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HOMEM

EA
GENTE
Direito* excluilvos de tradufóo para
a Brasil a Portugal raaarvado* A
LIVRO IBERO-AMERICANO, LTDA,
Rio do Janeiro, 1960
JOSÓ ORTGGO y GRSSGT
OBRAS INÉDITAS

o Homem 0 o gqíitq
Nota introdutória
e tradução de
J. CARLOS LISBOA

LIVRO IBERO-AMERICANO, LTDA.


Rua do Rosário, 99
RIO DE JANEIRO
PUMEIRA EDIÇÃO ESPANHOLA: junho de 1957
S GUNDA EDIÇÃO " novembro de 1958
PUMEIRA EDIÇÃO EM PORTUGUÊS: outubro de 1960

Copyright by
Revisto de Occidente, S.A.
Madrid, 1958

PRINTED AND MADE IN BRAZIL — Composto e Impresso nas afldnas gráficas


do Lito-Tipo Guanabara, S.A., Rua Maia Lacerda, 700 — Rio de Janeiro
ÍNDICE
Págs.
NOTA INTRODUTÓRIA ....................................................................... 9

COMENTÁRIO A UAAA OBRA PÓSTUAAA DE ORTEGA .... 13

ADVERTÊNCIA ................................................................................. 39

NOTA PRELIMINAR........................................................................... 41

ABREVIATURA .................................................................................. 43

I — Ensimesmamento e alteração .............................................. 51

II — A vida pessoal ...................................................................... 77

III — Estrutura do "nosso" mundo ................................................. 95

IV — A aparição do "Outro"...................................................... . 109

V — A vida inter-individual. Nós-Tu-Eu ....................................... 131

VI — Mais sôbre os outros e eu. Breve excursão rumo a Ela 149

VII — O perigo que é o Outro e a surprêsa que é o Eu .. 175

VIII — De repente, aparece a Gente............................................... 205

IX — Meditação sôbre o Cumprimento ....................................... 211

X — Meditação sôbre o Cumprimento. O homem, animal


etimológico. Que é um uso?............................................ 225

XI — O dizer da gente: a língua. Para uma nova lin-


güística ........................................................................ 253

XII — O dizer da gente: as "opiniões públicas", as "vigên­


cias" sociais. O Poder Público.................................. 287

APÊNDICES .................................................................................... 301


Nota introdutória

Ortega y Gasset não foi, especificamente, um sociólogo,


— já se sabe. Era um filósofo, embora alguns ortodoxos
lhe neguem essa qualidade, sob a alegação de que êle não
nos legou um “sistema filosófico”. Não é, porém, o debate
em tômo disso que nos interessa aqui.

Era, ainda, um escritor de língua espanhola, um escri­


tor, — na plenitude de significação da palavra, — e como
tal deve também ser encarado, sempre que se analise a sua
obra. Algumas figuras dos redutos anti-orteguistas, mesmo
na Espanha, seriam capazes de reagir contra essa afirmação,
em nome de outras alegações, semelhantes às dos filósofos
radicais, tomadas através de uma ótica equivalente à dêles.
Tampouco a divergência do ponto de vista literário nos im­
porta, neste momento.

Tanto a primeira como a segunda (e haverá terceira)


posição negativista esbarram contra a consagração que cer­
cou, — dentro e fora de seu país, — a vida e a obra do
filósofo e escritor contemporâneo, cujo nome aumenta em
projeção e prestígio, dia a dia, entre filósofos e escritores
da Espanha e do mundo. Além disso, está longe de ser pe­
quena a atenção que os próprios sociólogos ou estudiosos
dos fatos sociais lhe concedem à obra. Como um exemplo
só, muito convincente, basta pesar-se o número e a qualidade
de resenhas aparecidas nas publicações dedicadas à Socio-

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O HOMEM E A GENTE

logia, a partir da primeira edição espanhola de La rebelión


de las masas (1) em 1930, livro que hoje se pode ler em
qualquer língua moderna e que aparece citado diariamente
em artigos especializados, ensaios, estudos, novos livros.
Êsse livro de Ortega, — cuja ressonância, aos trinta anos
de nascido, continua tão viva, cuja oportunidade perdura
tão sensivelmente, já nos dava a medida de seu interêsse
vertical, profundo, nessa área, e da sua visão lúcida dos
fenômenos sociais, — mesmo que se discorde de alguns pon­
tos de vista do Autor. E permitiu prever-se e até aguar­
dar-se o aparecimento de outro, o livro que ora se apresenta
ao leitor brasileiro em tradução nossa, obra de um escritor,
de um filósofo e, verdadeiramente, de um sociólogo: El
hombre y la gente.

De um escritor, porque reafirma e confirma tôdas as


qualidades de estilista de Ortega. Não, — por certo, — de
um escritor vencido pela preocupação de ordem estética,
exclusivamente empenhado em criar belezas literárias, mas
de alguém que possui o domínio da palavra e dela se serve
para expressão exata, clara, rica das suas idéias, igualmente
ricas, claras e exatas. De um escritor que lê escritores, não
apenas os de sua língua, mas que igualmente acompanha o
que escrevem pensadores, filósofos, sociólogos, políticos,
cientistas, eruditos, lingüistas, filólogos, historiadores, geó­
grafos, economistas, críticos de artes plásticas, de música, de
literatura. Daí vem, certamente, a abundância impressionan­
te de informações que se derrama pela obra orteguiana, in­
formações servidas na hora própria, sem o pedantismo das
citações a fôrça, postas para deslumbar o leitor; informações
que valem, ao contrário, para elucidar um tema, fundamen-

(1) Publicado por esta Editôra, como primeiro volume do conjunto das OBRAS de
Ortega, traduzidas no Brasil especialmente para esta coleção.

10 —
NOTA INTRODUTÓRIA

tar uma asseverativa, suportar uma interpretação. Agregue-


se a tudo isso o humor do ensaista, que não o abandona,
e intervala as horas de vôo mais alto e arrojado, a graça
que não compromete a seriedade do discurso; contribuindo
todos êsses elementos para a criação de uma das prosas
mais densas e, paradoxalmente, mais leves, das letras es­
panholas contemporâneas. Já se escreveu alguma vez que
Ortega pensava com claridade francesa e densidade alemã.
Pois bem: sua prosa jamais perdeu essa claridade-densa,
densidade-clara que caracteriza a sua mente e a expressão
dela.
El hombre y la gente é, assim, o livro de um escritor,
e é, ainda, por acréscimo e ao mesmo tempo, o livro de um
filósofo, porque ambos foram inseparáveis em Ortega, e o
conjunto mágico da palavra, na ambivalência significado-
significante, servia rigorosamente aos dois senhores fundi­
dos no homem: o que pensava e o que escrevia. Mas o livro
também é, finalmente, a obra de um sociólogo.

Não será um tratado de Sociologia, com a sistemática


ou a organicidade que talvez sociólogos extremados de radi­
calismo, ortodoxia, academismo lhe queiram cobrar. (Ainda
aqui, a divergência de grupos em tômo da criação orte-
guiana comprovará a extraordinária capacidade suscitadora,
dinamizante do Autor). Representa a doutrina sociológica
de Ortega, que se formulara através de uma série de con­
ferências dadas por êle em universidades americanas e eu­
ropéias, concisos cursos que se refundiram e que seus dis­
cípulos encontraram entre papéis inéditos, após o desapa­
recimento do antigo catedrático de Metafísica. Para que se
organizasse como um tratado, faltou que o plano do Autor
fôsse desenvolvido na sua totalidade, como previsto e im­
presso no esquema do fim desta edição, — o que a morte
impediu que êle levasse a cabo. A grande parte realizada

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O HOMEM E A GENTE

é fundamental, para o filósofo e para o sociólogo, pois que


nela se encontra a filosofia da sociologia orteguiana, em
perfeita coerência, aliás, com o seu pensamento filosófico.
E, aos discípulos que lhe estão publicando os papéis iné­
ditos, essa parte pareceu digna de vir à luz, pela importân­
cia da análise, que contém, da essência dos fatos e fenôme­
nos sociais.

O Homem e a Gente tem de ser considerado como o


mergulho de um filósofo no movediço, resvaladiço mar das
realidades sociais, — não para um exercício de natação na
superfície, brilhante e esportivo, mas um mergulho autên­
tico até as águas mais profundas, com o propósito de sur­
preender e entender a essência da sociedade, de sua estru­
tura, de sua natureza, de suas peculiaridades.

Insatisfeito com tudo quanto, — quer em Comte, Spen­


cer ou Bergson, — se lhe oferecia ao afã inquiridor, assume
posição, estilo, ritmo próprios para a sua operação desven-
dadora e se dispõe, não só a repensar as idéias, as defini­
ções, os conceitos, (que lhe pareceram imprecisos, insufi­
cientes, tumultuados, mal enfocados, nesses e noutros auto­
res) , mas pensá-los na sua essencialidade. O resultado dêsse
pensar, — novamente, livremente, — a sociedade, os seus
fenômenos, constituiu o presente livro. O Outro, Eu, Tu,
Ela, a Gente, a vida inter-individual e a social, os usos, a
língua, — cado aspeto, cada descoberta ou re-descoberta,
— de ângulos novos, — faz com que essa obra inédita de
Ortega venha apaixonando, — de um lado ou de outro, —
os sociólogos, os filósofos, os lingüistas, tanto quanto o
homem culto em geral, pela fôrça e originalidade com que
está concebida, estruturada e expressada.

Sôbre a nossa tradução, queremos confessar que foi


feita com o cuidado e o respeito que nos merece a obra

12 —
NOTA INTRODUTÓRIA

orteguiana, embora estivéssemos sob a pressão do prazo que


nos foi concedido para acabá-la. Esforçamo-nos por mantê-
la fiel ao pensamento do Mestre, sem esperança de corres­
ponder às excelências do escritor, mas realizando tôdas as
diligências possíveis para não comprometê-las.

Em pé-de-página conservamos as notas do Autor, assim


como a dos Editores seus discípulos; as breves anotações
de nossa responsabilidade, que aí figuram, levam sempre a
marca abreviada do tradutor.

J. CARLOS LISBOA

Rio, 10 de outubro de 1960


COMENTÁRIO A UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA*

Esta obra, publicada postumamente, consagra José Or­


tega y Gasset como um dos grandes alicerçadores da Socio­
logia. Seu nome se une, em posição eminente, — talvez a
mais destacada e de maior altura, — à lista dos sociólogos
de primeiríssima classe que contribuiram para o assenta­
mento das bases da Sociologia como ciência com objeto pró­
prio e para a indagação de seus conceitos fundamentais:
Tarde, Durkheim, Tonnies, Simmel, Wiese, Ross, Thomas,
Max Weber, Alfred Weber, Scheier...
A partir da terceira década dêste século, Ortega y
Gasset se tornou conhecido e foi reconhecido como um dos
maiores filósofos de nosso tempo, como um autêntico ino­
vador, a iniciar uma fecunda etapa na história do pensa­
mento. Por outro lado, Ortega y Gasset havia produzido
obras de focalização sociológica sôbre temas particulares:
Espanha Invertebrada, A Rebelião das Massas, A Crise,
Meditação sôbre a Técnica, etc., que gozaram de ressonân­
cia mundial. Além disso, desde 1934, com o máximo rigor
mental, pôs filosoficamente o problema dos conceitos, dos
fundamentos e do objeto próprio da Sociologia; ainda mais:
empreendeu uma investigação, com grande minúcia, sôbre
tais assuntos, investigação que começou num seminário pri-
vadíssimo realizado na Universidade de Madri, nos cursos
de 1934-1935, seminário cujos participantes eram, em sua
maioria, professores da Faculdade de Filosofia e da Facul-
* Com o outorizoçõo do Prof. Luís Recosens Siches vimos enriquecer esta
primeira edição em língua portuguesa, transplantando íntegra a resenha que
sob o título: UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA, o ilustre escritor e filósofo
faz do obra "El hombre y Ia gente" em: Dianoia — Anuário de filosofia, I960,
pgs. 183-194, Fondo de Cultura Econômica — México. Nota dos Editores (L.I.A.L.).

— 15
O HOMEM E A GENTE

dade de Direito e Ciências Sociais. Foi ali que recolhi as


idéias fundamentais e a inspiração para o meu próprio labor
sociológico. Ortega continuou trabalhando nesses temas, nos
sucessivos anos, durante os quais me beneficiei com novas
sugestões. A tragédia da Espanha, porém, nos separou a
mim, e ao meu querido mestre, no espaço geográfico, me­
diado o ano de 1937, quando êle se encaminhou à Argen­
tina e eu me transferi para o México. Ortega ofereceu a
primeira versão pública de suas meditações fundamentais
em Sociologia no curso que lecionou em Buenos Aires, pre­
cisamente com o mesmo título da obra póstuma comentada
aqui, mas do qual só foi editada a primeira lição. Por meu
lado, partindo das premissas que havia aprendido em meu
contato pessoal com Ortega y Gasset, continuei trabalhando,
por minha própria conta, no desenvolvimento daqueles
princípios e na integração dos mesmos com outras investi­
gações e meditações, até o ponto de convertê-los em alicerce
sistemático da Sociologia.

Quando, no momento de sua publicação, abri êste livro


de Ortega y Gasset senti-me tocado por um sentimento
cambiante, de máxima curiosidade: Em que medida os meus
próprios desenvolvimentos, que partiam das premissas de
Ortega y Gasset, constituiríam um prolongamento fiel do
pensamento de meu grande mestre, ou até que ponto a
minha continuação pessoal conteria desvios? Nesta se­
gunda hipótese: seriam essenciais as divergências ou, ao
contrário, intranscendentes? No caso em que houvesse dis-
crepâncias: seria eu persuadido a retificar ou, em vez disso,
teria de manter o desacôrdo? Logo me livrei das dúvi­
das. Entre a portentosa fundamentação sistemática da So­
ciologia oferecida por Ortega no livro aqui comentado e a
minha própria obra sôbre êsses temas não há nenhuma
oposição essencial. Embora modestamente, acertei no segui­

16 —
COMENTÁRIO A UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA

mento da inspiração básica de meu mestre, fazendo-a deri­


var a desenvolvimentos relativamente mais concretos. É
certo que, — e apresso-me a proclamá-lo, — Ortega y
Gasset oferece nesta obra um novo aprofundamento filo­
sófico sôbre as raízes primárias dêsses assuntos, aprofun­
damento a que chegou depois de 1937, em suas ulteriores
análises, que cada dia êle foi afinando mais e mais. E até
parece, a julgar pelo fato de que a morte o surpreendeu
antes de que se decidisse a publicar o livro, que ainda
pretendia obter maiores precisões. A leitura dessa obra,
objeto da resenha presente, me mostrou por uma parte,
novas dimensões na fundamentação da Sociologia; por outra,
me deu a satisfação de me encontrar agora, da mesma forma
que antes, em concordância substancial com o meu mestre,
e a de que os meus próprios desenvolvimentos rimam com
as novas realizações orteguianas.

Discutia-se, há dois decênios, sôbre se a Sociologia deve


ou não ter contatos estreitos com a Filosofia ou se, ao
contrário, deve construir-se simplesmente como uma ciência
empírica, desentendendo-se por completo de tôda depen­
dência a respeito da Filosofia. Algumas vêzes, essas
discussões se desenvolveram de maneira confusa e desfo-
calizada. É claro que a Sociologia, sem dúvida alguma, deve
ser uma ciência empírica de um determinado tipo de fatos
que se dão na experiência; e que, por conseguinte, seria
insensato querer suplantar essa ciência de realidades empí­
ricas por uma especulação filosófica, ainda mesmo que o
fôsse por uma ciência de idéias, de sentidos ou de significa­
ções. A respeito disso, devemos estar todos de acordo; mais
ainda: tal acordo é quase unânime, hoje em dia, salvo ana­
crônicas pervivências de algumas tresnoitadas interpreta­
ções neo-hegelianas, nas quais já ninguém presta atenção.

— 17
O HOMEM E A GENTE

Sim; efetivamente, a Sociologia é uma ciência de fatos


empíricos e como tal deve desenvolver-se. Tal coisa, não
obstante, não implica que a Sociologia possa prescindir da
sua fundamentação, do auxílio da Filosofia. Ainda mais:
necessita dessa ajuda, por duas razões: uma, diriamos ge­
nérica; e outra, particular, especialmente vinculada ao objeto
sociológico. A primeira das razões, a genérica, é a seguinte:
nenhuma ciência é capaz, sozinha e por si mesma, de dar
conta e razão dos conceitos, do fundamento prévio sôibre o
qual se apoia, nem da definição essencial de seu próprio
objeto. Para atender a essas necessidades, é peremptòria-
mente indispensável que recorra à Filosofia. Isso ocorre com
a Matemática, a Física, a História, em suma: com tôdas as
ciências. E naturalmente, ocorre da mesma forma com a
Sociologia; apenas, numa situação agravada, de urgência
maior, em razão da “juventude” dessa disciplina, assim como
também de outras circunstâncias, entre as quais, — diga-se
sem quebra do devido respeito, — é preciso mencionar a
frivolidade que caracterizou os sociólogos do século XIX e
mesmo os do princípio do século XX.
A outra razão, a específica, que tange à Sociologia e pela
qual esta deve obter da Filosofia uma fundamentação, é
que os fatos estudados pela Sociologia são fatos humanos,
uma parte muito grande dos fatos humanos. Por isso, uma
Sociologia bem constituída deve, iniludivelmente, tomar
contato a fundo com essa peculiar realidade que é a vida
humana; porque dentro dêsse âmbito é que se encontram as
chamadas realidades sociais e coletivas.
Êste livro de Ortega contribui, de modo decisivo e com
largo alcance, para a fundamentação da Sociologia, num
plano de profundidade nunca antes alcançado, e com meri-
diana transparência. Não se trata, de maneira alguma, de
suplantar a tarefa pura e estritamente científica, de ciência

18 —
COMENTÁRIO A UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA

empírica de fatos, que a Sociologia deve desenvolver. Tra­


ta-se de outra coisa: de esclarecer, de maneira profunda e
diáfana ao mesmo tempo, as noções fundamentais da Socio­
logia, noções que não substituem, nem substituirão, jamais,
a investigação empírica, mas que, em troca, darão a esta:
rigor e precisão, que muitas vêzes lhe faltaram.

Antes de resumir algumas idéias principais dêste livro,


parece-me, não somente oportuno, mas até obrigatório, cha­
mar a atenção para um fato de suma importância: o fato
de que, — certamente sem relação de recíproca influência,
— ocorre um impressionante paralelismo, uma comovedora
coincidência, entre algumas das verdades sôbre o social
obtidas por via filosófica, sobretudo na obra de Ortega, e
muitas descobertas alcançadas, nos últimos anos, pelas ciên­
cias empíricas, pela Psicologia, pela Antropologia e por in­
vestigações sociológicas empíricas. São especialmente notá­
veis as harmoniosas concordâncias e os paralelismos entre
Ortega, por uma parte e, por outra, Erich Fromm, Nadei, etc.

Esta obra de Ortega vem unir uma nova contribuição


européia às anteriores, que se tinham produzido no Velho
Mundo, mas vem com uma profundidade e um alcance enor­
memente maiores do que tôdas as precedentes. Sucede que
até agora se pode dizer, em têrmos gerais, — embora com
algumas exceções, — que os passos decisivos no esforço
para fundamentar a Sociologia e para dotá-la de noções pre­
cisas, foram dados na Europa. Em compensação, é mister
completar essa assertiva com outra, a saber: as maiores
realizações na ciência sociológica, durante os últimos vinte
e cinco anos, se deram, em sua imensa maioria, na Norte-
América.

A obra de Ortega é genuinamente filosófica. É claro que


o é, com a diafaneidade e facilidade que, — seja em sua

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O HOMEM E A GENTE

palavra escrita, seja na falada, — teve aquele grande mestre,


o homem que atingiu as idéias mais claras e diferentes no
século XX. Ortega, porém, foi acometido pela preocupação
sociológica, não por um prurido meramente teórico; antes:
por uma necessidade prática de dimensões trágicas.

“Falam hoje os homens, a toda hora, da lei e do Direito,


do Estado, da Nação e do internacional, da opinião pública
e do poder público, da boa e da má política, de pacifismo e
belicismo, da pátria e da humanidade, da justiça e da in­
justiça social, de coletivismo e capitalismo, de socialização
e de liberalismo, de autoritarismo, de indivíduo e de coleti­
vidade, etc., etc. E não somente falam no jornal, na tertúlia,
no café, no botequim. Além de falar discutem. E não só
discutem, mas combatem pelas coisas que essas palavras
designam. E em combate acontece que os homens chegam
a matar-se uns aos outros, às centenas, aos milhares, aos
milhões...” “Fala-se, fala-se de tôdas essas questões, mas o
que se diz sôbre elas carece da mínima clareza, sem a qual
a operação de falar acaba sendo nociva...” “Uma das des­
venturas maiores do tempo é a aguda incongruência entre
a importância que, no presente, têm tôdas essas coisas, e a
rudeza e a confusão dos conceitos sôbre essas mesmas coisas,
que aquelas palavras representam...” “Por desgraça a ru­
deza e a confusão a respeito de tais matérias não existe
somente no vulgo, mas também nos homens de ciência, a
tal ponto que não é possível encaminhar o profano a ne­
nhuma publicação em que possa, de verdade, retificar e
polir os seus conceitos sociológicos”.

O primeiro capítulo dêste livro (Ensimesmamento e


Alteração) já havia sido publicado com êsse mesmo título,
em 1939, e seu conteúdo é bem conhecido pelos filósofos
e pelos sociólogos.

20 —
COMENTÁRIO A UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA

O segundo capítulo resume algumas das idéias funda­


mentais de Ortega sôbre a vida humana, idéias que estão
desenvolvidas em outras de suas obras, e sôbre as quais,
depois de sua morte, se publicaram alguns compêndios
fiéis. Mas, já nesse capítulo, começa a oferecer fios que for­
mam o tecido da área social do homem.

“A solidão radical da vida humana, o ser do homem


não consiste, pois, em que não haja reahnente senão êle.
Totalmente ao contrário: há nada menos que todo o uni­
verso, com todo o seu conteúdo. Há, portanto, infinitas
coisas, mas, — aí está! — no meio delas o Homem, na sua
realidade radical, está só, — só com elas, e, como entre essas
coisas estão os outros sêres humanos está só, com êles. Se
não existisse mais do que um único ser, não se poderia
dizer congruentemente que está só. A unidade nada tem a
ver com a solidão...”

“Dêsse fundo de solidão radical que é, sem remédio,


nossa vida, emergimos constantemente muna ânsia, não me­
nos radical, de companhia. Quereriamos achar aquêle cuja
vida se fundisse integramente, se interpenetrasse com a
nossa. Para tanto, realizamos as mais várias tentativas. Mas
a suprema, entre elas, é o que chamamos amor. O autên­
tico amor não é senão o intento de permutar duas solidões”.

“À solidão, que somos, pertencem, — e fazem parte


essencial dela, — tôdas as coisas e sêres do universo, que
estão aí em nosso redor, formando o nosso contorno, ar­
ticulando a nossa circunstância, mas que jamais se fundem,
com o cada qual que se é, — antes e pelo contrário, são
sempre o outro, o absolutamente outro, um elemento estra­
nho e sempre mais ou menos estorvador, negativo e hostil;
no melhor caso: incoincidente, que por isso advertimos como

— 21
O HOMEM S A GENTE

sendo o alheio e fora de nós, como o forasteiro, — porque


nos oprime, comprime e reprime: o mundo”.

“Ao encontrar-se, portanto, vivendo, o homem se en­


contra tendo de haver-se com isso que chamamos contôrno,
circunstância ou mundo”. “O elemento estranho ao homem,
foráneo, o “fora de si”, em que o homem se tem de afanar
em ser...” “... Tudo quanto compõe, enche e integra o
mundo, — em que ao nasscer o homem se encontra, — não
tem por si condição independente, não tem um ser próprio,
não é nada em si, — mas é somente um algo para ou um
algo contra os nossos fins...”

No capítulo III, Ortega oferece uma funda e fina análise


da estrutura do nosso mundo. A vida é sempre pessoal,
circunstancial, intransferível e responsável. Se mais adiante
nos encontrarmos com vida, nossa ou de outros, que não
possua esses atributos, deve dizer-se, (sem atenuação nem
dúvida), que não é vida humana no sentido próprio e origi­
nário, isto é, vida como realidade radical; será vida, e se
se quiser, vida humana, em outro sentido, será outra classe
de realidade diferente daquela e, ademais, secundária, deri­
vada, mais ou menos problemática. Tropeçaremos com for­
mas de vida nossa que, por ser nossa, teríamos de chamar
de vida humana mas que, por lhe faltarem aquêles atri­
butos, teríamos de chamar, também e ao mesmo tempo,
não humana ou in-humana. Só é propriamente humano em
mim o que penso, quero, sinto e executo com meu corpo,
sendo eu o sujeito criador disso, ou então: aquilo que a
mim mesmo, como tal mim mesmo, me acontece.

Meu mundo se compõe em cada instante de umas poucas


coisas presentes e muitíssimas latentes. Sempre vemos uma
coisa a destacar-se sôbre outras, a que não prestamos aten­
ção e que estão formando um fundo sôbre o qual aquela

22 —
COMENTÁRIO A UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA

coisa se destaca. O mundo em que temos de viver possui


sempre dois têrmos e órgãos: a coisa ou coisas que vemos
com atenção, um fundo sôbre o qual aquelas se destacam.
O horizonte é também algo que vemos, que nos é aí, patente,
mas que nos é e o vemos quase sempre em forma de desa­
tenção, porque nossa atenção está retida por tal ou qual
coisa que representa o papel de protagonista em cada mo­
mento da nossa vida. Mais além do horizonte está o que do
mundo não nos é presente no agora, o que do mundo nos é
latente.
Contorno é o mundo patente ou semi-patente em tômo.
Mas o nosso mundo contém sôbre êste, mais além do hori­
zonte e do contorno, uma imensidade latente em cada ins­
tante determinado. Compõe-se de coisas que vimos ou po­
demos ver, mas que no instante atual estão ocultas, cobertas
para nós pelo nosso contorno.
O capítulo IV se dedica a precisar, com todo rigor,
aquilo em que consiste a aparição do “outro”, e à análise
dos caracteres dêsse fato. De início Ortega alude aos con­
ceitos chamados circunstanciais, dos quais o eu e o aqui
são exemplos máximos. Aqui e eu, eu e aqui somos insepa­
ráveis por tôda a vida. E ao ter o mundo, com tôdas as
coisas dentro dêle, de ser-me d’aqui, automaticamente se
converte numa perspectiva, — isto é: suas coisas estão perto
ou longe d’aqui, à direita ou à esquerda d’aqui, acima ou
abaixo d’aqui. O mundo é uma perspectiva.
Insiste de novo em que as coisas são para nós instru­
mentos para ou estorvos à nossa vida; que o seu ser não
consiste em ser cada uma por si e em si; antes, elas têm
somente um ser para. Esta noção de “ser para” expressa o
ser originário das coisas enquanto “coisas da vida”, assun­
tos e importâncias. A condição primária das coisas consiste,
portanto, em servir-nos para ou impedir-nos para.

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O HOMEM E A GENTE

As coisas, enquanto serviços positivos ou negativos, se


articulam, umas com as outras, formando arquiteturas de
serviçalidade, — como a guerra, a caça, a festa. Formam,
dentro do mundo, como pequenos mundos particulares,
aquilo que chamamos mundo da guerra, mundo da caça, etc.,
como há o mundo da religião, dos negócios, da arte, das
letras, da ciência: “campos pragmáticos”. Nosso mundo, o
de cada qual, não é um totum revolutum, mas está organi­
zado em “campos pragmáticos”.

Tcda ação do homem adulto rumo a algo ou sôbre algo


conta, — é claro, — de antemão, com suas experiências
anteriores referentes a êsse algo. Por exemplo, sabe que a
pedra é muito dura e, se o que se propõe é quebrá-la em
fragmentos para alguma finalidade sua, sabe então que basta
feri-la com um martelo. A pedra, porém, não se inteira de
nossa ação sôbre ela: seu comportamento, enquanto a feri­
mos, se reduz a quebrar-se, fracionar-se. A pedra não faz,
nem padece; mas nela se produzem mecanicamente certos
efeitos. Já em nosso trato com o animal, a relação se modi­
fica. Se quisermos fazer algo com um animal, em nosso
projeto de ação intervém o convencimento de que eu existo
para êle e que espera uma ação minha sôbre êle; prepa­
ra-se para essa ação e prepara a sua reação a essa minha
esperada ação. Meu ato, mesmo em estado de puro projeto,
vai ao animal, mas volta a mim em sentido inverso, anteci­
pando a réplica do animal. Quando me aproximo do cavalo,
para arreá-lo, conto, desde logo, com o seu coice possível.
Se para descrever a relação real diante da pedra, dizemos:
a pedra e eu somos dois, falamos inadequadamente. Porque
nesse plural “somos”, — que neste caso é um dual ou plural
só de dois, — unimos e igualamos no ser a pedra e o
homem. Ora, a pedra me é pedra, mas eu não lhe sou em
absoluto. Não cabe, pois, comunidade entre mim e ela. No

24 —
COMENTÁRIO A UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA

caso do animal, porém, a realidade varia. Não só o animal


me é animal e tal animal, mas também eu o sou para êle,
a saber, sou para êle outro animal. O que não parece ques­
tionável é que dizer “o animal e eu somos” tem já alguma
dose de sentido, que faltava em absoluto ao dizer “a pedra
e eu somos” A pedra existe, mas não co-existe. O co-existir
é um enredar as existências, é um entre — ou inter-existi-
rem-se dois sêres, não simplesmente “estar aí”, sem ter a
ver um com o outro. Ora, não é isso o que primeiramente,
chamamos de “trato social?” O vocábulo social assinala des­
de logo uma realidade consistente em que o homem se com­
porta diante de outros sêres, os quais, por sua vez, se com­
portam em relação a êle; — portanto assinala ações em que,
de um modo ou de outro, intervém a reciprocidade em que,
não somente eu sou centro emissor de atos para outro ser,
mas também êste outro ser é igualmente centro emissor de
atos para mim, e, portanto, na minha ação já tem de estar
antecipada a dêle, conta-se com ela, porque nela se conta
também com a minha. Tal modo, contudo, é muito limitado:
é somente a um reduzido repertório de atos meus aos quais
o animal co-responde; e, isso, com um repertório também
muito exíguo de atos seus. Podemos reconhecer na relação
do homem com o animal um fato social? Não podemos de­
cidir sôbre isso, assim, sem mais nada. Em princípio nos
retinha, para responder afirmativamente, a limitação da co­
existência e, além disso, o caráter confuso, esfumado, am­
bíguo que percebemos no modo de ser da fera, por mais viva
que seja. A verdade é que, não só nesta ordem, mas em tô­
das, o animal nos perturba. Não sabemos bem como tratá-lo,
porque não vemos clara a sua condição.

Vejamos agora como me aparece “o outro”. Com pre­


sença sensível, tenho dêle somente um corpo, um corpo que
ostenta a sua forma peculiar, que se move, isto é: que se

— 25
O HOMEM E A GENTE

comporta externa ou visivelmente... O estranho e misterio­


so, porém, é que, sendo-nos presentes somente uma figura
e uns movimentos corporais, vemos nisso, ou através disso,
algo invisível por essência, algo que é pura intimidade, algo,
que cada qual só de si mesmo conhece diretamente: seu
pensar, sentir, querer, — operações que, por si mesmas,
não podem ser presenças para outros; que são não externas
e que não podem exteriorizar-se diretamente, porque não
ocupam espaço, nem têm qualidades sensíveis: são pura
intimidade. Já no animal, no entanto, não lhe podemos ver
o corpo, sem que êste, além de nos assinalar como as demais
côres e resistências uma certa corporeidade, nos seja sinal
de algo completamente novo: a sua intimidade. Quando um
corpo é sinal de uma intimidade que nêle está incluída e
reclusa, é que êsse corpo é carne, e essa função que con­
siste em assinalar a intimidade se chama “expressão...” O
corpo do outro é um abundantíssimo semáforo que nos en­
via os mais variados indícios ou vislumbres daquilo que se
passa no dentro que é o outro homem.

Continua no capítulo V a análise da relação entre o


“meu eu” e “o outro”. Como a vida humana é, na sua ra-
dicalidade, somente minha, essas vidas serão as de outros
como eu, cada uma de cada um. Por tanto, em razão de
serem êles outros, as suas vidas tôdas se acham fora, ou
mais além, ou trans-a-minha. Por isso são transcendentes.
Vivo eu, por igual e ao mesmo tempo, a minha vida em sua
realidade primária, e uma vida que consiste em viver como
primárias muitas realidades que o são somente em segundo,
terceiro, etc., graus. Ainda mais: normahnente não me dou
conta da minha vida autêntica, daquilo que ela é em sua
radical solidão e verdade; ao contrário: vivo presuntiva-
mente coisas presuntivas, vivo entre interpretações da rea­
lidade que o meu contorno social, a tradição humana foi

26 —
COMENTÁRIO A UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA

inventando e acumulando. Há algumas dessas que merecem


ser tidas por verdadeiras, e a elas chamo de realidades de
segundo grau. Isto é, costumamos fazer que vivemos, mas
não vivemos efetivamente o nosso autêntico viver, aquêle
que teríamos de viver se, desfazendo-nos de tôdas essas in­
terpretações recebidas dos demais, — entre os quais esta­
mos e que se sói chamar de “sociedade”, tomássemos, de
quando em quando, enérgico, evidente contato com a nossa
vida enquanto realidade radical. Mas esta é o que somos em
radical solidão. Na solidão o homem é a sua verdade; na
sociedade tende a ser a sua mera convencionalidade ou fal­
sificação. A filosofia é retirada, anábase, acêrto de contas
de alguém consigo mesmo, na pavorosa nudez de si mesmo
diante de si mesmo.
“A Filosofia não é, pois, uma ciência, mas, se se quiser,
uma indecência, pois é pôr as coisas e a si mesmo desnudos,
em pura carne, — naquilo que puramente são e sou, — nada
mais...” “Verdade significa: coisas postas a descoberto e
isso significa literahnente o vocábulo grêgo para significar
a verdade, — a-letheia, aletheuein, isto é: desnudar. Quanto
à palavra latina e nossa: veritas, verum, verdade, deve pro­
vir de uma raiz indo-européia, ver, — que significou “dizer”,
— daí ver-bum, — palavra, — mas não um dizer qualquer,
sim o mais solene e grave dizer, um dizer religioso em que
pomos Deus como testemunha do nosso dizer; em suma, o
juramento..
Voltemos, porém, à relação com “o outro”. O outro é
capaz de me responder, tanto como eu a êle. Então a reci­
procidade será clara, saturada e evidente. Ora, isso só me
acontece com o outro, — mais ainda: considero-o como o
outro precisamente por crer que é meu igual, na esfera do
poder responder. A relação do unus, — eu, — com o alter,
— outro, — se chama estupendamente em nossa língua
alternar. Dizer que não alternamos com alguém é dizer que

— 27
O HOMEM E A GENTE

não temos com êle “relação social”. Nem com a pedra, nem
com a hortaliça alternamos. O outro quer dizer: aquêle com
quem posso e tenho, — ainda que o não queira, — de alter­
nar, pois, mesmo no caso que eu preferisse que o outro não
existisse, porque o detesto, acontece que eu irremediável­
mente existo para êle, e isto me obriga, queira ou não
queira, a contar com êle e com as suas intenções a meu
respeito, intenções talvez adversas. O mútuo “contar com”,
a reciprocidade, é o primeiro fato que nos permite qualifi­
cá-lo de social. A reciprocidade de uma ação, a inter-ação,
só é possível porque o outro é como eu em certos caracteres
gerais: tem um eu que é nêle o que o meu eu é em mim.
Ser o outro não representa um acidente ou uma aventura
que possa ou não acontecer ao Homem, mas, sim: é um
atributo originário. Eu, na minha solidão, não me poderia
chamar com um nome genérico tal como “homem”. A reali­
dade que êsse nome representa só me aparece quando há
outro ser que me responde ou reciproca. Di-lo Husserl muito
bem: “O sentido do têrmo homem implica uma existência
recíproca de um para outro; portanto, uma comunidade de
homens, uma sociedade?’. E vice-versa: “É igualmente claro
que os homens não podem ser apreendidos senão ao falarem
os outros homens (realmente ou potencialmente) em tôrno
dêles”.
O mundo humano precede em nossa vida ao mundo
animal, vegetal e mineral. Vemos todo o resto do mundo,
como através das grades de uma prisão, através do mundo
de homens em que nascemos e em que vivemos. Quando se
afirma que o homem está a nativitate e, portanto, sempre
aberto ao Outro, — isto é, disposto, em seu fazer, a contar
com o outro, como estranho e diferente dêle, — não se de­
termina se está aberto favorável ou desfavoravelmente. Tra­
ta-se de algo prévio ao bom ou mau talante com respeito
ao outro. Roubar ou assassinar o outro implica estar prèvia-

28 —
COMENTÁRIO A UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA

mente aberto a êle, nem mais nem menos do que o estaria,


para beijá-lo ou para sacrificar-se por êle.
“Se, diante do outro, faço um gesto demonstrativo, assi­
nalando com o indicador um objeto que existe no meu con­
torno e vejo que o outro avança para o objeto, o toma e
mo entrega, isso me faz inferir que, no mundo somente meu
e no mundo somente dêle, parece haver, não obstante, um
elemento comum: aquêle objeto que, com ligeiras variantes,
a saber: a figura de tal objeto vista na sua perspectiva e
na minha, existe para ambos. E, como isso acontece com
muitas coisas, — embora, às vêzes, êle e eu soframos de
erros ao supor a nossa comunidade na percepção de certos
objetos, — e, como acontece não só com um outro, mas com
muitos outros homens, arma-se em mim a idéia de um
mundo mais além do meu e do dêle, um mundo presuntivo,
inferido, que é comum a todos”. “... Vamos assim cons­
truindo, — porque se trata não de algo patente, mas de
uma construção ou interpretação, — a imagem de um mun­
do que, não sendo nem só meu, nem só teu, mas, em prin­
cípio, de todos, será o mundo. Isso no entanto demonstra o
grande paradoxo: que não é o mundo único e objetivo que
faz com que eu coexista com os outros homens, mas, ao
contrário; a minha socialidade ou relação social com os
outros homens é que torna possível a aparição, entre mim e
êles, de algo assim como um mundo comum e objetivo, o
que já Kant chamava allgemeingültig, universalmente vá­
lido, isto é, para todos; com isso se referia êle aos sujeitos
humanos e fundava nessa sua unanimidade a objetividade
ou realidade do mundo. É claro que Kant, como Husserl,
— que deu a êsse raciocínio a sua forma mais depurada e
clássica, — é claro que ambos utopizam bastante, como todos
os idealistas, essa unanimidade. A verdade é que nós os
homens coincidimos somente na visão de certos grosseiros
e toscos componentes do mundo, ou, — para enunciar mais

— 29
O HOMEM E A GENTE

ajustadamente o meu pensamento, — entre os homens a


lista de coincidências sôbre as coisas e a lista das suas dis-
crepâncias se equivalem, compensando-se uma com a outra.
Para que, porém, o raciocínio idealista de Kant e de Husserl
seja verídico, basta aquêle tronco de coincidências, já que
êle é suficiente para que, de fato, creamos viverem todos
os homens num mesmo e único mundo. Esta é a atitude que
podemos chamar natural, normal e cotidiana em que vi­
vemos; e por isso, pelo fato de vivermos com os outros,
num presuntivo mundo único, (portanto, nosso), o nosso
viver é: con-viver”.
“Estar aberto ao outro é algo passivo: é mister que,
com o apoio de uma abertura, eu atue sôbre êle e êle me
responda ou reciproque. Não importa o que seja que faça­
mos: curar eu uma ferida nêle ou dar-lhe um sôco, ao qual
êle corresponda ou reciproque com outro sôco”. Num e
noutro caso, vivemos juntos e em reciprocidade, com res­
peito a algo. A palavra vivemos em seu mos exprime muito
bem esta nova realidade que é a relação “nós”: unus et alter;
eu e o outro, juntos, fazemos algo e, ao fazê-lo, nos somos
(ou somos um com e para o outro). Se ao estar aberto ao
outro, chamei altruísmo, êste ser-nos mütuamente deverá
chamar-se nostrismo ou nostridade. Ela é a primeira forma
de relação concreta com o outro e, portanto, a primeira rea­
lidade social. Dentro do âmbito de convivência que a rela­
ção “nós” descerra, é que me aparece o tu, o indivíduo
humano único. Tu e eu, eu e tu atiramos um sôbre o outro
numa freqüente interação de indivíduo a indivíduo, únicos
ambos reciprocamente. Uma das coisas que fazemos, e que
é a mais típica reciprocidade e nostridade, é falar. E uma
das coisas de que falamos é d’êle ou d’eles, isto é, de outros
que não estão contigo e comigo na relação “nós”.
Oferece no capítulo VI um último desenvolvimento da
análise sôbre a relação entre os outros e eu, análise que não

30 —
COMENTÁRIO A UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA

cabe resumir nesta resenha. Como convite à leitura dêsse


sugestivo capítulo, direi somente que nêle Ortega estuda
com rigorosa minúcia o multiforme “campo de expressivi­
dade” do ser humano: sua face, seu perfil, seu corpo inteiro,
seus movimentos úteis, seu ir e vir, seu olhar máximo, seu
olhar insistente, o que deslisa sôbre a superfície do olhado
e o que se prende a êle como um gancho, o olhar reto e o
oblíquo, o olhar de pálpebra semi-cerrada (que exerce uma
espécie de fascinação).

“Quando entre minerais, vegetais e animais me aparece


um ser, consistente em certa forma corporal, a que chamo
“humana”, embora só essa forma me seja presente, imedia­
tamente se faz, para mim, com-presente nela algo que por
si é indivisível e, mais gerahnente ainda, insensível, isto é:
uma vida humana, algo, portanto, par do que sou, pois eu
não sou mais do que vida humana... “Falar de que, no
corpo de forma humana para mim se faz com-presente outra
intimidade é dizer algo demasiado contraditório ou, pelo
menos, difícil de entender. Porque originàriamente não há
senão a minha intimidade. Que queremos dizer quando dize­
mos que temos por diante Outro, isto é, outro como eu,
outro Homem? Isso implica que êsse novo ser, — nem
pedra, nem planta, nem mero animal, — é eu, ego, mas ao
mesmo tempo é outro, alter, que é um alter ego. Êste con­
ceito de alter ego, — de um eu que não sou eu, mas que é
precisamente outro, portanto não-eu, — tem todo o jeito de
se parecer a um quadrado redondo...” “E, não obstante, a
coisa mesma é indubitável. Aí, diante de mim, há outro ser
que me aparece como sendo também um eu, um ego. Mas
eu, ego, não significa até agora para nós senão “vida huma­
na”, e vida humana, — já o dissemos, — não é propria­
mente, originária e radicalmente senão a de cada qual, por­
tanto, a minha... Eis que agora surge nesse mundo meu um

— 31
O HOMEM E A GENTE

ser que se me apresenta, embora em forma de com-presença,


como sendo, êle também, “vida humana”; portanto: com
uma vida sua, — não minha, — e conseqüentemente tam­
bém com um mundo seu que, originàriamente, não é o meu”.
“... Êsse mundo do outro é para mim inalcançável, inaces­
sível, se falarmos com rigor. Posso suspeitá-lo e essa sus­
peita, que me é patente e que encontro no meu mundo pró­
prio ou primordial, é a que me toma com-presente êsse
efetivo e estrito não-eu, que são para mim o outro e seu
mundo...”
f “Foi Husserl quem delineou de maneira precisa, —
note-se que digo só “delineou”, — o problema de como nos
aparece o outro Homem...” "... Husserl foi o primeiro a
precisar o problema radical e não meramente psicológico
que eu entitulo: a aparição do Outro. O desenvolvimento do
problema por Husserl é, a meu juizo, muito menos afortu­
nado do que o seu delineamento, apesar de que nesse de­
senvolvimento sejam abundantes os achados admiráveis”.
Ortega critica especialmente um ponto de Husserl: a afir­
mação de Husserl de que “o outro homem me aparecería,
porque seu corpo assinala uma intimidade que fica, por­
tanto, latente, dada, porém, em forma de com-presença,
como a cidade nos é agora com-presente em torno de cada
habitação, precisamente porque esta, ao ser fechada, nos
oculta a sua presença. Salve-se aqui que a intimidade não
é como a cidade, — algo que, se saio de onde estou, posso
ver, — mas é, por natureza, oculta: ela necessita de um
corpo, mesmo para o mero com-apresentar-se. Como é então
que creio ter diante de mim, ao ver um corpo humano, uma
intimidade como a minha, um eu como o meu, — não digo
idêntico, mas, pelo menos, similar? A resposta de Husserl
é esta: por uma transposição ou projeção analógica...” “O
êrro garrafal consiste em supor que a diferença entre o meu
corpo e o do Outro é somente uma diferença na perspectiva,

32 —
COMENTÁRIO A UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA

a diferença entre o visto aqui e o visto daqui, — hinc, ali,


— illic. Mas a verdade é que isto a que chamo “o meu
corpo” se parece pouquíssimo com o corpo do outro. A
razão é esta: o meu corpo não é meu somente porque me
é a coisa mais próxima, tanto que me confundo com êle e
estou nêle, isto é, aqui. Esta seria apenas uma razão espacial.
Êle é meu, porque me é o instrumento imediato de que me
sirvo para haver-me com as demais coisas, — para vê-las,
ouvi-las, aproximar-me ou fugir delas, manipulá-las, etc.
Êle é o instrumento ou organon universal com que conto;
por isso o meu corpo me é o corpo orgânico por excelência.
Sem êle; eu não podería viver, e, na sua qualidade de ser
a coisa do mundo, cujo “ser para” é imprescindível para
mim, êle é minha propriedade no sentido mais estrito e su­
perlativo da palavra...” “O êrro de supor que transponho
o meu corpo ao do Outro, — e por isso advirto nêle uma
intimidade como a minha, — é rigorosamente evidente, se
repararmos em que aquilo que me denuncia e revela o outro
eu, — o alter ego, — não é tanto a forma do corpo como os
seus gestos. A expressão que é o pranto, ou a irritação, ou
a tristeza, não a descobri em mim, mas primàriamente no
outro e, de início, me significou intimidades, — dôr, aborre­
cimento, melancolia. Se tento ver-me choroso, irritado, aflito,
num espelho, ipso facto o meu gesto correspondente se de­
tém ou, ao menos, se deforma e falseia.
A última parte dêsse VI capítulo contém um sugestivo
estudo sôbre as características especiais que tem o outro ser
humano, quando êste é mulher. “No caso da mulher, ressalta
especialmente a heterogeneidade entre o meu ego e o seu,
porque a resposta d’Ela não é a resposta de um Ego abstrato,
— o Ego abstrato não responde, porque é uma abstração. A
resposta d’Ela é já por si, de início e sem mais nada, femi­
nina e como tal a advirto. Acaba, pois, claramente inválida
a advertência de Husserl: a transposição do meu ego, que

— 33
O HOMEM E A GENTE

é irremediavelmente masculino, ao corpo de uma mulher,


só poderia suscitar um caso extremo de virago, mas não
serve para explicar o prodigioso descobrimento que é a apa­
rição do ser humano feminino, completamente diferente de
mim”. “A mulher nos parece um ser cuja humanidade ínti­
ma se caracteriza, — em contraste com a nossa varonil e a
dos outros varões, — por ser essencialmente confusa. Tenha-
se em suspenso o lado pejorativo com que se costuma en­
tender essa palavra. A confusão não é um defeito da mulher,
como não o é, do homem, o carecer de asas”. A mulher,
precisamente por seu ser confuso, é para o varão uma delí­
cia. Na intimidade varonil tudo costuma ter linhas rigorosas
e precisas, — o que faz dêle um ser cheio de arestas rígidas.
A mulher, em troca, vive num perpétuo crepúsculo; não
sabe bem se quer ou se não quer, se fará ou não fará, se
se arrepende ou não. Dentro da mulher não há meio-dia
nem meia-noite: é crepuscular. Por isso ela é constitutiva-
mente secreta. Não porque não declare o que sente e lhe
acontece, mas porque normalmente não poderia dizer o que
sente e lhe acontece. É para ela também um segredo. Isso
proporciona à mulher a suavidade de formas que a sua alma
possui e que é para nós o tipicamente feminino. Diante das
arestas do varão, a intimidade da mulher parece possuir
só delicadas curvas. Tôda a vida psíquica da mulher está
mais fundida com o seu corpo, do que no homem; isto é:
a sua alma é mais corporal, mas vice-versa, seu corpo con­
vive, mais constante e estreitamente, com seu espírito, ou
seja: seu corpo está mais transido de alma. Efetivamente, a
pessoa feminina oferece um grau de penetração, entre o
corpo e o espírito, muito mais elevado que o varonil. No
homem, comparativamente, cada um costuma ir para o seu
lado.
Entre outros temas, o capítulo VII contém um estudo
sôbre os diversos graus de proximidade ou afastamento entre

34 —
COMENTÁRIO A UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA

os sêres humanos. O grau extremo de proximidade é o que


chamo intimidade: o Outro é para mim um indivíduo incon­
fundível com todos os demais, impermutável. É um indivíduo
único. Dentro, portanto, do âmbito de realidade vital ou
de convivência que é o Nós, o Outro se converteu em Tu.
E, como isso me acontece não só com um, mas com bastantes
outros homens, advêm que o Mundo humano me aparece
como um horizonte de homens, cujo círculo mais imediato
a mim está cheio de Tus, a saber: dos indivíduos para mim
únicos. Mais além dêles se acbam zonas circulares ocupadas
por homens dos quais sei menos, até à linha do horizonte
no meu contorno humano em que se acham os indivíduos
para mim quaisquer, inter-permutáveis. Abre-se, pois, dian­
te de mim, o mundo humano, como uma perspectiva de
maior ou menor intimidade, de maior ou menor individua­
lidade ou unidade; em suma: uma perspectiva de próxima
ou distante humanidade. Mais além da esfera ou zona dos
Tus, ficam aquêles outros que tenho à vista no meu hori­
zonte e com os quais não entrei em atual sociedade, mas aos
quais vejo como “semelhantes” e, portanto, como sêres com
os quais tenho uma sociedade potencial, que qualquer evento
pode converter em atual.
Sucede, no entanto, que, por muito bem que acredi­
tamos conhecer uma pessoa, por muito seguros que nos sin­
tamos a respeito dos traços que constituem o seu caráter,
ao arriscar-nos em prognósticos sôbre qual será o seu com­
portamento num assunto que nos importe de verdade, no­
taremos como aquêle convencimento, relativo ao seu modo
de ser, vacila e, ültimamente, se admite a possibilidade de
que essa sua futura conduta venha a ser diferente da pre­
sumida. Só a morte, ao impedir uma nova mudança, tor­
na o homem no definitivo e imutável sí mesmo, faz
dêsse homem, para sempre, uma figura imóvel, isto é:
liberta-o da mudança e o eterniza. Enlaçadas nesse tema,
Ortega y Gasset desenvolve algumas considerações sôbre a
— 35
O HOMEM E A GENTE

morte, ou melhor: sôbre a condição mortal do homem, à


luz das quais se toma patente que, neste ponto, a sua dou­
trina é estritamente inversa à existencialista.
Tem o capítulo VIII o sugestivo título: “De repente
aparece a gente”. Insiste aqui naquela teoria que iniciou
já no mencionado seminário de 1934: o coletivo, como o
impessoal, o genérico, o funcional, o devoluto, o cristalizado,
o irresponsável: ...” a coletividade é, sim, algo humano; mas
é o humano sem o homem, o humano sem espírito, o huma­
no sem alma, o humano desumanizado. Eis aqui, pois, ações
humanas nossas às quais faltam os caracteres primordiais
do humano, que não têm um sujeito determinado, criador
e responsável por elas, para o qual elas tenham sentido.
Trata-se, portanto, de ação humana, mas: irracional, sem
espírito, sem alma, na qual atuo como a vitrola a que se
impõe um disco que ela não entende, como o astro roda cego
na sua órbita, como o átomo vibra, como a planta germina,
como a ave faz o ninho. Eis aqui um fazer humano irracio­
nal e desalmado. Estranha realidade essa que agora surge
diante de nós! Parece como se fôsse algo humano, mas de­
sumanizado, mecanizado, materializado!”
Através de “Uma meditação sôbre o cumprimento”,
chega Ortega y Gasset à análise das dimensões essenciais do
uso: “O uso me aparece como a ameaça presente ao meu
espírito, de uma eventual violência, coação ou sanção, que
os demais vão executar contra mim. O curioso, porém, do
caso, é que o mesmo acontece a êles, porque também cada
um dêles encontra diante de si o uso como uma ameaça dos
demais, somente que, para êle, entre os demais estou eu, que
— sem o saber, — me convertí em um dos demais. Eis aqui,
portanto, outro atributo do fato social: a violência ou ameaça
de violência, que não procede de nenhum sujeito determi­
nado; ou que, melhor, todo sujeito determinado encontra

36 —
COMENTÁRIO A UMA OBRA PÓSTUMA DE ORTEGA

diante de si, sob o aspecto de violência, atual ou presumível,


dos demais em relação a êle”.
Depois de oferecer no capítulo XI uma muito fecunda
meditação sôbre a linguagem, passa, no XII, a perfilar um
conceito de enorme alcance para a Sociologia: o conceito
de vigência. “Se contemplarmos o enxame incontável de
idéias ou opiniões que a nosso redor saem voando inces-
santemente do dizer da gente, notaremos que se podem dife­
renciar em duas grandes classes. Umas são ditas como coisa
própria e, ao dizê-las, se conta, de início, com que aquilo
a que chamamos “todo o mundo” as admite. Outras, ao
contrário, são enunciadas com o matiz, mais ou menos assi­
nalado, de que não são opiniões admitidas; às vêzes, com o
pleno caráter de serem opostas às comumente admitidas.
No primeiro caso, falaremos de opiniões reinantes; no se­
gundo, de opiniões particulares...” As primeiras são usos
estabelecidos, o que quer dizer: ...” não necessitam do apoio
e amparo por parte de indivíduos ou grupos determinados;
antes, ao contrário, impõem-se a todos, exercem sôbre todos
a sua pressão. Isto é o que me leva a chamá-las “vigências”.
O vigor dessa vigência percebe-o claramente, e com fre-
qüência aborrecidamente, aquêle que tenta opor-se a ela. Em
todo instante normal da existência coletiva, exerce a sua
vigência um repertório enorme dessas opiniões estabeleci­
das, que são o que chamamos “tópicos”. A sociedade, a co­
letividade, não contém idéias propriamente tais, isto é, clara
e fundadamente pensadas: só contém tópicos e existe na
base dêsses tópicos. Com isso não quero dizer que sejam
idéias falsas, — podem ser magníficas idéias; — o que digo,
isso, sim, é que, como são vigências ou opiniões estabeleci­
das ou tópicos, não atuam essas suas possíveis egrégias qua­
lidades”.
Em ulteriores e finas análises sôbre as características
da vigência, chega Ortega a precisar com rigor aquilo que

— 37
O HOMEM E A GENTE

já foi entrevisto certeiramente por Durkheim, — a coerci-


vidade do fato coletivo, — mas sem que êste chegasse a pre-
cisões suficientemente claras e profundas.
Através de novas análises, pelo caminho da visão filo­
sófica, essencial, chega Ortega a conclusões concordes com
os resultados da ciência empírica dos nossos dias nos cam­
pos psicológico, antropológico e sociológico. “A chamada
sociedade” não é nunca o que êsse nome promete. É sem­
pre, ao mesmo tempo, em uma ou em outra proporção, di-
sociedade, repulsão entre os indivíduos. Como por outro
lado pretende ser o contrário, necessitamos abrir-nos radi­
calmente à convicção de que a sociedade é uma realidade
constitutivamente enferma, deficiente, — em rigor é, sem
cessar, a luta entre os seus elementos e comportamentos
efetivamente sociais e seus comportamentos e elementos
dissociadores ou anti-sociais. Para conseguir que predomine
um mínimo de sociabilidade e, graças a isso, perdure a so­
ciedade como tal, necessita fazer intervir com freqüência o
seu interno “poder público” de forma violenta e até criar,
— quando a sociedade se desenvolve e deixa de ser primi­
tiva, — um corpo especial encarregado de fazer funcionar
aquêle poder de forma incontrastável. É o que ordinaria­
mente se chama o Estado”.

Disse no princípio dêste comentário que essa obra pós­


tuma de Ortega constitui a contribuição de máximo calibre
para uma clara fundamentação da Sociologia. Mas, através
da presente resenha — apesar das dimensões fragmentárias
desta, — o leitor terá percebido que êste livro de Ortega
contém também outras coisas muito importantes, novos apro­
fundamentos, novos perfis e retoques da sua metafísica se­
gundo os princípios de sua razão vital.

LUIS RECASÉNS SICHES.

38 —
ADVERTÊNCIA

As Obras Inéditas de José Ortega y Gasset edi­


tam-se simultâneamente, em sua língua original, na Amé­
rica e na Espanha, de acordo com os manuscritos e origi­
nais deixados ao morrer o grande filósofo. Incluirão exten­
sos trabalhos recentes que a “desventura”, — segundo
êle escreveu, — “parece comprazer-se em não deixar que
eu lhes dê essa última demão, êsse último retoque que não
é nada e é tanto, essa ligeira limagem de pedra-pomes que
apura e dá polimento” e ainda, em alguns casos, escritos
antigos que o autor não colecionou em nenhum de seus
livros.
Em vista da categoria eminente de sua obra intelec­
tual, cremos ser nossa obrigação editar sucessivamente a
totalidade de seu labor inédito, inclusive os estudos que
apareçam incompletos e as notas e apontamentos que pos­
sam servir para orientar o trabalho de seus numerosos dis­
cípulos.
Os escritos serão publicados tais como foram achados;
a compilação dos textos foi encomendada a fiéis e próxi­
mos discípulos, aos quais desejamos manifestar nosso agra­
decimento pela devoção e pelo rigor que põem na sua ta­
refa, e cuja intervenção será, em cada caso, explícita, apa­
recendo intercalada entre colchêtes.

A Editora REVISTA DE OCCIDENTE.


NOTA PRELIMINAR

A partir de uma nota que acompanhava o estudo “His­


tória como sistema” (1), e em reiteradas ocasiões posterio­
res, anunciava Ortega a aparição de um livro seu, que
abrangería sua doutrina sociológica, sob o título de O HO­
MEM E A GENTE. Em rigor, foi em 1934, numa conferên­
cia pronunciada em Valladolid, com o mesmo título, que
êle, pela primeira vez, expôs püblicamente sua idéia sôbre
os “usos” como sendo característicos do social. (À parte de
seus cursos universitários, especialmente, um reduzido se­
minário na universidade de Madri, sôbre “Estrutura da
Vida Histórica e Social”). E, mais tarde, seu trabalho pú­
blico, sob êsse título, foi ativo. Em Buenos Aires, dois cur­
sos sucessivos, de seis e quatro lições; em Madri, no Insti­
tuto de Humanidades, por êle organizado, um curso de
doze; dois cursos na Alemanha, em Munich e Hamburgo, e
um último na Suíça, — os três, de quatro lições. Os textos
de todos êles oferecem exposições diferentes do seu pen­
samento, em tômo dos princípios de uma nova sociologia.
Não obstante, nossa tarefa foi simples, pois Ortega tinha
preparado a edição do presente volume, com vistas à sua
versão e edição simultânea na Alemanha, na Holanda e
nos Estados Unidos. Em linhas gerais, o autor conservou
o texto que preparou para o curso ministrado em 1949-50
no Instituto de Humanidades, incluindo novos desenvolvi­
mentos em algumas questões. Anexamos, em notas de pé
de página, alguns parágrafos que pareciam omitidos.

(1) Publicado em 1935, como parte do volume PHILOSOPHY AND HISTO­


RY, dirigido por Klibansky e editado pela Oxford University Press.

— 41
O HOMEM E A GENTE

O texto atinge a totalidade do índice previsto; a morte


surpreendeu o autor, quando trabalhava nos últimos capí­
tulos. Em ulteriores edições, quando todos os seus escritos
inéditos estiverem publicados, acrescentaremos às epígra­
fes faltantes, — que oferecemos em APÊNDICE, — as
oportunas referências ao resto de sua obra, em que êsses
temas têm um desenvolvimento suficiente.
As questões fundamentais acham-se tratadas neste vo­
lume; êle situa, certamente, o urgente e transbordante pro­
blema que apresentam hoje os temas sociológicos, em um
nível de esclarecedor radicalismo não alcançado por ne­
nhuma outra filosofia.

OS COMPILADORES
ABREVIATURA (1)

Ao reatar agora as LIÇÕES SÔBRE O HOMEM E A GENTE,


dadas na primavera passada, torna-se imprescindível ter claro e
presente o que nelas se alcançou. A fim de não sobrecarregar as
quatro lições que o ciclo dêste ano comporta, com o resumo
inevitável, no qual os conceitos, obtidos e esclarecidos na série
anterior, renovassem a sua presença na mente daqueles que me
vão escutar e poder, desde logo, tratar de novos temas de minha
doutrina sociológica, julguei que seria bom concentrar nestas pá­
ginas o mais indispensável.
Comecei por afirmar que boa parte das angústias históricas
atuais procede da falta de clareza sôbre problemas que somente
a sociologia pode esclarecer, e que essa falta de clareza na
consciência do homem médio se origina, por sua vez, no estado
deplorável da teoria sociológica. A insuficiência da doutrina so­
ciológica que hoje está à disposição de quem procure, de boa
fé, orientar-se sôbre o que é a política, o Estado, o direito, a
coletividade e sua relação com o indivíduo, a revolução, a
guerra, a justiça, etc., — a saber: as coisas de que mais se fala
desde quarenta anos atrás, — estriba-se em que os próprios so­
ciólogos ainda não analisaram suficientemente a sério, radical­
mente, isto é, indo à raiz, os fenômenos sociais elementares. Vem
daí que todo êsse repertório de conceitos seja impreciso e con­
traditório.
Torna-se urgente esclarecer deveras o que é sociedade, sem

(1) [A título de introdução, reproduzimos as páginas que o autor publicou na


Argentina, em forma de folheto, para uso dos que assistiram ao segundo
ciclo de seu curso sôbre O HOMEM E A GENTE.]

— 43
O HOMEM E A GENTE

o que nenhuma das noções citadas pode possuir clara substância.


