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Immanuel Kant

Idéia de uma História


Universal de um Ponto
de Vista Cosmopolita

Organização
RICARDO R. TERRA
Tradução
RODRIGO NAVES
RlCARDO R. TERRA

Ricardo R. Terra é professor do Departamento de Filosofia


da USP. É doutor e livre-docente em filosofia pela mesma Univer-
sidade. Publicou sobre a filosofia de Kant, além de vários artigos,
os livros: A política tensa. Idéia e realidade na filosofia da história de
Kant (1995, Iluminuras); Passagens. Estudos sobre a filosofia de Kant
(2003, Editora da UFRJ); organizou o volume Duas introduções à
Crítica do juizo (1995, Iluminuras). É atualmente editor da Revista
da Sociedade Kant Brasileira: Studia Kantiana.
Martins Fontes
São Paulo 2003
Título do original alemão do artigo de I. Kanl:
lDEE ZU E1NER ALLGEME1NEN GESCHlCHTE
1N WELTBÜRGERUCHER ABS1CH'f.
Copyrighl © 2003, Livraria Marfins Fontes Editora Lrda .. ÍNDICE
São Paulo, para a presente edição.

Iª edição
1986 (Brasiliense)
21!.edição
fevereiro de 2004

Tradução
RODR1GO NAVES
R/CARDO R. TERRA

Acompanhamento editorial
Luzia Aparecida dos Santos
Revisões gráficas
Maria Cecilia de Moura Madarás
Maria Luiza Favrel
Dinarte Zorzdnelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Apresentação - Ricardo Ribeiro Terra VII
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Idéia de uma história universal de um ponto de


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) vista cosmopolita - Immanuel Kant.. 1
-~--~--~~--_. __ ._-~
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Algumas questões sobre a filosofia da história em
Kant, Immanuel, 1724-1804.
Kam - Ricardo Ribeiro Terra 23
Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopoli~
ta / Immanuel Kant ; organização Ricardo R. Terra; tradução Ro~ Uma escatologia para a moral- Gérard Lebrun 69
drigo Naves, Ricardo R. Terra. - cd. - São Paulo: Martins Fontes,
2004. - (Tópicos)
21!
Kant e o espaço da história universal José Arthur
Giannotti 107
Título original: Idce Zu Eincr Allgcmeinen Geschichte In Welt-
bürgerlicher Absicht.
Bibliografia.
ISBN 85-336-1939-1

1. Filosofia alemã 2. História - Filosofia 3. História universal 4.


Kant,Immanuc1, 1724-1804 I. Terra, Ricardo R. 11.Títul9. lU. Série,

03-7034 CDD-193

Índices para catálogo sistemático:


1. Kant : Obras filosóficas 193

Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria Martins Fontes Editora Lida.
Rua Conselheiro Ramalho, 3301340 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3105.6867
e-mail: info@martillsfontes.com.hr http://www.martinsfontes.com.hr
APRESENTAÇÃO

Escrito em 1784, Idéia de uma história universal de


um ponto de vista cosmopolita estabelece-se como o texto
inaugural da filosofia da história alemã. Publicamos aqui,
ao lado do texto de Kant, três artigos que pensam a pro-
blemática da filosofia da história neste filósofo. O pri-
meiro, "Algumas questões sobre a filosofia da história
em Kant", de Ricardo R. Terra, na medida em que trata
da especificidade da filosofia da história kantiana em
contraposição à filosofia da história cristã e à de Voltaire,
e ressalta a maneira como a filosofia da história se anco-
ra, em Kant, na antropologia política, pode servir de in-
trodução à problemática em pauta.
Gérard Lebrun, em "Uma escatologia para a mo-
ral", aborda a filosofia da história não como uma "parte
separada na filosofia kantiana, mas como um comple-
mento indispensável da análise da moralidade".
José Arthur Giannotti aborda a questão da finali-
dade presente na filosofia da história - a partir do princí-
pio de determinação completa, formulado na dialética
transcendental da Crítica da razão pura, o texto visa des-
VIII RICAIWO R. TERRA (ORG.)

de logo apontar para certos processos de totalização que


englobam o sentido da vida humana, processos estes que se
distinguem da idéia de sistema desenvolvida pela razão
teórica.
A tradução do texto de Kant foi realizada por Ro- IDÉIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL
drigo Naves e Ricardo R Terra, a partir do texto alemão DE UM PONTO DE VISTA
editado por Wilhelm Weischedel (Kant - Werke in Zwolf COSMOPOLITA *
Biinden, voI. XI, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1968) con-
frontado com o texto da Koniglich Preussischen Akademie
IMMANUEL KANT
der Wissenschaften, Berlim, W. de Gruyter, 1968, e coteja-
do com algumas traduções.

RRT.

* Uma passagem entre os breves registros do número XII da Go-


thaische gelehrte Zeitungen deste ano, que sem dúvida foi tirada de uma
conversa que tive com um erudito em trânsito, obrigou-me a este escla-
recimento, sem o qual aquela passagem não seria compreensívelt
1. O "breve registro" da Gothaische gelehrte Zeitungen a que Kant se refe-
re diz: "Uma idéia cara ao senhor professor Kant é a de que o fim último da es-
pécie humana é alcançar a mais perfeita constituição política, e ele deseja que
um historiador-filósofo queira empreender uma história da humanidade deste
ponto de vista, mostrando-nos o quanto a humanidade aproximou-se ou afas-
tou-se deste fim último nas diferentes épocas, e o que é preciso fazer ainda para
alcançá-lo." A Idéia de uma histÓria universal de um ponto de vista cosmopolita foi
I publicada pela primeira vez na Berlinische Monatsschrift de novembro de 1784.

