a passagem da &·
crltura: Os teus selos são superiores ao vinho, diz: "O loite, que
ê um alimento cordial e todo do amor, repreaen.ta. a ciência e
teologia mlstlea, isto ê, o delicioso saborear que o espirita re
cebe quando medita. u perfeições da. bondade divina; mas o vi
nho slrnlflca a ciência ordh1árla e adquirida. que e obtida à for
-ça de eapeculaçi.o, sob a preed.o de muitos argumentoa e debat•.
Ora, o leite que nossu almas sugam no selo da caridade de nos
so Senhor vale incomparàvelmente maia que o vtnbo que UrlUDD'll
dos discursos humanos, pola esse leite se origina no amor cel•te,
que o prepara a seus filhos antes me.amo que estes dele cogltetD"
tAmor de Deus, Livro V, cap. ll>. Podemos ver no Estado mb
tico que tal é realmente o sentido tradicional das palo.vraa "din
cla mlstica"; não é uma ciência e�peional e qua..e milagr(ISIL.
mas eaaa ciência ·eminente de Deua que é dada âs almu "\--erdadel·
ramente fiêis. Certos autores, o.o contrário, ,-lem nas graças ni:i.s•
ticu, graças extraordlná.ri.a.s e acoss6ria.s, ante.s uma anlmll.çâ.o que
um meio perfeito; censuram por conseguinte o desejo da contem
plação. Nós nos contentamos com a doutrina. dos Santos e dos
grandes :MHtres.
266
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
de p.e,rfeição, está sempre pronta a difundir seus clarões
na alma. Fazei desaparecer os obstáculos, tirai os véus e
incontinenti vossa alma, simplificada e purificada pelo
despojamento espiritual, se transformará na pureza e na
simplicidade da sabedoria divina, que C o Verbo de Deus.
A medida que a alma, enamorada do amor divino, se
desprende do elemento natural, o elemento divino nela
se derrama sobrenaturalmente, pois Deus nunca deixa
de encher o vácuo".
251. Quais São estes obstáculos? Já os indicamos nos
capitulos precedentes. E' tudo quanto ocupa inlltilmente o
espirito, tudo quanto, fora de Deus, cativa a vontade,
impede a operação das graças mlsticas e a
transformação da alma cristã. Se quiserdes, pois, obter as
graças de luz e de amor que produzem a união divina,
lutai contra os pensamentos fúteis, contra os sentimentos
naturais e vivei recolhidos e desprendidos.
Já nos referimos a este combate nos capítulos
anteriores, principalmente ao tratarmos da fé e da
esperança. Falamos sobre os inconvenientes de vivermos em
um mundo imaginário, no meio dos fantasmas que
cria continuamente a imaginação, essa potência
desregrada, e de que maneira devemos sufocar, na
medida do possível, os desejos, as alegrias, os temores,
as tristezas, quando são o produto da natureza. Mas
como substituir essas divagações do espírito e esses
impulsos do coração? Os deveres de estado, as obras
impostas por Deus bastam para absorver a atividade
das potências da alma, e é impossível mantê-las
suspensas.
Em torno de vós, cristãos fiéis, estão seres a quem não
podeis ver, mas que vos vêem a vós, que vos contemplam,
que se interessam por tudo quanto vos diz respeito,
e quc se podem tornar em amigos ·dedicados, em
protetores poderosos. Por que pensais tão pouco neles?
Por que preferis viver com os fantasmas, os
cálculos, as hipóteses, os receios, as preocupações
excessivas, as esperanças quiméricas, em vez de
viver com esses seres invisíveis, porém reais, cuja
267
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
ação se une continuamente à vossa, e cuja influência sobre a vossa poderá
ser considerável?
n. Nosaos inimigos invlsivei1,
252. Antes de falar de vossos amigos invisíveis, con
vêm indagar se pensais algumas vezes nos inimigos de vos
sas almas, que não vos deixam, e que são tanto mais temi
veis quanto operam de preferência na sombra. Aqueles que
esquecem o ódio encarniçado dos demônios e não se pre
cavêm contra inimigos tão pérfidos, não compreendem qut
muitos dos pensamentos que os perseguem e os importunam
tais os que provocam a irritação, a impaciência, a criticõ
maldosa, a desolação, a perturbação, o abatimento, são meras
sugestões infernais. A natureza produz, sem dúvida, pen
samentos semelhantes. mas que passam logo que a causa
desaparece; ao contrário, o demônio se dá a conhecer pela
sua tenaciadde odiosa. E' ele que nos apresenta esses qua
dros negros que nos perturbam, nos exasperam, e dos quais
não podemos desviar os olhos. Por não perceber a ação do
demônio, muitas pessoas entregam-se a essas idéias, cul
tivando-lhes os sentimentos inerentes e prejudicando-se gran
demente. Os cristãos vigilantes e esclarecidos, porém, re
conhecem ao primeiro toque a ação do tentador e repelem,
com maior horror, suas sugestões.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
dentes como somos dos órgãos humanos, só podemos atin
gir de maneira direta os objetos particulares e os indiví
duos; são eles que conhecemos em primeiro lugar, é, com
parando-os, que nossa inteligência descobre o que há de
comum entre eles e vai obtendo noções gerais. Conhecemos
tais e tais homens, antes de termos uma idéia geral de ho
mem; vemos os objetos brancos, ou pretos, antes de ad
quirirmos a noção do branco e do preto. Depois, aproximan
do as idéias concebidas, formamos o nosso juízo; unindo,
·por exemplo, a noção de Deus à noção da bondade, de
claramos que Deus é bom. Enfim, reunindo diversos julzos,
de dois, deduzimos um terceiro: Deus é bom, devemos amar
o que é bom; portanto devemos amar a Deus.
Assim procede o espirita humano; caminha passo a
passo e o campo de sua visão será forçosamente muito re
duzido, incapaz como é de abranger ao mesmo tempo senão
um n(tmero limitado de pensamentos. Tal o conhecimento
humano. Se um abismo o separa da recepção puramente
sensível dos animais, que, destituídos de uma idéia geral,
não podem julgar nem refletir, como é todavia inferior ao
conhecimento puramente intelectual. Este, que é próprio dos
espíritos, dos anjos, das almas do purgat6ri9, aprende, ao
mesmo tempo, todo um conjunto de verdades sem precisar
recorrer pessoalmente a uma e outra. Vê, por exemplo, cla
ramente, e sem raciocínio que Deus merece ser amado,
e vê igualmente muitas outras verdades morais ou cien
tíficas; abraça, com um só golpe de vista, um número
incalculável de objetos; mergulha profundamente num abis
mo de verdades. O Senhor digna-se, por vezes, de favorecer
certas almas privilegiadas com essas visões intelectuais e
então, num abrir e fechar de olhos, um mundo novo se re
vela à sua contemplação. Santo Afonso Rodriguez teve um
dia a visão do céu; "viu e conheceu todos os bem-aven
turados juntos e separadamente, como se tivesse passado
toda a sua vida com eles" (Vida, n. 275). Outra vez "dis
cerniu cada anjo em particular, como se sua alma estivesse
269
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
simultâneamente toda inteira em cada um e toda inteira
em todos" (Jbid. n. 6).
Os espíritos possuem, portanto, uma faculdade de per
cepção muito vasta, da qual nada nos pode dar uma idêia.
No momento de deixarmos este mundo, em vez da palavra
fatal: ''está morto", seria mais justo que todos dissesselli'
"ele agora vive de uma vida muito mais intensa, de uma
vida intelectual que não terá descanso, nem fadiga, nem
sono; sua inteligência centuplicou-se, um mundo inteiro aca
ba de abrir-se a seus olhos, segredos que nunca imaginara
acabam de lhe ser revelados. Existe uma diferença muito
maior entre as luzes que ora possui e as que possuía há
pouco, do que entre a ciência de uma criança de seis anos
e a de um adulto.
270
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
gos imperfeitos e puseram-nas para sempre ao abrigo do
pecado. Purificaram-se e desprenderam-se de todos os em
pecilhos criados pelas suas faltas. Constantemente novas
luzes lhes revelam de modo mais cabal a bondade de Deus
e as maravilhas de misericórdia que encerram os mistérios
cristãos. Ah! como essas almas avaliam melhor que nós
a vaida<lc das coisas terrenas! Como penetram mais avan
te na ciência dos atributos divinos, da santidade, da jus
tiça, da bondade, da ternura de Deus! Como são mais es
clarecidas sobre as festas cristãs e celebram com maior
admiração e reconhecimento o nascimento do Salvador, sua
Paixão, sua Ascensão, ou os mistérios da vida de Maria!
Como compreendem melhor também o valor da santidade,
o poder de seus padroeiros celestes, de São José, dos Após
tolos, dos Santos que invocaram outrora com fervor!
Enquanto o espírito se ilumina, a contrição se vai tor
nando mais viva e mais pura, e a vontade pode exercer mais
livremente o amor. Os laços que o prendiam caindo um a
um, esse amor se exercerá na mesma plenitude em que se
exerceu na hora da morte e que será, para essa alma, a
medida de sua felicidade eterna.
O purgatório é o vestíbulo do céu, onde a alma se pre
para para penetrar na morada de toda santidade. Não sô
mente ela aí se purifica das manchas que lhe enfeavam as
vestes nupciais, mas vê dissiparem-se as névoas que lhe
velavam os olhos. Sobe de clarão em clarão e experimenta
surtos de amor cada vez mais ardentes. Assim os últimos
dias de purgatório, quando a alma já está quase pronta
para o céu, devem ser antes dias de luz e de paz que de
luto e de lágrimas.
Se fizéssemos uma idéia mais exata do que parecem
nossos amigos de alélh-túmulo, teríamos necessidade de lhes
transmitir os nossos sentimentos. Sentimentos de condolên
cias por penas tão dolorosas, tão temíveis: de regozijo por
suas virtudes, pela iluminação brilhante que neles se
operou e pela transformação de sua vontade; de desejo de
aliviá-los, de apressar o momento de sua hem-aventurança;
271
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
de esperança de sermos, nós mesmos, auxiliados pelas suas
orações! Não seriam alguns colóquios deste gênero, com
nossos queridos mortos, mais suaves e mais íiteis que os diá
logos imaginários, inventados de fio a pavio, em que in
dagamos e respondemos a um tempo, cabendo-nos sempre
um belo papel? Não seriam, também, mais proveitosos que
a maior parte das conversações que temos com os vivos?
Não lucraríamos muito mais em abreviar estas, ou mesmo
suprimi-las, às vezes, para dar mais tempo às outras?
V. Os eleitos.
272
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
felicidade, que excede a toda expectativa! E como vos fe
licito pela vossa sorte! Regozijo-me também com a idéia
de que semelhante felicidade será um dia a minha quando,
juntos, contemplarmos os mesmos espetáculos e gozarmos
do mesmo amor, das mesmas delícias! Este pensamento
também vos alegra, pois o amor que tínheis por mim, longe
de diminuir, se dilatou no céu de modo admirável e vosso
coração, cujo impulso nenhum sentimento natural ou egoís
ta entrava, tornou-se maravilhosamente terno e, ao verdes,
então, a descoberto, em minha alma, o dom ela graça que
vos enleva, amais-me com um amor que ultrapassa todos
os amores terrenos!
256. Não (• indiretamente, por um intermediário, que
os eleitos acompanham a nossa vida; em Deus vêem eles
tudo quanto lhes interessa e, assim, conhecem melhor que
nós mesmos o que somos e o que fazemos. Se lhes falamos,
compreendem a nossa linguagem e alegram-se em ouvir
nos falar-lhes de sua felicidade, e ainda mais de Deus, a
quem amam com um amor tão puro e tão ardente. Quando
viviam no mundo conversávamos com eles de seus amigos;
aos pais falávamos dos filhos, aos amigos, dos amigos, e
seus corações se regozijavam. E agora, com o amor dilatado,
mais viva ainda é a satisfação que lhes proporcionamos,
quando lhes falamos daqueles a quem amam, quando, prin
cipalmente, lhes falamos desse grande Deus que lhes ocupa
toda a inteligência e todo o coração. Se vêem que desejamos
conhecê-lo melhor, amá-lo mais, se lhes pedimos para aju
dar-nos a servi-lo melhor, causar-lhes-emas uma verda
deira alegria, uma dessas alegrias acessórias, acidentais, co
mo as denominam os teólogos, que se acrescentam à sua fe
licidade fundamental e essencial, mas que, embora pequenas
em relação a estas, são, entretanto, tão puras, tão vivas
e tão delicadas. E eles se apressam em favorecer nossos
desejos, oram por nós e nos alcançam um preciosíssimo
acréscimo de graças.
273
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XXX
Da hierarquia celeste
Nlmls llonorlflcall sunl amlt:I lul De11s, nlmls um
forlatas esl prlndpatus corum.
Qu5o eltvados cni dlr;nldadc es110 vossos ami-
1:os e quio firme t seu poder (SI 138, 11),
L Os anjos.
257. Em que medida podem nossos amigos celestes
beneficiar-nos? Na medida de sua santidade e de seu po
der. Existe no céu uma admirável hierarquia e os anjos de
Deus dividem-se em nove coros distintos. Em cada um des
ses coros há, sem dúvida, diferenças muito maiores do que
as que existem entre os homens. Em uns a inteligênciá é
mais vasta, a vontade é capaz de resoluções mais fortes, o
poder de ação é mais extenso que em outros, enquanto os
dons sobrenaturais da graça e os méritos apresentam igual
mente diferenças de grau. Não há, de certo, dois espiritos
angélicos da mesma ordem e grande é a distância entre Um
coro e outro, mormente entre os coros inferiores e os su
periores!
Ora, todos esses anjos conhecem-nos e amam-nos; to
dos vêem em nós filhos de Deus como eles também são e
irmãos em Jesus Cristo; todos se interessam pela santifica
ção de nossas almas. Um só pecador que se converte, disse
nos nosso Senhor, causa-lhes viva alegria. Pensamos nós,
como deveríamos, nesses irmãos tão dedicados e tão pode
rosos? Pensamos nos anjos do coro que, um dia, será o
nosso? Eles já nos consideram como um dos seus. E no
céu nossos amigos serão tão numerosos quantq a milicia· an
gélica, e seu afeto será sincero e mui ardente. Quanto mais
elevados estão, tanto mais admiráveis são suas virtudes,
274
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
seus dons sobrenaturais e seu poder e quanto mais recorrer
mos a eles, tanto mais bem nos poderão fazer.