Não é possível, porém, obter uma visão luminosa, evidente, do
que seja sociedade se, prèviamente, não estamos esclarecidos
sôbre os seus sintomas, sôbre quais são os fatos sociais em que
a sociedade se manifesta e em que consiste. Daí a necessidade
forçosa de precisar o caráter geral do social.
Mas não foi dito que o social seja uma realidade peculiar.
Poderia acontecer que fôsse só uma combinação ou resultado de
outras realidades, como os corpos não são "em realidade" mais
do que combinações de moléculas e estas, de átomos. Se, como
se tem acreditado quase sempre, — e com consequências pràti-
camente mais graves no século XVIII, — a sociedade é somente
uma criação dos indivíduos que, em virtude de uma vontade deli­
berada "se reúnem em sociedade"; portanto, se a sociedade não
é mais do que uma "associação", a sociedade não tem própria e
autêntica realidade e não faz falta uma sociologia. Bastará es­
tudar o indivíduo.
Ora, a questão de ser uma coisa, ou não, própria e iilti-
mamente, realidade, só se pode resolver com os meios radicais
da análise e da técnica filosóficas.
Trata-se, pois, de investigar se, no repertório das realidades
autênticas, — isto é, de tudo quanto já não é redutível a alguma
outra realidade, — existe algo que corresponda a isso que vaga­
mente denominamos "fatos sociais".
Para tanto, temos de partir da realidade fundamental, em
que tôdas as demais, de um modo ou de outro, têm de apa­
recer. Essa realidade fundamental é nossa vida, a de cada um,
e é cada um que tem de analisar se, no âmbito que constitui a
sua vida, aparece o social como alguma coisa diferente de tudo
mais e irredutível a tudo mais.
Na área de nossa vida, — prescindindo do problema trans­
cendente que é Deus, — achamos minerais, vegetais, animais e
os outros homens, realidades irredutíveis entre si e, portanto, autên­
ticas. O social aparece-nos adstrito somente aos homens. Fala-se

44 —
ABREVIATURA

também de sociedades animais, — a colmeia, o formigueiro, o


termitário, o rebanho; — sem entrar, porém, em mais considera­
ções, basta a de que o homem, como realidade, não foi reduzido
à realidade animal, para que não possamos, por enquanto, ao
menos, considerar como sinônima a palavra sociedade, quando
falamos de "sociedade humana" e de "sociedade animal". Por­
tanto:
l.° — O social consiste em ações ou comportamentos humanos,
— é um fato da vida humana. Mas a vida humana é sempre a
de cada um, é a vida individual ou pessoal e consiste em que o
EU que cada qual é se encontre tendo de existir em uma circuns­
tância, — o que costumamos chamar mundo, — sem segurança
de existir no instante imediato, tendo sempre de estar fazendo
algo, — material ou mentalmente, — para assegurar essa exis­
tência. O conjunto dêsses afazeres, ações ou comportamentos, é
a nossa vida. Só é, pois, humano, no sentido estrito e primário,
o que faço por mim mesmo e em vista de meus próprios fins ou,
o que é a mesma coisa, o fato humano é um fato sempre pessoal.
Isto quer dizer:
a) — Que é só propriamente humano em mim o que penso,
quero, sinto e executo com meu corpo, sendo eu o "sujeito criador
disso", ou o que a mim mesmo, como tal eu-mesmo, acontece.

b) — Portanto, somente é humano o meu pensar, se penso


alguma coisa por minha própria conta, advertindo-me do que
significa. SÒMENTE É HUMANO AQUILO QUE, AO FAZER, O
FAÇO PORQUE TEM PARA MIM UM SENTIDO, A SABER, AQUILO
QUE ENTENDO.
c) — Em tôda ação humana existe, pois, um SUJEITO do
qual ela emana e que, por isso mesmo, é RESPONSÁVEL por ela.

d) — Conseqüência do anteriormente exposto é que a mi­


nha vida humana, que me põe em relação direta com quanto
me rodeia, — minerais, vegetais, animais, os outros homens, —
é, por essência, solidão. Minha dor de dentes só a mim pode

— 45
O HOMEM E A GENTE

doer. O pensamento que de verdade penso, — e não somente


repito mecânicamente por tê-lo ouvido, — tenho de o pensar eu
"sozinho" ou eu em minha solidão.

Mas o fato social não é um comportamento de nossa vida


humana como solidão; ao contrário, aparece enquanto estamos
em relação com os outros homens. Não é, pois, vida humana no
sentido estrito e primário.

2.° — O social é um fato, não da vida humana, mas algo que


surge na convivência humana. Por convivência, entendemos a re­
lação ou trato entre duas vidas individuais. O que chamamos
pai e filhos, amantes, amigos, por exemplo, são formas de con­
vívio. Nessa convivência sempre se trata de que um indivíduo,
como tal, — portanto, um sujeito criador e responsável por suas
ações, que faz o que faz porque para êle isso tem sentido e
êle o compreende, — atua sôbre outro indivíduo que tem as
mesmas características. O pai, como indivíduo determinado que
é, dirige-se a seu filho, que é outro indivíduo determinado e
único também. Os fatos de convivência não são, portanto, por si
mesmos, fatos sociais. Formam o que deveria chamar-se "com­
panhia ou comunicação", — "um mundo de relações inter-indivi-
duais".

Analise-se, porém, tôda outra série de fatos humanos, como


o cumprimento, como a ação do guarda que nos impede, em
certo momento, de atravessar a rua. Nêles, a ação, — dar a
mão, o ato de o guarda impedir o nosso passo, — não o faz
o homem porque lhe haja ocorrido, nem espontâneamente, isto
é, sendo êle o responsável pela ação; tampouco é dirigida a
outro homem por ser êle tal indivíduo determinado. O homem
faz isso sem sua original vontade e amiúde contra a sua vontade.
Além disso, — no caso do cumprimento, está bem claro, — o que
fazemos, dar a mão, não o entendemos, não sabemos porque é
isso e não outra coisa o que temos de fazer, quando encon­
tramos um conhecido. Essas ações não têm, pois, sua origem em

46 —
ABREVIATURA

nós: somos meros executores delas, como o gramofone canta o


seu disco, como o autômato pratica seus movimentos mecânicos.

Quem é o sujeito originário, do qual essas ações provêm?


Por que as fazemos, já que não as fazemos, nem por nossa
invenção, nem com a nossa espontânea vontade? Damos a mão
ao encontrar um conhecido porque isso é o que "se faz". O guarda
detém nosso passo, não porque isso lhe tenha ocorrido, nem por
sua conta, mas porque assim "é mandado". Quem é, porém, o su­
jeito originário e responsável por aquilo que se faz? A gente, os
demais, "todos", a coletividade, a sociedade, — isto é: "ninguém
determinado".

Eis aqui, pois, ações que são, por um lado, humanas, já


que consistem em comportamentos intelectuais ou de conduta es­
pecificamente humanos e que, por outro lado, nem se originam
na pessoa ou indivíduo, nem êste os quer, nem é responsável por
êles e com freqüência nem sequer os entende.

Aquelas nossas açães que têm essas características negativas


e que executamos por conta de um sujeito impessoal, indetermi-
nável, que são "todos" e "ninguém", e que denominamos a
gente, a coletividade, a sociedade, são os fatos propriamente so­
ciais, irredutíveis à vida humana individual. Esses fatos aparecem
no âmbito da convivência, porém não são fatos de pura convi­
vência.

O que pensamos ou dizemos porque "se" diz; o que fazemos


porque "se" faz costuma chamar-se uso.

OS FATOS SOCIAIS CONSTITUTIVOS SÃO USOS

Os usos são formas de comportamento humano que o indi­


víduo adota e cumpre porque, de um modo ou de outro, em
uma ou em outra medida, não tem mais remédio. São-lhe im­
postos pelo seu contorno de convivência: pelos "demais", pela
"gente", pela... sociedade.

— 47
O HOMEM E A GENTE

Para a doutrina sociológica que vai ser exposta nestas lições,


basta que certos usos, se se querem os casos extremos do uso,
se caracterizem por êstes traços:

1. ° — Sõo ações que executamos em virtude de uma pressão


social. Esta pressão consiste na antecipação, por nossa parte, das
represálias "morais" ou físicas que nosso contôrno vai exercer
contra nós, se não nos comportarmos assim. Os usos são imposi­
ções mecânicas.

2. ° — São ações cujo conteúdo preciso, a saber, o que faze­


mos nelas, é, para nós, ininteligível. Os usos são irracionais.

3. ° — Encontramo-los como formas de conduta, que são ao


mesmo tempo pressões, fora de nossa pessoa e de tôda outra
pessoa, porque atuam tanto sôbre o próximo como sôbre nós. Os
usos são realidades extra-individuais ou impessoais.

Durkheim, por volta de 1890, entreviu os traços 1.° e 3.°


como constitutivos do fato social, mas não conseguiu acabar de
vê-los bem, nem começou sequer a pensá-los. Basta dizer que
não só não viu o traço 2.°, como acreditou tudo ao contrário,
a saber: que o fato social era o verdadeiramente racional, por­
que emanava de uma suposta e mística "consciência social" ou
"alma coletiva". Além disso, não advertiu que consiste em usos,
nem o que é o uso. Ora, a irracionalidade é a nota decisiva.
Quando se entende bem, entende-se que as outras duas caracte­
rísticas, — ser pressão sôbre o indivíduo e ser exterior a êste, ou
extra-individuais, — quase que só coincidem no vocábulo com
aquilo que Durkheim percebeu. De qualquer modo, seja dito em
sua homenagem, foi êle quem estêve mais perto de uma intuição
certa do fato social.

Ao seguir os usos, comportamo-nos como autômatos, vivemos


por conta da sociedade ou coletividade. Esta, no entanto, não
é algo humano ou sôbre-humano; ao contrário: atua exclusiva­
mente mediante o simples e puro mecanismo dos usos, dos quais

48 —
ABREVIATURA

ninguém é sujeito criador, responsável e consciente. E, como a


"vida social ou coletiva" consiste nos usos, essa vida não é huma­
na, é algo intermédio entre a natureza e o homem, é uma quase-
natureza e, como a natureza: irracional, mecânica e brutal. Não
há uma "alma coletiva". A sociedade, a coletividade é a grande
desalmada, — já que é o humano naturalizado, mecanizado e
como que mineralizado. Por isso está justificado que a sociedade
se chame "mundo" social. Não é, com efeito, tanto "humanidade"
como "elemento inumano" em que a pessoa se encontra.
Não obstante, a sociedade, ao ser mecanismo, é uma for­
midável máquina de fazer homens.
Os usos produzem no indivíduo estas três principais catego­
rias de efeitos:
I — São pautas do comportamento que nos permitem prever
a conduta dos indivíduos que não conhecemos e que, portanto,
não são, para nós, tais determinados indivíduos. A relação inter-
individual sòmente é possível com o indivíduo ao qual individual­
mente conhecemos, isto é, com o próximo de nós. Os usos nos
permitem a quase-convivência com o desconhecido, com o estranho.

II — Ao impor, por pressão, um determinado repertório de


ações, — de idéias, de normas, de técnicas, — obrigam o indi­
víduo a viver à altura dos tempos e injetam nêle, queira ou não
queira, a herança acumulada no passado. Graças à sociedade, o
homem é progresso e história. A sociedade entesoura o passado.

III — Ao automatizarem uma grande parte da conduta da


pessoa e dar-lhe resolvido o programa de quase tudo que tem
de fazer, permitem que essa pessoa concentre sua vida indivi­
dual, criadora e verdadeiramente humana, em certas direções, o
que de outro modo seria impossível ao indivíduo. A sociedade
situa o homem em certa liberdade diante do porvir e lhe per­
mite criar o novo, racional e mais perfeito.

JOSÉ ORTEGA Y GASSET

— 49
I

ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO (1)

Trata-se do seguinte: falam os homens hoje, a tôda hora,


da lei e do direito, do estado, da nação e do internacional, da
opinião pública e do poder público, da política boa e da má,
de pacifismo e belicismo, da pátria e da humanidade, de jus­
tiça e injustiça social, de coletivismo e capitalismo, de sociali­
zação e de liberalismo, de autoritarismo, de indivíduo e de cole­
tividade, etc., etc. E não somente falam no jornal, na ter­
túlia, no café, na taberna, mas, além de falar, discutem. E não
só discutem, mas também combatem pelas coisas que êsses vocá­
bulos designam. E, no combate, acontece que os homens che­
gam a matar-se uns aos outros, às centenas, aos milhares, aos
milhões. Seria inocência supor que, no que acabo de dizer, há
alusão particular a qualquer povo determinado. Seria inocência,
porque semelhante suposição equivalería a crer que essas tarefas
truculentas ficam confinadas a territórios especiais do planêta,
quando são, muito mais, um fenômeno universal e de extensão
progressiva, do qual serão muito poucos os povos europeus e
americanos que conseguem ficar isentos por completo. Sem dú­
vida, a feroz contenda será mais grave em uns do que em outros
e pode ser que algum conte com a genial serenidade neces­
sária para reduzir ao mínimo o estrago. Porque êste, certa­
mente não é inevitável, mas em verdade muito difícil de evitar-

(I) [O texto desta lição, na sua maior parte, corresponde à primeira das mi­
nistradas em Buenos Aires, em 1939, que foi publicada no livro ENSIMES­
MAMENTO E ALTERAÇÃO. MEDITAÇÃO DA TÉCNICA. Espasa-Calpe Argen­
tina, Buenos Aires, 1939.]

— 51
O HOMEM E A GENTE

se. Muito difícil porque, para sua evitação, teriam de juntar-se


muitos fatores em cofbboração, fatores de qualidade e classe
diversas, magníficas virtudes junto a humildes precauções.
Uma dessas precauções, humilde, — repito, — porém impres­
cindível, se se quer que um povo atravesse indene êstes tempos
atrozes, consiste em conseguir que um número suficiente de pes­
soas dêsse povo perceba até que ponto tôdas essas idéias, —
chamemo-las assim, — em tôrno das quais se fala, se combate,
se discute e se trucida, são grotescamente confusas e superlati-
vamente vagas.
Fala-se, fala-se de tôdas essas questões, mas o que se diz
sôbre elas carece da clareza mínima, sem a qual a operação de
falar acaba sendo nociva. Porque falar traz sempre algumas con-
seqüências e, como dos citados temas se tem falado muito, — há
anos quase não se fala, nem se deixa falar de outra coisa, —
as conseqüências dessa loquacidade são, evidentemente, graves.
Uma das maiores desgraças do tempo é a aguda incongru­
ência entre a importância que têm no presente tôdas essas ques­
tões e a rudeza e confusão dos conceitos sôbre as mesmas, que
êsses vocábulos representam.
Note-se que tôdas essas idéias, — lei, direito, estado, inter-
nacionalidade, coletividade, autoridade, liberdade, justiça social,
etc., — quando já não o ostentam em sua expressão, implicam
sempre, como seu ingrediente essencial, a idéia do social, de
sociedade. Se esta não está clara, tôdas essas palavras não signi­
ficam o que pretendem e são meros espaventos. Ora, — confes­
semo-lo ou não, — todos, em nosso fundo insubornável, temos a
consciência de não possuir, sôbre essas questões, senão noções
errantes, imprecisas, néscias ou turvas. E, desgraçadamente, a
rudeza e confusão a respeito de tal matéria não existe sòmente
no vulgo, mas também nos homens de ciência, até o ponto de
que não é possível dirigir-se o profano a nenhuma publicação
onde possa, de verdade, retificar e polir seus conceitos socio­
lógicos.

52 —
ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

Não esquecerei jamais a surpresa, pintada de vergonha e


de escândalo, que senti quando, faz muitos anos, consciente de
minha ignorância sôbre êste tema, acudi cheio de ilusão, sôltas
tôdas as velas da esperança, aos livros de sociologia, e me en­
contrei com uma coisa incrível, a saber, que os livros de socio­
logia não nos dizem nada claro sôbre o que é o social, sôbre o
que seja a sociedade. Mais ainda: não somente não conseguem
dar-nos uma noção precisa do que é o social, do que é a socie­
dade, como ainda, ao ler esses livros, descobrimos que seus auto­
res, — os senhores sociólogos, — nem sequer tentaram, um pouco
a sério, por-se êles mesmos em claro sôbre os fenômenos elemen­
tares em que consiste o fato social. Inclusive em trabalhos que,
pelo seu título, parecem enunciar que se vão ocupar a fundo do
assunto, logo vemos que o eludem, — diriamos, — com plena
consciência. Passam sôbre êsses fenômenos, — repito: prelimi­
nares e inevitáveis, — como sôbre brasas e, salvo alguma exceção,
essa mesma, sumamente parcial — como Durkheim, vemo-los lan­
çar-se com invejável audácia a opinar sôbre os temas mais ter­
rivelmente concretos da convivência humana.
Eu não posso, é claro, demonstrar isso agora, porque tal
intento ocuparia muito, do escasso tempo que temos a nossa dis­
posição. Baste-me fazer esta simples observação estatística que
me parece ser o cúmulo.

Primeiro: as obras nas quais Augusto Comte inicia a ciência


sociológica sobem a mais de cinco mil páginas com letra bem
apertada. Pois bem: entre tôdas elas, não encontraremos linhas
bastantes para encher uma página e que tratem de dizer-nos o
que Augusto Comte entende por Sociedade.

Segundo: o livro em que essa ciência ou pseudociência


celebra o seu primeiro triunfo sôbre o horizonte intelectual, —
os "Princípios de Sociologia",- de Spencer, publicados entre 1876
e 1896, — não contará menos de duas mil e quinhentas pá­
ginas. Não creio que cheguem a cinquenta as linhas dedica­

— 53
O HOMEM E A GENTE

das a perguntar-se o autor que coisas sejam essas estranhas rea­


lidades; as sociedades, de que a obesa publicação se ocupa.
Enfim, há poucos anos apareceu o livro de Bergson, — no
mais, encantador — intitulado "As Duas Fontes da Moral e da
Religião". Sob êste título hidráulico, que por si mesmo é já
uma paisagem, se oculta um tratado de sociologia, em que não
existe uma única linha em que o autor nos diga formalmente
que são essas sociedades sôbre as quais especula. Saímos de sua
leitura, isso, sim, como de uma selva, cobertos de formigas e
envoltos nos vôos palpitantes das abelhas, porque tudo que faz
o autor, para esclarecer-nos sôbre a estranha realidade das socie­
dades humanas, é referir-se ao formigueiro e à colmeia, às presu­
midas sociedades animais, das quais, — certamente, — sabemos
.menos do que da nossa.
Isso não quer dizer, nem muito menos, que nessas obras,
como em algumas outras, faltem entrevisões, às vêzes genias, de
certos problemas sociológicos. Carecendo, porém, de evidência,
no elementar, êsses acertos permanecem secretos e herméticos,
inatingíveis, para o leitor normal. Para aproveitá-los, teríamos de
fazer o que os seus autores não fizeram: tentar trazer à luz êsses
fenômenos preliminares e elementares, esforçar-nos denodada-
mente, sem escusas, em precisar o que é o social, o que é a so­
ciedade. Porque êsses autores não o fizeram, chegam como cegos
geniais a apalpar certas realidades, — eu diria: a tropeçar nelas,
— mas não conseguem vê-las e, muito menos, esclarecê-las para
nós. De modo que nosso trato com êles vem a ser o diálogo do
cego com o entrevadq:___....... ....... .................
?Como anda você, bom homem? — pergunta o cego ao
entrevado. E êste responde ao cego:
=_Como vê, amigo... .
Se isso acontece com os mestres do pensamento sociológico,
mal pode estranhar-nos que as gentes, na praça pública, vociferem
em tôrno dessas questões. Quando os homens não têm nada
claro a dizer sôbre uma coisa, em vez de calar-se, costumam

54 —
ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

fazer o contrário: dizem em superlativo, isto é, gritam. E o


grito é o preâmbulo sonoro da agressão, do combate, da ma­
tança. Dove si grida non è vera scienza — dizia Leonardo. Onde
se grita não há bom conhecimento.
Eis aí como a inépcia da sociologia, enchendo de idéias
confusas as cabeças, chegou a converter-se em uma das pragas
do nosso tempo. Com efeito, a sociologia não está à altura dos
tempos; por isso, os tempos, mal sustentados em sua altitude,
caem e se precipitam.
Se isso é assim, não lhes parece que seria uma das melhores
maneiras de não perder por completo o tempo que vamos passar
juntos, dedicar-nos a esclarecer um pouco o que é o social, o
que é a sociedade? Muitos sabem bem pouco ou sabem nada do
assunto. Por que não juntar nossas ignorâncias? Por que não for­
mar uma sociedade anônima, com um bom capital de ignorância,
e lançarmo-nos à emprêsa, sem pedantismo ou com a menor dose
possível, mas com vivo afã de ver claro, com alegria intelectual,
— uma virtude que começava a perder-se na Europa, — com essa
alegria que suscita em nós a esperança de que subitamente
vamos encher-nos de evidências?
Partamos, pois, mais uma vez, à procura de idéias claras.
Isto é: de verdades.
São muito poucos os povos que a estas horas, — e me
refiro a antes de estalar esta guerra tão tôrva, que estranha­
mente nasce como se não quisesse acabar de nascer, — são
muito poucos, digo, os povos que nos últimos tempos gozavam
já da tranqüilidade de horizontes que permite escolher de ver­
dade, recolher-se na reflexão. Quase todo o mundo está alterado,
e na alteração o homem perde o seu atributo mais essencial: a
possibilidade de meditar, de recolher-se dentro de si mesmo, para
se pôr de acôrdo consigo mesmo e precisar, para si mesmo,
aquilo que crê; aquilo que estima de verdade e o que deveras
detesta. A alteração o obnubila, o cega, o obriga a atuar mecâ­
nicamente em um frenético sonambulismo.

— 55
O HOMEM E A GENTE

Em nenhuma parte advertimos que a possibilidade de me­


ditar é, de fato, o atributo essencial do homem, melhor do que
no Jardim Zoológico, diante das jaulas de nossos primos, os ma­
cacos. O pássaro e o crustáceo são formas de vida demasiado
distantes da nossa para que, ao confrontarmo-nos com êles, per­
cebamos outra coisa senão diferenças avultadas, abstratas, vagas,
de tão excessivas. O símio, porém, tanto se parece conosco que
nos convida a afinar a comparação, a descobrir diferenças mais
concretas e mais férteis.
Se sabemos permanecer quietos um instante, contemplando
passivamente a cena simiesca, em breve se destacará dela, como
que espontâneamente, um traço que nos chega como um raio de
luz. E é aquêle estar constantemente alerta dos endiabrados
animaizinhos em perpétua inquietação, olhando, escutando todos
os sinais que lhes chegam de redor, atentos sem descanso ao
contôrno, como que temendo que dêle chegue sempre um perigo
ao qual é forçoso responder automàticamente com a fuga ou
com a dentada, em mecânico disparo de um reflexo muscular.
O animal, com efeito, vive em perpétuo mêdo do mundo e, ao
mesmo tempo, em perpétuo apetite das coisas que há nêle e que
nêle aparecem, um apetite indomável que dispara também sem
freio nem inibição possíveis, igual ao pavor. Em um e outro caso,
são os objetos e os acontecimentos do ambiente que governam a
vida do animal, que o trazem e o levam, como uma marionete.
O animal não rege a sua existência, não vive a partir de si
mesmo, mas está sempre atento ao que se passa fora dêle, a
êsse outro diferente dêle. Nosso vocábulo outro não é senão
o latino alter. Dizer, portanto, que o animal não vive a partir
de si mesmo, mas do outro, trazido e levado e tiranizado por seu
outro, equivale a dizer que o animal vive sempre alterado, alie­
nado, que a sua vida é constitutiva alteração.
Contemplando êsse destino de inquietação sem descanso,
chega o momento em que nos dizemos: "que trabalho!". Com isso
enunciamos, com plena ingenuidade, sem percebê-lo formalmente,

56 —
ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

a diferença mais substantiva entre o homem e o animal. Porque


essa expressão diz que sentimos uma estranha fadiga, uma fadiga
gratuita, suscitada pela simples antecipação imaginária de que
tivéssemos de viver como êles, perpètuamente acossados pelo
ambiente e em tensa atenção a êle. E, porventura, o homem
não se acha, como o animal, prisioneiro do mundo, cercado de
coisas que o espantam, de coisas que o encantam, e obrigado,
por tôda a vida, inexoravelmente, queira ou não queira, a ocupar-
se delas? Sem dúvida. Mas com esta diferença essencial: que o
homem pode, de quando em quando, suspender sua ocupação
direta com as coisas, desligar-se de seu contôrno, desentender-se
dêle e, submetendo a sua faculdade de atender a uma torção
radical, — incompreensível zoologicamente, — voltar-se, por assim
dizer, de costas ao mundo, e meter-se dentro de si, atender à
sua própria intimidade ou, o que é igual, ocupar-se de si mesmo
e não do outro, das coisas.
Com palavras que, de muito usadas, como velhas moedas,
já não conseguem dizer com vigor o que pretendem, costuma­
mos chamar a essa operação: pensar, meditar. Estas expressões,
porém, ocultam o que há de mais surpreendente nesse fato: o
poder que o homem tem, de retirar-se, virtual e provisòriamente,
do mundo, e recolher-se dentro de si mesmo, ou, dito com um
esplêndido vocábulo, que só existe em nosso idioma: que o
homem pode ensimesmar-se (1).
Note-se que essa maravilhosa faculdade que o homem tem,
de libertar-se transitòriamente de ser escravizado pelas coisas,
implica dois poderes muito diferentes: um, o de não atender,
mais ou menos tempo, ao mundo em tôrno, sem risco fatal; outro,
o de ter onde meter-se, onde estar, quando saiu virtualmente do
mundo. Baudelaire expressa essa faculdade com romântico e
amaneirado dandysmo quando, ao perguntar-lhe alguém onde
preferiría viver, respondeu: "Em qualquer parte, contanto que

(1) Referia-se Ortega, naturalmente, ao espanhol, sem se lembrar que no por**


tuguês também existe o verbo (N. doT.).

— 57
O HOMEM E A GENTE

seja fora do mundo!" Mas o mundo é a total exterioridade, o


absoluto fora, que não consente nenhum fora para além dêle.
O único fora cabível, dêsse fora, é precisamente um dentro, um
intus, a intimidade do homem, seu si mesmo, que está constituído
principalmente por idéias.
Porque as idéias possuem a extravagantíssima condição de
que não estão em nenhum sítio do mundo, que estão fora de
todos o lugares, embora simbòlicamente as alojemos em nossa
cabeça, como os gregos de Homero as alojavam no coração e
os pré-homéricos as situavam no diafragma ou no fígado. Tôdas
essas mudanças de domicílio simbólico, que fazemos as idéias pa­
decerem, coincidem sempre nisso: colocá-las numa víscera; isto
é, em uma entranha, ou seja: no mais íntimo do corpo, embora
o dentro do corpo seja sempre um dentro meramente relativo.
Dessa maneira, damos uma expressão materializada, — já que
não podemos fazer outra coisa, — à nossa suspeita de que as
idéias não estão em nenhum lugar do espaço, o qual é pura
exterioridade; ao contrário, elas constituem, diante do mundo
exterior, outro mundo, que não está no mundo: o nosso mundo
interior.
Eis aí porque o animal tem de estar sempre atento ao que
se passa fora dêle, às coisas em tôrno. Porque, ainda que estas
diminuíssem os seus perigos e as suas incitações, o animal tem de
continuar sendo regido por elas, pelo de fora, pelo outro dêle;
porque não se pode meter dentro de si mesmo, um chez soi, onde
recolher-se e repousar.
O animal é pura alteração. Não pode ensimesmar-se. Por
isso, quando as coisas deixam de ameaçá-lo ou acariciá-lo;
quando lhe permitem uma vacância; em suma: quando o outro
deixa de movê-lo e manejá-lo, o pobre animal tem de deixar
virtualmente de existir, isto é: dorme. Daí, a enorme capacidade
de sonolência que manifesta o animal, a modôrra infra-umana,
que continua em parte no homem primitivo e, opostamente, a
insônia crescente do homem civilizado, a quase permanente vigí­

58 —
ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

lia, — às vêzes, terrível, indomável, — que aflige os homens de


intensa vida interior. Não faz muitos anos, meu grande amigo
Scheier, — uma das mentes mais fecundas do nosso tempo, que
vivia em incessante irradiação de idéias, — morreu de não poder
dormir.
Mas, bem entendido, — e com isto topamos pela primeira
vez com algo que reiteradamente nos vai aparecer em quase
todos os cantos e ângulos dêste curso, embora cada vez em
estratos mais profundos e em virtude de razões mais precisas e
eficazes, — as que agora ofereço não são nem uma nem outra
coisa; bem entendido, que estas duas coisas, o poder que o
hâmem tem de subtrair-se ao mundo e o de ensimesmar-se não
são dons feitos ao homem. Importa-me sublinhar isto para aquêles
que se ocupam de filosofia: não são dons feitos ao homem. Nada
que seja substantivo foi presenteado ao homem. Ele próprio tem
de fazer tudo para si.
Por isso, se o homem goza dêsse privilégio de liberar-se
transitoriamente das coisas, e de poder entrar e descansar em
si mesmo, é porque, com seu esfôrço, seu trabalho e suas idéias,
conseguiu reoperar sôbre as coisas, transformá-las e criar em seu
redor uma margem de segurança sempre limitada, mas sempre
ou quase sempre em aumento. Esta criação especificamente
humana é a técnica. Graças a ela, e na medida de seu pro­
gresso, o homem pode ensimesmar-se. Mas também vice-versa, o
homem é técnico, é capaz de modificar seu contorno no sentido
de sua conveniência, porque aproveitou todo alento que as coisas
lhe deixavam para ensimesmar-se, para entrar dentro de si e
forjar para si idéias sôbre êsse mundo, sôbre essas coisas e sôbre
sua relação com elas, para forjar um plano de ataque às cir­
cunstâncias,- em suma, para construir-se um mundo interior. Dêsse
mundo interior emerge e volta ao de fora. Mas volta na quali­
dade de protagonista, volta com um si mesmo que antes não
tinha, — com seu plano de campanha, — não para deixar-se domi­
nar pelas coisas, mas antes para governá-las, para lhes impor sua

— 59
O HOMEM E A GENTE

vontade e seu desígnio, para realizar, nesse mundo de fora, as


suas idéias, para modelar o planêta segundo as preferências de
sua intimidade. Longe de perder seu próprio si mesmo nesse
regresso ao mundo, pelo contrário, leva seu si mesmo ao outro,
projetando-o enérgica, senhorialmente sôbre as coisas, isto é, faz
com que o outro — o mundo — se vá convertendo pouco a pouco
naquele êle mesmo. O homem humaniza o mundo, injeta-lhe sua
própria substância ideal, impregna-o dela e cabe imaginar que,
um dia entre os dias, lá nos fundos do tempo, chegue a estar
êsse terrível mundo exterior tão saturado de homem, que pos­
sam nossos descendentes caminhar por êle como mentalmente
caminhamos hoje pela nossa intimidade, — cabe imaginar que o
mundo, sem deixar de sê-lo, chegue a converter-se em algo assim
como uma alma materializada, e como em A Tempestade de
Shakespeare, as rajadas do vento soprem impelidas por Ariel, o
duende das idéias (2).
Parece-me que presentemente podemos representar-nos, ainda
que seja em vago esquematismo, qual tem sido a trajetória
humana, considerada sob êste ângulo. Façamo-lo num texto con­
densado, que nos sirva a um tempo como resumo e como recor­
dação de tudo anteriormente dito.
Acha-se o homem, não menos do que o animal, consignado
ao mundo, às coisas em tôrno, à circunstância. Em princípio, sua
existência mal difere da existência zoológica: êle, também, vive
governado pelo contorno, inserido entre as coisas do mundo como
uma delas. Não obstante, mal os sêres em tôrno lhe deixam um

(2) Não digo que isso seja certo, — tal certeza somente o progressista a tem
e eu não sou progressista, como se irá vendo, — mas digo que isso é
possível.
Nem se presuma, pelo que tenho dito, que sou idealista. Nem progres-
sista nem Idealista! Ao contrário, a idéia do progresso e o idealismo, —
êsse nome de molde tão lindo e tão nobre, — são duas de minhas feras
negras, porque vejo nelas, talvez os dois maiores pecados dos últimos du­
zentos anos, as duas formas máximas de irresponsabilidade. Mas deixemos
êste tema para tratá-lo a seu tempo e sigamos agora gentilmente pelo nos­
so caminho.

60 —
ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

alento, o homem, fazendo um esfôrço gigantesco, consegue um


instante de concentração, mete-se dentro de si, isto é, mantém,
a duras penas, sua atenção fixa nas idéias que brotam dentro
dêle, idéias que as coisas suscitam, e que se referem ao compor­
tamento destas, ao que logo o filósofo chamará "o ser das coi­
sas". Trata-se, de pronto, de uma idéia muito tôsca, sôbre o
mundo, mas que permita esboçar um primeiro plano de defesa,
uma conduta preconcebida. Mas, nem essas coisas em tôrno lhe
permitem vagar por muito tempo nessa concentração; tampouco,
embora elas o consentissem, êsse homem primigênio seria capaz
de prolongar mais de uns segundos ou minutos essa torção aten-
cional, essa fixação nos impalpáveis fantasmas que são as idéias.
Essa atenção para dentro, que é o ensimesmamento, constitui o
fato mais antinatural, mais ultrabiológico. O homem tardou mi­
lhares de anos para educar um pouco, — nada mais que um
pouco, — a sua capacidade de concentração. O que lhe é natural
é dispersar-se, distrair-se para fora, como o macaco na selva e
na jaula do Jardim Zoológico.
O padre Chevesta, explorador e missionário, que foi o pri­
meiro etnógrafo especializado no estudo dos pigmeus, provà-
velmente a variedade de homens mais antiga que se conhece,
que êle foi procurar lá dentro das selvas tropicais mais recôn­
ditas, — o padre Chevesta, que desconhece por completo a dou­
trina agora exposta por mim e se limita a descrever o que vê,
diz em sua última obra, de 1932, sôbre os anões do Congo (3):
"Falta-lhes por completo o poder de concentrar-se. Estão
sempre absorvidos pelas impressões exteriores, cuja contínua mu­
tação lhes impede recolher-se a si mesmos, o que constitui con­
dição indispensável a todo aprendizado. Sentá-los no banco de
uma escola seria para êstes homenzinhos um tormento insuportá­
vel. De modo que o trabalho do missionário e do mestre se torna
sumamente difícil".

(3) Bambuti, die Zwerge des Congo.

— 61
O HOMEM E A GENTE

Mas, embora instantâneo e tôsco, êsse primitivo ensimesma-


mento vai separar radicalmente a vida humana da vida animal.
Porque agora o homem, êsse homem primigênio vai submergir
novamente nas coisas do mundo, resistindo a elas, sem entregar-
se de todo a elas. Leva um plano contra elas, um projeto de
trato com elas, de manipulação de suas formas, que produz uma
transformação mínima em seu redor, suficiente para que o opri­
mam um pouco menos e, em conseqüência, lhe permitam mais
frequentes e folgados ensimesmamentos... e assim sucessivamente.
São, pois, três momentos diferentes que ciclicamente se re­
petem ao longo da história humana em formas cada vez mais
complexas e densas: I) O homem se sente perdido, naufragado
nas coisas; é a alteração. II) O homem, com enérgico esforço, se
recolhe à sua intimidade para formar idéias sôbre as coisas e
seu possível domínio; é o ensimesmamento, a vita contemplativa
como diziam os romanos, o theoretikòs bíos dos gregos, a theoria.
Ill) O homem torna a submergir no mundo para atuar nêle con­
forme um plano preconcebido; é a ação, a vida ativa, a prâxis.
De acordo com isto, não se pode falar de ação senão na
medida em que esteja regida por uma prévia contemplação; e
vice-versa, o ensimesmamento não é senão um projetar a ação
futura.
O destino do homem é, portanto, primàriamente ação. Não
vivemos para pensar, mas ao contrário: pensamos para conseguir
perviver. Este é um ponto capital em que, a meu juízo, urge que
nos oponhamos radicalmente a tôda tradição filosófica e nos re­
solvamos a negar que o pensamento, em qualquer sentido sufi­
ciente do vocábulo, tenha sido dado ao homem de uma vez para
sempre, de forma que êste o encontre, sem mais, à sua disposição,
como uma faculdade ou potência perfeita, pronta a ser usada e
posta em exercício, como ao pássaro foi dado o vôo e ao peixe,
a natação.
Se esta pertinaz doutrina fôsse válida, feria como resultado
que, como o peixe pode, — desde logo, — nadar, poderia o

62 —
ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

homem, — desde logo e sem mais nada, — pensar. Tal noção


nos cega deploràvelmente para perceber o dramatismo peculiar,
dramatismo único que constitui a condição mesma do homem.
Porque se, por um momento, para nos entendermos neste instante,
admitimos a idéia tradicional de que o pensamento seja a caracte­
rística do homem, lembrem o homem, animal racional, — de sorte
que ser homem equivalesse — como nosso genial pai Descartes
pretendia, — a ser coisa pensante, teríamos, que o homem, ao ser
dotado de uma vez para sempre de pensamento, ao possuí-lo com
a certeza com que se possui uma qualidade constitutiva e inalie­
nável, estaria certo de ser homem como o peixe está certo, — com
efeito, — de ser peixe. Ora; êste é um êrro formidável e fatal.
O homem não está nunca certo de que vai poder exercitar o
pensamento, entenda-se, de maneira adequada, e, sòmente se é
adequada, é pensamento. Ou, expressado em linguagem mais
vulgar: o homem não está nunca seguro de que vai estar certo,
de que vai acertar. O que significa, nada menos, que esta coisa
tremenda: que, diversamente de tôdas as demais entidades do
universo, o homem não está, não pode nunca estar seguro de
que é, com efeito, homem, como o tigre está seguro de ser tigre
e o peixe, de ser peixe.
Longe de ter sido presenteado o pensamento ao homem, a
verdade é que, — uma verdade que agora não possa arrazoar
suficientemente, mas sòmente enunciar, — a verdade é que o
pensamento se vem fazendo, fabricando pouco a pouco graças a
uma disciplina, a um cultivo ou cultura, a um esforço milenário,
de muitos milênios, sem que se tenha ainda conseguido, — nem
muito menos, — terminar essa elaboração. Não sòmente não foi
dado o pensamento, desde logo, ao homem, mas, mesmo a esta
altura da história, apenas se conseguiu forjar uma débil porção
e uma tôsca forma daquilo que, no sentido ingênuo e normal
do vocábulo, costumamos entender por tal. E essa mesma porção
já conseguida, a modo de qualidade adquirida e não constitutiva,
está sempre em risco de perder-se; em grandes doses já se per­

— 63
O HOMEM E A GENTE

deu, muitas vêzes, de fato, no passado, e hoje estamos prestes a


perdê-la outra vez. Até êsse grau, diversamente dos demais sêres
do universo, o homem não é nunca seguramente homem: ao con­
trário, ser homem significa, precisamente, estar sempre a ponto de
o não ser, significa ser vivente problema, absoluta e azarosa
aventura ou, como costumo dizer, ser, por essência, drama! Por­
que só há drama quando não se sabe o que vai acontecer, ou
quando cada instante é puro perigo e trêmulo risco. Enquanto o
tigre não pode deixar de ser tigre, não pode destigrar-se, o
homem vive em risco permanente de desumanizar-se. Não só é
problemático e contingente que lhe aconteça isto ou aquilo, como
aos demais animais; ao homem lhe sucede às vêzes nada menos
que não ser homem. E isto é verdade, não só em abstrato e em
gênero, .mas é válido referindo-se à nossa individualidade. Cada
um está sempre em perigo de não ser êle mesmo, único e intrans­
ferível que é. A maior parte dos homens atraiçoa contlnuamente
êsse êle-mesmo que está esperando ser, e, para dizer tôda a
verdade, nossa individualidade pessoal é uma personagem que
não se realiza nunca de todo, uma utopia incitante, uma lenda
secreta que cada qual guarda no mais íntimo do peito. Compre­
ende-se muito bem que Píndaro resumisse a sua ética heróica no
conhecido imperativo: yevoío wç eiôi "chega a ser quem és".
A condição do homem é, pois, incerteza substancial. Por isso
está tão bem aquela máxima, gràcilmente amaneirada, de um
senhor borgonhês do século XV:“Rien ne m’est sür que la chose
incertaine”. Nada é seguro para mim senão o "incerto" (4).
Não existe aquisição humana que seja firme. Mesmo aquilo
que nos parece mais conseguido e consolidado pode desaparecer
em poucas gerações. Isso que chamamos "civilização", — tôdas
essas comodidades físicas e morais, tôdos êsses descansos, todos
êsses abrigos, tôdas essas virtudes e disciplinas já, "habitualiza-
das" com que costumamos contar e que com efeito constituem um

(4) Ortega traduziu assim para o espanhol: "Sólo me es seguro Io inseguro e


incierto" (N. do T.)

64 —
ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

repertório ou sistema de garantias que o homem fabricou para si


como uma balsa, no naufrágio inicial que é sempre o viver, —
tôdas essas garantias são garantias inseguras que, a qualquer
cochilo, ao menor descuido, escapam de entre as mãos dos
homens e se desvanecem como fantasmas.
A história nos conta inumeráveis retrocessos, decadências e
degenerações. Mas não foi dito que não sejam possíveis retro­
cessos muito mais radicais do que todos os conhecidos, inclusive
o mais radical de todos: a total volatilização do homem como
homem e seu taciturno reingresso na escala animal, na plena
definitiva alteração. A sorte da cultura, o destino do homem, de­
pende de que no fundo de nosso ser mantenhamos sempre vivaz
esta dramática consciência e, como um contraponto murmurante
em nossas entranhas, sintamos bem que para nós só é segura a
insegurança.
Não escassa porção das angústias que retorcem hoje as
almas do Ocidente provém de que durante o século passado, —
e quiçá pela primeira vez na história, — o homem chegou a
crer-se seguro. Porque a verdade é que seguro, seguro, só con­
seguiu sentir-se o farmacêutico monsieur Homais, produto nítido do
progressismo! A idéia progressista consiste em afirmar não so­
mente que a humanidade, — um ente abstrato, irresponsável, ine­
xistente que então se inventou, — progride, o que é certo, mas
também progride necessariamente. Tal idéia cloroformizou o eu­
ropeu e o americano para essa sensação radical de risco que é
substância do homem. Porque se a humanidade progride inevi-
tàvelmente, quer dizer que podemos abandonar tôda alerta, des-
preocupar-nos, irresponsabilizar-nos, ou, como dizemos na Espa­
nha, "tumbarnos a Ia bartola" (5) e deixar que ela, a humani­
dade, nos leve inevitàvelmente à perfeição e à delícia. A histó­
ria humana fica, dêste modo, desossada de todo dramatismo e
reduzida a uma tranqüila viagem turística organizada por qual-

(5) Expressão que corresponde à nosso: "deitar de papo para o ar" (N. do T.)

— Ó5
O HOMEM E A GENTE

quer agência "Cook" de categoria transcendente. Caminhando


assim, segura, para a sua plenitude, a civilização em que em­
barcamos seria como a nau dos feácios de que fala Homero, a
qual, sem piloto, navegava direito ao pôrto. Esta segurança é o
que estamos pagando agora (6).
Segue-se isto à conta de que o pensamento não é um dom
do homem, mas aquisição laboriosa, precária e volátil.
Assim pensando se compreenderá que me pareça um tanto
ridícula a definição que Lineu e o século XVIII davam do homem,
como homo sapiens. Porque, se entendermos esta expressão com
boa fé, ela só pode significar para nós que o homem, com efeito,
sabe, isto é, que sabe tudo o que precisa saber. Ora; nada mais
longe da realidade. Jamais o homem soube o que necessitava
saber. Pois se entendermos homo sapiens no sentido de que o

(6) Eis aqui uma das razões pelas quais disse que não sou progressista. Aqui
está porque prefiro renovar em mim, com freqüência, a emoção que me
causaram na juventude aquelas palavras de Hegel, no começo de sua Fi­
losofia da História: "Quando contemplamos o passado, isto é, a História, —
diz, — o primeiro que vemos é só ruínas".
Aproveitamos, de passagem, esta conjuntura para, desta visão, perce­
ber o que há de frivolidade, e até de notável contrafação, no imperativo
famoso de Nietzsche: "Vivei em perigo". Que, aiém do mais, não é tam­
pouco de Nietzsche, e sim a exasperação de um velho mote do Renascimento
italiano, o famoso lema de Aretino: Vívere risolutamente. Porque não diz:
Vivei alerto, o que estaria bem; senão: Vivei em perigo. E isto revela que
Nietzsche, apesar de sua genialidade, ignorava que a substância mesma
de nossa vida é perigo e que, portanto, acaba sendo afetada superfetação
propormos como novidade algo acrescido e original, que o procuremos e o
colecionemos. Idéia, além disso, típica da época que se chamou fin de slè-
cle; epoca que ficará no história, — culminou por volta de 1900, — como
aquela em que o homem se sentiu mais seguro e, a um tempo, como a
época, — com seus peitiihos e casacas, suas mulheres fatais, sua pretensão
de perversidade e o seu culto barrèsiano do Eu, — como a época de con­
trafação por excelência. Em toda época há sempre certas idéias que eu
chamaria idéias fishing, idéias que se enunciam e proclamam precisomente
porque se sabe que não terão cabida; que não se pensam senão à maneira
de jôgo e folie — como há anos agradavam tanto na Inglaterra os contos
de lôbos, porque a Inglaterra é um país onde em 1Ó68 se caçou o último
lobo e carece, portanto, da experiência autêntica do lobo. — Em uma época
que não tem experiência forte da insegurança, — como aquela, — brín-
cava-se de vida perigosa.

óó —
ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

homem sabe algumas coisas, muito poucas, mas ignora o resto,


como êsse resto é enorme, parecería mais oportuno defini-lo como
homo insciens, insipiens, como homem ignorante. E, decerto, se­
não fôssemos agora tão de carreira, poderiamos ver a cordura
com que Platão define o homem, precisamente pela sua ignorân­
cia. Esta é, de fato, privilégio do homem. Nem Deus nem a bêsta
ignoram — aquêle, porque possui todo o saber, e esta, porque não
necessita dêle.
Conste, pois, que o homem não exercita o seu pensamento
porque o encontra como um presente, mas porque, não tendo
mais remédio senão viver submergido no mundo e bracejar entre
as coisas, se vê obrigado a organizar as suas atividades psíqui­
cas, não muito diferentes das do antropóide, em forma de pen­
samento, — que é o que não faz o animal.

O homem, portanto, mais do que pelo que é, pelo que tem,


escapa à escala zoológica por aquilo que faz, por sua conduta.
Daí o ter de estar sempre vigiando-se a si mesmo.

Isto é algo daquilo que eu desejava insinuar na frase, — que


não parece senão uma frase, — segundo a qual não vivemos para
pensar mas pensamos para conseguir subsistir ou perviver.

Veja-se como isso de atribuir ao homem o pensamento como


uma qualidade ingênita, — que, de início, parece uma homena­
gem e até uma adulação à sua espécie, — é, em rigor, uma
injustiça. Porque não há êsse dom nem tal presente,- ao contrário,
êle é uma penosa fabricação e uma conquista, como tôda con­
quista, — seja de uma cidade, seja de uma mulher, — sempre
inestável e fugidiça.

Era necessária essa advertência sôbre o pensamento, para


ajudar a compreender meu enunciado anterior, segundo o qual
o homem é primária e fundamentalmente ação. Homenageemos,
de passagem, o primeiro homem que pensou com total clareza
esta verdade, o qual não foi Kant nem foi Fichte, mas Augusto
Comte, o demente genial.

— 67
O HOMEM E A GENTE

Vimos que ação não é qualquer caminhar aos golpes com as


coisas em tôrno, ou com os outros homens: isso é o infra-umano,
isso é alteração. A ação é atuar sôbre o contôrno das coisas ma­
teriais ou dos outros homens conforme um plano preconcebido em
uma prévia contemplação ou pensamento. Não há, pois, ação
autêntica, não há pensamento, e não há autêntico pensamento,
se êste não está devidamente referido à ação, e virilizado pela
sua relação com esta.
Esta relação, porém, — que é a efetiva, — entre ação e
contemplação, tem sido ignorada pertinazmente. Quando os gre­
gos descobriram que o homem pensava, que existia no universo
essa estranha realidade que é o pensamento, (até então os
homens não tinham pensado, ou, como o bourgeois gentilhomme,
tinham-no feito sem saber,) sentiram tal entusiasmo pelas graças
das idéias, que atribuíram à inteligência, o logos, a categoria
suprema no orbe. Em comparação com isso, tudo mais lhes pare­
ceu coisa subalterna e desprezível. E como tendemos a projetar
em Deus tudo quanto nos parece ótimo, chegaram os gregos com
Aristóteles a sustentar que Deus não tinha outra ocupação, senão
pensar. E nem sequer pensar nas coisas: isto lhes parecia uma
espécie de envilecimento da operação intelectual. Não; segundo
Aristóteles, Deus não faz outra coisa senão pensar no pensar —
o que é converter Deus em um intelectual, mais precisamente, em
um modesto professor de filosofia. Mas repito que, para êles, isto
era o que havia de mais sublime no mundo e o que de mais
sublime um ser pode fazer. Por isso acreditavam que o destino
do homem não era outro senão exercitar seu intelecto, que o
homem tinha vindo ao mundo para meditar ou, em nossa termi­
nologia, para ensimesmar-se.
Essa doutrina é o que se tem chamado intelectualismo, a
idolatria da inteligência, que isola o pensamento de seu encaixe,
de sua função na economia geral da vida humana. Como se o
homem pensasse porque sim, e não porque, queira ou não queira,
tem de fazê-lo para suster-se entre as coisas! Como se o pensa­

68 —
ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

mento" pudesse despertar e funcionar pelas suas próprias molas,


como se começasse e acabasse em si mesmo, e não, — o que é a
verdade, — engendrado pela ação e tendo nela as suas raízes e
o seu têrmol Inumeráveis coisas da mais alta classe devemos aos
gregos, mas também lhes devemos cadeias. O homem do Oci­
dente vive ainda, em medida escassa, escravizado por preferên­
cias que tiveram os homens da Grécia, os quais, operando no
subsolo da nossa cultura, nos desviam, há oito séculos, de nossa
própria e autêntica vocação ocidental. A mais pesada dessas
cadeias é o "intelectualismo" e importa muito que, nesta hora em
que é preciso retificar a rota, iniciar novos caminhos, — acertar,
em suma, — importa muito que nos desfaçamos resolutamente
dessa arcaica atitude que foi levada ao extremo nestas duas
últimas centúrias.
Sob o nome, primeiro, de raison, logo de ilustração, e, por
fim, de cultura, operou-se a mais radical tergiversação dos têr-
mos e a mais indiscreta divinização da inteligência. Na maior
parte de quase todos os pensadores da época, sobretudo nos
alemães, por exemplo: nos que foram os meus mestres no comêço
do século, veio a cultura, o pensamento, a ocupar o pôsto aban­
donado de um deus em fuga. Tôda a minha obra, desde os seus
primeiros balbucios, foi uma luta contra essa atitude, que há
muitos anos chamei de "beatice da cultura". Beatice da cultura,
porque nela se nos apresentava a cultura, o pensamento, como
algo que se justifica a si mesmo, a saber, que não precisava de
justificação, mas que é valioso por sua própria essência, sejam
quais forem a sua concreta ocupação e o seu conteúdo. A vida
humana devia pôr-se ao serviço da cultura, porque só assim se
carregava de substância estimável. Assim sendo, ela, a vida
humana, nossa pura existência, seria, por si mesma, coisa balda
e sem apreço.
Essa maneira de inverter a relação efetiva entre vida e
cultura, entre ação e contemplação, deu motivo a que nos últimos
cem anos, — portanto, até bem pouco, — se suscitasse uma su-

— 69
O HOMEM E A GENTE

perproduçõo de idéias, de livros e obras de arte, uma verdadeira


inflação cultural. Caiu-se naquilo que, por gracejo, — porque des­
confio dos "ismos", — poderiamos chamar de "capitalismo da
cultura", moderno aspecto do bizantinismo. Em vez de atender ao
consumo, vão-se produzindo, por produzir, as idéias necessárias,
de que o homem de hoje precisa e que pode absorver. E, como
acontece no capitalismo, saturou-se o mercado e sobreveio a
crise. Não me digam que a maior parte das grandes mudanças
ocorridas nos últimos tempos nos apanhou de surprêsa. Há vinte
anos as anuncio e as denuncio. Para me não referir senão ao tema
estrito que glosamos agora, veja-se o meu ensaio intitulado, for­
mal e programàticamente, A reforma da inteligência, que se pu­
blicou por volta de 1922 ou 1923, e que foi reunido em volume (7).
O mais grave, porém, nessa aberração intelectualista que
significa a beatice da cultura, não é isso, mas consiste em apre­
sentar ao homem a cultura, o ensimesmamento, o pensamento,
como uma graça ou jóia que êste deve acrescentar à sua vida,
portanto, como algo que se acha desde logo fora dela, como
se existisse um viver sem cultura e sem pensar, como se fôsse
possível viver sem ensimesmar-se. Com isso os homens eram postos,
— como diante da vitrina de uma joalheria, — na opção de
adquirir a cultura ou prescindir dela. E, é claro, diante de tal
dilema, ao longo dêstes anos que estamos vivendo, os homens
não vacilaram, mas resolveram ensaiar a fundo a última opera­
ção e pretendem fugir a todo ensimesmamento e entregar-se à
plena alteração. Por isso, existem na Europa sòmente alterações.
A aberração intelectualista que isola a contemplação da
ação, sucedeu a aberração oposta: a voluntarista, que se exo­
nera da contemplação e diviniza a ação pura. Esta é uma ma­
neira de interpretar errôneamente a tese anterior, de que o
homem é primária e fundamentalmente ação. Sem dúvida, tôda
idéia é susceptível, — mesmo a mais verídica, — de ser mal inter-

(7) [Vejam-se Obras completas, tomo IV.]

70 —
ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

pretada; sem dúvida, tôda idéia é perigosa: isto é forçoso reco­


nhecê-lo formalmente e de uma vez para sempre, a salvo de
acrescentar que essa periculosidade, que êsse risco latente não
é exclusivo das idéias, mas vai anexo a tudo, absolutamente tudo
que o homem faz. Por isso disse que a substância do homem não
é outra coisa senão perigo. O homem caminha sempre entre pre­
cipícios, e, queira ou não queira, sua mais autêntica obrigação é
conservar o equilíbrio.
Como outras vêzes aconteceu no passado conhecido, voltam
agora, — e me refiro a êstes anos, quase ao que já passou do
século, — voltam agora os povos a submergir-se na alteração.
O mesmo que aconteceu em Roma! A Europa começou deixan­
do-se atropelar pelo prazer, como Roma, pelo que Ferrero cha­
mou a luxúria, o excesso, o luxo das comodidades. Logo sobre­
veio o atropelamento pela dor e pelo pavor. Como em Roma, as
lutas sociais e as consequentes guerras encheram as almas de
estupor. E o estupor, a máxima forma de alteração, o estupor,
quando persiste, se converte em estupidez. Chamou a atenção
de alguns o fato de que, há algum tempo, com reiteração de
leit motiv, me referisse em meus escritos ao ponto, não suficiente­
mente conhecido, de que o mundo antigo, já em tempos de
Cícero, começou a tornar-se estúpido. Já se disse que seu mestre
Possidônio foi o último homem daquela civilização capaz de se
pôr diante das coisas e pensar efetivamente nelas. Perdeu-se,
— como ameaça perder-se na Europa, se não se lhe dá remédio,
— a capacidade de ensimesmar-se, de nos recolhermos com sere­
nidade ao nosso fundo insubornável. Fala-se sòmente de ação.
Os demagogos, empresários da alteração, que já fizeram morrer
várias civilizações, fustigam os homens para que não reflitam,
procuram mantê-los enfeixados em multidões para que não
possam reconstruir a sua pessoa onde unicamente se reconstrói,
que é na solidão. Denigram o serviço à verdade, e nos propõem
no seu lugar: mitos. E, com tudo isso, conseguem que os homens
se apaixonem, e entre fervores e horrores se ponham fora de si.

— 71
O HOMEM E A GENTE

E claro que, como o homem é o animal que conseguiu meter-se


dentro de si, quando o homem se põe fora de si é que aspira a
descer, e recai na animalidade. Tal é a cena, sempre idêntica,
das épocas em que se diviniza a pura ação. O espaço se povoa
de crimes. Perde valor, perde preço a vida dos homens, e se pra­
ticam tôdas as formas da violência e da espoliação. Sobretudo
da espoliação. Por isso, sempre que se observe que ascende sôbre
o horizonte e chega ao predomínio a figura do puro homem de
ação, a primeira coisa que cada um deve fazer é abotoar-se.
Quem quer aprender, de verdade, os efeitos que a espoliação
causa em uma grande civilização pode vê-lo no primeiro livro
de alta classe que se escreveu sôbre o Império Romano, — até
agora, não sabíamos o que êste havia sido, — refiro-me ao livro
do grande russo Rostovzeff, professor há muitos anos na América
do Norte, intitulado: "História social e econômica do Império
Romano".
Deslocada desta forma de sua normal conjuntura com a con­
templação, com o ensimesmamento, a ação pura permite e suscita
apenas uma concatenação de atos insensatos que melhor deve­
riamos chamar desencadeamento. Assim vemos hoje que uma
atitude absurda justifica o advento de outra atitude antagônica,
mas tampouco razoável; pelo menos, suficientemente razoável, e
assim sucessivamente. As coisas da política chegaram no Ocidente
ao extremo de que, à fôrça de ter todo mundo perdido a razão,
acabam tendo-a todos. Apenas, a razão que cada um tem não é
a sua, mas a que o outro perdeu.
Estando assim as coisas, parece prudente que, onde as cir­
cunstâncias permitam alento, por mínimo que seja, se rompa êsse
círculo mágico da alteração, que nos precipita de insensatez em
insensatez; parece prudente que nos digamos, — como, depois de
tudo, muitas vêzes nos dizemos em nossa vida mais <ulgar, sempre
que o contorno nos atropela, que nos sentimos perdidos num tor-
velinho de problemas, — que nos digamos: Calma! Que sentido
tem êsse imperativo? Simplesmente, o de convidar-nos a suspender

72 —
ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

um momento a ação, para nos recolher dentro de nós próprios,


para passar uma revista em nossas idéias sôbre a circunstância
e forjarmos um plano estratégico.
Não julgo, pois, que seja nenhuma extravagância nem inso­
lência se, ao chegar a um país que goza ainda de serenidade,
em seu horizonte, penso que a obra mais fértil que possa fazer
para si mesmo e para os demais humanos não é contribuir para
a alteração do mundo, e, menos ainda, alterar-se êle mais do
que é devido, por conta de alterações estranhas, mas aproveitar
sua afortunada situação para fazer o que os outros agora não
podem: ensimesmar-se um pouco. Se agora, ali onde é possível,
não se cria um tesouro de novos projetos humanos, — isto é, de
idéias, — pouco podemos confiar no futuro. A metade das tristes
coisas que hoje acontecem, a metade delas ocorre porque êsses
projetos faltaram, como o anunciei por volta de 1922, no prólogo
de meu livro "Espanha invertebrada".
Sem retirada estratégica a si mesmo, sem pensamento alerta,
a vida humana é impossível. Recorde-se tudo que o homem deve
a certos grandes ensimesmamentos! Não é um acaso que todos
os grandes fundadores de religiões antepusessem famosos retiros
a seu apostolado. Buda se retira para a montanha; Mahomé se
retira para sua tenda, e ainda dentro de sua tenda se retira
dela, envolvendo a cabeça com seu albornoz; superando a todos,
Jesus se apartou quarenta dias no deserto. Que devemos a
Newton? Quando alguém, maravilhado de que tivesse conseguido
reduzir a um sistema tão exato e simples os inumeráveis fenô­
menos da física, lhe perguntava como tinha conseguido fazê-lo,
respondia ingênuamente: nocte dieque incubando, "dándole vuel-
tas día y noche" (8), palavras através das quais entrevemos vastos
e abismáticos ensimesmamentos.
Há hoje uma grande coisa no mundo que está moribunda, e
é a verdade. Sem certa margem de tranqüilidade, a verdade

(8) Montemos a tradução de Ortega (N. doT.)

— 73
O HOMEM E A GENTE

sucumbe. Eis aqui como agora frisamos o friso iniciado com


nossas palavras do comêço, para dar plenamente sentido às quais
já disse quanto disse.
Por êsse motivo, diante das incitações para a alteração, que
hoje nos chegam dos quatro pontos cardiais e de todos os re­
cantos da existência, acreditei que devia antepor ao presente
curso esbôço dessa doutrina do ensimesmamento, embora feito à
pressa, sem poder demorar-me a gôsto em nenhuma de suas partes
e mesmo deixando tácitas não poucas, pois nem sequer, por
exemplo, pude indicar que o ensimesmamento, como tudo que é
humano, é sexuado, quer dizer que há um ensimesmamento mas­
culino e outro ensimesmamento feminino. Como não pode deixar
de ser, já que a mulher não é si mesmo, senão si mesma.
Igualmente, o homem oriental se ensimesma de modo dife­
rente ao do homem do Ocidente. O ocidental se ensimesma em
claridade da mente. Recordem-se os versos de Goethe:

Eu me confesso da estirpe dêsses


que do escuro ao claro aspiram.
[Ich bekenne mich zu dem Gescheecht
Das aus dem Dunkel ins Helle strebt.J

A Europa e a América significam o ensaio de viver sôbre


idéias claras, não sôbre mitos. Porque agora faltam essas idéias
claras, o europeu se sente perdido e desmoralizado.
Maquiavelo, — que é coisa muito diferente do maquiavelismo,
— Maquiavelo nos diz, elegantemente, que, quando um exército
se desmoraliza e se esparrama desarticulado, só há uma salva­
ção: "Ritornare al segno", "voltar à bandeira", recolher-se sob
sua ondulação e reagrupar, sob o signo, as hostes dispersas. A
Europa e a América têm também de "ritornare al segno" das
idéias claras. As novas gerações, que gostam do corpo limpo,
e do ato nítido, têm de integrar-se na idéia clara, de arestas
rigorosas, a que não é supérflua nem linfática, a que é necessá­
ria para viver. Voltemos, — repito, — dos mitos às idéias claras

74 —
ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

e distintas, como há três séculos as chamou com solenidade pro-


gramática a mente mais acerrada que houve no Ocidente: Renato
Descartes, "aquêle cavalheiro francês que se pôs a andar com
tão bom passo", segundo dizia Péguy. Bem sei que Descartes e
seu racionalismo são pretérito perfeito, mas o homem não é nada
positivo se não é continuidade. Para superar o passado é preciso
não perder o contacto com êle; pelo contrário, senti-lo bem sob
nossos pés porque subimos sôbre êle.
Do imenso emaranhado de temas que será forçoso esclarecer,
se se ambiciona uma nova aurora, elejo um, que me parece ur­
gente: "que é o social, que é a sociedade", — um tema, se se
quiser, bastante humilde, desde logo, pouco brilhante e, o que
é pior, sobradamente difícil. Mas, o tema é urgente. Ele constitui
a raiz dêsses conceitos, — Estado, nação, lei, liberdade, autori­
dade, coletividade, justiça, etc. — que hoje põem os mortais em
frenesi. Sem luz sôbre êsse tema, tôdas essas palavras represen­
tam sòmente mitos. Iremos afastar-nos de todo êsse falar da gente,
até um estrato onde os mitos não chegam e começam as evidên­
cias. Vamos procurar um pouco dessa luz. Não se espere coisa
maior. Dou o que tenho; que outros, capazes de fazer mais,
façam o seu mais, como eu faço o meu menos.
II

A VIDA PESSOAL

Trata-se de que, mais uma vez, o homem se perdeu. Porque


não é coisa nova nem acidental. O homem se perdeu muitas
vêzes ao longo da história, — ainda mais: é constitutivo do
homem, diferentemente de todos os demais sêres, o ser capaz de
perder-se, de se perder na selva da existência, dentro de si mes­
mo, e, graças a essa outra sensação de perda, re-operar enèr-
gicamente para voltar a encontrar-se. A capacidade e o desgosto
de sentir-se perdido são o seu trágico destino e seu ilustre pri­
vilégio.

Partamos, pois, mobilizados pelo intento de achar, em forma


irrecusável, plenamente evidente, fatos de fisionomia tão caracte­
rística que não nos pareça adequada outra denominação senão
a de chamá-los, em sentido estrito, de "fenômenos sociais". Esta
operação rigorosíssima e decisiva, — a de achar que um tipo de
fatos é uma realidade ou fenômeno, definitiva e resolutòriamente,
sem dúvida alguma nem êrro possível, diferente e, portanto, irre­
dutível a qualquer outro tipo de fatos que se podem dar, —
tem de consistir em que retrocedamos a uma ordem de realidade
última, a uma ordem ou área de realidade que, por ser esta rea­
lidade radical, não deixe por baixo de si nenhuma outra; ou
melhor, por ser a básica, tenham de aparecer forçosamente, sôbre
ela, tôdas as demais.

Essa realidade radical, em cuja estrita contemplação temos


de fundamentar e assegurar, últimamente, todo nosso conheci­
mento de algo, é nossa vida, a vida humana.