II

i
,111

III1

De um ponto de vista metafísico, qualquer que seja


o conceito que se faça da liberdade da vontade, as suas ma-
nifestações (Erscheinungen) - as ações humanas -, como
todo outro acontecimento natural, são determinadas por
leis naturais universais. A história, que se ocupa da nar-
rativa dessas manifestações, por mais profundamente
I ocultas que possam estar as suas causas, permite todavia
esperar que, com a observação, em suas linhas gerais, do
jogo da liberdade da vontade humana, ela possa desco-
[111

I'
brir aí um curso regular - dessa forma, o que se mostra
confuso e irregular nos sujeitos individuais poderá ser
I

reconhecido, no conjunto da espécie, como um desenvol-


vimento continuamente progressivo, embora lento, das
suas disposições originais. Porque a livre vontade dos ho-
mens tem tanta influência sobre os casamentos, os nas-
IIII

cimentos que daí advêm e a morte, eles não parecem es-


tar submetidos a nenhuma regra segundo a qual se possa
de antemão calcular o seu número. E, no entanto, as es-
tatísticas anuais dos grandes países demonstram que eles
acontecem de acordo com leis naturais constantes, do
4 RICARDO R. TERRA (ORG.) IDÉIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL :1

mesmo modo que as inconstantes variações atmosféri- fio condutor para tal história e deixar ao encargo da natu-
cas, que não podem ser determinadas de maneira parti- reza gerar o homem que esteja em condição de escrevê-
cular com antecedência, no seu todo não deixam, toda- Ia segundo este fio condutor. Assim ela gerou um Kepler,
via, de manter o crescimento das plantas, o fluxo dos rios que, de uma maneira inesperada, submeteu as excêntricas
e outras formações naturais num curso uniforme e inin- órbitas dos planetas a leis determinadas; e um Newton,
terrupto. Os homens, enquanto indivíduos, e mesmo po- que explicou essas leis por uma causa natural universal.
vos inteiros mal se dão conta de que, enquanto perseguem
propósitos particulares, cada qual buscando seu próprio
proveito e freqüentem ente uns contra os outros, seguem Primeira proposição
1111
inadvertidamente, como a um fio condutor, o propósito
da natureza, que lhes é desconhecido, e trabalham para Todas as disposições naturais de uma criatura estão des-
sua realização, e, mesmo que conhecessem tal propósito, tinadas a um dia se desenvolver completamente e conforme
;1
1.,'1.1.
pouco lhes importaria. um fim. Em todos os animais isto é confirmado tanto
Como em geral os homens em seus esforços não pela observação externa quanto pela interna ou anatõ-
procedem apenas instintivamente, como os animais, nem mica. Um órgão que não deva ser usado, uma ordenação
tampouco como razoáveis cidadãos do mundo, segundo que não atinja o seu fim são contradições à doutrina te-
II11
um plano preestabelecido, uma história planificada (como leológica da natureza. Pois, se prescindirmos desse prin-
I11

é, de alguma forma, a das abelhas e dos castores) parece cípio, não teremos uma natureza regulada por leis, e sim
ser impossível. É difícil disfarçar um certo dissabor quan- um jogo sem finalidade da natureza e uma indetermina-
do se observa a conduta humana posta no grande cenário ção desconsoladora toma o lugar do fio condutor da razão.
mundial, e muitas vezes o que isoladamente aparenta sa-
bedoria ao final mostra-se, no seu conjunto, entretecido
de tolice, capricho pueril e freqüentemente também de Segunda proposição
maldade infantil e vandalismo: com o que não se sabe ao
cabo que conceito se deva formar dessa nossa espécie tão No homem (única criatura racional sobre a Terra) aque-
I11I

orgulhosa de suas prerrogativas. Como o filósofo não pode las disposições naturais que estão voltadas para o uso de sua
pressupor nos homens e seus jogos, tomados em seu razão devem desenvolver-se completamente apenas na espécie e
11,11
conjunto, nenhum propósito racional próprio, ele não tem não no indivíduo. Numa criatura, a razão é a faculdade de
outra saída senão tentar descobrir, neste curso absurdo ampliar as regras e os propósitos do uso de todas as suas
das coisas humanas, um propósito da natureza que possi- forças muito além do instinto natural, e não conhece ne-
bilite todavia uma história segundo um determinado pla- nhum limite para seus projetos. Ela, todavia, não atua so-
no da natureza para criaturas que procedem sem um pla- zinha de maneira instintiva mas, ao contrário, necessita de
no próprio. Queremos ver se conseguimos encontrar um tentativas, exercícios e ensinamentos para progredir, aos
,\1