258. Um desses anjos recebeu de Deus o encargo par
ticular de nos dirigir e nos proteger - e com que solici
tude esse guarda fiel vela sobre nós! De quantos perigos
nos preserva, quantas boas inspirações nos incute! Iluminar
sobrenaturalmente nosso espírito para que aprenda as ver
dades da fé, fortalecer diretamente nossa vontade para que
produza atos de amor mais intenso, é obra de Deus, autor
único da graça; mas os anjos da guarda, os eleitos e os
Santos podem prestar-nos os mesmos serviços que nós pres
tamos uns aos outros, e com maior perfeição; podem co
municar-nos bons pensamentos, atrair nossa atenção sobre
os motivos que determinarão nossa conduta, sobre as van
tagens desse ou daquele modo de proceder; podem desper
tar-nos a imaginação, insinuar-nos comparações que nos
esclareçam, comover-nos a sensibilidade. E tais serviços
já nos prestaram não sómente o nosso anjo da guarda,
tnas também os eleitos e os Santos. Não temos, sobre a
terra, benfeitores tão carinhosos, amigos tão poderosos!
E seus bons préstimos se multiplicariam se pensássemos ne
les mais vezes, se conversássemos com eles mais a miúdo!
IL As almas bem-aventuradas.
259. A hierarquia tão perfeita, estabelecida entre os
anjos, existe também entre os eleitos, e está mais ao alcance
da nossa inteligência, embora façamos uma idéia muito in
completa a respeito; pode nos ajudar a subir de degrau
em degrau, até ao trono de Deus, e dar-nos uma noção mui
to fraca, é verdade, porém impressionante, de sua infinita
majestade.
Muitas almas, nossas conhecidas, levaram uma vida
pouco virtuosa, talvez uma vida culpada, e só se reconci
liaram com Deus na l1ltima enfermidade. Outras, crianças,
foram colhidas prematuramente antes de acumularem gran
des méritos. Estas últimas - não podemos ter certeza
quanto às outras - provàvelmente já terminaram sua ex-
275
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
piação e podemos recorrer a elas, mas não ocupam luga
res elevados no mundo dos eleitos. Entretanto, se sua gló
ria nos fosse manifestada, se víssemos o esplendor com
que brilham suas almas bem-aventuradas, o ardor de cari
dade que as abrasa, e o amor com que as ama esse gran
de Deus, que as deixou viver de sua vida e compartilhar
de sua felicidade, ficaríamos enlevados e es�upefatos ( 1).
Mas conhecemos outras almas, mais perseverantes e
fiêis, que levaram na terra uma vida genuinamente cristã.
Praticaram inúmeros atos de virtude, adquiriram inúmeros
mêritos pelo seu espírito de fé, pela sua obediência aos
mandamentos divinos! Se um copo de água dado por amor
de Deus aumenta em nós a vida divina, quão grande de
ve ser hoje a riqueza dessas almas, quão perfeitas suas
virtudes, quão queridas serão de Deus!
E essas almas, vimo-las cheias de piedade, entregues
a seus deveres, fiéis a seus exercícios! Apesar dos defeitos
que lhes restavam, sua fé era mais viva que a de muitos
cristãos, e exercia sobre toda a sua conduta uma influência
maior, enquanto mais ardente era o seu amor. Entre essas,
diversas se elevaram até ao fervor. De todas elas digamos
apenas que são muito mais ricas, muito mais belas e muito
mais poderosas que as precedentes.
260. Muito mais elevadas estão, entretanto, outras al
mas que conhecemos igualmente e cuja vida exemplar ex
citou nossa admiração. Todo o seu tempo pertencia a Deus
e seus dias eram preciosos aos olhos divinos, dies pleni in
venientur in eis; preciosos, de fato, porque viviam intima
mente unidas a Deus e todas as suas obras eram verdadei
ramente sobrenaturais. Repartiam sua vida entre a oração,
a dedicação e o sacrificio. Sua abnegação, seu zelo pela gló
ria de Deus eram admiráveis; frequentavam assiduamente a
sagrada mesa e cada comunhão aumentava-lhes enormc-
u O Senho1· anunciou um di& a Santa Matilde que lhe ia
moatrar o últhno dos eleitos: Era um ladrão, um malfeitor que
nunc& praticara. um& 16 bo& açio c que se convertera à últlm&
bor&. Paasara cem &nos no purgatório e apa.receu, à sant.&. extraor
dlnâ.rlamente belo. (Revel&Ç6es de Sant& MaWde, I Parte, c:ap. 33).
276
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
mente os tesouros espirituais. Passaram assim anos inteiros
na prática perfeita da caridade. Oh! se nos fosse dado con
templá-las, se pudéssEmos suportar o brilho refulgente que
as envolve, compreender o vasto horizonte que se abre à
sua inteligência, os olhares penetrantes que lançam nos es
petáculos divinos, nos segredos celestes; se pudéssemqs
sondar a profundeza de seu amor, a extensão e a intensi
dade de suas alegrias intimas, como ficaríamos maravilha
dos! E se víssemos as provas de ternura que Deus lhes
prodigaliza, grande seria nossa confiança no poder de sua
intercessão. E nada teremos a lhes dizer? Nós, que prolon
gamos tão fàcilmente palestras fúteis, nunca havemos de
conv(,rsar com essas almas bem-aventuradas cujo único _de
sejo é testemunhar-nos o carinho de seu "afeto? Elas já nos
amam com um amor celestial; como nos eleitos, sua in
tensidade de amar varia segundo o grau de glória que lhes
é dado; sua caridade para conosco, simples consequência
de sua caridade para com Deus, atinge então proporções
que não podemos imaginar.
IIL Os Santos.
261. A linguagem humana é falha para exprimir as
coisas do céu. Já esgotamos, por assim dizer, as palavras de
admiração e estamos longe ainda dos degraus superiores
de escada celeste. Muito acima das almas perfeitas de que
acabamos de falar. estão aquelas que praticaram as virtu
.des até ao heroísmo. E que energia de alma isto denota,
pois o heroísmo está em praticar, sem hesitação e com ale
gria, - e em todas as ocasiões que se apresentarem - vir
.tudes difíceis e superiores às forças comuns. Dissemos -
em todas as ocasiões que se apresentarem - e são mui
frequentes, para as almas de escol! No céu, veremos de
quantos sacrifícios, de quantas lutas ocultas e quiçá terri
veis, de quantos atos admiráveis de renúncia se compõe o
dia de uma âlma santa. Em certos dias, sobretudo, o demô
nio se enfurece de modo particular contra os Santos; então,
no espaço de uma hora, esses alcançam centenas de vitórias,
todas de alto valor. Suas provações duras e numerosas
277
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
são aceitas com uma força de vontade sempre renovada,
com um ímpeto de generosidade de que os cristãos vulgares
nem sequer suspeitam. Que força de amor adquirem então!
Um Santo exclamando: "Meu Deus, eu vos amo", ou "Meu
Deus e meu tudo", fará este ato tão simples, com um amor
talvez mil vezes superior ao nosso quando pronunciamos
com sinceridade idênticas palavras.
E, quanto aos Santos do céu, que será deles! Qual a
sua riqueza, a sua beleza, o seu poder? Deus lhes c01n11-
nica a sua força, como lhes comunica o seu esplendor. Em
que medida receberão eles um e outro? Quando foi dado
a Santa Madalena de Pazzi ver a glória de que gozava a
alma de São Luís Gonzaga, esta Santa, a quem todavia
tinham sido reveladas tantas outras maravilhas, ficou en
levada; nunca pensara, até então, que pudesse haver no
céu ·tamanha glória para os amigos de Deus.
262. Entre os Santos existem também inúmeros graus.
Os grandes fundadores de ordens religiosas, aqueles a quem
o Senhor confiou importantes missões, os Apóstolos, São
Paulo, São João, São Pedro, ocupam lugares privilegiados.
E que diremos de São José? São maravilhas e mistérios!
Mas como são cegos aqueles que, tendo no céu protetores
tão poderosos e tão prontos a lhes fazer o bem, deixam de
recorrer a eles ou só o fazem raras vezes e sem ardor!
Há Santos cujo culto se impõe e que devemos invocar
todos os dias. Há outros que devem ser invocados por quem
tem um direito especial a seus favores. São nossos padroei
ros de batismo, os que levaram o mesmo gênero de vida
que nós, os da nossa diocese, ou família religiosa. E', prin
cipalmente, nos dias de sua festa, quando toda a Igreja lhes
presta homenagem e nos convida a unir nossas orações ãs
suas, quando os habitantes do céu se juntam para felici
Já-los e honrá-los, que devemos recorrer em particular ã
sua proteção. Nesse dia, o Senhor quer glorificar aqueles
de quem ele mesmo recebe tanta glória e presta um ouvi
do mais atento aos seus pedidos, concedendo maiores gra
ças às almas que confiam em sua intercessão.
278
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
C,\PITULO XXXI
De Maria
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Raciocinai igualmente sobre o amor, a bondade, a ter
nura. Um eleito, de virtude comum, está no céu muito mais
abrasado de amor do que estava na terra, não sõmente por
Deus, mas por todos os entes queridos. As almas fervoro
sas são ainda mais afetuosas. E os Santos? Maria, porém,
essa Mãe tão boa, tão terna, já amava a Deus no mundo,
e o ama agora, no céu, mais que todos os santos juntos
e ama-nos a nós também, com um amor que excede ao
de todos os anjos e eleitos.
O eleito é a gota de água; a alma perfeita, a ânfora
repleta; o Santo, o lago que transborda, e Maria, o mar que
cdntém mais água que todos os vasos e lagos reunidos.
Mas quão pobres são essas comparações, quão indignas
daqueles a quem as aplicamos!
264. Maria é obra-prima de Deus, obra-prima de seu
poder, de sua bondade, de sua sabedoria, só dele conhecida,
pois nenhuma criatura, .nenhum serafim, pode aprofundar,
nem cingir com o olhar todas as perfeições da Mãe de Deus,
que a criou como intermediária entre ele e nós. Teria podido,
sem dúvida, não nos ter dado tal mediadora e fazer-nos che
gar a ele por outro caminho; preferiu, porém, dar-nos essa
Mãe celeste, que nos facilita maravilhosamente o acesso
junto de Deus. Segundo a visão do companheiro de São
Francisco, ela é a escada, resplandente de alwra, que nos
conduz ao Senhor. Aquele a quem fosse retirada a escada
se encontraria em apuros para subir apenas com o esforço
dos braços. Assim, sem Maria, seria para nós mui difícil
chegarmos ao trono de Deus.
Maria está toda impregnada de Deus, Deus é tudo cm
Maria e nada lhe chega senão com Deus e por Deus; não
ama e não vê, pois as coisas criadas senão em Deus e por
Deus. E' ·também em Deus que nos ama, e com uma in
comparável força de amor que nada pode igualar. Seme
lhante aos eleitos, e melhor do que eles, Maria não deseja
nos proporcionar satisfações passageiras e fúteis, e sim nos
ajudar a alcançar os bens imperecíveis e eternos, embora ao
preço das provações e das cruzes. Ama-nos, porque somos
280
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
filhos de Deus, e vê, em nossas almas santificadas pela
graça, um reflexo da Divindade. Ama-nos, porque pode
mos glorificar a Deus, e o amor incompreensível que tem
por esse Deus, a quem conhece perfeitamente, fá-la dese
jar, com um desejo ardente, ver-nos proporcionar imensa
glória ao seu Filho amado, ao seu Deus.
E tudo quanto nos deseja, ela no-lo pode obter e sa
he como no-lo obter e no-lo obtém de fato na medida em
que não pomos obstáculos aos seus favores. Deus Pai, com
efeito, revestiu-a de seu poder; Deus Filho encheu-a de
sua sabed9ria, associou-a à sua obra de salvação e à sua
realeza universal; o Espírito Santo abrasou-a de seu amor�
uniu-se a ela, vive nela, nela e por ela opera.
281
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
a terra, em resposta à súplica de uma voz pura e poderosa
de uma advogada eloquente com direitos a alegar e que,
por seus méritos, exerça sobre o Juiz um ascendente le
gitimo e lhe aplaque a justa cólera.
Os anjos sofrem por ver ·seu Deus tão ultrajado e al
mejam cobrir o espetáculo de tamanhos horrores, ocultan
do-os ao olhar três vezes santo do Senhor do mundo; de
sejariam, ao menos, com seu amor, abrandar-lhe a ira, mas
estão aquém de semelhante missão. Só Maria, a Virgem
puríssima, santíssima, a Virgem poderosa, a Mãe dos peca
dores, acalmará o seu filho e conseguirá mais· urna vez a
salvação do mundo.
Não nos niostrou ela que devemos confiar em sua pro
teção? Não despertou essa Virgem imaculada a fé e não
inflamou a caridade? Os peregrinos que vão orar nos san
tuários de Lourdes, de La Salette, de Pontmain, de Pel
levoisin, voltam melhores; os milagres que ela opera, res
tituindo a saúde aos enfermos, são as menores de suas gra
ças; o bem que faz às almas é um prodlgio muito maior.
Já implorais a Maria, piedosos leitores, e seria portan
to Supérfluo insistir sobre este ponto. Deixai-me, todavia,
dizer-vos que vossa confiança se dilatará à medida que lhe
conhecerdes as grandezas e a bondade. Estudai-a bem, re
cordai-vos sempre da imensidade de seus méritos, da su
blimidade de sua sabedoria, da extensão de seu poder, da
viveza, da intensidade, da força, da ternura de seu amor, e
vossas orações serão mais ardentes e mais eficazes.
A imensidade de seus méritos provém das luzes que ela
recebeu e da capacidade de amor que lhe foi dada desde
a sua conceição e que de início foi muito superior à dos mais
excelsos serafins. E essa potência de amor foi sempre au
mentando. Maria foi esclarecida, de modo inconcebível, so
bre a grandeza e as amabilidades do Altíssimo. O Senhor,
é verdade, não lhe revelou todas as coisas; vemos, pelo
Evangelho, que certos atos na vida de seu Filho, como o
desaparecimento no templo, foram mistérios para ela. Era
necessário que a Mãe de tantos aflitos conhecesse a incer-
282
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
teza e a angi1stia. Mas Maria sempre teve luzes incompará
veis sobre as verdades que auxiliani o mérito, que permi
tem atos sublimes de caridade. E ar está o princípio de
suas grandezas e a causa de seu poder.
Bastará então dirigirmos nossas orações a Maria?
Existem almas que parecem põr na súplica toda a sua de
voção para com essa boa Mãe. Tal devoção é incompleta.
Devemos pagar-lhe nossa dívida de reconhecimento, fe
licitá-la pela sua grandeza, regozijar-nos com sua felicidade
e proporcionar-lhe alegrias suaves, imitando-lhe as virtudes.