— 77
O HOMEM E A GENTE

Sempre que digo "vida humana", seja o que fôr, a não ser
que eu faça alguma especial restrição, evite-se pensar na vida
de outro, e cada um deve referir-se à sua própria e tratar de
tê-la presente. Vida humana como realidade radical é sòmente
a de cada um, é sòmente a minha vida. Para comodidade de
linguagem, algumas vêzes a chamarei de "nossa vida", mas deve
sempre entender-se que, com essa expressão, me refiro à vida de
cada um e não à dos outros, nem a uma suposta vida plural e
comum. O que chamamos "vida dos outros", a do amigo, a da
amada, já é algo que aparece no cenário que é a minha vida,
a de cada um, e portanto, supõe esta. A vida de outro, ainda
mesmo daquele que nos esteja mais próximo e íntimo, já é para
mim mero espetáculo, como a árvore, a rocha, a nuvem viajeira.
Vejo-a mas não a sou, isto é, não a vivo. Se lhe doem os dentes
a outro, a mim me é patente a sua fisionomia, a figura de seus
músculos contraídos; êle é o espetáculo de alguém afligido pela
dor, mas essa dor de dentes não me dói a mim e, portanto, o
que tenho dela não se parece nada com aquilo que tenho,
quando os dentes me doem a mim. Em rigor, a dor de dentes
do próximo é ültimamente uma suposição, hipótese ou presunção
minha, é uma dor presuntiva. A minha, no entanto, é inquestio­
nável. Rigorosamente falando, nunca podemos estar certos de
que ao amigo que se nos apresenta como portador de uma dor
de dentes, êstes lhe doam de fato. De sua dor só temos patentes
certos sinais externos, que não são dor, mas concentração de
músculos, olhar vago, a mão no rosto, êsse gesto tão incongru­
ente com aquilo que lhe dá origem, pois não parece senão que
a dor de dentes seja um pássaro e que lhe pomos a mão em cima
para que não se nos escape. A dor alheia não é realidade ra­
dical; mas realidade em sentido já secundário, derivativo e pro­
blemático. O que temos dela, com radical realidade, é sòmente o
seu aspeto, a sua aparência, seu espetáculo, seus sinais. Esta é a
única coisa dela que, com efeito, nos é patente e inquestionável.
Mas a relação entre um sinal e o assinalado, entre uma aparên­

78 —
A VIDA PESSOAL

cia e o que nela aparece ou o que aparenta, entre um aspeto,


e a coisa manifesta ou revelada (1) nêle, é sempre, ültimamente,
questionável e equívoca. Há quem nos finja perfeitamente tôda
a mise-en-scène da dor de dentes, sem padecê-la, para justificar
fins privados. Já veremos como, diversamente, a vida de cada
um não tolera ficções, porque, ao fingirmos algo para nós mes­
mos, sabemos, — é claro, — que fingimos, e nossa íntima ficção
nunca consegue constituir-se plenamente; ao contrário, no fundo,
notamos a sua não-autenticidade, não conseguimos enganar-nos
de todo e vemos a sua falsidade. Esta genuinidade inexorável e
a si mesmo evidente, indubitável, inquestionável, de nossa vida,
— repito, — a de cada um, é a primeira razão que me faz deno­
miná-la "realidade radical".
Mas há outra coisa. Ao chamá-la "realidade radical", não
quero significar que seja a única, nem sequer que seja a mais
elevada, respeitável ou sublime ou suprema, mas simplesmente
que é a raiz, — daí, radical, — de tôdas as demais, no sentido
de que estas, sejam quais forem, têm, para ser realidades diante
de nós, têm de fazer-se presentes, de algum modo, ou, pelo
menos, de anunciar-se nos âmbitos palpitantes de nossa própria
vida. E, pois, essa realidade radical, — a minha vida, — tão
pouco egoísta, tão nada "solipsista", que é, por essência, a
área ou cenário oferecido e aberto para que tôda outra reali­
dade nela se manifeste e celebre seu Pentecostes. Deus mesmo,
para ser Deus diante de nós, tem de achar maneira para nos de­
nunciar a sua existência e, por isso, fulmina no Sinai, põe-se a
arder nas sarças à beira do caminho e açoita os vendilhões no
átrio do templo e navega sôbre Gólgotas de três hastes, como
as fragatas.
Daí, nenhum conhecimento de algo ser suficiente, — isto é,
suficientemente profundo, radical, — se não começa por descobrir

(1) Se o leitor me permitisse um, a meu ver eficaz, neologismo, de boa cepa,
sugerido pela forma espanhola de Ortega, eu traduziria assim: "entre um
aspeto e a coisa manifesta ou espetada nêle"... (N. do T.)

— 79
O HOMEM E A GENTE

e precisar o lugar e o modo, dentro do orbe que é nossa vida,


onde êsse algo faz a sua aparição, assoma, brota e surge, em
suma: existe. Porque isso signifca propriamente existir, — vocá­
bulo, presumo, originàriamente de luta e beligerância, que de­
signa a situação vital em que súbitamente aparece, se mostra ou
se faz aparente, entre nós, como brotando do solo, um inimigo
que nos fecha o passo com energia, isto é, nos resiste e se afirma
ou se torna firme a si mesmo diante e contra nós. No existir
está incluído o resistir e, portanto, o afirmar-se o existente, se
pretendemos suprimi-lo, anulá-lo ou tomá-lo como irreal. Por isso
o existente ou surgente é realidade, já que realidade é tudo
aquilo com que, queiramos ou não, temos de contar, porque,
queiramos ou não, está aí, ex-iste, re-siste. Uma arbitrariedade
terminológica, que raia pelo intolerável, vem querendo, desde
alguns anos, empregar os vocábulos "existir" e "existência" com
um sentido abstruso e incontrolável que é precisamente inverso
daquele que, por si, a palavra milenária leva e diz.

Alguns querem hoje designar assim o modo de ser do


homem; mas o homem, que é sempre eu, — o eu que é cada
um, — é o único que não existe, mas vive ou é vivendo. São
precisamente tôdas as demais coisas, que não são o homem, —
eu, — aquelas que existem, porque aparecem, surgem, saltam, me
resistem, se afirmam dentro do âmbito que é a minha vida. Seja
isso dito e disparado de passagem.

Ora, dessa estranha e dramática realidade radical, — a


nossa vida, — se podem dizer inumeráveis atributos, mas agora
vou apenas destacar o mais imprescindível para o nosso tema.

E é que a vida não a demos nós a nós mesmos, mas a


encontramos precisamente quando nos encontramos a nós mes­
mos. De repente, sem saber como, nem porque, sem prévio aviso,
o homem se descobre e se surpreende tendo de ser, em um âm­
bito impremeditado, imprevisto, neste de agora, em uma conjun­
tura de circunstâncias determinadíssimas.

80 —
A VIDA PESSOAL

Não é talvez ocioso observar que isto, — base do meu pen­


samento filosófico, — já foi anunciado, tal e como agora o fiz,
em meu primeiro livro, publicado em 1914. Chamemos mundo
provisoriamente e para facilitar a compreensão, — a êsse âmbito
impremeditado e imprevisto, a essa determinadíssima circunstância
em que, ao viver, sempre nos encontramos. Pois bem, êsse mundo,
em que tenho de ser, ao viver, me permite eleger dentro dêle
êste sítio, ou outro, onde estar; mas a ninguém é dado escolher
o mundo em que se vive,- é sempre êste, êste de agora. Não
podemos escolher o século, nem a jornada ou data em que
vamos viver, nem o universo em que nos vamos mover. O viver
ou ser vivente, o que é o mesmo, o ser homem não tolera pre­
paração nem prévio ensaio. A vida nos é disparada a queima —
roupa. Eu já o disse: onde e quando nascemos ou de onde este­
jamos, depois de nascer, temos de sair nadando, queiramos ou
não. Neste instante, cada qual por si mesmo se encontra sub­
merso em um ambiente que é um espaço em que tem, queira ou
não queira, de enfrentar o elemento abstruso que é uma lição
de filosofia, com algo que não sabe se lhe interessa ou não, se
o entende ou não, que está gravemente consumindo uma hora
de sua vida, — uma hora insubstituível, porque as horas de sua
vida estão contadas. Esta é a sua circunstância, o seu aqui e o
seu agora. Que fara? Porque, sem remédio, tem de fazer algo:
atender-me ou, ao contrário, desatender-me, para vagar em me­
ditações próprias, a pensar em seu negócio ou clientela, a re­
cordar sua amada. Que fará? Levantar-se e ir-se ou ficar, acei­
tando a fatalidade de levar esta hora de sua vida, que por­
ventura poderia ter sido tão bonita, ao matadouro das horas per­
didas?
Porque, — repito, — algo, sem remédio, temos de fazer ou
de estar fazendo sempre, pois esta vida, que nos é dada, não
nos é dada feita; ao contrário, cada um de nás tem de fazê-la
para si, cada qual, a sua. Essa vida que nos é dada, nos é dada
vazia e o homem tem de ir enchendo-a, ocupando-a. As nossas

— 81
O HOMEM E A GENTE

ocupações são isto. Tal não acontece com a pedra, a planta, o


animal. A êles é dado o seu ser já prefixado e resolvido. À pedra,
quando começa a ser, não só é dada a sua existência mas lhe
é pre-fixado, de antemão, o seu comportamento, — a saber,
pesar, gravitar para o centro da terra. Semelhantemente, ao ani­
mal é dado o repertório da sua conduta, que está, sem a sua
intervenção, governada por seus instintos. Ao homem, no entanto,
lhe é dada a imperiosidade de ter de estar sempre fazendo
algo, sob pena de sucumbir, mas não lhe é, de antemão e de
uma vez para sempre, presente o que tem de fazer. Porque o
mais estranho e incitante dessa circunstância, ou mundo, em que
temos de viver, consiste em que sempre nos apresenta, dentro
de seu círculo ou horizonte inexorável, uma variedade de pos­
sibilidades para a nossa ação, variedade diante da qual não
temos outro remédio senão escolher e, portanto, exercitar a nossa
liberdade. A circunstância, — repito, — o aqui e o agora, dentro
dos quais estamos inexoràvelmente inscritos e prisioneiros, — não
nos impõe a cada instante uma única ação ou afazer, mas vários
possíveis, e nos deixa cruelmente entregues à nossa iniciativa e
inspiração, portanto: à nossa responsabilidade. Dentro de um
momento, quando saírem para a rua, estarão obrigados a deci­
dir sôbre que direção tomarão, que rota. E, se tal acontece nesta
ocasião trivial, muito mais ocorre nesses solenes momentos, deci­
sivos da vida, nos quais o que se deve escolher é, nada menos,
por exemplo, do que uma profissão, uma carreira, — e carreira
significa estrada e direção do caminhar. Entre as poucas notas
privadas que Descartes deixou, ao morrer, se acha uma de sua
juventude, em que copiou um velho verso de Aussônio, o qual,
por sua vez, traduz uma vetusta sentença pitagórica e que diz:
Quod vitae sectabor iter: que estrada, que via tomarei para
minha vida? Mas a vida não é senão o ser do homem, — portanto,
isso significa o mais extraordinário, extravagante, dramático, pa­
radoxal da condição humana, a saber: que é o homem a única
realidade, a qual não consiste simplesmente em ser, mas tem de

82 —
A VIDA PESSOAL

eleger c seu próprio ser. E se analisássemos êsse pequeno acon­


tecimento que se vai dar dentro de um momento, — o de que
cada um haja de escolher e de decidir sôbre a direção da rua
que vai tomar, — veriam como, na escolha de uma ação, —
tão simples, na aparência, — intervém íntegra a escolha que já
fizeram, que neste momento, sentados, levam secreta no íntimo,
em seu fundo recôndito, de um tipo de humanidade, de um modo
de ser homem que em seu viver procuram realizar.
Para não nos perdermos, resumamos o que foi dito até agora:
vida, no sentido de vida humana, portanto, em sentido biográ­
fico e não biológico, — se por biologia se entende a psicosomá-
tica, — vida é encontrar-se alguém a que chamamos homem
(como poderiamos e talvez devéssemos chamar X, — já verão
porque), tendo de ser na circunstância ou mundo. Nosso ser, po­
rém, enquanto "ser na circunstância", não é quieto e meramente
passivo. Para ser, isto é, para continuar sendo, tem de estar
sempre fazendo algo, mas isso que há-de fazer não lhe é im­
posto nem pre-fixado; antes: há-de escolhê-lo, há-de decidir, in-
transferivelmente, por si e diante de si, sob sua exclusiva respon­
sabilidade. Ninguém pode substituí-lo nesse decidir sôbre o que
vai fazer, pois, inclusive o entregar-se à vontade de outro, é êle
quem tem de decidir. Esta imperiosidade de ter de escolher e,
portanto, estar condenado, queira ou não, a ser livre, a ser, por
sua própria conta e risco, provém de que a circunstância nunca
é unilateral, tem sempre vários e, às vêzes, muitos lados. Isto é:
convida-nos a diferentes possibilidades de fazer, de ser. Por issr
passamos a vida a dizer-nos: "Por urr lado", eu faria, pensaria,
sentiría, querería, decidiria isso, mas, "por outro lado"... A vida
é multilateral. Cada instante e cada lugar abrem diante de nós
diversos caminhos. Como diz o velhíssimo livro indiano: "onde
quer que o homem ponha o pé, pisa sempre cem caminhos". Daí
que a vida seja permanente encruzilhada e constante perplexi­
dade. Por isso, costumo dizer que, a meu juízo, o mais certeiro

— 83
O HOMEM E A GENTE

título de um livro filosófico é o que leva a obra de Maimónides


que se intitula: "More Nebuchim" — Guia para os Perplexos.
Quando queremos descrever uma situação vital extrema, em
que a circunstância parece não nos deixar saída, nem, portanto,
opção, dizemos, que "se está entre a espada e a parede"! A
morte é certa, não há escapatória possível! Cabe qualquer
opção? E, não obstante, é evidente que essa frase nos convida
a escolher entre a espada e a parede. Privilégio tremendo e gló­
ria de que o homem goza e sofre por vêzes — o de escolher a
figura de sua própria morte: a morte do covarde ou a morte do
herói, a morte feia ou a bela morte. De tôda circunstância,
mesmo a extrema, cabe a evasão. Do que não cabe evasão é
de ter de fazer algo e, sobretudo, de fazer o que, afinal, é mais
penoso: escolher, preferir. Quantas vêzes não se disse que se
preferiría não preferir? Daí resulta que o que me é dado, quando
me é dada a vida, não é senão afazer. A vida, bem o sabemos
todos, dá muito que fazer. E o mais grave é conseguir que o
fazer escolhido, em cada caso, seja não qualquer fazer, mas o
que há a fazer, — aqui e agora, — que seja nossa verdadeira
vocação, nosso autêntico afazer.
Entre todos êsses caracteres da realidade radical ou vida,
que anunciei, e que são uma parte mínima daqueles que fôra
mister descrever, para dar uma idéia, algo adequada, dela, entre
todos, o que me interessa agora sublinhar é aquilo que o grande
lugar-comum faz notar; que a vida é intransferível e que cada
um tem de viver a sua; que ninguém pode substituí-lo na faina
de viver; que a dor de dentes que sente tem de doer-lhe a êle,
e que êle não pode transferir a outro nem um pedaço dessa dor;
que nenhum outro pode escolher, nem decidir, por delegação
sua, o que vai fazer, o que vai ser; que ninguém pode substi-
tuí-lo, nem subrogar-se-lhe em sentir e querer; enfim, que não
pode incumbir o próximo de pensar, em seu lugar, os pensa­
mentos que necessita pensar para orientar-se no mundo, — no
mundo das coisas e no mundo dos homens, — e assim acertar

84 —
A VIDA PESSOAL

em sua conduta; portanto, que necessita convencer-se ou não, ter


evidências ou descobrir absurdos por sua própria conta, sem
possível substituto, vigário ou lugar-tenente. Posso repetir-me me­
cânicamente que dois e dois são quatro, sem saber o que me
digo, simplesmente porque o ouvi dizer inúmeras vêzes; mas
pensá-lo propriamente, — isto é, adquirir a evidência de que
"dois e dois são quatro e não são nem três nem cinco" — Isso
tenho de fazê-lo eu, eu só; ou, o que é o mesmo, eu, na minha
solidão. E como isso acontece com as minhas decisões, vontades,
com o meu sentir, temos que a vida humana, sensu stricto, por
ser intransferível, acaba sendo essencialmente solidão, radical
sofidão.
Mas entenda-se bem tudo isso. Não quero de modo algum
insinuar que eu seja a única coisa que existe. Em primeiro lugar,
já se terá reparado em que, mesmo sendo "vida", em sentido
próprio e originário, a de cada um, sendo sempre a minha, em-
preguei o menos possível êsse posessivo como não empreguei
quase o pessoal "eu". Se o fiz alguma vez foi meramente para
facilitar-lhes uma primeira visão do que é essa estranha reali­
dade radical — a vida humana. Preferi dizer o homem, o vivente
ou "cada um". Em outra lição verão com clareza o porquê
dessa reserva. Em definitivo, porém, e ao cabo de algumas voltas
que daremos, trata-se, é claro, da vida, da minha e do eu.
Esse homem, — êsse eu, — é, ültimamente, em solidão radical;
mas, — repito, — isso não quer dizer que somente êle é, que
êle é a única realidade ou, pelo menos, a radical realidade. O
que chamei assim não é somente eu, nem é o homem, mas a
vida, a sua vida. Ora, isso inclui uma enormidade de coisas. O
pensamento europeu já emigrou para fora do idealismo filosófico
•dominante desde 1640, em que Descartes o proclamou, — o idea­
lismo filosófico para o qual não há outras realidades senão as
idéias do meu eu, de um eu, do meu moi-même, do qual dizia
Descartes: moi qui ne suis qu'une chose qui pense. As coisas, o
mundo, meu corpo mesmo, seriam somente idéias das coisas,

— 85
O HOMEM E A GENTE

imaginação de um mundo, fantasia do meu corpo. Só existiría


a mente, e o mais — um sonho tenaz e exuberante, uma infinita
fantasmagoria que a minha mente segrega. A vida seria assim
a coisa mais cômoda que se pode imaginar. Viver seria existir eu
dentro de mim mesmo, flutuando no oceano de minhas próprias
idéias. A isso se chamou idealismo. Em nada tropeçaria eu. Não
teria eu de ser no mundo, mas o mundo seria dentro de mim,
como um filme sem fim que corresse dentro de mim. Nada me
estorvaria. Seria como Deus, que flutua, único, em si mesmo, sem
possível naufrágio, porque êle é, a um tempo, o nadador e o
mar em que nada. Se houvesse dois Deuses, êles se enfrentariam.
Esta concepção do real foi superada pela minha geração e,
dentro dela, muito concreta e enèrgicamente, por mim.
Não, a vida não é existir só a minha mente, existirem as
minhas idéias: é totalmente o contrário. A partir de DeScartes, o
homem ocidental tinha ficado sem mundo. Mas viver significa
ter de ser fora de mim, no absoluto fora que é a circunstância
ou mundo: é ter de, querendo ou não, enfrentar-me e chocar-me,
constantemente, incessantemente com quanto integra êsse mundo:
minerais, plantas, animais, os outros homens. Não há remédio.
Tenho de atracar-me com isso tudo. Tenho velis nolis de ajus­
tar-me, pior ou melhor, com tudo isso. Mas isso, — encontrar-me
com tudo e necessitar ajustar-me com tudo, — isso me acontece
últimamente a mim só, e tenho de fazê-lo solitàriamente, sem
que no plano decisivo, — note-se que digo no plano decisivo, —
ninguém me possa dar ajuda.
Isso quer dizer que já estamos muito longe de Descartes, de
Kant, de seus sucessores românticos, — Schelling, Hegel, daquilo
que Carlyle chamava "o luar transcendental". Nem é preciso dizer
que estamos muito mais longe ainda de Aristóteles.
Estamos, pois, longe de Descartes, de Kant. Estamos mais
longe ainda de Aristóteles e de Santo Tomás. Porventura é nosso
dever e nosso destino, — não só o dos filósofos, mas o de todos,
— distanciarmo-nos, distanciarmo-nos...? Não vou responder ago-

86 —
A VIDA PESSOAL

ra, nem sim, nem não. Nem sequer vou revelar de que, querendo
ou não, havíamos de nos distanciar. Fica aí êsse enorme ponto
de interrogação, — com o qual pode cada um fazer o que lhe
agrade, — usá-lo como um laço de gaúcho para captar o porvir
ou simplesmente enforcar-se nêle.
A solidão radical da vida humana, o ser do homem, não
consiste, pois, em que não haja realmente nada mais do que
êle. Ao contrário: há nada menos que o universo com todo o
seu conteúdo. Há, portanto, infinitas coisas, mas, — aí está!, —
em meio delas, o Homem, em sua realidade radical, está só, —
só com elas e, como entre essas coisas estão os outros sêres
humanos, está só com êles. Se não existisse nada mais que um
único ser, não se poderia dizer congruentemente que estaria só.
A unicidade nada tem a ver com a solidão. Se meditássemos
sôbre a "saudade" portuguêsa, — como é sabido, saudade é a
forma galaico-lusitana de "solitudinem", de soledade, — falaría­
mos mais desta e veriamos que a solidão é sempre solidão de
alguém, a saber, que é um ficar sozinho e um sentir falta.
Assim é, a tal ponto, que a palavra com que o grego dizia
meu e solitário, — Monos, — vem de moné, que significa ficar,
— subentende-se: ficar sem, sem os outros. Quer seja porque se
foram, quer seja porque morreram; em todo caso, porque nos
deixaram, — nos deixaram.. . sozinhos. Ou seja porque os dei­
xamos a êles, fugimos dêles e vamos para o deserto ou para o
retiro a fazer vida de moné. Daí, monakhós, monasteries e monge.
E no latim solus. Meillet, cujo extremo rigor de foneticista e cuja
falta de talento semântico tornam necessário que eu procure con­
trastar com êle minhas espontâneas averiguações etimológicas,
suspeita que solus venha de sed-lus, isto é, do que fica sentado
quando os demais se foram. Nossa Senhora da Soledade é a
Virgem que fica sozinha de Jesus, pois o mataram, e o sermão da
Semana Santa, que se chama o sermão da solidão, medita sôbre
a mais dolorida palavra de Cristo: Eli, Eli/lamma sabacthani —
Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me? — "Deus meu,

— 87
O HOMEM E A GENTE

Deus meu, por que me abandonaste? Por que me deixaste só de


ti?" é a expressão que mais profundamente declara a vontade
de Deus de se fazer homem, — de aceitar o mais radicalmente
humano, que é a sua radical solidão. Ao lado disso, a lançada
do centurião Longinos não tem tanta significação.

E êste é o momento para recordar Leibniz. Não vou, é claro,


empregar nem um instante para entrar em sua doutrina. Limito-
me a fazer notar aos bons conhecedores de Leibniz que a melhor
tradução da sua palavra mais importante, — Mônada, — não é
unidade, tampouco unicidade. As mônadas não têm janelas.
Acham-se fechadas em si mesmas, — isto é idealismo. Mas, em
seu último sentido, a concepção de Leibniz, da mônada, se
expressaria da melhor maneira chamando às mônadas "soleda­
des". Também em Homero, um centurião dá uma lançada em
Afrodite, faz manar o seu delicioso sangue de fêmea olímpica, e
a faz correr gemendo ao pai Júpiter, como qualquer mocinha
well-to-do. Não, não. Cristo foi homem, sobretudo, e, antes de
! tudo, porque Deus o deixou sozinho — sabacthani.

Conforme vamos tomando posse da vida e encarregando-nos


dela, averiguamos que, quando chegamos a ela, os demais se
tinham ido e que temos de viver o nosso radical viver... sòzi-
nhos, e que, sòmente em nossa solidão, somos nossa verdade.

Dêsse fundo de solidão radical que é, sem remédio, nossa


vida, emergimos constantemente em uma ânsia, não menos ra­
dical, de companhia. Quereriamos achar aquêle cuja vida se
fundisse integramente, se interpenetrasse com a nossa. Para tanto,
fazemos as mais várias tentativas. Uma é a amizade. Mas a
suprema entre êlas é a que chamamos de amor. O autêntico
amor não é senão a tentativa de permutar duas solidões.

À solidão que somos pertencem, — e fazem parte essencial


dela, — tôdas as coisas e sêres do universo, que estão aí em
nosso redor, formando nosso contorno, articulando nossa circuns­
tância sem que jamais se fundam com o cada um que o homem

88 —
A VIDA PESSOAL

é, — e que, ao contrário, são sempre o outro, o absolutamente


outro, — um elemento estranho e sempre mais ou menos estor-
vanre, negativo e hostil, no melhor caso: não-coincidente, que,
por isso, advertimos como alheio e fora de nós, como o forasteiro,
— porque nos oprime, comprime e reprime: o mundo.
Vemos, pois, diante de tôda a filosofia idealista e solipsista,
que nossa vida põe, com idêntico valor de realidade, êstes dois
têrmos: o alguém, o X, o Homem que vive, e o mundo, contôrno
ou circunstância em que tem de viver, queira ou não queira.
Nesse mundo, contôrno ou circunstância é que precisamos de
buscar uma realidade que, com todo rigor, diferenciando-se de
tôdas as demais, possamos e devamos chamar "social".
O homem, ao achar-se vivendo, se acha tendo de ajustar-se
a isso que chamamos contôrno, circunstância ou mundo. Se êsses
três vocábulos vão diferenciando diante de nós o seu sentido, é
coisa que agora não interessa. Neste momento, para nós, signi­
ficam a mesma coisa; a saber, o elemento estranho ao homem,
forâneo, o "fora de si", em que o homem tem de afanar-se para
ser. Esse mundo é uma grande coisa, uma imensa coisa, de limites
esbatidos, que está cheio até à borda de coisas menores, do que
chamamos coisas e costumamos repartir em ampla e gorda clas­
sificação, dizendo que no mundo há minerais, vegetais, animais
e homens. As diferentes ciências se ocupam do que são essas
coisas, — por exemplo, de plantas e animais, a biologia. Mas a
biologia, como qualquer outra ciência, é uma atividade deter­
minada, de que alguns homens se ocupam, dentro já da sua vida,
isto é: depois de já estarem vivendo. A biologia, — e qualquer
outra ciência, — supõe portanto, que, antes de começar a sua
operação, já tínhamos à vista, existiam para nós tôdas essas
coisas. E isso que as coisas são, para nós, originàriamente, pri­
meiramente, em nossa vida de homem, antes de sermos físicos,
mineralogistas, biólogos, etc., representa o que essas coisas são
em sua realidade radical. O que, a seguir, as ciências nos digam
sôbre elas, será tudo tão plausível, tão convincente, tão exato

— 89
O HOMEM E A GENTE

quanto se queira, mas é evidente que o retiraram por complica­


dos métodos intelectuais, daquilo que, inicialmente, primordial­
mente e sem mais, as coisas eram para nós, em nosso viver. A
Terra será um planeta de certo sistema solar pertencente a certa
galáxia ou nebulosa, e estará feita de átomos, cada um dos
quais contém, por sua vez, uma multiplicidade de coisas, de
quase-coisas ou enigmas que se chamam elétrons, prótons, mé-
sons, nêutrons (2), etc. Mas nenhuma dessas sabedorias existiría,
se a Terra não pre-existisse a elas como componente da nossa
vida, como algo com que temos de nos ajustar e, portanto, com
algo que nos importa, porque nos oferece certas dificuldades e
nos proporciona certas facilidades. Isso quer dizer que, nesse
plano prévio e radical de que as ciências partem e que dão por
suposto, a Terra não é nada disso que a física, que a astronomia
nos diz, mas é aquilo que me sustém firmemente, diversamente
do mar, em que me afundo (a palavra terra — terra — vem de
tersa, segundo Bréal, "a sêca"), aquilo que talvez eu tenha de
subir penosamente, porque é uma ladeira, aquilo que desço
cômodamente, porque é uma descida, aquilo que me distancia e
separa lamentàvelmente da mulher que amo, ou que me obriga
a viver perto de alguém que detesto, aquilo que faz com que
algumas coisas estejam perto de mim e outras longe, que umas
estejam aqui e outras aí e outras ali, etc., etc. Êstes e muitos outros
atributos parecidos são a autêntica realidade da Terra, tal e qual
ela me aparece no âmbito radical que é a minha vida. Notem
que todos êsses atributos —, suster-me, ter de subir ou descer a
ladeira, ter de cansar-me em ir por ela até onde está aquilo
de que necessito, separar-me dos que amo, etc. — se referem todos
a mim, de sorte que a Terra, em sua primordial aparição, con­
siste em puras referências de utilidade para mim. O mesmo en­
contrarão, se tomarem qualquer outro exemplo: a árvore, o ani­
mal, o mar ou o rio. Se fizermos abstração do que são em refe-

(2) São estas as formas, que aparecem na linguagem dos físicos brasileiros.
(N. do T.)

90 —
A VIDA PESSOAL

rência a nós, quero dizer, de seu ser para uma utilidade nossa,
como meios, instrumentos ou, vice-versa, estorvos e dificuldades
para nossos fins, ficam sem ser nada. Ou, expresso em outra forma:
tudo o que compõe, enche e integra o mundo em que, qo nas­
cer, triiomém se encontra/ não tem por si condição independente,
não tem um ser próprio, não é nada em si, — mas sòmente um
algo para ou um algo contra os nossos f.ins. Por isso, não devía­
mos tê-lo chamadcr-de-"tòlsás", diante do'sentido que esta pala­
vra tem hoje para nós. Uma "coisa" significa algo que tem o
seu próprio ser, à parte de mim, à parte do que seja para o
homem. E se isso acontece com cada coisa da circunstância ou
mundo, quer dizer que o mundo, em sua realidade radical, é um
conjunto de "algos" com os quais o homem, — eu, — pode ou
tem de fazer isto ou aquilo, — que é um conjunto de meios e
estorvos, de facilidades e dificuldades com que, para viver efeti­
vamente, me encontro. As coisas não são originàriamente "coisas",
mas algo que procuro aproveitar ou evitar, a fim de viver e
viver o melhor possível, — portanto, aquilo com que consigo ou
não fazer o que desejo: são assuntos em que ando constante­
mente. E, como fazer e ocupar-se, ter assuntos se diz em grego
práctica, prâxis, as coisas são radicalmente prágmata e minha
relação com elas, pragmática. Não há, por má ventura, vocábulo
em nossa língua ou, pelo menos, eu não o encontrei, que anuncie
com suficiente adequação o que o vocábulo prâgma, sem mais
nada, significa. Só podemos dizer que uma coisa, enquanto
prâgma, não é algo que exista por si e sem ter a ver comigo.
No mundo ou circunstância de cada um de nós, não há nada
que não tenha a ver com cada qual, e êste tem, por sua vez, a
ver com tudo quanto parte dessa circunstância ou mundo. Este
está composto exclusivamente de referências a mim e eu estou
consignado a tudo quanto há nêle, dependendo disso para o
meu bem ou para o meu mal; tudo me é favorável ou adverso,
carícia ou atrito, afago ou lesão, serviço ou dano. Uma coisa é,
pois, enquanto prâgma, algo que manipulo com determinada

— 91
O HOMEM E A GENTE

finalidade, que manejo ou evito, com que tenho de contar ou


que tenho de descontar, é um instrumento ou impedimento para...
um trabalho, um utensílio, um traste, uma deficiência, uma falha,
uma trava; em suma, é um assunto em que andar, algo que,
mais ou menos, me importa, que me falta, que me sobra, por­
tanto, uma importância. Espero agora, depois de haver acumu­
lado tôdas essas expressões, que comece a tornar-se clara a dife­
rença que existe, se se faz chocar na mente a idéia de um
mundo de coisas com a idéia de um mundo de assuntos ou im­
portâncias. Num mundo de coisas, não temos nenhuma interven­
ção: êle e tudo nêle é por si. Diversamente, num mundo de assun­
tos ou importâncias, tudo consiste exclusivamente em sua refe­
rência a nós, tudo intervém em nós, isto é, tudo nos importa e
sòmente é, na medida e no modo em que nos importa e nos afeta.
Tal é a verdade radical sôbre o que é o mundo, porque
ela expressa a sua consistência ou aquilo em que consiste origi-
nàriamente, como elemento em que temos de viver a nossa vida.
Tudo mais que as ciências nos digam, sôbre êsse mundo, é e era,
no melhor caso, uma verdade secundária, derivada, hipotética e
problemática, — pela simples razão, repito, de que começamos
a fazer ciência depois de já estar vivendo no mundo e, portanto,
sendo já o mundo isso que é. A ciência é sòmente uma das
inumeráveis práticas, ações, operações que o homem faz em sua
vida.
O homem faz ciência como faz paciência, como faz a sua
fazenda, — por isso se chama assim, — faz versos, faz política,
negócios, viagens, faz o amor, faz que faz, espera, isto é, faz.. .
tempo e, muito mais que tudo, o homem faz ilusões para si
mesmo.
Todos êsses dizeres são expressão da língua espanhola mais
vulgar, familiar, coloquial. Não obstante, vemos hoje que são
têrmos técnicos numa teoria da vida humana. Para vergonha dos
filósofos, é mister declarar que êles não tinham visto nunca o
fenômeno radical que é a nossa vida. Sempre o deixavam para

92 —
A VIDA PESSOAL

trás, e foram os poetas e romancistas, foi sobretudo o homem


qualquer que reparou nela, em seus modos e situações. Por isso,
aquela série de palavras representa uma série de títulos em que
se nomeiam grandes temas filosóficos sôbre os quais seria neces­
sário falar muito. Pense-se na profunda questão que anuncia a
expressão "fazer tempo", — portanto, nada menos que esperar,
a expectação e a esperança. Está por fazer-se uma fenomeno-
logia da esperança. Que é no homem a esperança? Pode o
homem viver sem ela?. Faz alguns anos, Paul Morand me enviou
um exemplar de sua biografia de Maupassant com uma dedica­
tória que dizia: "Envio-lhe esta vida de um homem qui n'espérait
pas..." Morand tinha razão? E possível, — literal e formalmente
possível, — um viver humano que não seja um esperar? Não é a
expectativa a função primária mais essencial da vida? e não é a
esperança o seu órgão mais visceral? Como se vê, o tema é
enorme.
E não é de menor interesse êsse outro modo de vida em
que o homem "faz que faz"? Que é êsse estranho e inautêntico
fazer, ao qual, às vêzes, o homem se dedica precisamente para
não fazer de verdade, inclusive o que está fazendo? — o escritor,
que não é escritor, mas faz de escritor, a mulher que mal é femi­
nina, mas faz de mulher, faz que sorri, faz que desenha, faz que
deseja, faz que ama, incapaz de fazer pròpriamente qualquer
dessas coisas.
Ill

ESTRUTURA DO “NOSSO” MUNDO

Achamo-nos comprometidos na difícil faina de descobrir, com


clareza irrecusável, isto é, com evidência genuína, quais as coisas,
fatos, fenômenos, entre todos os que há, que merecem, por sua di­
ferença com os demais, chamar-se "sociais". A coisa nos interessa
sobremodo, porque é urgente que estejamos bem esclarecidos
sôbre o que sejam a sociedade e os seus modos. Como todo pro­
blema rigorosamente teórico, êste é, ao mesmo tempo, um pro­
blema pavorosamente prático, no qual estamos hoje submersos,
— por que não dizê-lo? — naufragados. Aproximamo-nos dêsse pro­
blema, não por mera curiosidade, como nos aproximamos de uma
revista ilustrada, como, incorretamente, espiamos pela fresta de
uma porta para ver o que está acontecendo do outro lado dela,
ou como o erudito, freqüentemente insensível a verdadeiros pro­
blemas, remexe no papelório de um arquivo pelo mero afã de
bisbilhotar e de mergulhar nos pormenores de uma vida ou de
um sucesso. Não; no presente afã, de averiguar o que é a socie­
dade, vai tôda a nossa vida; por isso é um arqui-autêntico pro­
blema, por isso a sociedade é para nós, usando a terminologia
enunciada, de uma enorme "importância". E dizer que nisso vai
tôda a nossa vida não é simples maneira de falar, portanto
pura ou má retórica. Tanto nos vai nisso a vida que efetivamente
já nos foi. Todos nous 1'avons echappé belle. Cabe dizer que
nós, a imensa maioria dos homens atuais, podemos e devemos
considerar-nos muito concretamente como super-viventes, porque
todos, nestes anos, temos estado a ponto de morrer. . . "por ra­
zões sociais". Nos atrozes acontecimentos dêstes anos, que de

— 95
O HOMEM E A GENTE

modo algum estão concluídos e liquidados, interveio muito prin­


cipalmente, como sua causa decisiva, a confusão de que pade­
cem os contemporâneos, a respeito da idéia de sociedade.
Para executar com todo rigor o nosso propósito, retrocede­
mos ao plano de realidade radical, — radical porque nêle têm
de aparecer, assomar, brotar, surgir, existir tôdas as demais rea­
lidades —, e que é a vida humana. Desta dissemos, em resumo:

I — Que vida humana, em sentido próprio e originário, é a


de cada um, vista dela mesma; portanto, que é sempre a minha,
— que é pessoal.

II — Que ela consiste em achar-se o homem, sem saber como


nem porquê, obrigado, sob pena de sucumbir, a fazer, sempre,
algo, numa determinada circunstância, — o que chamaremos: a
circunstancialidade da vida, ou seja: vive-se em vista das circuns­
tâncias.

III — Que a circunstância nos apresenta sempre diversas pos­


sibilidades de fazer, portanto: de ser. Isso nos obriga a exercer,
queiramos ou não queiramos, a nossa liberdade. Somos livres a
fôrça. Graças a isso a vida é permanente encruzilhada e cons­
tante perplexidade. Temos de escolher em cada instante se, no
instante imediato, ou em outro futuro, vamos ser aquêle que faz
isto ou aquêle que faz outra coisa. Portanto, cada um está esco­
lhendo o seu fazer; portanto: o seu ser, — incessantemente.

IV — A vida é intransferível. Ninguém me pode substituir nessa


tarefa de decidir o meu próprio fazer e isso inclui o meu pró­
prio padecer, pois tenho de aceitar o sofrimento que me vem de
fora. Minha vida é, pois, constante e iniludível responsabilidade
ante mim mesmo. E mister que aquilo que faço — portanto, o
que penso, sinto, quero — tenha sentido e bom sentido para mim.
Se reunirmos êsses atributos, que são aquêles que mais inte­
ressam para o nosso tema, temos que a vida é sempre pessoal,
circunstancial, intransferível e responsável. E agora notem bem

96 —
ESTRUTURA DE "NOSSO" MUNDO

isto: se mais adiante nos encontrarmos com vida, nossa ou de


outros, que não possua êsses atributos, significa, sem dúvida
nem atenuação, que não é vida humana em sentido próprio e
originário, isto é, vida enquanto realidade radical, mas que será
vida e, se se quiser, vida humana em outro sentido, será outra
classe de realidade diferente daquela e, além disso, secundária,
derivada, mais ou menos problemática. Teria graça se, em nossa
pesquisa, tropeçássemos com formas de vida nossa que, ao ser
nossa, teríamos de chamar humana, mas que, por lhe faltarem
aqueles artibutos, teríamos de chamar, também e ao mesmo
tempo, não humana ou inumana. Agora entendemos bem o que
possa significar essa eventualidade, que só anuncio para estar­
mos alerta.
Mas, no presente, tornemo-nos firmes na evidência de que
só é pròpriamente humano em mim o que penso, quero, sinto e
executo com meu corpo, sendo eu o sujeito criador disso ou o
que a mim mesmo, como tal mim-mesmo acontece; portanto, só é
humano o meu pensar se penso algo por minha própria conta,
prevenindo-me do que êle significa. Só é humano aquilo que, ao
fazê-lo, faço porque tem para mim um sentido, isto é, o que en­
tendo. Em tôda ação humana há, pois, um sujeito de quem ela
emana, sujeito que, de igual modo, é agente, autor ou respon­
sável por aquilo. Consequência do anteriormente dito é que minha
humana vida, que me põe em relação direta com quanto me
rodeia, — minerais, vegetais, animais, os outros homens, — é, por
essência solidão. A minha dor de dentes — disse — sòmente a
mim me pode doer. O pensamento que na verdade penso, — e
não só repito mecânicamente por tê-lo ouvido, — tenho de pen­
sá-lo eu sòzinho ou eu na minha solidão. Dois e dois são verda­
deiramente quatro, — isto é, evidentemente, inteligivelmente, úni­
camente quando me retiro um instante para pensá-lo sòzinho.
Se vamos estudar fenômenos elementares, ao começar, temos
de começar pelo mais elementar do elementar. Ora, o elementar
de uma realidade é o que serve de base a todo o resto dela, seu

— 97
O HOMEM E A GENTE

componente mais simples e, por básico e simples, o que menos


costumamos ver, o mais oculto, recôndito, sutil ou abstrato. Não
estamos habituados a contemplá-lo e, por isso, nos é difícil reco­
nhecê-lo, quando alguém no-lo expõe e nos tenta fazer vê-lo.
Igualmente, de um bom tapête o que não vemos são os seus
fios, precisamente porque o tapête é feito dêles, porque êles
são os seus elementos ou componentes. O que nos é habitual são
as coisas, não os ingredientes de que estão feitas. Para ver os
seus ingredientes, é preciso deixar de ver a combinação dêles
que é a coisa, assim como, para poder ver os poros das pedras
de que é feita uma catedral, temos de deixar de ver a catedral.
Na vida prática e cotidiana, o que nos importa é manejar as
coisas já inteiras e feitas e, por isso, é a sua figura aquilo que
é conhecido de nós — o habitual e fácil de entender. Vice-
versa, para nos ocuparmos de seus elementos ou componentes,
temos de ir a contra-pelo de nossos hábitos mentais e des­
fazer imaginàriamente, isto é, intelectualmente, as coisas, es­
quartejando o mundo para ver o que êle tem dentro, os seus
ingredientes.
Ao haver vida humana, — disse, — há ipso facto dois têrmos
ou fatores igualmente primários tanto um quanto o outro e, além
disso, inseparáveis: o homem que vive e a circunstância, ou
mundo em que o homem vive. Para o idealismo filosófico a partir
de Descartes, só o homem é realidade radical ou primária, e
mais o: Homem reduzido a "une chose qui pense", res cogitans,
a pensamento, a idéias. O mundo não tem por si realidade, é
sòmente um mundo ideado. Para Aristóteles, vice-versa, só ori-
ginàriamente as coisas e sua combinação no mundo, têm reali­
dade. O homem não é senão uma coisa entre as coisas um pe­
daço de mundo. Só secundàriamente, graças ao fato de possuir
razão, tem um papel especial e preeminente: o de raciocinar as
demais coisas e o mundo, o de pensar o que são e o de iluminar
no mundo o que é a verdade sôbre o mundo, graças à palavra
que diz, que declara ou revela a verdade das coisas. Aristóteles,

98 —
ESTRUTURA DE "NOSSO" MUNDO

porém, não nos descobre porque o homem tem razão e palavra,


— logos significa, ao mesmo tempo, uma e outra coisa — nem
nos diz porque há no mundo, além das coisas, essa outra estra­
nha coisa que é a verdade. A existência dessa razão é, para
êle, um simples fato do mundo como qualquer outro, como o
pescoço comprido da girafa, a erupção do vulcão e a bestiali-
dade da fera. Neste decisivo sentido, digo que para Aristóteles,
o homem, com a sua razão e tudo, não é nem mais nem menos
do que uma coisa e, portanto, que para Aristóteles não há
outra realidade radical senão as coisas ou ser. Se aquêles eram
idealistas, Aristóteles e seus sequazes são realistas. A nós nos
parece, porém, que o homem aristotélico, embora dêle se diga
que tem razão, que é um animal racional; como Aristóteles não
explica, mesmo sendo filósofo, porque a tem, porque no universo
há alguém que tem razão, acaba não dando a razão dêsse enor­
me acidente e, então, acaba não tendo razão. E palmar que
um ser inteligente, que não entende porque é inteligente, não
é inteligente: sua inteligência é apenas presumida. Situar-se
mais além ou, se se quiser o giro inverso, mais aquém, mais
adiante de Descartes e Aristóteles, não é abandoná-los nem des­
denhar o seu magistério. E totalmente o contrário: só quem dentro
de si absorveu e conserva ambos pode evadir-se dêles. Esta
evasão, porém, não significa superioridade alguma em relação
aos seus gênios pessoais.
Ao partirmos, pois, da vida humana como realidade radical,
saltamos para além da milenaria disputa entre idealistas e rea­
listas e nos encontramos com o fato de que são igualmente reais
na vida, não menos primáriamente um ou o outro — Homem e
Mundo. O Mundo é o emaranhado de assuntos ou importâncias
em que o Homem está queira ou não queira, enredado; o Homem
é o ser que, queira ou não queira, se acha consignado a nadar
nesse mar de assuntos e obrigado, sem remédio, a que tudo, isso
lhe importe. A razão disso, é que, a vida se importa a si mesma;
ainda mais: não consiste, ültimamente, senão em importar-se a si

— 99
O HOMEM E A GENTE

mesma; neste sentido, deveriamos dizer, com tôda formalidade


terminológica, que a vida é o importante. Daí que o Mundo em
que ela tem de transcorrer, tem de ser, consiste em um sistema de
importâncias, assunto ou prágmata. Dissemos que o mundo ou
circunstância é, por isso, uma imensa realidade pragmática ou
prática, — não uma realidade que se compõe de coisas. "Coisas '
significa, na língua atual, tudo quanto tem por si e em si o seu
ser, portanto, que é com independência de nós. Mas os compo­
nentes do mundo vital são sòmente os que são para e em minha
vida, — não para si e em si. São sòmente enquanto faculdades e
dificuldades, vantagens e desvantagens para que o eu que cada
um é consiga ser; são, pois, com efeito, instrumentos, utensílios,
móveis, meios que me servem, — o seu ser é um ser para as mi­
nhas finalidades, aspirações, necessidades, — ou então são como
estorvos, faltas, travas, limitações, privações, tropeços, obstruções,
escolhos, remoras, obstáculos que tôdas essas realidades pragmá­
ticas acabam sendo e, por motivos que veremos, o serem "coisas"
sensu stricto é algo que vem depois, algo secundário e em todo
caso muito questionável. Não existindo em nossa língua palavra
que enuncie, adequadamente, isso que as coisas são para nós
em nossa vida, continuarei usando o têrmo "coisas" para que nos
possamos entender com menos inovações de léxico.
Agora devemos investigar a estrutura e o conteúdo dêsse
contôrno, circunstância ou mundo em que temos de viver. Já
dissemos que êle se compõe de coisas como prágmata, isto é,
que nêle nos achamos com coisas. Este achar-nos com coisas,
encontrá-las, já requer certas averiguações e vamos, passo a
passo, fazer ràpidamente a sua inteira anatomia.
1) E o primeiro que é mister dizer parece-me ser isto: se o
mundo se compõe de coisas, estas me terão de ser dadas uma
a uma. Uma coisa é, por exemplo, uma maçã. Prefiramos supor
que é a maçã do Paraíso e não a da discórdia. Nessa cena do
Paraíso descobrimos logo um problema curioso: a maçã que Eva
apresenta a Adão é a mesma que Adão vê, acha e recebe?

100 —
ESTRUTURA DE "NOSSO" MUNDO

Porque, ao oferecê-la Eva está presente, visível, patente só meia


maçã, e a que Adão acha, vê e recebe é também sòmente meia
maçã. O que se vê, o que está, rigorosamente falando, presente,
do ponto de vista de Eva, é algo diferente daquilo que se vê e
está presente do ponto de vista de Adão. Com efeito, tôda coisa
corpórea tem duas faces e, como no caso da lua, só temos pre­
sente uma dessas faces. Percebemos agora, surpreendidos, algo
que é, uma vez advertido, uma grande calinada, ou seja: que
ver, o que se chama estritamente ver, ninguém viu, nunca, isso
que chama de maçã, porque esta tem, ao que se crê, duas
faces, mas nunca está presente mais do que uma. Ademais, se há
dois sêres que a vêem, nenhum vê dela a mesma face, mas outra,
mais ou menos diferente.
Certamente eu posso dar voltas em torno â maçã ou fazê-la
girar em minha mão. Nêsse movimento vão-se-me fazendo pre­
sentes aspectos, isto é, faces distintas da maçã, cada uma em
continuidade à precedente. Quando estou vendo, o que se chama
ver, a segunda face, lembro-me da que vi antes e somo-a àquela.
Bem entendido, porém: esta soma, do recordado ao efetivamente
visto, não faz que eu possa ver juntos todos os lados da maçã.
Esta, pois, enquanto unidade total, portanto, no que entendo
quando digo "maçã", jamais me está presente; assim, não é para
mim com radical evidência, mas sòmente, em suma, com uma
evidência, de segunda ordem, — aqui corresponde à mera lem­
brança, — em que se conservam nossas experiências anteriores
acêrca de uma coisa. Daí, à efetiva presença daquilo que só é
parte de uma coisa, se vai automàticamente acrescentando o
resto dela, do qual diremos, pois, que não está apresentado,
mas sim compresentado ou compresente. Verão logo a luz que
esta idéia do com-presente, da compresença anexa a tôda pre­
sença de algo, idéia que se deve ao grande Edmundo Husserl,
nos vai proporcionar para esclarecer-nos sôbre o modo pelo qual
aparecem em nossa vida as coisas e o mundo em que as coisas
estão.

— 101
O HOMEM E A GENTE

2) O segundo que convém notar é isto: achamo-nos agora


neste salão, que é uma coisa em cujo interior estamos, E um inte­
rior por estas duas razões: porque nos rodeia ou envolve por todos
os lados e porque a sua forma é fechada, isto é, contínua. Sem
interrupção, sua superfície se nos faz presente de forma que não
vemos nada mais senão ela; não tem buracos ou aberturas, des-
continuidades, brechas ou fendas que nos deixem ver outras
coisas que não são ela e seus objetos interiores: assentos, pare­
des, luzes, etc... Imaginemos, porém, que, ao sair daqui, con­
cluída esta lição, verifiquemos que não havia nada mais além,
isto é, fora, que não havia o resto do mundo em tôrno dela,
que as suas portas dessem não para a rua, para a cidade, para
o Universo, mas para o Nada. Tal achado nos produziría um
choque de surprêsa e de terror. Como se explica êsse choque
se agora, enquanto estamos aqui, só tínhamos presente êste salão
e não havíamos pensado, — se eu não tivesse feito esta obser­
vação, — em se havia ou não um mundo fora de suas portas,
quer dizer, em se existia em absoluto um fora? A explicação não
pode oferecer dúvida. Adão também teria sofrido um choque de
surprêsa, embora mais leve, se houvesse acontecido que o que
Eva lhe dava era sòmente meia maçã, a metade que êle podia
ver, faltando a outra meia maçã compresente. Com efeito, en­
quanto êste salão é para nós sensu-stricto presente, é-nos com­
presente o resto do mundo, fora do salão e, como no caso da
maçã, essa compresença daquilo que nos é patente, mas que uma
experiência acumulada nos faz saber que, mesmo não estando
à vista, existe, está aí e se pode e se tem de contar com a sua
possível presença, é um saber que em nós se converteu em habi­
tual, que levamos em nós habitualizado. Ora, o que em nós
atua por hábito adquirido, em razão de o ser, não o advertimos
especialmente, não temos dêle uma consciência particular, atual.
Junto ao par das noções presente e compresente convém que dis-
tinguamos também êste outro par: o que para nós é atualmente,
em um ato preciso, expresso, e o que para nós é habitualmente,

102 —
ESTRUTURA DE "NOSSO" MUNDO

que está constantemente sendo para nós, existindo para nós, mas
nessa forma velada, não aparente, e como adormecida da habi-
tualidade. Anote-se, pois, na memória, êste outro par: atualidade
e habitualidade. O presente é para nós em atualidade; o com-
presente, em habitualidade.
Isso nos faz desembocar em uma primeira lei sôbre a estru­
tura do nosso contorno, circunstância, ou mundo. Esta: o mundo
vital se compõe de umas poucas coisas no momento presentes e
de inumeráveis coisas, no momento latentes, ocultas, coisas que
não estão à vista mas que sabemos ou cremos saber, — é o
mesmo, para o caso, — que poderiamos vê-las, que poderiamos
tê-las em presença. Conste, portanto, que agora chamo latente
só aquilo que em cada instante não vejo, mas que sei que ou
vi antes, ou poderia, em princípio, ver depois. Das sacadas de
Madri se vê o expressivo, grácil, denteado perfil da nossa serra
de Guadarrama; êsse perfil nos é presente; sabemos, porém, por
tê-lo ouvido ou por havê-lo lido, em textos que nos oferecem
crédito, que há também uma cordilheira do Himalaia, a qual,
nada mais que com um pouco de esfôrço e um bom talonário
de cheques no bôlso poderiamos entrever. Enquanto não faze­
mos êsse esfôrço e nos falta, como é habitual, o supra dito talo­
nário, o Himalaia está aí latente para nós, mas formando parte
efetiva do nosso mundo nessa peculiar forma de potência.
A essa primeira lei estrutural do nosso mundo, que con­
siste, — repito — em fazer notar como êsse mundo se compõe,
em cada instante, de umas poucas coisas presentes e muitíssimas
latentes, acrescentamos agora uma segunda lei não menos evi­
dente; esta: não nos é presente nunca uma coisa sòzinha, mas,
ao contrário: vemos sempre uma coisa destacando-se sôbre outras
em que não prestamos atenção, e que formam um fundo sôbre
o qual se destaca o que vemos. Aqui se percebe claramente
porque chamo a essas leis: leis estruturais; porque essas nos defi­
nem, não as coisas que há em nosso mundo, mas, a estrutura
do mundo; por assim dizer descrevem rigorosamente a sua ana-

— 103
O HOMEM E A GENTE

tomia. Assim, esta segunda lei vem dizer-nos: o mundo em que


temos de viver possui sempre dois termos e órgãos: a coisa ou
coisas que vemos com atenção e um fundo sôbre o qual aquelas
se destacam. Com efeito, note-se que constantemente o mundo
nos adianta uma de suas partes ou coisas, como um promontório
de realidade, enquanto deixa, como fundo desatendido dessa
coisa ou coisas atendidas, um segundo têrmo que atua com o
caráter de âmbito no qual a coisa nos aparece. Êsse fundo, êsse
segundo têrmo, êsse âmbito é o que chamamos horizonte. Tôda
coisa advertida, atendida, que olhamos e com que nos ocupamos,
tem um horizonte de onde e dentro do qual nos aparece. Agora
me refiro sòmente ao visível e presente. O horizonte também é
algo que vemos, que está aí para nós, patente, mas está para
nós e o vemos quase sempre em forma de desatenção, porque
nossa atenção está retida por tal ou qual coisa que representa
o papel de protagonista em cada instante de nossa vida. Mais
para lá do horizonte está aquilo que do mundo não nos é pre­
sente neste "agora", o que dêle nos é latente.
Com isso se complicou um pouco mais para nós a estrutura
do mundo, pois agora temos três planos ou têrmos nêle: em
primeiro têrmo: a coisa que nos ocupa; em segundo: o horizonte
à vista, dentro do qual ela aparece e, em terceiro têrmo: o mais
além latente "agora".
Precisemos o esquema dessa mais elementar estrutura ana­
tômica do mundo. Como se adverte, começa a mostrar-se-nos
uma diferença na significação de contôrno e mundo, que até
agora tínhamos usado como sinônimos. Contôrno é a porção do
mundo que abarca em cada momento o meu horizonte à vista e
que, portanto, me é presente. Fique bem entendido que, — como
sabemos por nossa primeira observação, — as coisas presentes
apresentam só uma face, não o seu dorso, que fica apenas com-
presentado,- vemos sòmente o seu anverso e não o seu reverso;
contôrno é, pois, o mundo patente ou semi-patente, em tôrno.
Nosso mundo, porém, contém sôbre êste, mais além do horizonte

104 —
ESTRUTURA DE "NOSSO" MUNDO

e do contorno, uma imensidade latente em cada instante deter­


minado, feita de puras compresenças; imensidade, em cada situa­
ção nossa, recôndita, oculta, tapada por nosso contorno e que
envolve êste. Repito uma vez mais: êsse mundo latente per
accidens, como dizem nos seminários, não é misterioso, nem ar-
cano, nem privado de possível presença, mas se compõe de coisas
que vimos ou que podemos ver, mas que em cada instante atual
estão ocultas, cobertas para nós por nosso contorno; mas nesse
estado de latência ou veladura, atuando em nossa vida como
habitualidade, da mesma forma que atua agora em nós, sem que
o advirtamos, o fora dêste salão. O horizonte é a linha fronteiriça
entre a porção patente do mundo e a sua porção latente.
Em tôda essa explicação para tornar o assunto mais fácil e
pronto, me referi sòmente à presença visível das coisas, porque
a visão e o visível são a forma de presença mais clara. Por isso
quase todos os têrmos que falam do conhecimento e de seus
fatores e objetos são, desde os gregos, tomados de vocábulos
vulgares que na língua se referem ao ver e ao olhar. Idéia em
grego é a vista que oferece uma coisa, seu aspecto, — que em
latim vem, por sua vez, de spec, ver, olhar. Daí: espectador o que
contempla; inspector; daí respeito, isto é, o lado de uma coisa
que se olha e considera; circunspecto, cauteloso, que olha em
redor, não se fiando nem de sua sombra, etc.
O ter eu preferido referir-me sòmente à presença visível não
quer dizer que ela seja a única, — não menos presentes são para
nós, e muito, outros caracteres. Reitero uma vez mais que, ao
dizer que as coisas nos são presentes, digo algo cientlficamente
incorreto, pouco rigoroso.
E um pecado filosófico que cometo com muito gôsto, para
facilitar o ingresso nessa maneira radical de pensar a realidade
básica e primigênia que é nossa vida. Mas conste que essa
expressão é inexata. O que nos é propriamente presente não são
as coisas, mas as cores e as figuras que as côres formam; resis­
tências a nossas mãos e membros, maiores ou menores, de um

— 105
O HOMEM E A GENTE

ou de outro cariz; isto é, durezas e branduras, a dureza do sólido,


a resistência deslisante do líquido ou do fluido, da água, do ar;
cheiros bons e maus, etéreos, aromáticos, preciosos, fétidos, bal-
sámicos, almiscarados, picantes, caprinos, repugnantes; rumo­
res que são murmúrios, ruídos, zum-zuns, guinchos, estridores,
zumbidos, estrépitos, estampidos, estrondos e, assim, até onze clas­
ses de presenças que chamamos "objetos dos sentidos", pois se
deve advertir que o homem não possui sòmente cinco sentidos
como reza a tradição mas, pelo menos, onze, que os psicólogos
nos ensinaram a diferenciar muito bem.

Ao chamá-los "objetos dos sentidos", substituímos os nomes


diretos das coisas patentes, que integram prima facie o nosso
contorno, com outros nomes que não os designam diretamente,
mas que pretendem indicar o mecanismo pelo qual os advertimos
ou percebemos. Em vez de dizer coisas que são côres e figuras,
ruídos, cheiros, etc., dizemos "objetos dos sentidos", coisas sen­
síveis que são visíveis, tangíveis, audíveis, etc. Ora, — e tenha-se
isto em muito boa conta, — que existam para nós côres e figuras,
sons, etc. graças ao fato de que temos órgãos corporais que cum­
prem a função psico-fisiológica de fazer com que os sintamos,
de produzir em nós as sensações dêles; tudo isso será tão veros­
símil, tão provável quanto queirais, mas é sòmente uma hipótese,
um intento nosso de explicar essa maravilhosa presença para
nós do nosso contorno. O inquestionável é que essas coisas estão
aí, nos rodeiam, nos envolvem e temos de existir entre elas, com
elas, apesar delas. Trata-se, pois, de duas verdades muito ele­
mentares e básicas, mas de qualidade ou ordem muito diferente:
que as coisas cromáticas e suas formas, que os ruídos, as resis­
tências, o duro e o brando, o áspero e o polido estão aí: é uma
verdade firme. Que tudo isso está aí porque temos órgãos dos
sentidos e êstes são o que se chama na fisiologia, — com um
têrmo digno do médico de Moliere, — "energias específicas": é
uma verdade, provável, sòmente provável, quer dizer hipotética.

106 —
ESTRUTURA DE "NOSSO" MUNDO

Não é isto, porém, o que nos interessa agora; ao contrário,


e muito mais: fazer notar que a existência dessas coisas, cha­
madas sensíveis, não é a verdade primária e inquestionável que
se tem a dizer sôbre o nosso contôrno, não enuncia o caráter
primário que tôdas essas coisas nos apresentam ou, dito de outro
modo, que essas coisas são para nós. Ao chamá-las "coisas" e
dizer que estão aí em nosso redor, subentendemos que nada
têm a ver conosco, que por si e primàriamente são, com indepen­
dência de nós e que, se nós não existíssemos, elas continuariam
sendo igualmente. Ora, isso já é mais ou menos suposição. A
verdade primeira e firme é esta: tôdas essas figuras de côr, de
claro-escuro, de ruído, som e rumor, de dureza e maciez são tudo
isso, referidas a nós e para nós, em forma ativa. Que quero dizer
com isso? Qual é essa atividade sôbre nós? Em que primària­
mente consistem? Muito simples.- em ser-nos sinais para a con­
duta de nossa vida, em avisar-nos que algo, com certas quali­
dades favoráveis ou adversas, que nos importa levar em conta,
está aí, ou vice-versa, que não está, que falta.
O céu azul não começa por estar lá no alto tão quieto e
tão azul, tão impassível e indiferente a nós, mas começa originà-
riamente por atuar sôbre nós, como um riquíssimo reportório de
sinais úteis, para a nossa vida, sua função, sua atividade, o que
nos faz atender a êle e, graças a isso, vê-lo, em seu papel ativo
de semáforo. Faz-nos sinais. Desde logo o céu azul nos indica
bom tempo e é para nós o primeiro relógio diurno com o sol
andejo que, como laborioso e fiel empregado da cidade, como
um serviço municipal, muito embora — caso raro! — gratuito,
realiza cotidianamente o seu percurso do Oriente ao Ocaso; e
noturnamente as constelações que nos indicam as estações do ano
e os milênios, — o calendário egípcio se baseia nas mudanças
milenárias de Sírio, — enfim, nos assinalam as horas. Mas não
pára aqui a sua atividade indicadora, advertidora, sugeridora.
Não um supersticioso homem primitivo, mas Kant, nada menos
que Kant, para tal efeito, há bem pouco tempo, — em 1788, —

— 107
O HOMEM E A GENTE

resume todo o seu glorioso saber dizendo-nos: "Duas coisas exis­


tem que inundam a alma de assombro e veneração sempre novos,
e que se tornam maiores quanto mais frequente e detidamente
delas se ocupa a nossa meditação: o céu estrelado sôbre mim e a
lei moral dentro de mim".
Quer dizer que o céu, além de nos indicar tôdas essas mu­
danças úteis, — clima, horas, dias, anos, milênios, — úteis, mas
triviais, nos indica pelo visto, com a sua noturna presença paté­
tica em que palpitam as estréias, — palpitantes não se sabe
porquê, — a existência gigante do Universo, de suas leis, de suas
profundidades e a ausente presença de alguém, de algum Ser
prepotente que o calculou, criou, ordenou, enfeitou. É inquestio­
nável que a frase de Kant não é apenas uma frase, mas des­
creve pulcramente um fenômeno constitutivo da vida humana: na
escura noturnidade de um céu limpo, o céu cheio de estréias nos
está piscando inumeràvelmente, parece querer dizer-nos algo.
Compreendemos muito bem Heine, quando nos insinua que as
estréias são pensamentos de ouro que a noite tem. O seu pal-
pebrar, ao mesmo tempo minúsculo em cada uma e imenso
na abóbada inteira, é para nós um permanente incitamento
para transcendermos do mundo, que é o nosso contorno, para o
radical Universo.
IV

A APARIÇÃO DO “OUTRO”

Era urgente, para mim, o fazer ver como os "algos" pre­


sentes no mundo vital, e que vão constituir os assuntos e impor­
tâncias, positivas e negativas, com que nos temos de acomodar,
eram puras presenças e compresenças sensíveis, — côres, figuras,
ruídos, olores, resistências, etc., — e que essa sua presença atua
sôbre nós em forma de sinais, indicações, sintomas. Para tal
fim, trouxe o exemplo do céu. Esse exemplo do céu, porém, per­
tence muito especialmente à visibilidade. E, embora o visível e
a visão nos ofereçam maior clareza como exemplos, para expor
a primeira defrontação com a nossa doutrina, seria grave êrro
supor que a visão é o "sentido" mais importante. Mesmo do
ponto de vista psico-fisiológico, que é um ponto de vista subal­
terno, parece cada dia mais verossímil que foi o tato o sentido
originário, do qual os demais se foram diferenciando. Do nosso
ponto de vista mais radical, é coisa clara que a forma decisiva
de nosso trato com as coisas, é efetivamente o tato. E, se isto é
assim, forçosamente o tato e o contato são o fator mais peremptó­
rio na estruturação do nosso mundo.
Indiquei ainda que o tato se distingue de todos os demais
sentidos ou modos de presença, porque duas coisas sempre se
apresentam nêle, de uma vez, e inseparáveis: o corpo que toca­
mos e o nosso corpo com que o tocamos. E, pois, uma relação
não entre um fantasma e nós, como na pura visão, mas entre
um corpo alheio e o nosso corpo. A dureza é uma presença em
que se fazem presentes a um tempo algo que resiste e o nosso
corpo; por exemplo, nossa mão que é resistida. Sentimos nela,
pois, ao mesmo tempo, o objeto que nos oprime e o nosso

— 109
O HOMEM E A GENTE

músculo oprimido. Caberia por isso dizer que no contato senti­


mos as coisas dentro de nós, — entenda-se, — dentro do nosso
corpo, e não como na visão e audição, fora de nós, ou como no
sabor e no olfato as sentimos em certas porções da nossa su­
perfície corporal: a cavidade nasal e o paladar. Advertidos disso,
sem grande espavento, dávamos um grande passo: o de perce­
ber que o contorno, o mundo patente se compõe, antes de tudo
e fundamentalmente, de presenças, de coisas que são corpos. E o
são porque elas se chocam com a coisa que existe mais próxima
do homem: o eu que cada um é, a saber: o seu corpo. Nosso
corpo faz com que sejam corpos todos os demais e com que o
seja o mundo. Para o que costuma chamar-se um "espírito puro",
os corpos não existiríam, porque não poderia tropeçar com êles,
sentir as suas pressões e vice-versa. Não poderia manejar as
coisas, transferi-las, conformá-las, triturá-las. O "espírito puro",
portanto, não pode ter vida humana. Deslocar-se-ia pelo mundo
sendo êle mesmo um fantasma. Recorde-se o conto de Wells em
que,se fala de uns sêres sòmente com duas dimensões, sêres que
por isso não podem penetrar em nosso mundo, onde tudo tem
pelo menos três dimensões, mundo, pois, que está feito de cor­
pos. Assistem ao espetáculo das vidas humanas,- vêem, por exem­
plo, que um malvado vai assassinar uma velha adormecida, mas
êles não podem intervir, não podem preveni-la e sofrem e se
angustiam de seu ser fantasmal.
O homem é, pois, antes de tudo, alguém que está em um
corpo e que neste sentido, — sòmente neste sentido, repare-se, —
é apenas o seu corpo. Êste simples mas irremediável fato vai de­
cidir da estrutura concreta do nosso mundo e, com isso, da nossa
vida e destino. O homem se acha, para tôda a vida, recluso no
seu corpo. Razão de sobra tinham os pitagóricos em brincar com
o vocábulo (1) a êste propósito, — trocadilho de que usavam não

(1) Ortega não é um ortodoxo da terminologia linguística; mantivemos os seus


usos de palavras como "vocábulo", "fonema", "palavra", e, outras, na língua
própria do Autor (N. do T.)