I1I1

6 RlCARDO R. TERRA (ORG.) 7


iDÉIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL
~

I
111"
poucos, de um grau de inteligência (Einsicht) a outro.
Para isso um homem precisa ter uma vida desmesurada-
mente longa a fim de aprender a fazer uso pleno de to-
to inato; ele deveria, antes, tirar tudo de si mesmo. A ob-
tenção dos m~ios de subsistência, de suas vestimentas, a
conquista da segurança externa e da defesa (razão pela
das as suas disposições naturais; ou, se a natureza con- qual a natureza não lhe deu os chifres do touro, nem as
~ cedeu-lhe somente um curto tempo de vida (como efeti-

I vamente aconteceut ela necessita de uma série talvez


indefinida de gerações que transmitam umas às outras
as suas luzes para finalmente conduzir, em nossa espé--
garras do leão, nem os dentes do cachorro, mas somente
mãos), todos os prazeres que podem tornar a vida agra-
dávet mesmo sua perspicácia e prudência e até a bonda-
de de sua vontade tiveram de ser inteiramente sua pró-
~ cie, o germe da natureza àquele grau de desenvolvimen- pria obra. A natureza parece ter-se satisfeito aqui com o
~ to que é completamente adequado ao seu propósito. E máximo de economia e ter medido os dotes animais dos
este momento precisa ser, ao menos na idéia dos ho- homens de maneira estrita e exata em função das maio-
mens, o objetivo de seus esforços, pois senão as disposi- res necessidades da existência em seus primórdios, como
, ções naturais em grande parte teriam de ser vistas como se ela quisesse dizer que o homem devia, se ele se elevas-
inúteis e sem finalidade - o que aboliria todos os princí-
, pios práticos, e com isso a natureza, cuja sabedoria no
se um dia por meio de seu trabalho da máxima rudeza à
máxima destreza e à perfeição interna do modo de pen-
11,111
julgar precisa antes servir como princípio para todas as sar e (tanto quanto é possível na Terra), mediante isso, à
.~ suas outras formações, tornar-se-ia suspeita, apenas nos felicidade, ter o mérito exclusivo disso e fosse grato so-
homens, de ser um jogo infantil.
I~ mente a si mesmo - como se ela apontasse mais para a
auto-estima racional do que para o bem-estar. Pois neste
~l Terceira proposição
curso das coisas humanas é toda uma multidão de difi-
culdades que espera o homem. Parece que a natureza não
~I se preocupa com que ele viva bem, mas, ao contrário, com
A natureza quis que o homem tirasse inteiramente de si que ele trabalhe de modo a tornar-se digno, por sua con-
~I I
tudo o que ultrapassa a ordenação mecânica de sua existência duta, da vida e do bem -estar. O que permanece estranho
animal e que não participasse de nenhuma felicidade ou per- aqui é que as gerações passadas parecem cumprir suas
I1I1
feição senão daquela que ele proporciona a si mesmo, livre penosas tarefas somente em nome das gerações vindou-
do instinto, por meio da própria razão. A natureza não faz ras' preparando para estas um degrau a partir do qual
~ verdadeiramente nada supérfluo e não é perdulária no elas possam elevar mais o edifício que a natureza tem como
uso dos meios para atingir seus fins. Tendo dado ao ho- propósito, e que somente as gerações posteriores devam
11\ mem a razão e a liberdade da vontade que nela se funda, ter a felicidade de habitar a obra que uma longa linhagem
a natureza forneceu um claro indício de seu propósito de antepassados (certamente sem esse propósito) edifi-
I"
quanto à maneira de dotá-lo. Ele não deveria ser guiado cou, sem mesmo poder participar da felicidade que pre-
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pelo instinto, ou ser provido e ensinado pelo conhecimen- parou. E por enigmático que isto seja, é, entretanto, tam-
1:1

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'1111

II

8 RICARDO R. TERRA (ORG.) IDÉIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL 9


~
bém necessário, quando se aceita que uma espécie ani- ra, que consiste propriamente no valor social do homem;
~ mal deve ser dotada de razão e, como classe de seres ra- aí desenvolvem-se aos poucos todos os talentos, forma-
sionais, todos mortais, mas cuja espécie é imortal, deve se o gosto e tem início, através de um progressivo ilumi-
I~ todavia atingir a plenitude do desenvolvimento de suas nar-se (Aufklarung), a fvndação de um modo de pensar
disposições. que pode transformar, com o tempo, as toscas disposições
~ naturais para o discernimento moral em princípios prá-
ticos determinados e assim finalmente transformar um
'~
Quarta proposição acordo extorquido patologicamente para uma sociedade
em um todo moral. Sem aquelas qualidades da insociabi-
o
1,1111

meio de que a natureza se serve para realizar o desen- lidade - em si nada agradáveis -, das quais surge a opo-
~~ volvimento de todas as suas disposições é o antagonismo de- sição que cada um deve necessariamente encontrar às
II!'II
las na sociedade, na medida em que ele se torna ao fim a cau- suas pretensões egoístas, todos os talentos permanece-
~ sa de uma ordem regulada por leis desta sociedade. Eu enten- riam eternamente escondidos, em germe, numa vida pas-
do aqui por antagonismo a insaciável sociabilidade dos toril arcádica, em perfeita concórdia, contentamento e
~ homens, ou seja, sua tendência a entrar em sociedade que amor recíproco: os homens, de tão boa índole quanto as
está ligada a uma oposição geral que ameaça constante- ovelhas que apascentam, mal proporcionariam à sua exis-
mente dissolver essa sociedade. Esta disposição é eviden- tência um valor mais alto do que o de seus animais; eles
~
II.!.II.I·I