Foi Maria quem, depois de Deus, mais nos cumulou
de benefícios, pois foi ela quem, depois de Deus, mais nos
amou, e seu amor é o mais poderoso e o mais eficaz. De
quantos perigos nos preservou! Quantas inspirações boas,
quantos estímulos e quantas carinhosas repreensões nos vie
ram dela ou por ela! Quantas graças de luz e de força pe
diu e obteve para nós! No céu o havemos de saber; não es
peremos, porém, até lá para lhe dizer nossa gratidão.
A gratidão, acrescentemos o testemunho de nossa ad
miração, honremos-lhe a dignidade, rendamos glória às suas
extraordinárias qualidades e grandezas.
Uma das grandes alegrias celestes será venerar Maria,
exprimir-lhe nosso respeito, felicitá-la pelos dons que lhe
foram concedidos, e desde já este dever nos deveria ser mui
suave. Assim o compreende a Igreja, e bastaria dizermos
do fundo do coração as palavras que ela nos sugere para
cumprirmos dignamente com este dever. A oração predileta
que a Igreja dirige a Maria é tão bela quanto comovente.
E' uma oração vinda do céu, pois é a repetição da mensagem
enviada pelo Pai celeste à sua Filha bem-amada. Começa
por um louvor às suas grandezas: Ave Maria grafia pleno,
Dominus tecum, benedicta tu in mulieribus et benedictus
fructus ventris tui, Jesus. E' só depois de havermos felicitado
a Santíssima Virgem pelos seus privilégios, depois de nos ter
mos alegrado com sua dignidade, que lhe pedimos, com uma
simplicidade enternecedora, para rogar por nós, pobres pe
cadores, agora e na hora de nossa morte.
283
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Ah! regozijemo-nos com sua felicidade. Não a pode
mos avaliar, é certo, mas devemos lembrar-nos de que a fe
licidade consiste na contemplação das belezas divinas e no
amor satisfeito. Então Maria, que penetra tão fundo no co
nhecimento das infinitas belezas de Deus, e o ama com tão
intenso amor, goza de uma satisfação que ultrapassa de muito
a satisfação de todas as criaturas juntas. Oh! quão doce
é este pensamento ao coração do cristão que preza sua
Mãé! E, entretanto, ele pode ainda dilatar essa felicidade,
pois, à alegria essencial de que goza Maria, pode acrescen
tar prazeres acidentais pela prática d� virtude e pela glória
que rende a Deus.
Se Maria ama a Deus com um amor sublime, tudo quan
to for feito por Deus lhe causará uma alegria viva e de
licada, mais viva e mais delicada que o júbilo causado aos
bem-aventurados. E se ela nos ama com um amor carinho
síssimo e todo sobrenatural, deleita-se mais que o nosso anjo
da guarda, mais que os nossos pais e amigos, no bem que
nos vê praticar e que deve aumentar nossa felicidade por
toda a eternidade. Proporcionai a Maria alegrias tão suaves,
almas cristãs, mostrai-lhe, por generosos sacrifícios, pelo
exercício das mais árduas virtudes, que nada vos custa
em se tratando de lhe agradar. Então, mais que nunca, ex
perimentareis os efeitos de sua poderosa proteção.
284
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XXXII
De Jesus
ln q110 sunt omnrs llltn11ri ·'"l'irnlia� ,t scitntlat
abscomlltl.
\ln, Jcsu& Crlslo �slilo cn«rr11das lodos n� 1esu11ru1
da sabedoria e da cifncla (CI 2, 3).
285
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
1ê-las todas. A ciência humana, já tivemos ocasião de dizer,
desaparece ao lado da ciência angélica, que não foi adquiri
da nem pelo estudo nem pela observação, mas foi infundida
diretamente por Deus e que, não estando ligada a oração
alguma, escapa às falhas da memória. Deus pode comuni
car a uma inteligência criada uma soma tão vasta de conhe
cimentos, que, ao seu lado, toda a ciência adquirida pelo
maior gênio humano que estudasse durante séculos a fio,
sem nada esquecer, seria diminuta. Existem anjos, cuja
formidável inteligência pode reter e cingir num só olhar uma
quantidade de verdades e de fatos que ultrapassam tudo
quanto poderíamos aprender sucessivamente no decorrer de
uma longa vida. Mas a inteligência de jesus é imensamente
superior à dos anjos mais perfeitos; é um abismo profundo
onde podem entrar e manter-se à vontade todos os conheci
mentos angélicos e humanos.
A missão de Jesus não podia exigir menos. A cada ser,
Deus fornece as luzes necessárias para se desempenhar do
papel que lhe foi confiado. Ora, nos deslgnios de Deus,
Jesus, primogênito de toda criatura, é-lhes o modelo e o ideal
acabado. Dele dimana tudo, a ele tudo se refere. E' o re
dos anjos e dos homens. Dele provêm todos os nossos mé
ritos, por eles nos são concedidas todas as graças; tudo quan
to é nosso lhe pertence. Ele deve por conseguinte conhecei
tudo quanto nos diz respeito. Omnia vestra sunt, vos autem
Christl.
286
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
sendo-lhe o princípio, não podia ficar privado daquilo que
ele mesmo dá.
Desde o primeiro momento da Encarnação, a alma bem
aventurada de Jesus gozou da visão divina; no presépio,
e mesmo no seio de Maria, a alma de Jesus via Deus face
a face e possuía, em grau inexcedível, esse conhecimento
da Santíssima Trindade que é uma fonte inesgotável de jú
bilo e de amor; não que conhecesse a Deus como Deus se
conhece a si mesmo, pois essa ciência infinita é só passi
vei à natureza di'Vina, mas via-o tão perfeitamente como o
vê agora, e penetrava tão a fundo no abismo das perfeições
divinas como jamais seria dado fazer aos eleitos, aos espíritos
angélicos e a Maria, sua santíssima Mãe. Assim, de todo tem
po, mesmo quando as outras partes de sua alma estavam
entregues a dores incalculáveis e sem limites, na parte su
perior da alma realizavam-se fenômenos inefáveis e celestiais.
Em Deus, a alma de Jesus via se não todos os seres
passiveis, pois esses, sendo sem número, só uma inteligência
infinita os poderia abranger, mas os seres criados; via o
mundo natural tão vasto, tão belo, tão bem ordenado; via o
mundo sobrenatural, as almas justas, os anjos, os Santos
presentes e futuros, via-se a si mesma, mais bela que todos;
via que, por um s6 ato, glorificava mais a Deus que todas
as criaturas possíveis durante uma eternidade de amor.
Em Deus, a alma de Jesus via, sem se perturbar, a
Paixão com todas as circunstãncias e consequências ineren
tes; via o bem que Deus sabe tirar do mal, a bondade, a
justiça, a misericórdia, a sabedoria divina na salvação dos
homens; as obras de santificação, os sacramentos, a Igreja
e todo o bem que seus méritos iam produzir enquanto duras
se o mundo.
Os olhos dos homens não viram, seus ouvidos não ouvi
ram, seu coração não pode conceber o que a alma de Jesus
via, nem a alegria que o inundava, nem o amor de que ar
dia pela Divindade.
287
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
m. Ciência infusa, amor Hvre e meritório da ahna de Jesus.
268. Mas esse amor celeste não podia merecer, por
quanto o amor que provém da visão de Deus impõe-se ir
resistivelmente. Ora, Jesus devia merecer. Além, pois, desse
amor que tinha por seu Pai e por nós, amor que procedia
do conhecimento beatífico, a alma de Jesus tinha outro amor
por seu Pai e por nós, amor livre e meritório, que procedia
de outro gênero de conhecimento. Podemos dizer que ele
teve duas formas de amor, livres e meritórias, o amor an
gélico e o amor humano, porque, além da visão beatífica,
Jesus teve duas formas de conhecimento, o conhecimento
angélico e o conhecimento humano. Teve a ciência angélica,
que o Pai eterno não podia recusar à alma de seu Filho, já
que a concedeu não só aos anjos e a todas as almas hu
manas quando a morte as separa do corpo, mas também,
e muitas vezes, a seus amigos ainda presos nos laços da
carne. Graças a essa ciência, não houve interrupção na vida
meritória de Jesus. Ele mereceu no seio de Maria, mereceu
em sua infância, mereceu durante o sono, pois nada in
terrompe uma vida que não depende dos órgãos corporais.
Quantos conhecimentos estavam encerrados nessa ci
ência infusa? Por ela, Jesus conhecia a Deus, não lhe pe
netrando a natureza, o que é próprio da visão intuit�va,
mas contemplando-lhe as perfeições com uma maravilhosa
sagacidade, antevendo os povos e os indivíduos de todas as
gerações e de todos os países. Se, em uma longa viagem,
encontrando gente tão diversa, nos lembrarmos que só vi
mos uma parte· ínfima da atual geração, ficaremos impres
sionados com a quantidade imensa de seres humanos que
Deus criou e pelos quais Jesus quis morrer. Ora, a alma hu
mana de Jesus pela ciência infusa conheceu todas essas al
mas, com seus pecados e seus méritos, e as menores cir
cunst.ãncias de sua vida. Jesus conheceu assim todas as
gerações da terra, passadas e futuras, e conheceu-as por
que devia resgatá-las.
A ciência angélica, derramada na alma do Salvador, di
feria da ciência celeste; os seres que lhe manifestava, e
288
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
que sua alma via como que em um segundo quadro, não
lhe produziam a mesma impressão. Tudo quanto via em
Deus, pela ciência intuitiva, sõ lhe podia causar alegria.
Nas perfeições divinas, na justiça, na santidade de Deus via
sua própria Paixão e só lhe podia ser motivo de júbilo ver
essas perfeições divinas e todos os seus efeitos. Mas os ob
jetos que via em si mesmo, pela ciência infusa, causavam
lhe prazer ou tristeza, conforme a natureza de cada um.
269. Se houve, portanto, novas e indescritíveis alegrias
na alma de Jesus, houve, também, indizíveis sofrimentos.
Para compreender as alegrias e as dores do Coração
de Jesus, é necessário compreender o seu amor. O amor
é algo de grande, é um dom precioso que Deus fez às mais
nobres de suas criaturas. A estas, Deus deu em primeiro
lugar a inteligência, depois acrescentou-lhes o amor, não
querendo que permanecessem inertes diante do bem. Mas
estas duas qualidades não são concedidas a todos igual
mente; há espíritos limitados, há outros perspicazes; assim
também há corações frios e há outros afetivos. Ora, Oeus
jamais criou um coração tão terno como o Coração de Jesus,
e seu amor, semelhante à sua ciência, ultrapassa o de to
das
· as criaturas juntas.
Mais vale calar-nos que procurarmos, por meio de mi
seras palavras, por uma fraca idéia do amor livre e meritõ.
rio que o Coração de Jesus teve pelo Pai celeste e pelo
Espírito Santo, amor substancial do Pai e do Filho. Mais
vale também calar-nos que procurarmos exprimir o amor livre
e meritório da alma de Jesus pela sua Mãe santíssima e por
todos nós. Quem jamais nos desejou tanto bem? Quem se
sensibilizou tanto pelos nossos males? Quem se alegrou
tanto com a nossa felicidade?
A medida que crescem o conhecimento e o amor, mais
vivas são as alegrias e mais amargas as tristezas. As dores
que Maria sofreu em vida foram tantas que a tornaram
Rainha dos mártires, porquanto, sendo seu amor maior que
o amor dos anjos e dos homens, sua aflição também foi
maior do que tudo quanto estes pàderiam sofrer, foi vasta
289
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
como o Oceano: Magna est velut mare contritio tua (Lam 2,
13). E que pensar, que dizer, de Jesus? Pela ciência infusa
conhecia melhor a Deus do que Maria e do que todos os
seres juntos, e o amava com insuperável amor; quanto deve
ter sofrido, por conseguinte, ao vê-lo desconhecido, ofen
dido por criaturas rebeldes! E não era sômente a visão ge
ral das iniquidades do mundo que afligia a alma de Jesus,
pois a ciência infusa lhe dava a conhecer claramente os
menores pecados dos homens, e cada um desses pecados
causava-lhe novo sofrimento. Quanto sofreu, portanto, ao
ver as nossas resistências à graça, as nossas inúmeras fal
tas; ao contemplar a perda e a condenação eterna de tan
tas almas! Sua incomensurável potência de amor tornou-se
uma incomensurável potência de dor.
Como se alegrou também à vista de nossas boas obras,
das virtudes heróicas dos Santos, da multidão inumerável
de almas salvas por seus méritos? No céu, acabados os so
frimentos, perduram as alegrias causadas, como nos dias
de sua vida mortal, pela nossa generosidade e pelas nossas
virtudes. Agora, como então, essas alegrias são tão vivas
quanto viva é a afeição que nos tem. Oh! como se alegra
o nosso bom Jesus, quando praticamos o bem, como se
regozija com a idéia de que um dia estaremos com ele.
felizes de uma felicidade sem nuvens, e de que poderá sa
tisfazer então o seu amor e inundar-nos de benefícios!
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
experimental da alma de Jesus, para avaliarmos os misté
rios de sua vida.
Nada é mais interessante que o despertar da inteligên-·
da na criança. A principio não tem noção alguma. Sbmente
depois de um ou dois dias, os olhos começam a ver, sem
discenir os objetos; já no primeiro dia, é verdade, os ouvidos
ouvem, mas os ruídos são confusos. A inteligência está por
assim dizer inexistente; não pode raciocinar, nem sequer
formar o mais leve juízo. Com o andar do tempo, a criança
distingue o agradável do desagradável; é esta talvez a pri
meira idéia que, graças à experiência e graças à lingua
gem e aos gestos da mãe, se introduz no espírito da cri
ança. Então compara as coisas, descobre-lhes qualidades
comuns, e, sem saber, generaliza; percebe que há coisas
hoas e coisas más, seres carinhosos para com ela, sua mãe
e seu pai, e outros que lhe parecem malévolos e lhe ins
piram medo. De quanto tempo precisou para adquirir essa
ciência rudimentar! Pobre inteligência humana de que tau
to se ufanam certas pessoas! Tão tardia em se manifestar;
tão fraca em seus primeiros surtos, tão pouco profunda
e incerta em seus primeiros raciocínios.
Ora, nosso Senhor fez-se filho dos homens, devendo
portanto assemelhar-se em tudo a seus irmãos, unde debuit
per omnia fralribus .i:imilari (Heb 4, 17). "Para melhor com
padecer-se de nossas enfermidades, experimentou-as a todas,
exceto o pecado" (Heb 4, 15). Filho de Deus que era, não
podia deixar de ser maravilhosamente esclarecido; mas, ao
mesmo tempo, por um prodígio tão comovedor quão su
blime, na parte inferior de sua alma, ignorava muitas coisas;
aprendia a conhecer sua Mãe, seu pai adotivo, seus ccnn
panheiros de idade, os habitantes de Nazaré, os lugares
onde decorria a sua infância. Gaguejava aquele que, se
quisesse, podia desde então restituir a palavra aos mudos;
ensaiava os primeiros passos, cambaleando e caindo como
toda criança, aquele que podia curar coxos e paralíticos.