110 —
A APARIÇÃO DO "OUTRO"

para riso e festa, mas gravemente, doloridamente, dramática­


mente, melancòlicamente. Sabido que em grego corpo é sôma e
tumba, sêma, repetiam sôma sêma, — corpo tumba, corpo-cárcere.
O corpo em que vivo infuso, recluso, faz de mim inexorà-
velmente um personagem espacial. Põe-me em um lugar e me
exclui dos demais. Não me permite ser ubíquo. Em cada instante
me prega como um prego num lugar e me desterra do resto. O
resto, isto é, as demais coisas do mundo estão em outros lugares
e só posso vê-las, ouvi-las e talvez tocá-las, do lugar em que
estou. Chamamos o sítio em que estou: "aqui" — e o próprio
fonema castelhano, por seu acento agudo e o seu fulminante
cair, — em sòmente duas sílabas, — do a tão aberto ao i tão
pontiagudo, e por seu acento tão vertical, — expressa maravi­
lhosamente essa martelada do destino que me prega como um
prego... aqui.
Isto traz consigo automàticamente algo novo e decisivo para
a estrutura do mundo. Eu posso mudar de lugar, mas qualquer
que êle seja será o meu "aqui". Pelo visto, aqui e eu, eu e aqui,
somos inseparáveis por tôda a vida. Ao ter o mundo, — com
tôdas as coisas dentro, — de ser para mim d'aqui, se converte
automàticamente em uma perspectiva, isto é: suas coisas estão
perto ou longe d'aqui, à direita ou à esquerda d'aqui, acima ou
abaixo d'aqui. Esta é a terceira lei estrutural do mundo e do
homem. Não se esqueça que aquilo que chamo homem não é
senão cada um, e, portanto, que estamos falando do mundo de
e para cada um, — não do mundo objetivo de que nos fala o
física. Não sabemos o que seja o mundo físico, nem sequer o
que seja o mundo objetivo, portanto: um mundo que não é sò­
mente o de cada um, mas o comum a todos os homens. Essa
terceira lei estrutural diz que o mundo é uma perspectiva. A coisa
não é insignificante. Pelo menos, esta súbita aparição em nosso
horizonte do "perto" e do "longe" é de não pequena gravidade.
Porque êles significam distâncias, surgem então: o próximo e o
distante, e, no melhor caso: o que está próximo me é odioso,- e

— 111
O HOMEM E A GENTE

o que está distante é a mulher de que se está enamorado. Além


disso, essa distância, que é a lonjura, não é geométrica, nem é
aquela da ciência física, é uma distância que, se necessito ou
desejo vencer, tenho e, sobretudo, teve o homem primitivo de
percorrê-la com grave gasto do seu esfôrço e do seu tempo.
Hoje, para vencer as distâncias não se gastam essas duas coisas,
mas se gasta dinheiro, cuja obtenção implica dispêndio de tempo
e de esfôrço, — dispêndios que se medem por "horas-trabalho".

Já veremos que outro homem tem também o seu aqui, —


mas êsse aqui do Outro não é o meu. Nossos "aquis" se excluem,
não são interpenetráveis, são diferentes e, por isso, a perspectiva
em que o mundo aparece a êle é sempre diferente da minha
perspectiva. Por isso, não coincidem suficientemente os nossos
mundos. Eu estou, em princípio, no meu e êle no seu. Nova causa
de solidão radical. Não sòmente estou fora do outro homem,
mas também o meu mundo está fora do dêle: somos, mútua­
mente, dois "foras" e por isso somos radicalmente forasteiros.

Longe é o que está a considerável distância do meu aqui.


Longe é o que está ali.

Entre o aqui e a distância do ali, há um têrmo médio, — o


aí, — isto é, o que não está no meu aqui, mas sim próximo.
Será o aí o lugar onde está... o próximo? O aqui, demonstra­
tivo adverbial de lugar, procede linguisticamente de um pronome
pessoal.

O fato de ser o homem corpo determina, pois, não sòmente


que tôdas as coisas sejam corpos, mas que tôdas as coisas do
mundo estejam colocadas com relação a mim. Tôdas as coisas,
inclusive as que não são corpóreas! Porque se as há, — até agora
não as encontramos em nossa análise, — terão, (já o veremos), de
manifestar-se por meio de corpos. As imagens de Homero não são
corpóreas e não existiríam, não seriam para nós, se não tivessem
sido escritas em pergaminhos. Ao serem, imediata ou mediatamente,
corpos, as coisas e ao estarem colocadas com relação ao mim,

112 —
A APARIÇÃO DO "OUTRO'

perto ou longe, à direita, ou à esquerda, acima ou abaixo d'aqui,


— d'aqui que é o locus o lugar do meu corpo, — advém o estarem
repartidas e advém que cada uma se acha em, está em ou pertence
a uma região do mundo. As coisas, assim, se agrupam em regiões
espaciais, pertencem a êste lado ou a aquêle lado do meu mundo.
Há coisas, objetos ou sêres humanos, por exemplo, que per­
tencem ao lado do meu mundo que chamo o Norte, e outras que
pertencem ao lado que chamo Oriente. De tal modo é essa atri­
buição a determinada região, essa localização das coisas cons­
tituinte do homem, que até o cristianismo necessita situar a Deus;
por assim dizer: instalá-lo em um lugar do espaço, e, por isso,
qualifica a Deus atribuindo-lhe, — como algo essencial a êle,
que o define e o precisa, — um local onde normalmente está,
quando cotidianamente reza: "Pai nosso que estais no Céu". Pais
há muitos, mas singulariza a Deus o ser aquêle que habita no
alto, na região das estréias fixas ou firmamento. E, contrapos-
tamente, aloja o diabo no outro extremo, na região mais de
baixo, infer-ior, a saber: o inferno. O diabo acaba assim sendo o
antípoda de Deus. Também os gregos primitivos situavam na
região inferior ou infernal não poucos sêres e coisas. Mas, para
êles, essa região inferior significava simplesmente ser a base ou
peanha do mundo, em que tudo mais se apoia e se sustém. A
essa região base chamavam Tártaro. Por certo, como não po­
diam, — mesmo dado o primitivismo de sua mentalidade, — fazer
menos do que perguntar-se como, por sua vez, se sustém o tár­
taro, imaginavam que um animal de larguíssima e dura carapaça
o sustinha. Êsse animal era a tartaruga, que em italiano e em
português conserva ainda o seu nome grego menos deformado.
A nossa tartaruga, com efeito, não é senão o vocábulo grego
tartarougos, — o que sustém o Tártaro (2).
Nada disso, porém, — está claro — é fenômeno autêntico
ou radical. Trata-se já de interpretações imaginárias, com as quais

(2) Ou o "habitante" do Tártaro, conforme J. Corominas <N. do T.)

— 113
O HOMEM E A GENTE

a mente do homem reaje ante as coisas do mundo e a sua pri­


mária perspectiva e localização com respeito à sua pessoa. Para
tal fim, inventa coisas imaginárias, que situa em regiões imagi­
nárias. Aludi a isso para mostrar até que ponto é constitutivo
do homem o sentir-se em um mundo regionalizado, em que acha
cada coisa como pertencendo a uma região. Mas não tem sentido
que nos ocupemos, neste curso, daquêles locais e localizações ima­
ginárias de um mundo que já não é o primário e real da vida,
mas uma idéia ou imagem do mundo.
O haver aparecido, neste inventário que fazemos do mundo
vital, esta coisa, — a mais próxima de cada um, — que é o
seu corpo e, — em choque ou atrito com êle, todos os demàis
corpos, e a sua localização em perspectiva e regiões, — não nos
deve fazer esquecer que, ao mesmo tempo, — portanto: nem
antes, nem depois, mas ao mesmo tempo, — as coisas são para
nós instrumentos ou estorvos para a nossa vida; o seu ser não
consiste em ser cada uma por si e em si; ao contrário: elas têm
sòmente um ser para. Torne-se clara esta noção de "ser para"
como a que expressa o ser originário das coisas enquanto "coisas
da vida", assuntos e importâncias. O conceito de uma coisa nos
pretende dizer o que uma coisa é, o seu ser; êste ser nos é
declarado ou manifestado na definição. Pois bem: recorde-se o
brinquedo das crianças quando se aproximam de um adulto e,
para pô-lo num apêrto lhe perguntam: "Que é uma matraca?"
O adulto, como não encontra imediatamente as palavras que defi­
niríam a matraca, faz instintivamente o gesto de mover uma ma­
traca na mão, gesto que se torna um pouco ridículo e, em con-
seqüência do que, as crianças riem. A verdade, porém, é que
êsse gesto é como uma charada em ação cujo sentido, — o da
charada, — é efetivamente algo para dar meias voltas; portanto
para fazer algo com ela. Trata-se de um ser para. Acontece o
mesmo se nos perguntam o que é uma bicicleta; antes de que
respondamos com palavras, os nossos pés engendram um germe
de movimento pedalante. Ora, a definição verbal que logo enun­

114 —
A APARIÇÃO DO "OUTRO'

ciaria formalmente o ser da matraca, da bicicleta ou do céu, da


montanha, da árvore, etc., não fará mais do que exprimir com
palavras aquilo que êsses mesmos movimentos significam; e o
seu conteúdo não seria, não é senão o de nos fazer saber algo
que o homem faz ou padece com uma coisa; portanto: todo
conceito é a descrição de uma cena vital (3).
Aqui não nos ocupamos do que são em absoluto as coisas,
supondo-se que as coisas sejam em absoluto. Limitamo-nos rigo­
rosa e metodicamente a descrever o que as coisas são patente­
mente, — portanto, não hipotèticamente, — aí, no âmbito da rea­
lidade radical primária que é a nossa vida; e achamos que,
nêsse âmbito, o ser das coisas não é um presumido ser em si,
mas o seu evidente ser para, o seu servir-nos ou impedir-nos; então
dizemos que o ser das coisas como prágmata, assuntos ou impor­
tâncias, não é a substancialidade, mas a "serviçalidade" ou ser­
vidão, que inclui a sua forma negativa, a "desserviçalidade", o
ser-nos dificuldade, estôrvo, dano. Ora, se analisarmos essa ser­
viçalidade das coisas, — fiquemos agora com a positiva para

(3) A condição primária das coisas consiste, pois, em servir-nos paro o impe­
dir-nos de. Certamente a metafísica nasceu, lá na Grécia, no primeiro terço
do século V, como a pesquisa do ser das coisas, entendendo-se por seu ser o
que elas são, — diriamos, — por sua conta é não meramente o que são poro
nós. É o ser em si e por si das coisas. Aquela ciência que um cartesiano,
no final do século XVII, chamou ontologia, se esforça denodadamente, sua
e se extenua, há vinte e cinco séculos, para encontrar êsse ser das coisas.
A pertinácia do esfôrço revela que êsse ser das coisas, que se procura, não
foi ainda suficientemente encontrado. Isso seria razão nada parva para sus-
peitar-se que elas não o têm; mas é sem dúvida, razão de sobra para
suspeitar que, se o têm, êle é problemático e, por outro lado é evidente que
não o ostentam. De outro modo, ser-nos-ia notório e mais que sabido. Isto
me levou, faz muitos anos, à audaciosa opinião de que o ser das coisas,
enquanto ser próprio delas, à parte do homem, é sòmente uma hipótese, co­
mo o são tôdas as idéias científicas. Com isso, pomos de pernas para o ar
tôda a filosofia, faina endiabrada da qual, por fortuna, podemos exonerar-
nos neste curso, cujo tema não é a ontologia. Direi sòmente que, entre as
muitas respostas que se deram à pergunta: "que são as coisas?", teve a
melhor sorte na História aquela que Aristóteles deu, dizendo que são subs­
tâncias, portanto, que as coisas consistem ãltimamente em substancialidade.
Mas é também conhecido de todos o fato de que essa resposta jó deixou, há
muito, de satisfazer às mentes ocidentais, e foi preciso procurar outras.

— 115
O HOMEM E A GENTE

simplificar, já que com isso temos o suficiente, — se analisarmos


essa sua serviçalidade, acharemos que cada coisa serve para
outra que, por sua vez, serve para uma terceira, e assim suces­
sivamente numa cadeia de meios para, — até chegarmos a uma
finalidade do homem. Por exemplo, a coisa que chamamos en-
xôfre serve para fazer pólvora, a qual serve para carregar fuzis
e canhões, os quais servem para fazer a guerra, a qual serve
para... Bem: para que serve a guerra?... Mas essa cadeia
serviçal ou de meios para, que termina na guerra, não é a única
que parte do enxôfre e de sua primeira utilização para fabricar
pólvora. Porque a pólvora serve também para carregar espin­
gardas e rifles que servem para caçar, faina muito diferente de
guerrear, caça que serve para uma finalidade humana que tratei
de elucidar num vagabundo prólogo pôsto ao livro de arte vena-
tória escrito pelo grande caçador conde de Yebes (4), um homem
que já caçou em tôdas as paragens e já dormiu em tôdas as
festas da sociedade elegante; um homem, portanto, que na selva
caça a marmota e no sarau a imita.
Mesmo sem querer descobrir a pólvora, — ela se vai desco­
brindo por si, — tal como essas duas séries de serviços articula­
dos, que partem do enxôfre e da pólvora elaborada com êle,
encontramos uma terceira,- esta: com a pólvora se fazem foguetes
e com os foguetes se fazem, sobretudo, festas populares. As festas
são uma das grandes coisas que há no mundo, com as quais
e nas quais o homem se encontra.
Temos, assim, que as coisas, enquanto serviços positivos ou
negativos, se articulam umas com as outras, formando arquite­
turas de serviçalidade, como a guerra, a caça, a festa. Formam
dentro do mundo como pequenos mundos particulares a que cha­
mamos o mundo da guerra, o mundo da caça, etc., como há o
mundo da religião, dos negócios, da arte, das letras, da ciên­
cia. Eu os chamo campos "pragmáticos". E esta é, por enquanto,

(4) ["Prólogo a Veinte afios d» coza mayor, do Conde de Yebes" obras Com­
pletas, tomo VI.]

116 —
A APARIÇÃO DO "OUTRO'

a ultima lei estrutural do mundo, que enuncio assim: nosso mundo,


o de cada um, não é um totum revolutum; ao contrário, está
organizado em campos "pragmáticos". Cada coisa pertence a
algum ou alguns dêsses campos, em que articula o seu ser para
com o de outros e assim sucessivamente. Ora, "êsses campos
pragmáticos" ou "campos de assuntos e importâncias", ao serem,
de uma ou de outra maneira, imediata ou mediatamente, cam­
pos de corpos, estão localizados com maior ou menor precisão
e exclusividade, isto é, estão inscritos predominantemente, ao
menos, em regiões espaciais. Poderiamos, pois, em vez de cam­
pos dizer "regiões pragmáticas", mas é melhor falarmos espe­
cialmente de "campos", usando êsse têrmo da física recente, que
enuncia um âmbito constituído por puras relações dinâmicas.
Nossa relação prática ou pragmática com as coisas, e destas
conosco, mesmo sendo corpórea, ao cabo, não é material, mas
dinâmica. Em nosso mundo vital não há nada material: meu
corpo não é uma matéria, nem o são as coisas que se chocam
com êle. Aquêle e estas, — diriamos para simplificar, — são
puro choque e, portanto, puro dinamismo.
O homem vive em um enorme âmbito, — o Mundo, o seu,
o de cada um, — ocupado por "campos de assuntos", mais ou
menos localizados em regiões especiais. E cada coisa que nos
aparece, nos aparece como pertencendo a um dêsses campos ou
regiões. Daí o fato de que, mal a advertimos, fulminantemente
há em nós como um movimento que nos faz referi-la ao campo,
região ou, — digamo-lo agora, — ao lado da vida a que per­
tence. E como as coisas têm seu nome, — entre as coisas que en­
contramos no mundo estão os nomes destas mesmas coisas, —
basta que eu pronuncie uma palavra para que, com ou sem
palavras expressas os senhores "se digam": isso, que se nomeou,
pertence a tal ou qual lado da vida. Se eu dissesse agora "o
vestido", as mulheres que me ouvissem dirigiríam a sua mente,
como uma nave dirige a sua proa, para o lado da vida que é
a elegância indumentária; e se digo "plano Marshall", todos sem

— 117
O HOMEM E A GENTE

necessidade de qualquer reflexão e sem se ocupar agora do


assunto, automàticamente impelirão, por assim dizer, a palavra
ouvida para um certo "lado" de suas vidas intitulado "política
internacional". "Impelem, por assim dizer", — foi a minha expres­
são, mas agora tiro o "por assim dizer", — impelem porque, na
verdade, não se trata de uma metáfora mas de uma efetiva rea­
lidade. Com meios um pouco, — nada mais que um pouco, —
refinados, de laboratório fisiológico, se pode demonstrar que, ao
ouvir a palavra, em nossos músculos se produz uma minúscula
contração, perceptível com aparelhos registradores, contração que
inicia e que é como germe de um movimento para impelir algo,
— neste caso, a palavra, — numa direção espacial determinada.
Aqui há um tema interessante para a investigação dos psicólogos.
Todos nós levamos em nossa imaginação um diagrama do mundo,
a cujos quadrantes e regiões referimos tôdas as coisas, inclusive,
como já disse, as que não são imediatamente corpóreas, mas,
conforme se costumam chamar "as espirituais", como idéias, sen­
timentos, etc. Pois bem, seria curioso precisar-se para que região
dêsse diagrama imaginário cada indivíduo impele as palavras
que ouve ou diz (5).

(5) Eu tinha uma tia que, cada vez que pronunciava a palavra "demônio", di­
rigia um olhar iracundo e lançava enèrgicamente o seu queixo em direção
ao centro da terra. Notava-se palmarmente que ali havia, com tôda clareza
e precisão, situado o inferno e nela instalado o diabo, como se o estivesse
vendo. Igualmente, se se fizesse em mim essa investigação de laboratório, é
quase certo que ao ouvir eu, por exemplo, "Conferência de Paris" e dirigi-
lo para o lado da minha vida que é a "política internacional", meus músculos
empurrariam a palavra na direção de uma linha oblíqua, secante do horizonte
e dirigida para baixo e para um lado. Isso seria uma curva pantomima, —
somos, sobretudo: é o nosso corpo permanente pantomima, — do meu fato
mental consistente em que detesto tôda o política, em que a considero como
uma coisa sempre e irremediàvelmente má; ao mesmo tempo, porém, inevi­
tável e constituinte de tôda sociedade. Permito-me o luxo de enunciar êsse
fato que se dá em mim, sem mais explicações nem fundamentos porque, nou­
tro lugar, espero fazer ver, com perfeita diafaneidade e evidência, o que
é a política, e porque no universo há uma coisa tão estranha, tão insa­
tisfatória e, não obstante, tão imprescindível. Veremos, então, como o por­
que tôda política, mesmo a melhor, é forçosamente má; ao menos, no
sentido em que são maus, por muito bons que sejam, um aparelho ortopé­
dico ou um tratamento cirúrgico.

118 —
A APARIÇÃO DO "OUTRO"

O mundo de nossa vida e, portanto, nossa vida nêle, estão


constituídos por uma orientação de lados diversos que chamei
"campos pragmáticos". E aqui se oferece momentânea ocasião
para que vejamos, num ressalto e, graças a isso, com clareza, —
embora não me vá deter morosamente em sua análise, — o que
é o gênio do poeta; ainda mais; a própria poesia.
Há muito tempo sustento nos meus escritos que a poesia é
um modo de conhecimento ou, por outras palavras, que o dito
pela poesia é a verdade. A diferença entre a verdade poética
e a científica, tem origem em caracteres secundários,- secundá­
rios em comparação com o fato de que tanto uma como outra
dizem coisas que são verdade, isto é, coisas que efetiva e real-
mentemente existem no mundo de que falam. Proust, o grande
romancista, não tinha a menor idéia científica de que a vida
humana e o seu mundo estivessem realmente estruturados numa
articulação de lados. Não obstante, nos primeiros tomos do seu
fluvial romance nos fala de um adolescente cuja sensibilidade
estava prematuramente desenvolvida, adolescente que é êle pró­
prio. O rapaz vive durante o verão no Hotel Palace de uma cida-
dezinha normanda, lugar de veraneio elegante. A família o leva
a passear tôdas as tardes; umas vêzes tomam a direção da esquer­
da, outras vêzes a da direita. Na direção da esquerda, está a
casa de um senhor Swann, mais ou menos amigo da família,
um homem de origem judaica, sem estirpe ilustre, mas que tem
a seu favor o raro talento da elegância, a que se acrescentam
alguns retorcidos vícios. Na direção da direita está o palácio es­
tivai dos Guermantes, uma das famílias francesas de mais antiga
nobreza. Para um adolescente, cuja hipersensibilidade alerta re­
gistra as menores diferenças e elabora, numa vegetativa ampli­
ficação de fantasia, todo dado real que se lhe atira, êstes dois
nomes: Swann e Guermantes, representam dois mundos, isto é, em
nossa terminologia, dois campos pragmáticos distintos, pois o fato
de que Swann, mesmo sendo judeu, mesmo nascido sem perga­
minhos, filtre uma das dimensões da sua vida no mundo Guer-

— 119
O HOMEM E A GENTE

mantes, não faz senão acentuar mais a diferença entre ambos os


mundos. Swann e Guermantes são, pois, como dois pontos car­
deais contrapostos, como dois quadrantes do grande mundo uni­
tário do rapaz, dos quais sopram sôbre a alma dêste, em rajadas
descontínuas, os estímulos, incitamentos, advertências, entusiasmos,
tristezas sobremodo diferentes. E eis que, genialmente, nos intitula
Proust dois de seus tomos: um, Du côté de chez Swann, — "Pelo
lado de Swann", — e o outro, Do lado dos Guermantes. Ora, com
o que espusemos na lição anterior e com o que já se deu desta,
digam-me se êsses títulos de intuição poética não são dois têr-
mos técnicos na teoria científica da vida! Bem faria cada um
em precisar para si quais são os lados da sua vida de onde
sopram sôbre êle, com mais insistência e veemência e abun­
dância, os ventos do seu viver!
Com isso podemos dar por terminado o estudo da estrutura
formal que possui o mundo em que cada um vive. Note-se que
êsse mundo, já quanto à sua estrutura, muito pouco se parece com
o mundo físico; quero dizer, com o mundo que a física nos revela.
Conste, porém, que não vivemos nesse mundo físico; simplesmente
o pensamos, o imaginamos. Porque, se disse antes que, há muitos
anos, sustento que a poesia é uma forma do conhecimento, acres­
cento agora que, desde aquêles mesmos anos, procuro fazer com
que os demais percebam que a física é uma forma de poesia,
isto é, de fantasia, e até é preciso acrescentar, de uma fantasia
mudadiça que hoje imagina um mundo físico diferente do de
ontem e amanhã imaginará outro diferente do de hoje. Onde
efetivamente vive cada um é nesse mundo pragmático, imenso
organismo de campos de assuntos, de regiões e de lados e, no
essencial, invariável desde o homem primigênio.
Já é hora de, prescindindo dessa estruturação forma! do
mundo, darmos uma olhada ao seu conteúdo, para as coisas que
nêle aparecem, assomam, brotam, surgem, em suma, ex-istem, afim
de descobrirmos entre elas algumas que possamos, que devamos
chamar sociais e sociedade. Aqui nosso tema nos obriga a não

120 —
A APARIÇÃO DO "OUTRO'

nos demorarmos no caminho, apesar das interessantes questões


que nos vão saltar à vista. Podemos, veiozmente e sem pouso,
atravessar num vôo quanto evidentemente não possa pretender ser
social ou que, pelo menos, não o seja com evidência e saturada­
mente. Com efeito, as coisas que há no mundo se acham, por
muito antiga tradição, classificadas em minerais, vegetais, ani­
mais e humanas. Pergunte-se cada um se o seu próprio compor­
tamento diante de uma pedra pode qualificar-se de social. Evi­
dentemente, não. A evidência se impõe se, indo ao outro extremo
daquela série, o comparamos com o nosso comportamento diante
de um homem. A diferença é palmar. Tôda ação do homem,
adulto para algo ou sôbre algo conta, — é claro, — de ante­
mão, com suas experiências anteriores referentes a êsse algo,
de sorte que a sua ação parte das qualidades que, segundo o
seu saber, essa coisa possui. Sabe, em nosso exemplo, que a
pedra é muito dura, mas não tanto quanto o ferro, e se o que
se propõe é quebrá-la em fragmentos para alguma finalidade
sua, sabe que basta batê-la com um martelo. Tem, pois, diante
de si, para orientar a sua ação, êstes dois atributos da pedra:
que é dura, mas frágil, fragmentável sem extrema dificuldade.
Acrescentem os senhores as demais qualidades que, em nosso trato
com a pedra, aprendemos. Entre elas, há uma, decisiva para o
nosso tema. Sabemos que a pedra não se enteira da nossa ação
sôbre ela e que o seu comportamento, enquanto a martelamos,
se reduz a quebrar-se, fracionar-se, porque isso é a sua mecânica
e inexorável condição. À nossa ação sôbre ela não corresponde,
por sua parte, nenhuma ação sôbre ou para nós. Nela não há
em absoluto capacidade de qualquer ação. Em rigor tampouco
devemos chamar ao que lhe acontece em relação a nós: paixão,
— no sentido de padecer. A pedra não faz nem padece, mas
nela se produzem mecânicamente certos efeitos. Portanto, em
nossa relação com a pedra, nossa ação tem uma direção única
que vai de nós à pedra e ali, sem mais nada, termina. O mes­
mo acontece, pelo menos macroscòpicamente, com a planta, sem

— 121
O HOMEM E A GENTE

outra diferença senão a existente entre os atributos de um ve­


getal e os de um mineral. Mas já em nosso trato com o animal
a relação se modifica. Se quisermos fazer algo com um animal,
intervém em nosso projeto de ação a convicção de que eu existo
para êle e que êle espera uma ação minha sôbre êle, se prepara
para ela e prepara a sua reação a essa minha esperada ação.
Não há, portanto, dúvida sôbre que, em minha relação com o
animal, o ato do meu comportamento para êle não é, como era
diante da pedra, unilateral; ao contrário, o meu ato, antes de
ser executado, quando o estou projetando, já conta com o ato
provável de reação por parte do animal, de maneira que o
meu ato, mesmo em estado de puro projeto, vai ao animal, mas
volta a mim em sentido inverso, antecipando a réplica do ani­
mal. Faz, pois, uma viagem de ida e volta, viagem que não é,
senão, a representação, por adiantamento, da relação real que
entre ambos, — o animal e eu, — vai realizar-se. Quando me
aproximo do cavalo para arreá-lo, conto, desde logo, com o
seu possível coice, e, quando me aproximo do mastim do reba­
nho, conto com a sua possível mordida e tomo, num caso e no
outro, as minhas precauções.
Observe-se o novo tipo de realidade que, diante daquilo
que não são pedras e vegetais, aparece em nosso mundo quando
encontramos o animal. Se, para descrever a relação real, diante
da pedra, dizemos: a pedra e eu somos dois, falamos inadequa­
damente. Porque nesse plural "somos", que neste caso é um dual
ou plural sòmente de dois, unimos e igualamos no ser a pedra
e o homem. Ora, a pedra é pedra para mim, mas eu não sou
para ela, para a pedra, em absoluto. Não cabe, pois, comuni­
dade, — a comunidade que êsse plural dual expressa, — entre
mim e ela. Mas no caso do animal a realidade varia. Não só o
animal é para mim animal e tal animal, — observem que o meu
comportamento varia segundo seja a espécie: não me comporto
da mesma forma diante de um pintassilgo e diante de um touro
do plantei de Miúra, — não sòmente o animal o é para mim.

122 —
A APARIÇÃO DO "OUTRO"

mas também eu o sou para êle, a saber, sou para êle outro ani­
mal.
A conduta do animal conosco poderia resumir-se e simbo­
lizar-se dizendo-se que o animal nos está chamando a nós, cons­
tantemente, de animais. Não parece duvidoso que o que acon­
tece ao asno, quando o arrieiro lhe sova o lombo a pauladas,
é algo que seria mister exprimir assim: que estúpido é êste ani­
mal que, no mundo da fábula, onde até nós os asnos falamos,
chamamos de homem! Que diferença com o outro animal que
entra na cavalariça e me lambe e ao qual chamo de cachorro!
O que não parece questionável é que dizer "o animal e eu
somos" tem já alguma dose de sentido, que faltava em absoluto
em "a pedra e eu somos". Somos o animal e eu, já que mútua­
mente somos um para o outro, já que me é notório que à minha
ação sôbre o animal êste vai responder-me. Esta relação é, pois,
uma realidade que necessitamos denominar "mutualidade ou re­
ciprocidade". O animal me aparece, diversamente da pedra e
da planta, como uma coisa que me responde e, neste sentido,
como algo que não só existe para mim mas que, ao existir eu
também para êle, co-existe comigo. A pedra existe, mas não co­
existe. O co-existir é um entrelaçar as existências, um entre ou
inter-existirem dois sêres, não simplesmente "estar aí" sem nada
a ver um com o outro.
Ora, não é isto o que primeiramente chamamos "trato-so-
cial"? O vocábulo social não assinala de início uma realidade
consistente em que o homem se comporta diante de outros sêres,
os quais, por sua vez, se comportam com relação a êle, — por­
tanto, a ações em que, de um modo ou de outro, intervém a
reciprocidade em que não só eu sou o centro emissor de atos
para outro ser, mas êsse outro ser é também centro emissor de
atos para mim e, portanto, na minha ação tem de já estar ante­
cipada a sua, conta-se com a sua, porque nela se conta tam­
bém com a minha; — enfim, para dizer o mesmo noutra expres­
são, que os dois atuantes se respondem mútuamente, isto é, se

— 123
O HOMEM E A GENTE

co-rrespondem? O animal "responde" com os seus atos à minha


presença, — me vê, me procura ou me foge, me quer ou me
teme, me lambe a mão ou me morde, me obedece ou me aco­
mete; em suma, me reciprocar a seu modo. Êsse modo, não obstante,
é, conforme a experiência me patenteou, muito limitado. Ao cabo,
é sòmente a um reduzido repertório de atos meus aos quais o
animal co-responde e isso com um repertório também muito
exíguo de atos seus. Mais ainda: posso estabelecer uma escala
que mede em cada espécie a amplitude dêsse repertório.
Essa escala, portanto, tabulará também a quantidade de
co-existência de que posso usufruir com o animal. Ela nos mani­
festaria até que ponto, mesmo no melhor caso, essa co-existência
é escassa. Posso adestrar ou ensinar o animal e então criar-me
a ilusão de que êle co-rresponde a maior número de gestos e
outros atos meus, mas advirto logo que no adestramento êle não
responde a partir de si mesmo, do seu centro espontâneo, mas
se torna puro mecanismo, é uma máquina onde pus alguns dis­
cos, como o são as respostas de vitrola que o papagaio real
roda, sempre as mesmas, conforme o programa. Ao contrário,
para co-existir mais com o animal, a única coisa que posso fazer
é reduzir a minha própria vida, elementarizá-la, fazer-me tolo
ou estúpido até ser quase outro animal, como sucede a essas senho­
ras de idade que vivem anos e anos sòzinhas com um cachorro,
ocupadas exclusivamente com êle, acompanhadas únicamente por
êle e que acabam por se parecer até fisicamente ao seu cão.
Para co-existir com o animal é preciso fazer o que Pascal nos
propõe que façamos diante de Deus: il faut s'abêtir.
Repito a minha pergunta: Podemos reconhecer na relação do
homem com o animal um fato social? Não podemos decidir sôbre
isso, assim, sem mais nada. De início nos retinha, para responder
afirmativamente, a limitação da co-existência e, além disso, um
caráter confuso, impreciso, ambíguo, que percebemos no modo
de ser da fera, por muito esperta que esta seja. A verdade é
que, não só nesta, como em tôdas as ordens, o animal nos per­

124 —
A APARIÇÃO DO "OUTRO"

turba. Não sabemos bem como tratá-lo, porque não vemos clara
a sua condição. Daí, em nossa conduta com êle, o passarmos a
vida oscilando entre tratá-lo humanamente ou, ao contrário, ve­
getalmente e até mineralmente. Compreendem-se muito bem as
variações de atitude diante do bruto, pelas quais o homem passou
ao longo da história: desde ver nêle quase um Deus, como os
primitivos e os egípcios, até pensar, como Descartes e seu discí­
pulo, o doce e místico Malebranche, que o animal é uma má­
quina, um pedregulho algo mais complicado.
Só podemos convercer-nos de que a nossa relação com êle
é ou não social se a compararmos com fatos que sejam inquestio­
navelmente, saturadamente sociais.
E o caso plenário, diáfano, evidente, que nos permite en­
tender os casos confusos, débeis, ambíguos.
Essas considerações demarcaram o montão de fenômenos
únicos, entre os quais pode aparecer de modo palmar e irrecusá­
vel algo que seja social. Do conteúdo do mundo só nos ficam
por analisar as coisas a que chamamos "homens".
Como aparecem no meu mundo vital êsses sêres a que chamo
"os outros homens?" Basta enunciar a pergunta para que todos
sintamos uma mudança em nossa têmpera. Sentiamo-nos até ago­
ra em abandono, placidamente. Neste instante, diante do aviso
de que em nosso horizonte reflexivo, o horizonte de temas que
estas lições desenvolvem, se vão apresentar "os outros homens",
sentimos, não sabemos bem porquê, uma ligeira inquietação e
como se uma fina onda elétrica nos houvesse percorrido a me­
dula. A coisa será tão absurda quanto se quiser, mas é. Vimos
de um mundo vital em que até agora só havia pedras, plantas
e animais: era um paraíso, era o que chamamos a natureza, o
campo. Embora do mundo vital que analisamos tenhamos dito
cem vêzes que é o de cada um, o concreto da minha vida, não
falamos dêle senão abstratamente. Não pretendí descrever o
mundo singular de cada um, tão pouco o de alguém, nem sequer
o meu. Do super-concreto estamos falando abstratamente e em

— 125
O HOMEM E A GENTE

geral. Êste é o paradoxo constitutivo da teoria da vida. Esta vida


é a de cada um, mas a sua teoria é como tôda teoria, geral.
Dá os quadros vazios e abstratos em que cada qual pode alojar
a sua própria autobiografia. Pois bem, o que agora sublinho é
que, mesmo falando, como o fazemos, em abstrato, basta anun­
ciar que vão aparecer em nossa análise os outros homens para
que em todos se produza um alerta, um "quem vem lá?" Já não
vivemos em abandono, mas em guarda e com cautela. Até êsse
ponto são, pelo visto, temíveis os outros homens!

Antes, no mundo como mundo mineral, vegetal, animal, nada


nos preocupava. É a tranquilidade que sentimos no campo.

Porque a sentimos? Vamos vê-lo, mas com duas palavras


Nietzsche já disse o essencial: "Sentimo-nos tão tranquilos e tão
a vontade na pura natureza, porque esta não tem opinião sôbre
nós".
Aqui está a origem supersuspicaz da nossa inquietude. Va­
mos falar de sêres, — os homens, — que se caracterizam porque
sabemos que têm uma opinião sôbre nós. Por isso nos pusemos
em guarda, de alma alerta: no doce horizonte do mundo para­
disíaco — assoma um perigo: o outro homem. E, — não há dúvi­
da! — mais ou menos, e pouco a pouco, isto se vai animar. E
vamos todos perturbar-nos um pouco.

Efetivamente, no contorno que o meu horizonte cinge, apa­


rece o OUTRO. O "outro" é o outro homem. Com presença sen­
sível, tenho dêle sòmente um corpo, um corpo que ostenta sua
forma peculiar, que se move, que maneja coisas diante da minha
vista, isto é, que se comporta externa ou visivelmente, o que os
psicólogos americanos chamam "behavior". Mas o surpreen­
dente, o estranho e o últimamente misterioso é que, sendo-nos
presentes apenas uma figura e uns movimentos corporais, vemos
nisso, ou através disso, algo por essência invisível, algo que é
pura intimidade, algo que cada um sòmente por si mesmo conhece
diretamente: o seu pensar, o seu sentir, o seu querer, operações

126 —
A APARIÇÃO DO "OUTRO1

que, por si mesmas, não podem ser presenças para outros; que
são não-externas, nem diretamente se podem exteriorizar, porque
não ocupam espaço, nem têm qualidades sensíveis, — por isso
são, diante de tôda a externidade do mundo, pura intimidade.
Mas, já no animal não podemos ver o seu corpo sem que êste
nos assinale, além de côres e resistências, uma certa corporei-
dade; e mais: sem que êle seja para nós o sinal de algo com­
pletamente novo, diferente, — a saber, de uma incorporeidade, de
um dentro, um intus ou inti-midade no animal, na qual êste
forja a sua resposta a nós, na qual prepara a sua mordida ou
a sua chifrada, ou, ao contrário, o seu doce e terno vir roçar-se
em nossas pernas. Disse que o nosso trato com o animal tem algo
de co-existência. Esta co-existência surgiría porque o animal nos
responde de um centro interior que há nêle, isto é, da sua inti­
midade. Todo coexistir é um coexistir de duas intimidades e há
tanto coexistir quanto haja um mútuo tornarem-se presentes, de
algum modo, essas intimidades. Se o corpo do animal nos faz,
através de si mesmo, entrever, presumir, suspeitar essa sua inti­
midade, é porque no-la indica com a sua figura, movimentos,
etc... Ora, quando um corpo é sinal de uma intimidade que
vai nêle como que inclusa e reclusa, é que o corpo é carne, e
essa função que consiste em indicar a intimidade se chama
"expressão". A carne, além de pesar e mover-se, expressa, é
"expressão". A função expressiva do organismo zoológico é o
mais enigmático dos problemas que ocupam a biologia, já que,
da vida biológica mesma, há muito tempo, crêem os biólogos que
não devem ocupar-se, por ser excessivo problema.
Não me detenho para penetrar nesse sugestivíssimo assunto:
a função expressiva, — de certo modo o sugestivo por antono-
másia, pois nêle se acha a causa de tôda sugestão, — porque
já me ocupei largamente dêle, no meu estudo intitulado "Sôbre
a expressão fenômeno cósmico", (6) e sôbre o que concerne mais

(6) [Veja-se tomo VII de El Espectador, em Obras Completas, tomo II.]

— 127
O HOMEM E A GENTE

à aparição do outro homem diante de cada um, direi algo nas


lições seguintes.
Baste dizer por agora que o corpo do outro, quieto ou em
movimento, é um abundantíssimo semáforo, que nos envia cons­
tantemente os mais variados sinais, indícios ou indicações daquilo
que se passa no "dentro" que é o outro homem. Êsse dentro,
essa intimidade não é nunca presente, mas compresente, como o
é o lado da maçã que não vemos. E aqui temos uma aplicação
do conceito da com-presença, sem o qual, como disse, não pode­
riamos esclarecer como o mundo e tudo nêle existem para nós.
Por certo, neste caso, a função da com-presença é mais surpre­
endente. Porque, a li, a parte da maçã, em cada instante oculta,
me foi presente outras vêzes, mas a intimidade que o outro
homem é não me foi feita nem me pode ser feita nunca presente.
E, não obstante, a encontro aí, — quando encontro, um corpo
humano.
A fisionomia dêsse corpo, sua mímica e sua pantomímica,
gestos e palavras, não patenteiam, mas manifestam que há ali
uma intimidade similar à minha. O corpo é um fertilíssimo "campo
expressivo" ou "de expressividade". Vejo, por exemplo, que êle
olha. Os olhos, "janelas da alma," nos mostram mais do outro do
que nada, porque são olhares, atos que vêm de dentro como
poucos. Vemos o que é que olham e como olham. Não apenas
vêm de dentro, mas notamos até de que profundidade olham.
Por isso, nada o namorado agradece tanto como o primeiro
olhar. Mas é preciso ter cuidado. Se os homens pudessem medir
a profundidade de que provém o olhar da mulher, muitos erros
e muitas penas se poupariam. Porque há o primeiro olhar que
se concede como uma esmola, — pouco profundo, o suficiente
para ser olhar. Mas há também o olhar que vem do mais pro­
fundo, trazendo consigo a sua própria raiz do abismo do ser
feminino, olhar que emerge como carregado de algas e pérolas
e de tôda a paisagem submersa, essencial mente submerso e oculto
que é a mulher quando é de verdade, isto é, profundamente,

128 —
A APARIÇÃO DO "OUTRO"

abismàticamente mulher. É o olhar saturado, em que transborda


o seu próprio querer ser olhada, enquanto o primeiro era astê-
nico, quase não era olhar, mas simples ver. Se o homem não
fôsse vaidoso e não interpretasse qualquer gesto insuficiente da
mulher como prova de que ela está enamorada dêle; se suspen­
desse a sua opinião até que nela se produzissem gestos saturados,
não padecería as dolorosas surprêsas que são tão freqüentes.
Repito: do fundo da radical solidão que é pròpriamente a
nossa vida, uma ou outra vez, tentamos uma interpenetração,
tentamos de-soledadizarmo-nos, assomando a outro ser humano,
desejando dar-lhe nossa vida e receber a sua.
A VIDA INTER-INDIVIDUAL.
NÓS — TU — EU

Tínhamos partido da vida humana como realidade radical.


Entendíamos por realidade radical, — é hora de recordá-lo, —
não a única nem sequer a mais importante e, por certo, não a
mais sublime, mas, lisa e planamente, aquela realidade primária
e primordial em que tôdas as demais, — se devem ser, para nós,
realidades, — têm de aparecer e, portanto, de ter nela a sua
raiz, ou estar nela arraigadas. Neste sentido de realidade radical,
"vida humana" significa estrita e exclusivamente a de cada um,
isto é, sempre e só a minha. Esse X que a vive e a quem cos­
tumo chamar eu, e o mundo em que êsse "eu" vive, me são paten­
tes, presentes ou compresentes, e tudo isso: ser eu o que sou, ser
êsse o meu mundo, e o meu viver nêle, — são coisas que me
acontecem a mim e sòmente a mim, ou a mim na minha radical
solidão. Se, por ventura, — acrescentei, — aparecesse, nêsse meu
mundo, algo que conviesse chamar também "vida humana"
aparte da minha, — conste da maneira mais expressa que, o será
em outro sentido, não já radical, nem primário, nem patente;
mas secundário, derivado e mais ou menos latente e suposto. Ora,
ao nos aparecerem presentes os corpos de forma humana, adver­
tíamos nêles, compresentes, outros quase-eus, outras "vidas huma­
nas", cada uma com o seu mundo próprio, incomunicante, en­
quanto tal, com o meu. O que êsse passo e essa aparição têm
de decisivo é que, enquanto a minha vida e tudo nela, ao me
serem patentes e meus, têm o caráter de manentes, — daí, o
truísmo de que a minha vida é imanente a si mesma, que está

— 131
O HOMEM E A GENTE

tôda ela dentro de si mesma, — a apresentação indireta ou


compresença da vida humana alheia me situa e enfrenta com
algo transcendente à minha vida e, portanto que está nesta sem
estar pròpriamente.
O que deveras está patente na minha vida é a notícia, o
sinal de que há outras vidas humanas; mas, como vida humana
é, em sua radicalidade, sòmente a minha, e essas vidas serão as
de outros como eu, — cada uma de cada um, — em razão de
que êles sejam outros, as suas vidas tôdas se acham fora ou
mais além, ou trans-a-minha. Por isso, são transcendentes. E aqui
têm os senhores como, pela primeira vez, nos aparece um tipo
de realidaes que não o são, em sentido radical. A vida do outro
não me é realidade patente como o é a minha: a vida do
outro, — digamo-lo deliberadamente em forma rude, — é sòmente
uma presunção ou uma realidade presuntiva ou presumida, —
tanto quanto se quiser: infinitamente verossímel, provável, plau­
sível, — mas não radicalmente, inquestionàvelmente, primordial­
mente "realidade". Isso nos faz atinar com que à realidade ra­
dical, que é a minha vida, corresponde conter dentro de si
muitas realidades de segunda ordem, ou presuntivas, o que abre
à minha vida um campo enorme de realidades diferentes dela
própria. Ao chamá-las, grosso modo, presuntivas, — também po­
deriamos dizer "verossímeis" — não lhes tiro o caráter e o valor
de realidades. O que faço é unicamente negar-lhes a qualidade
de realidades radicais, ou inquestionáveis. Pelo visto, a atribuição
de realidade permite e até impõe uma escala, gradação ou
hierarquias e haverá, como nas queimaduras, realidades de pri­
meiro grau, de segundo grau, etc., e isso — não em referência
ao conteúdo dessa realidade, mas ao puro caráter de ser reali­
dade. Por exemplo: o mundo que a física nos descreve, isto é,
a ciência exemplar entre aquelas que o homem tem hoje à sua
disposição, o mundo físico tem, sem dúvida, realidade,- mas qual
ou que grau de realidade? Nem é preciso dizer: uma realidade
daquelas que chamei presuntivas. Basta recordar que a figura

132 —
A VIDA INTER-INDIVIDUAL. NÔS-TU-EU.

do mundo físico, por cuja realidade, agora nos perguntamos, é


o resultado da teoria física, e que essa teoria, como tôdas as teo­
rias científicas, está em movimento: é, por esssência, mutável, por­
que é questionável. Ao mundo de Newton sucede o mundo de
Einstein e de Broglil. A realidade do mundo físico, ao ser uma
realidade que com tanta facilidade e velocidade se sucede e se
suplanta a si mesma, não pode ser senão realidade de quarto
ou quinto grau. Mas, repito e entenda-se bem: realidade. En­
tendo por realidade tudo aquilo com que tenho de contar. E hoje
tenho de contar com o mundo de Einstein e Broglil. Dêle depende
a medicina que tenta curar-me; dêle, boa parte das máquinas
com que hoje se vive; dêle, muito concretamente, o futuro meu,
o dos meus filhos, o dos meus amigos, — já que nunca, em tôda
a história, o porvir dependeu tanto de uma teoria, da teoria
intra-atômica.
A tôdas essas realidades presuntivas, com o fim de não con­
fundi-las com a realidade radical, chamaremos de interpretações
ou idéias nossas sôbre a realidade, — presunções e verossimi-
Ihanças.
E agora vem a grande mutação de ótica ou de perspectiva
que necessitamos fazer. Essa ótica nova, a partir da qual vamos,
pouco a pouco, começar a falar, — salvo tal ou qual referência
ou momentâneo retorno à anterior, — essa ótica, nova no pre­
sente curso, é precisamente a normal em todos. A anormal, a
insólita é a que vimos usando. Esclarecerei logo o sentido de
ambas as perspectivas. Para isso, porém, convém continuar um
pouco no que ia dizendo,- e ia dizendo que a aparição do outro
homem, com a suspeita ou compresença de que é um eu como
o meu, com uma vida como a minha vida e, portanto, não minha
senão sua, e um mundo próprio onde êle vive radicalmente, é
para mim o primeiro exemplo, neste inventário do meu mundo,
em que encontro realidades que não são radicais, mas mera pre­
sunção de realidades que, em rigor, são idéias ou interpretações
da realidade. O corpo do outro é para mim radical e inquestio­

— 133
O HOMEM E A GENTE

nável realidade; mas que nesse corpo habita um quase eu, uma
quase-vida humana, já é interpretação minha a realidade do
outro homem, dessa outra "vida humana" é, pois, de segundo
grau, em comparação com a realidade primária que é a minha
vida, que é o meu eu, que é o meu mundo.
Tal averiguação, aparte o valor que tem por si, possui o
de me fazer perceber que dentro da minha vida há uma imensi­
dade de realidades presuntivas, o que, — repito, — não quer
dizer, por fôrça, que sejam falsas, mas sòmente que são questio­
náveis, que não são patentes e radicais. Apresentei o meu grande
exemplo: o chamado mundo físico que a ciência física nos apre­
senta e que é tão diferente do meu mundo vital e primário, no
qual não há eléctrons, nem coisa que se lhe pareça.
Pois bem, — e isto é novo, com respeito a tudo anteriormente
dito: normalmente vivemos essas presunções, ou realidades de se­
gundo grau, como se fôssem realidades radicais. O outro homem,
como tal, isto é, não só o seu corpo e os seus gestos, mas o
seu "eu" e a sua vida são para mim, normalmente, tão "realida­
des" como a minha própria vida; quero dizer que vivo, da mes­
ma forma e ao mesmo tempo, a minha vida, em sua realidade
primária, e uma vida que consiste em viver como primárias muitas
realidades que o são sòmente em segundo, terceiro, etc., graus.
E até mais: normalmente não me inteiro da minha vida autêntica,
daquilo que ela é em sua radical solidão e verdade; ao con­
trário, vivo presuntivamente coisas presuntivas, vivo entre inter­
pretações da realidade que o meu contôrno social, a tradição
humana foi inventando e acumulando. Há algumas dessas inter­
pretações que merecem ser tidas por verdadeiras, e a elas chamo
realidades de segundo grau, — mas êsse "merecem ser tidas por
verdadeiras" há de entender-se sempre com medida e razão, não
assim sem mais nada, com todo o rigor e em absoluto. A título
de inter-pretações podem sempre, em última instância, ser errô­
neas e propor-nos realidades francamente ilusórias. De fato, em
imensa maioria, as coisas que vivemos são, efetivamente, não

134 —
A VIDA INTER-INDIVIDUAL NÓS-TU-EU.

só presuntivas mas ilusórias; são coisas que ouvimos nomear, de­


finir, ponderar, justificar em nosso contôrno humano; isto é: ouvi­
mos os outros e, sem mais análises, exigências ou reflexão, damos
por autênticas, verdadeiras ou verossímeis. Isto, que aqui assi­
nalo pela primeira vez, será o tema dorsal do resto do curso.
Deixemo-lo, porém, por hora, nessa sua primeira, singela, vulgar
e, — é claro, — confusa aparição.
Se o que digo é certo, — e isso se verá nas próximas lições,
— nossa vida normal consiste em ocupar-nos com prágmata, com
coisas ou assuntos e importâncias que não o são pròpriamente,
mas meras interpretações irresponsáveis, dos demais ou nossas
mesmas; a saber: sendo a nossa vida um estar sempre fazendo algo
com essas pseudo-coisas, irremediàvelmente seria um pseudo-fazer,
precisamente aquêle que anteriormente nos aparecia com a vul-
garíssima, mas profundíssima, expressão de "fazer que se faz";
isto é, costumamos fazer que vivemos; não vivemos efetivamente
o nosso autêntico viver, aquêle que teríamos de viver se, —
desfazendo-nos de tôdas essas interpretações recebidas dos de­
mais, entre os quais estamos e que se costuma chamar "socie­
dade", — tomássemos, de quando em quando, enérgico, evidente
contacto com a nossa vida enquanto realidade radical. Mas esta
é, — dissemos, — o que somos em radical solidão. Trata-se, pois,
da necessidade que o homem tem, periòdicamente, de deixar
bem claras as contas do negócio que é a sua vida e pelas quais
sòmente êle é responsável, recorrendo da ótica em que vemos
e vivemos as coisas, enquanto somos membros da sociedade, à
ótica em que elas aparecem quando nos retiramos à nossa soli­
dão. Na solidão o homem é a sua verdade, — na sociedade
tende a ser sua mera convencionalidade ou falsificação. Na rea­
lidade autêntica do viver humano, está incluído o dever da fre-
qüente retirada para o fundo solitário de si mesmo. Essa retirada,
— em que às meras verossimilhanças, (quando não simples em­
bustes e ilusões, em que vivemos), exigimos que nos apresentem
suas credenciais de autêntica realidade, — é o que se chama,

— 135
O HOMEM E A GENTE

com um nome amaneirado, ridículo e confusionista, filosofia. A


filosofia é retirada, anábasis, acêrto de contas de alguém con­
sigo mesmo, na pavorosa nudez de si mesmo, diante de si mesmo.
Diante de outro, não estamos, não podemos estar integralmente
desnudos: se o outro nos olha, já com o seu olhar mais ou menos
nos cobre diante dos nossos próprios olhos. Este é o estranho
fenômeno do rubor, em que a carne nua parece cobrir-se com
um tecido rosado, a fim de ocultar-se. Da nudez teremos de falar
a sério, quando falemos da perturbação.
A filosofia não é, pois, uma ciência; mas, se se quiser, uma
indecência, pois é pôr as coisas e a si mesmo desnudos, em
pura carne, — naquilo que puramente são e sou, — nada mais.
Por isso é, — se ela é possível, — autêntico conhecimento, — o
que não são nunca senso strictu as ciências: meras técnicas úteis
para o manejo sutil, o refinado aproveitamento das coisas. Mas
a filosofia é a verdade, a terrível e desolada, solitária verdade
das coisas. Verdade significa: as coisas postas a descoberto, e
isso significa literalmente o vocábulo grego para designar a ver­
dade: a-létheia, aletheúein, isto é, desnudar. Quanto à palavra
latina e nossa: veritas, verum, verdade, — deve provir de uma
raiz indoeuropéia, — ver, — que significou "dizer"; daí, ver-bum,
palavra, não um dizer qualquer, porém o mais solene e grave
dizer, um dizer religioso em que pomos Deus por testemunha do
nosso dizer,- em suma, o juramento. Mas o peculiar de Deus é
que, ao citá-lo como testemunha nessa nossa relação com a rea­
lidade que consiste em dizê-la, isto é, em dizer o que é real­
mente, Deus não representa um terceiro entre mim e a realida­
de. Deus não é nunca um terceiro, porque a sua presença é
feita de essencial ausência; Deus é o que é presente precisa­
mente como ausente, é o imenso ausente que brilha em tudo pre­
sente, — brilha pela ausência, — e seu papel nesse citá-lo como
testemunha, que é o juramento, consiste em deixar-nos sós com
a realidade das coisas, de modo que, entre estas e nós, não
há nada nem ninguém que as vele, cubra, finja, nem oculte; e

136 —
A VIDA INTER-INDIVIDUAL NÓS-TU-EU.

o não haver nada entre elas e nós — isso é a verdade. O mestre


Eckehart, — o mais genial dos místicos europeus, — chama a
Deus, por isso: "o silencioso deserto que é Deus".
E questão diferente a de que êsse recorrer da nossa pseudo-
vida convencional para a nossa mais autêntica realidade, — em
que consiste a filosofia, — requer uma técnica intelectual mais
rigorosa que a de qualquer outra ciência. Isso quer sòmente
dizer que a filosofia é, além disso, uma técnica filosófica; mas
ela bem sabe que o é sòmente em segundo lugar e porque
necessita disso para tentar aquela sua perpétua e primigênea
missão. É certo que, mediado o último século e no princípio dêste,
a filosofia, com o apelido de positivismo, pretendia ser uma
ciência, isto é, queria "fazer de ciência"; não se há, porém,
de formalizar a coisa: trata-se apenas de um breve ataque de
modéstia que a pobre sofreu!
A filosofia é, pois, a crítica da vida convencional, inclusive,
e muito especialmente, da sua vida, — crítica que o homem se
vê obrigado a fazer, de quando em quando, levando-a diante
do tribunal da sua vida autêntica, da sua inexorável solidão;
ou, — também se pode dizer, — é a partida dobrada de que o
homem precisa, para que os negócios, assuntos, coisas em que
pôs a sua vida, não sejam, em excesso, ilusões; mas, averigua­
dos com a pedra de toque que é a realidade radical, perma­
neça cada um dêles no grau de realidade que lhe corresponda.
Neste curso, estamos citando diante dêsse tribunal, que é
a realidade da autêntica vida humana, tôdas as coisas que se
costumam chamar sociais,- a fim de ver o que é que são na sua
verdade, a saber, estamos em processo de constante recurso, da
nossa vida convencional, habitual, cotidiana e da sua ótica cons­
titutiva, para a nossa realidade primária e para a sua ótica
insólita, difícil e severa. Passo a passo temos feito isso, desde a
elementaríssima observação sôbre a maçã: ao ser trazida diante
daquele tribunal, a maçã, que críamos ver, acabou um pouco
fraudulenta; existe uma metade dela que nunca nos é presente,

— 137
O HOMEM E A GENTE

ao mesmo tempo que a outra metade, e portanto, a maçã —


enquanto realidade patente, presente, vista, — não existe, não
é tal realidade. Notávamos logo que a maior porção do nosso
mundo sensível não nos é presente; antes, e melhor: aquela por­
ção dêle, que em cada instante estava presente, oculta o resto
e o deixa só como compresente, como a sala em que estamos
nos tapa a cidade e, não obstante, vivemos esta sala achando-
se ela na cidade, e a cidade na nação, e a nação na Terra,
etc., etc.
O réu mais importante, porém, trazido a juízo, foi o outro
homem, com seu corpo e seus gestos presentes, mas cujo caráter
de homem, de outro eu, de outra vida humana, se nos revelou
como mera realidade interpretada, como a grande presunção e
verossimilhança.
Para o tema genuíno do nosso curso, êle é a realidade
decisiva porque, procurando fatos claros, que com suficiente evi­
dência pudéssemos chamar de sociais, vínhamos de fracasso em
fracasso, — nem o nosso comportamento com a pedra, nem com
a planta tinham o menor ar de socialidade. Ao enfrentarmo-nos
com o animal, pareceu que algo assim como relação social,
nossa com êle e dêles entre si, transparecia. Porque? Porque ao
fazermos algo com o animal, nossa ação não tem outro remédio
senão contar com que êste a prevê, com uma ou outra exatidão,
e se prepara para responder a ela. Temos, assim, aqui, um tipo
novo de realidade, a saber: uma ação, — a nossa, — da qual
faz parte, por antecipação, a ação que o outro ser vai executar,
respondendo à nossa; e a êle acontece o mesmo que a mim: é
uma curiosa ação que emana, não de um, mas de dois, — do
animal junto comigo. E uma autêntica colaboração. Eu prevejo
o coice do burro e êste coice "colabora" no meu comportamento
com êle, convidando-me a guardar distância. Nessa ação, con­
tamos um com o outro, isto é, nos existimos mútuamente ou coe­
xistimos eu e o meu colaborador, o burro. O suposto, como se
adverte, é que haja utro ser, do qual sei de antemão que, com

138 —
A VIDA INTER-INDIVIDUAL. NÓS-TU-EU.

tal ou qual probabilidade, vai responder à minha ação. Isso me


obriga a antecipar essa resposta no meu projeto de ação, ou,
o que é o mesmo, a responder a ela, por minha vez, adiantada-
mente. Ele faz a mesma coisa: nossas ações, portanto, se inter-
penetram: são mútuas ou recíprocas. São pròpriamente inter-ação.
Tôda uma linha da tradição idiomática dá à socialidade, ou ao
social, êsse sentido. Aceitemo-lo, por enquanto.
Não obstante, nossa relação total com o animal é, ao mes­
mo tempo, limitada e confusa. Isso nos sugeriu a mais natural
reserva metódica: procurar outros fatos nos quais a reciprocidade
seja mais clara, ilimitada e evidente; a saber, nos quais o outro
ser que me responde seja, em princípio, capaz de responder-me
tanto como eu a êle. A reciprocidade, será clara, saturada e evi­
dente. Ora, isto só me acontece com o outro; ainda mais: consi­
dero-o como o outro precisamente por crer que é meu par e se­
melhante, na esfera do poder responder. Notem que outro, —
alter em latim, — é pròpriamente o têrmo de uma parelha e
sòmente de uma parelha. Unus et alter, — o alter é o contraposto,
o par, o correspondente ao unus. Por isso a relação do unus, —
eu, — com o alter, — outro, — se chama estupendamente em nossa
língua alternar. Dizer que não alternamos com alguém é dizer
que não temos com êle "relação social". Não alternamos com a
pedra nem com a hortaliça.
Temos, assim, que o homem, à parte daquele que eu sou,
nos aparece como o outro, e isto quer dizer, — interessa-me que
se tome em todo o seu rigor, — o outro quer dizer: aquêle com
o qual posso e tenho, — mesmo que não queira, — de alternar,
pois até no caso em que eu preferisse que o outro não existisse,
porque o detesto, advém que eu irremediàvelmente existo para
êle e isto me obriga, quer queira quer não, a contar com êle
e com as suasintenções a meu respeito, que talvez sejam aves­
sas. O mútuo "contar com", a reciprocidade, é o primeiro fato
a nos permitir que o qualifiquemos de social. Se essa qualifica­
ção é definitiva ou não, fique para o ulterior desenvolvimento de

— 139
O HOMEM E A GENTE

nossas meditações. Mas a reciprocidade de uma ação, a inter­


ação, sòmente é possível porque o outro é como eu, em certos
caracteres gerais. Tem um eu que é nêle o que o meu eu é em
mim, — ou, como dizemos em espanhol: "tiene su alma en su
almario", (1) isto é, pensa, sente, quer, tem os seus fins, cuida do
que é seu, etc., etc. como eu. Entenda-se, porém, que descubro
tudo isso porque, nos seus gestos e movimentos, noto que me
responde, que me reciproca. Assim, teremos que o outro, o
Homem, me aparece originàriamente como o reciprocante e nada
mais. Tudo mais que o homem acabe sendo é secundário a êsse
atributo e vem depois. Conste, pois: ser o outro não representa
um acidente ou aventura que possa ou não acontecer ao Homem;
antes, é um atributo originário. Eu, na minha solidão, não po­
dería chamar-me com um nome genérico tal como "homem". A
realidade que êste nome representa só me aparece quando há
outro ser que me responde ou me reciproca. Muito bem o diz
Husserl: "o sentido do têrmo homem implica uma existência recí­
proca de um para outro,- portanto, uma comunidade de homens,
uma sociedade". E vice-versa: "é igualmente claro que os homens
não podem ser apreendidos senão achando-se outros homens
(realmente ou potencialmente) em tôrno dêles (2). Acrescento eu:
falar do homem fora de uma sociedade e alheio a uma socie­
dade é dizer algo contraditório e sem sentido por si mesmo.
Temos aqui a explicação das minhas reservas quando, falando da
vida como realidade radical e radical solidão, dizia que não
devia falar de homem, mas de X ou do vivente. Logo veremos
porque também era inadequado chamar-lhe "eu". Mas era mister
facilitar a compreensão daquela ótica radical. O homem não
aparece na solidão, embora sua verdade última seja a sua soli­
dão: o homem aparece na socialidade como o Outro, alternando
com o Um, como o reciprocante.