te na natureza humana. O homem tem uma inclinação não preencheriam o vazio da criação em vista de seu fim
I~ para associar-se porque se sente mais como homem num como natureza racional. Agradeçamos, pois, à natureza a
tal estado, pelo desenvolvimento de suas disposições na- intratabilidade, a vaidade que produz a inveja competi-
~ turais. Mas ele também tem uma forte tendência a sepa- tiva, pelo sempre insatisfeito desejo de ter e também de
rar-se (isolar-se), porque encontra em si ao mesmo tempo dominar! Sem eles todas as excelentes disposições natu-

I
~~ uma qualidade insociável que o leva a querer conduzir rais da humanidade permaneceriam sem desenvolvimen-
tudo simplesmente em seu proveito, esperando oposição to num sono eterno. O homem quer a concórdia, mas a
de todos os lados, do mesmo modo que sabe que está natureza sabe mais o que é melhor para a espécie: ela
inclinado a, de sua parte, fazer oposição aos outros. Esta quer a discórdia. Ele quer viver cômoda e prazerosamen-
oposição é a que, despertando todas as forças do homem, te, mas a natureza quer que ele abandone a indolência e
1.1 o leva a superar sua tendência à preguiça e, movido pela o contentamento ocioso e lance-se ao trabalho e à fadi-
Ij~ ga, de modo a conseguir os meios que ao fim o livrem
busca de projeção (Ehrsucht), pela ânsia de dominação

(Herrschsucht) ou pela cobiça (Habsucht), a proporcionar- inteligentemente dos últimos. Os impulsos naturais que
se uma posição entre companheiros que ele não atura conduzem a isto, as fontes da insociabilidade e da oposi-
IIII mas dos quais não pode prescindir. Dão-se então os pri- ção geral, de que advêm tantos males, mas que também
meiros verdadeiros passos que levarão da rudeza à cultu- impelem a uma tensão renovada das forças e a um maior

I
i
10 RICARDO R. TERRA (ORG.)
IDÉIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL 11

desenvolvimento das disposições naturais, revelam tam- berdade selvagem. Apenas sob um tal cerco, como o é a
bém a disposição de um criador sábio, e não a mão de união civil, as mesmas inclinações produzem o melhor
um espírito maligno que se tenha intrometido na magní- efeito: assim éomo as árvores num bosque, procurando
fica obra do Criador ou a estragado por inveja. roubar umas às outras o ar e o sol, impelem-se a buscá-los
acima de si, e desse modo obtêm um crescimento belo e
aprumado, as que, ao contrário, isoladas e em liberdade,
Quinta proposição lançam os galhos a seu bel-prazer, crescem mutiladas,
sinuosas e encurvadas. Toda cultura e toda arte que or-
namentam a humanidade, a mais bela ordem social são
o maior problema para a espécie humana, a cuja solu-
ção a natureza a obriga, é alcançar uma sociedade civil que frutos da insociabilidade, que por si mesma é obrigada a
administre universalmente o direito. Como somente em so- se disciplinar e, assim, por meio de um artifício imposto,
ciedade e a rigor naquela que permite a máxima liberda- a desenvolver completamente os germes da natureza.
de e, conseqüentemente, um antagonismo geral de seus
membros e, portanto, a mais precisa determinação e res-
guardo dos limites desta liberdade - de modo a poder Sexta proposição
coexistir com a liberdade dos outros; como somente nela
o mais alto propósito da natureza, ou seja, o desenvolvi- Este problema é, ao mesmo tempo, o mais difícil e o que
mento de todas as suas disposições, pode ser alcançado será resolvido por último pela espécie humana. A dificuldade
pela humanidade, a natureza quer que a humanidade que a simples idéia dessa tarefa coloca diante dos olhos
proporcione a si mesma este propósito, como todos os é que o homem é um animal que, quando vive entre outros
outros fins de sua destinação: assim uma sociedade na de sua espécie, tem necessidade de um senhor. Pois ele cer-
tamente abusa de sua liberdade relativamente a seus se-
qual a liberdade sob leis exteriores encontra-se ligada no
mais alto grau a um poder irresistível, ou seja, uma cons- melhantes; e, se ele, como criatura racional, deseja uma
tituição civil perfeitamente justa deve ser a mais elevada
lei que limite a liberdade de todos, sua inclinação animal
tarefa da natureza para a espécie humana, porque a na- egoísta o conduz a excetuar-se onde possa. Ele tem ne-
tureza somente pode alcançar seus outros propósitos re- cessidade de um senhor que quebre sua vontade particu-
lativamente à nossa espécie por meio da solução e cum- lar e o obrigue a obedecer à vontade universalmente vá-
primento daquela tarefa. É a necessidade que força o ho- lida, de modo que todos possam ser livres. Mas de onde
mem, normalmente tão afeito à liberdade sem vínculos, tirar esse senhor? De nenhum outro lugar senão da es-
a entrar neste estado de coerção; e, em verdade, a maior pécie humana. Mas este é também um animal que tem
de todas as necessidades, ou seja, aquela que os homens necessidade de um senhor. Seja qual for o começo, não
ocasionam uns aos outros e cujas inclinações fazem com se vê como o homem pode se dar, para estabelecer a jus-
IIIII que eles não possam viver juntos por muito tempo em li- tiça pública, um chefe que também seja justo - ele pode