Mais tarde, recebia as lições de José, que lhe ensinava seu
ofício, sendo aprendiz antes de ser operário. Durante sua
291
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
vida pública, por vezes mostrava a ciência sobrenatural
que possuía, mais vezes ainda não fazia uso, em sua vida
exterior, senão de seus conhecimentos experimentais e por
tava-se como os olltros homens; por isso ele admirou com
uma surpresa genuína a fé do centurião e a humildade da
mulher cananéia.
V. O Homem-Deus.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
dade transcendente. Essas luzes, esse amor, essa felicidade
se unem tanto mais harmoniosamente às luzes que recebem
sobre a Santissima Trindade, ao amor que sentem por Deus,
à felicidade que gozam em Deus, quanto contemplam aber
tamente a união íntima e pessoal dessa Humanidade gloriosa
com o Verbo divino.
Conheceis bem o vosso Jesus, piedosos leitores? Estu
dastes todos os tesouros de seu Coração? Quem o conhece
bem, não pode permanecer muito tempo sem se voltar a efo,
sem o admirar, sem nele se comprazer, sem se regozijar
cm ter um tal amigo. Amigo, na verdade, pois assim se cha
mou: Vos autem dixi amicos. "Viver sem Jesus, diz o autor
da Imitação, é um infernoj viver com Jesus é um paraíso sua
ve". (Liv. II c. 8). Ai daqueles a quem não persegue a lem
brança de Jesus! Não conh.ecem tal qual é, e, porque pouco
o conhecem, não podem, senão imperfeitamente, compreen
der os mistérios de sua vida e de sua morte. Mas a quem
foi dado conhecê-lo, não se cansa de contemplã-lo. A sim
ples lembrança de sua infância, de sua pregação evangélica,
de seus benefícios, de sua Paixão, enche-lhe o coração de
sentimentos que não sabe exprimir. Então as preocupações
�errenas não chegam a perturbã-lo nem os males do mundo
a intimidá-lo, enquaato as provações são-lhe fáceis de su
portar. Tais almas vivem na esperança de possuí-lo um dia,
no desejo de agradecer-lhe, no consolo de amá-lo e de serem
por ele amadas.
VI. Conclusão.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
des suaves colóquios, mas principalmente aproveitemo-nos
deles para chegarmos a Deus. Quem galga repetidas vezes
os degraus da escada celeste, quem se compraz em elevar
se assim de maravilha em maravilha, fará uma idéia menos
grosseira do mundo invisível, fará, sobretudo, uma idéia
menos imperfeita de Deus e de suas infinitas grandezas. E
como a piedade se baseia no conhecimento de Deus, a alma
alcançará com maior segurança uma piedade sólida (1).
Transportai-vos, portanto, e com frequência, almas cris-
1às, seja no início das orações, seja no decorrer do dia, para
o mundo dos eleitos; percorrei, sucessivamente, guiadas
µtia visão de fé, as diversas classes que constituem esses
bem-aventurados habitantes do céu; subi, subi ainda, subi
até Maria, depois até Jesus. E Jesus, o Homem-Deus, vos
abrirá os esplendores da Divindade.
1) Sobre as grandezas de Deus ver d'Argentan. COnfe1-ênciu;
:Monsa.bré, Quareama 1814; Leaaius. A.s perfelc;ões divinas.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
APENDICE
295
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
lumes sem esgotar a matéria. Citaremos, porém, para dar uma
idéia das maravilhas que nos oferece o mundo terrestre, al
gumas páginas de um dos maiores escritores franceses, Fé
nelon, em seu belo Tratado da existência de Deus.
275. "Quem suspendeu este globo da terra, que é imó
vel? Quem lhe colocou as bases? Nada parece tão vil quanto
a terra, que é calcada pelos mais desgraçados. Entretanto,
é para possuí-la, que se despendem os maiores tesouros.
Se fosse mais dura, o homem não lhe poderia abrir o seio
para cultivá-la; se fosse menos dura ela não o poderia sus
ter e o homem afundaria por toda parte, como afunda na
areia ou no lodaçal. E' do seio inesgotável da terra que
sai tudo quanto há de mais precioso. Esta massa informe,
vil e grosseira, reveste multiplices formas, e só ela se torna,
alternativamente, em todos os bens que lhe pedimos. Esse
barro tão sujo transforma-se em mil objetos lindos, que nos
encantam os olhos. Em um só ano será ramos, botões, fo
lhas, flores, frutos e sementes, para renovar suas liberalida
des em favor dos homens. Nad.a a esgota; quanto mais se
lhe rasgam as entranhas, mais generosa se torna. Passados
tantos séculos, em que tudo dela saiu, ainda não está
gasta nem sente a menor velhice; suas entranhas contêm sem
pre os mesmos abundantes tesouros. Mil gerações passa
ram pelo seu seio, tudo envelhece, exceto ela, que todos
os anos rejuvenesce na primavera.
"Tudo quanto a terra produz, ao corromper-se, volta
ao seu seio, tornando-se o germe de uma nova fecundidade.
Toma tudo quanto deu, para devolvê-lo novamente. A cor
rupção das plantas e os excrementos dos animais, por ela
alimentados, alimentam-na por sua vez, perpetuando-lhe a
fertilidade. Assim é que quanto mais dá, mais toma, sem
jamais se esgotar, conquanto saibamos, pela cultura, res
tituir-lhe o que nos deu. Tudo lhe sai do seio, tudo a ela
torna, onde nada se perde. As sementes que voltam, mul
tiplicam-se. Confiai à terra grãos de trigo; ao se decompo
rem, germinarão, e essa mãe fecunda vos devolverá mais
espigas do que grãos recebidos. Cavai-lhe as entranhas e en-
296
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
contrareis pedras e mármores para os mais soberbos ediffcios.
Mas quem Jhe encerrou no seio tamanhos tesouros, com a
condição de se reproduzirem continuamente? Vede tantos
metais preciosos e liteis, tantos minerais destinados ao uso
do"homem.
276. "Admirai as plantas que brotam da terra; for
necem alimentos aos sãos e remédios aos enfermos. Suas es
Jlédes e suas virtudes são de uma variedade sem fim; en
feitam a terra; produzem folhagens, flores odoriferas e fru
tos deliciosos. Vêdes as florestas que parecem antigas como
o mundo? As raízes de suas ãrvores se fixam na terra, en
quanto os galhos se elevam aos céus. Essas raízes defen
dem-nas contra os ventos e, quais pequenos tubos subter
râneos, vão em busca dos sucos destinados a alimentar o
tronco; este, por sua vez, reveste-se de uma dura casca, a
fim de abrigar o cerne delicado contra as asperezas do ar,
e os galhos distribuem pelos canos a seiva que as raízes re
imiram no tronco. �o verão, esses ramos nos protegem com
sua sombra contra os raios solares; no inverno alimentam
a chama que nos conserva o calor natural. Seu lenho é não
sómente litil para o fogo, mas é ainda uma matéria maleãvel,
embora sólida e resistente, à qual a mão do homem dã sem
dificuldade as formas que lhe agradam, para os mais im
portantes trabalhos de arquitetura e da navegação. De mais,
as ãrvores frutiferas, baixando os galhos à terra, parecem
oferecer seus frutos ao homem. Arvores e Plantas, deixando
cair frutos ou sementes, preparam em redor de si numerosa
posteridade. A planta mais fraca, o legume mais insignifi
cante contém em pequeno volume, numa semente, o germe
de tudo quanto ostentam as plantas mais frondosas e as ár
vores mais gigantescas. A terra, que nunca se transforma,
opera em seu seio todas essas transformações.
277. "Consideremos agora aquilo que chamamos água.
E' um corpo liquido, claro e transparente, que ora corre;
escapa, foge; ora toma todas as formas dos corpos que o
circundam, não a tendo nenhuma por si mesmo. Fosse a água
um pouco mais rarefeita, e se tornaria uma espécie de ar;
297
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
toda a face da terra seria então seca e estéril e só haveria
animais voláteis, pois nenhum animal poderia nadar, ne
nhum peixe poderia viver; tampouco haveria comércio pela
navegação. Que mão engenhosa terá sabido condensar a
água, subtilizando o ar, e distinguir tão bem esses dois
corpos fluidos?
Fosse a água um pouco mais rarefeita, e não poderia
suster esses prodigiosos edifícios flutuantes que se chamam
navios e os mais leves corpos afundariam logo.
Quem cuidou de escolher uma tão justa configuração
das partes, e um grau tão precioso de movimento, para tor
nar a água tão fluida, tão insinuante, tão própria a fugir,
tão incapaz de consistência, e, entretanto, tão forte para
carregar, e tão impetuosa para arrastar as mais pesadas
massas? E' dócil; o homem dirige-a como um cavaleiro a
seu cavalo, pela ponta das rédeas; distribui-a conforme lhe
agrada; eleva-a sobre montanhas escarpadas, e serve-se de
seu próprio peso, para fazê-la produzir quedas, que a leva
rão a subir tanto quanto desceu. Mas o homem, que, so
branceiro, dirige as águas, é, por sua vez, po_r ela dirigido.
A água é uma das maiores forças motrizes de que o homem
dispõe para suprir, nas artes as mais necessárias, ao que
lhe falta, cm virtude da pequenez e fraqueza de seu corpo.
"Mas essas águas que, não obstantes sua fluidez, são
massas compactas, elevam-se acima de nossas cabeças, per
manecendo suspensas por largo tempo. Vedes essas nuvens
que voam, levadas nas asas dos ventos? Se viessem a cair
repentinamente, em grossas colunas de água, rápidas como
torrentes, tudo submergiriam e destruiriam no local de sua
queda, enquanto as outras terras ficariam estéreis. Que po
der as mantém nesses reservatórios suspensos, não lhes per
mitindo cair senão gota a gota, como se alguém estivesse
a distilá-las de um regador?
"Assim a água desaltera não sómente o homem, mas
ainda os campos áridos, e aquele que nos deu esse corpo
fluido, distribuiu-o com tanto cuidado sobre a terra como
os canais de um jardim. As águas caem das altas mon-
298
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
tanhas onde estão colocados seus reservatórios; nos vales,
formam ribeiros, depois os rios que serpeiam pelos vastos
campos para melhor regá-los e, por fim, se precipitam no
mar. As águas, distribuídas com tanta arte, circulam na
terra, como o sangue circula no corpo humano.
278. "Tendo considerado as águas, examinemos agora
outras massas, mais extensas ainda. Vedes aquilo que se
chama ar? E' um corpo tão puro, tão subtil e tão transpa
rente, que os raios dos astros, situados a uma distância qua
se infinita da terra, o atravessam instantâneamente sem a
menor dificuldade a fim de nos iluminar os olhos. Um pouco
menos de subtileza nesse corpo fluido nos teria roubado a
claridade, ou nos deixado uma luz fraca e confusa, qual
o ar carregado de espessa neblina. Vivemos mergulhados
nos abismos do ar, como os pei:X:es nos abismos da água.
Assim· como a ãgua, se fosse subtilizada, se tornaria numa
espécie de ar, que mataria os peixes, o ar, por seu lado, nos
privaria da respiração, se se tornasse mais espesso e mais
úmido e haviamas de perecer nessas ondas de ar conden
sado, como o animal terrestre parece no mar. Quem terá
purificado com tanta precisão esse ar que respiramos? Fosse
mais espesso e nos sufocaria; fosse mais subtil e não pos
suiria essa doçura que o torna num alimento constante
para a vida humana. O homem experimentaria então e por
toda parte o que experimenta nos cimos das altas montanhas,
onde o ar rarefeito não é suficientemente í1mido e nutri
tivo para os pulmões.
"Mas que poder invisivel excita e acalma de súbito as
tempestades desse grande corpo fluido, e que trazem como
consequência as tempestades do mar?
"De que tesouro saem os ventos, que purificam o ar, que
abrandam as estações ardentes, que temperam o rigor do in
verno, transformando num instante o aspecto do cêu? Le
vadas nas asas desses ventos, as nuvens voam de uma a ou
tra extremidade do horizonte. Sabemos que certos ventos
reinam cm certos mares em determinadas estações, e por
determinado tempo a serem sucedidos por outros, como que
299
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
propositadamente para tornar as estações mais fáceis e re
gulares. Fossem os homens pacientes e pontuais como oS
ventos, e poderiam empreender, sem receio, as mais longas
viagens.
279. "Vedes o fogo que parece estar aceso nos astros,
a irradiar a luz por toda parte? Vedes a chama lançada
por certas montanhas, e que a terra, em suas entranhas,
alimenta de enxofre? O homem soube acender esse mesmo
fogo e utilizar-se dele continuamente. Emprega-o para ver
gar os mais duros metais; emprega-o para, com a lenha,
entreter, mesmo nos climas gélidos, uma labareda que lhes
substitua o sol que se afasta. O fogo empresta sua força
à fragilidade dos homens, e, num relance, arranca edificios
e rochedos. Mas, se lhe quisermos restringir o uso,- aquece
o homem e lhe coze os alimentos. Os antigos, admirando
o fogo, julgavam-no um tesouro celeste, que o homem
roubara aos deuses.
28 0. "E' tempo de levantarmos os olhos ao céu: Que
poder terá construido, acima de nossas cabeças, uma abó
bada tão vasta e tão majestosa! Que admirável variedade
de objetos maravilhosos! Por vezes, vemos um azul som
brio onde brilham as luzes mais puras; outras vezes, num
céu temperado, são suavíssimos tons, cujas nuanças a pin
tura não pode copiar; outras vezes ainda, são nuvens que,
revestindo formas variadas e cores vivas, modificam a ca
da instante a decoração celeste pelos mais deslumbrantes
efeitos de luz.
281. "Que significa a sucessão regular dos dias e das
noites? O sol, nesses longos séculos, nunca deixou de servir
aos homens, que dele não prescindem. Há milhares de anos
que a aurora nem uma só vez deixou de anunciar o dia;
começa-o no momento e no lugar determinados. O sol, diz
a Escritura, sabe onde se deve deitar cada dia, e assim
ilumina, alternadamente, os dois hemisférios, visitando. a
todos com seus raios. O dia é' o tempo da sociedade e do
trabalho; a noite, envolvendo a terra em trevas, põe fim,
pouco a pouco, a todas as fadigas e suaviza todas as penas.
300
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Tudo suspende, tudo acalma. Espalha em redor o silêncio
e o sono; e enquanto os corpos descansam, os espíritos
se renovam. Em breve volta o dia a chamar novamente o
homem ao trabalho e reanimar toda a natureza.