(1) A expressão, que traduzida literalmente serio: "tem sua alma no seu ar­
mário", significa "ter aptidão ou faculdade de fazer alguma coisa" (N. do T.)
(2) (Méditatlons Cartésiennes, Paris, 1931, pág. 110).

140 —
A VIDA INTER-INDIVIDUAL. NÔS-TU-EU.

A língua nos revela que houve um tempo em que os homens


não distinguiam, ao menos genèricamente, os sêres humanos
daqueles que o não são, já que lhes parecia serem entendidos
por êstes e receberem resposta dêles. A prova está em que tôdas
as línguas indoeuropéias usam de expressões correspondentes à
frase espanhola: "^Cómo se llama esa cosa?" — Comment est-ce
que l'on appelle ça? — Pelo visto, quando se sabe o nome de
uma coisa, já se pode chamar essa coisa; ela percebe o nosso
chamado e acode, isto é, põe-se em movimento, reage à nossa
ação de nomeá-la. Ap-pello é "fazer mover-se algo," e igual­
mente calo em latim, xíw e xÉÀopai em grego. No nosso "cha­
mar" pervive o clamare, que é o mesmo calo. Exatamente os
mesmos valôres semânticos: "chamar" e "fazer mover-se" con­
tém o vocábulo alemão heissen.
Por hora é mister que corrijamos um possível êrro de pers­
pectiva que a ordem irremediável do nosso inventário, sôbre o
que há no mundo, corre o risco de ocasionar. Começamos por
analisar a nossa relação com a pedra, prosseguimos com a
planta e logo com o animal. Sòmente depois disso nos enfren­
tamos com o fato de que nos apareceu o Homem como o Outro.
O êrro consistiría em que essa espécie de ordem cronológica, a
que nos levou a boa ordem analítica, pretenda significar a
ordem real em que os conteúdos do nosso mundo nos vão apa­
recendo. Essa ordem real é precisamente a inversa. O que apa­
rece primeiro a cada um, na sua vida, são os outros homens.
Porque todo "cada um" nasce numa família e esta nunca existe
isolada; a idéia de que a família é a célula social é um êrro
que rebaixa a maravilhosa instituição humana que é a família;
maravilhosa, embora seja incômoda, pois, não há coisa humana
que, ademais, não seja incômoda. Nasce, assim, o vivente humano
entre homens e o primeiro que encontra são êles; isto é: o mundo
em que vai viver começa por ser um "mundo composto de
homens," no sentido que a palavra "mundo" tem, quando fala­
mos de "um homem do mundo", de que "é preciso ter mundo",

— 141
O HOMEM E A GENTE

alguém tem "pouco mundo". O mundo humano precede, em


nossa vida, ao mundo animal, vegetal e mineral. Vemos todo o
resto do mundo como através das grades de uma prisão, através
do mundo de homens em que nascemos e em que vivemos. E,
como uma das coisas que mais intensa e frequentemente fazem
êsses homens, em nosso imediato contorno, em sua atividade re-
ciprocante, é falarem uns com os outros e comigo, com o seu
falar injetam em mim as suas idéias sôbre tôdas as coisas e eu
vejo, em princípio, o mundo todo através dessas idéias recebidas.
Isso significa que a aparição do Outro é um fato que fica
sempre como nas costas da nossa vida, porque, quando nos sur­
preendemos pela primeira vez vivendo, já nos achamos, não
sòmente com os outros e no meio dos outros, mas habituados
a êles. Isso nos leva a formular êste primeiro teorema social:
o homem está a nativitate aberto ao outro que não é êle, ao
ser estranho; ou, com outras palavras: antes de que cada um
de nós percebesse a si mesmo, já havia tido a experiência básica
de que existem aquêles que não são "eu", os Outros; isto é, o
Homem ao estar a nativitate aberto ao outro, ao alter que não
é êle, é, a nativitate, queira ou não, goste ou não goste, altruista.
E mister, porém, entender essa palavra e tôda essa sentença
sem acrescentar-lhes o que nelas não está dito. Quando se afir­
ma que o homem está a nativitate e, portanto, sempre aberto ao
Outro, a saber, disposto no seu fazer, a contar com o Outro,
enquanto estranho e diferente dêle, não se determina se está
aberto favorável ou desfavoràvelmente. Trata-se de algo prévio
ao bom ou mau falante em relação ao outro. O roubar ou
assassinar o outro implica estar prèviamente aberto a êle, não
mais nem menos do que para beijá-lo ou por êle sacrificar-se.
O estar aberto ao outro, aos outros, é um estado perma­
nente e constitutivo do Homem, não uma ação determinada, a
respeito dêles. Esta ação determinada, — o fazer algo com êles,
quer para êles, quer contra êles, — supõe êsse estado prévio e
inativo de abertura. Esta não é ainda, pròpriamente, uma "re­

142 —
A VIDA INTER-INDIVIDUAL. NÓS-TU-EU.

lação social", porque não se determina ainda em nenhum ato


concreto. é a simples coexistência, matriz de tôdas as possíveis
relações sociais". É a simples presença no horizonte da minha
vida, — presença que é, sobretudo, mera compresença do Outro
em singular ou no plural. Nela, não sòmente se condensou o
meu comportamento com êle, em alguma ação, mas, — e esta
advertência importa muito, — também se concretizou o meu puro
conhecimento do Outro. Êste é, para mim, em princípio, sòmente
uma abstratíssima realidade, "o capaz de responder aos meus
atos sôbre êle". é o homem abstrato.
Desta minha relação com o outro partem duas linhas dife­
rentes, embora se ligue uma à outra, de progressiva concretização
ou determinação: uma consiste em que vou, pouco a pouco, co­
nhecendo mais e melhor, o outro; vou decifrando mais em mi­
núcia a sua fisionomia, os seus gestos, os seus atos. A outra con­
siste em que a minha relação com êle se torna ativa, em que
eu atuo sôbre êle e êle sôbre mim. De fato, aquela primeira
linha sá costuma progredir do fio desta.
Comecemos, pois, com esta segunda.
Se diante do outro faço um gesto demonstrativo, assinalando
com o indicador um objeto que há no meu contôrno, e se vejo
que o outro avança para o objeto, o apanha e mo entrega,
isto me faz inferir que no mundo sòmente meu e no mundo
sòmente dêle parece haver, não obstante, um elemento comum:
aquêle objeto que, com ligeiras variantes, a saber, a figura de
tal objeto visto em sua perspectiva e na minha, existe para
ambos. E como isto acontece com muitas coisas, — embora, às
vêzes, eu e êle cometamos erros ao supor nossa comunidade na
percepção de certos objetos, — e como acontece não sòmente
com um outro, mas com muitos outros homens, em mim se arma
a idéia de um mundo mais além do meu e do seu, um mundo
presuntivo inferido, que é comum de todos. Isto é o que cha­
mamos o "mundo objetivo", diante do mundo de cada um, em
sua vida primária. Êsse mundo comum ou objetivo se vai preci­

— 143
O HOMEM E A GENTE

sando em nossas conversas, as quais versam principalmente sôbre


coisas que nos parecem ser aproximadamente comuns. Certamente,
com alguma frequência advirto que a nossa coincidência sôbre
tal ou qual coisa era ilusória: um pormenor da conduta dos
outros, de repente, me revela que eu vejo as coisas, pelo menos
algumas, — bastantes, — de outra maneira; e isso me desgosta
e me faz ressubmergir-me em meu mundo próprio e exclusivo, no
mundo primário da minha solidão radical. Nào obstante, é sufi­
ciente a dose de coincidências consolidadas, para que nos seja
possível entendermo-nos sôbre os grandes linhas do mundo, para
que seja possível a colaboração nas ciências e um laboratório na
Alemanha aproveite observações feitas num laboratório da Aus­
trália. Assim vamos construindo, — porque se trata, não de algo
patente, mas de uma construção ou interpretação, — a imagem
de um mundo que, ao não ser nem sòmente meu, nem sòmente
teu, mas, em princípio, de todos, será o mundo. Isto demonstra
o grande paradoxo: não é o mundo, único e objetivo, que torna
possível que eu coexista com os outros homens; mas, ao con­
trário, a minha socialidade ou relação social com os outros
homens é que torna possível o aparecimento, entre mim e êles,
de algo como um mundo comum e objetivo, aquilo a que Kant
chamava já o mundo "allgemeingültig", universalmente válido,
isto é, para todos, com o qual se referia aos sujeitos humanos e
no qual fundamentava, em sua unanimidade, a objetividade ou
realidade do mundo. Êste é o resultado da minha advertência
anterior, quando dizia que aquela porção do meu mundo, que
primeiro me aparece, é o grupo de homens entre os quais nasço
e começo a viver, a família e a sociedade a que a minha famí­
lia pertence; isto é, um mundo humano através do qual e influen­
ciado pelo qual me aparece o resto do mundo. Ê claro que
Kant, e Husserl, — que deu a êsse raciocínio a sua forma mais
clássica e depurada, — utopizam bastante, como todos os idealis­
tas, essa unanimidade. A verdade é que nós, os homens, sòmente
coincidimos na visão de certos grossos e toscos componentes do

144 —
A VIDA INTER-INDIVIDUAL. NÓS-TU-EU.

mundo ou, para enunciar o meu pensamento mais ajustadamente:


a lista de coincidências sôbre as coisas, entre os homens, e a
lista das suas discrepâncias irão longe, compensando-se uma com
a outra. Mas para que o raciocínio idealista de Kant e de Husserl
seja verídico basta aquêle torso de coincidências, já que êsse
torso é suficiente para que, de fato, acreditemos que todos os
homens vivem num mesmo e único mundo. Esta é a atitude que
podemos chamar natural, normal e cotidiana em que vivemos e,
por isso, por viver com os outros, em um presuntivo mundo único,
portanto, nosso, nosso viver é con-rviver.

Mas para que haja con-vivência é mister sair daquêle sim­


ples estar aberto ao outro, ao alter, e que chamavamos altruísmo
básico do homem. Estar aberto ao outro é algo passivo: é pre­
ciso que, sôbre a base de uma abertura, eu atue sôbre êle e
êle me responda ou me reciproque. Não importa o que seja que
façamos: tratar eu de uma ferida dêle ou dar-lhe um sôco, ao
qual corresponda e reciproque com outro. Num caso e noutro,
vivemos juntos e em reciprocidade com respeito a algo. A pala­
vra vivemos em seu mos expressa muito bem esta nova realidade
que é a relação "nós": unus et alter, eu e o outro juntos fazemos
algo e, ao fazê-lo, nos somos. Se, ao estar aberto ao outro, cha­
mei altruismo; êste sermo-nos mütuamente deverá chamar-se nos-
trismo ou nostridade. Ela é a primeira forma de relação concreta
com o outro e, assim, a primeira realidade social, — se se quer
empregar essa palavra em seu sentido mais vulgar que é, ao
mesmo tempo, o de quase todos os sociólogos, entre êles alguns
dos melhores, como Max Weber.
Com a rocha não há nostridade. Com o animal, existe uma
muito limitada, confusa, difusa e problemática nostridade.

Conforme convivemos e somos a realidade "nós", — eu e


êle, isto é, o Outro, — nos vamos conhecendo. Isto significa que
o Outro, — até agora um homem indeterminado, do qual sei
sòmente que é, por seu corpo, o que chamo um "semelhante",

— 145
O HOMEM E A GENTE

portanto: alguém capaz de reciprocar-me e com cuja resposta


consciente tenho de contar, — conforme o vou tratando, por bem
ou por mal, êle se vai precisando para mim, e o vou distinguindo
dos outros OUTROS que conheço menos. Esta maior intensidade
de trato implica proximidade. Quando esta proximidade de mú­
tuo trato e conhecimento chega a uma forte dose, chamamo-la
intimidade. O outro se me faz próximo e inconfundível. Não é
outro qualquer, indiscernível dos demais, é o Outro enquanto
único. Então, o outro é para mim TU. Conste, pois: TU não é,
sem mais nada, um homem, mas um homem único, inconfundível.

Dentro do âmbito de convivência que abre a relação "nós",


é onde me aparece o tu, o indivíduo humano único. Tu e eu,
eu e tu atuamos um sôbre o outro em frequente interação de
indivíduo a indivíduo, ambos únicos reclprocamente. Uma das
coisas que fazemos e que é a mais típica reciprocidade e nostri­
dade é falar. E uma das coisas de que falamos é de êle ou de
êles, isto é, de outros que não estão contigo e comigo na relação
"nós". Seja em absoluto, seja ocasionalmente, agora e para isto,
êle ou êles são os que permanecem fora desta proximidade que
é a nossa relação. Temos aqui uma peculiaridade da língua espa­
nhola, digna de ser meditada, como tudo que pertence à língua
vulgar. Os portuguêses e os franceses em vez de "nosotros" dizem
nós e nous, com o que expressam simplesmente a convivência e
proximidade entre aquêles aos quais se referem o nós e o nous.
Mas, nós os espanhóis dizemos "nosotros" e a idéia expressada
é de sobra diferente. As línguas têm, para expressar comunida­
des e coletividades, nostridades, o plural. Muitas línguas, porém,
não se contentam com uma só forma de plural. Há o plural
inclusive, que se limita, como o nós e o nous, a incluir; mas,
diante dêle, existe o plural exclusivo, que inclui vários ou muitos,
mas faz constar que exclui outros. Pois bem, o nosso plural "no­
sotros" é exclusivista. Quer dizer que não enunciamos, sem mais
nada, a pura comunidade do eu e do tu e, talvez, outros tus,

146 —
A VIDA INTER-INDIVIDUAL. NÓS - TU - EU.

mas uma comunidade entre ambos ou mais do que ambos, eu, tu


e tais tus mais, comunidade em que tu e eu formamos certa unida­
de coletiva: diante, fora e, de certo modo, contra outros. No "no-
sotros" nos declaramos muito unidos mas, sobretudo, nos reconhe­
cemos como outros diferentes dos Outros, de Éles.
Já advertimos o altruísmo básico do homem, isto é, como
está êle a nativitate aberto do Outro. Logo, vimos que o Outro
entra comigo na relação Nosotros, dentro da qual o outro homem,
o indivíduo indeterminado se precisa em indivíduo único e é o
TU, com o qual falo do distante, que é êle, a terceira pessoa.
Mas agora falta descrever o meu forcejar com o TU, em choque
com o qual faço o mais estupendo e dramático descobrimento.-
descubro-me a mim como sendo eu e... nada mais do que eu.
Contra o que se poderia crer, a primeira pessoa é a última que
aparece.
VI

MAIS SÔBRE OS OUTROS E EU.

BREVE EXCURSÃO RUMO A ELA

O nosso contorno real tem um centro, — o "aqui" em que


está o meu corpo, — e uma periferia delimitada por uma linha
que chamamos "horizonte", isto é, que inclui tudo quanto há à
vista. O vocábulo horizonte nos vem do grego ÓQÍÇeiv, delimi­
tar, plantar marcos que encerram e demarcam um espaço. Esses
conceitos e nomes são para nós têrmos técnicos a que já esta­
mos habituados pelo que foi dito nas lições anteriores; junto
com muitos outros, com os quais creio ter conseguido habituar-
nos, vamos adquirindo um capital comum de noções e vocá­
bulos que nos permitem entender-nos e, graças a isso, po­
der avançar para questões que, na realidade, são mais difí­
ceis, sutis, refinadas, mas que, com a ajuda dêsses conceitos
já adquiridos, serão muito mais fáceis e apreensíveis. Essas no­
ções preparatórias servirão como pinças de finas pontas que per­
mitam apreender, isto é, compreender coisas bastante delicadas
e filiformes. Isto significa que estamos já em pleno filosofar. De
certo modo, o filósofo e o barbeiro são do mesmo grêmio: o bar­
beiro corta o pêlo e o filósofo também, — apenas, o filósofo
corta cada fio em quatro.
Agora, porém, reiterei a noção de horizonte para fazer no­
tar que, como tudo do mundo estritamente corporal, êle nos
leva a empregar sua noção, — a noção de horizonte, — na or­
dem incorporai. E assim como, anteriormente, eu indicava que à
estrutura efetiva do mundo corpóreo em regiões espaciais cor-

— 149
O HOMEM E A GENTE

respondia um diagrama imaginário e ideal, em que situamos os


assuntos incorpóreos, digo agora que ao meditar, analisar um
tema, o homem tem também um horizonte que, como o corpóreo,
se vai deslocando conforme a nossa meditação, a nossa análise
avança, e conforme vão, pelo mesmo motivo, entrando nêle e
aparecendo à nossa vista, novas coisas e, com isso, novos pro­
blemas. Meditar é singrar, marinhar entre problemas, muitos dos
quais vamos esclarecendo. Atrás de cada um se divisa outro, de
costas ainda mais atrativas, mais sugestivas. Reclama esfôrço,
sem dúvida, e constância, ir ganhando o barlavento aos proble­
mas, mas não há delícia maior que chegar a costas novas,- e
até o mero tomar rumo, como diz Camões "por mares nunca
d'antes navegados". Se se me abre um crédito de atenção, desde
agora anuncio claras paisagens e prometo arquipélagos.
Dizia que cada passo faz entrar em nosso horizonte novas
coisas. Ingressou, assim, em nosso horizonte meditativo, uma
grande peça: o Outro, — isto é: o outro homem, nada menos!
Dêle, não nos é presente senão um corpo, mas um corpo que
é carne; e a carne, além dos outros sinais semelhantes que os
demais corpos nos fazem, tem o dom enigmático de nos indicar
um intus, um dentro ou intimidade. Isto já acontecia, em certa
medida, com o animal. O corpo daquele que vai ser para nós
outro Homem, ou o outro, é um riquíssimo "campo de expressi­
vidade". A sua face, o seu perfil, o seu talhe inteiro são já
expressão de alguém invisível a que pertencem. Igualmente, os
seus movimentos úteis, o seu ir e vir, o seu manipular as coisas.
Vejo que um corpo humano corre e penso: êle tem pressa,
ou está treinando para um "cross-country". Vejo que, num lugar,
onde há muitas lápides de mármore, um corpo cava uma cova
grande na terra e penso: êle é um coveiro e está abrindo a fossa
fúnebre. Se sou poeta, parto daí e imagino: talvez a tumba
para Yorick, o bufão da Dinamarca; talvez chegue Hamlet e ma­
nipule o seu crânio e diga os seus vagos, trêmulos dizeres.
Mais do que o dito antes, — e aqui está a curiosidade,

150 —
AAAIS SÔBRE OS OUTROS E EU — BREVE EXCURSÃO RUAAO A ELA

— são os movimentos inúteis do Outro, os que não servem a


nenhuma finalidade aparente, a saber: os seus gestos — que nos
revelam muito dêle. O Outro Homem nos aparece, sobretudo, em
sua gesticulação e, com fundamento não escasso, podemos dizer
que um homem é ou são os seus gestos, a ponto de que, se
algum não faz gestos, essa ausência ou carência é, por sua vez,
um gesto, porque é a detenção de gestos ou a mudez de gestos,
e cada uma dessas duas coisas nos manifesta, anuncia ou revela
duas muito peculiares intimidades, dois diversos modos de ser do
Outro. No primeiro caso, advertimos a repressão do gesto que
já apontava, que ia disparar-se e advertimos se êsse gesto ger-
minante é mais ou menos bem reprimido pelo Outro. Recorde-se
a quantidade de coisas íntimas do Outro que "os gestos mal re­
primidos" nos têm revelado.
Em face dêles, eu notava o caso daquele que não faz ges­
tos, ou pouco menos, do mundo em gestos. Quando temos diante
de nós um homem assim, dizemos que a sua figura é inexpres­
siva, que "não nos diz nada". E, como àparte os casos indivi­
duais, há certos tipos ou estilos de gesticulação que pertencem
à coletividade, acharíamos que existem povos em que é normal
uma riquíssima e saborosa expressividade: os meridionais; e
outros, os do Norte em que é normal a quase total, — digo
sòmente quase, — inexpressividade. Recordem-se as vêzes em que
permanecemos desolados diante da grande face inerte de um
alemão, ou de um inglês, face sem estremecimentos, sem vibração,
que parece um deserto, um deserto de alma, isto é, de intimi­
dade! Observações sôbre isso e sôbre o motivo por que é assim,
quero dizer, porque há, em uns casos, tão abundante expressi­
vidade e porque, em outros, mudez expressiva, podem achar-se
nesses estudos que, embora escritos há muito, creio ainda vi­
gentes: Sôbre a expressão, fenômeno cósmico e Vitalidade, alma,
espírito. (1)

(1) [El Espectador, volume VII, e El Espectador, volume V, respectivamente em


Obras Completas, Tomo II.]

— 151
O HOMEM E A GENTE

Tive de contentar-me, anteriormente, com falar do olhar,


que é tão expressivo porque é ato que vem direto da intimidade,
com a precisão retilínea do disparo, e, além disso, porque o
ôlho com a cavidade super-ciliar, as pálpebras inquietas, o branco
da esclerótica e os maravilhosos atores, que são a iris e a pu­
pila, equivalem a todo um teatro com o seu cenário e a sua
companhia dentro. Os músculos oculares, — ou orbiculares e
palpebrais, o levator, etc., as fibras musculares da iris, — são de
uma fabulosa finura de funcionamento. Tudo isso torna possível
que se possa diferenciar, em têrmos tão mínimos, cada olhar,
mesmo na dimensão única da profundidade íntima de onde foi
emitido. Há, nessa ordem, o olhar mínimo e há o máximo olhar
ou, — como, referindo-me especialmente à relação homem —
mulher, os chamava, — o olhar concedido e o olhar saturado.
As dimensões, porém, em que os olhares se diferenciam e, por­
tanto, podem classificar-se e medir-se, são muitíssimas; para citar
sòmente alguns exemplos de espécies dessa fauna dos olhares:
há o olhar que dura um instante e o olhar insistente; o que des-
lisa sôbre a superfície do olhado e o que a êle se prende como
um gancho; o olhar reto e o olhar oblíquo, cuja forma extrema
tem o seu nome em nossa lingua e se chama: olhar com o rabo
do ôlho, a máxima obliquidade. Diferente dos oblíquos, embora
a direção do eixo visual seja sesga, é o olhar de soslaio. Cada
uma dessas classes de olhar significa para nós o que se passa
na intimidade do outro homem, porque cada um, isto é, cada
ato de olhar é engendrado por uma determinada intenção, in­
tenção que, quanto menos consciente seja, naquele que olha,
tanto mais autênticamente nos é reveladora. Os olhares consti­
tuem, assim, um vocabulário e, como neste, acontece que a pa­
lavra isolada costuma ser equívoca e sòmente inserta no con­
junto da frase, — e esta, no contexto do escrito ou da conver­
sação, — se torna suficientemente precisa. Sôbre essa necessi­
dade de contexto, que os gestos, como as palavras, têm, para

152 —
MAIS SÔBRE OS OUTROS E EU — BREVE EXCURSÃO RUMO A EIA

precisar o seu sentido, insiste muito acertadamente o grande


psicólogo Karl Bühler, no seu livro Teoria da Expressão. (2)

O olhar de soslaio não expressa, — se é sòmente isso, olhar


de soslaio, — o desejo de ocultar o nosso mesmo olhar, caso,
— êste último, — muito curioso e que proclama quanto são reve­
ladores, denunciadores os nossos olhares, uma vez que, em
alguns casos, os homens se esforçam deliberadamente em ocul­
tá-los, fazendo, assim, de seu olhar um ato clandestino, como de
latrocínio e contrabando. Por isso, nossa língua chama tão efi­
cazmente a êsse olhar furtivo ou "às furtadelas", — o olhar que
quer ver, mas que não quer ser visto. Há olhares furtivos do mais
dôce latrocínio. Isso me traz à mente uma copia de seguidilhas
que diz:

No me mires, que miran [Não me olhes, que olham


si nos miramos, se nos olhamos,
y es menester, si miran, e é mister, se olham,
nos contengamos. nos contenhamos.

Nos contendremos, Conter-nos-emos,


y cuando no nos miren e quando não nos olhem,
nos miraremos. nos olharemos.]

Seja isto dito a propósito do olhar furtivo. Há, porém, outro


olhar muito mais complicado; a meu juizo, é o mais complicado
de todos e, por isso mesmo, talvez o mais eficaz, o mais suges­
tivo, o mais delicioso, o mais feiticeiro. E o mais complicado
porque é, a um tempo, furtivo e o mais oposto à furtividade,
um olhar que, como nenhum, quer fazer constar e fazer saber
que olha. Dessa dualidade, que a si mesma se contradiz e se
contrafaz, provém o seu poder de encantamento: é, em suma, o
olhar com os olhos semi-cerrados ou, com dizem muito apro­
priadamente os francêses, les yeux en coulisse. E o olhar do pin-

(2) [Publicada pela Editôra Revista de Occidente, 1950.]

— 153
O HOMEM E A GENTE

tor quando se afasta do quadro, para controlar o efeito da


pinceiada que acaba de dar. E furtivo porque, ao estarem fe­
chadas as pálpebras quase três quartos, parece que êle quer
esconder o olhar, — mas é justamente ao contrário, — porque o
olhar, assim comprimido pela fresta que as pálpebras deixam,
sai como uma seta bem apontada. São olhos como dormidos que,
por trás do seu embuço, em tão dôce sopor, estão sumamente
despertos. Quem tem um olhar assim tem um tesouro. Paris, tão
sensível a essas coisas humanas, a essas humanidades, viveu
quase sempre subjugado por alguém que tinha les yeux en cou­
lisse. Por exemplo, enquanto as favoritas dos grandes Bourbons,
— a senhorita de La Vallière, a Montespan de Luís XIV, a Pom­
padour de Luís XV, — a última amante dêste gozou de imensa
popularidade e isso, não sòmente nem tanto porque fôsse a pri­
meira favorita real oriunda das classes populares, mas porque a
Dubarry olhava o mundo com os seus yeux en coulisse. E quando
se olha assim para Paris, Paris fica hipnotizado e se entrega.
Semelhantemente, quando eu era rapazote e pela primeira vez
visitei Paris, a grande cidade andava rendida a Lucien Guitry, o
homem com les yeux en coulisse.

Não nos demoraremos mais nesse mundo dos olhares em


que desejei sòmente roçar de passagem, um pouco como exemplo
de que a única coisa que nos é efetivamente presente do outro
homem é o seu corpo, mas que êste, por ser carne, é um campo
de expressividade, um semáforo de sinais pràticamente infinito.

Precisemos qual a situação a que já chegamos: quando, entre


minerais vegetais e animais, me aparece um ser, consistente em
certa forma corporal, a que chamam "humana", embora sòmente
esta me seja presente, faz-se, para mim, com-presente, nela, algo
que por si é invisível e, mais em geral ainda, insensível, a
saber, uma vida humana,- algo, pois, semelhante ao que eu sou,
pois eu não sou senão "vida humana". Esta com-presença de
algo, que não pode por si ser presente, se funda inquestionà-

154 —
MAIS SÔBRE OS OUTROS E EU — BREVE EXCURSÃO RUMO A ELA

velmente em que aquêle corpo, que é carne, me faz peculiares


sinais para uma intimidade: é um campo expressivo de "intimi-
dades". Ora, isso que chamo uma "intimidade", ou vida, só me
é própria e diretamente conhecida, isto é, só me é patente, pre­
sente, evidente, quando se trata da minha. Portanto, falar de
que no corpo de forma humana se faz com-presente, para mim,
outra intimidade é dizer algo demasiado contraditório, ou, pelo
menos, muito difícil de entender. Porque originàriamente não há
outra intimidade senão a minha. Que queremos dizer, quando
dizemos que temos diante de nós Outro, isto é, outro como eu,
outro Homem? Isso implica que êsse novo ser — nem pedra, nem
planta, nem mero animal — é eu, ego, mas, ao mesmo tempo, é
outro, alter, é um alter ego. Este conceito de alter ego, — de
um eu que não sou eu, mas que é precisamente outro, portanto,
não-eu, — tem todo o ar de se parecer com um quadrado redondo,
protótipo do contraditório e impossível. E, sem embargo, a coisa
mesma é indubitável. Aí, diante de mim, há outro ser que me apa­
rece como sendo também um eu, um ego. Mas eu, ego, não signi­
fica até agora para nós, senão "vida humana", e vida humana,
— já o dissemos, — não é própria, originária e radicalmente se­
não a de cada um, portanto: a minha. Tudo que existe nela, a
saber: o homem que eu sou e o mundo que vivo, tudo tem,
como veremos a seguir, o caráter de ser meu, de pertencer-me,
ou ser o que é meu. Eis que agora aparece nesse mundo meu
um ser que se me apresenta, embora em forma de com-presença,
como sendo, êle também, "vida humana", portanto, com uma
vida sua, — não minha, — e, consequentemente, também com um
mundo seu que, originàriamente, não é o meu. A coisa é enorme
e estupefaciente, apesar de que nos seja cotidiana. O paradoxo
é fenomenal, pois advém que, no horizonte da minha vida, a
qual consiste exclusivamente no que é meu e só meu e é, por
isso, tão radical solidão, me aparece outra solidão, outra vida,
em sentido estrito, incomunicante com a minha e que tem o seu
mundo, um mundo alheio ao meu, um outro mundo.

— 155
O HOMEM E A GENTE

O mundo da minha vida me aparece como diferente de


mim, porque me resistia, desde o começo, ao meu corpo, — a
mesa resiste à minha mão, — mas o meu próprio corpo, mesmo
sendo o mais próximo do meu mundo, resiste também a mim
mesmo, não me deixa fazer, sem mais nada, o que eu queira;
me ocasiona dores, enfermidades, fadigas; e, por isso, o dis­
tingo de mim, enquanto, por outra parte, modera os meus pro­
jetos insensatos, as desmedidas da minha fantasia; por isso, con­
tra o que se costuma pensar, o corpo é o gendarme do espírito.
Não obstante, tôdas essas resistências e negações de mim, que
o meu mundo é para mim, são minhas, patentes à minha vida,
pertencentes a ela. Assim, é inadequado dizer que o meu mundo
é o não-eu. Em todo coso, será um não-eu meu e, portanto, só
relativamente um não-eu. Mas, no corpo de um homem que, como
tal, pertence ao meu mundo, se me anuncia e denuncia um ser,
— o Outro, — e um mundo, o seu, que me são absolutamente
alheios, absolutamente estrangeiros, estranhos a mim e a tudo
meu. Agora, sim: tem cabimento falar estritamente de um não-
eu. O puro não-eu não é, então, o mundo, mas o outro Homem,
com o seu ego fora do meu e o seu mundo incomunicante com o
meu. Esse mundo do outro é para mim inapreensível, inacessível,
se falarmos com rigor. Não posso entrar nêle porque não posso
entrar diretamente, porque não posso fazer patente a mim o
eu do outro. Posso suspeitá-lo e esta suspeita, que me é patente
e que encontro em meu mundo, próprio ou primordial, é a que
me faz compresente êsse efetivo e estrito não-eu, que o outro
e seu mundo são para mim. Este é o enorme paradoxo: em meu
mundo aparecem, com o ser dos outros, mundos alheios ao meu
como tais, isto é, como alheios, que se me apresentam como
inapresentáveis, que me são acessíveis como inacessíveis, que se
patenteiam como essencialmente latentes.
Daí a importância sem par que tem na vida humana, que
é sempre a minha, a presença compresente do Outro Homem.
Porque não é outro no sentido ligeiro em que a pedra que vejo

156 —
MAIS SÔBRE OS CUTROS E EU — BREVE EXCURSÃO RUMO A ELA

ou toco é outra coisa, não eu, ou outra coisa, não a árvore, etc.,
mas, ao aparecer-me o outro Homem, me aparece o que não é
a minha vida tôda, o que não é o meu universo todo, portanto:
o radicalmente outro, o inacessível, o impenetrável e que, não
obstante, existe, existe como a pedra que vejo e toco. Não me
digam que a comparação é incorreta, porque a pedra é para
mim, porque a vejo e a toco e o inacessível é, como o seu nome
indica, algo a que não tenho acesso, que não posso ver nem
tocar, mas que fica sempre fora, latente, mais além de quanto
está ao meu alcance. Trata-se precisamente disso: não digo que
com o outro Homem, me seja acessível o inacessível; digo, ao con­
trário, que com êle descubro o inacessível como tal, o inaces­
sível em sua inacessibilidade, exatamente a mesma coisa que
com a maçã: é-me dada em compresença a metade dela que
não vejo, — que não vejo, mas que é aí para mim.

Foi Husserl quem formulou de maneira precisa, — note-se


cionalidade própria se constitui, (em nossa terminologia "apa­
rece" —) um eu, um ego que não é como "eu mesmo", mas como
vida, as Meditações Cartesianas, de 1931.

Nelas diz Husserl: "Eis que, em minha intencionalidade pró­


pria, (expressão que para os nossos efeitos dagora significa o
mesmo que "minha vida como realidade radical"), em minha inten­
cionalidade própria se constitui (em nossa terminologia "apa­
rece") um eu, um ego que não é como "eu mesmo", mas como
refletindo-se em meu próprio "ego". Mas o caso é que êsse se­
gundo ego não está simplesmente aí, nem, falando pròpriamente,
me está dado "em pessoa", (em nosso vocabulário: "é presente
para mim") mas está constituído a título de "alter ego" e o
ego que esta expressão "alter ego" designa como um dos seus
momentos sou "eu mesmo" em meu ser próprio. O "outro", por
seu sentido constitutivo, remete a mim mesmo: o "outro" é um
reflexo de mim mesmo e, sem embargo, falando pròpriamente,

— 157
O HOMEM E A GENTE

não é um reflexo: é meu análogo e, não obstante, não é tam­


pouco um análogo no sentido habitual do têrmo" (3).
Notem como Husserl se vê obrigado, — para enunciar o que
é o Outro, em seu caráter mais simples e primário, portanto,
não precisando ainda tal ou qual determinado Outro, mas, em
geral e em abstrato o Outro, — se vê obrigado a empregar con­
tínuas contradições: o Outro é eu, já que é um eu; mas um eu que
não sou eu; logo, outra coisa e não o meu eu, bem conhecido,
— é claro, — de mim mesmo. Intenta, em vista disso, expressar
a estranha realidade que é o outro, dizendo que não é "eu",
mas sim algo análogo ao meu eu, — mas tampouco é análogo,
porque ao cabo, tem muitos componentes idênticos a mim, por­
tanto, a "eu". Continua logo: "se começo por delimitar bem o
ego, o "eu", em seu ser efetivo e preciso, (em vez de ego, po­
nhamos minha vida) e, se se abarca num olhar de conjunto o
conteúdo dêsse ego, (acrescento: dessa minha vida) e as suas
articulações... se formula necessàriamente esta questão: como
acontece que o meu ego, a minha vida, no interior daquilo que
ela propriamente é, possa, de algum modo, constituir ou fazer
que nela apareça o "Outro", precisamente como sendo estranho
a ela, à minha vida, ou ao meu ego, — isto é: como é possível
que lhe confiram sentido de realidade, sentido que o coloca fora
do conteúdo concreto de "mim mesmo", da minha vida, que é a
realidade em que aparecer?" (4).
Husserl foi o primeiro a precisar o problema radical e não
meramente psicológico que eu intitulo: "a aparição do Outro".
O desenvolvimento do problema por Husserl, a meu juízo, é muito
menos afortunado do que a sua formulação, apesar de que abun­
dam nesse desenvolvimento achados admiráveis. O pensamento de
Husserl foi o de mais vasta influência neste meio século, cuja
divisória do outro meio transporemos dentro de poucos dias; mas,

(3) (Méditotions Cartéslennes, Paris 1931, pág. 78).


(4) Traduzi o período de Husserl, empregando o acréscimo ou substituição de
termos que pertencem à minha doutrina. [Ibidem, págs. 78-79.]

158 —
MAIS SÔBRE OS OUTROS E EU — BREVE EXCURSÃO RUMO A ELA

não há sentido em que eu tente aqui o exame crítico da sua


teoria do Outro. Não interessa à exposição da minha doutrina
fazer essa crítica a fundo da doutrina de Husserl, pela simples
razão de que os seus princípios fundamentais o obrigam a expli­
car por que meios se produz a aparição do outro, ao passo
que, partindo nós da vida como realidade radical, não necessi­
tamos explicar os mecanismos em virtude dos quais o Outro
Homem nos aparece mas sòmente como aparece, fazer constar
que está aí e como está aí. Só um ponto dessa teoria de Husserl,
— e é o inicial dela, — sou forçado a repudiar porque, talvez
em tôda a obra de Husserl, exata, cuidadosa, — "vou devagar,
passo a passo", me dizia, — escrupulosa como não existe outra
em tôda a história da filosofia, a não ser, em diferente estilo,
a de Dilthey, em tôda a sua obra, — digo, — não encontro êrro
tão grave precisamente pelo descuido que revela. Trata-se disto:
o outro Homem, segundo Husserl, me aparecería porque o seu
corpo assinala uma intimidade que fica, portanto, latente, mas
dada em forma de compresença, como a cidade é agora para
nós compresente em tôrno a cada sala, precisamente porque esta,
ao ser fechada, nos oculta sua presença. Ressalvado que a inti­
midade não é como a cidade, algo que, ao sair eu de onde
estou, posso ver, mas que é ela por natureza oculta: até para
o mero com-presentar-se necessita de um corpo. Como é então que
eu creio ter diante de mim, ao ver um corpo humano, uma inti­
midade como a minha intimidade, um eu como o meu eu, — não
digo idêntico mas, pelo menos similar? A resposta de Husserl:
por uma transposição ou projeção analógica. Analogia existe
quando quatro têrmos se correspondem dois a dois, por exemplo:
João comprou a Pedro um monte de caça e Luís comprou a Fre­
derico uma casa; João e Luís fizeram, pois, algo não igual mas
análogo, a saber: compraram uma coisa a outro. Em tôda ana­
logia tem de haver um têrmo comum.
Em nosso caso a transposição analógica, segundo Husserl,
consistiría nisto: se o meu corpo é corpo — carne porque estou

-- 159
O HOMEM E A GENTE

nêle — no corpo do Outro deve estar também outro Eu, um


alter ego. O fundamento desta analogia, o têrmo comum, comum
no sentido de similar, seria o meu corpo e o do Outro. E, efe­
tivamente, a idéia de Husserl é esta: o meu corpo é a coisa do
mundo qqe me está mais próxima, tão próxima que, em certo
sentido se confunde comigo, já que eu estou onde êle está, a
saber, aqui, hie. Mas eu me posso deslocar e com isso deslocar
o aqui, de sorte que posso levar o meu corpo ao lugar que,
d'aqui, hic é um ali illic. Ora, dêste meu aqui me aparece ali,
illic, um corpo como o meu que sòmente se diferencia do meu pelo
aspecto que lhe dá a sua distância d'aqui; portanto, o seu estar
ali. Mas essa diferença não faz diferentes êsse corpo do Outro e
o meu, porque tendo-me eu deslocado ou podendo fazê-lo a êsse
lugar que agora é ali, illic, sei que dali, — illinc, — se vê o corpo
aqui com algumas variantes. Se eu pudesse efetivamente estar ao
mesmo tempo aqui e ali, veria o meu corpo ali como vejo o corpo
do Outro.

Nesta descrição de como me é originàriamente, — estamos


falando sempre do modo originário de aparecerem as coisas, —
de como me é originàriamente dado o corpo do Outro, há dois
erros.- um garrafal e o outro, nada menor mas que podemos,
senão admitir, pelo menos desculpar.

O êrro garrafal consiste em supor que a diferença entre o


meu corpo e o do Outro é sòmente uma diferença na perspectiva,
a diferença entre o visto aqui e o visto daqui, hinc, ali, illic. Mas
a verdade é que isso que chamam "meu corpo" se parece pou­
quíssimo com o corpo do outro. A razão é esta: o meu corpo
não é meu sòmente porque é a coisa mais próxima de mim,
tanto que me confundo com êle e estou nêle, a saber, aqui.
Esta seria apenas uma razão espacial. E meu porque é para mim
o instrumento imediato de que me sirvo para me haver com as
demais coisas, — para vê-las, ouvi-las, aproximar-me ou fugir
delas, manipulá-las, etc. E o instrumento ou órganon universal

160 —
MAIS SÔBRE OS OUTROS E EU — BREVE EXCURSÃO RUMO A ELA

com que conto; por isso, meu corpo é para mim o corpo orgâ­
nico por excelência. Sem êle não poderia viver e na qualidade
de ser a coisa do mundo cujo "ser para" me é mais imprescin­
dível, é minha propriedade no sentido mais estrito e superlativo
da palavra. Tudo isso Husserl o vê perfeitamente. Mas, por isso
mesmo, surpreende que êle identifique a idéia do "corpo, que
é meu" com o corpo do outro que sòmente é para mim através
do meu corpo, do meu ver, palpar, ouvir, resistir-me (5). A prova
de que são quase totalmente diferentes é que as notícias que
tenho do meu corpo são principalmente de dores e prazeres que
êle me dá e que aparecem nêle, de sensações internas de tensão
ou afrouxamento muscular, etc. Em suma, meu corpo é sentido
principalmente de dentro dêle, é também o meu "dentro", é o
intra-corpo, ao passo que do corpo alheio advirto só a sua exte­
rioridade, a sua forma forânea, o seu fora. Vejo as minhas mãos,
parte de meus braços e algumas outras porções da minha cor-
poreidade; com uma das mãos toco a outra ou a minha coxa.
Se com precisão compararmos o que efetivamente me é presente
por fora do meu corpo, com aquilo que me é presente do outro,
o balanço aparecerá com excessiva diferença. O corpo do outro
quase se parece mais com o de alguns animais que também
me são presentes de fora. Dir-se-á que temos espelhos em que
nos vemos por fora, como vemos o corpo alheio. Em primeiro
lugar, porém, o homem primitivo não tinha espelhos e, não
obstante, existia para êle, da mesma forma aue para nós, o

(5) Vejamos se consigo que se entenda a Husserl e a mim:


Aqui, hlc Ali,lllic
X X
corpo A corpo B

Meu corpo é o que sinto aqui, e isso que é para mim chamo corpo A.
O corpo do Outro é o que vejo oil, illlc — de onde vem llle, êle. É o corpo
dêle que chamo corpo B. Segundo Husserl, como posso deslocar-me e fazer
desse all um aqui/ "ponho-me imaginàriamente no lugar do outro corpo", —
esta expressão é literalmente de Husserl —, e então o corpo B se converte
em corpo A. Como se vê/ o corpo A ou meu e o corpo B ou dêle seriam iguais,
salvo a diferença de lugar.

— 161
O HOMEM E A GENTE

Outro Homem. Dir-se-á: havia rios mansos, quietas lagoas, char­


cos em que podia ver-se. Além do mais, em muitos lugares hoje
habitados por povos primitivos não há rios, lagoas nem sequer
charcos, porque mal chove; é claro ainda que o Outro existia
para êles desde crianças, antes de que se dedicassem à contem­
plação da sua própria forma refletida. Sabe-se também que a
exploração e o subjugamento dos povos chamados selvagens se
fez tanto à fôrça de balas como à fôrça de espelhos. Não havia
dádiva que o primitivo mais agradecesse do que a do espelho,
porque era para êle um objeto mágico que criava diante de
seus olhos a imagem de um homem; êle, porém, não se reco­
nhecia nesse homem. A maior parte dêsses primitivos não se tinha
visto a si mesma e, consequentemente, não se reconhecia. No
espelho cada um via precisamente. . . outro homem. Daqui tería­
mos de partir para entender bem o mito de Narciso que, originà-
riamente, não teria consistido em que um jovem se deleitasse
exclusivamente em contemplar a sua própria beleza espelhada na
fonte, mas sim na mágica e súbita aparição de outro homem
onde só havia um, — o eu que era Narciso. O Narciso original
não se via a si próprio mas a outro e com êle convivia na má­
gica solidão da selva, inclinado sôbre o manancial.

O êrro de supor que transponho para o corpo do Outro o


meu, e por isso advirto nêle uma intimidade igual à minha, êsse
êrro é com todo o rigor evidente, se repararmos em que o que
me denuncia e revela o outro eu, o alter ego, não é tanto a
forma do corpo como os seus gestos. A expressão que é o pranto,
ou a irritação, ou a tristeza, não a descobri em mim mesmo mas
primeiramente no outro e, do início significou para mim intimi-
dades: dor, pesar, melancolia. Se tento ver-me choroso, irritado,
aflito, num espelho, ipso facto o meu gesto correspondente se de­
tém ou, pelo menos, se deforma e falseia.

Mal pode partir a aparição do Outro Homem do fato de


que eu transponha imaginàriamente o meu corpo para onde está

162
MAIS SÔBRE OS OUTROS E EU — BREVE EXCURSÃO RUMO A ELA

o dêle, já que às vêzes o que me aparece não é um Outro que


seja homem no sentido de varão, mas um Outro que é outra,
que é a mulher, um Outro que não é Êle, mas Ela. A diferença
surge desde a primeira aparição do corpo alheio, a qual já
vem carregada de sexuação: é um corpo masculino ou feminino.
Há casos em que o corpo presente é epiceno, e vivo em peculiar
e notório equívoco.

A aparição d'Ela é um caso particular da aparição do Outro


que nos faz ver a insuficiência de tôda a teoria que, como a de
Husserl, explique a presença do Outro como tal, por uma pro­
jeção da nossa pessoa íntima sôbre o seu corpo. Notei já que
a expressão alter ego, não é só paradoxal mas contraditória e,
portanto, imprópria. Ego, em rigor, sou sòmente eu e, se o refiro
a outro, tenho de modificar o seu sentido. Alter ego exige ser
entendido analògicamente: há no Outro algo que é nêle o que
o ego é em mim. De comum entre ambos Ego, o meu e o analó­
gico, há sòmente alguns componentes abstratos, e, enquanto
abstratos, irreais. Real só é o concreto. Entre tais componentes
comuns, há um que era, de início, o mais importante para o
nosso estudo: a capacidade de responder-me, de reciprocar. Mas
no caso da mulher ressalta especialmente a heterogeneidade
entre o meu ego e o seu, porque a resposta d'Ela não é a res­
posta de um Ego abstrato, — o Ego, abstrato não responde, por­
que é uma abstração. A resposta d'Ela é já por si, de comêço e
sem mais nada, feminina e como tal a advirto. Acaba sendo,
pois, claramente inválida a suposição de Husserl: a transposição
do meu ego, que é irremediavelmente masculino, para o corpo
de uma mulher, só poderia suscitar um caso extremo de virago,
mas não serve para explicar o prodigioso descobrimento que é a
aparição do ser humano feminino, completamente diferente de
mim.

Dir-se-á, — e isto levou a muitos erros, não só teóricos mas


práticos, políticos ("sufragistas", equiparação jurídica do homem

— 163
O HOMEM E A GENTE

e da mulher, etc.), — que a mulher, uma vez que é um ser huma­


no, não é "completamente diferente de mim". Ora, êste êrro pro­
vém de outro, muito mais amplo, causado por não se ter chegado
a popularizar suficientemente uma reta idéia da relação entre o
abstrato e o concreto. Em um objeto podemos isolar um de seus
componentes, por exemplo: a côr. Esta operação de isolamento,
em que fixamos nossa atenção em um componente da coisa,
separando-o assim mentalmente dos demais componentes, com os
quais inseparàvelmente existe, é o que chamamos "abstração".
Ao abstraí-lo, porém, do demais, extirpamos a sua realidade,
não só porque não existe, nem pode existir isolado, — não há
côr sem a superfície de forma e tamanho precisos sôbre os quais
se estende, — mas porque o seu conteúdo, mesmo como côr, é
diferente, conforme seja essa forma e êsse tamanho da super­
fície. Isto significa que os outros componentes re-operam sôbre
êle, dando-lhe o seu efetivo caráter. Assim, dizer que a mulher
é um ser como eu, porque é capaz de responder-me, não é dizer
nada real, porque nessas palavras desatendo e deixo fora o con­
teúdo das suas respostas, o peculiar como do seu responder.
Quando jovem, voltava eu em um grande transatlântico de
Buenos Aires para a Espanha. Entre os companheiros de viagem,
havia algumas senhoras norte-americanas, jovens e de grande be­
leza. Embora o meu trato com elas não chegasse a aproximar-
se sequer da intimidade, era evidente que eu falava a cada uma
delas como um homem fala a uma mulher que se acha na ple­
nitude de seus atributos femininos. Uma delas se sentiu um pouco
ofendida na sua condição de norte-americana. Pelo visto, Lincoln
não se tinha esforçado em ganhar a guerra de Secessão para
que eu, um jovem espanhol, me permitisse tratá-la como a uma
mulher. As mulheres norte-americanas eram então tão modestas
que acreditavam haver algo superior "a ser mulher". Daí o que
me disse aquela: "reclamo de sua parte que me fale como a
um ser humano". Não lhe pude senão responder: "senhora, não
conheço essa personagem a que chama "ser humano". Conheço

164 —
MAIS SÔBRE OS OUTROS E EU — BREVE EXCURSÃO RUMO A ELA

sòmente homens e mulheres. Como tenho a sorte de que a se­


nhora não seja um homem, mas uma mulher, — certamente es­
plêndida, — me comporto tendo isso em vista". Aquela criatura
havia sofrido, em algum College, a educação racionalista da
época, e o racionalismo é uma forma de beatice intelectual que,
ao pensar uma realidade, procura tê-la em conta o menos pos­
sível. Neste caso, tinha produzido a hipótese da abstração "ser
humano". Devia levar-se sempre em conta que a espécie, — e
a espécie é o concreto e real, — re-opera sôbre o gênero e o
especifica.

O fato de que as formas do corpo feminino se diferenciam


bastante das do masculino não seria causa suficiente para que
no corpo, descubramos a mulher. Mais ainda: essas formas dife­
renciais são as que, com freqüência, nos induzem a interpretar
equivocadamente sua pessoa íntima. Em compensação, qualquer
das partes de seu corpo que menos se diferenciam das do nosso,
nos manifestam, — no modo de com-presença já analisado por
nós, — a sua feminidade. O fato é surpreendente, embora, em
última instância, não mais que a aparição do Outro masculino.

De acordo com isso, estaria mais próximo da verdade dizer


que não são as formas corporais, — que agora vamos qualificar
de peculiarmente femininas, — as que nos assinalam um estranho
modo de ser humano, profundamente diverso do masculino e
que chamamos "feminidade"; muito antes pelo contrário: tôdas
e cada uma das porções de seu corpo nos com-apresentam, nos
fazem entrever a intimidade daquele ser que, de início, não é
a mulher, e esta feminidade interna, uma vez advertida, ressuma
pelo seu corpo e o feminiza. A advertência é paradoxal, mas me
parece inegável: não é o corpo feminino que nos revela a "alma
peminina", mas a "alma" feminina que nos faz ver feminino o
seu corpo.
Perguntar-se-á: que caracteres primários entrevemos, enquan­
to nos é presente a mulher, que constituem para nós a sua femi-

— 165
O HOMEM E A GENTE

nidade elementar e que produzem êsse efeito paradoxal de se­


rem êles, — não obstante serem sòmente com-presentes, — os
que impregnam de feminidade o seu corpo e fazem dêle um
corpo feminino? Não temos espaço aqui, para descrever todos e
é bastante que eu assinale três:
I — No mesmo instante em que vemos uma mulher, parece
que temos diante de nós um ser cuja humanidade íntima se ca­
racteriza, em contraste com a nossa varonil e a dos outros varões,
por ser essencialmente confusa. Suspenda-se o lado pejorativo
com que se costuma entender essa palavra. A confusão não é
um defeito da mulher, como não o é do homem o carecer de
asas. Menos ainda: porque pode ter sentido o desejar que o
varão tivesse asas como o abutre e o anjo, mas não tem sentido
o desejar que a mulher deixe de ser "substancialmente" confusa.
Equivalería a aniquilar a delícia que para o varão é a mulher,
graças ao seu ser confuso. O varão, ao contrário, é feito de
claridades. Tudo se dá nêle com claridade. Entenda-se: "clarida­
de subjetiva"; não efetiva, objetiva claridade sôbre o mundo e
sôbre os seus congêneres. Talvez tudo o que pensa é pura tolice,
mas êle, dentro de si, se vê claro. Daí vem que, na intimidade
varonil, tudo costuma ter linhas rigorosas e precisas, o que faz
dêle um ser cheio de rígidas arestas. A mulher, ao contrário,
vive num perpétuo crepúsculo: não sabe bem se quer ou se não
quer, se fará ou não fará, se se arrepende ou não se arrepende.
Dentro da mulher não há meio-dia nem meia-noite: é crepuscular.
Por isso, é constitutivamente secreta. Não porque não declare o
que sente e lhe sucede, mas porque normalmente não poderia
dizer o que sente ou lhe sucede. E para ela também um segrêdo.
Tudo isso proporciona à mulher a suavidade de formas que pro­
duz a sua "alma" e que é para nós o tipicamente feminino.
Diante das arestas do varão, a intimidade da mulher parece
possuir sòmente delicadas curvas. A confusão, como a nuvem, tem
formas redondas. A isso corresponde que no corpo da mulher a
carne tenda sempre a finíssimas curvaturas, que é o que os ita­

166 —
MAIS SÔBRE OS OUTROS E EU — BREVE EXCURSÃO RUMO A ELA

lianos chamam morbidezza. No Hemani, de Vitor Hugo, dona Sol


tem uma frase inifinitamente, encantadoramente feminina: "Her-
nani, toi qui sais tout!" Dona Sol, não entende aqui, por "saber",
conhecimento, ao contrário, com essas palavras, recorre da sua
confusão feminina à varonil claridade de Hernani, como a uma
instância superior.

II — Porque, com efeito, essa intimidade que descobrimos no


corpo feminino e que vamos chamar de "mulher", se nos apre­
senta de início como uma forma de humanidade inferior à varonil.
Êste é o segundo caráter primário na aparição d'Ela. Em um
tempo como o nosso, em que embora minguante, sofremos a tira­
nia do mito "igualdade", em que, onde quer que seja, encon­
tramos a mania de crer que as coisas são melhores quando são
iguais, a afirmação anterior irritará muita gente. Mas a irritação
não é boa garantia da perspicácia. Na presença da Mulher, nós,
os varões, pressentimos imediatamente uma criatura que, no nível
pertencente à humanidade, é de uma classe vital algo inferior
à nossa. Não existe nenhum outro ser que possua esta dupla
condição: ser humano e sê-lo menos que o varão. Estriba nessa
dualidade a delícia sem par que é, para o homem masculino, a
mulher. A supra dita mania igualitária fêz com que nos últimos
tempos se procure minimizar o fato, — um dos fatos fundamentais
no destino humano, — da dualidade sexual. Simone de Beauvoir,
distinta escritora de Paris, capital da grafomania, escreveu uma
obra volumosa sôbre Le deuxieme sèxe. A essa senhora parece
intolerável que se considere a mulher, — e que ela mesma se con­
sidere, — como constitutivamente referida ao varão e, portanto,
não centrada em si mesma segundo, pelo visto, acontece ao varão.
A senhora Beauvoir pensa que consistir em "referência a outro"
é incompatível com a idéia de pessoa, a qual radica na "liber­
dade para si mesmo". Não se vê claro, porém, porque há de
haver tal incompatibilidade entre ser livre e consistir em estar
referido a outro ser humano. Ao cabo de contas não é frouxa

— 167
O HOMEM E A GENTE

a quantidade de referência à mulher que constitui o macho


humano. Mas êste, o varão, consiste de modo eminente em refe­
rência à sua profissão. A profissionalidade, — já no homem mais
primitivo é, provàvelmente, o traço mais masculino de todos, a
ponto de que "não fazer nada", não ter profissão é sentido
como afeminamento no varão. O livro da senhora Beauvoir, tão
ubérrimo em páginas, nos deixa a impressão de que a autora,
afortunadamente, confunde as coisas, e dêste modo exibe no seu
livro o caráter de confusão que nos assegura a autenticidade
de seu ser feminino. Por outro lado, crer, como se desprende de
seu escrito, que uma mulher é mais pessoa quando não "existe"
preocupada com o homem, mas ocupada em escrever um livro
sôbre "Le deuxième Sèxe" já nos parece algo mais que simples
confusão.
A dualidade dos sexos traz consigo o fato de que homens
e mulheres estejam constituídos pela referência de uns a outros,
a ponto de que, tanto naqueles como nestas, todo modo defi­
ciente em viver referido ao outro sexo é o que, em cada caso,
reclama explicação e justificação. Coisa diferente disto é que
essa referência ao outro sexo, mesmo sendo constitutiva em
ambos tem um grau eminente na mulher, ao passo que no
homem fica mediatizada por outras referências. Com tôdas as
modulações e reservas que a casuística nos faria ver, pode afir­
mar-se que o destino da mulher é "ser em vista do homem".
Esta fórmula, porém, não origina erosão alguma na sua liber­
dade. O ser humano, à fôrça de ser livre, o é diante e em
face do seu destino. Pode aceitá-lo ou resistir a êle ou, o que
dá no mesmo, pode sê-lo ou não sê-lo. Nosso destino não é
sòmente o que temos sido e já somos, não é só o passado; ao
contrário, vindo dêste, se projeta aberto para o futuro. Esta fata­
lidade retrospectiva, — o que já somos, — não escraviza o nosso
porvir, não pre-determina, inexorável, o que ainda não somos.
Nosso ser fututro emerge de nossa liberdade, fonte incessante
que brota sempre de si mesma. A liberdade pressupõe projetos

168 —
MAIS SÔBRE OS OUTROS E EU — BREVE EXCURSÃO RUMO A ELA

de comportamento entre os quais cabe escolher e êstes projetos


só podem formar-se usando o passado, — nosso e alheio, —
como um material que nos inspire novas combinações. O passado,
— nosso destino, — não influi pois, sôbre nós, em forma impo-
sitiva e mecânica, mas como fio condutor das nossas inspirações.
Não permanecemos inexoràvelmente inscritos nêle que, ao con­
trário, nos lança, a todo instante, à livre criação do nosso ser
futuro. Porisso é perfeita a fórmula dos antigos: Fata ducunt non
trahunt, o destino dirige, não arrasta. Ora, por muito grande que
seja o raio de nossa liberdade há nela um limite: não temos
outro remédio senão guardar continuidade com o passado. Nada
nos deixa ver mais claramente em que consiste essa ineludível
continuidade com o passado do que quando o projeto que for­
jamos e que aceitamos consiste na negação radical de um pas­
sado. Vê-se então que uma das maneiras que o passado emprega
para nos inspirar é o incitamento a que façamos o contrário
daquilo que êle havia feito. Isso é o que se chamou desde
Hegel o "movimento dialético", em que cada novo passo con­
siste sòmente na mecânica negação do anterior. Certamente essa
inspiração dialética é a forma mais estúpida da vida humana,
aquela em que precisamente andamos mais perto de nos com­
portarmos com um automatismo quase físico. Exemplo dêste modo
é o que hoje se costuma chamar "arte atual", cujo princípio
inspirador é simplesmente fazer o contrário daquilo que a arte
sempre havia feito; portanto, propor-nos como arte algo que é,
substancialmente, "não-arte".
Tôda essa breve incrustação "filosófica" sôbre passado e
futuro, destino e liberdade, vem enfrentar a tendência de alguns
"filósofos" atuais que convidam a mulher a desenhar o seu "ser
no porvir" deixando de ser o que até agora foi, a saber, mulher,
e tudo isso em nome da liberdade e da idéia de pessoa. Ora,
isso que a mulher foi no passado, a sua feminidade, não procede
do fato de que a sua liberdade e a sua pessoa tenham sido ne­
gadas nem pelos varões, nem por uma fatalidade biológica,- é,

— 169
O HOMEM E A GENTE

ao contrário, o resultado de uma série de criações livres, de


férteis inspirações devidas tanto a ela como ao próprio homem.
Para o ser humano, a dualidade zoológica dos sexos não é,
como não o é o resto das condições infra-humanas, uma impo­
sição inexorável, mas justamente ao contrário, um tema para ins­
piração. Aquilo a que chamamos "mulher" não é um produto da
natureza, mas uma invenção da história, como o é a arte. Porisso
são tão pouco fecundas, tão supérfluas as quantiosas páginas que
a senhora Beauvoir dedica à biologia dos sexos. Só quando se
trata de imaginar a origem do homem, é ineludível ter à vista
os fatos que a biologia da evolução hoje nos apresenta, mesmo
estando seguros de que amanhã nos apresentará outros. Mas,
uma vez que o homem é homem, entramos num mundo de liber­
dade e criação. Muito mais fértil do que estudar a mulher zoolò-
gicamente seria contemplá-la como um gênero literário ou uma
tradição artística.

Voltemos, pois, — sem por isso sentir um rubor que seria


snobismo, — a falar com tôda tranquilidade, da mulher como
"sexo fraco". Mais ainda: proclamemo-lo com sentido mais radi­
cal. Disse que, junto ao caráter de confusão, o outro caráter pri­
mário com que a mulher nos aparece é a sua classe vital inferior
no nível humano. Esta última qualificação só serve para nos
introduzir no fenômeno de que se trata; e não é adequada, por­
que implica uma comparação com o varão e nada é, na sua
própria realidade, uma comparação. Não se trata, pois, de que
a mulher nos pareça, em comparação com o varão, menos forte
vitalmente do que êste. Ao menos por enquanto não há falar de
mais ou de menos, mas dizer que, ao vermos uma mulher, o que
vemos consiste em debilidade. Isto é tão palmar que, por essa
mesma razão, o omitimos quando falamos daquilo que é a mu­
lher. Quando Aristóteles diz que a mulher é um homem enfêrmo,
não é verossímil que se refira a seus periódicos padecimentos,
mas precisamente a êsse caráter constitutivo de debilidade. Mas

170 —
MAIS SÔBRE OS OUTROS E EU — BREVE EXCURSÃO RUMO A ELA

chamar a êste caráter "enfermidade" é procurar uma expressão


secundária que supõe a sua comparação com o homem são.

Neste caráter patente de debilidade se funda a sua inferior


classe vital. Mas, como não podia deixar de ser, essa inferiori­
dade é fonte e origem do valor peculiar que a mulher possui
referida ao homem, porque graças a ela, a mulher nos torna
felizes e é feliz ela própria, é feliz sentindo-se fraca. Com
efeito, só um ser inferior ao varão, pode afirmar radicalmente
o ser básico dêste, — não os seus talentos, triunfos ou êxitos,
mas a condição elementar da sua pessoa. O maior admirador
que tenhamos, dos nossos dotes, não nos corrobora e confirma
como a mulher que se enamora de nós. E isso porque, na ver­
dade, só a mulher sabe e pode amar, isto é, desaparecer em
outro.