1'111

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1111"
'1111'
III

I11III1

II 12 RICARDO R. TERRA (ORG.) IDÉIA DE UMA HIST6RIA UNIVERSAL 13

~ procurá-Io numa única pessoa ou num grupo de pessoas república (gemeines Wesen)? A mesma insociabilidade que
IIIII1
escolhidas para isso. Pois todos eles abusarão sempre de obrigou os homens a esta tarefa é novamente a causa de
sua liberdade, se não tiverem acima de si alguém que que cada republica, em suas relações externas - ou seja,
11111'1
exerça o poder segundo as leis. O supremo chefe deve ser como um Estado em relação a outros Estados -, esteja
justo por si mesmo e todavia ser um homem. Esta tarefa é, numa liberdade irrestrita, e conseqüentemente deva es-
~ por isso, a mais difícil de todas; sua solução perfeita é perar do outro os mesmos males que oprimiam os indiví-
I~, impossível: de uma madeira tão retorcida, da qual o ho- duos e os obrigavam a entrar num estado civil conforme

~j mem é feito, não se poder fazer nada reto. Apenas a leis. A natureza se serviu novamente da incompatibilida-

I
aproximação a esta idéia nos é ordenada pela natureza *. de entre os homens, mesmo entre as grandes sociedades e
1'1~
Ilt Que ela seja aquela que será realizada por último decorre corpos políticos desta espécie de criatura, como um meio
disto: que ela exige conceitos exatos da natureza de uma para encontrar, no seu inevitável antagonismo, um esta-
constituição possível, grande experiência adquirida atra- do de tranqüilidade e segurança; ou seja, por meio de
i,,1
vés dos acontecimentos do mundo e, acima de tudo, uma guerras, por meio de seus excessivos e incessantes prepa-
~ boa vontade predisposta a aceitar essa constituição - estes rativos, por meio da miséria, advinda deles, que todo Es-
três pontos, todavia, muito dificilmente podem ser encon- tado finalmente deve padecer no seu interior, mesmo em
trados juntos e, quando isto acontece, ocorre somente tempo de paz, a natureza impele a tentativas inicialmen-
~ muito tarde, após muitas tentativas frustradas. te imperfeitas, mas finalmente, após tçmta devastação e
~~ transtornos, e mesmo depois do esgotamento total de
I~~ suas forças internas, conduz os Estados àquilo que a ra-
I~I Sétima proposição zão poderia ter-lhes dito sem tão tristes experiências, a
~Ii saber: sair do Estado sem leis dos selvagens para entrar
r
o problema do estabelecimento de uma constituição civil numa federação de nações em que todo Estado, mesmo
perfeita depende do problema da relação externa legal entre o menor deles, pudesse esperar sua segurança e direito
I1
111.'1

Estados, e não pode ser resolvido sem que este último o seja. não da própria força ou do próprio juízo legal, mas so-
'1II
Para que serve trabalhar para uma constituição civil con- mente desta grande confederação de nações (Foedus Am-
forme leis entre indivíduos, ou seja, na ordenação de uma phictyonum) de um poder unificado e da decisão segun-
I~I do leis de uma vontade unificada. Tão fantástica (schwiir-
* O papel do homem é muito artificial. Não sabemos o que ocor- merisch) quanto esta idéia possa parecer, e embora, en-
IIIIII
re com os habitantes de outros planetas e qual a sua natureza; mas, se quanto tal, se preste ao riso no Abbé de Saint-Pierre ou
III

cumprirmos bem esta missão da natureza, podemos nos orgulhar de em Rousseau (talvez porque eles acreditassem na reali-
pretender afirmar uma posição não inferior à dos nossos vizinhos no zação demasiado próxima dela), é a saída inevitável da
t edifício do mundo. Talvez entre eles cada indivíduo possa alcançar ple-
namente sua destinação em vida. Entre nós não ocorre assim - somen- miséria em que os homens se colocam mutuamente e que
te a espécie pode esperar isso. deve obrigar os Estados à mesma decisão (ainda que só a
1I1111

I' III
I
14 RlCARDO R. TERRA (ORG.) IDÉIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL 15