"Mas, além desse curso uniforme, que constitui os dias
e as noites, o sol apresenta outro, pelo qual durante seis
meses se aproxima de um polo, e, durante outros seis, visi
ta com igual diligência o outro.
"Essa ordem perfeita permite que um único sol haste a
toda a terra. Se, dada a mesma distância, fosse maior, abra
saria o mundo inteiro e a terra se desfaria em poeira; se fosse
menor, a terra se tornaria gelada e inabitável; se, dada ainda
a mesma dimensão, estivesse mais próximo de nós, nos quei
maria; se estivesse mais longe, não poderíamos subsistir
no globo terrestre por falta de calor. Que compasso pôde,
contornando o céu e a terra, tomar tão justas medidas?
Esse astro não beneficia menos uma parte do globo quando
dela se afasta para temperá-la do que quando se aproxima
da outra para favorecê-la com seus raios. Seus olhares
benfazejos a tudo fertilizam. Essa mudança constitui a su
cessão das estações, cuja variedade é tão agradável. A pri
mavera faz calar os ventos glaciais, exibe flores e promete
frutos. O verão produz as abundantes colheitas. O outono
espalha os frutos prometidos pela primavera; e o inverno,
espécie de noite em que o homem descansa, concentra todos
os tesouros da terra, para permitir que a primavera seguin
te os apresente com todos os encantos da novidade. A na
tureza, tão diversamente ornamentada, oferece alternada
mente espetáculos tão maravilhosos, que não dá tempo ao
homem de se desgostar daqueles que possui".
282. E o grande escritor continua suas descrições; fala
das estrelas do firmamento, estuda os animais e suas es
pêcieis tão variadas, os pássaros do céu, os peixes; e embora
só toque de leve em assunto tão vasto, não deixa de des
cobrir inl1meras provas da sabedoria do Criador. E que dizer
do homem, de seu corpo, com órgãos tão bem colocados,
tão perfeitamente aptos a cumprir com suas delicadas funções?
301
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Mas, por brilhante que seja este quadro, é necessària
mente incompleto, pois, no tempo de Fénelon, tantas mara
vilhas e energias da natureza, hoje conhecidas, ainda eram
desconhecidas! As formidáveis descobertas realizadas hã
dois séculos e às quais outras se acrescentam dia a dia, vie
ram demonstrar, com maior esplendor ainda, o poder e a
sabedoria que o Criador revelou neste mundo inferior da
matéria.
Eis, portanto, a obra divina, tal qual se apresenta aos
nossos olhos. Mas, para realizar tamanhas maravilhas, esse
grande Deus não careceu de estudos, nem de investigações,
nem de cálculo. Um simples olhar - olhar que data de to
da a eternidade - tudo decidiu; um só ato de vontade.
igualmente eterno - decretou que, em determinado dia, to
dos esses seres viriam à existência, que cada qual realizaria
uma missão e, assim, todos os acontecimentos do mundo
se desenrolariam numa ordem perfeita até ao fim dos tempos.
302
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
vezes, e outras milhões de vezes mais longe. A bala precisa
ria porfanto de milhões de anos para atingi-las, mil vezes
o tempo que se passou desde a criação do primeiro homem.
E se essa mesma bala fosse projetada de uma estrela a
outra, precisaria ainda de milhões de anos para afetuar cada
\'iagem, ião distante estão umas das outras mesmo aquelas
que nos parecem mais próximas. Se pudéssemos visitar su
cessivamente todos os astros do céu, voando com a ve
locidade de uma bala de canhão, milhares de séculos não
nos bastariam.
Depois de medir pelo pensamento tamanha grandeza,
continuamos a não ter idéia alguma da imensidade de Deus.
Não dissemos nada de parecido, e mil outros mundos, maio
res que este, seriam diante de Deus menos que um grão
de areia comparado à imensidade dos céus. Deus poderia
durante toda a eternidade estar sempre a criar novos mundos,
sem que esses o pudessem conter ou limitar, pois haveria
sempre um termo, um ponto em que o mundo acabaria, e
Deus não conhece limites. E' um círculo infinito. Elevai-vos
ao alto ou mergulhai nos abismos inferiores, ide à direita
ou voai à esquerda, depois de terdes caminhado durante
milhares de séculos com a velocidade da luz ou da eletricida
de ( 1), não vos tereis aproximado da circunferência, con
tinuareis no centro, pois "o centro está em toda parte e a
circunferência não está em parte alguma".
Mais admirável ainda é que esse grande Deus não enche
o mundo da mesma forma que os seres corpóreos, dos quais
uma parte ocupa um ponto do espaço e outra parte, outro.
Não, Deus é espirita, portanto enche tudo sem se dividir,
está em toda parte, mas em toda parte está inteiro, como
inteiro está em cada lugar, inteiro em Ioda a imensidade.
284. Deus está, pois, em toda parte e como está em
toda parle, nada lhe escapa e sua ciência não tem limites.
Falamos da ciência adrnirãvel que possuía a alma de
Jesus. Tinha sempre presente todos os homens de todas as
1) Setenta mil léguas por minuto aproximadamente.
303
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
épocas, conhecia-lhes os homens, os trabalhos, as ocupações,
as habilidades, o caráter, os afetos do coração, os sen
timentos, os desejos, os temores, os mais recônditos pen.,.
sarnentos. Mas esse conhecimento universal e perfeito, de
toda a raça humana, que possuía a alma humana de Jesus
e que já nos parece tão admirável é uma simples parcela
da ciência divina.
Deus conhece igualmente todas as outras criaturas,
sabe o número de gotas de água do Oceano e a história que
acompanha a cada qual, desde a sua criaçã0i sabe, para
empregar a palavra de Jesus Cristo, o número de cabelos
de nossa cabeça, dos quais nenhum cai por terra sem sua
licençai sabe o nómero de grãos de areia, dos raminhos da
relva, das folhas das árvores. Que a nossa imaginação avalie,
se puder, a extensão deste universo, que calcule o nórnero
quase infinito de criaturas de toda espécie que o compõem,
animais tão diversos, peixes que enchem os rios e os mares,
insetos, micróbios, contidos às centenas, aos milhares, em
cada talo de verdura, cm plantas multiformes, minerais, pe
dras ocultas no solo até às profundezas da terra, todas essas
criaturas, cuja simples enumeração nos assusta, Deus as
conhece a todas e a cada uma perfeitamente. Conhece as
criaturas inumeráveis dos outros astros, maiores em geral
que o nosso globo.
Assim como Deus vê 'simultâneamente a todos os seres
que existem hoje, vê tamb�m os que já não existem; vê
todos os fatos passados, todos os sentimentos, todos os pen
samentos que agitaram o espírito e o coração das criaturas
racionais, todas as alterações que sofreram sucessivamente
os seres inanimados. Numa palavra, contempla todo o passado,
ou antes tudo lhe é presente e não hã passado para ele.
Também não há futuro. Todos os acontecimentos (lue
se sucederão atC ao fim dos tempos ele os conhece, nas suas
minúcias mais insignificantes; os séculos vindouros mais
remotos não lhe reservam segredo algum, não que aritevcja
o que possa acontecer, mas porque vê a todos os fatos
futuros como já existentes.
304
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
285. Estas considerações nos deixam perceber quão
vasta é a inteligência de Deus, e entretanto, por mais inu
meráveis que sejam os acontecimentos passados, presente.s
e futuros, desaparecem diante do número incomparàvel
mente maior dos fatos possíveis, que Deus conhece igual
mente. Cada acontecimento deste mundo poderia ser diferente,
poderia mudar em suas mil e uma circunstâncias; o menor
fato poderia variar até ao infinito e acarretar uma modifica
ção em tudo que dele depende. Ora, Deus conhece todas
as alterações possíveis, tudo quanto teria podido se realizar
no passado, e que poderá ainda se dar no futuro. Sabe os
milhões e milhões de mundos que teria podido criar. "Conhece
todos os atos, todas as palavras, todos os pensamentos que
poderiam formar os homens com os quais encheria tais mun
dos, todas as diferentes espécies de criaturas que neles po
deria colocar com as virtudes, as propriedades e as dis
posições de cada qual ( 1 ) .
286. Tal a extensão incomensurável da ciência de Deus.
Tal a multidão imensa de pessoas, de coisas, de fatos que
sua inteligência encerra. E, para tudo conhecer, Deus não
necessita de investigação alguma, de estudo algum; ocupa-se
tão pouco com a visão, com o conhecimento atual e dis
tinto dessa infinidade de objetos, como se de nenhum co
gitasse; entretanto vê a cada um tão perfeitamente como
se não olhasse para os outros. Sua ciência é eterna e in
variável; desde toda a eternidade os olhos de Deus viram
o que vêem hoje e os séculos futuros nada lhe terão a revelar.
287. Mas de que modo conhece Deus tantos seres exis
tentes e possíveis? Em si mesmo. E' em sua divina essência
que os vê, que os contempla; que os vê em suas causas com
sua l',!,atureza específica e todos os seus caracteres individuais.
Com efeito, Deus vê e contempla continuamente toda
a infinidade de suas admiráveis perfeições e vê os modos
pelos quais essas perfeições são participáveis. Vê toda a
extensão de seu poder e, por conseguinte, tudo quanto po-
1) Padre d'Argent1.n, op. clt.
305
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
deria criar, conservar, aniquilar. Vê toda a sua sabedoria di
vina; ora, é essa sabedoria que cuida, dirige e governa todas
as criaturas e nada acontece senão o que previu, o que quis
e permitiu. Em sua infinita sabedoria, Deus vê, portanto,
todos os acontecimentos presentes, passados e futuros, ou
possíveis, deste mundo e de todos os mundos imagináveis.
Vê todas as riquezas de sua bondade infinita e assim todo o
hem que quer e pode fazer às suas criaturas. Vê toda a
equidade de sua divina justiça, todas as sentenças que serão
pronunciadas sobre os eleitos e os réprobos, assim como
as recompensas que lhes serão dadas e os castigos que lhes
serão infligidos segundo os respetivos méritos.
Mas todos esses atributos que distinguimos em Deus,
poder, sabedoria, bondade, justiça, não são distintos uns
dos outros, como teremos ocasião de dizer, mas uma (mica
e mesma perfeição, ou, antes, são o próprio Deus, o Ser
essencialmente simples. E vendo-se a si mesmo, Deus vê
a tódos os seres, com um olhar uno e simples, que tudo vê,
tudo abrange, qLie não se multiplica, nem se reitera.
288. A ciência de Deus é universal, não é, porém, uma
ciência estéril; Deus não é um espectador ocioso; se nada
escapa ao seu olhar, nada tão pouco escapa à sua ação, e
o seu poder se exerce por toda parte e simultâneamente.
O poder de Deus é-nos também um justo motivo de
admiração. Manifesta-se, em primeiro lugar, na criação de
tantos seres diversos. De onde vêm essas criaturas? De onde
as tirou Deus? De que se serviu para formá-las? Tirou-as
do nada. Formou-as do nada. Se todos os habitantes da
terra juntassem as forças, recorrendo os mais destros operá
rios à sua indústria, os maiores sábios à sua ciência, não
poderiam tirar do nada um grão sequer de areia; C axioma
incontestado da ciência humana que, do nada, nada se faz:
ex ni/1ilo nihil fit. Nem os espíritos angélicos teriam maior
habilidade lidando com o nada e, juntos, não poderiam pro
duzir um grão de poeira, um simples átomo. Ora, Deus,
do nada, fez as criaturas; criou a matéria corpórea, a massa
dos corpos celestes, os objetos tão diferentes da natureza;
306
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
criou o mundo dos espiritos que não lhes é inferior em ri
queza nem variedade. E tudo isso sem esforço: lps� dixit
el facta sunt. Ele disse, e tudo se fez; quis e os seres que
não existiam surgiram logo em sua presença, exclamando:
eis-nos, adsumus.
289. Deus tudo criou, tudo conserva. Os seres, uma vez
criados, não poderiam por si mesmos conservar a existência
de empr(·stimo que receberam do Criador. Não se asseme
lham ao quadro que subsiste, quando o pintor abandona os
pincéis; a�semclham-se, antes, aos sons que se extinguem
quando o instrumento deixa de vibrar, ou ao raio de luz que
se apaga, quando a lâmpada pródutora deixa de brilhar.
Assim, toda criatura seria imediatamente aniquilada. Deus
nos C tão necessário agora e a cada momento de nossa
vida como o foi para nos dar existência, e a conservação é
uma criação continuada. Para impedir que a multidão imensa
das criaturas volte ao nada, é mister ainda, a todo mo
mento, um poder igual àquele que as tirou do nada.
290. Se as criaturas não podem subisistir, como pode
riam então agir sem Deus? O mesmo Deus, que lhes con
serva a vida, comunica-lhes, a cada instante, ação e mo
vimento. Essas criaturas de toda espécie que povoam o mun
do, estão sujeitas à ação divina e Deus se ocupa de cada
uma em particular. Empresta seu concurso àquelas que fez
inteligentes e livres e que, sem esse concurso divino, per
maneceriam inertes, enquanto a liberdade lhes seria um dom
inUtil; dirige as outras, quer em seus atos instintivos, quer
em suas operações vitais, quer em seus impulsos puramente
mecânicos. pois, embora tivessem recebido uma atividade
própria, essas criaturas não poderiam desenvolvê-la, se no
momen1o preciso Deus não lhes fornecesse os meios.
O espirita se perderia se fosse calcular o número desses
movimentos, desses atos das criaturas. Enumerem-se, se
possível, os habitantes da terra, os eleitos do céu, os réprobos
do inferno, os seres privados de liberdade. Esses seres,
tão diferentes, agem de modo diverso e, não raras vezes,
cm sentido oposto. Ora, nenhum ato, nenhum movimento
307
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
se realiza sem o concurso de Deus. Deus basta a tudo e,
sem o menor esforço, sem trabalho algum de sua parte, atua
em toda parte e opera com tudo quanto opera: Omnia opera
nostra operatus es nobis: "Todas as nossas obras, Senhor,
vós as operastes em nós" (Is 2, 12).
308
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
nos a uma infinidade de outros seres que teria podido criar
en1 nosso lugar; só isso bastaria para fazer de Deus o
nosso maior benfeitor. Deu-nos a vida, que nos distingue
dos seres inanimados, e os sentidos que nos põem em relação
com os outros seres, beneficio precioso cuja importância
é tanto mais estimável quanto mais considerarmos a des
graça daqueles que deles estão privados. Deu-nos a me
mória, que nos recorda do passado, deu-nos a inteligência,
dom admirável, que nos eleva poderosamente acima das
outras criaturas e nos imprime uma primeira semelhança
ao próprio Deus; deu-nos a vontade, para amar e procurar
o bem; deu-nos, neste corpo vivificado pela alma, um ins
trumento admirável, dotado de órgãos cuja perfeição nos
assombra à medida que melhor os conhecemos.