Ill — A confusão do ser feminino nos aparece junto com a


sua fraqueza e, de certo modo, procedente desta, mas a fra­
queza, por sua vez, se nos torna compresente no terceiro caráter
primário que anunciei que ia tentar descrever.

O ego feminino é tão radicalmente diverso do nosso varonil


que, desde o primeiro instante revela essa diferença em uma das
coisas mais elementares que podem surgir: em que a relação dêsse
ego com o seu corpo é diferente da relação em que o ego masculi­
no está com o seu.

Já fiz notar anteriormente a incongruência de Husserl, quan­


do afirmava que na percepção do outro identificamos o nosso
corpo com o dêle. Nosso corpo nos é conhecido sobretudo de
dentro e o do próximo, de fora. São fenômenos heterogêneos.

Esquece-se demais que o corpo feminino é dotado de uma


sensibilidade interna mais viva que o corpo do homem, isto é,
que as nossas sensações orgânicas intra-corpóreas são vagas e
como que surdas, comparadas com as da mulher. Vejo neste

—• 171
O HOMEM E A GENTE

fato uma das raízes de que emerge, sugestivo, gentil e admirá­


vel o esplêndido espetáculo da feminidade.

A relativa hiperestesia das sensações orgânicas da mulher


determina que seu corpo exista para ela, mais do que o do
homem, para êle. Nós, os varões, normalmente esquecemos o
nosso irmão corpo, não sentimos que o temos senão na hora
frígida ou tórrida da extrema dor ou do extremo prazer. Entre
o nosso eu, puramente psíquico, e o mundo exterior, nada pa­
rece interpor-se. Na mulher, ao contrário, a atenção é constan­
temente solicitada pela vivacidade de suas sensações intra-cor-
porais: sente em tôdas as horas o seu corpo como interposto
entre o mundo e o seu eu, leva-o sempre diante de si, ao mes­
mo tempo como escudo que defende e como refém vulnerável.
As consequências são claras: tôda a vida psíquica da mulher
está mais fundida com o seu corpo do que no homem; isto é, a
sua alma é mais corporal mas, vice-versa, o seu corpo convive
mais constante e estreitamente com o seu espírito,- isto é, seu
corpo está mais transido de alma. Com efeito, a pessoa femi­
nina oferece um grau de penetração entre o corpo e o espírito
muito mais elevado do que a varonil. No homem, comparativa­
mente cada um costuma ir para o seu lado; corpo e alma sabem
pouco um do outro e não são solidários; atuam até como irre-
conciliáveis inimigos.

Creio que, nessa observação, se pode achar a causa do


fato, eterno e enigmático, que cruza a história humana de ponta
a ponta e do qual não se deram senão explicações estúpidas
ou superficiais: refiro-me à imortal propensão da mulher ao adôr-
no e enfeite do seu corpo. Vista à luz da idéia que exponho,
nada mais natural e, a um tempo inevitável. Sua nativa contex­
tura fisiológica impõe à mulher o hábito de fixar-se, de atender
ao seu corpo, que vem a ser o objeto mais próximo na perspec­
tiva do seu mundo. E como a cultura não é senão a ocupação
reflexiva sôbre aquilo a que a nossa atenção se dirige com pre­

172 —
AAAIS SÔBRE OS OUTROS E EU — BREVE EXCURSÃO RUMO A ELA

ferência, a mulher criou a egrégia cultura do corpo, que histò-


ricamente começou pelo adorno, continuou pelo asseio e acabou
pela cortesia, genial invento feminino que é, em resumo, a fina
cultura do gesto (6).
O resultado dessa atenção constante que a mulher presta
a seu corpo é que êste nos aparece desde o início como impreg­
nado, como cheio todo êle de alma. Nisso se funda a impressão
de fraqueza que a sua presença suscita em nós, porque, em con­
traste com a sólida e firme aparência do corpo, a alma é algo
trêmulo, a alma é algo fraco. Enfim, a atração erótica que pro­
duz no varão não é, como sempre nos disseram os ascetas, —
cegos para tais assuntos, — suscitada pelo corpo feminino en­
quanto corpo,- ao contrário, desejamos a mulher porque o corpo
d'Ela é uma alma.

(6) Utilizei nestes três últimos parágrafos parte do meu estudo “A percepção
do próximo" [Em Obras Completas, tomo VI.]

— 173
VII

O PERIGO QUE É O OUTRO

E A SURPRÊSA QUE É O EU

O nosso tema é achar fatos que com tôda evidência possa­


mos chamar sociais, porque aspiramos a averiguar de verdade
que é isso — a sociedade, e que são tôdas as coisas essencial­
mente conexas a ela. Não nos fiamos naquilo que nos diga
quem quer que seja sôbre a sociedade e o social; queremos des-
cobri-lo nós mesmos diretamente. Os sociólogos todos nos dei­
xaram insatisfeitos quanto às noções fundamentais das suas so-
ciologias e isso porque não se tinham tomado o trabalho de ir
verdadeiramente ao corpo, aos fenômenos mais elementares dos
quais resulta a realidade social. Para tal fim, demos uma minu­
ciosa e lenta batida juntos mas, — bem entendido, — cada um
no seu mundo primordial, que é o da sua vida como realidade
radical e radical solidão. Disso adveio que só encontramos algo
a que conviesse o sentido puramente verbal de relação social,
— ao menos o seu sentido mais corrente na língua e mais corrente
entre os sociólogos, — quando o vivente, que cada um de nós
é, se encontrava com o Outro, — que, em princípio, reconhece
como um semelhante, — e a quem chamávamos o outro Homem.
O atributo característico e primário disso a que chamo o outro
Homem é que êle responde, de fato ou em capacidade, à minha
ação sôbre êle, coisa que obriga a minha ação a contar, ante­
cipadamente, com a sua reação, reação do outro em que, por
sua vez,- se contou com a minha ação. Temos, pois, uma reali­
dade nova e sui generis inconfundível com qualquer outra, a sa-

— 175
O HOMEM E A GENTE

ber: uma ação em que intervém dois sujeitos agentes dela, —


eu e o outro; uma ação em que está inserta, interpenetrada e
involucrada a do outro e que é, portanto, inter-ação. Minha ação
é, pois, social neste sentido do vocábulo, quando conto, nela,
com a eventual reciprocidade do Outro. O outro, o Homem, é
ab initio o reciprocante e, portanto, é social. Quem não seja
capaz de reciprocar favorável ou adversamente não é um ser
humano.
Ora, não se esqueça o outro lado que há nessa capacidade
que tem o Outro de reciprocar-me. Tal capacidade pressupõe que
êle é "vida humana" semelhante à minha,- portanto: uma vida
sua e não minha, com o seu eu e o seu mundo próprio, exclusi­
vos, que não são meus, que estão fora, mais além, transcen­
dentes da minha vida. Advém daí que a única classe de sêres
capazes de me responder, — de corresponder e com-viver co­
migo, — dos quais eu podia esperar que me tornassem possível
sair da minha solidão e comunicar-me com êles, os outros homens,
precisamente por o serem, por serem outros homens e outras vidas
semelhantes à minha, são, na sua radical realidade, incomuni-
cantes comigo. Entre nós cabe sòmente uma relativa e indireta
e sempre problemática comunicação. Mas, desde logo e ao cabo,
isto é, no começo e no fim da minha experiência em tôrno do
outro Homem, êste me é fundamentalmente o Ser Estranho a mim,
o essencial estrangeiro. E quando, no meu trato com êle, creio
colegir que boa parte do seu mundo coincide com o meu e que,
portanto, vivemos num mundo comum, esta comunidade de âm­
bito onde co-existimos, longe de abrir brecha em nossas duas
solidões e fazer que ambas, como duas correntes que rompem
o dique, se fundam e confundam num fluir e ser comum, repre­
senta exatamente o contrário. Porque o meu mundo próprio, ou
da minha vida na sua realidade radical, — embora me resista,
me estorve, me negue em muitos de seus pontos e conteúdos,
— é, ao fim e ao cabo, meu, e o é porque me é patente ao
menos tanto quanto a minha vida e eu mesmo. Nesse sentido me

176 —
O PERIGO QUE Ê O OUTRO E A SURPRÊSA QUE Ê O EU

pertence, me é íntimo e minha relação com êle é cálida como


acontece com o que é doméstico. Ao mesmo tempo me comprime
e me abriga. Os alemães e os ingleses têm vocábulos para
expressar essa deliciosa, difusa emoção daquilo que é íntimo e
nosso e caseiro: dizem gemütlich e cosy. Em castelhano não existe,
o termo, mas um regionalismo asturiano o diz admiràvelmente
e eu me esforço para torná-lo vigente: o vocábulo "atopadizo".
Meu mundo é "atopadizo", inclusive o que dêle é doloroso para
mim. Não posso deter-me agora numa rigorosa fenomenalogia
da dor, — que, entre parênteses, ninguém tentou, — mas ela
mostraria que as nossas dôres, que são uma das coisas que se
encontram no mundo de cada um, ou subjetivo, têm uma di­
mensão positiva em virtude da qual sentimos por elas algo assim
como afeto, — ao mesmo tempo que nos estão exasperando, —
essa como difusa mas cálida atitude que sentimos em relação
a tudo que é autênticamente nosso. O fato é que, enquanto nos
dái, ela nos está efetivamente sendo íntima. Como poderia não
ser assim, se na dor sou sempre eu quem me dói a mim mesmo?
Digo assim, não apenas como um cúmulo, a fim de contrapor a
isso o que nos sucede com o mundo objetivo ou comum, em que
vivemos com os demais homens, e que é o que normalmente cha­
mamos o Mundo e, até, se se quiser, o verdadeiro Mundo. Por­
que êste, como digo, nem é meu nem é teu; não nos é patente,
mas uma imensa conjetura que em nossa convivência vamos
fazendo e que, em razão disso, é sempre problemática, nunca
apresentando-nos a face; ao contrário, chegamos a ela tateando
e constantemente a pressentimos como cheia de enigmas, de por­
ções incógnitas, de surprêsas perturbantes, de alçapões e arma­
dilhas. Aquilo que o Outro é para mim, como estranho e estran­
geiro, se projeta sôbre êsse mundo comum a ambos que é, por
isso mesmo, por vir dos outros, — já o disse, — o autêntico não-eu
e, portanto, para mim a grande estranheza e a formal estrange-
ria. O chamado mundo objetivo, que é o de todos os homens.

— 177
O HOMEM E A GENTE

enquanto formam sociedade, é o correlato desta e, últimamente,


da humanidade.
Mas há outro motivo ainda mais profundo para que o Mundo
Objetivo e comum, ao qual costumamos chamar o universo, me
seja absolutamente estranho e inhóspito, motivo que, a todo risco,
— quero dizer com o risco de não ser logo entendido, — vou
lacônicamente enunciar. Recorde-se que o meu mundo estava
constituído por coisas cujo ser consistia em ser para minha van­
tagem ou meu proveito (1). A êste ser para das coisas chamá-
vamos a sua serviçalidade, que as fazia consistirem em pura re­
ferência a mim: o seu servir-me ou estorvar-me. Ora, êste novo
mundo objetivo comum a ti e a mim e aos mais, que não é meu
nem teu, não pode compor-se de coisas que não se refiram a ne­
nhum de nós, mas de coisas que pretendem existir independentes
de cada um de nós, indiferentes a ti, a mim e ao de mais além.
Em suma, êle se compõe de coisas que me aparecem possuindo
um ser próprio, seu, e não um mero ser para. Constitui a contra­
partida de que êle seja comum e objetivo, isto é: a-subjetivo,
alheio ou estranho ao Homem que sempre tu és ou êle é. O ser
para das coisas me é patente porque o são a mim os seus ser­
viços ou estorvos, mas êsse demônio de mundo que é o Universo
não me é patente, mas presuntivo e, em consequência, precon-
jectural. Nêle convivemos, mas é preciso constar que, enquanto
convivemos no Mundo, vivemos no estrangeiro, — e não haja
sôbre isso a menor dúvida. Por isso, êle é, para nós, tão radical
enigma e por isso há ciências e filosofias, — para sugar-lhe o
segrêdo, para elucidar-lhe o arcano fundo e averiguar o que é.
Porque tudo parecería indicar que alguém quis que vivamos náu­
fragos dentro de seu imenso enigma! Por isso, o Homem, goste ou
não goste, queira ou não queira, é, constitutivamente e sem re­
médio, um decifrador de enigmas e, ao longo da história uni-

(1) Pelo sentido, cabería mais a contraposição: "minha vantagem ou meu dana";
o que se confirma no contexto. Apesar disso, mantenho o que se lê no ori­
ginal (N. do T.)

178 —
O PERIGO QUE Ê O OUTRO E A SURPRÊSA QUE É O EU

versai, se ouve, por trás de todos os seus ruídos, um estridor de


facas que alguém afia no amolador: é a mente humana que
passa e repassa o seu fio sôbre o tenaz enigma, rí rò 6v; que é
o Ser? A essa faina de nos tornarmos vivazmente sensíveis para
o tremendo segrêdo e a infinita adivinhação que é o Universo e
tentar denodadamente decifrá-lo, teremos de voltar ainda e a
fundo, embora não neste curso. Nada nos separa mais profunda­
mente dos dois últimos séculos do que a tendência predominante
nos seus pensadores, para evitar a presença patética do enigma
do qual "vivemos, nos movemos e somos", fazendo, da cautela —
a virtude intelectual única, e, de evitar o êrro — a única aspi­
ração. Hoje isso nos parece pusilânime e inconcebível e sabemos
escutar Hegel quando nos recomenda que tenhamos a coragem
de ousar equivocar-nos. E êste começar a brotar dentro de nós
a fruição pelo enigmático, por olhar frente a frente o enorme
mistério é, em oposição a todos os signos do nosso tempo, que
se acham na superfície e que se interpretam como fadiga e se-
nescência, prenda inconfundível de juventude, é a alegria espor­
tiva, a jovial elasticidade que enfrenta a adivinhação e a chara­
da, — como se à alma do Ocidente sobreviesse uma inesperada
mocidade!
Nesta altura da história nos toca tentar a solução do hieró­
glifo universal, a partir do homem, e é mister, entre outras coisas,
que nos esclareçamos de verdade sôbre a sua condição social.
Nisso estamos e por ora a isso nos restringimos.
Tínhamos reparado que aquilo com que primeiro tropeço, no
meu mundo próprio e radical, são os outros Homens, o Outro,
singular e plural, entre os quais nasço e começo a viver. Encon-
tro-me, pois, de início, num mundo humano ou "sociedade". Não
temos ainda nem a mais remota idéia clara sôbre o que seja
a sociedade. Não obstante, não há inconvenientes em empregar­
mos essa palavra, porque o fazemos informalmente e sem lhe dar
senão um sentido nada comprometedor, a saber: acharem-se os
homens entre si e eu entre êles.

— 179
O HOMEM E A GENTE

Como êsse mundo humano ocupa o primeiro têrmo na pers­


pectiva do meu mundo, vejo todo o resto dêste, e a minha vida
e a mim mesmo, através dos Outros, d'Eles. E como êles, em
tôrno de mim, não cessam de atuar manipulando as coisas e,
sobretudo, falando, isto é, operando sôbre elas, eu projeto na
realidade radical da minha vida tudo quanto eu os vejo fazerem
e os ouço dizerem, — com o que aquela minha realidade radical,
tão minha e sòmente minha, fica coberta, aos meus próprios
olhos, com uma crosta formada pelo recebido dos outros homens,
por suas habilidades e dizeres, e me habituo a viver normal­
mente de um mundo presuntivo ou verossímel, criado por êles,
mundo que costumo dar, sem mais nada, por autêntico e que
considero como a realidade mesma. Sòmente quando a minha
docilidade ao que os Outros Homens fazem e dizem me leva a
situações absurdas, contraditórias ou catastróficas, sòmente então
me pergunto que há de verdade em tudo isso, isto é, me retiro
momentâneamente da pseudo-realidade, da convencionalidade em
que com êles convivo, para a autenticidade da minha vida como
radical solidão. De modo que, num ou noutro grau, dose e fre­
quência, vivo efetivamente uma dupla vida, cada uma delas com
sua ótica e perspectiva próprias. E, se observo ao redor de mim,
me parece suspeitar que a cada um dos Outros acontece o mes­
mo; é digno de notar, porém, que a cada um em dose diferente.
Há quem não viva quase nada, senão a pseudo-vida da con­
vencionalidade, e há, em compensação, casos extremos em que
entrevejo o Outro enèrgicamente fiel à sua autenticidade. Entre
ambos os polos aparecem tôdas as equações intermédias, pois
que se trata de uma equação entre o convencional e o autêntico
que em cada um de nós tem cifra diferente. Mais ainda: em
nosso primeiro momento de trato com o outro, sem atentarmos
especialmente nisso, calculamos a sua equação vital, isto é,
quanto há nêle de convencional e quanto de autêntico.
Conste, porém, que até mesmo no caso de máxima auten­
ticidade, o indivíduo humano vive a maior porção da sua vida

180 —
O PERIGO QUE É O OUTRO E A SURPRÊSA QUE Ê O EU

no pseudo-viver da convencionalidade circundante ou social, como


vamos ver, com algum pormenor, nas lições seguintes. E, como os
Outros são "os Homens", — eu, na minha solidão, não me poderia
chamar com um nome genérico como o de "homem", — advém
daí que vejo o mundo e a minha vida e a mim mesmo, segundo
as fôrmas dêles, isto é, vejo tudo isso tingido pelos outros homens,
impregnado da sua humanidade, em suma, humanizado, — esta
palavra agora tem valor neutro: não sugere se isso, ou o Mundo
humanizado conforme o evangelho dos humanos, que são os
Outros, é coisa boa ou má. Só um ponto é taxativo: êsse mundo
que me é humanizado pelos outros não é o meu autêntico mundo,
não tem uma realidade inquestionável; é sòmente mais ou me­
nos verossímil, ilusório em muitas de suas partes e me impõe o
dever, não ético mas vital, de submetê-lo periòdicamente a de­
purações, a fim de que as suas coisas fiquem postas no seu
ponto, cada uma com o coeficiente de realidade ou de irreali­
dade que lhe corresponde. Esta técnica de depuração inexorável
é a filosofia.
Dessarte, nossa análise da realidade radical, que é a vida
de cada um, nos levou a descobrir que, normalmente, não vive­
mos nela, mas pseudo-vivemos, ao conviver com o jnundo dos
homens, isto é, ao viver em "sociedade". E, como êste é o grande
tema do presente curso, procurávamos, passo a passo, sem tole­
rar atropelamento ou pressa, procurávamos ir vendo como nos
aparecem os diversos componentes dêsse mundo humano, ou
social, e qual é a sua textura.
Já conseguimos um grande avanço: advertimos que há em
cada um de nós um altruísmo básico que nos faz estar a nativi­
tate abertos ao outro, ao alter como tal. Êsse outro é o Homem,
em princípio, o homem ou o indivíduo indeterminado, qualquer
Outro, do qual sei sòmente que é meu "semelhante", no sentido
de que é capaz de me responder com suas reações, em um nível
aproximadamente igual ao das minhas ações, coisa que não me
acontecia com o animal. A essa capacidade de me responder em

— 181
O HOMEM E A GENTE

tôda a amplitude das minhas ações, chamo co-responder-me ou


reciprocar-me. Mas, se não faço outra coisa senão estar aberto
ao Outro, inteirar-me de que está aí com o seu eu, a sua vida
e o seu mundo próprios, não faço nada com êle, e êsse altruísmo
bósico ainda não é "relação social". Para que esta surja, é
mister que atue ou aja sôbre êle, que provoque nêle uma res­
posta. Então êle e eu nos somos e o que cada um faz, respeito
ao outro, é algo que se passa entre nós. A relação Nós é a
forma primária de relação social ou socialidade. Não importa
qual seja o seu conteúdo, — o beijo, a porretada. Beijamo-nos
e batemo-nos. O importante aqui é o nos. Nêle já não vivo, mas
con-vivo. A realidade nós ou nostridade pode chamar-se com o
vocábulo mais usadiço: trato. No trato que é o nós, se se torna
freqüente, continuado, o Outro se vai perfilando diante de mim.
De ser o homem qualquer, o abstrato semelhante, o indivíduo
humano indeterminado, vai passando por graus de progressiva
determinação, fazendo-se mais conhecido, humanamente mais
próximo. O grau extremo de proximidade é o que chamo de
intimidade. Quando tenho trato íntimo com o Outro, êle é para
mim um indivíduo inconfundível com todos os demais, insubsti­
tuível. É um indivíduo único. Dentro, pois, do âmbito de reali­
dade vital, ou de convivência, que é o Nós, o Outro se converteu
em Tu. E, como isto me sucede não só com um, mas com bastan­
tes outros homens, encontro-me com que o mundo humano me
aparece como um horizonte de homens, cujo círculo mais ime­
diato a mim está cheio de Tus, isto é, dos indivíduos para mim
únicos. Mais além dêles se acham zonas circulares ocupadas por
homens dos quais sei menos, até a linha do horizonte do meu
contorno humano, em que se acham os indivíduos para mim
quaisquer, inter-substituíveis. Abre-se, portanto, diante de mim, o
mundo humano como uma perspectiva de maior ou menor inti­
midade, de maior ou menor individualidade ou unidade, em suma,
uma perspectiva de próxima e distante humanidade.

182 —
O PERIGO QUE É O OUTRO E A SURPRÊSA QUE Ê O EU

Chegamos até aqui e daqui temos de arrancar para um


novo avanço. Representemo-nos bem qual é a nossa situação, a
esta altura da análise.
Eu, o eu que é cada um se encontra rodeado de outros
homens. Com muitos dêles, estou em relação social, vivo a reci­
procidade entre êles e eu, que chamávamos a realidade "Nós",
dentro da qual se vão precisando em indivíduos determinados,
conhecidos por mim, isto é, identificáveis por mim, aos quais
chamávamos tus. Mais além dessa esfera ou zona dos Tus, ficam
aquêles outros que tenho à vista no meu horizonte, com os quais
não entrei em atual sociedade, mas que vejo como "semelhantes"
e, portanto, como sêres com os quais tenho uma socialidade po­
tencial, que qualquer evento pode converter em atual. E o sabido:
"Quem me diria que eu iria acabar num trato amistoso com
você!". No caso do amor, a coisa costuma ser mais incisiva, pois
o normal é que nos enamoramos de uma mulher que, um minuto
antes de nos enamorar-mos e antes de que seja para nós a mu­
lher mais única, não sabíamos nada determinado a respeito dela.
Estava aí, em nosso contôrno e não nos tínhamos fixado nela e,
se a tínhamos visto, tínhamo-la visto como indivíduo feminino
qualquer, substituível por outros muitos, como o "soldado desco­
nhecido" é, sem dúvida, um indivíduo, mas não um determinado,
o que os escolásticos muito acertadamente chamavam "o indiví­
duo vago" em oposição ao "indivíduo único". Uma das cenas
mais deliciosamente dramáticas e mais perturbadoras da vida é
essa, às vêzes literalmente instantânea, em que a mulher desco­
nhecida se transforma para nós, como màgicamente, na mulher
única.
Achamo-nos, pois, em um contôrno humano, mas agora te­
mos de haver-nos um pouco mais sèriamente com o tu, porque
necessitamos dizer algo, pelo menos algo do que é preciso dizer
sôbre a maneira pela qual o Outro se vai convertendo para nós
em Tu, e o que nos acontece em relação a êle quando pela
frente jó o temos tutizado, o que não é fácil de passar; ao con­

— 183
O HOMEM E A GENTE

trário, é o mais dramático que nos passa na vida. Até agora,


só nos apareceram, em nosso mundo, o Outro e Êle, isto é, a
chamada, — não discuto se bem ou se mal, — terceira pessoa,
e o Tu, ou segunda pessoa,- mas não nos havia aparecido ainda
a primeira pessoa, o eu, o concreto eu que cada um de nós é.
Pelo visto, o nosso eu é a última personagem que aparece na
tragicomédia da nossa vida. Muitas vêzes nos tínhamos referido
a êle, mas irresponsàvelmente, dando-o por suposto, para co­
meçarmos a entender-nos. Não obstante, fiz constar várias vêzes
que eram inadequados todos os nomes do sujeito do viver, que
me via obrigado a empregar,- que era inexato dizer que o
Homem viva. Já vimos que o Homem originário é o Outro e que,
muito mais do que viver, com-vive conosco e nós com êle.
Conviver, porém, já é uma realidade segunda e presuntiva, en­
quanto que viver na radical solidão é primária e inquestionável.
é também incorreto dizer que eu vivo; já o indiquei antes e agora
mesmo vamos ver que unicamente seria adequado falar de X
que vive, de alguém que vive ou do vivente. Mas entremos, sem
mais preâmbulos, na nova tarefa, que é decisiva para uma com­
preensão plena do que é Sociedade. A coisa, tal e qual a vejo,
que é na forma aproximadamente inversa de como a viram os
únicos que a sério se ocuparam dessa questão, a saber: Husserl
e seus discípulos Fink, Schütz, Lowith, etc., a coisa acaba um
pouco complicada e obriga a um especial esforço de atenção.
As anteriores considerações nos apresentaram os Homens, ao
redor de cada um de nós, a constituírem um contorno humano,
no qual nos aparecem situados: uns, como próximos e outros,
como distantes, repartidos, pois, no que chamei "perspectiva de
humanidade", isto é, em uma forma em que são mais ou menos
conhecidos e individualizados, ou seja: íntimos, e até chegarem
ao zero de intimidade. Partindo daqui, pergunto: que tenho di­
ante de mim, quando qualifico a minha relação com o outro
como um zero de intimidade? Evidentemente não conheço dêle
nada único, que lhe seja exclusivo. Só sei dêle que, dado o seu

184 —
O PERIGO QUE É O OUTRO E A SURPRÊSA QUE É O EU

aspecto corporal, é meu "semelhante", isto é, que possui os mais


abstratos e imprescindíveis atributos do ser humano, portanto:
que sente; mas ignoro por completo o que sente, o que quer,
qual é a trajetória da sua vida, a que aspira, que normas segue
a sua conduta. Ora, imagine cada um que, seja pelo motivo que
fôr, entra em relação social ativa com um ser assim. Essa relação,
— dissemos, — consiste em que você executa uma ação, quer seja
dirigida especialmente a êle, quer seja simplesmente contando
com a sua existência e, portanto, com a sua eventual intervenção.
Isso obriga você a projetar a sua própria ação procurando ante­
cipar a atitude ou a reação do outro. Mas, em que pode você
ou posso eu apoiar-me para essa antecipação? Note-se que os
atributos, há pouco referidos, que constituem êsse outro, para
mim, em zero de intimidade comigo, se resumem, nada menos
mas tampouco nada mais do que nisto: sei que o outro vai pro­
vavelmente reagir à minha ação. Como reagirá — não posso
presumir: faltam-me dados para tanto. Recorro, então, à expe­
riência geral que o meu trato com outros menos distantes, —
cuja relação comigo não fôr zero de intimidade, mas alguma
cifra positiva, — já me proporcionou. Com efeito, todos nós te­
mos, no desvão do nosso saber habitualizado, uma idéia prática
do homem, de quais são as suas possibilidades gerais de con­
duta. Ora, essa idéia da possível conduta humana assim em
geral, tem um conteúdo terrível. De fato, experimentei que o
homem é capaz de tudo, — certamente do perfeito e do egrégio,
mas também, e não menos, do mais depravado. Tenho a expe­
riência do homem bondoso, generoso, inteligente, mas, a seu lado,
também tenho a experiência do ladrão, — ladrão de objetos e
ladrão de idéias, — do assassino, do invejoso, do malvado, do
imbecil. Advém daí que, diante do puro e desconhecido Outro,
tenho de pensar no pior e antecipar para mim que a sua reação
pode ser dar-me uma punhalada. E, como esta, inúmeras outras
reações adversas. O puro outro, efetivamente é, em princípio
tanto meu amigo em potência quanto um potencial inimigo. Mais

— 185
O HOMEM E A GENTE

adiante se verá que essa possibilidade contraposta, mas igual­


mente provável, de que o Homem seja amigo ou inimigo, de que
seja pró ou seja contra nós, é a raiz de tôda socialidade. A
expressão tradicional de que o homem é um animal sociável, no
sentido em que nos acostumamos a entendê-la, obstou sempre o
caminho para uma firme sociologia. Socialidade, sociabilidade
significam estar em relação social com outros, mas "relação so­
cial", — já o disse, — tanto é uma mulher bonita que me dê
um beijo, — que delícia!, quanto um transeunte avesso que me
dê uma punhalada, — que azar!. A interpretação automàtica­
mente otimista das palavras "social" e "sociedade" não se pode
manter e é preciso acabar com ela. A realidade "sociedade"
significa, na sua própria raiz, tanto o seu sentido positivo como
o negativo ou, — dito pela primeira vez neste curso, — tôda
sociedade é, ao mesmo tempo, em uma ou outra dose, dissocie-
dade, que é uma convivência de amigos e de inimigos. Como se
vê, a sociologia rumo à qual dirigimos a nossa proa é muito
mais dramática do que tôdas as precedentes. Mas, se esta dua­
lidade contraditória, ou, melhor dito, contrafactória, da reali­
dade social, já nos apareceu aqui de repente, note-se, no entanto,
que ainda não nos apareceu, nem de longe, o que há por baixo
dessa contraposição, êsse X que igualmente pode ser doce con­
vivência e hostilidade atroz. E êsse X, que existe debaixo de
ambas possibilidades contrapostas, que as carrega em si e de
fato as torna possíveis, é precisamente a sociedade. Mas de
que seja esta, — repito, — ainda não temos nem a mais remota
suspeita.
’ Precisemos, pois: do puro outro, em zero de intimidade, não
tenho outra intuição direta senão aquela que me vem de sua
presença e compresença momentânea; não tenho outra visão se­
não a do seu corpo, dos seus gestos, de seus movimentos, em
tudo o que creio ver um Homem, nada mais. Creio ver um homem
desconhecido, um indivíduo qualquer, ainda não determinado por
qualquer especial atributo. Acrescento a isso algo que não é

186 —
O PERIGO QUE Ê O OUTRO E A SURPRÊSA QUE E O EU

intenção direta dêle, mas a experiência geral do meu trato com


os homens, feita de generalizações sôbre o trato instintivo com
muitos que me foram mais próximos; portanto, algo puramente
conceptual, diriamos teórico — a nossa idéia genérica do Homem
e do humano. Esta compreensão do próximo, formada por duas
fontes diversas de conhecimento, — a intuitiva de cada indivíduo
e a racional, teórica, resultado da minha "experiência da vida",
— vai nos aparecer em todos os outros graus mais positivos de
intimidade; quero dizer: não são como o estudado, o caso extre­
mo de intimidade zero; mas, enquanto neste a intuição do outro
indivíduo está reduzida ao mínimo e a nossa compreensão dêle
gravita principalmente sôbre o nosso saber teórico, ou experiên­
cia geral e intelectual do Homem, nos casos de maior intimidade
cede êste fator e cresce o intuitivo e individualizado.
Concluamos esta análise de nossa relação com o puro e des­
conhecido Outro, tirando-lhe a imediata consequência,- esta: ao
ter, diante dêle, de antecipar a possibilidade de que o outro
seja feroz, — já veremos como o homem é, por um de seus
lados, literal e formalmente dito, um mamífero da ordem das
feras, — não tenho outro remédio em meu trato com êle senão
começar por uma aproximação cautelosa. A êle acontece o mes­
mo em relação a mim e daí o fato de que entre os dois o trato
tenha de começar por uma ação, em si inútil, cuja única fina­
lidade é sondarmo-nos, dar tempo para que descubramos mútua­
mente nossas atitudes e nossas intenções. Esta ação formalmente
inicial, que só serve para ser indicadora e tenteadora do trato,
teve uma enorme importância na história e dura ainda, em alguns
povos, meia hora, e consiste em gestos e ademanes rigorosa­
mente ritualizados. Foi normal na história que êsse simples gesto,
consistente na aproximação de um a outro homem, mesmo sendo
conhecidos, mas muito mais quando não o são, reclame tôda
uma escrupulosa técnica. Esta técnica da mútua aproximação é
o que chamamos o cumprimento, do qual hoje, por peculiares
razões que se darão, só conservamos a forma residual. Eis aqui

— 187
O HOMEM E A GENTE

porque, — fora outras razões, — não temos outro remédio senão


fazer, em próxima lição, uma meditação sôbre o cumprimento.
Note-se que, do puro e determinado outro, do Homem des­
conhecido, precisamente por isso, — quero dizer: por me ser des­
conhecido e por não poder eu presumir de que é capaz, nem
qual vai ser a sua conduta comigo, — tenho apenas um conceito
ao mesmo tempo enorme e ôco. Com efeito, por não saber
como é, lhe atribuo em potência tôdas as possibilidades huma­
nas, inclusive as extremas ou extremistas e mais contropostas,
entre si. Não cabe maior riqueza de atributos. Ao mesmo tempo,
porém, como lhas atribuo em pura e abstrata potencialidade, na
realidade — nada positivo lhe atribuo. É o ôco das possibilida­
des humanas ou, dito de outra maneira: nada humano lhe é
alheio, mas tudo o é, em ôco. E como se tivéssemos o alvéolo
para tôda a sorte de vasilhas, mas sem ter nenhuma delas.
Conforme o vamos tratando, vai-se produzindo em nós um
curioso fenômeno de eliminação progressiva, a saber: vamo-nos
convencendo de que aquêle homem é incapaz de tais ou quais
façanhas e que, em compensação, é capaz de tais ou quais
outros comportamentos, uns — bons, outros — deficientes ou per­
versos. Quer dizer que êle se vai convertendo aos nossos olhos
num sistema definido de possibilidades concretas e concretas
impossibilidades. Isso é para nós cada tu. Isto são para nós as
pessoas com as quais temos algumas proximidades, uma intimi­
dade superior a zero. Realmente: que outra coisa somos uns para
os outros senão, em cada caso, um sistema de ações que cremos
poder esperar do tu, e de ações que cremos estar obrigados a
temer dêle? Se tivéssemos paciência poderiamos fazer um fichá-
rio em que cada próximo teria uma ficha, na qual escrevéssemos
a lista daquilo que julgamos possível ou impossível nêle. Essa lista
poderia tomar a forma de um esquema gráfico em que podia
constar, inclusive, o mais e o menos de uma qualidade ou de
um defeito. Porque isso é pràticamente o mais importante no co­
nhecimento do próximo; pois, salvo casos singulares e extra­

188 —
O PERIGO QUE É O OUTRO E A SURPRÊSA QUE Ê O EU

polados, quase todos os homens têm as mesmas qualidades po­


sitivas e negativas, mas cada um as tem em diferente lugar ou
extrato da sua personalidade; e isso é o decisivo. Pedro e João
são generosos, mas Pedro o é no extrato mais profundo e enér­
gico do seu ser; enquanto João tem a generosidade só na su­
perfície. Não se duvidará de que seria, além de entretido, não
pouco fértil para a grande disciplina que é o Conhecimento do
Homem, desenhar num quadro negro alguns esquemas de estru­
turas humanas, figuras típicas a cada uma das quais pertencem
muitos indivíduos humanos. O melhor discípulo de Aristóteles, ao
qual êste chamou, em razão do seu doce falar, Teofrasto, — isto
é, o da divina fala, — já trabalhou conscienciosamente êste tema,
e do seu labor nos ficou um breve mas ilustre extrato, que são
os seus famosos Caracteres.
Eu disse que o Tu se vai perfilando diante de nós quando
a ilimitação de possibilidades humanas, que ao outro atribuímos
em ôco, se vai reduzindo e, ao reduzir-se concretizando em um
sistema preciso de possibilidades e impossibilidades, sistema que
constitui o que todo tu é, para nós. Esta redução e concreção ou
determinação se produz em nosso trato frequente com êle. Vê-
mo-lo com suficiente continuidade e isto quer dizer o seguinte:
vemos, em sentido literal, a sua fisionomia, os seus gestos, os seus
movimentos e lemos nêles uma boa parte do que se passa na
sua intimidade ou, — o que é o mesmo, com outras palavras,
— entrevemo-lo vivendo a sua vida. Digo "lemos", e emprego
deliberadamente a palavra porque nenhuma outra expressa me­
lhor o que nos acontece em relação a êle. Numa certa posição
dos seus músculos faciais leio "tristeza", em outra "alegria", etc.
Seus movimentos externos me permitem uma interpretação geral­
mente clara, embora seja em algum caso problemática. Vejo-o
entrar numa loja de malas e sair com uma, ir a uma agência
de viagens; tais atos esternos têm um sentido vital por si, —
note-se bem isto: sentido que entendo sem necessidade de recor­
rer ao que sucede na sua intimidade, isto é, ao sentido interno

— 189
O HOMEM E A GENTE

subjetivo e individual seu. Leio naqueles atos o sentido: "fulano


vai viajar". O que êsses atos não me revelam é o porquê e
o para quê dessa ação que é o sair de viagem. Para averiguá-lo,
tenho de recorrer ao meu conhecimento anterior da sua vida e
ao que me dizem os seus gestos naquele instante. Quando falo
de gesticulação, incluo a linguagem, a fala. Já se verá porque.
Atos externos, fisionomia, gesticulação me permitem presen­
ciar o viver do outro Homem, num processo de se fazer para
mim um Tu, e, muito mais, quando já é plenamente para mim
um Tu cotidiano e habitual, a saber, um parente, um amigo, um
companheiro de escritório ou de profissão. Êste presenciar não é
ver patente diante de mim essa vida; é entrevê-la, torná-la com­
presente para mim, suspeitá-la. Mas o cuidado do rigor filosófico
que estas palavras anunciam não nos devem distrair de que
pràticamente vejamos com efeito, presenciemos o viver do Outro
dentro do âmbito de reciprocidade que é a realidade Nós. Vejo
fluir a sua vida sem cesura ou corte, em contínua corrente de
vivências, que só se interrompe nas horas de sono e até, então,
algumas vêzes só parcialmente, porque, enquanto dorme, o
homem continua a miúdo vivendo nessa estranhíssima, misteriosa
forma de vida que é o sonhar. Vejo, assim, a série fluente das
vivências do próximo, conforme se vão produzindo nêle: suas
percepções, seus pensamentos, seu sentir, suas volições. Entenda-
se que não digo que veja integramente, nem muito menos todo
o seu viver, mas sim grandes porções dêle. Atrás dessas porções
sempre ficam para mim, no outro, zonas obscuras, opacas, arca-
nas, alçapões e meandros do seu ser, nos quais não consigo pe­
netrar. O que há é que, sem que eu procure ou queira, tenho
constantemente diante de mim uma figura do caráter, do fazer,
padecer e ser do tu. Essa figura se modifica, constantemente, de
alguma forma, porque, ao continuar presenciando o seu viver,
noto que nunca coincide, exatamente o novo, que ela faz, com
aquilo que a figura prognosticava. Isto é importante, porque é
característico de todo o saber vital, diversamente do saber cien­

190 —
O PERIGO QUE É O OUTRO E A SURPRÊSA QUE É O EU

tífico. Refiro-me, por exemplo, a fatos como êste: por muito bem
que acreditemos conhecer uma pessoa, por muito seguros que
nos sintamos a respeito dos traços que constituem o seu caráter,
ao nos arrojarmos a um prognóstico sôbre qual será o seu com­
portamento, em um assunto que verdadeiramente nos importe,
notaremos que aquele convencimento a respeito do seu modo de
ser vacila, e, últimamente, admitimos a possibilidade de que essa
sua futura conduta seja diferente da presumível. Ora, tal não
ocorre com as antecipações de conhecimento que são as leis físi­
cas e boa parte das biológicas, sem falarmos das matemáticas.
Ao reparar nisto, descobrimos que o saber científico é fechado e
firme, enquanto o nosso saber vital, sôbre os demais e sôbre
nós mesmos, é um saber aberto, nunca firme, de um "dintorno"
flutuante. A razão disso é clara: o homem, seja o outro ou seja
eu, não tem um ser fixo ou fixado: o seu ser é precisamente
liberdade de ser. Isto acarreta que, enquanto vive, o homem
sempre pode ser diferente do que foi até aquêle momento; mais
ainda: é de fato sempre mais ou menos diferente. O nosso saber
vital é aberto, flutuante porque o tema dêsse saber, a vida, o
Homem é já por si também um ser sempre aberto a novas possi­
bilidades. Sem dúvida, o nosso passado gravita sôbre nós e nos
inclina a ser isto mais do que aquilo, no futuro, mas não nos
acorrenta nem nos arrasta. Só quando está morto o Homem,
o Tu tem já um ser fixo: isso que foi e que já não pode refor­
mar, contradizer nem suplementar. Êste é o sentido do famoso
verso em que Mallarmé vê Edgar Poe morto:

Tel qu'en lui-même enfin 1'Eternité le change.

A vida é troca; em cada novo instante se está sendo algo


diferente do que se era, sem ser, portanto, nunca definitivamente
si mesmo. Só a morte, ao impedir uma nova mudança muda o
homem no definitivo e imutável si mesmo, faz dêle para sempre
uma figura imóvel, isto é, liberta-o da mudança e o eterniza.
Isso nos proporciona um novo aspecto daquilo que dizíamos

— 191
O HOMEM E A GENTE

antes. Vejo fluir as vivências do próximo. Estas se sucedem umas


a outras e tal sucessão é tempo. Tanto vale dizer que vejo correr
a vida do outro como que vejo correr, passar, gastar-se o seu
tempo vital, que é um tempo com as suas horas contadas.
Mas enquanto o seu tempo flui e corre diante de mim, o
mesmo acontece ao meu. Enquanto convivemos, uma porção igual
de nossos dois tempos vitais transcorre de uma vez só, isto é:
nossos tempos são contemporâneos. O tu, os tus são nossos con­
temporâneos e, como muito bem diz Schütz, isso significa que en­
quanto trato com os tus envelhecemos juntos. A vida de cada
Homem, ao longo da sua carreira existente, presencia o espe­
táculo de um universal envelhecimento, porque é claro que o
velho vê também como envelhecem as crianças. Desde que nasce,
o homem não faz mais do que envelhecer. A coisa não tem re­
médio, mas talvez não seja tão triste quanto nos leva a supor
uma indevida mas inveterada educação (2).
A idéia de que o tu, presente no meu contôrno, é meu con­
temporâneo, porque os nossos tempos vitais correm paralelos e
envelhecemos juntos, nos faz perceber que há tus que já não são
ou nunca foram nossos contemporâneos e, por não sabê-lo, não
estão presentes em nosso contôrno. São os mortos. Os Outros não
são só os viventes. Há Outros que nunca vimos e que, não obs­
tante, são para nós: as lembranças familiares, as ruínas, os velhos
documentos, as narrações, as lendas nos são um novo tipo de si­
nais de outras vidas que foram anacrônicas conosco, isto é, não
contemporâneas nossas. E preciso saber ler nesses sinais, que não

(2) Se falássemos dos inconvenientes que feria a imortalidade cismundana, —


coisa que, embora pareça mentira, nunca se fez, — nos saltariam à vista
as graças que a mortalidade tem, que a vida seja breve, que o homem seja
corruptível e que, desde* que começamos a ser, a morte intervenha na própria
substância da nossa vida, colabore com ela, comprima-a e densifique-a, faça-
a ser pressa, iminência e necessidade de fazer o melhor a cada instante. Uma
das grandes limitações, — e até deveriamos dizer das vergonhas, — de tô­
das as culturas que até agora existiram, está em que nenhuma ensinou o
homem a ser o que constitutivamente é, a saber: mortal. Isto quer dizer In
mice que a minha doutrina a respeito da morte é estritamente inversa à
existencialista.

192 —
O PERIGO QUE É O OUTRO E A SURPRÊSA QUE £ O EU

são fisionomia, nem gesticulação, nem movimentos atuais, a reali­


dade dêsses tus passados, antepassados. Mais além dos Homens
que se acham dentro do horizonte que é o nosso contorno, estão
muitíssimos mais, são vidas latentes: são a Antigüidade. A histó­
ria é o esforço que fazemos para reconhecê-la, — porque a
técnica do trato com os mortos é uma curiosa modificação da
autêntica atual relação social.
Diz-se que o Outro, o puro Outro, o homem desconhecido,
— simplesmente por sê-lo e por ignorar eu qual vai ser o seu
comportamento comigo, — me obriga, ao aproximar-me dêle, a
imaginar o pior, a antecipar a sua possível reação hostil e feroz.
Isto, expresso com outras palavras, equivale a dizer que o outro
,é formalmente, constitutivamente perigoso. A palavra é magnífi­
ca: enuncia exatamente a realidade a que me refiro. O perigoso
não é resolutamente mau e adverso; pode ser o contrário: bené­
fico e feliz. Mas, enquanto é perigoso, ambas as contrapostas
contingências são igualmente possíveis. Para sair da dúvida é
preciso prová-lo, ensaiá-lo, palpá-lo, experimentá-lo. Isso, — pro­
va, ensaio, — é o que primeiro significou o vocábulo latino
periculum, de onde vem por dissimilação o nosso perigo (3). Obser­
ve-se, de passagem, que o radical per de periculum é o mesmo
que anima a palavra ex-perimentar, ex-periência, ex-perto, per­
ito. Não tenho vagar agora para fazer ver, através de rigorosa
via etimológica que o sentido originário do vocábulo "experiên­
cias" é: ter passado perigos.
O outro Homem é, pois, essencialmente perigoso, e êste ca­
ráter, que aparece superlativamente, quando se trata do desco­
nhecido por completo, perdura em gradação minguante quando
para nós se converte em Tu e, — se falarmos rigorosamente, —
não desaparece nunca. Todo outro ser humano nos é perigoso,
— cada um a seu modo e na sua dose peculiar. Não esqueçam
que a criança inocente é um dos sêres mais perigosos: é ela

(3) O Autor refere-se à forma espanhola, naturalmente: "peligro" (N. do T.)

— 193
O HOMEM E A GENTE

quem incendeia a casa com um fósforo; quem brincando, dis­


para a espingarda; quem derrama ácido azótico no cozido e,
o mais grave de tudo, ela mesma se põe em perigo constante
de cair da sacada, de rebentar a cabeça no canto da mesa, de
engulir a roda do trenzinho com que brinca e, com tudo isso,
nos dá gravíssimos desgostos. E, se a êsse ser chamamos inocente,
quer dizer: não daninho, calcule-se o que serão os que perderam
a inocência.
Essa consciência da periculosidade básica do outro Homem
atravessa vivaz tôda a história, salvo breves etapas em que aqui
ou ali, em tal ou qual sociedade, curiosamente, se obnubila, se
debilita e até se desvanece. Em tôda a história universal, talvez
não tenha acontecido isso em forma tão grave como durante os
dois primeiros terços do século XVIII e, em seguida, de 1830 a
1914. Esse adormecimento ou embotamento, para a evidente e
básica verdade de que todo o próximo é ültimamente perigoso,
foi a causa maior dos sofrimentos e catástrofes que vimos so­
frendo nos últimos trinta e cinco anos. Porque fêz os europeus
perderem o alerta sem o qual os humanos não podem, não têm
direito a viver. Daí a surprêsa, — perfeitamente injustificada, —
com que muitos europeus viram, nesses anos, como subitamente
se abria, em suas nações, um abismo de criminalidade, de fero­
cidade arbitràriamente não suspeitado por êles.
Não são, porém, essas formas extremas, melodramáticas e
claramente ferozes da periculosidade humana, as que agora nos
interessam, mas precisamente as menores e mínimas e cotidianas,
tão cotidianas que, embora as soframos constantemente e por­
que constantemente as experimentemos, não as reconhecemos sob
o nome de perigos. Mas, consideremos bem o que é o fundo
habitual de nossa vida diária, enquanto esta consiste no trato
com o próximo, inclusive com os mais próximos a nós e até
com os nossos familiares. Repito que, por nos ser isso constante
e habitual, não nos precatamos como aquêles que vivem junto
de uma catarata acabam por não ouvir o seu estrondo. O fato

194 —
O PERIGO QUE É O OUTRO E A SURPRÉSA QUE É O EU

é que o fundo, — como diriamos? — o solo e nível sôbre o qual


se produz êsse trato cotidiano, só se pode qualificar adequada­
mente chamando-se "luta". O fato de que costumemos reservar
tal nome para os forcejos superlativos e menos freqüentes que
emergem sôbre aquêle nível, como as montanhas sôbre a linha
do mar, não é motivo para que agora, ao re-operar contra a
habitualização que nos embota, para perceber êsse fundo coti­
diano de nossa convivência com os demais, não o chamemos com
a única expressão adequada: luta. A harmonia exemplar numa
família exemplarmente harmoniosa, cujos membros estão unidos
pelos mais cálidos nexos de ternura, é sòmente um equilíbrio re­
sultante, uma boa acomodação e adaptação mútua a que che­
garam depois de ter cada um recebido os inumeráveis impactos
e choques com o Outro, relativamente tão miúdos como se quei­
ram mas que são, a puridade, uma efetiva luta. Nessa luta
aprendemos quais são as quinas do modo de ser do Outro nas
quais tropeça o nosso modo de ser, isto é: fomos descobrindo
a inumerável série de pequenos perigos que a nossa convivência
com êle traz consigo, para nós e para êle. É, — para citar sò­
mente um mínimo exemplo, — uma palavra, precisamente tal
palavra que não se lhe pode dizer porque o irrita, ou o fere,
ou o perturba ou subleva, etc, etc.
Com isso descobrimos um último e o mais substancial extrato
da periculosidade do Outro, que já não é a eventualidade de
que nos seja, nem mesmo minimamente, hostil e fera, mas o
simples fato de que Tu és Tu, quer dizer: tens um modo de ser
próprio e peculiar teu, não coincidente com o meu.
Do tu, com efeito, brotam frequentemente negações do meu
ser: do meu modo de pensar, de sentir, de querer. Às vêzes, a
negação consiste precisamente em que tu e eu queremos o mes­
mo; isto implica em que temos de lutar por aquilo: é um quadro,
um êxito, uma posição social, para possuir os quais pelejamos
ou contendemos; às vêzes, é uma mulher. De sorte que, até em
tais casos, em que o outro coincide comigo, entra comigo em

— 195
O HOMEM E A GENTE

choque ou me nega. Essas negações ativas que dêle disparam


rumo a mim, fazem com que a minha convivência com êle seja
um choque constante; êsse choque com êle, nisto, naquilo, noutra
coisa mais, êsse choque faz com que eu descubra os meus limites,
as minhas fronteiras com teu mundo e contigo. Percebe-se então
que aquilo que, quando criança cada um chamava "eu" era um
conceito abstrato e sem conteúdo preciso, como o foi, sempre
que o usamos neste curso, até o momento presente. Porque antes,
na minha solidão radical e na minha infância, eu cria que todo
o mundo era eu ou, o que é a mesma coisa: meu. Os outros não
eram nem mais nem menos eu do que eus tinha-os por idênticos
a mim; e a mim — como idêntico a êles. Dizer eu não significava
limitação nem precisão alguma. Meu próprio corpo, na primeirís­
sima infância me parecia sem limites, me parecia chegar até o
horizonte. Foi preciso que eu tropeçasse com os móveis de casa,
— mesas e cômodas, — e ganhasse alguns "galos", para ir des­
cobrindo onde o meu corpo terminava e começavam as outras
coisas. Mesas e cômodas são, desde que existem, os primeiros
mudos pedagogos que mostram ao homem as fronteiras, os limites
do seu ser, — de início, do seu ser corporal. Não obstante, êsse
mundo de mesas e cômodas se destinguia de mim mas, assim
mesmo, era meu — porque tudo nêle era porque era para mim
isso que era. Mas o teu não é para mim, tuas idéias e convicções
não me são: vejo-as como alheias e, às vêzes, contrárias a mim.
Meu mundo está, todo êle, impregnado de mim. Tu mesmo, antes
de sêres para mim o preciso Tu que agora me és não me eras
que no mundo há mais do que aquêle vago, indeterminado eu:
ego, — alter ego. Mas agora, diante de ti e dos outros tus, vejo
que no mundo há mais do que aquêle vago, endeterminado eu:
há anti-eus. Todos os Tus o são, porque são diferentes de mim
e, ao dizer eu, não sou mais do que uma porciúncula dêsse mun­
do, essa pequeniníssima parte que agora começo com precisão a
chamar eu .

196 —
O PERIGO QUE É O OUTRO E A SURPRÊSA QUE E O EU

Existem, pois, desde logo, dois significados da palavra eu,


que é mister separar e distinguir. Vejamos se consigo que se veja
o assunto com plena claridade. Vamos fazer três imaginações su­
cessivas, cada uma delas sumamente singela.

Primeira: imaginemos que, em absoluto, não existisse no


mundo senão aquêle que qualquer de nós é; mas que, não
obstante, êsse único ser humano possuísse linguagem, — o que é
claramente impossível. A função de cada palavra é diferenciar
uma coisa das demais. Ora: que significaria em tal situação a pa­
lavra eu, que êsse ser humano, único e exclusivo, pronunciasse?
Não podia significar a intenção de diferenciar aquêle ser de outros
sêres humanos porque, em nosso imaginário suposto, êles não
existem. Só podia significar que êsse único sujeito vivente se
sentia diferente do Mundo em que vivia e das coisas nêle. Signi­
ficaria, pois, tão só, estritamente, o sujeito que vive no Mundo,
— não o sujeito que vive neste, de uma certa maneira diferente
daquela em que vive outro, porque êste outro, — já o supuse­
mos, — não existe.

Segunda: suponhamos agora que, em vez de ser exclusivo êsse


ser humano, existem muitos, tantos homens quantos há hoje, mas
que existe cada um na solidão radical da sua vida autêntica, por­
tanto, sem comunicação de uns com outros. Note-se que esta nova
situação nada modifica a anterior porque, ao ser cada um incomu-
nicante com os outros, é como se só êle existisse. Não obstante, o
que há de novo é que todos êles usariam o vocábulo eu, que antes
se referia ao exclusivo existente e significava sòmente aquêle, como
"o que vive no seu Mundo". Agora se refere igualmente a todos os
homens, mas significando em todos os casos o mesmo, a saber:
cada um, enquanto vivendo, isto é, sentindo-se diferente do mundo
que o rodeia. A significação de eu continua sendo única, porque
não significa nada diferente, referida a um ou a outro. E o caso
normal do nome substantivo como o chamam os gramáticos.
"Mesa" vale para tôdas e cada uma das mesas, mas sòmente

— 197
O HOMEM E A GENTE

enquanto são mesas e nada mais e sem diferenciar a mesa de


pinho da mesa de caoba, esta mesa de outra mesa.
Terceira: está você em sua sala. Alguém bate à porta e
você pergunta: "Quem é?" Do outro lado da porta respon­
dem: "Eu"! Que significado tem agora êsse vocábulo, isto é, que
coisa nomeia ou que coisa se reconhece por êle? E evidente que
todos os homens, chegando sucessivamente atrás da porta, pode­
ríam dizer o mesmo e, com efeito, cada um na sua vida diz a tôdas
as horas: Eu! Não estamos no mesmo significado de nome subs­
tantivo, genérico, comum e, portanto, normal como nome que
achávamos na segunda imaginação? De nenhuma forma: o que
responde eu atrás da porta, para se dar a conhecer, não dá ao
vocábulo aquêle sentido genérico de "o que vive no Mundo",
mas, ao contrário, ao pronunciá-lo exclui todos os demais e é
como se, na extrema brevidade do vocábulo, condensasse tôda
a sua individualíssima biografia, que supõe conhecida de você.
Mas como isto pode acontecer a outros muitos, que você conhece
não menos intimamente que êsse, temos um tipo de palavra que
não é um nome genérico, comum e normal, isto é, que significa
e nomeia uma só exclusiva e mesma realidade mas, ao contrário,
um nome que, em cada caso em que alguém o emprega, signi­
fica uma realidade diferente. Dizemos eu com uma frequência que
é, às vêzes, excessiva em nossa vida e, sem embargo, conforme
quem o diga, varia o seu significado, pois se refere à diferente
e exclusiva individualidade que cada um de nós é, diante de
cada um dos mais. Isso é o que quer fazer saber aquêle que
bate à porta,- e êle não é um eu, mas o eu único que êle é,
diferentemente e com exclusão de todos os outros. Não cabe,
portanto, mais radical mudança de sentido, em comparação com
o eu da segunda imaginação, o qual, por significar simplesmente
"o que vive no Mundo", vale igualmente para todos os homens,
enquanto aqui exclui formalmente todos, menos êle.
Ora, coisa semelhante acontece com outras palavras: se es­
tamos vários numa sala, podemos dizer "aqui", referindo-o ao

198 —
O PERIGO QUE £ O OUTRO E A SURPRÊSA QUE Ê O EU

lugar em que cada um está; de modo que esta palavra significa


várias realidades diferentes, isto é, diferentes lugares do espaço.
A gramática teve de abrir uma divisão ou categoria especial
para êsses vocábulos e os chama de "palavras de significação
ocasional", cujo sentido é precisado, não tanto pela palavra
mesma, quanto pela ocasião em que seja dita, por exemplo, por
quem seja, numa situação dada, que a diga. Creio que se pode­
ria discutir com os gramáticos se palavras como "aqui" ou como
"eu" têm uma significação ocasional ou se não seria mais exato
dizer que são inúmeras palavras diferentes, cada uma com seu
único e preciso significado. Esse "próximo" que, do outro lado
da porta responde "Eu", não pretende que êsse vocábulo, no
que tem de palavra comum, signifique a sua pessoinha, pois sabe
de sobra que todas'-q^ demais pessoinhas do mundo poderíam
chamar-se a si mesmas da mesma forma. Que é, pois, o que faz
que você, ao ouvir "Eu", reconheça de quem se trata e exclusi-
vize a significação? Algo que a lingüística atual ainda não re­
conhece como palavra, a saber, não o vocábulo, mas a voz com
que é pronunciada, voz cujo tom e timbre são bem conhecidos
de você. Se é assim, se o significativo não é o vocábulo eu como
palavra, mas a voz com que se pronuncia, aquêle de trás da
porta poderia perfeitamente, para se designar, para se fazer re­
conhecer, ter dito "abracadabra", "hipotenusa" ou "estreptomici-
na", ou ainda melhor, porque essas poderíam distrair, combina­
ções arbitrárias de sílabas sem nenhuma significação própria, isto
é, qualquer coisa que possa servir de pretexto para que uma voz
humana soe. Não é necessário fazer constar que os lingüistas já,
repararam nisso, pois é coisa demasiado óbvia para que passe
despercebida; o curioso, porém, é que repararam nisso como se­
nhores particulares, não como lingüistas, quer dizer, a observa­
ção não produziu efeitos sôbre a gramática. E é que êsses efeitos
os teriam obrigado a reformar radicalmente a sua noção de "pa­
lavra" e por conseguinte, tôda a sua tradicional noção de lin­
guagem.

— 199
O HOMEM E A GENTE

Vimos, pois, que a palavra eu tem dois sentidos diferentes:


um genérico, abstrato e de nome comum, "o que vive no Mun­
do", ou qualquer outro parecido, e que é o que mais preocupou
aos filósofos desde Descartes, sobretudo desde Kant, com a série
de filosofias do eu, um eu que nunca acaba de ser o eu con­
creto e único que cada um de nós é. E outro sentido concreto
e único: aquêle que tem, quando quem bate à minha porta e
pergunto "quem é?" me responde: "Eu".

Insisto nesse ponto, porque é de importância, para a minha


doutrina, que se veja claramente, pois me encontro a pique de
fazer notar algo sobremodo inesperado, a saber: que o eu con­
creto e único que cada um de nós sente ser não é algo que de
início possuímos e conhecemos, mas que nos vai aparecendo, nem
mais nem menos que qualquer outra coisa, isto é, passo a passo,
graças a uma série de experiências que têm a sua ordem esta­
belecida, quer dizer, por exemplo, — e isto é o estranho e ines­
perado, — averiguamos que somos eu depois e graças a que co­
nhecemos antes os tus, os nossos tus, no choque com êles, na luta
que chamávamos relação social.

A coisa pode acabar mais clara ainda se a apresentarmos


dêste modo: imaginemos desenhada num quadro a palavra Eu
em caracteres de imprensa, isto é, em caracteres mecânicamente
reproduzidos para evitar qualquer grafologia. Pense-se em que
significação tem para cada um êsse signo, isto é, que coisa de­
nomina; logo se verá que não pode significar nenhuma realidade,
mas sòmente algo abstrato e geral. Isso aparecería com pungente
claridade se, de repente, alguém num teatro gritasse "Eu!". Que
aconteceria? Imediatamente, todos, por um movimento reflexo,
voltariam a cabeça para o ponto da sala de onde brotou o grito.
Este detalhe é importante, meus amigos. Com efeito, todo som,
todo ruído, além do seu conteúdo fônico, traz sempre ao nosso
ouvido, como que màgicamente, a indicação do lugar, do espaço
em que foi emitido. Êste fenômeno próprio a tôda sonoridade.

200 —
O PERIGO QUE Ê O OUTRO E A SURPRÊSA QUE É O EU

que situa o som em sua origem, que localiza inexoràvelmente o


seu ponto de proveniência, — perdoe-se o neologismo (4) —
ainda não foi devidamente estudado pelos psicólogos no capí­
tulo das sensações auditivas. Com razão Bühler o faz notar em
sua Teoria da linguagem (5) aduzindo ainda o fato conhecido de
que, por esta causa, o cego, quando participa de uma conver­
sação com várias pessoas, nota perfeitamente se alguma se dirige
a êle, sem necessidade de que essa pessoa o faça constar, sim­
plesmente porque a voz do interlocutor lhe chega como dirigida
a êle por parte de quem lhe fala, E forçoso então reconhecer
que tôda palavra, enquanto pronunciada, já é de início um
advérbio de lugar, — nova advertência para essa futura e mais
concreta lingüística. Isso quer dizer que todo som nos chega diri­
gido, nos traz, nos carrega e, por assim dizer, descarrega em
nosso ouvido a própria realidade emissora. Ao voltar a cabeça
para o lado de que saía êsse grito "Eu!", não faríamos mais do
que recolher essa realidade, tomarmos posse dela. Mas, quando
o ruído é precisamente a palavra Eu, o que por assim dizer nos
é introduzido no ouvido e, portanto, em nossa pessoa, é essa
outra mesma pessoa que o gritou. E se a conhecemos e reconhe­
cemos a sua voz, ao ouvi-la dizer "Eul", nos disparou a sua
autobiografia inteira, no-la ostenta e exibe. Por suposição, dá-se
o mesmo quando nós, ao dizermos tu a alguém, lhe disparamos
inteira e a queima roupa a biografia que dêle formamos. E o
terrível que têm êsses dois pronomes pessoais, que são velis nolis
os disparos de "humanidade". Compreende-se muito bem o dito
de Michelet (ó): Le moi est haissable, o eu é odioso. Isto prova,
com sobra, que o significado do eu e do tu são super-concretos,
que resumem duas vidas em forma arqui-condensada e por isso
mesmo, fàcilmente explosiva. Daí vem que o seu abuso seja tão
aborrecido e por aí se compreende bem que a cortesia procure

(4) Neologismo em espanhol (N. do T.)


(5) [Publicada pela Editôra Revista de Occidente, 1950.]
(6) Ao que nos consta, o dito é de Pascal: Penseés pág. 455 (N. do T.)

— 201
O HOMEM E A GENTE

regatear o seu emprêgo, para impedir que a nossa personali­


dade gravite excessivamente sôbre o próximo, e o oprima, e lhe
cause erosão. A cortesia, como veremos mais adiante, é uma
técnica social que torna mais suave êsse choque, e luta, e atrito
que é a socialidade. Cria uma série de molas mínimas em tôrno
a cada indivíduo, molas que atenuam as marradas dos demais
contra nós e nossas contra êles. A prova melhor de que é assim,
temo-la em que a cortesia soube alcançar as suas formas mais
perfeitas, ricas e refinadas, nos países cuja densidade de popu­
lação era muito grande. Daí o ter chegado ao seu máximo onde
aquela população é maxima, a saber, no Extremo Oriente, na
China e Japão, onde os homens têm de viver demasiado perto
uns dos outros, quase em cima uns dos outros. E sabido que o
europeu produz na China a impressão de um ser rude, grosseiro
e profundamente mal educado. Não é, assim, surpreendente, que
na língua japonêsa se haja chegado à supressão dêsses dois ba­
laços, — um pouco, às vêzes muito impertinentes, — que são o
eu em que injeto, queira ou não, no "próximo", a minha per­
sonalidade e no tu a minha idéia da sua. Ambos os pronomes
pessoais foram ali substituídos por floridas fórmulas cerimoniosas,
de sorte que, em vez de dizer tu, se diz algo assim como "a
maravilha que há aí", e, em vez de dizer eu, algo assim como
"a miséria aqui presente" (7).