admitam com dificuldade) que coagiu tão a contra-gos- mente selvagem aquelas disposições originais; ou se se
to o homem selvagem, a saber: abdicar de sua liberdade quer, ao contrário, que de todas as ações e reações do ho-
brutal e buscar tranqüilidade e segurança numa constitui- mem não advenha, no conjunto, nada em parte alguma,
ção conforme as leis. Todas as guerras são, assim, tentati- ao menos nada de sábio, que tudo ficará como era, e não
vas (não segundo os propósitos dos homens, mas segun- se poderá predizer disto se a discórdia, tão natural em
do os da natureza) de estabelecer novas relações entre os nossa espécie, prepara-nos ao fim um inferno de males,
Estados e, por meio da destruição ou ao menos pelo des- mesmo num Estado tão civilizado, e talvez destrua nova-
membramento dos velhos*, formar novos corpos que mente este mesmo Estado e todos os progressos cultu-
porém, novamente, ou em si mesmos ou na relação com rais realizados até aqui por meio de uma devastação bár-
os outros, não podem manter-se, e por isso precisam en- bara (um destino no qual não se pode evitar o governo
frentar novas revoluções semelhantes; até que final- do cego acaso, o qual de fato se identifica com a liberda-
mente, em parte por meio da melhor ordenação possí- de sem lei, se não se a submete ao fio condutor da natu-
vel da constituição civil, internamente, em parte por meio reza secretamente ligado à sabedoria!) - tudo leva apro-
de um acordo e de uma legislação comuns, exteriormen- ximadamente à seguinte questão: será mesmo racional
te, seja alcançado um Estado que, semelhante a uma Re- aceitar a finalidade das disposições naturais em suas par-
pública (gemeines Wesen) civil, possa manter-se a si mes- tes e, no entanto, a ausência de finalidade no todo? O que
mo como um autômato. o Estado sem finalidade dos selvagens fez - ou seja, en-
Se se deve esperar de um concurso epicurista de travou todas as disposições naturais em nossa espécie,
causas eficientes que os Estados, como as partículas da mas finalmente, por meio dos males, onde ele a colocou,
matéria, experimentem por meio de choques ocasionais obrigou-a a sair desse Estado e entrar na constituição ci-
todos os tipos de configuração, que por meio de outras vil, na qual todos aqueles germes podem ser desenvol-
colisões serão novamente destruídos, até que por fim se vidos -, faz também a liberdade bárbara dos Estados já
alcance acidentalmente uma configuração que se possa constituídos, a saber: que por meio do emprego de todas
manter em sua forma (um feliz acaso que dificilmente as forças das repúblicas (gemeines Wesen) em se armar
acontecerá!); ou se se deve a:eitar antes que a natureza umas contra as outras, que por meio das devastações oca-
siga aqui um curso regular para conduzir a nossa espé- sionadas pelas guerras, mas ainda maIS por meio da ne-
cie aos poucos de um grau inferior de animalidade até o cessidade permanente de estar de prontidão, na verdade
grau supremo de humanidade, por meio de uma arte que impede-se o pleno desenvolvimento das disposições na-
lhe é própria, embora extorquida do homem, e desenvol- turais em seu progresso, mas, por outro lado, também os
ver de maneira bem regular nessa ordenação aparente- males que surgem daí obrigam nossa espécie a encontrar
uma lei de equilíbrio para a oposição em si mesma sau-
* Seguimos aqui a versão da edição da Koniglich Preussischen dável' nascida da sua liberdade, entre Estados vizinhos, e
Akademie der Wissenschaften, e não a edição de Wilhelm Weischedcl, um poder unificador que dê peso a esta lei, de modo a
onde se lê "aller", em vez de "alter". (N. do T.) introduzir um Estado cosmopolita de segurança pública
'11

16 RICARDO R. TERRA (ORG.)


IDÉIA DE UMA HISTÓRIA UNNERSAL 17

entre os Estados - que não elimine todo perigo, para que Oitava proposição
as forças da humanidade não adormeçam, mas que tam-
bém não careça de um princípio de igualdade de suas ações Pode-se considerar a história da espécie humana, em seu
e reações mútuas, a fim de que não se destruam uns aos conjunto, como a realização de um plano oculto da natureza
outros. Antes que este último passo aconteça (ou seja, a para estabelecer uma constituição política (Staatsverfassung)
união dos Estados), quase somente na metade do seu de- perfeita interiormente e, quanto a este fim, também exterior-
senvolvimento, a natureza humana padece do pior dos mente perfeita, como o único estado no qual a natureza pode
males, sob a aparência enganosa do bem-estar exterior; e desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas dis-
Rousseau não estava tão errado ao preferir o Estado dos posições. Esta proposição é uma conseqüência da anterior.
selvagens, se se deixar de lado este último degrau que Vê-se que a filosofia também pode ter seu quiliasmo, mas
nossa espécie ainda tem que galgar. Mediante a arte e a para o advento deste a sua idéia, ainda que somente de
ciência, somos cultivados em alto grau. Somos civilizados muito longe, pode tornar-se mesmo favorável. Ele não
até a saturação por toda espécie de boas maneiras e de- é nada menos que fantástico (schwarmerisch). O problema
coro sociais. Mas ainda falta muito para nos considerar- está em saber se a experiência revela algo de um tal curso
mos moralizados. Se, com efeito, a idéia de moralidade do propósito da natureza. Digo que muito pouco, pois
pertence à cultura, o uso, no entanto, desta idéia, que não este ciclo parece exigir tanto tempo para cumprir-se que,
vai além de uma aparência de moralidade (Sittenahnliche) deste ponto de vista, a pequena parte que a humanidade
no amor à honra e no decoro exterior, constitui apenas a percorreu permite determinar somente de maneira mui-
civilização. Mas enquanto os Estados empregarem todas to incerta a forma de sua trajetória e a relação das partes
as suas forças em propósitos expansionistas ambiciosos com o todo, e o mesmo ocorre se quisermos determinar,
e violentos, impedindo assim continuamente o lento es- a partir das observações do céu feitas até aqui, o curso
forço de formação interior do modo de pensar de seus do nosso sol junto com todo o cortejo de seus satélites
cidadãos, privando-os mesmo de qualquer apoio neste
no grande sistema de estrelas fixas - entretanto o prin-
propósito, nada disso pode ser esperado, porque para cípio geral da constituição sistemática da estrutura do
isto requer-se um longo trabalho interior de cada repúbli-
mundo e o pouco que se observou bastam para concluir
ca (gemeines Wesen) para a formação de seus cidadãos.
com segurança a respeito da realidade de um tal ciclo.
Mas todo bem que não esteja enxertado numa intenção Ademais, a natureza humana não se mostra indiferente
moralmente boa não passa de pura aparência e cintilan-
ante a mais longínqua época que nossa espécie deve al-
te miséria. O gênero humano permanecerá neste Estado
até que, por seu esforço, do modo como foi dito por mim, cançar, desde que ela possa ser esperada com segurança.
saia do estado caótico em que se encontram as relações Principalmente no nosso caso não deve ocorrer a indi-
entre os Estados. ferença, já que parece que podemos, por meio de nossa
própria disposição racional, acelerar o advento de uma era
tão feliz para os nossos descendentes. Graças a isso, o

