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A lei do desejo para começar bem a semana


22 / 9 / 1997

fonte
Folha de S. Paulo

autor Fernando Gabeira  

 
Cada colunista tem seu dia. O meu é segunda. Dia considerado meio frio para
notícias, grandes debates. As pessoas vêm de um fim-de-semana, ainda
querem estender um pouco essa sensação, revendo os principais lances
esportivos do domingo.

A história do povo Na, que vive na China, nos confins do Himalaia, talvez não
seja ideal para uma segunda-feira. São apenas 30 mil pessoas, que vivem na
bacia do Yongning, a 2.760 metros de altitude, num lugar com estradas
precárias e telefones inaudíveis.

Os Na vivem o amor livre há milênios e inclusive chegaram a ser mencionados


por Marco Polo, que os considerava um povo estranho, porque os homens não
se incomodavam quando alguém tocava em suas mulheres.

Acaba de ser lançado na França um livro sobre os Na, feito por um estudioso
que viveu com eles. O nome do livro é "Uma Sociedade sem Pai nem Marido".
Seu autor é Cai Hua.

De fato, uma sociedade que não tem sequer palavra correspondente para "pai"
nos aparece como estranha e, certamente, subversiva.

Nela, os filhos são criados pela mãe e convivem com seus irmãos de sangue,
num clima onde apenas o incesto é proibido. As meninas podem ter quantos
namorados quiserem e há casos de adolescentes que tiveram mais de cem
relações diferentes.

Dentro dos costumes Na, as mulheres de uma casa podem receber visitas
noturnas, e elas são protegidas pela família. Há tanto respeito pelos encontros
amorosos que o autor do livro chega a temer que ladrões possam usá-los como
álibi, ao serem descobertos roubando uma casa, o que é absolutamente
incomum entre os Na.

As visitas furtivas, no bom sentido, podem se transformar em visitas


ostensivas, mas todas são respeitadas como atitudes normais dentro da vida
cotidiana dos Na.

O próprio autor do livro confessa, no mesmo estilo de Marco Polo, que um


homem Na o estimulou a fazer amor com sua namorada.
Eles não trocam juras de fidelidade e o ciúme é considerado vergonhoso. A
introdução do cinema na comunidade Na acabou sendo mais um pretexto para
que as meninas namorassem vários meninos.

Elas se sentem seguras porque os homens Na são considerados apenas


reprodutores e os filhos não só são criados pelas mães, mas são considerados
parte do "osso" materno.

Os costumes Na atravessaram os séculos, mas foram bombardeados pelos


comunistas.

No princípio, os Na foram enquadrados numa explicação sobre a evolução das


relações conjugais. Estariam apenas na fase primitiva do casamento grupal e
evoluiriam para a monogamia socialista.

Como os indícios dessa suposta evolução não se confirmaram, o PC chinês


começou a fazer carga direta. O amor livre estava prejudicando a tomada de
consciência dos grandes problemas sociais, além de dificultar também a
produtividade necessária à construção do socialismo.

Foram projetadas quatro grandes reformas matrimoniais destinadas a quebrar


os costumes Na e enquadrá-los na visão monogâmica dos comunistas. Uma
equipe de trabalho tentou impor o casamento aos pares que se encontravam
ostensivamente.

O casamento acabou resultando em fracasso em todos os casos. Uma nova


tentativa: as mulheres eram obrigadas a declarar a paternidade dos filhos e só
os casais declarados poderiam receber a ração anual de alimentos. Novo
fracasso.

O que está mudando um pouco a vida dos Na é a educação convencional. As


jovens descobrem que essa história do "osso" da mãe é um mito e começam a
rever seus próprios costumes.

No entanto, o amor livre prossegue sua marcha secular, desafiando


imperadores e burocratas comunistas armados com o livro de Engels sobre a
origem da família.

Os Na não desafiam apenas burocratas, mas também os gênios de


antropologia, como observa Nicole Lapierre num artigo no "Le Monde".
Radcliffe Brown achava, por exemplo, que o núcleo duro da sociedade era a
família elementar, composta de pais e filhos. Levy Strauss via na troca
institucional de mulheres um princípio da organização social.

Para o autor de "Sociedade sem Pai nem Marido", Cai Hua, só há dois
caminhos: a lei do desejo ou a lei da posse.

Ele ignora, certamente, os truques latinos onde os homens conseguem


combinar o sistema de matrimônio com o de visitas.
Mas aí as coisas já começam a se complicar e seriam melhor discutidas numa
sexta-feira, quando o fim-de-semana apenas se anuncia.

Por enquanto, vamos ao trabalho com a idéia subversiva de que sociedades


inteiras podem se dirigir pelo princípio do prazer e sobreviver até mesmo contra
o furor da revolução comunista.

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