293. Devemos também à bondade divina o não termos
sido lançados sobre a terra sem apoio, abandonados aos
nossos próprios recursos. Deus deu-nos, em nossos pais,
um amparo e um auxílio indispensáveis, quis que fossem
seus primeiros representantes junto a nós, comunicou-lhes
parte de sua autoridade, colocou-lhes no coração uma cen
telha de amor que nos tem, a fim de levá-los a velar sobre
nós com solicitude, a prover todas as nossas necessidades
e a cercar-nos de cuidados e de carinho. Deus é, pois, autor
inicial de todos os beneficias que a criança recebe dos pais
e a ele deve ela dirigir suas primeiras ações de graças.
Devemos também a Deus os benefícios que recebemos de
nossos semelhantes; é Ele quem lhes proporciona os meios
e a vontade de nos ser úteis, é ele quem fez do homem um
ser sociável, levando-nos assim, quer pelo interesse, quer
pela benevolência, a socorrer uns aos outros.
294. Se contemplarmos a natureza, encontraremos por
toda parte os beneficias divinos. As plantas que nos for
necem alimento e roupa; o ar, que nos vivifica; a água, que
nos é tão necessária; o fogo que nos aquece; os astros que
nos iluminam; a terra que nos sustém; tudo enfim que nos
rodeia é 11111 dom divino; Deus tudo fez por nós; nós somos
suas criaturas privilegiadas: "O' meu Deus, exclama o
309
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Profeta inspirado, que é o homem mortal para que vos lem
breis dele? Todavia, apesar de sua pequenez, apesar de
sua miséria, vós o coroastes de glória e de honra, e o fi
zestes dominar todas as obras criadas pelas vossas mãos,
colocastes tudo sob seus pés, ovelhas e reses, animais terres
tres e aves celestes, peixes e tudo que se move nas águas
do mar, tudo déstes aos filhos dos homens".
295. Não seria, por certo, pequena tarefa enumerar
todos os benefícios que recebemos de Deus na ordem na
tural, mas como falar dos benefícios muito mais preciosos,
que nos concede na ordem sobrenatural? Oferece-nos a gra
ça, dom tão elevado que todas as criaturas juntas jamais
o poderiam atingir ou sequer imaginar. Pela graça, Deus
nos faz participar it sua própria natureza; pela graça, passa
mos de súdito e escravo, a revestir uma natureza nova,
que nos torna verdadeiro filho de Deus e nos diviniza de
certo modo. E' como que uma emanação da Divindade, que
comunica à alma uma beleza e uma energia divinais. Ora,
esse benefício, de inestimável valor, Deus o oferece a todos
nós e não deseja senão derramá-lo em abundincia sobre cada
um de seus servos; ao primeiro sinal, à primeira súplica
de seus fiéis ou em seguida a qualquer boa obra, ele au
menta-lhes tão precioso tesouro. Que dizer então dos outros
benefícios espirituais, dos auxilias que nos concede com
tamanha liberalidade? pensamentos santos, piedosas inspira
ções, ardentes desejos do bem; sacramentos, que cunharam
o preço de seu Sangue e que são quais imensos canais
onde derrama graças abundantes; qualidades sobrenaturais,
virtudes, dons, que se compraz em comunicar! Gosta de
espalhar seus bens, de espalhá-los cm profusão. Dá, dá
sempre; dá, sem se esgotar, qual sol que irradia a luz sem
diminuir o seu esplendor, que difunde o calor sem nunca
se esfriar; dá, assim, sem cessar e nada retém a efusão de
seus benefícios: Nec est qui se abscondal a calore ejus; sua
ação benfazeja se exerce em todos os lugares e ninguém
escapa à sua liberalidade. Nas palavras de um teólogo (1),
l) Contenson.
310
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
"Ele dá a todos, e isto já é grande; dá aos ingratos, e isto
é maior ainda; dá mau grado a vontade daqueles que o re
pelem, e isto é o cúmulo; depois, nada mais tendo a dar,
dá-se a si mesmo, e isto é divino". Sim, dá-se a si mesmo,
palavra inefável que bem prova que a bondade divina é in
finita. O céu, com efeito, é Deus mesmo comunicado à alma,
(• a alma enriquecida da Divindade, penetrada, transfor
mada pela Divindade, tomando parte na vida intima, na
própria felicidade de Deus. Os demais dons confinam neste
e foi para isso que Deus nos criou. E' isso que tem continua
mente em vista na conduta d.e sua Providência em relação
a nós: fazer-nos um dia comer à sua mesa, segundo a ex
pressão da Escritura, tornar-nos felizes de sua felicidade.
Pobre criatura humana, quão digna és desse favor! Deus,
que possui tantos tesouros, não mais te poderia dar cum esset
ditissimus, plus dare rum pot11it, e esse dom que te faz de
si mesmo, e um dom eterno!
296. Eis, portanto, como Deus se compraz em distri
buir os seus dons. Não é, porém, cego em sua liberalidade
e, se derrama benefícios em profusão, fá-lo com discerni
mento e prudência, guiado pela sua infinita santidade. E
que C santidade? E' o ódio ao mal, é o amor ao bem, isto
é, o bem moral, que é a ordem perfeita. Ora, em Deus, é
infinito o ódio ao mal, infinito o amor ao bem.
E foi por querer esse bem moral que ele criou seres
livres, capazes de. atos honestos e virtuosos. Os seres in
feriores cumprem, inconscientes, o papel que a Providência
lhes designou; o boi sulcando laboriosamente o solo, o cão
guardando e defendendo o dono, a galinha protegendo os
pintos, seguem a ordem estabelecida por Deus; como, porém,
obedecem fatalmente ao seu instinto, não têm mérito algum
e nenhuma santidade lhes é possível. Deus quis mais do
que isso, quis seres à sua imagem, livres de querer e de
amar o bem e, por isso mesmo, capazes de ser santos, como
ele mesmo é santo.
297. E' porque Deus nunca faz violência à nossa li
berdade e não nos obriga ao bem. Nada omite, porém, para
311
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
levar-nos a pratic'á-lo, e cuida de no-lo fazer conhecer. Jã
nos primeirós tempos da humanidade, revelou sua lei aos
homens, deu-lhes a conhecer, em suas linhas principais, as
hases da moral, de maneira a ninguém se pode·r iludir, jul
gando bom o que é mau, e mau o que é bom. Gravou nos
corações sua lei moral; quis pela voz da consciência que
fôssemos sempre avisados de nossos deveres, de nossas
obrigações. Nossa consciência está, por conseguinte, sempre
alerta para nos advertir quando nos afastamos do caminho
reto, ou para nos impelir ao bem quando hesitamos.
Tudo isso, ai de nós! não bastou. Os homens abusaram
de sua liberdade, o mais belo dom que Deus lhes concedeu;
transgrediram a lei divina que o Deus três vezes santo lhes
ditara com tanto cuidado. Mas essas prevaricações só ser
viram para salientar a santidade do Criador. O mundo não
conhece mais a virtude, o mundo se corrompeu; Deus man
dará então seu Filho para tirá-lo do pecado e dar-lhe os
exemplos de santidade de que tanto carece.
298. Tal é, com efeito, o duplo fim da Encarnação, e
nada nos revela melhor a infinita santidade de Deus, seu
ôdio ao mal e ao pecado, e seu amor à virtude. Teve um
ódio infinito ao pecado, esse Deus que, para destrui-lo, deu
seu Filho ao mundo e deu-o para ser imolado; um ódio in
finito teve ao pecado esse Filho de Deus que, para expiá-lo,
se humilhou ao ponto de revestir a forma de escravo, e
cuja vida inteira teve um só fim: destruir o pecado e im
plantar a virtude. Lembremo-nos da vida de sofrimentos
do Homem-Deus, das privações que padeceu, de suas pre
gações exaustivas, de suas excursões evangêlicas, de seus
trabalhos, de suas instruções admiráveis, de suas exortações,
cm uma palavra, de todas as obras de st1a vida e, acima
de tudo, das dores tremendas, indescritíveis de sua Paixão.
299. Que lhe restava ainda fazer para expiar o pecado
e hani-lo para sempre do mundo? A santidade de nosso
Deus exigiu, porém, mais ainda. Essa obra de santificação
que começara, quis vê-la continuada. Fundou, por conse-
3i2
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
guinte, a Igreja e a conservará até ao fim dos séculos apesar
de todos os esforços em contráZ'io do inferno; por ela, con
tinuará a pregar o afastamento do mal, a inspirar o horror
ao pecado, e levar as almas à prática da virtude. Sim, é
ao Deus três vezes santo que remontam os mil meios de
apostolado de que a santa Igreja dispõe para a preservação
e a santificação das almas, para seu culto tão suave e salutar,
para suas instruções e missões, para os cuidados que dis
pensa à educação, e seus variados trabalhos. Deus C a ori
gem e o princípio de todas essas obras, é ele quem inspira
a seus filhos simultâneamente, em todos os pontos do globo,
tanto zelo e atividade, só a ele deve reverter toda a glória.
E todos os bens espirituais, que nos provaram a sua
bondade, não demonstram igualmente a sua santidade? Não
foi, por exemplo, para oferecer a seus filhos meios mais
suaves e eficazes de santificação que instituiu os sacramen
tos, e mormente esse adorável Sacramento, cm que se torna
ele próprio alimento de seus débeis filhos?
E essa perfeição, chamada justiça de Deus, é tambêm
santidade de Deus. A justiça divina pune o mal e recom
pensa o hem, porque está dentro da lei que o mal seja cas
tigado e o hem recompensado, e também porque o castigo
afasta do pecado, enquanto a recompensa anima a virtude.
Deus recompensa o bem com uma justiça cuja exati
dão e admirável, pois cada obra é tida ao seu justo valor e
a mais trivial e aparentemente insignificante, se for feita
num espírito sobrenatural, é contada por Deus e acresce
nos a graça e a glória.
313
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
sa desordem que é o pecado? Aí aparecem sua justiça, sua
paciência, sua misericórdia.
A justiça vingadora exige, impreterivclmente, que a
desordem causada pelo pecado seja reparada. Ora, o pecado
mortal é uma ofensa cuja gravidade é até certo ponto in
finita, pois ultraja uma majestade infinita. Se não for, por
tanto, apagado pelo ato contrário, que é a detestação da
falta, se a criatllra, que se desviara de Deus, não tornar a ele,
a Justiça divina infligirá um castigo que não terá fim.
Os eleitos aplaudem essa sentença irrevogável, enquanto
os próprios réprobos não podem deixar de reconhecer que
sua sorte foi bem merecida.
Quanto ao pecado destruído pela contrição, se o arre
pendimento, como acontece quase sempre, não for bas
tante vivo nem bastante forte para contrabalançar a ofensa
feita a Deus, sua justiça exigirá ainda uma expiação. E'
porque essa justiça se exerce constantemente, que todos os
males que afligem o mundo podem ser considerados como
obras suas. Em geral, os que são castigados merecem a
punição, pois raríssimos são aqueles que não têm divida
alguma para com Deus. Mesmo quando a provação atinge
os justos, é a justiça que se manifesta, pois os justos, a exem
plo de seu divino Mestre, sofrem pelos culpados; assim se
paga, em parte, a dívida do pecado. Entretanto, as penas
da terra são ainda insuficientes; é preciso que as chamas
do purgatório venham terminar a obra de expiação. Sómente
então a inflexível justiça se dará por satisfeita.
301. Quem compreende a gravidade do pecado, e con
sidera a maneira pela qual reina quase soberanamente sobre
a terra, longe de se admirar dos golpes da justiça divinn,
estranha não serem os castigos mais terríveis ainda. Tão
grande é a malícia do pecado, tão revoltante a insolência
desse miserável nada que se insurge contra Deus, tão in
fame a perversidade desse cgoista que demonstra a mais
monstruosa ingratidão para com o maior dos benfeitores!
Quem peca, crucifica de novo a Jesus Cristo, segundo
a palavra de São Paulo. Com efeito, foi o pecado mortal
314
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
que causou a morte de nosso Senhor e foi, por todos os
pecados em geral, e cada um em particular, que Jesus sofreu
os tormentos de sua Paixão. Cometer um único pecado
mortal ê, portanto, cooperar no deicidio, é renovar a ini
quidade de Pilatos, de Judas e dos algozes, C tomar parte
cm todos os tormentos que lhe foram infligidos em sua do
lorosa Paixão e assumir-lhes a responsabilidade.
Ora, tal é o espetáculo que fere diàriamente o olhar
de Deus, desse Deus tão bom, tão amável, a quem todas
as criaturas deviam estar pressurosas por servir e glorificar!
Suas infinitas perfeições, seus múltiplos benefícios, deveriam
ganhar-lhe todos os corações, submeter-lhe todas as von
tades e, todavia, ninguém C tão ofendido, e bem numerosos
são aqueles que o injuriam! Haverá uma hora, um só ins
tante, em que Deus não seja ultrajado? Só ele é assim ofen
dido. Deus vê todas as ofensas que lhe são feitas, ouve
todas as blasfêmias que são proferidas contra ele, vê suas
leis violadas, suas vontades desprezadas, seus benefícios
pagos com ingratidões. Ele, que tem um horror supremo ao
pecado, e tem o pecado sempre presente.
302. Não nos deve pois surpreender que a justiça di
vina reserve ao pecado penas eternas, mas sim que Deus
11 suporte com tamanha paciência, adiando os castigos que
lhe poderia infligir imediatamente. Poderia fazer calar de
si1bito as insolências da miserável criatura que se revolta con
tra ele; poderia castigá-la incontinenti e vingar-se dessas
afrontas; mas assim não quer; retém seu poder, deixando
\'iver em paz seus inimigos e blasfemadores. Mas quan
tos pecadores, longe de se aproveitarem dessa delonga, de
se comoverem com essa paciência, empregam-na para cair
em novas faltas. Mergulham cada vez mais profundo no
\'Ício, acumulam pecado sobre pecado, até desconhecerem
a extensão de suas próprias iniquidades. Enquanto isso,
a cólera de Deus vai aumentando, cada falta avoluma a
torrente de vinganças divinas. Que dique poderâ contê-la?
Que força poderâ suster a mão do Deus infinitamente justo?
Tal maravilha será devida à sua paciência infinita. Tão justa
315
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
é a cólera divina que, para impedir-lhe a ação, será necessário
um milagre muito maior do que para impedir que o fogo
queime o objeto lançado na fornalha. E a paciência de
Deus realiza esse milagre; só ela sabe conter a justiça in
finita, tão profundamente irritada; e ai está, segundo São
Paulo, a obra-prima da onipotência divina. "Deus, diz o
Apóstolo inspirado, querendo manifestar o seu poder, so
freu com extrema paciência os vasos da ira, aparelhados
para a condenação" - Volens notam facere potentiam suam
sustinuit in multa 1Jatientia 1•osa irae apta in interitum
(Rom 9, 22).