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18 RICARDO R. TERRA (ORG.) IDÉIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL 19

mais leve sinal de sua aproximação torna -se muito impor- mesmo assiIT.leles acharão vantajoso não impedir os es-
tante para nós. Atualmente os Estados se encontram nu- forços particulares, ainda que débeis e vagarosos, de seus
ma relação tão artificial entre si que nenhum deles pode povos, ao menos neste aspecto. Por fim, a guerra torna-se
negligenciar a cultura interna sem perder em poder e in- aos poucos não somente ~ãosofisticada e de desenlace tão
fluência diante dos outros; assim os propósitos ambicio- incerto para ambas as partes, mas também, por suas con-
sos asseguram bem, se não o progresso, ao menos a ma- seqüências nefastas - que o Estado experimenta como
nutenção dessa finalidade da natureza. Mais ainda: a li- uma dívida sempre crescente (uma nova invenção), cuja
berdade civil hoje não pode mais ser desrespeitada sem amortização torna-se imprevisível-, transforma-se numa
que se sintam prejudicados todos os ofícios, principal- empresa muito delicada, de onde a influência tão notável
mente o comércio, e sem que por meio disso também se que os abalos em um Estado produzem em todos os ou-
sinta a diminuição das forças do Estado nas relações ex- tros Estados em nossa parte do mundo tão ligada pela
ternas. Mas aos poucos esta liberdade se estende. Se se indústria: assim, pressionados por seu próprio risco, em-
impede o cidadão de procurar seu bem-estar por todas as bora sem consideração legal, eles se oferecem como árbi-
formas que lhe agradem, desde que possam coexistir com tros e desse modo preparam com antecedência um futuro
a liberdade dos outros, tolhe-se assim a vitalidade da ati- grande corpo político (Staatskorper), do qual o passado não
vidade geral e com isso, de novo, as forças do todo. Por deu nenhum exemplo. Embora este corpo político (Staats-
isso as restrições relativas à pessoa em sua conduta são korper) por enquanto seja somente um esboço grosseiro,
paulatinamente retiradas e a liberdade universal de re- começa a despertar em todos os seus membros como que
ligião é concedida; e assim surge aos poucos, em meio a um sentimento: a importância da manutenção do todo; e
ilusões e quimeras inadvertidas, o Iluminismo (Aufklarung) isto traz a esperança de que, depois de várias revoluções
como um grande bem que o gênero humano deve tirar e transformações, finalmente poderá ser realizado um
mesmo dos propósitos de grandeza egoísta de seus che- dia aquilo que a natureza tem como propósito supremo,
fes, ainda quando só tenham em mente suas próprias van- um Estado cosmopolita universal, como o seio no qual
tagens. Mas este Iluminismo, e com ele também um certo podem se desenvolver todas as disposições originais da
interesse do coração que o homem esclarecido (aufgeklart) espécie humana.
não pode deixar de ter em relação ao bem, que ele con-
cebe perfeitamente, precisa aos poucos ascender até os
tronos e ter influência mesmo sobre os princípios de go- Nona proposição
verno. Ainda que, por exemplo, aos atuais governantes
do mundo não sobre até hoje nenhum dinheiro para os Uma tentativa filosófica de elaborar a história universal
estabelecimentos públicos de ensino e em geral para tudo do mundo segundo um plano da natureza que vise à perfeita
o que tange ao aperfeiçoamento do mundo, porque tudo já união civil na espécie humana deve ser considerada possível e
está comprometido de antemão com as futuras guerras, mesmo favorável a este propósito da natureza. É um projeto