(7) O carnaval, hoje já moribundo, foi a perpetuação, nas sociedades cristãs oci­
dentais, da grande festa paga dedicada a Dionisos, o deus orgiástico que
convida a nos despersonalizarmos e a apagar o nosso eu diferencial e a nos
sumirmos na grande unidade anônima da natureza. Basta isso para que nêle
presumamos uma divindade oriental. E, com efeito, segundo o mito helênico,
Dionisos chega, recém-nascido, do Oriente, em um navio sem marinhagem nem
piloto. Na festa, êsse navio, com o figura do deus, era transportado por
ruas e campos num carro, em meio da multidão embriagada e delirante. Êsse
carros navalis é a origem do nosso vocábulo car-naval, festo em que nos po­
mos máscaras para que a nossa pessoa, o nosso eu, desapareça. Daí, que o
mascarado fale com voz fingida, a fim de que também o seu eu pareça outro
e seja irreconhecível. É a grande festa religiosa em que os homens brincam
de se desconhecer, um pouco fartos de se conhecerem demais. A máscara
e o falsete da voz permitem, na magnífica festividade, que o homem des-

202 —
O PERIGO QUE Ê O OUTRO E A SURPRÊSA QUE Ê O EU

Agora porém, frisemos a meada de tôdas essas observações


e recordemos que a sua trajetória não foi outra senão a que
nos fêz ver como o outro Homem, o tu, é constitutivamente peri­
goso e que a nossa relação social com êle sempre é mais ou
menos luta e choque; mas que, nesse choque e luta com os tus,
vou descobrindo os meus limites e a minha figura concreta de
homem, de eu; meu eu vai me aparecendo lentamente ao longo
da minha vida, como uma pavorosa redução daquilo, imenso,
difuso, sem limites, que antes era e que o era ainda na minha
infância. O meu conhecimento dos tus vai podando, cerceando
êsse eu vago e abstrato, mas que, em abstrato, cria ser tudo. O
teu talento matemático me revela que eu não o tenho. Teu garbo
no falar me faz perceber que o não tenho. Tua rija vontade me
demonstra que sou um molenga. E claro que também vice-versa.
Teus defeitos destacam aos meus próprios olhos os meus dotes.
Dêste modo, é no mundo dos tus e graças a êstes que se me vai
modelando a coisa que eu sou, o meu eu. Descubro-me, portanto,
como um de tantos tus, apenas diferente de todos êles, com do­
tes e deficiências peculiares, com caráter e conduta exclusivos
que desenham o autêntico e concreto perfil de mim mesmo, —
portanto, como outro e preciso tu, como alter tu. E assim temos
que, conforme anunciei, é preciso virar do avêsso, a meu juízo,
a doutrina tradicional que na sua forma mais recente e refi­
nada é a de Husserl e seus discípulos, — Schütz, por exemplo,
— doutrina segundo a qual o tu seria um alter ego. Pois o ego
concreto nasce como alter tu, posterior aos tus, entre êles, — não
na vida como realidade radical e radical solidão, mas nesse
plano de realidade segunda que é a convivência.

canse um momento de si mesmo, do eu que é e folgue a ser outro, e ao


mesmo tempo se livre, algumas horas, dos tus cotidianos em tôrno.

— 203
VIII

DE REPENTE, APARECE A GENTE

E agora nos perguntamos: esgotamos, com essas grandes ca­


tegorias, o mundo original, o mundo vegetal, o mundo animal,
o mundo humano interindividual, — o conteúdo das circunstân­
cias? Não esbarramos com nenhuma outra realidade irredutível
a essas grandes classes, inclusive e muito especialmente a algo
interindividual? Se assim fôsse, adviria que "a sociedade", e "o
social" não seriam uma realidade peculiar e, em rigor, não
havería sociedade.

Mas, vejamos. Quando saímos à rua, se quisermos cruzar de


um passeio a outro, por lugar que não seja nas esquinas, o
guarda do trânsito nos impede o passo. A que classe pertence
essa ação, êsse fato, êsse fenômeno?

Evidentemente não é um fato físico. O guarda não nos im­


pede o passo como a rocha que intercepta o nosso caminho. E
uma ação humana a sua mas, por outro lado, se diferencia so­
bremodo da ação com que um amigo nos pega pelo braço e
nos leva a um aparte de intimidade. Este fazer do nosso amigo
não só é executado por êle, como nasce dêle. Isso ocorreu a
êle, por tais e tais razões, que êle vê claras; êle é responsável
pelo gesto,- e, ademais, o refere à minha individualidade, ao
amigo inconfundível que lhe sou.

Perguntamo-nos: quem é o sujeito dessa ação humana que


chamamos "proibir", mandar legalmente? Quem nos proibe?
Quem nos manda? Não é o homem guarda, nem o homem pre-

— 205
O HOMEM E A GENTE

feito, nem o homem chefe do estado o sujeito dêsse fazer que é


proibir, que é mandar. Quem proíbe e quem manda, — dize­
mos, — é o Estado. Se proibir e mandar são ações humanas, (e
o são evidentemente, já que não são movimentos físicos, nem
reflexos ou tropismos geológicos,) se proibir e mandar são ações
humanas, provirão de alguém, de um sujeito determinado, de um
homem. E o Estado um homem? Evidentemente, não. E Luiz XIV
sofreu uma ilusão grave quando acreditou que o Estado era êle,
tão grave que lhe custou a cabeça do neto. Nunca, nem mesmo
no caso da mais extrema autocracia, um homem foi o Estado. O
homem será, no máximo, aquêle que exerce uma determinada
função do Estado.

Quem é, então, êsse Estado que me manda e me impede de


passar de um passeio a outro passeio?

Se fizermos essa pergunta a alguém, veremos que êsse al­


guém começa por abrir os braços numa postura natatória, —
que é a que costumamos usar quando vamos dizer algo muito
vago, — e dirá: "O Estado é tudo, a sociedade, a coletividade".

Contentemo-nos, por enquanto, com isso e prossigamos: Se


alguém tivesse tido esta tarde o bom humor de sair pelas ruas
da cidade vestido com elmo, lança e cota de malha, o mais
provável é que dormisse esta noite num manicômio ou numa de­
legacia de polícia. Porque não é uso, não é costume. Em com­
pensação, se êsse alguém faz o mesmo num dia de carnaval, é
possível que lhe concedam o primeiro prêmio de mascarado. Por­
que? Porque é uso, porque é costume mascarar-se nessas festas.
De modo que uma ação tão humana, como é a de se vestir,
não a realizamos por própria inspiração, mas nos vestimos de
uma maneira e não de outra, simplesmente porque se usa. Ora,
o usual, o costumeiro, fazemo-lo porque se faz. Mas, quem faz
o que se faz? Ora!... A gente. Muito bem! E quem é a gente?
Ora... Todos, ninguém determinado. Isso nos leva a reparar que
uma enorme porção de nossas vidas se compõe de coisas que

206 —
DE REPENTE, APARECE A GENTE

fazemos, não por gôsto, nem inspiração, nem conta própria, mas
simplesmente porque a gente as faz e, como o Estado, antes, a
gente, agora, nos força a ações humanas que provêm dela e
não de nós.
E mais ainda: comportamo-nos em nossa vida orientando-nos,
nos pensamentos que temos, sôbre o que as coisas são; mas se
dermos um balanço dessas idéias ou opiniões, com as-quais e das
quais vivemos, acharemos com surprêsa que muitas delas, — talvez
a maioria, — não as pensamos nunca por nossa conta, com plena
e responsável evidência de sua verdade; ao contrário, pensamo-
las porque as ouvimos e dizemo-las porque se dizem. Eis aqui
êste estranho impessoal, o se, que agora aparece instalado den­
tro de nós, formando parte de nós, pensando êle idéias que nós
simplesmente pronunciamos.

Muito bem. E então: quem diz o que se diz? Sem dúvida,


cada um de nós; mas dizemos "o que dizemos" como o guarda
nos impede o passo; dizemo-lo, não por conta própria, mas por
conta dêsse sujeito impossível de capturar, indeterminado e irres­
ponsável que é a gente, a sociedade, a coletividade. Na medida
em que penso e falo, — não por própria e individual evidência,
mas repetindo isso que se diz e que se opina, — minha vida
deixa de ser minha, deixo de ser o personagem individualíssimo
que sou, e atuo por conta da sociedade: sou um autômato social,
estou socializado.

E em que sentido essa vida coletiva é vida humana?

Misticamente se quis, desde os finais do século XVIII, supor


que há uma consciência ou espírito social, uma alma coletiva, o
que, por exemplo, os românticos alemães chamavam "Volksgeist"
ou espírito nacional. Certamente não se sublinhou devidamente
que êsse conceito alemão do espírito nacional não é senão o
herdeiro da idéia que Voltaire sugestivamente lançou na sua obra
genial intitulada: Essai sur 1'histoire générale et sur les moeurs
et I'esprit des nations. O "Volksgeist" é o espírito da nação.

— 207
O HOMEM E A GENTE

Mas, isso de alma coletiva, de consciência social é arbitrário


misticismo. Tal alma coletiva não existe, se por alma se entende,
— e aqui não se pode entender outra coisa, — algo que é capaz
de ser sujeito responsável por seus atos, algo que faz o que faz
porque isso tem claro sentido para êle. Ah! Será então caracte­
rístico da gente, da sociedade, da coletividade que sejam preci­
samente desalmadas?

À alma coletiva, "Volksgeist" ou "espírito nacional", à cons­


ciência social, foram atribuídas as qualidades mais elevadas e
miríficas, inclusive em algumas ocasiões, as divinas. Para Durkheim,
a sociedade é verdadeiro Deus. No católico De Bonald, — inventor
efetivo do pensamento coletivista, — no protestante Hegel, no
materialista Carlos Marx, essa alma coletiva parece como algo
infinitamente superior, infinitamente mais humano que o homem.
Por exemplo, mais sábio. E eis que a nossa análise, sem o ter
buscado ou premeditado, sem precedentes formais nos pensado­
res, — ao menos que eu o saiba, — nos deixa nas mãos algo
perturbador e até terrível, a saber: a coletividade é, sem dúvida
algo humano; mas é o humano sem o homem, o humano sem
espírito, o humano sem alma, o humano desumanizado.

Temos aqui, pois, ações humanas nossas, às quais faltam os


caracteres primordiais do humano,- ações que não têm um sujeito
determinado, criador e responsável por elas, sujeito para o qual
elas têm sentido. Trata-se, assim, de ação humana, mas irra­
cional, sem espírito, sem alma, na qual ajo como o gramofone
ao qual se impõe um disco, que êle não entende, como o astro
roda cego pela sua órbita, como o átomo vibra, como a planta
germina, como a ave nidifica. Eis aqui um fazer humano irracio­
nal e desalmado. Estranha realidade essa que agora surge diante
de nós! Parece algo humano, mas desumanizado, mecanizado,
materializado!

Será então a sociedade uma realidade peculiar intermédia


entre o homem e a natureza, nem uma nem outra coisa, mas

208 —
DE REPENTE, APARECE A GENTE

um pouco uma e muito a outra? Será a sociedade uma quase-


natureza e, como ela, algo cego, mecânico, sonâmbulo, irracio­
nal, brutal, desalmado, o contrário do espírito e, não obstante,
precisamente por isso, útil e necessário ao homem? Isso mesmo,
— o social, a sociedade, — não homem nem homens, mas algo
assim como natureza, como matéria, como mundo? Acabará por
fim tendo sentido formal o nome que sempre informalmente se lhe
deu de "Mundo" social?
IX
MEDITAÇÃO SÔBRE O CUMPRIMENTO

Nossa viagem rumo ao descobrimento do que é verdadeira­


mente a sociedade, o social, sofreu uma crise.
Recorde-se que a nossa trajetória partiu da desconfiança que
os sociólogos nos inspiraram, porque nenhum dêles se deteve,
com a morosidade exigível, a analisar os mais elementares fenô­
menos de sociedade. Por outra parte, ao redor de nós, — livros,
imprensa, conversações, — achamos que se fala com a mais
exemplar irresponsabilidade de nação, povo. Estado, lei, direito,
justiça social, etc., etc., sem que os falantes possuam a menor
noção precisa sôbre nada disso; em vista disso, queríamos ave­
riguar, por nossa conta, a possível verdade sôbre essas realidades.
Para tal fim nos pareceu obrigatório pormo-nos diante das pró­
prias coisas a que êsses vocábulos aludem, fugindo de tudo
quanto fôssem idéias ou interpretações dessas coisas, elaboradas
por outros. Queremos recorrer, de tôdas as idéias recebidas, para
as próprias realidades. Tivemos, por isso, de nos retirar àquela
realidade que é a radical, precisamente no sentido de que nela
têm de aparecer, anunciar-se ou denunciar-se tôdas as demais.
Essa realidade radical é a nossa vida, a de cada um.
Em nossa vida se há de manifestar tudo quanto para nós
possa pretender ser realidade. O âmbito em que as realidades
se manifestam é o que chamamos Mundo, nosso mundo primor­
dial, aquêle em que cada um vive e que, em conseqüência é
vivido por êle e, ao ser por êle vivido, lhe é patente e sem mis­
tério. Isso nos levou a fazer um inventário do que há nesse mundo,
inventário focalizado no descobrimento de realidades, coisas, fatos
aos quais com precisão caberia aplicar algum dos imprecisos sen­
tidos verbais das palavras "social, socialidade, sociedade". Nossa

— 211
O HOMEM E A GENTE

pesquisa procurou incumbir-se das grandes classes de "algos", de


coisas que existem patentes em nosso mundo, que integram a
nossa circunstância: minerais, plantas, animais e homens. Só ao
nos encontrarmos com êstes últimos e ao descobrirmos nêles sêres
capazes de responderem, em sua reação, à nossa ação, com uma
amplitude e em um nível de resposta que se igualasse à nossa ca­
pacidade de ação sôbre êles, — capazes, portanto, de nos corres­
ponderem e nos reciprocarem, — só assim nos pareceu acharmos
uma realidade que merecesse chamar-se trato ou relação social,
socialidade.
Dedicamos várias lições a analisar, em sua mais elementar,
abstrata e básica estrutura, o que é a relação social, na qual
o homem vai aparecendo e precisando-se diante do outro homem
e, — de ser puramente o outro, o homem desconhecido, o indi­
víduo ainda não identificado, — passa a ser o indivíduo único,
— o tu e o eu.
Percebemos, agora, algo que é constituinte de tudo quanto
chamamos de "relação social", seguindo o valor verbal dessas
palavras na língua vulgar e corrente, algo em que, por ser tão
evidente, não reparáramos especialmente ou, — o que é o mes­
mo, — de que não tínhamos formado uma consciência à parte e
sublinhada disso, a saber: tôdas essas nossas ações e tôdas essas
reações dos outros, em que consiste a chamada "relação social",
se originam num indivíduo como tal, eu, por exemplo, e estão
dirigidas a outro indivíduo como tal. Portanto: "a relação social",
segundo até agora nos apareceu, é sempre uma realidade for­
malmente inter-individual. Para o caso, é indiferente que os dois
indivíduos que reciprocam sejam entre si conhecidos ou desco­
nhecidos. Mesmo quando o outro seja o mais desconhecido que
caiba imaginar, minha ação, rumo a êle, antecipa, tanto quanto
possível, a sua eventual reação como indivíduo. Pais e filhos,
irmãos, amantes, camaradas, mestre e discípulo, homens de ne­
gócio entre si, etc., são categorias diversas dessa relação inter-
individual. Sempre se trata de dois homens frente a frente, cada

212 —
MEDITAÇÃO SÔBRE O CUMPRIMENTO

um dos quais atua a partir da sua individualidade pessoal, isto


é, por si mesmo e em vista de seus próprios fins. Em tal ação,
ou série de ações, um vive em frente do outro, — seja a favor,
se|a contra, — e por isso em tal ação ambos con-vivem. A rela­
ção inter-individual é uma realidade típica de vida humana, é
a humana convivência. Nessa ação, cada um emerge da solidão
radical que é primordialmente a vida humana e dela tenta
chegar à radical solidão do outro. Isso se produz num plano de
realidade já segundo, — conforme ouvimos escrupulosamente, —
mas que conserva o caráter fundamental do humano, a saber,
que o fato própria e estritamente humano é um fato sempre
pessoal. O pai, como o indivíduo que é, dirige-se ao filho na
qualidade dêste, de outro indivíduo personalíssimo. O indivíduo
enamorado se enamora por si, isto é, na autenticidade íntima de
sua pessoa, por uma mulher que não é a mulher em geral, nem
qualquer mulher, mas aquela precisamente, aquela mulher.
Nossa minuciosa análise dessas relações sociais que agora,
— uma vez percebido seu mais decisivo caráter, — chamamos "re­
lações interindividuais" ou con-vivência, parecia ter esgotado as
realidades que há em nosso mundo e pudessem pretender a de­
nominação de sociais. Isto aconteceu à maior parte dos soció­
logos, os quais não conseguiram sequer pôr o pé na autêntica
sociologia, porque desde o umbral confundiram o social com o
inter-individual. Com isso pareço antecipar que chamar a êste
último "relação social", — como o fizemos até agora, seguindo
o uso vulgar do vocábulo e acomadando-me precisamente à dou­
trina do maior sociólogo recente: Max Weber, — era um puro
êrro. Temos agora de aprender de novo, — e desta vez clara­
mente, — o que é o social. Mas, como se verá, para poder
enxergar, captar com evidência o peregrino do fenômeno social,
era imprescindível tôda a preparação anterior, porque o social
aparece, não como se acreditou até aqui e era demasiado óbvio,
opondo-o ao individual, mas por contraste com o inter-individual.
A simples advertência daquilo que nos sucede, quando que-

— 213
O HOMEM E A GENTE

remos atravessar a rua e o guarda que ordena a circulação


no-lo impede, — com digno, e até, não por acaso, hierático
gesto, — nos mete num corredor, nos sobressalta e é como uma
chicotada de luz. Dizemo-nos então: aqui existe algo totalmente
novo. É uma realidade estranhíssima, em que até agora não
havíamos reparado,- sublinho mais ainda: em que não se havia
devidamente reparado nunca até agora, embora pareça mentira,
embora seja tão clara e tão patente como é, embora nos seja
tão envolvente e cotidiana. Quando alguém a entreviu confu­
samente, por um instante, — como aconteceu ao francês Durkheim,
não conseguiu analisá-la e foi, sobretudo, incapaz de pensá-la,
de traduzi-la para conceitos e doutrina. —
A quem conhece o pensamento de Durkheim e verifique que
a minha análise momentâneamente resvala por dois ou três pontos,
da sua doutrina, parecendo que a minha coincide com a dêle, reco­
mendo que rechace tal sugestão, porque ela impediria total­
mente que êsse alguém entendesse os meus conceitos. Mesmo
nesses dois ou três instantes, — a similaridade é ilusória e deso-
rientadora. Logo se verá que a minha percepção dos novos fe­
nômenos, que agora irão saltando à nossa vista, me levam a
uma idéia do social e da sociedade, portanto, a uma sociologia
tão estritamente oposta à de Durkheim quanto se possa imaginar.
A diferença é tão grande que é tremenda literalmente, porque
a sociologia de Durkheim é beata e a minha é, efetivamente,
tremenda, no sentido de tremebunda.
Nossa relação com o guarda do trânsito não se parece nada
com aquilo que até agora chamávamos "relação social". Não
é uma relação de homem a homem, de indivíduo a indivíduo,
isto é, de pessoa a pessoa. O ato de tentar cruzar a rua nasceu,
— sim, — da nossa individualíssima responsabilidade. Por motivos
de nossa conveniência individual é que o tínhamos decidido.
Éramos protagonistas da nossa ação e esta era, portanto, uma
ação humana, no sentido normal que até agora tínhamos defi­
nido. Do outro lado, o ato, em que o guarda proíbe o nosso

214 —
MEDITAÇÃO SÔBRE O CUMPRIMENTO

passo, não se origina espontâneamente nêle, por motivos pes­


soais seus, nem por êle nos é dedicado de homem a homem.
Enquanto homem e indivíduo, talvez o bom guarda preferisse ser
amável conosco e permitir-nos a travessia; mas se encontra em
situação na qual não é êle quem engendra os seus atos; suspen­
deu a sua vida pessoal, portanto, a sua vida estritamente huma-
na^ transformou-se em um autômato, que se limita a executar, o
mais mecânicamente possível, atos ordenados no regulamento de
circulação. Sej buscarmos o protagonista gerador e responsável
pela sua ação, seremos transferidos a um regulamento, mas o
regulamento não é senão expressão de uma vontade. De quem
é, neste caso, essa vontade? Quem quer que eu não circule livre­
mente? Daqui partiría uma série de transferências que, como uma
série de canjirões, nos fariam desembocar numa entidade que
definitivamente não é um homem. Essa entidade se chama Estado.
E o Estado quem impede o cruzar a rua à vontade. Olho em
tôrno, mas em nenhuma parte descubro o Estado. Ao meu redor
só vejo homens que me consignam um a outro: o guarda ao Chefe
de Polícia, êste ao Ministro do Interior, êste ao Chefe do Estado
e êste, última mente, e já sem remédio, outra vez ao Estado. Mas,
quem ou que coisa é o Estado? Onde está o Estado? Que no-lo
mostrem! Que nos permitam vê-lo! A nossa pretensão é vã: o
Estado não aparece sem mais aquela!. Está sempre oculto, não
se sabe nem como, nem onde. Quando parece que lhe vamos pôr
a mão em cima, o que a nossa mão palpa e no que esbarra é
em um, ou vários, ou muitos homens. Vemos homens que governam
em nome dessa latente entidade Estado, isto é, que mandam e
operam hierarquizados, transferindo-nos de cima para baixo ou
de baixo para cima, do guarda humilde ao Chefe do Estado. E
o Estado uma das coisas que a língua corrente designa como
inquestionàvelmente sociais, talvez a mais social de tôdas. A lín­
gua é sempre fértil indicadora de realidade mas, — entenda-se
bem, — nunca suficiente garantia. Todo vocábulo nos mostra uma
coisa, isto quer dizer que no-la diz, no-la mostra já interpretada,

— 215
O HOMEM E A GENTE

qualificada. A língua é já por si teoria, talvez teoria sempre


arcaica, mumificada; em certos casos, vetustíssima. Já o veremos.
O fato, porém, é que tôda palavra já é uma definição contracto
e como que embebida. Por isso, quando nos mostra uma coisa,
quando nos indica uma coisa, quando nos dirige a essa coisa,
— tal é a missão da palavra, — o homem de ciência, e não
sòmente de palavras, devia dizer-nos: vejamos! Assim neste caso:
o Estado não me deixa atravessar a rua ao meu alvitre. Ao de­
mônio o Estado! O Estado é uma coisa social. Vejamo-lo! Mas
o caso é que não o vemos: o Estado, coisa social, oculta-se sem­
pre atrás de homens, atrás de indivíduos humanos que não são,
nem pretendem ser, sem mais nada^coisas sociais. Ç como exa­
tamente o mesmo nos vai acontecer com" tôdas as coisas sociais
que iremos encontrando, é mister que nos preparemos no exer­
cício de métodos de detetive, já que, efetivamente, e por razões
que veremos na hora própria, a realidade social e tudo quanto
pertence estritamente a ela são essenclálmente ocultativos, enco­
bertos, sub'-"reptfcfós>--,Temos aqui a causa, — embora agora só
enunciada e não esclarecida, — de que a Sociologia seja a mais
recente entre as ciências de Humanidade e, é claro, a mais atra­
sada e balbuciante.
Mas, à parte a coisa social "Estado", que nos apareceu,
indicada e, ao mesmo tempo, oculta pelo guarda, podemos ràpi-
damente fazer sair do seu habitual entocamento várias outras
coisas sociais. Ora, se nos vestimos como nos vestimos, não é por
própria ocorrência nossa, nem em virtude de pura vontade pes­
soal, mas porque se usa andar coberto com uma certa forma de
vestimenta e atavio. Essa forma deixa uma certa margem de es­
colha ao nosso capricho, mas as linhas principais da indumen­
tária não são escolhidas por nós; ao contrário, somos forçados
a aceitá-las. Aqui também alguém nos manda que nos vistamos
de certa maneira e não de outra e aqui tampouco podemos
capturar quem no-lo manda. Vestimo-nos assim porque é uso. Ora,
o usual, o costumeiro, nós o fazemos porque se faz. Mas: quem

216 —
MEDITAÇÃO SÔBRE O CUMPRIMENTO

faz o que se faz? Ora, a gente. Muito bem; mas: quem é a


gente? Todos e ao mesmo tempo ninguém determinado. Aqui tam­
pouco encontramos qualquer autor do uso, que o tenha querido
e que seja responsável pela sua realidade como uso. Nosso ir e
vir pela rua e o nosso vestir têm esta estranhíssima condição de
que o executamos nós e, portanto, é um ato humano; mas, ao
mesmo tempo, não é nosso, não somos seus sujeitos agentes e
protagonistas; ao contrário< Ninguém, v êsse ninguém indetermi­
nado, — decide em nós, resolve-o e pròpriamente o faz, sendo,
pois, um ato inumano. Que gênero de heteróclita realidade é
esta, — mais ainda do que heteróclita: formalmente contraditória,
— que é, ao mesmo tempo, humana e não-humana, isto é, inu­
mana? Ao fim de contas, atravessar ou não atravessar a rua,
vestir-se, são comportamentos nossos externos. Mas, ocorre que,
se fizermos o balanço das idéias, ou opiniões com as quais e das
quais vivemos, acharemos com surprêsa que a sua maior parte
nunca foi pensada por nós com plena e responsável evidência;
ao contrário: pensamo-las porque as ouvimos e dezemo-las por­
que se dizem. Aqui reaparece o impessoal se que significa alguém,
mas sob a condição de que não seja nenhum indivíduo deter­
minado. Êste se da nossa língua é estupefaciente e mirífico: no­
meia um alguém que é ninguém; como se disséssemos um homem
que não seja precisamente nem êste, nem êsse, nem aquêle, etc.;
portanto que seja nenhum. Entende-se isso? Espero que não, por­
que é bastante difícil de entender. Recordo-me novamente do
dandysmo, — o dandysmo é sempre depreciativo, — de Baude­
laire, quando alguém lhe perguntava onde mais gostaria de viver,
e da sua resposta negligente: "Ahl Em qualquer partel Em qual­
quer parte, contanto que seja fora do mundo!" Pois, semelhan­
temente o se significa qualquer homem, contanto que não seja
nenhum. A coisa aparece mais clara ainda em francês: por se diz
emprega-se "on dit". O impessoal é aqui on, — que, como é sa­
bido, não é mais que a contração e resíduo de homo, homem,
— de modo que explicando o sentido de "on dit", temos: um

— 217
O HOMEM E A GENTE

homem que não é nenhum homem determinado e, como os


homens são sempre determinados, — são êste, êsse, aquêle, —
um homem que não seja um homem. O título que a gramática
dá a êste pronome se, é, diante dos pronomes pessoais, o de
pronome impessoal. Mas o homem, se é pròpriamente homem, é
pessoal; o fato humano, já o dissemos, é um fato sempre pessoal.
Temos aqui, no entanto, um homem impessoal, — "on", se, —
que faz o que se faz e diz o que se diz; portanto: um homem
inumano. E o mais grave, quando fazemos o que se faz e dize­
mos o que se diz, e que, então, o se, êsse homem inumano,
êsse ente estranho, contraditório, nós o levamos dentro de nós
e o somos.
Assim é o inegável e inquestionável fenômeno: tal é a nova
realidade que achamos iniludivelmente diante de nós. Trata-se,
agora, de ver se somos capazes de entendê-la, de concebê-la
com total e evidente transparência. O que não é lícito é eludi-la,
negá-la, porque é patente de sobra, não obstante o seu caráter
sumidiço. Para tentar vê-lo, convém que submetamos a uma aná­
lise o exemplo de um fato social que me parece o mais adequado
a permitir-nos entrar a fundo na questão.
Qualquer um de nós vai à casa de algum conhecido seu,
onde sabe que encontrará reunidas diferentes pessoas também
conhecidas. E indiferente qual seja o motivo ou pretexto geral
da reunião, desde que pertença à esfera privada e não à oficial.
E uma simples visita de aniversário, ou pelo santo do dia; é um
coquetel, é uma festa chamada "de sociedade", é uma reunião
em que se vai tratar privadamente de um assunto qualquer. Vou
a essa reunião em virtude de um ato voluntário meu, movido pela
minha própria intenção de fazer nela algo que pessoalmente me
interessa. Esse algo pode consistir em uma ação ou numa com­
plicada série de ações; tanto faz, para o que agora nos inte­
ressa. O que importa é ter presente que tudo isso que vou fazer
me ocorreu a mim, procede da minha própria inspiração e tem
sentido para mim. E embora o que vou fazer seja o mesmo que

218 —
MEDITAÇÃO SÔBRE O CUMPRIMENTO

outros tenham feito, o caso é que o faço agora por minha


conta, originalmente ou re-originando-o em mim. Tais atos têm,
pois, os dois caracteres mais salientes, específicos do comporta­
mento humano: nascem da minha vontade, sou eu plenamente o
seu autor, e são inteligíveis para mim, entendo que faço, porque
e para que o faço.
E agora vem o estupefaciente: qual é a primeira coisa que
faço em casa do meu amigo, ao entrar no salão em que as
pessoas estão reunidas? Qual é a minha ação inicial, a que an­
teponho a tôdas as demais, como uma primeira nota na melo­
dia de comportamento que vou desenvolver? Justamente algo
estrambótico; estranbótico porque me surpreendo executando uma
operação que consiste nisto: aproximo-me de cada uma das pes­
soas presentes, tomo-lhe a mão, aperto-a, sacudo-a e em seguida
a abandono. Esta ação feita por mim se chama cumprimento.
Mas, foi isso que fui fazer ali? Apertar e sacudir as mãos dos
demais e deixar que apertem e sacudam a minha? Não, êste
fazer não está na lista daquilo que eu, por minha parte, ia fazer.
Não o tinha premeditado. Não me interessa. Não tenho empe­
nho nenhum em executá-lo. Talvez até me seja desagradável.
Não é, pois, algo que provém de mim, embora, indubitàvelmente
o faça, o pratique eu.
Que será então o cumprimento? Tanto não me interessa que,
em geral, nem sequer o refiro individualmente a cada proprie­
tário da mão que aperto e o mesmo acontece a êle em relação
a mim. Tudo que disse, — e para isso foi dito, — nos permite
reconhecer com plena clareza que êsse ato do cumprimento não
é uma relação inter-individual ou inter-humana, embora, efetiva­
mente, sejamos dois homens, dois indivíduos que nos damos as
mãos. Alguém ou algo X, que não somos nem o outro nem eu,
mas que nos envolve a ambos e que está como sôbre nós, é o
sujeito criador e responsável pelo nosso cumprimento. Neste,
sòmente poderá haver de individual, alguma mínima mossa ou
detalhe, sobrepostos por mim à linha geral do cumprimento,

— 219
O HOMEM E A GENTE

algo, portanto, que não é pròpriamente cumprimento e que faço


deslisar nêle como secretamente, sem que apareça; por exem­
plo: a maior ou menor opressão, o modo de atrair a mão, o
ritmo ao sacudi-la, ao retê-la, ao soltá-la. Com efeito, não aper­
tamos duas mãos de uma maneira exatamente igual. Mas êsse
leve componente de gesto emotivo, secreto, individual, não per­
tence ao cumprimento. Trata-se, portanto, de um levíssimo bor­
dado que por minha conta acrescento à talagarça do cumpri­
mento. O cumprimento é a forma rígida, sempre idêntica em
esquema, notória e habitual, que consiste em tomar a mão alheia,
apertá-la, — pouco ou muito, não importa, — sacudi-la um mo­
mento e abandoná-la.
O que agora estou fazendo é procurar que ninguém nos
conte o que é o cumprimento, mas, ao contrário, que cada um
se acautele, de início, quanto ao que lhe sucede a êle próprio
e sòmente a êle, quando cumprimenta, e êste cumprimento é
um fato patente, algo que vive, isto é, que lhe acontece, vivendo
com plena evidência. Trata-se de evitar que se façam hipóteses,
suposições, — por mais plausíveis que pareçam, — e ater-se a
contemplar estritamente aquilo que nos acontece e enquanto nos
acontece ao cumprimentarmos. Só êste método radical nos pode
defender do êrro.
Tendo, assim, cada um, bem à vista, o que lhe acontece
quando cumprimenta, tomemos posse intelectual dos caracteres
mais importantes que nesse ato nosso se manifestam com tôda
evidência:
I — É um ato que eu, ser humano, executo.
II — Mas, embora eu o execute, não me ocorreu a mim, não
o inventei ou pensei por minha conta, mas o copio ou o repito
dos outros, dos demais, da gente que o faz. Vem a mim de
fora de mim, não é de origem individual minha, mas tampouco
oPtjJmdrTfe nenhum indivíduo determinado. A todo outro indi­
víduo vejo que lhe acontece o mesmo que a mim, que êle o
toma da gente, de que se faz. é, portanto, um ato de origem

220 —
MEDITAÇÃO SÔBRE O CUMPRIMENTO

extra-individual, nem meu, nem teu, nem de ninguém determi­


nado.
III — Não sòmente, porém, não sou eu, como não és tu o
criador dêsse ato; não sòmente é em nós pura repetição, como
não o executo por espontânea vontade; mais ainda: com fre-
qüência o cumpro a contragosto e suspeito que a ti, que a todo
tu acontece o mesmo.
IV — É conseqüência de tudo isso o encontrar-me eu, ser
humano, a executar um ato ao qual faltam dois dos caracteres,
imprescindíveis a tôda ação estritamente humana: originar-se in­
telectualmente no sujeito que a faz e engendrar-se na sua von­
tade. Portanto, muito mais do que com um comportamento huma­
no se parece com um movimento mecânico, inumano.
Mas agora vem o pior, pois acontece que êste meu fazer,
que é tomar e dar a mão, e que eu não fui premeditadamente
realizar naquela reunião, não só não me ocorreu a mim mesmo,
não provém do meu querer, como também, apesar de ser ele­
mentar, simplicíssimo, freqüente, habitual como é, eu nem sequer
o entendo.
Com efeito, não sei porque a primeira coisa que tenho de
fazer, ao encontrar outros homens algo conhecidos, é precisa­
mente essa estranha operação de sacudir-lhes a mão. Dir-se-á,
um pouco apressadamente, que não é assim, que sei porque o
faço, pois sei que se não dou a mão aos demais, se não cum­
primento, me terão por mal educado, desdenhoso, presunçoso,
etc... Isto é sem dúvida certo e já veremos a decisiva importância
que tem; mas não confundamos as coisas por que aqui está tôda
a qüestão. O que sei, o que entendo é que tenho de fazer isso,
mas não sei, não entendo isso que tenho de fazer.
É inteligível, tem sentido que o médico pegue a mão do
doente para tomar a sua temperatura e contar o seu pulso. É
inteligível, tem sentido que eu detenha a mão que empunha um
punhal disposto a partir-me o coração; mas o dar e tomar a
mão no cumprimento, nisso não encontro finalidade nem sen-

— 221
O HOMEM E A GENTE

tido algum. E mo confirma o fato de que se eu fôr ao Tibete,


o próximo tibetano, em ocasião idêntica, em vez de me dar a
mão, torce a cabeça para o lado, puxa uma orelha e põe a
língua de fora, — complicada operação cuja finalidade e sentido
estão muito longe de me ser translúcidos.
Não nos ocupemos agora em passar em revista as formas
de cumprimento que surgiram na História, das quais boa parte
ainda se executa no presente. Urge agora extrair, com todo
rigor, do nosso próprio ato de cumprimentar, os caracteres que
êle exibe enquanto ação que nós, sêres humanos, exercemos. Já
tínhamos sublinhado dois:
1) Que não é uma ocorrência ou invenção do indivíduo que
cada um de nós é; ao contrário, nos vem já inventada, de fora
de nós, não sabemos por quem; isto é, não nascida em outro
indivíduo determinado; mas que todos os indivíduos hoje viventes
já se encontram com ela, exatamente como eu e como tu. É,
portanto, uma ação cumprida por nós, mas que não é nossa,
que tem uma origem anônima, extra-individual.
2) Sôbre ser extra-individual sua execução por nós, não é
voluntária. Aceitamos fazê-lo, mas não por desejo nem espon­
tâneo querer.
A isso vem somar-se o último caráter que acaba de reve­
lar-se:
3) Que isso que fazemos, ao cumprimentar, não o entende­
mos; é para nós tão sem sentido e misterioso corno possa .sê-lo
o arcano mais insondável da Natureza,- è, portanto, irracional.'"''
Podemos agora inverter a ordem dêsses três caracteres e
dizer: se não entendemos o ato de cumprimentar, mal poderá
êle ter ocorrido a nós,- ademais, se não tem sentido para nós,
mal podemos querer fazê-lo. Só se quer fazer algo que nos
seja inteligível. Portanto, é coisa clara que não só cumprimen­
tamos sem saber o que fazemos, ao dar a mão no cumprimento,
— inumanamente, pois, — mas ainda, em conseqüência disso,
fazemo-lo sem querer, contra a nossa vontade gôsto ou dispo­
MEDITAÇÃO SÔBRE O CUMPRIMENTO

sição. E, assim, uma ação sôbre ininteligível, involuntária, às vêzes


contravoluntária, — novo caráter de inumanidade. Mas, o que
não se faz por gôsto, se faz com desgosto e o que se faz com
desgosto ou contragosto se faz a fôrça ou forçadamente e, com
efeito, o cumprimentar é um fazer que fazemos a fôrça, não
muito diversamente de como aquêle que cai de um segundo
andar faz êsse seu cair a fôrça,- entenda-se: a fôrça de gravi­
dade.
Já veremos que as prontas objeções a essas minhas últimas
palavras, que parecem óbvias, são muito menos certeiras do que
aquilo que de início se pode pensar.
Bem sei que o amante gosta de cumprimentar a amada;
recordo bem que tôda a Vita Nuova e, como se diz ali, a vida
inteira de Dante gira em tôrno do anseio de um cumprimento,-
bem sei que o namorado aproveita fraudulentamente a ocasião
de cumprimentar, para estremecer ao fazer sentir à pele da sua
mão o calor da pele de outra. Mas êste prazer não é prazer
do cumprimento, — que não é nenhum prazer, — mas, ao con­
trário, uma fraude que o fazemos padecer, um abuso do uso
que é o cumprimento. Até não sei bem porque o amor sempre
mostra a fértil inspiração fraudulenta e se comporta como con­
trabandista alerta que não desperdiça ocasião. E êsse mesmo
namorado percebe perfeitamente que o cumprimento não é essa
delícia já que, usualmente, a delícia de palpar a mão querida
lhe custa o preço de ter que apertar a de outros vários ou
muitos, não poucas entre elas aborrecidamente suarentas. Para
êle também, o fato de cumprimentar é uma operação que faz
a fôrça. Ora, mas quem nos força? A resposta é indubitável: o
uso. Ora, mas quem é êsse uso que tem fôrça para forçar-nos?
Quem é êsse forçudo atleta do uso?
Não podemos evitar de nos haver cara a cara com êsse
novo problema. Necessitávamos averiguar o que é o uso e, se­
guindo o nosso estilo, vamos fazê-lo a fundo porque, embora
se julgue inverossímil, até agora ninguém se deu a êsse trabalho.

— 223
O HOMEM E A GENTE

Nós mesmos, ao fazermos o inventário das realidades que in­


tegram o nosso contôrno e o nosso mundo, estivemos a pique
de não perceber essa nova realidade. E o fato é que não há
realidade mais abundante e omnipresente ao redor de nós. Não
é sòmente o uso estatal de não nos deixarem atravessar a rua
e os outros inúmeros comportamentos a que o Estado nos obriga;
nem são sòmente as normas no vestir, que nos vêm impostas
pelo nosso contôrno,- mas o uso que se intercala na relação mais
puramente inter-individual, entre a mãe e o filho, por exemplo,
ou entre o amante e a amada, uso que se intercala porque,
para se entenderem, não têm outro remédio senão usar uma
linguagem, e uma língua não é senão um imenso sistema de
usos verbais, um gigantesco repertório de vocábulos usados e
de formas sintáticas estereotipadas. Desde que nascemos, a língua
nos é imposta e ensinada ao ouvirmos o dizer da gente que é,
de início, isso, — língua. Mas como vocábulos e formas sintáticas
carregam sempre significação, idéia, opinião, o dizer da gente
é, ao mesmo tempo, um sistema de opiniões que a gente tem,
de "opiniões públicas", é o imenso conjunto da opinião pública
que nos penetra e se insufla em nós, que quase nos enche por
dentro e que sem cessar nos oprime de fora.
Advém, pois, que vivemos, desde que vemos a luz, submer­
sos em um oceano de usos, que êstes são a primeira e mais
forte realidade com que nos encontramos: são sensu stricto o
nosso contôrno ou o mundo social, são a sociedade em que vi­
vemos. Através dêsse mundo social ou de usos, vemos o mundo
dos homens e das coisas, vemos o Universo.
Merece, portanto, a pena que tentemos esclarecer-nos plena­
mente sôbre o que é o uso, como se forma, que é que lhe acon­
tece quando cai em desuso, e em que consiste essa contravenção
do uso que costumamos chamar de abuso.
Para que essa investigação se nos torne evidente, devemos
fazê-la analisando um uso concreto, e nenhum me parece tão
a propósito como o cumprimento.

224 —
X

MEDITAÇÃO SÔBRE O CUMPRIMENTO.


O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÓGICO.
QUE É UM USO?

Em nosso contôrno não havia sòmente minerais, vegetais e


homens. Havia, além disso, e de certo modo antes de tudo
isso, outras realidades, — que são os usos. Desde o nosso nas­
cimento nos envolvem e nos cingem por todos os lados; nos opri­
mem e comprimem; injetam-se em nós e nos insuflam, penetram-
nos e enchem-nos quase até as bordas,- por tôda a vida somos
seus prisioneiros e seus escravos. Ora, e que é o uso?
No dizer da gente, encontramos a palavra "uso" entron­
cada com a palavra costumes. "Usos e costumes" marcham
juntos, mas se tomamos a sério o e, que parecia qualificar como
diferentes uma e outra coisa, vemos que não podemos distingui-
las ou que a distinção é arbitrária. O fata de que essa parelha
perdure na língua como um casamento feliz se explica porque,
efetivamente, o conceito "costume" parece mais significativo e
ajuda a designar o que se pensa vulgarmente quando se diz
"uso". O uso seria o costume, e o costume é um certo modo de
comportar-se, um tipo de ação costumeira, isto é, habitualizado. O
uso seria, assim, um hábito social. O hábito é aquela conduta que,
por ser executada com freqüência, se automatiza no indivíduo e se
produz ou funciona mecânicamente. Quando essa conduta nâa é
freqüente apenas num indivíduo mas, ao contrário, são freqüentes
os indivíduos que a freqüentam, teríamos um uso costumeiro. Com
outras palavras, isto é o que acaba dizendo sôbre o uso o único so-

— 225
O HOMEM E A GENTE

ciólogo que se fatigou um pouco a analisar os fenômenos elementa­


res de sociedade. A frequência de um comportamento neste indiví­
duo, naquele e no outro além seria, portanto, a substância do
uso; tratar-se-ia, pois, de uma realidade individual, e só a sim­
ples coincidência, mais ou menos fortuita, nesse comportamento
frequente de muitos indivíduos, lhe daria o caráter de fato social.
Ninguém menos que Max Weber assim pensa, e ninguém menos
que Bergson pensa o mesmo, pois, onze anos após Weber, se­
guirá falando em volta de não poucas voltas, do uso como de
um costume e do costume como de une habitude, de "um hábito";
ou seja: de uma conduta muito freqüente que, por ser frequente,
se automatizou e esteriotipou nos indivíduos.
Mas, há o caso de que executamos muitos movimentos, atos
e ações com máxima freqüência e que evidentemente não são
usos. Uma das coisas que o homem faz com freqüência nada
escassa é respirar e, não obstante, ninguém dirá que a respi­
ração é um uso e que o homem se acostumou a respirar. Isso
é um mero reflexo orgânico, — se me objetará fulminantemente.
É exato, e eu o disse como ponto de partida e de referência.
Está bem; mas andar, caminhar, mover as pernas por ruas e pas­
seios, isso não é um ato reflexo: é um ato voluntário, freqüentís-
simo e, evidentemente, tampouco é um uso. E vice-versa: há usos
que por sua própria consistência são infreqüentes. Alguns gran­
des povos praticavam o uso de celebrar uma festa cerimonial
em cada século. Venerável exemplo disso foi Roma com os seus
ludi saeculares, solenidades religiosas quando se cumpria o
saeculum. Não se me diga que para o indivíduo romano era
freqüente celebrar a festa secular. Tanto não o era que os arau­
tos gritavam aos cidadãos para que acudissem ad ludos, às festi­
vidades, quos nec spectasset quisquam nec spectaturus esset, como
nos relata Suetônio na sua vida de Cláudio: "Vinde à festa a
que nunca assististes e a que não tornareis a assistir". Não se
pode definir mais briosamente a absoluta infreqüência de um
uso. De passagem, — e veja-se agora só de soslaio, — notem

226 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÓGICO — QUE Ê UM USO?

que êsse uso se manifesta como sendo um costume, não de um


indivíduo mas essencialmente trans-individual. Era um costume,
não do romano, dêste, dêsse ou daquele, mas... de Roma. Roma
não é um homem é um povo, é uma sociedade. Ao que aqui
transparece, os usos não são dos indivíduos mas da sociedade.
Ela é talvez a usual e a usuante. A radical infreqüência da festa
secular aparecería mais clara ainda, se possível, se pudéssemos
expor agora o que foi pròpriamente o saeculum, uma das idéias
mais humanamente comovedoras, mais diretamente vitais, isto é,
vividas, puramente extraídas da experiência do destino humano.
Porque é claro que o século, o saeculum não é essa longa unidade
de tempo tornado preciso na grosseria métrico-decimal de cem
anos, com os seus dois estúpidos zeros, duração que os relógios
podem medir com a sua impertinente e indiferente exatidão. O
saeculum é uma unidade de tempo essencialmente imprecisa como
tudo que é vida: é uma idéia vetustíssima, tanto que nem sequer
é romana,- ela e a mesma palavra são prerromanas, são etruscas
e tudo que é etrusco é patético, misterioso e perturbador.
Se partirmos de hoje e de todos os madrilenos que neste
dia vivem, e se pensarmos uma duração de existência de Madri,
que chegue até quando morra o último dos que hoje estão com
vida, — muito especialmente dos nascidos hoje, — isso é o
saeculum: portanto, a duração daquele contínuo acontecer huma­
no que possa ver, — isto é: viver, — aquêle que consiga ver
mais, viver mais. Tal duração será de noventa anos ou de cem,
de cento e dez ou cento e vinte, — o limite é flutuante como a
vida o é. Trata-se, pois, da idéia de geração; é uma geração
humana dilatada até o máximo de longevidade, a mais natural
e concreta unidade em que se mede o tempo com um aconte­
cimento humano, — a mais longa vida de um homem, — e não
com geometria e aritmética.
Ver, na formidável realidade que é o uso, um simples pre­
cipitado da freqüência, é indigno de uma mente analítica. Não
confundamos as coisas, — não confundamos que muitos usos, —

— 227
O HOMEM E A GENTE

mas não todos, nem muito menos, — para chegarem a consti­


tuir-se como tais usos, pressuponham que muitos indivíduos façam
muitas vêzes uma mesma coisa e, portanto essa coisa se ma­
nifeste frequentemente, com o fato de que o uso mesmo, uma
vez que esteja constituído e já seja, efetivamente, uso, atue por
sua frequência. Que não apareça no final resultado inverso: que
algo não é uso porque é freqüente, mas que o fazemos com fre­
quência porque é uso.
Para escapar dêsse emaranhado, basta perguntar à nossa
própria conduta que é que fazemos ao cumprimentar; veremos
logo que o dar a mão não o fazemos porque seja freqüente.
Se fôsse assim, no dia em que alguém não tivesse vontade de
cumprimentar suprimiría sem mais nada a operação; haveria
então, diante de uma conduta freqüente dos demais, uma con­
duta sua infreqüente, mas não lhe aconteceria nada de par­
ticular. A coisa é palmar e muito singela: seguimos de bons-
dias a bons-dias. Sabemos, porém, que se um dia deixarmos de
cumprimentar um conhecido que encontramos passando na rua,
ou aqueles que achamos numa reunião, êles se aborrecerão co­
nosco e êsse aborrecimento nos trará alguns danos; desde logo
e pelo menos nos terão por mal educados; talvez danos graves.
Ahl, já não é questão de freqüência ou infreqüência; não é
questão de hábito e suspensão ocasional de um hábito; são já
"palavras maiores"; é que os demais, — essa vaga entidade que
são "os demais", e que é outro aspecto da gente, — é que os
demais nos obrigam a cumprimentar, no-lo impõem violenta­
mente com uma fôrça ou violência em princípio de ordem moral,
atrás da qual, — é importante adverti-lo, — atrás da qual existe,
mais ou menos pròximamente, mas no último fundo sempre, a
eventualidade de uma violência física.
Ainda não há muitos anos, — na Europa, — quando alguém
negava um cumprimento, costumava receber automàticamente uma
bofetada, e, no dia seguinte, tinha de bater-se a espada, sabre
ou pistola. Por isso digo que se trata já de "palavras maiores"...

228 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÓGICO — QUE É UM USO?

O uso me aparece, pois, como a ameaça presente em meu


espírito de uma eventual violência, coação ou sanção que os
demais vão executar contra mim. E o curioso do caso é que o
mesmo sucede aos demais, porque também cada um dêles en­
contra, diante de si, o uso como uma ameaça dos demais, sendo
que agora, para êle, entre os demais estou eu que, sem o saber,
me convertí em um dos demais.
Eis aqui, portanto, outro atributo do fato social: a violência
ou a ameaça de violência, que não procede de nenhum sujeito
determinado; que, melhor, todo sujeito indeterminado encontra
diante de si sob o aspecto de violência, atual ou presumível, dos
demais em relação a êle.
Este é o caráter com que primeiro se apresenta em nossa
vida "o social". Nossa vontade percebe-o antes que a nossa
inteligência o faça. Queremos fazer ou deixar de fazer algo e
descobrimos que não podemos; que não podemos, porque diante
de nós se levanta um poder mais forte do que o nosso, que força
e domina o nosso querer. E êsse poder, que geralmente se ma­
nifesta com os eufemismos de coações e de pressões morais, de
nos causar danos morais, mas que sempre, — no final de contas,
— ameaça com a eventualidade de uma violência física,- êsse
poder, pois, físico, brutal que, — como veremos, — funciona
também brutalmente, êsse poder que não é de ninguém, que
não é humano, que, neste sentido, é algo assim como um poder
elementar da natureza, como o raio e o vendaval, como a tem­
pestade ou o terremoto, como a gravidade que compele em seu
vôo a massa exânime do astro, êsse poder é o "poder social".
E "o poder social" funciona na coação que é o "uso".
É quase certo que, ao dizer eu, pela primeira vez, que
cumprimentar, tomando-se as mãos, era um ato sem sentido,
alguém pode ter pensado: Não,- tomarem-se as mãos tem sen­
tido porque, dêsse modo, os homens mütuamente se garantiram
de que não levam armas nas mãos. Respondo, no entanto, que
é evidente que, quando hoje acudimos a uma festa social ou

— 229
O HOMEM E A GENTE

a uma reunião acadêmica, não nos preocupa o temor de que


os outros homens, nossos conhecidos, levem em sua mãos lanças,
dardos, punhais, flechas, boomerangs. Êsse imaginário objetante,
sem dúvida, queria dizer, — está claro, — que êsse temor não é
atual, mas pretérito. Houve um tempo, de um vago passado, em
que os homens sentiam efetivamente êsse temor, e por isso, de­
terminaram aproximar-se dessa forma que, para êles, tinha sen­
tido, como para mim o tem o deter a mão do assassino. Mas
esta observação, mesmo aceitando-a como sagaz, o que demons­
tra é que tomarem-se as mãos teve sentido, e não que o tem
agora para nós. Serve-nos a observação, não obstante, para
descobrirmos algo muito importante: alguns fatos sociais, pelo
menos, como o cumprimento, — já veremos se todos, em certa
dose, — se caracterizam não só por carecer de sentido, mas
por algo ainda mais melancólico: porque o tiveram e o per­
deram. Se isto acabasse como verdade, teríamos que é consti­
tutivo dos usos o terem perdido o seu sentido; portanto: terem
sido num tempo ações humanas inter-individuais e inteligíveis, ações
com alma, e terem-se a seguir esvasiado de sentido, terem-se
mecanizado, automatizado, como que mineralizado, em suma: de­
salmado. Foram autênticas vivências humanas que, pelo visto,
logo passaram a ser supervivências, a ser humanos putrefactos.
Por isso falo de mineralização. Creio que pela primeira vez aqui
a palavra supervivência adquire um significado novo que é, ao
mesmo tempo, o seu pleno significado; porque a supervivência
já não é vivida vivência, mas sòmente o seu resíduo, os seus des-
pojos, o seu cadáver e esqueleto ou fóssil.
O meu imaginário objetante confundia o que efetivamente
nos acontece quando damos a mão para cumprimentar, que é
algo sem sentido, com uma teoria que êle tem sôbre a origem
dêsse ato e que elaborou, — como sucede com tôda teoria, —
para encontrar-lhe êsse sentido que tem tão pouco pêso quando
cumprimenta e não teoriza.
Mas, a casualidade é que sôbre o cumprimento não há ne­

230 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÕGICO — QUE Ê UM USO?

nhuma teoria corretamente formada. Isso é sintoma de como


andam os estudos sociológicos; pois, acontece que não existe um
único livro, em língua alguma, dedicado ao cumprimento, e há
muito poucos onde se encontre ao menos um reduzido capítulo
que se ocupe especialmente dêle; não há um único artigo de
revista, segundo as notícias que tenho, em que se trate de inves­
tigar com alguma energia o tema, a não ser um, de três páginas,
perfeitamente nulo, que se publicou há setenta anos na Ingla­
terra com o título de On Salutations.
Tudo que há sôbre o tema, até a data, é um capítulo na
Sociologia, de Spencer; algumas páginas no livro de lhering, "O
fim no direito"; o artigo da Enciclopédia Britânica, que consta de
alguns parágrafos, e o da Enciclopédia Americana de Ciências
Sociais e, — isso, sim, — inumeráveis, vagas e ineptas generali­
dades de algumas linhas nos incontáveis tratados de Sociologia
que fatigaram as impressoras.
Pois bem, entre tudo isso, a única coisa que sôbre o tema
se disse de engenhoso e que, com uma ligeira variação da
prova, poderia valer como verdadeira é o que com displicência
Spencer nos comunicou e que não sei porque, nunca vi atendido.
Spencer, que emprega métodos e ótica de biólogo, consi­
dera o apêrto de mão, que é o nosso cumprimento, como um
resíduo ou rudimento de uma ação cerimonial mais antiga. Em
biologia, se entende por "rudimento" o fragmento ou pedaço de
um órgão que ainda não se transformou de todo ou, vice-versa,
ficou, por se tornar inútil e atrofiado, reduzido àquele pedaço.
Assim é o nosso rudimento da terceira pálpebra. Quer na sua
forma incipiente, quer em sua forma residual, o característico do
rudimento é que, falto de desenvolvimento, não serve para aquilo
que o órgão do qual é resíduo vai servir ou já serviu.
Com esta idéia prévia, à vista, Spencer põe em série as
formas do cumprimento, — pelo menos todo um vasto grupo de
suas formas, — tendo o cuidado de que cada um fique entre
as outras duas que lhe são mais próximas. Dessarte se vai pas­

— 231
O HOMEM E A GENTE

sando com relativa continuidade, de uma a outra, apenas dife­


rentes entre si, enquanto a diferença é enorme entre a primeira
e a última da série. Êste método das séries quase contínuas é,
desde o positivismo, normal nas investigações biológicas.
Eis aqui como Spencer deriva o nosso "apêrto de mãos":
O cumprimento é um gesto de submissão do inferior em
relação ao superior. O homem primitivo, quando vencia o ini­
migo, matava-o. Diante do vencedor, ficava estendido o corpo
do vencido, sendo ali triste vítima que esperava a hora do cani­
balismo. Mas o primitivo se refina e, em vez de matar o inimigo,
faz dêle o seu escravo. O escravo reconhece a sua situação de
inferioridade, de vencido perdoado, fazendo-se de morto, isto é,
estendendo-se no solo diante do vencedor. Segundo isso, o cum­
primento primigênio seria a imitação do cadáver. O progresso
subsequente consiste na incorporação progressiva do escravo para
cumprimentar: primeiro se põe em quatro patas, depois de
joelhos, as mãos com as palmas juntas nas mãos do seu senhor,
em sinal de entrega, de se pôr nas suas mãos.
Não diz Spencer, — é claro; mas acrescento-o eu, — que
êsse pôr-se na mão do senhor é o in manu esse dos romanos; é
o manus dare que significa entregar-se, render-se; é a manu
capio; é o mancipium ou "escravo". Quando aquêle que foi man­
dado, agarrado, ou tomado em mão, se habitua a isso, a essa
submissão, diz dêle o latino que é mansuetus, "acostumado à
mão", "domesticado", "manso". O mando domestica o homem e
o torna, de fera que foi, em mansueto.
Mas voltemos a Spencer. Posteriormente ao já dito, o cum­
primento deixa de ser gesto de vencido a vencedor e se con­
verte em maneira geral de inferior a superior. O inferior, já o
homem de pé, toma a mão do superior e beija-a. É o "beija-
mão". Mas os tempos se democratizam e o superior, fictícia
ou sinceramente opõe resistência a êsse sinal de inferioridade
reconhecida. Que diabo! Todos somos iguais. E que acontece
então? Eu, inferior, tomo a mão do meu superior e a elevo rumo

232 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÓGICO — QUE É UM USO?

aos lábios para beijá-la, mas êle não quer e a retira; volto então
a insistir e êle volta a retirá-la, e desta luta, que parece uma
fita de Buster Keaton nasce, elegantemente... o apêrto de
mãos, que é o resíduo ou o rudimento de tôda a história do
cumprimento para Spencer.
Reconhece-se que a explicação é engenhosa mas, além disso,
está muito próxima de ser verdadeira. Bastaria, — para ganhar
o que lhe falta, — que a série de formas, próximas uma da
outra, em vez de haver sido construída hipotèticamente, — to­
mada cada forma de um povo e de um tempo qualquer, —
fôsse estudada historicamente, a saber, que se mostrasse não só
que uma forma é muito próxima de outra, mas que, efetiva­
mente, é o seu precedente histórico: que esta saiu realmente
daquela.
Sôbre o que não há dúvida, porém, é de que o nosso
apêrto de mãos é uma supervivência, um rudimento supervivente, e,
já no que tem de ato concreto e tal como é, sem sentido de uma
ação útil e com plena significação. Facilita-nos a compreensão disso
o fato de que a forma do nosso cumprimento na rua, — tirar­
mos o chapéu, — vai ficando reduzida, quando o nosso cum­
primentado nos é bastante conhecido, a tocar com a ponta dos
dedos a aba do chapéu. Dêsse resíduo, que logo desaparecerá
também, às complicadas curvas no ar que, na Versalhes de
Luís XIV, se faziam com os enormes chapéus barrocos, carrega­
dos de muitas plumas, há uma viagem tão longa como a Tip­
perary. É inquestionável que, desde aquela época até o dia de
hoje e, quiçá, em tôda a história até o presente, vigora uma
lei que eu chamo da "cerimoniosidade minguante". Logo vere­
mos a razão dessa lei.
Agora nos interessa extrair do que foi dito algo que tem
muito mais importância, incalculável transcendência para as ciên­
cias de humanidades.
Vimos que usamos sacudir ou apertar a mão do conhecido
e que fazer isso serve para evitar o seu aborrecimento; mas,

— 233
O HOMEM E A GENTE

porque precisamente tal ato nos sirva para êsse fim, verifica­
mos que não o entendíamos. O ato útil é, pelo menos neste caso,
ininteligível para nós, seus executores. Apesar disso, ao recons­
truir a história dêsse ato e ao observar a série de suas formas
precedentes, chegamos a algumas que tiveram pleno e racional
sentido para aquêles que as praticavam e até para nós mesmos
se, imaginàriamente, nos transportamos a situações humanas muito
antigas. Uma vez achada aquela forma antecedente que conse­
guimos entender, tôdas as subsequentes, até a nossa residual,
adquirem sentido automàticamente.

Por outro lado, ao descobrirmos a forma, — antiga para


nós, mas ainda usada por muitos povos, — de pôr o inferior as
suas mãos entre as do superior, noto que a superioridade, a
propriedade, o senhorio, se dizia em latim in manu esse e manus
dare, — de onde vem o nosso vocábulo mandar. Ora, quando
dizemos mandar, o dizê-lo nos serve para os efeitos que preten­
demos alcançar, naquele momento da conversação, do discurso
ou do escrito; salvo, porém, os lingüistas, ninguém entende por­
que se chama com a palavra mandar a realidade mandar. Foi
mister, — para entendermos essa palavra e não só para que nos
sirva, ao repeti-la sem entendê-la, — fazer exatamente o mesmo
que fizemos com o cumprimento: reconstruir sua formas linguís­
ticas precedentes, até chegar a uma que era, efetivamente e por
si, inteligível, — que entendíamos. Manus em latim é a mão, mas
enquanto exerce fôrça e é poder. Já veremos que mandar, que
todo mandar é poder mandar, isto é, ter poder ou fôrça para
mandar. Esta forma antiga do vocábulo nos revelou o sentido que,
residual, atrofiado, mumificado, dormitava em nosso vulgar e in­
teligível fonema (1) "mandar". Essa operação de fazer ressus­
citar, mediante certas operações das ciências fonética e semân­
tica, na morta, desalmada palavra de hoje, o sentido vivido,

{1) Mantenho a palavra fonema, como de outras vêzes mantenho "vocábulo",


em respeito à especial terminologia do Autor (N. do T.)