303. Por que espera ele então? Porque quer perdoar.
A paciência retém a justiça para que a misericórdia se pos
sa exercer. Essa misericórdia de Deus, mais que qualquer
outra perfeição sua, toca-nos o coração e enche-nos de ad
miração e de confiança. Quem pensa na infâmia, na ingra
tidão, na insolência do pecado, há de se admirar de que Deus
consinta cm perdoá-lo. E em geral não é um só pecado que
Deus perdoa, C uma longa série de faltas graves, talvez as
mais abomináveis, as mais horríveis que se possam cometer,
pois, por mais numerosos que sejam os pecados, por maiores
que pareçam, a misericórdia divina é sempre maior. E quan
tas vezes terá o pecador, que solicita o perdão, abusado
dessa mesma misericórdia. Talvez já tenha sido perdoado
cem vezes, mil vezes e tenha prometido não cair mais, e caiu
novamente, violando sua promessa e insultando ainda a
hondade divina. Entretanto, Deus não se cansa; se perdoou
cem vezes, mil vezes, há de continuar. Conquanto o pecador
renove o ato de contrição sincero, será sempre perdoado.
E esse perdão Deus não o difere um instante sequer;
se a alma culpada manifestar arrependimento, logo lhe serão
restituídas as graças. Como se isto não bastasse, Deus, em
sua infinita bondade, dignou-se instituir um sacramento,
que facilita ainda o perdão, e que, aplicando os méritos do
Sangue de Nosso Senhor, apaga imediatamente as faltas
mesmo daqueles cujo amor C incipiente e cuja contrição C
imperfeita.
316
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
304. Não se satisfaz, porém, a infinita misericórdia de
Deus em responder ao primeiro apelo da alma que implora
perdão. faz muito mais: previne essa alma rebelde, vai-lhe
ao encontro, oferece-lhé o perdão de que, sem ele, nem se
quer cogitaria, inspira ao seu coração remorsos e salutares
temores, inunda-a com toda sorte de graças, interiores e
exteriores, a fim de levá-la a arrepender-se de sua falta,
a pedir e obter sua reconciliação.
Depois de Deus perdoar, esquece a falta, não querene.lo
que a lembrança do passádo tolha a efusão dos seus bc-
nefícios; as Madalenas, os Agostinhos poderão receber tan
tas graças quanto as almas mais inocentes, e tornar-se san
tos, de uma santidade insigne.
Ao conceder o perdão, Deus não se contenta em dizer
ao pecador: "Teu pecado está perdoado, e não serás cas
tigado"; mas acrescenta: "Restituo tudo quanto o teu pecado
te fizera perder, todos os bens que renunciaras, todos os
méritos anteriores à tua falta. Nunca o pecador arrependido
ousaria pedir espontâneamente o que Deus lhe concede.
Restitui o titulo de filho de Deus a essa alma que o ofendeu
gravemente e volta a habitar nesse coração donde fora
expulso indignamente.
Após tamanhas provas de bondade, que o pecador
absolvido jamais conhecerá devidamente, Deus se revela
de certo modo seu devedor. O pecador, solicitando o perdão,
cumpriu apenas o seu estrito dever, obedeceu ao próprio
interesse, cedeu às exigências da graça. Ora, Deus leva-lhe
em conta esse ato como uma boa obra exercida, recompen
sa-o por ter pedido perdão, como se tivesse praticado um ato
de virtude. E depois de realizar tais maravilhas de bondade
e de misericórdia, manifesta viva alegria. O bom Pastor,
que perseguiu com tanto desvelo a ovelha ingrata, convida
todas as criaturas a se unir a ele. "Regozijai-vos e con
gratulai-vos comigo, pois encontrei a ovelha desgarrada".
Oh! que razão tinha o Salmista de celebrar essa di
vina misericórdia, que enche de fato a terra! Misericordia
317
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Domini plena est terra; e toda a eternidade não será demais
para celebrá-la condignamente: Miserico.rdia Domini in aeter
num cantabo.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
hoje somos mais perfeitos porque agimos, do que em cri
anças, quando apenas tínhamos em germe a faculdade de
agir sem poder produzir os atos inerentes: ter um pensa
mento, uma· vontade, é mais do que poder pensar e poder
querer. Ora, em Deus, nenhum aperfeiçoamento, nenhuma
aquisição, nenhuma produção é possível, nenhum ato novo;
por conseguinte ele opera e operou sempre idênticamente.
Em Deus não há, como em nós, diversas faculdades a
operar sucessivamente. Nós compreendemos e depois que
remos; o ato de nossa vontade sucede ao ato de nossa in
teligência. No Ente soberanamente perfeito não pode ser
assim. Nele nunca houve uma faculdade que descan
sasse, que deixasse um só instante de agir; a faculdade,
portanto, confunde-se com o ato, e como não há sucessão
de atos, não há distinção de faculdade, ou, antes, não há
faculdade, há ato; ou, melhor ainda, Deus é ato, ato puro,
como diz Santo Tomás. Ele é toda ação e ação sempre idên
tica, ele é toda atividade e atividade sempre igual.
307. Daí se segue que Deus é essencialmente simples.
Não tem dimensões, composição ou partes. lncomparàvel
mcnte mais simples que os próprios anjos, nos quais dis
tinguimos faculdades diversas; a vontade, diferente da in
teligência, a ação da substância, e a graça da natureza; Deus,
ao mesmo tempo, é bondade e justiça, força e sabedoria,
vontade e ação, realidade única e inefável.
Em nossa linguagem e pensamentos somos obrigados
a estabelecer diferenças cm se tratando de Deus, a fazer
distinções porque não podemos compreender um Ente tão
simples, e porque uma simplicidade tão absoluta nos escapa
e ultrapassa os nossos sentidos. Quando dizemos, portanto:
Deus é bom, é belo, é justo, Deus cria, conserva, governa,
exprimimos estas verdades de modo tão perfeito quanto
nos C humanamente possível, isto é, exprimimos diversos
aspectos de uma mesma e única verdade eterna, mas nossas
palavras são falhas. Essas perfeições não são, de fato,
distintas em Deus, como na criatura; não formam senão
uma mes1na perfeição que não se distinguem em absoluto
319
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
do próprio Deus; tanto que dizer "a perfeição de Deus" é
exprimir-se de maneira insuficente e inapropriada; Deus
é a sua própria perfeição, e isto de modo tão simples que
nos é inconcebível e inexprimível. Assim, também, Deus
age quando cria, conserva e governa, como quando recom
pensa e castiga. Suas ações é que parecem diferentes, porque
os resultados são diferentes, mas a ação cm si é sempre a
mesma. A luz do sol deleita os olhos sãos e irrita os
doentios; seu calor faz germinar uma planta e desenvolve
outra, enquanto seca e murcha uma terceira; aqui estanca
rios e mares, acolá manda chuvas torrenciais pelas tem
pestades que provoca. Seria lícito dizer que, nessas múl
tiplas circunstâncias, o astrO procede diversamente? Os re
sultados variam segundo as disposições dos seres atingidos
pela sua influência. mas os eflúvios provenientes do globo
solar são sempre de igual natureza. Assim; embora os efei-
1os sejam infinitos, a ação divina que as produz é sempre
a mesma. Mais ainda, não é distinta das perfeições de que
falávamos há pouco, não e distinta do próprio Deus, e dizer
"ação de Deus" e falar tão imperfeitamente quanto dizer
"bondade, sabedoria de Deus". Deus é o Ente essencialmente
incompreensível, essencialmente inexprimível.
308. Desta simplicidade do Ente supremo decorre sua
imutabilidade.
Todas as alterações produzidas nas criaturas se devem
à sua influência; ele é, como foi denominado, o grande Motor.
Com efeito, todo movimento -provém dele, segundo a pa
lavra do Apóstolo: ln ipso vivimt1s, movenmr ,et sumus. Ora,
Deus, que assim leva cada ser a agir, a mover-se, estará
também sujeito ao movimento e à mudança? Não, ele per
manece sempre o mesmo. Mas, sob sua ação, tudo se trans
forma na natureza, as plantas que germinam, crescem, ama
durecem e murcham; os seres vivos, que nascem, se desenvol
vem, envelhecem e morrem; as próprias almas, cujos pen
samentos e sentimentos se sucedem com rapidez; Deus, que
preside a todas essas variações, por nenhuma delas passa:
320
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Ego Dominus et non mulor - Mutabis eos el mulabunlur,
tu autem idem ipse ,es.
E por que havia de mudar? Não pode adquirir per
feição alguma, pois a todas possui, nem conhecimento al
gum, pois tudo sabe desde a eternidade. Deus é a verdade
eterna, a eterna beleza, a ,verdade perfeita, o hem perfeito.
E pode o perfeito se alterar? Deus é o Ente essencialmente
simples. E pode o simples variar? Apud quem non est trans
mulalio, nec vicissiludinis obumbratio. Nele não há som
bra de alteração, diz a Sagrada Escritura. Em Deus, por
tanto, não há crescimento, nem minoração; não há mudança
de lugar, pois está em toda parte; nem variação de ciência,
pois é sempre infinitamente sábio; não há transformação
de sentimento, pois é infinitamente bom, nem mudança de
idade, pois é eterno.
309. Deus é eterno. Não teve começo, e a imaginação
se perderá, o pensamento se confundirá se lhe quiser sondar
o número de anos. Por mais longe que remontemos, sejam
quais forem as suposições que fizermos, sempre defron
taremos um espaço ilimitado. Há milhões de anos, Deus
existia desde uma eternidade. Rémontemos ainda e· imagine
mos de novo milhares de anos, milhares de séculos. Deus
existia desde toda uma eternidade. Remontemos ainda tan
tos séculos para trás quantos foram os segundos decorridos
durante todo esse tempo imaginado há pouco, ainda en
-contraremos Deus existindo desde toda uma eternidade.
Se passássemos nossa vida a fazer tais conjeturas, a mul
tiplicar os séculos, por mais assombrosa que fosse a cifra
atingida, estaríamos sempre infinitamente aquCm ela eter
nidade.
Eis quanto ao passado. A eternidade futura não C me
nos impenetrável. Já foram aventadas diversas hipóteses
para dar uma idéia a respeito. Imaginemos, por exel11plo,
um pássaro que,· de mil em mil anos, viesse roçar a ferra
com a ponta da asa; acabaria por liquidar inteiramente a
esta, sem que a eternidade tivesse começado.
321
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Que é pois a eternidade? São Gregório tem razão
quando diz que tanto conhecemos a eternidade como o cego
conhece a luz.
310. Custa-nos sobretudo compreender o profundo e
adorável mistério que é para nós a simplicidade da eter
nidade divina. Dll!'a sempre e se concentra toda no momento
presente. Quanto a nós, miseras criaturas, essencialmente
limitadas, estamos sujeitos à lei do tempoj nossa vida é
uma sucessão de momentos cujo curso não podemos in
terromper. Â hora sucede a hora, ao minuto, o minuto, ao
segundo, o segundo, ao instante, o instante. A existência
nos é dada gota a gota; cada alegria, cada dor compõe-se
de uma infinidade de parcelas de alegria, ou de dor, que
passam com uma rapidez, que não podemos acelerar nem
reter. Assim, temos entre o passado, cuja lembrança conser
vamos, e o futuro que ainda não é nosso, o presente, tão
curto, tão fugitivo, que Unicamente nos pertence. Para Deus
não há passado, nem futuro; tudo é presente: "0' meu Deus,
exclama Santo Agostinho ( 1 ) , não há vaivéns em vossos
anos; os que chegam não deslocam os que estão em anda
mento, vossos anos formam um conjunto. E' um só dia, um
dia sem ontem e sem amanhã, um dia que é a eternidade".
Deus, portanto, de nada se recorda, nada prevê, mas, num
único olhar, abrange todos os tempos que lhe estão sempre
presentes. Quando dizemos: Deus criou, Deus julgará, fa
lamos de acordo com as exigências da concepção humana
e nossa linguagem é forçosamente imperfeita e inadequada;
não traduz a inefável realidade da eternidade divina, dessa
eternidade que é, segundo a célebre definição de Boécio,
a posse total, simultânea e perfeita de uma vida interminável.
. 311. Em resumo, tudo quanto concebemos, tudo quanto
dizemos de Deus é infinitamente aquém da realidade. Em
bora ele a nós se revelasse, seriamos incapazes de co
municar a outrem semélhante conhecimento aplicado a ele;
os termos mais elogiosos nos pareceriam inj(1rias e blas-
ll Confissões, livro XI, cap. XIII.
322
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
fêmias, por exprimirem tão mal a verdade. Como disse admi
ràvelmente o célebre autor da teologia mística: "Deus não
é alma, nem inteligência; não tem imaginação, nem opinião;
não tem raciocínio nem entendimento; não é palavra m;m
pensamento; oão pode ser denominado nem compreendido;
não é número nem ordem; não é grandeza nem pequenez;
não é igualdade nem desigualdade; não é semelhança nem
dissemelhança; não está imóvel nem em movimento nem
cm repouso. Não tem poder e não é poder nem luz. Não
vive e não é a vida. Não é essência, nem eternidade, nem
tempo. Nele não há percepção. Não é ciência, verdade, do
mínio, sabedoria; não é um, nem unidade, nem divindade,
nem bondade; não é espírito como entendemos os espí
ritos; não é filiação nem paternidade, nem coisa alguma que
possa ser compreendida por nós ou por outros. Não é nada
daquilo que não é, nada também do que é. Coisa alguma
existente o conhece tal qual é. Nele não hã palavra, nem
nome, nem ciência; não é trevas nem luz; não é erro nem
verdade. Não podemos fazer a seu respeito afirmação ou
negação absoluta, e, afirmando ou negando as coisas que
lhe são inferiores, não saberíamos afirmá-lo ou negá-lo a
Ele, porque essa causa tinica e perfeita dos seres ultrapassa
Iodas as afirmações, e aquele que é plenamente independente
e superior ao resto dos seres sobrepuja todas as nossas
negações (1).
323
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
que dão testemunho no céu, o Pai, o Verbo e o Espírito
Santo; e esses três são um.