II
20 RICARDO R. TERRA (ORG.) IDÉIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL 21

estranho e aparentemente absurdo querer redigir uma mos um curso regular de aperfeiçoamento da constituição
história (Geschichte) segundo uma idéia de como deveria política (Staatsverfassung) em nossa parte do mundo (que
ser o curso do mundo, se ele fosse adequado a certos fins provavelmente um dia dará leis a todas as outras). Consi-
racionais - tal propósito parece somente poder resultar deremos em todas as partes apenas a constituição civil e
num romance. Se, entretanto, se pode aceitar que a na- suas leis e a relação entre os Estados, e veremos que am-
tureza, mesmo no jogo da liberdade humana, não pro- bos, pelo bem que contêm, serviram por um certo tempo
cede sem um plano nem um propósito final, então esta para elevar e glorificar os povos (e com eles também as
idéia poderia bem tornar-se útil; e mesmo se somos mío- artes e as ciências), mas, por meio dos vícios que lhes es-
pes demais para penetrar o mecanismo secreto de sua dis- tão ligados, tornam a destruí -los, porém de tal modo que
posição, esta idéia poderá nos servir como um fio con- sempre permaneceu um germe do Iluminismo que, de-
dutor para expor, ao menos em linhas gerais, como um senvolvendo-se mais a cada revolução, preparou um grau
sistema, aquilo que de outro modo seria um agregado sem mais elevado de aperfeiçoamento. Descobre-se assim,
plano das ações humanas. Pois, se partirmos da história creio, um fio condutor que pode servir não apenas para o
grega, como aquela em que se conservam todas as outras esclarecimento do tão confuso jogo das coisas humanas
histórias que lhe são anteriores ou contemporâneas, ou ou para a arte de predição política das futuras mudanças
ao menos a que garante a sua autenticidade*; se perse- estatais (Staatsveranderungen) (um uso que já era feito de
guirmos sua influência sobre a formação e degeneração outro modo da história dos homens, mesmo quando se
(Missbildung) do corpo político (Staatskorper) do povo ro- a considerava como o efeito desconexo de uma liberda-
mano, que absorveu o Estado grego, e a influência dos
de sem regras!), mas que abre também (o que, com razão
romanos sobre os bárbaros, que por sua vez os destruíram,
[Grund], não se pode esperar sem pressupor um plano da
até os nossos dias; e se acrescentarmos episodicamente a
natureza) uma perspectiva consoladora para o futuro, na
história política de outros povos tal como seu conheci-
mento chegou pouco a pouco até nós justamente por qual a espécie humana será representada num porvir dis-
meio destas nações esclarecidas (aufgeklart) - descobrire- tante em que ela se elevará finalmente por seu trabalho a
um estado no qual todos os germes que a natureza nela
colocou poderão desenvolver-se plenamente e sua desti-
,. Somente um público instruído, que persistiu de seu começo até nação aqui na Terra ser preenchida. Uma tal justificação
nós ininterruptamente, pode garantir a autenticidade da história anti-
da natureza - ou melhor, da Providência - não é um mo-
ga. Fora dele, tudo é terra incógnita, e a história dos povos que viveram
fora dele só pode começar no momento em que aí entraram. Isto tivo de pouca importância para escolher um ponto de vis-
aconteceu com o povo judeu à época de Ptolomeu, por meio da tradu- ta particular para a consideração do mundo. De que serve
ção grega da Bíblia, sem a qual se daria pouco crédito aos relatos iso- enaltecer a magnificência e a sabedoria da criação num
lados sobre ele. A partir daí (se este começo tiver sido devidamente es-
tabelecido) pode-se remontar às suas narrativas. E assim com todos os
reino da natureza privado de razão, de que serve reco-
outros povos. A primeira página de Tucídides (diz Hume) é o único mendar a sua observação, se a parte da vasta cena da su-
começo de toda verdadeira história. prema sabedoria que contém o fim de todas as demais-
22 RICARDO R. TERRA (ORG.!

a história do gênero humano - deve permanecer uma


constante objeção cuja visão nos obriga a desviar os olhos
a contragosto e a desesperar de encontrar um propósito
racional completo, levando-nos a esperá-Io apenas em
um outro mundo? ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A
Seria uma incompreensão do meu propósito consi- FILOSOFIA DA HISTÓRIA EM KANT
derar que, com esta idéia de uma história do mundo
(Weltgeschíchte), que de certo modo tem um fio condutor RICARDO RIBEIRO TERRA
a priorí, eu quisesse excluir a elaboração da história (Hís-
toríe) propriamente dita, composta apenas empiricamen-
te; isto é somente um pensamento do que uma cabeça
filosófica (que, de resto, precisaria ser muito versada em
história) poderia tentar ainda de outro ponto de vista.
Além disso, o louvável cuidado com os detalhes com que
se escreve a história de seu tempo deve levar cada um
naturalmente à seguinte inquietação: como nossos des-
I cendentes longínquos irão arcar com o fardo da história
que nós lhes deixaremos depois de alguns séculos. Sem
dúvida eles avaliarão a história dos tempos mais antigos,
da qual os documentos poderiam estar perdidos há mui-
to, somente do ponto de vista daquilo que lhes interes-
sa, ou seja, o que povos e governos fizeram de positivo
e prejudicial de um ponto de vista cosmopolita. Prestar
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atenção nisto, bem como na ambição dos chefes de Esta-
do e também na de seus servidores, para indicar-Ihes o
li'
único meio em que sua lembrança gloriosa possa ser leva-
da à mais distante posteridade, pode fornecer além disso
Ilil, mais um pequeno motivo para a tentativa de uma tal his-
tória filosófica.
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