Nada é tão maravilhosamente simples quanto a natu
reza divina, que, simples ao ponto de não ter sequer facul
dades diferentes, nem tampouco atos distintos dessa facul
dade, é comum às três Pessoas divinas. . O Pai, fonte
inefável de ciência e de amor, principio de toda a Divindade,
é essa própria Divindade. Sem prejuízo algum, comunica
esse mesmo Ser divino ao Verbo, e o Pai e o Verbo, em
bora conservando integral sua natureza, comunicam-na ao
Espírito Santo. A natureza divina possuída pelo Pai é ad
miràvelmente simples, a mesma natureza divina é possuída
também pelo Filho em sua simplicidade absoluta e igual
mente pelo Espírito Santo. Tudo quanto dissemos da na
tureza divina é comum às três Pessoas divinas. O Pai não
procede independentemente do Espírito Santo. O Pai, o
Filho e o Espírito Santo criam, conservam e governam
o mundo por um ato (mico que não é distinto de sua na
tureza, ato que é o próprio Deus. O Pai, o Filho e o Es
pírito Santo não são três partes de Deus: são Deus mesmo,
o Deus simples, uno, indivisivel. Não são substâncias, não
são operações distintas, são relações distintas e subsistentes.
313. Deus Pai se conhece; conhecendo-se, produz em
si uma imagem perfeita de si mesmo. Colocando-me diante
do espelho reproduzo, queira ou não queira, uma imagem
fidelfssima de minha pessoa, imagem, porém, que está fora
de mim. Quando penso em mim, quando me digo esta palavra
íntima "eu", reproduzo também, mas desta vez em mim
mesmo, uma imagem fidelíssima, e essa imagem, que é o
meu pensamento, é distinta de mim, mas está em mim.
Quando Deus Pai se conhece, diz-se uma palavra. ín
tima Verbum, que é a imagem fidelíssima dele mesmo.
Esta palavra está nele, é-lhe infinitamente semelhante, pois
ele se conhece perfeitamente. Há relação entre o Pai, co
nhecendo-se e produzindo desse modo sua palavra interior.
seu Verbo, e a Palavra infinita, imagem perfeita do Deus
que conhece o Verbo de Deus; essas duas relações distintas
324
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
da mesma natureza são duas Pessoas divinas. A Pessoa que
produz é o Pai, que engendra um Filho; com efeito, é da
essência da geração produzir um ser semelhante àquele que
engendra; ora, como o Verbo, isto é, a palavra interior, é
necessàriamente a imagem do ser pensado, o Pai Eterno,
produzindo seu Verbo, gera uma Pessoa necessàriamente
semelhante a si. Quem poderá conceber a perfeição dessa se
gunda Pessoa da Trindade, palavra viva, ciência infinita,
sabedoria incriada, inteligência suprema, em que tudo se
encerra?
314. O Pai e o Filho amam-se. O amor, por natureza,
não é uma imagem, é um suspiro, um sopro. "0 amor não
fala, não canta, não brada, mas se exala num sopro ardente
em que vibra toda a alma" ( 1 ). O Pai e o Filho, aman
do-se, produzem, não um segundo Filho, mas um suspiro
divino, um sopro divino, o Espírito Santo.
O Espírito divino, amor pessoal do Pai e do Filho, não
C o ato de amor. E' o fruto do amor. O Pai e o Filho amam
se por sua própria essência, havendo relação entre essas
duas Pessoas, que exalam seu amor e o amor que elas pro
duzem j o termo desse amor é uma Pessoa divina, é o Es
pirita Santo. Mas Deus é o seu amor como é a sua inteligên
cia; amor e inteligência não se distinguem de sua essência;
o amor produz, portanto, em Deus uma Pessoa divina, 1nas
essa Pessoa, distinta das outras duas, tem a mesma na
tureza, C' o mesmo Deus. Como imaginar esse amor, que é
Deus, amor de uma profundeza, de uma extensão, de um
?Oder infinito? lmpeto de amor veemente e calmo de uma
vez, que parece brotar da Divindade qual lava ardente, imen
sa, mas viva, saindo da cratera, sem contornos e nem li
mites, ou antes 11ão saindo, pois permanece em Deus, C o
próprio Deus.
315. Tal C o mistério das processões na Santíssima Trin
dade, processões que são eternas. Deus se conhece e se
contempla eternamente; eternamente se repete a si mesmo
l) :Monsab1-é, 10.0 Conferência. Quaresma 18T4.
325
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
essa palavra interior, esse Verbo divino, que exprime toda
a sua grandeza, todas as suas perfeições, todo o seu Ser,
esse Verbo infinito que diz o S�lJ. poder, os seus desígnios
cheios de sabedoria e de bondade. para com todas as cria
turas. Nesse Verbo divino trata-se de mim e daqueles que
me cercam, trata-se de tudo que aconteceu e há de acontecer,
não _com abundância de pensamentos e· de palavras, pois
há sómente um pensamento, sómente uma palavra; Deus
tudo conhece e tudo vê, conhecendo-se e vendo-se a ii
mesmo. A palavra que exprime o seu Ser divino diz e ex
prime todas as coisas. Tal é o colóquio eterno das Pessoas
divinas, colóquio perfeito e inesgotável, conversação de uma
alegria infinita, da qual jamais se podem cansar.
316. A Deus e sômente a Deus é devida toda honra e
glória. Ora, essa glória lhe é dada plenamente, segundo me
rece. As três Pessoas divinas glorificam-se mU.tuamente;
reconhecem suas perfeições reciprocas, admiram e celebram
nas conforme merecem.
317. Deus eternamente se contempla, Deus eternamente
se ama. Ama-se com um amor infinito, pois se vê infin.ita
inente amável, e ama-se tanto quanto merece ser amado.
Ama-se e, amando-se, ama todas as participações de seu
Ser adorável, de suas perfeições infinitas; amando-se, ama
todas as criaturas na medida cm que mais a Ele se asse
mdham. lpse prior dilexit nos: Ele nos amou primeiro, sem
que nada tivéssemos feito para merecer esse amor; ama-nos
com um amor eterno; caritate perpetua dilexi te.
Ama-se, e seu amor, como todo amor, tende à união.
H.á, entre as três Pessoas divinas, uma necessidade infinita
de união, que é continua e plenamente satisfeita; e uma união
mais íntima seria impossível. O Pai está no Filho e no Es
pirito Santo, o Filho está no Pai e no Espírito Santo, e o
Espírito Santo está no Pai e no Filho, não à maneira de
conteúdo que está naquilo que o contém, pois o que con
tl'm e o conteúdo são distintos de uma distinção de na
tureza, mas de modo muito mais íntimo e verdadeiramente
iRefável, pois essas três Pessoas divinas têm a mesma natu-
326
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
reza. Nada podem produzir exteriormente, nada podem que
rer, senão por um ato único, uma vontade única, uma ope
ração única.
318. Dessa união, dessa posse completa de si mesmas
sempre infinitamente desejada e sempre infinitamente satis
feita, resulta uma felicidade ilimitada, uma complacência
mí1tua, um júbilo, um transporte de indizível alegria. O amor
reciproco que as três Pessoas se têm faz com que se desejem
uma à outra uma felicidade infinita, e, dando-se infinita
mente uma à outra, proporcionam-se, uma à outra, essa mes
ma felicidade. O Pai é infinitamente feliz em ver infinita
mente feliz o seu Filho e o Espírito de amor; cada uma
das Pessoas divinas goza portanto também do júbilo das
outras duas.
Nada pode perturbar nem diminuir essa felicidade. Po
<.lemos dizer, em toda verdade, que Deus se regozija com
nossas obras, mas dizer que ele se entristece com nossas
faltas é empregar um termo impróprio, pois a mais leve
nuvem de tristeza lhe alteraria sua felicidade. Em Deus
não há possibilidade de tristeza.
Deus é o Ser infinitamente conhecível, infinitamente
conhecedor, infinitamente conhecido; Deus é o Ser ao qual
é devida e tributada uma glória infinita; Deus é o Ser infi
nitamente amável, infinitamente amante, infinitamente amado,
Deus é o Ser infinitamente feliz. Tal é Deus, tal é a San
tíssima e mil vezes adorável Trindade. "0' meu Deus, can
ta a Igreja, Pai sem principio, Filho unigênito do Pai, Es
pirita Consolador, Trindade santa e una, com todo o fervor
de nosso coração, com toda a força de nossa voz, nós vos
confessamos, nós vos louvamos, nós vos bendizemos: glória
a vós em todos os séculos" ( 1 ) .
li Oficio d11. Santíssima Trindade.
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
INDICE
Carta do Bispo de Angers .
Pref6cio .................
CAPiTULO 1
Da Criação
1. Os designios de Deus na obra da criação ............. 9
11. Como o homem deve dispor-se para glorificar a Deus..... 12
CAPiTULO li
Do homem, Imagem de Deus.. HI
CAPiTULO Ili
Das qu■Hdades do soldado de Deus
1. Obediência. 25
li. Paciência . ............•.....•... 26
111. Humildade . ....•............... 2>l
IV. Paz da alma e posse de si mesmo . ;I(}
CAPiTULO IV
Das vantagens da lula.. 33
CAPiTULO V
Do objeto da lata e da morflflc:açio dos senHdos
f. Os apetites sensitivos . 41
li. O sentido visual .. 44
1'11. O sentido auditivo ....... 46
1\1. A língua, órgão da palavra 48
V. A llngua, órgão do gosto ... 51
VI. O sentido do tato .. 54
329
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPiTULO VI
Da idolatria do povo cristão
1. Como as paixões se podem tornar em ídolos. 60
li. O amor aos prazeres dos sentidos.. 65
JII. O orgulho 66
CAPITULO VII
Do amor próprio nas pessoas de bem
1. A vaidade ............... 72
li. A suscetibilidade .................... 70
Ili. A demasiada preocupação de si mesmo.. 78
CAPiTULO VIII
Da virtude da lé: sua natureza, seus efeito&
1. Esclarecimento da inteligência ..... 82
li. O papel da vontade no ato de fê........... 83
Ili. A fê do não batizado e a fê do cristão.... 85
CAPiTULO IX
.,
Da vida da lê
1. Uiferentes graus da virtude da fé.. 119
li. Os efeitos da fé viva
CAPITULO X
Meios de obter a fé perfeita: a humildade das leituras piedosas
1. A humildade favorece os progressos da fê....
li. As leituras espirituais ...........
...
97
Ili. A LiturRia, fonte de luz e de amor 9!I
CAPíTULO XI
Do aumento de fé pele dlreçio das faculdade� da alma
1. Devemos prestar contas a Deus do uso de nossas faculdades 102
li. Subordinação das diversas potências da alma............. 106
Ili. Desordens causadas pelas faculdades inferiores prodomi-
. . . . . 1
1\1. Q>:� de�m"�� ;�;t�i���; �� ·,���id�d�� .:n·�i� -��b��s· ; 07
s
330
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPiTULO XII
Do recolhimenlo e da uailo a Deus
\. A lembrança de Deus, principio necessário da fr.. 113
li. Luta contra os pensamentos inüteis ........ . . ... ........ 114
Ili. O espírito deve alimentar-se de pensamentos santos...... 116
CAPITULO XJII
Da virtude da esperança
1. R,dações da esperança com as demais virtudes teologais.. I IH
li. Vantagens da esperança . . ..... • ..... . 121
111. Como fortalecer nossa esperança ..... 127
CAPITULO XIV
Da alegria
1. As alegrias namrais ... 132
li. As alegrias sobrenaturais 13.i
CAPITULO XV
Do temor 141
CAPITULO XVI
Da dor
1. Fim providencial da doe 145
li. Vantagens da dor 1'8
CAPITULO XVII
Do aproveitamento da dor
1. Como praticar a resignação em nossos sofrimentos 152
11. As perfeições divinas e a dor........ ...... ... 156
Ili. Os exemplos de jesus 159
CAPITULO XVIII
Do amor de Deus e dos meios de dilatâ-10
1. A caridade cm suas relações com as 011traS virtudes tco-
logais . . ....................... ... 162
li. A ex1ensão da caridade ..... ... . ... 164
331
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Ili. O amor de Deus, modelo do nouo .. 165
IV. Os elementos do amor ... 167
V. O amor perfeito ....... 168
VI. Os prol?l'eSSOs do amor 16!1
CAPITULO XIX
Dos sacramentos . ......... ..... . 172
CAPITULO XX
Do Sacramento de Penitência
1. A vergonha, consequência do pecado.. . .. . 178
U. Efeitos do Sacramento de Penitência .. ... .. .. . .... 181
Ili. Disposições a levar ao Sacramento de Penitência.. 182
IV. Preparação remota. A pure:ia dá alma.. IRS
CAPITULO XXI
Da Eucarfatla
1. A Eucaristia, memorial de Jesus . . . .. ......... ... ... . . . 192
11 Designios do Filho de Deus na E11carnação e na institui-
ção da Eucaristia .. . .... . ... . . . .. . .. .... 194
Ili. As h11milhações de Deus na Eucaristia 19!)
CAPITULO XXII
Da Comunhlo
1. Disposiçf,es a apresentar ã Comunhão 203
li. Os efeitos da Comunhão 20<J
CAPITULO XXII!
Das Virtudes 213
CAPITULO XXIV
Da conformidade à vontade de Deus
1. Importância do dever de estado..................... . 217
li. Maria, modelo de conformidade ã vontade de Deus.. 222
Ili. União da oração e da ação............................ 223
IV. A imolação completa da vontade humana, 011 a pnl:tica do
mais perfeito 224
332
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XXV
Da bumlldade
CAPITULO XXVI
Daobedlfnda
CAPITULO XXVII
Da caridade fraterna
CAPITULO XXVIII
Do amor afeUvo. Da oraçlo 251
CAPITULO XXIX
333
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPITULO XXX
Da hierarquia celeste
1. Os anjos . ............ 274
li. As almas bem-aventuradas 275
Ili. Os Santos 277
CAPITULO XXXI
De Maria
A1aria, obra-prima de Deus e intermedi.i.ria entre Deus e nós 279
Nossos deveres para com Maria.. .. 281
CAPITULO XXXII
De Je••·
1 Maravilhoso poder de sua inteligência 285
li Operações celesles da alma de Jesus................... 286
Ili Ciência infusa, amor livre e meritório da alma de Jesus... 28R
IV. Ciência humana de Jesus 290
V. O Homem-Deus 292
VI. Conclusão 293
AP2NDJCE
Dos atrtb11tos de Deas
1. A obra de Deus no mundo visível. . . . .. .. . • ... .. . ...... 295
li. Imensidade, ciência, poder de Deus.................... 302
Ili. Bondade, santidade de Deus ...... , .. . ... .. . ..... . .. . .. 308
IV. Justiça, paciência, misericórdia de Deus para com os
pecadores . . . . . . .... . . 313
V. Deus é o Ente necessário, simples, imutável, eterno... 31R
V I. A Santíssima Trindade . . .................. .. .... 323
https://alexandriacatolica.blogspot.com.br