234 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÓGICO — QUE Ê UM USO?

vibrante, enérgico que teve um dia, é o que se chama descobrir


a sua etimologia.
Divisamos agora algo de grande calibre, a saber: ter eti­
mologia não é coisa exclusiva nem sequer peculiar das palavras,-
ao contrário, todos os atos humanos a têm, porque em todos
êles, mais ou menos, intervém os usos, e o ato usual, — ao ser
uma ação humana convertida em imposição mecânica da cole­
tividade sôbre o indivíduo, — pervive em inércia e a deriva, sem
que ninguém possa racionalmente assegurar a sua exata perdu-
ração. Ao ir perdendo sentido, por sua mesma usualidade, pela
usura de todo uso, vai também variando a sua forma, até chegar
a êsses aspectos absolutamente ininteligíveis que são os residuais.
As palavras não têm etimologia porque sejam palavras, mas
porque são usos. Isso nos obriga a reconhecer e declarar que o
homem é, constitutivamente, por seu inexorável destino como
membro de uma sociedade, o animal etimológico. Conforme isso,
a história tôda não seria senão uma imensa etimologia, o gran­
dioso sistema das etimologias. E por isso existe a história; por
isso o homem tem necessidade dela, porque é a única disciplina
que pode descobrir o sentido daquilo que o homem faz e, por­
tanto, do que é.
Veja-se como, — avançando em nosso miúdo e modesto es­
tudo do cumprimento, — sem premeditação se nos abriu uma
portada, pela qual divisamos de súbito o mais vasto panorama
de humanidades até hoje aparecido sob êste aspecto: a história
universal como uma gigantesca etimologia. Etimologia é o nome
concreto daquilo que mais abstratamente costumo chamar "razão
histórica". Retraiamo-nos, porém, de tão amplo tema ao nosso,
minúsculo. O que acabo de dizer, expondo e, a um tempo, com­
pletando a idéia de Spencer sôbre a gênese do nosso apêrto
de mãos, deve sòmente valer como um modêlo esquemático do
que poderia ser sua efetiva e formal explicação. Spencer sim­
plificou demais as coisas. De início, a suo teoria supõe que todo
cumprimento procede originàriamente de uma homenagem que o

— 235
O HOMEM E A GENTE

inferior presta ao superior. Mas o complicado cumprimento do


tuareg na grande solidão do deserto, que dura três quartos de
hora; ou o do índio americano que, ao encontrar o da outra
tribo, começa por fumar com êle no mesmo cachimbo, — "o
cachimbo da paz", — não implicam diferença de classe. Há, pois,
cumprimentos originàriamente igualitários. Em nosso próprio modo
de cumprimentar, que efetivamente parece derivar de um com­
portamento entre desiguais, intervém um componente de simples
efusividade igualitária que não deixa de assinalar-se, embora a
mecanização e o automatismo de seu exercício tenham feito vola-
tilizar-se tôda sincera efusão.
Notemos, além disso, que o cumprimento não se dirige sò­
mente a pessoas mas também a coisas, a objetos simbólicos, à
bandeira, à cruz, ao cadáver que passa na sua viagem funeral
ao cemitério. De certa maneira, todo cumprimento inclui uma di­
mensão de homenagem, é uma "atenção", e a sua falta abor­
rece porque implica em "desatenção". Digamos, assim, que é ao
mesmo tempo homenagem e efusão. Pois não se podem esquecer,
junto dos gestos salutatórios, as palavras que na ocasião se cos­
tumam pronunciar. Os basutos cumprimentam o seu chefe dizendo:
Tama sevaba, — "Saúde, besta selvagem!". E o mais agradável
que podem dizer. Veremos que cada povo tem as suas prefe­
rências e os basutos preferem a fera. O árabe dirá salaam
aleikun, — a paz esteja contigo, — que é o sehalom hebráico e
que passa ao ritual cristão com o ósculo e a pax vobiscum. O
romano dizia salve, — isto é, que tenha saúde, — e daqui o
vocábulo espanhol "saludar", (o português saudar); e o grego,
khaíre, — desejo-te alegria. Nós desejamos os bons dias, as boas
tardes, as boas noites (2) ao próximo, expressão que teve primi­
tivamente um sentido mágico. Na India, no entanto, ao cum­
primentar pela manhã, costumava perguntar-se: "Teve você muitos
mosquitos esta noite?"

(2) O português moderno tende poro o singular: bom dia, boa tarde, boa noite
(N. do T.)

236 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÓG1CO — QUE £ UM USO?

Todos êsses conteúdos de gesto e palavra que o cumprimento


emprega, e aquilo que êle exprime, — rendição, submissão,
homenagem, efusão, — tudo pode manifestar-se e, de fato, se
manifesta, em qualquer momento do trato entre homens; de for­
ma que nisso não está o mais característico do cumprimento. A
substância dêste aparece em algo puramente formal, a saber: o
cumprimento é a primeira coisa que fazemos com as pessoas que
encontramos, antes de fazermos tudo mais que pensamos fazer
com elas, é, assim, um ato inaugural, inicial ou incoativo; mais
do que um fazer, é prelúdio de todo efetivo fazer diante do
próximo.
Não é sobremodo enigmático que, antes de fazer qualquer
coisa com as outras pessoas, tenhamos de antepor esta ação que
por si não tem significação nem aparente utilidade próprias?
ação que seria, portanto, puro ornamento?
Para resolver o enigma do cumprimento, em vez de atender
à sua forma geral, ao modo segundo o qual é usado em nossa
sociedade, observemos as leves variações do seu mais ou menos,
quando cumprimentamos, isto é: a quem cumprimentamos mais
formalmente, — executando, o ato na sua integridade, com
cuidado possível, — ou ao contrário, quando sentimos, sem deli­
berada intenção, que podemos reduzir ao mínimo o cumprimento,
e até suprimi-lo.
Deixemos os casos em que, por termos de cumprimentar
pessoas que nos merecem sumo respeito e admiração, tornamos
o cumprimento, em rigor, um pretexto para a homenagem; por­
tanto algo que não é pura e propriamente cumprimento. Fora
disso, cumprimentamos menos os que nos são mais próximos, os
que são nossos íntimos, os que são para nós os indivíduos mais
determinados que são; e vice-versa: cumprimentamos com mais
autêntica e formal saudação, conforme os homens de que se
trata nos são mais distantes, indivíduos menos determinados, indi­
víduos que são, em definitivo, só a obstração de indivíduos ou indi­
víduos abstratos; dito de outra forma: indivíduos que sòmente

— 237
O HOMEM E A GENTE

têm o molde genérico de tais, porque para nós, que mal os


conhecemos, estão esvaziados de sua individualidade determi­
nada.
O que advém daí e se quer dizer é que quando conhe­
cemos bem um homem, e, portanto, (embora não houvesse usos),
podemos prever a sua conduta em relação a nós, — sentimos que
não necessitamos de cumprimentá-lo; e que o cumprimento se
impõe na medida em que "o próximo" vai sendo, para nós, me­
nos vida individual determinada, menos tal homem e se torna,
para nós, em compensação, mais um homem qualquer, mais
gente. Vemos agora como a palavra "gente" significa o indivíduo
abstrato, isto é, o indivíduo esvaziado da sua única e inconfun­
dível individualidade, o qualquer, o indivíduo desindividualizado,
em suma: "um quase indivíduo".
Ora, porque não conhecemos como é o quase indivíduo que
encontramos, não podemos prever a sua conduta para conosco,-
nem êle, a nossa, pois também eu sou para êle um quase indi­
víduo; e por não poder prevê-la, antes de fazer qualquer coisa
positiva com êle, é preciso que façamos constar mútuamente a
nossa resolução de aceitarmos as regras de conduta, o sistema de
comportamento conforme aos usos que, naquêle lugar do planeta,
vigoram ou são vigentes. Isso põe à nossa disposição tôda uma
série de firmes pontos de referência, de canais tranquilos e se­
guros para o nosso fazer e o nosso trato. Em suma, ao dar a
mão, proclamamos nossa mútua vontade de paz e socialidade
com o outro,- socializamo-nos com êle. No cumprimento do índio
americano, — como acabei de recordar, — a saudação consistia
em fumarem os dois o mesmo cachimbo, que se chama "o ca­
chimbo da paz"; no fundo de todos os cumprimentos, encontra­
ríamos o mesmo.
Noutros tempos, quando não se havia extendido ainda ne­
nhum firme repertório de usos por uma área territorial ampla,
o imprevisível da conduta dos demais, — por exemplo, a conduta
do quase indivíduo que encontrava um tuareg no deserto, —

238 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÓGICO — QUE É UM USO?

incluia uma possibilidade ilimitada, inclusive o despojamento e o


assassínio; por isso, os cumprimentos do tuareg são cumprimentos
muito complicados.
Não nos esqueçamos de que o homem foi uma fera e que,
em potência, mais ou menos, continua sendo-a... Daí o fato de
que sempre fôsse uma possível tragédia a aproximação de homem
a homem. Isso que hoje nos parece coisa tão singela e simples,
— a aproximação de um homem a outro, — foi até há pouco
uma operação perigosa e difícil. Por isso foi preciso inventar uma
técnica da aproximação, que evolui ao longo de tôda a história
humana. Essa técnica, essa máquina da aproximação é o cum­
primento.
E é curioso que, paralelamente, o cumprimento se foi simpli­
ficando: enquanto a saudação do tuareg começava a cem metros
do próximo, era de um cerimonial complicadíssimo e durava meia
hora, o nosso apêrto de mãos é quase como a última abrevia­
tura de uma cerimônia, é como a estenografia do cumprimento.
Vemos agora decifrado o hieróglifo ou enigma que era o apêrto
de mãos e, em geral, o cumprimento,- vemos agora que êle nada
significa por si; não é um determinado fazer que por si pretenda
valer concretamente para nada; ao contrário, o cumprimento é a
declaração de que vamos estar submissos a êsses usos comuns, e o
ato inaugural de nossa relação com a gente, ato em que mútua­
mente nos declaramos dispostos a aceitar todos os demais usos vi­
gentes nesse grupo social; por isso, êle mesmo não é um fazer po­
sitivo, não é um uso com próprio conteúdo útil, mas o uso simboli-
zador de todos os demais, é o uso dos usos, a senha ou sinal da
tribo. Esta é razão demais para que o tenhamos escolhido como
exemplo de todo o social. Mas, se isso é assim, como se explica
que em várias e imensas sociedades, que em várias nações se dei­
xasse, — nestes últimos anos, — súbitamente, de dar a mão ou
cumprimentar e, em vez disso, se levante o punho ameaçadora­
mente ou se extenda o braço, a palma ao vento, segundo o
uso legionário dos militer de Roma? Porque é evidente que êsses

— 239
O HOMEM E A GENTE

cumprimentos não significavam, como o outro, uma proposição de


paz, de unir-se, socializar-se e solidarizar-se com os demais;
eram tudo ao contrário: uma provocação ao combate.
Tal feito vem desmantelar tôda essa doutrina que tão labo­
riosamente havíamos construído? Antes de acudir na defesa de
tal doutrina, convém que façamos outra suposição, embora mais
imaginária, e que vamos despachar em poucas frases, pois, já a
reduzi à última forma; suposição que, embora imaginária, vai
esclarecer-nos de chôfre uma porção de coisas.
Imaginemos que tôdas as pessoas que formam uma reunião
acreditem, cada uma por si, que é estúpido dar-se a mão, —
por exemplo, que é anti-higiênico, — e, em consequência disso,
que os homens não devem cumprimentar-se dessa forma. Pois
bem: apesar disso, permanecería intacto o uso; apesar de pensar
assim, cada qual continuaria praticando o apêrto de mãos; o uso
continuaria exercendo a sua impessoal, a sua brutal e mecânica
pressão. Para que tal não ocorresse, seria mister que, um a um,
os indivíduos, fôssem comunicando a sua opinião aos demais,
isto é, que cada um chegasse a saber que os demais se opu­
nham a êsse cumprimento. Mas isso não quer dizer, com outras
palavras, que se havia constituído um novo uso em substituição
ao anterior? Na situação nova, quem cumprimentasse dando a
mão faltaria ao uso agora vigente, — não dar a mão, — e não
haveria outra diferença senão esta: o novo uso parecería ter
mais sentido que o anterior.
Sem solenidade alguma mas, em troca, com a pureza des­
carnada e transparente, própria do esquemático, o acima dito
nos mostra um modêlo abstrato de como nasce todo uso, como
se desusa e como outro uso o substitui. Ademais, vemos com
maior clareza do que até aqui, a fôrça estranha do uso, —
que não vive nem existe senão nos indivíduos e graças aos indi­
víduos, e que, não obstante, paira sôbre êles, como mecânica
potência impessoal, como uma realidade física que os manipula,
os leva e traz como corpos inertes. A supressão de um uso não

240 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÓGICO — QUE É UM USO?

está nas mãos da vontade individual, minha, tua ou sua. é pre­


ciso trabalhar muito, para suprimi-lo, assim como é preciso tra­
balhar muito, para destruir um cêrro ou construir uma pirâmide.
É preciso conquistar indivíduo a indivíduo, é preciso conquistar
os demais, essa vaga entidade que são "os demais".
Para que a suposição fôsse singela, teve de conter duas
imprecisões que necessito agora de corrigir. Uma é esta: eu disse
que, para suprimir o cumprimento nessa reunião tinham todos
de por-se de acordo. Mas os usos pròpriamente não se formam
nessa reunião, nessa reduzida reunião; nela, no máximo, se ini­
ciam. Formam-se os usos, ao cabo, na grande reunião mais ou
menos multitudinária que é sempre a sociedade; e, para que um
uso se constitua, não é mister que todos estejam de acordo. Mais
ainda: nunca, jamais se puseram de acordo todos os indivíduos
de uma sociedade, para constituir um uso. Além disso, não é
questão de acordo. O êrro do século XVIII foi crer o contrário:
que a sociedade e as suas funções constitutivas, — os usos, —
se formam em virtude de acôrdo, contrato, etc. Basta que estejam
de acôrdo, com ou sem consciência disso, com ou sem delibe­
ração, — os que formam um certo número. Que número?... A
maioria?... Êste é o êrro majoritário: às vêzes é a maioria; mas
outras, — e quase sempre, — é precisamente uma minoria, talvez
relativamente ampla, aquela que, ao adotar determinado com­
portamento consegue, — com estranho automatismo, impossível
de se descrever em pouco tempo, — que êsse comportamento, até
então particular, privado, de uns quantos, se converta na terrível
e inexorável fôrça social que é um uso.
Não e, portanto, questão de cifras. Às vêzes, um homem, um
homem sòzinho, com a sua aprovação, faz avançar mais a cons­
tituição de um uso do que se fôsse adotado por um milhão. O
muido está cheio de sobretudos porque um dia, por volta de
1840 ou 1850, quando tendo começado a chover, o conde d'Orsay,
um dandy de origem francêsa instalado em Londres, voltava das
corridas montado na sua fina égua tordilha, pediu a um ope­

— 241
O HOMEM E A GENTE

rário que passava o agasalho com mangas que então usava o


ínfimo povo da Inglaterra. Foi esta a invenção do sobretudo,
porque d'Orsay era o homem mais elegante de Londres e "ele­
gante" é uma palavra que vem da palavra "eleger"; "elegante"
é o que sabe eleger. Na semana seguinte, começaram pelas
ilhas britânicas a florescer os sobretudos e hoje o mundo está
cheio dêles.
Não é questão de cifras, mas de um surpreendente fenô­
meno, — o mais importante em sociologia e, através dela, em
história, — o fenômeno a que chamo "vigência coletiva".
é oportuno agora fazer a segunda correção à nossa imagi­
nária suposição. Ao saber cada um dos membros da reunião que
não só êle mas também os demais se opõem ao apêrto de mãos,
êste uso se desusava e era substituído por outro que omitia o
dar a mão. Os caracteres gerais do uso perduravam na troca,
ao menos como ser extra-individual e como ser mecânicamente
coativo e persistente. Afirmei que não há outra diferença senão
esta: o novo uso parece ter mais sentido que o desusado, o qual
já o tinha perdido por completo e por isso foi abandonado.
Quer isso dizer que o novo uso tem muito ou, pelo menos,
suficiente sentido? Como os grupos sociais em que se constituem
os usos se compõem de um número muito grande de indivíduos
e como, para que o uso consiga instaurar-se é preciso conquistar
uma grande porção dêles, e o resto tem ao menos de chegar
a conhecê-lo e cumpri-lo, quer dizer que a formação de um uso
é lenta.
Desde o instante em que um indivíduo teve a idéia criadora,
— só os indivíduos criam, — a idéia criadora do novo uso, até
que êste chegue a ser efetivamente uso vigente, instituição, —
todo uso é instituição, — forçosamente passará muito tempo. E,
no lapso dêste longo tempo que tarda para se formar o uso, a
idéia criadora, — que na sua hora inicial teve pleno sentido,
— quando se torna usual, quando se torna modo social, em
suma: uso, já começou a ser antiquada, a perder o sentido que

242 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÓGICO — QUE É UM USO?

teve, a ser ininteligível, coisa que, — conste e note-se, — inicial­


mente não prejudica o uso; porquanto o que fazemos porque
se usa não o fazemos porque nos parece bem e o julgamos
razoável, mas sim mecânicamente: fazemo-lo porque se faz e,
mais ou menos, porque não há outro remédio.
O uso tarda no instaurar-se e tarda em desaparecer,- por
isso, todo uso, — inclusive o uso novo, — é por essência, velho,
olhado do ponto de vista da cronologia de nossa vida individual.
Observe-se que a pessoa, quanto mais pessoa é, mais rápida
costuma ser no seu fazer. Num instante se convence ou descon-
vence, decide que sim ou decide que não; a sociedade, porém,
consiste nos usos, — que demoram a nascer e demoram a morrer,
— a sociedade é tardígrada, preguiçosa, arrasta-se devagar e
avança pela história com lento passo de vaca que, às vêzes, nos
desespera pela sua morosidade. E como a história é, antes de
tudo, história das coletividades, história das sociedades, — his­
tória dos usos-, portanto, — daí vem êsse seu caráter de estranha
lentidão retardatária; daí o "tempo lento" com que marcha a
história universal, que necessita centenas e centenas de anos para
conseguir qualquer avanço realmente substantivo. Já citava Home­
ro, como provérbio muito antigo, que "os moinhos dos deuses
moem devagar". Os moinhos dos deuses são o destino histórico.
Por sua vez, o uso consiste numa forma de vida que o
homem muito pessoal sente sempre como arcaica, superada, anosa
e já sem sentido. O uso é o petrifacto humano, a conduta ou
idéia fossilizada. E aqui vemos o mecanismo pelo qual sempre,
mais ou menos, o social é pretérito, passado dissecado, múmia,
ou, — como eu já o disse, muito séria e formalmente, — que o
social é essencial anacronismo.
Talvez seja uma das missões que tem a sociedade: entesou-
rar, acumular, conservar, salvar vida humana fenecida e preté­
rita. Por isso tudo, o social é uma máquina que mecânicamente
conserva e fossiliza vida humana pessoal. Esta, por si, enquanto
humana e pessoal, morre conforme vai nascendo, e com essa ri­

— 243
O HOMEM E A GENTE

queza e liberalidade genial, que são próprias da vida se con­


some sempre no seu exercício. Para salvá-la é preciso mecani­
zá-la, desumaniza-la, despersonalizá-la.
Podemos voltar agora, pressurosos, à defesa da nossa dou­
trina do cumprimento, que era a doutrina do cumprimento pací­
fico, maltratado pelos empurrões que recebeu dêsses novos cum­
primentos bélicos.
Sem dúvida, aquêle que levanta o punho ou estende a mão
ao vento quer dizer: "Com êste gesto, faço constar o meu alis­
tamento num partido. Sou, antes de tudo, partidário e, portanto,
estou contra as outras partes da sociedade que não são a minha.
Sou combatente, e com os demais não procuro paz, mas, com
tôda a clareza, luta franca. Ao que se opõe a mim, ao que não
é do meu partido, embora não me enfrente, não ofereço coni­
vência nem acôrdo, mas desejo primeiro combatê-lo e vencê-lo,-
depois, tratá-lo como vencido".
Não há dúvida: êsse fato representa o mais contraditório,
o mais desnucador da minha doutrina. Estamos perdidos! Mas...
um pouco de calma! Pois se compararmos, — e vamos fazê-lo
em última forma, — se compararmos o fenômeno coletivo que é
o cumprimento pacífico com êsse cumprimento bélico, logo encon­
traremos três importantíssimas e decisivas diferenças.
Primeiro: o cumprimento pacífico, como todo uso, — segundo
o sustentei, — é lento no instaurar-se e será lento em preterir-
se; essas saudações bélicas, em troca, desalojaram num instante
o outro e se impuseram fulminantemente, enquanto certo partido
conquistou o Govêrno.
Segundo: não somos convidados ao cumprimento pacífico por
ninguém determinado; a sugestão nos vem da figura envolvente
e como que atmosférica que são os demais,- e cumprimento bélico,
ao contrário, é decretado por um homem que até assina com
o seu nome a ordem que o impõe. Semelhantemente, enquanto no
cumprimento pacífico a coação, a violência e a sanção não nos
chegam de ninguém determinado; ninguém nominativamente se

244 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÓGICO — QUE Ê UM USO?

sente encarregado de executá-los; em compensação, no cumpri­


mento bélico, são indivíduos especialmente designados os que
executam os atos coativos, vestindo às vêzes, inclusive, uniformes
que externamente os caracterizam, — chamem-se de uma forma
ou de outra, não importa: não há razão para dizer-lhes os
nomes. Não se trata, assim, de um poder social difuso, mas de
um poder social preciso e organizado, que criou órgãos especiais
para executar a sua função.
Terceiro: no cumprimento pacífico, a coação contra aquêle
que falta ao uso do cumprimento é quase sempre frouxa; quero
dizer que não vai diretamente contra o ato abusivo; melhor­
mente: vai contra as pessoas que o cometeram, em forma de
juízos desfavoráveis a atuações semelhantes que só pouco a
pouco trarão para êle consequências aborrecidas. Adverte-se que
essa coação não tem decidido empenho em aniquilar, em tornar
impossível o ato mesmo em que consiste o abuso: aquêle que
hoje não dá a mão pode, de fato, não dar a mão amanhã ou
em outros dias. No cumprimento bélico, ao contrário, o sentido
da coação é muito diferente: quem não saúda, com o punho ou
com a palma, sofre imediatamente a violência o vexame; adverte-
se, assim, que essa coação vai direta contra o ato, não o tolera,
está resolvida a que êle não se repita. Resulta disso tudo que
êsse ato social, que é o cumprimento bélico, não é difuso, impre­
ciso, débil e frouxo; nem o são o inspirador do ato, o poder
social que coage, nem a própria coação.
Se os filósofos do direito querem ser gentis comigo, repas­
sem tôdas as definições mais importantes que já se deram do
direito, os ensaios para diferenciá-lo de outros fenômenos sociais,
— como costumes, regras convencionais, moral, etc., — e com­
parem o que ali se diz com a advertência que acabo de fazer.
Se agora deixamos, para comentá-la noutra lição, a dife­
rença a respeito do tempo na instauração dos usos, — que no
uso pacífico é um tempo ritardando, e no bélico é um prestis­
simo, — e se nos atemos a todo o resto do que acabo de dizer,

— 245
O HOMEM E A GENTE

note-se que descubrimos a existência de duas classes de usos:


uns, a que chamo "usos débeis e difusos"; outros, que designo
como "usos fortes e rígidos". São exemplos dos "usos débeis e
difusos" os que sempre se chamaram "usos e costumes" no vestir,
no comer, no trato social corrente,- mas são também exemplos
dêsses: os usos no dizer e no pensar, constitutivos do dizer da
gente, cujas duas formas são a língua mesma e os tópicos, o
que confusamente se chama "opinião pública".
Para que uma idéia pessoal autêntica, — e que foi evidente
quando um indivíduo a pensou, — chegue a ser "opinião pública",
tem, antes, de sofrer essa dramática operação que consiste em
haver-se convertido em tópico e ter, portanto, perdido a sua evi­
dência, a sua autenticidade e até a sua atualidade, todo tópico,
como é um uso, é velho como todos os usos.
Exemplo dos "usos fortes e rígidos" são, — à parte os usos
econômicos, — o direito e o Estado, dentro do qual aparece
essa coisa terrível mas inexorável e inescusável, que é a política.
Notemos agora que o cumprimento bélico não é própria­
mente cumprimento, — devíamos tê-lo visto bem claro, — porque
essa saudação não promete saúde ao que saúda; não é cumpri­
mento, mas ordem, manutenção, lei e até lei emanada de um
direito extremo que brota de um extremo Estado; quero dizer:
de um Estado que o é em superlativo. Não tem, pois, nada a
ver com o cumprimento pacífico a não ser negativamente, porque
proibiu cumprimentar pacificamente. Está, portanto, salva a nossa
teoria e, além disso, confirmada.
Quanto a êsse pobre apêrto de mãos, que nos deu tanto
que falar, que poderemos dizer dêle como última palavra?... Já
que ainda é preciso dizer essa última palavra?...
Por razões tão radicais e decisivas na realidade da vida
humana a que não me pude sequer referir nestas lições, — elas
pertencem, precisamente, à base mais definitiva do meu pensa­
mento filosófico, — tenho a convicção de que todo o humano,
— não só a pessoa, mas as suas ações, o que constrói, o que

246 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÓGICO — QUE É UM USO?

fabrica, — tem sempre uma idade. Quero dizer que tôda reali­
dade humana que se apresenta diante de nós ou é criança, ou
é jovem, ou é madura, ou caduca, ou decadente. E, se se tem
um pouco de perspicácia, — não é preciso muita, — pode-se
muito bem ver em que idade está, como se vê a idade do cavalo,
abrindo-lhe a bôca e olhando-lhe os dentes. Pois bem, neste sen­
tido, por uma porção de motivos creio que a forma de cumpri­
mento que é o apêrto de mãos está na decrepitude, na agonia,
e que muito breve o vamos ver desaparecer, não, ao golpe dos
cumprimentos bélicos e rendido a êles, mas porque é um uso
que está nos seus últimos momentos, que está desusado. Digo
mais: até êste momento, nunca estive na Inglaterra; nada sei do
que ocorre neste particular na Inglaterra nos últimos dez anos,
mas "a priori" me atrevería a afirmar que forçosamente, — há
dez ou doze anos, pouco mais ou menos, — terá começado na
Inglaterra o fenômeno da desaparição dêste cumprimento do
apêrto de mãos, e a sua substituição por algo ainda mais sim­
ples: um leve gesto de inclinação de cabeça ou um sorriso inau­
gural.
Porque digo que isso ocorre na Inglaterra? O porquê é uma
das idéias que me apaixonam há anos e me parece de tôda
evidência, de grande importância, e que jamais vi advertida nem
mesmo pelos próprios ingleses; a saber: quando estudamos a
história de qualquer modo de vida ocidental, com raríssimas
exceções, que não fariam senão confirmar a regra, — verifi­
camos que, antes da aparição plena e brilhante dêsse modo de
vida no Continente, houve sempre um precursor na Inglaterra.
Quer dizer que salta à vista, pela abundância dos fatos que o
confirmam, aquilo a que chamo "a precedência da Inglaterra
com respeito ao Continente". Em quase todos os modos de vida,
e isto não sòmente desde que conseguiu ser uma potência mun­
dial, mas desde os comêços da Idade Média.
E até vergonhoso ter de dizer e recordar que os ingleses
nos ensinaram a falar em latim, em bom latim, ao resto dos

— 247
O HOMEM E A GENTE

europeus, quando, em tempos de Carlos Magno, mandaram


Alcuíno e algum outro ao Continente.
Pois bem, isso os ingleses não viram, mas eu poderia assi­
nalar algumas palavras dos pensadores ingleses que mais profun­
damente meditaram sôbre o seu povo, palavras que são muito
poucas, mas nas quais entrevejo que êles entreviram algo pare­
cido sem acabar de vê-lo.
Os temas são tantos que uns me atropelam os outros. Quando
o homem que se dedica a pensar chega a certa altura da vida,
quase não pode fazer outra coisa senão calar. Porque são tantas
as coisas que deveríam ser expressadas, que elas pelejam e se
acumulam na garganta e lhe estrangulam o dizer. Por isso, passo
anos em silêncio... E, não obstante, já se viu que nestas lições
me portei corretamente, caminhando direito para o meu tema, e
mesmo os episódios que, em seu momento, puderam parecer o
contrário, logo redundaram em avanços substanciais; isto é: ascè-
ticamente marchei, estrada adiante, renunciando a disparar sôbre
os esplêndidos problemas que de um lado e do outro do ca­
minho nos saíam revoando como faisões. ..
Numa lição anterior, tivemos ocasião de tornar bem pre­
sente que o outro homem é sempre perigoso, embora às vêzes,
no caso do próximo e íntimo, essa periculosidade seja mínima e,
por sê-lo, não reparemos nela. O fato de que exista o uso do
cumprimento é uma prova da consciência viva nos homens de
serem mútuo risco uns para os outros. Quando nos acercamos do
próximo se impõe, — mesmo a esta altura da História e da
chamada Civilização, — algo assim como uma apalpadela, como
um amortecedor ou coxim que abrande na aproximação o que
há de choque.
Vimos que a forma do ato, em que consiste o cumprimento,
se foi atrofiando, na exata medida em que foi minguando a dose
do perigo. E, se hoje subsiste um resíduo daquele, é porque,
efetivamente persiste um resto dêste. Quer dizer: através de suas
mudanças e mesmo na sua forma atual de extrema supervivên-

248 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÕGICO — QUE É UM USO?

cia, êsse uso de saudar continua sendo útil, instrumento e apa-


rêlho que presta um autêntico serviço. Imagine-se por um mo­
mento que esta noite, por arte mágica, fôsse eliminado o cum­
primento e que amanhã tivéssemos, ao encontrarmos os nossos
conhecidos, de começar, sem o prévio contacto ornamental da
saudação, o trato positivo com êles. Não sentiriamos que era di­
fícil, áspero, impertinente êsse comêço, quando não se tratasse
de pessoas que convivem na mais contínua e extrema intimida­
de? Ora, quando se trata desta, sabemos que não há pròpria-
mente encontro; aquêle que vive, por exemplo, permanentemente
em nossa casa, — pais, irmãos, filhos, parentes imediatos, — a
êsse não se encontra. Ao contrário, o insólito é que não se ache
ao nosso lado. Vice-versa, já o afirmamos, — perceberemos que
nunca, em dois encontros nossos com outra pessoa, nos senti­
mos ambos em igual nível de proximidade humana, com a mes­
ma têmpera em relação ao outro. Sem vontade deliberada, faz-
se em nós algo assim como um cálculo da maneira com que o
próximo nos enfrenta, e levamos uma espécie de termômetro da
sociabilidade ou da amizade, que marca para nós o seu contacto,
mais frio ou mais cálido em cada ocasião. O cumprimento cos­
tuma servir para que acertemos na primeira coisa a dizer ao
nosso conhecido. Provàvelmente, só os anjos não precisam cum-
primentar-se porque são transparentes. Mas é tão congênito aos
homens serem uns para os outros mais ou menos arcano e mis­
tério e, já por isso só, mais ou menos perigo, que essa defi­
ciência e minúsculo drama constante se converteu em algo que
dá sabor e aliciamento à nossa convivência, a ponto de que se,
de repente, ficássemos translúcidos e nos interpenetrássemos, so-
freríamos uma enorme desilusão, e não saberiamos o que fazer
com uma vida etérea, que não se choca constantemente com o
próximo, é preciso, ainda mais: é, talvez, o mais importante, dadas
a altura de experiências vitais a que chegou o Ocidente e a
inevitabilidade de instaurar uma nova cultura (nova nas suas mais
profundas raízes, já que a tradicional, — e me refiro às mais

— 249
O HOMEM E A GENTE

contrapostas tradições — se esgotou como uma canteira exausta),


é, — o mais importante, digo que, precisamos de aprender a
ver que sendo a condição humana, em qualquer momento, limi­
tada, finita e, portanto, constituída últimamente por negativida-
des, temos de nos apoiar nestas, uma vez que elas são o que
substancialmente somos e, conseqüentemente, necessitamos vê-las
como positividades. Fazer outra coisa seria não melhorar a vida
mas, ao contrário, esvaziá-la daquilo que, limitado e finito, ao
fim de contas possui. Assim, em vez de pretendermos que màgi-
camente o homem deixe de ser perigoso para o homem, como
fazem os utopistas, devemos reconhecê-lo, sublinhá-lo, apoiar-nos
nisso, como o pássaro se apoia, para voar, na resistência nega­
tiva do ar, e imaginar o modo de aproveitar êsse destino e tor­
ná-lo saboroso e fértil. Em vez de desatarmos o pranto sôbre as
nossas limitações, devemos utilizá-las como quedas d'água para
o nosso benefício. A cultura foi sempre aproveitamento de incon­
venientes.
Voltando, porém, ao nosso tema, poderá notar-se que, se
o cumprimento atual ainda tem certa, embora evanescente, uti­
lidade, o caso é que êle só se exercita com as pessoas conheci­
das,- não se empregando, pois, com os desconhecidos que encon­
tramos transeuntes pelas ruas da cidade. Não nos seria êle de
maior utilidade com êstes do que com aquelas? Porque se cum­
primenta a quem nos foi apresentado e não àquele totalmente
desconhecido?... quando, no deserto ou na selva, acontece de
certo modo o contrário, fazendo-se mais longo e minucioso o
cumprimento ao homem anônimo que surge no horizonte? A razão
disso salta à vista. Precisamente por ser a cidade lugar em que
convivem, constantemente, desconhecidos, não bastava, para re­
gular o seu encontro e convivência, o uso, enfim e ao cabo,
ornamental, de tênue eficiência, que é o cumprimento. Este ficou
reduzido a círculos de menor periculosidade, a saber: à convi­
vência, já estabelecida e interior, de grupos formados por conhe­
cidos. Quando alguém apresenta duas pessoas, fica feito garan-

250 —
O HOMEM, ANIMAL ETIMOLÕGICO — QUE É UM USO?

tidor de seu mútuo caráter pacífico e benévolo. Para regular o


atrito dos desconhecidos na cidade, e sobretudo na grande cida­
de, houve mister que se criasse na sociedade um uso mais pe­
remptório, enérgico e preciso: êste uso é, lisa e planamente, a
polícia, os agentes de segurança, os guardas. Mas, dêsse uso não
podemos falar, até que nos enfrentemos com outro mais amplo
que é a sua base: o poder público ou Estado. E êste, por sua
vez, só poderá ser claramente entendido quando soubermos o que
é o sistema de usos intelectuais a que chamamos "opinião pú­
blica", sistema que se constitui graças ao de usos verbais que é
a língua. Como se vê, os usos se articulam e se baseiam uns nos
outros, formando uma ingente arquitetura. Essa ingente arquite­
tura usual é, precisamente, a Sociedade.
XI

O DIZER DA GENTE: A LÍNGUA.

PARA UMA NOVA LINGUÍSTICA

Não há relação mais superlativamente humana que aquela


entre mãe e filho, entre homem e mulher que se amam. O indi-
vidualíssimo ser que é essa mãe vive para o individualíssimo ser
que é êsse filho. Êste é o homem que está enamorado desta
mulher, — insubstituível, incomparável, única. Tudo quanto um
faz em relação ao outro é um exemplo máximo de ação inter-
individual. Ora, o que dois amantes fazem mais abundantemente
é falarem-se. Já sei que entre êles há, além disso, a carícia.
Deixemo-la estar, por enquanto, pois talvez aconteça que a ca­
rícia no amor, seja, — não digo que unicamente, mas, acima de
outra coisa, — algo assim como continuar falando-se numa nova
forma. Em que forma? Deixemo-la estar. O que parece inquestio­
nável é que o amor dos amantes, amor que vive de olhares,
que vive de carícias, vive mais do que tudo isso em conversação,
em diálogo sem fim. O amor é palrador, gorgeante: o amor é
eloqüente, e quem cala ao amar não tem remédio, é anormal­
mente taciturno.
De modo que a inter-ação individualíssima que é amar,
na qual ambos os participantes agem do seu fundo mais pessoal,
que é, portanto, uma incessante criação original, tem de reali­
zar-se por meio da fala. Mas falar é usar de uma determinada
linguagem, e essa linguagem não é criação de nenhum dos
amantes. A língua em que conversam estava aí, antes dêles e fora
dêles, em seu contôrno social. Desde crianças lhes foi injetada

— 253
O HOMEM E A GENTE

ao ouvirem o que as gentes dizem; porque a língua que é sempre


e últimamente a língua materna não se aprende em gramáticas
e dicionários, mas no dizer da gente.
Eles, os amantes, querem dizer coisas, muitas coisas, mas
tôdas essas coisas são uma só: o próprio ser, o individualíssimo
ser de cada um. Já no começo dêste curso, ao fazer notar que
a vida humana é, na sua última verdade, radical solidão, acres­
centei que é o amor o ensaio de permutar duas solidões, de
entremisturar duas recônditas intimidades, — obtido o que, seria
como se duas veias fluviais entremisturassem as suas águas ou
duas chamas se fundissem. Para tanto êles se dizem "meu amor",
ou outra expressão de cariz análogo. Temos de distinguir entre
o que querem dizer com essa expressão e essa expressão mesma
com a qual o dizem. O que êles querem dizer é o seu senti­
mento pelo outro, um sentimento autêntico que os invade, que
brota da raiz da sua pessoa, que êles sentem e entendem per-
feitamente; e, no entanto, a expressão "meu amor", que vai levar
de um a outro a notícia, a declaração ou a manifestação dêsse
sentimento, lhes vem a ambos de fora, e não a entendem. Acha-
mo-nos exatamente no mesmo caso do cumprimento: entendo
muito bem que necessito dar a mão; mas não entendo absolutamente
porque aquilo que necessito fazer com os outros é dar-lhes a
mão. Os amantes entendem muito bem que para se comunica­
rem o sentimento têm de dizer essas palavras ou outras seme­
lhantes; mas não entendem porque o seu sentimento se chama
"amor", porque se diz "amor" e não um qualquer outro som.
Entre sua intenção pessoal de dizer o seu sentimento e o ato de
pronunciar e produzir um certo som, não existe nexo inteligível.
Se os amantes fazem êsse ato pronunciativo, é porque ouviram
que êle se faz quando dois se querem; não por qualquer razão
que encontrem na palavra "amor".
A língua é um uso social que vem interpor-se aos dois, às
duas intimidades, e cujo exercício ou emprêgo pelos indivíduos
é predominantemente irracional. A prova mais escandalosa.

254 —
O DIZER DA GENTE

quase cômica, é que chamamos com as palavras "racional" e


"lógico" o nosso comportamento màximamente inteligente, quan­
do êsses vocábulos vêm de ratio e logos, que no latim e no
grego originàriamente significaram "falar", isso é, uma operação
que é irracional, pelo menos por um dos seus lados constitutivos
e frequentemente por todos.
Repito: entendemos, mais ou menos bem, as idéias que que­
remos expressar com o que fizemos, mas não entendemos o que
diz isso que dizemos, o que, por si mesmo, significa o nosso
dizer, isto é, as nossas palavras. O paralelismo com o cumpri­
mento é perfeito, e como nele só podemos entender o ato de
dar a mão quando, deixando de cumprimentar, nos pomos a
teorizar sôbre a origem do cumprimento e descobrimos a etimo­
logia do nosso uso, assim acontece com a palavra. Às vêzes não
o conseguimos e a palavra fica ininteligível. Acontece assim com
a palavra "amor". Recebemo-la dos romanos, mas não é pala­
vra romana, e sim etrusca. Quem sabe lá de que experiências
próprias ou de que outro povo ela chegou àqueles...! é uma
pena, mas não sabemos porque essa coisa tão importante em
nossas vidas como é o amor se diz "amor". Semelhantemente di­
zemos "me assaltou o mêdo". Para nós esta expressão não tem
sentido por si. Não entendemos que o mêdo, uma emoção que
se produz em nós e que é alheia ao espaço, possa estar fora
e "assaltar-nos". Mas esta vez a etimologia nos esclarece o sen­
tido porque nos faz saber que, em grego e outras línguas indo-
européias, existe uma expressão idêntica, através da qual averi­
guamos que o povo primitivo indo-europeu acreditava que as
paixões, como as enfermidades, são fôrças cósmicas que estão
fora, no espaço, e que de quando em quando nos invadem.
O outro atributo do uso é que nos sentimos coagidos a
exercitá-lo, a segui-lo. Onde está a coação da fala? Quem se
aborrece ou me ameaça com represálias, se eu não empregar
palavras de nenhuma língua determinada, mas sons da minha
própria invenção?

— 255
O HOMEM E A GENTE

Ao falar da coação no caso do cumprimento, cingi-me a


enunciar o tipo de represália que a sua omissão provocava, mas
já veremos que, em cada tipo de uso, a coação toma uma forma
de tipo diferente. Essas diferenças são importantíssimas pois fa­
zem manifestar-se, melhor do que nada, a função a que cada
tipo de usos serve na sociedade. A coação máxima é a física
e o contôrno social a pratica quando se contravém a um tipo de
usos muito característicos a que se chama "direito". Logo vere­
mos porque acontece isso. Baste dizer por ora que, comparada
tal coação com a que nos ameaça se não cumprimentamos, esta
última nos parece muito mais fraca, difusa e lenta no seu fun­
cionamento, do que a primeira. Se alguém rouba um relógio e
é apanhado in fraganti, imediatamente um polícia se apodera
dêle e à fôrça o leva à delegacia. Neste caso, a resposta da
sociedade a um abuso é física, de máxima intensidade e fulmi­
nante. Isto nos permite novamente advertir que os usos podem
classificar-se em fracos e fortes. Estes dois graus de energia no
uso se medem pela energia que a coação manifesta. Cumpri­
mentar e tudo quanto se soe chamar de "costumes" é uso fraco,-
o direito, por outro lado, é um uso forte. Espero poder mostrar
como, precisamente por ser um uso forte, o seu aspecto e a sua
prima facies mais freqüentes são de perfil diferente do dos de­
mais usos, isto é, daqueles que, mais ou menos, sempre foram
reconhecidos como usos, — isso foi a causa de que os juristas e
filósofos do direito não tenham logrado ver neste o que êle é
e não pode deixar de ser: um uso dentre os usos. Mas não é
hora ainda de se falar sôbre o que seja o direito. Já se disse
que o nosso contôrno, na medida em que é contôrno social, se
manifesta como permanente e universal coação. Este é o mo­
mento de se corrigir em pouquíssimas palavras a idéia errônea
que se tem da coação social ou coletiva; pois se supõe que ela
tem de consistir em atos especiais, positivos ou negativos, que
os demais exerçam sôbre nós. Não existe tal coisa. Essa é sò­
mente uma forma de coação da qual já vimos duas espécies

256 —
O DIZER DA GENTE

diversas: o aborrecimento dos demais se não os cumprimenta­


mos, que é mera retirada da sua amizade, da sua estima e talvez
do seu trato; e a intervenção enérgica da polícia, se alguém rouba
um relógio ou falsifica um testamento. Parece-me, porém, perfei-
tamente natural chamar "coação sôbre o meu comportamento"
tôda conseqüência penosa, seja de que ordem fôr, produzida pelo
fato de que eu não faça o que se faz no meu contôrno social.

Por exemplo: o amante quer dizer algo à sua amada, mas


se nega a usar uma determinada língua. Evidentemente a polícia
não intervém por isso, mas o fato é que então a amada não
o entende e êle fica sem lhe dizer o que desejava. O uso que é
a língua, sem espaventos, sem aparentes violências se impõe a
nós, nos coage da maneira mais singela, porém mais automática
e inexorável do mundo, impedindo que sejamos entendidos com
tôda a plenitude e, em conseqüência, paralizando radicalmente
tôda convivência fértil e normal com o próximo. Eis aí uma coação
que não consiste em atos negativos ou positivos, — isto é, omis­
sões, — de ninguém, porque suponho que ninguém chamará
de ato o "não entender", quando é simplesmente uma coisa que
acontece a alguém. Digamos, pois, formalmente, que há coação
sempre que não podemos escolher impunemente um comporta­
mento diferente daquele que se faz na coletividade. A punição
ou castigo pode ser dos graus e ordens mais diversos, — pode,
por exemplo, significar simplesmente que não fazer o que se faz
ao nosso redor nos obriga a um esfôrço maior do que fazê-lo.
Para citar sòmente um caso mínimo mas, por isso mesmo, muito
significativo: se nos resolvermos, a tomar como quebra-jejum algo
diferente do que é o repertório dos quebra-jejuns usuais, se
verão as dificuldades que encontramos, o esfôrço que, em tão
trivial cotidianidade, temos de empregar, por exemplo, nas via­
gens e mudanças de residência. A sociedade, em compensação,
nos poupa inclusive o esfôrço de inventarmos o quebra-jejum,
adiantando-nos o menu dos usuais. Sem figura melodramática, isto,

— 257
O HOMEM E A GENTE

que é tão simples, é a causa decisiva de que a sociedade exista,


isto é, de que persista. Ânsias de fugir da sociedade já sentiram,
em algum momento, quase todos os homens, mas a imagem do
esfôrço que uma existência solitária supõe, em que se tivesse de
fazer tudo para si, basta para reprimir aquêle impulso de fuga.
Diz-se que o homem é um ser naturalmente sociável. Esta é uma
idéia confusa que agora não tenho de esmiuçar. Mas, ao cabo,
eu a admitiría, desde que me deixassem acrescentar-lhe insepa-
ràvelmente que o homem é, também e ao mesmo tempo, natu­
ralmente insociável, que há nêle sempre, mais ou menos sono­
lenta ou desperta, uma ânsia de fugir da sociedade. Isso aparece
periodicamente na história, em proporções visíveis. Nestes últi­
mos anos, em uns países, — antes; em outros, — depois, houve
em todo o mundo uma epidemia de querer ir-se, — ir-se da
sociedade em que se vive e, se possível, de tôda a sociedade.
São inumeráveis, por exemplo, os europeus que nestes anos so­
nharam com uma ilha deserta.
Quando Napoleão invadiu a Alemanha e se aproximava de
Weimar, Goethe dizia: "Quisera estar fora!" Mas não há "fora".
Durante os primeiros séculos do Império Romano, muitos homens,
desiludidos de tôda a vida coletiva e pública, fugiam para o
deserto a viver submersos na sua própria solidão desesperada.
Os monges cristãos não foram, sequer, os primeiros a isolar-se.
Não fizeram senão imitar aquêles que, na Síria e no Egito, havia
duas centúrias, se faziam "deserteiros", — eremitas, — para pra­
ticar a moné, — a solidão. Daí que fôssem chamados monakhoí,
— monges. Tal tipo de vida lhes proporcionou enorme prestígio e
produziu uma espécie de epidemia. Os desertos se povoaram de
milhares de "solitários" que, em virtude disso, deixaram de sê-lo
e se converteram em "comunidade", — cenóbio, de koinós, — co­
mum. Mas, indivíduos mais resolvidos a isolar-se inventaram, já
que era impossível isolar-se horizontalmente, fugir do próximo
pela vertical, construindo para si uma alta coluna, ou pilar, sôbre
a qual viviam. Foram chamados de estilitas. Tampouco isso deu

258 —
O DIZER DA GENTE

resultado, e até o Imperador enviava os seus ministros para con­


sultarem S. Simeão sôbre assuntos de estado que os emissários
lhe gritavam do chão.
Menos simples que o cumprimento como fenômeno, é a língua
o fato em que, mais clara e puramente, aparecem os caracteres
da realidade social e, por isso, em tal fato se manifesta com
incalculável precisão o ser da sociedade. Sociedade é, na sua
base, a convivência contínua, estabilizada, de homens de uma
unidade coletiva, isto é, uma convivência à parte, separada de
outras convivências e coletividades. Logo que um grupo de homens
se separa da coletividade em que convivia antes, começa auto­
màticamente, sem a vontade de nenhum indivíduo, a modificar-se
a língua que antes falava e a criar-se, se perdura a separação,
uma nova língua. Se por alguma causa dramática, os que nos
achássemos numa sala ficássemos separados do resto dos espa­
nhóis durante alguns anos e, ao cabo dêles, nos voltássemos a
reunir-nos com os nossos compatriotas, observaríamos surpreen­
didos que, sem nos ter dado conta disso, o nosso espanhol seria
notàvelmente diferente do que usavam os demais, diferente na
pronunciação de várias palavras, na significação de outras, nas
formas sintáticas, nas locuções ou modismos. Isto, que em nosso
caso é um evento imaginário, foi um acontecimento inumerável­
mente repetido na história. Vice-versa, tal reiteradíssimo fato de­
monstra que, para existir uma sociedade, é mister que pré-exista
uma separação. Esta pode ter sido gerada por causas muito di­
versas. A mais aparente consiste nos estorvos geográficos que
isolam um grupo humano. Se eu dispusesse de maior tempo,
falaria dum povo da Nova Guiné, descoberto e estudado recen­
temente e que, há séculos, uma catástrofe geológica isolou nuns
vales dos quais os seus indivíduos não podiam sair. Mas a
causa do isolamento pode ser só política, ou fundada noutros
motivos mais complicados, aos quais não posso aludir com um
simples nome, se se me entende...
Se os estudos sociológicos estivessem em boa forma, ter-se-ia

— 259
O HOMEM E A GENTE

estudado a fundo, tanto no passado como no presente, essa in­


fluência da separação na vida coletiva, para produzir automà-
ticamente "sociedade" com todos os seus atributos, ou parte dêles.
Perseguindo o tema, tanto no passado como no presente, fería­
mos hoje à vista, com suficiente clareza, uma casuística rica que
nos poderia ser mais útil do que de pronto suspeitamos. Por exem­
plo: os atuais meios de comunicação trouxeram consigo o fato
de que, pela primeira vez, seja normal o frequentíssimo trans­
lado de inúmeras pessoas de seu país aos demais, inclusive os
mais distantes. Esse fato que há poucos anos começou a pro­
duzir-se, não fará verosslmelmente outra coisa senão crescer nos
próximos anos. Junto da transferência corporal atua a presença
constante da Imprensa de tudo quanto acontece nos outros países.
Pois bem: que efeitos trará tudo isso para a vida de cada so­
ciedade? Porque não digo que êsses efeitos tenham, forçosamente
de ser benéficos ou, pelo menos, que a velocidade com que tal
processo avança não acarrete graves consequências, ainda que
sejam transitórias.
Que os sociológos e etnógrafos não deram ao tema a im­
portância que êle reclama, salta à vista, quando se adverte que
não se fazem problemas de fatos como o seguinte:
Numerosas tribos da Nigéria, completamente díspares entre
si, pela sua raça, pela sua língua, pelos seus usos, etc., vivem
tão próximas umas das outras que não seria exagerado dizer
que vivem mescladas. Não obstante, os indivíduos de cada tribo
perduram adscritos à sua particular sociedade e têm plena cons­
ciência dos outros como absolutamente estrangeiros. Como os tam­
bores sagrados simbolizam para os primitivos todos os usos da
sua tribo e, portanto, da sua sociedade, quando vêem alguém
que pertence a outra tribo, dizem: "Aquêle dança com outro
tambor"; isto é: "aquêle" tem outras crenças, outra língua, outros
tabus, etc. Como se explica que nessa quase convivência não se
apaguem as diferenças, e que a identidade de tabus, etc., man­
tenha uma tão plena coesão social dentro de cada tribo que,

260 —
O DIZER DA GENTE

em meio à mais ativa convivência, baste para isolar? A identi­


dade de tabus produz a coesão social e, em meio à mais ativa
intervivência, isola.
É tão fina a reação da língua aos caracteres da sociedade
que, não sòmente se diferenciam os de duas sociedades, como
também dentro de uma mesma se modificam conforme o grupo
social. Uma das notícias mais antigas da história, — anterior,
portanto, ao ano 3000, — nos diz que nas cidades sumero-aca-
dianas se falavam duas línguas: uma era a língua dos homens,
eme-ku; outra, a língua das mulheres, eme-sal, que significava
também a língua dos cantos. Será que tão cedo começaram os
homens e as mulheres a não se entender? O dado foi sustentado
nada menos que por Eduardo Mayer. Faz um par de anos
Hrozny, o decifrador da escrita hitita cuneiforme e da hieroglí­
fica do outro povo hitita, pôs isso em dúvida. Mas não se com­
preende a dificuldade que encontra em admiti-lo, porque ainda
há muitos povos em que coexistem uma linguagem masculina e
outra feminina. Carlos Alberto Bernouilli chama a atenção sôbre
êsse idioma feminino que nenhum homem pode entender e que
é o único que se emprega nos mistérios propriamente femininos;
como entre os suahili. Flora Kraus estudou o caráter e a difusão
dessa linguagem.
A nossa língua espanhola, em sua forma que, — um tanto
ideal ou utopicamente mas, ao cabo, com suficiente fundamento,
— podemos chamar normal, é o resultado, talvez melhor dito: a
resultante mecânica da colaboração entre as diversas classes so­
ciais. E é que cada uma tem a sua língua própria; isso, não
por diferenças do azar, mas por uma razão fundamental, que
faz dessas diversas classes órgãos substantivos, cada um com o
seu papel na existência da nossa língua normal. Pois se trata de
que a classe chamada popular, a intermédia e a superior usam
da língua em atitude radicalmente diversa. Como faz notar Lerch,
o modo de falar, isto é, de empregar a língua, se diversifica em
três grupos sociais diferentes. Há os que falam sem refletir sôbre

— 261
O HOMEM E A GENTE

o seu modo de falar, em puro abandono e saia como sair: é o


grupo popular. Há os que refletem sôbre o seu próprio falar,
mas refletem errôneamente, o que dá lugar a deformações cô­
micas do idioma, como aquela senhora que para passar por fina,
diz que o seu marido chegou no "corredo de Bilbado" (1). Há,
por fim, o grupo superior que reflete acertadamente.
Eliminemos o grupo intermédio que raramente consegue in­
fluir na língua normal. Restam-nos o povo e as aristocracias
cultas. Sua atitude na linguagem não é senão uma manifestação
particular de sua atitude geral diante da vida. Porque há dois
modos de estar diante da vida: um consiste em abandonar-se,
deixando que os atos saiam como queiram; outro é deter os
primeiros movimentos e procurar que o nosso comportamento se
produza segundo normas. Lerch nos faz ver como o indivíduo
"culto, que costuma pertencer às classes superiores, fala a partir
de uma "norma" linguística, de um ideal de sua linguagem e da
linguagem em geral. O plebeu, em troca, fala ao Deus dará.
Por isso, Lerch sustenta, em face da tese romântica, que os se­
letos, as aristocracias, ao serem fiéis àquela norma, fixam e
conservam o idioma, impedindo que êste, entregue ao mecanis­
mo das leis fonéticas que regem sem reservas a fala popular,
chegue às últimas degenerações. A perda de consoantes a que
havia chegado o francês, quando as classes superiores iniciam
a sua vigilância, é enorme: de pediculum fica sòmente "pou"; de
parabolare, "parler"; de cathedra, "cheire" ou "chaise"; de oculus,
"oeil"; de augurium, "heur". Procedem daí as múltiplas conver­
gências que carregaram o francês de sons equívocos: "san"
vem de vocábulos latinos tão diferentes como centum, sanguem,

(1) Mantenho a fórmula espanhola por "correio de Bilbao". Nasceu essa ultra-
correçao do temor ao uso popular, sobretudo sulino, de reduzir as terminações
— ado, — ido — ao — ío, como em cuidado, cuidao e sentido, sentío.
Já ouvi aqui no Rio a expressão: "Êle é, inclusível, da gandalha", em que a
ultra-correção me parece que nasceu: a primeira, por analogia com os adjeti­
vos em-ível, e a segunda, pelo horror à deformação do tipo trabaia por tra­
balha (N. do T.)

262 —
O DIZER DA GENTE

sine, se inde ("s'en"); em fim, ecce hoc inde ("e'en"); daqui a


expressão cuja origem se buscava, "e'en dessus dessous", que
estupidamente se escreve hoje "sens dessus dessous", e antes, —
em Vaugelas, em Madame de Sevigné, — "sans dessus dessous".
Ao abreviar os vocábulos proparoxítonos, — tepidus, "tiède", —
ficam sòmente oxítonos e paraxítonos: de portum, "port"; de
porta, "porte". Mas êste e é mudo e, sem a intervenção dos
cultos, o e final desaparecería confundindo-se com "port" e am­
bos ficariam reduzidos a port. (2) Graças aos cultos, há palavras
abstratas e muitos meios utilíssimos, por exemplo: certas con­
junções.
No século XVI, o francês ainda vai à deriva dos caprichos
individuais. A princípio do XVII, começa a pressão de uma norma
proveniente das classes superiores. E a figura que se elege para
essa norma não é a do sábio ou pedante que fala a partir
de si mesmo, mas o da fala palaciana, em que domina o ponto
de vista do que escuta e vai responder, porque não fala como
escritor solitário, mas formalmente como conversador. Adota-se,
assim, uma norma proveniente do caráter mais substancial do
idioma, a socialidade. E o homem, como ser sociável, que vai
legislar. Mas, mesmo dentro do seu conceito, prefere-se o homem
sociável, no qual o falar, — conversar, — é uma ocupação formal,
— que fala por falar, prefere-se o cortesão, o "homem de so­
ciedade" e "l'honnête homme, I'homme de bonne compagnie". E
justo que, no dizer falado, em que o decisivo é ser gratamente
entendido, êsse tipo de homem decida sôbre a forma do dizer,
visto que diz como há de dizer-se. De outra parte, no dizer es­
crito, em que o decisivo é que se diga o que há de dizer-se,
deve decidir o escritor.
O abandono ao funcionamento das leis fonéticas levaria a
uma linguagem de monossílabos equívocos, muitos dêles idênticos
entre si, — como acabamos de ver, — embora oriundos de vocá-

(2) E. Lerch: Uber das sprachliche Verhãeltnls von Ober — und Unterschichten —
Jahrbuch für Philologie — 1. 1925, p. 91.

— 263
O HOMEM E A GENTE

bulos muito diferentes. Aconteceu isso no inglês e no chinês. Daí,


essa triste condição da língua inglêsa que obriga os seus falantes
nativos ao freqüente spelling em que, um para o outro, têm de
soletrar a palavra que acabam de pronunciar. Suspeitamos, às
vêzes, que, se um inglês entende o outro é porque, constituindo-
se hábitualmente a sua conversação de puros lugares comuns,
um já sabe de antemão o que o outro vai dizer. No chinês, re­
solveram o problema complicando a pronunciação com diferentes
alturas de tom, o que o torna uma música nada bem soante e
não permite a sua transcrição em caracteres latinos ou de outra
escrita não ideográfica.
Meu amor!... — Não se pode dizer que êste não é um bom
comêço de parágrafo... E menos mal que não se pode coligir
ou suspeitar a quem vai dirigido êsse suspiro verbal! O fato de
ser tão indiscreto lançar essa expressão diante de um auditório
de mais de mil pessoas faz dela a própria discreção e ainda
mais: torna-a ultra-discreta. Porque a discreção consiste em calar
o que se há de calar, mas na suposição de que aquilo que se
cala, em rigor, se poderia dizer, porque tem um sentido. Mas
essas duas palavras, apesar de terem o aspecto de palavras e
possuírem um vago sentido, algo assim como uma significação,
não são um dizer, não dizem nada. Porque?. . . se o seu som
está íntegro e corretamente pronunciado? Nada dizem porque em
si não levam direção a um destinatário; têm um emissor que sou
eu, mas carecem de um receptor e, por isso, como a pomba que
perdeu o rumo e adeja indecisa sem saber para onde ir, não
fazem a viagem, não chegam a ninguém, não dizem. As pala­
vras "meu amor" estão, com efeito, agora, no ar: ficaram nêle
exatamente como estão no dicionário. No dicionário, as palavras
são possíveis significações mas nada dizem. São curiosos êsses
obesíssimos livros a que chamamos dicionários, vocabulários, lé­
xicos: nêles estão tôdas as palavras de uma língua e, não
obstante, o autor dêles é o único homem que quando as escre­
ve não as diz. Quando, escrupuloso, anota os vocábulos "estú­

264 —
O DIZER DA GENTE

pido" ou "mamarracho", não os diz de ninguém nem a ninguém;


o que nos põe diante do mais imprevisto paradoxo: a linguagem,
o dizer, o vocabulário, o dicionário, são completamente contrá­
rios à linguagem, e as palavras não são palavras senão quando
ditas a alguém por alguém. Só assim, funcionando como ação
concreta, como ação viva de um ser humano para outro têm
realidade verbal. E, como os homens, — entre os quais as pala­
vras se cruzam, — são vidas humanas e como tôda vida se acha,
a qualquer instante, numa determinada circunstância ou situação,
é evidente que a realidade "palavra" é inseparável de quem a
diz, daquele a quem se diz e da situação em que isso acontece.
Tudo aquilo que não seja tomar assim a palavra faz convertê-
la numa abstração, desvirtuá-la, amputá-la e com que se fique
sòmente com um fragmento exânime dela.
Assim, ao pronunciar eu os vocábulos "meu amor", ao não
serem ditos a alguém, não seriam um dizer e, ao não sê-lo, tão
pouco uma autêntica ação verbal... Seriam sòmente som, o que
os linguistas chamam fonema. Contudo, êsse som teria uma signi­
ficação. Qual? Não vamos entrar na arriscada tarefa de definir
a realidade que é o amor. Seria no máximo a nossa emprêsa
definir, sòmente, o que significa essa expressão, delimitar essa
significação que, apenas pronunciada aquela, encontramos em
nossa mente. Mas, se o tentássemos, advertiriamos que surgem
diante de nós, com perfil mais ou menos preciso, diversas signi­
ficações concretas, reais ou imaginárias, em que aquelas palavras
são efetivamente ditas por alguém a alguém, e que então a
significação é diferente, segundo a situação e os seus persona­
gens. E, por exemplo, a mãe que diz ao filho: "Meu amor!",
ou é o amante que o diz à sua amada. Não é a mesma coisa
o amor maternal e o amor de namôro. Mas não é isto, — dema­
siado palmar, — o que nos interessa; sim o contrário: que se
compare qualquer dessas duas significações que a palavra
"amor" tem, quando é dita de fato e é momento vivaz de uma
vida, e aquela que parecia ter, quando a pronunciei a princípio.

— 265
O HOMEM E A GENTE

No caso da mãe e no do amante, a palavra amor enuncia e diz


um sentimento efetivo, real, completo, com todos os seus com­
ponentes e requififes. Espressei-me mal: não é um sentimento real
o que em ambos os casos a palavra designa ou representa,
mas: dois sentimentos muito diversos. Achamos, portanto, que uma
mesma palavra é empregada para nomear duas realidades muito
diferentes entre si. Não se confunda isso com o fato de que há
palavras equívocas, afetadas daquilo que os lingüistas chamam
de "polissemia" ou pluralidade de significação. Assim, a mesma
voz "leão" significa a fera africana, a cidade espanhola, um
bom número de papas e as duas esculturas que guardam a esca­
daria do nosso edifício parlamentar. Neste exemplo, o fato de
que o mesmo fonema, — leão, — signifique tôdas essas coisas é
puramente casual e, em cada caso, a coincidência se deve a uma
causa determinada e diferente. O nome "leão", para o animal
procede, sem mais outra, do radical latino leon, — de leo, leonis,
— mas o nome da cidade de Leão procede, por alterações foné­
ticas, de legião, porque ali se achava a cabeça militar e admi­
nistrativa de um corpo do exército romano. Desse modo, "leão",
nome de animal e "Leão", nome de cidade, não são uma pa­
lavra com duas significações, mas duas palavras que nada têm
a ver entre si e que o azar das transformações na pronunciação
de duas séries fonéticas, — que começam por leo e legio, — spca-
bou identificando, produzindo-se, por isso, o autêntico equívoco.
Acrescentemos, — para aproveitar isso, mas com vistas ao que antes
se disse, — que êste exemplo nos mostra que, abandonada a
língua às transformações fonéticas dos vocábulos, acabaria ela
enchendo-se de equívocos como êste, e não haveria modo de
entender-se, porque a conversação seria um constante trocadilho.
Quanto aos leões do Congresso, acontece que, metaforizando-se,
o sentido se mudou e, de um animal de carne e osso, se faz
o vocábulo significar um pedaço de bronze ou de mármore, que
tem uma forma algo parecida com aquêle.
Mas no "meu amor", da mãe e no "meu amor" do amante

266 —
O DIZER DA GENTE

não há, segundo os gramáticos, equívoco. Trata-se da mesma e


única palavra, com a mesma e única significação. Por outro lado,
é inqüestionável que naqueles dois casos nomeia sentimentos so-
bradamente diferentes, de forma que "amor", por si e sem mais
nada, deveria significar ou o amor da mãe ou o amor do amante,
mas não se vê como pode significar juntamente os dois. Só se pode
entender, se advertirmos que a palavra "amor", isolada, arrancada
a qualquer situação viva, em que é efetivamente dita, não significa
êste nem aquêle, nem nenhum amor real, concreto, portanto com­
pleto e que seja amor efetivo, mas só alguns atributos que, em todo
amor, seja êle qual fôr, — a pessoas, a coisas, a Deus, à pátria,
à ciência, — terão de aparecer, mas atributos que sozinhos não
bastam para que haja um amor. O mesmo acontece se digo
"triângulo". Com as significações que de início parece assinalar
êste vocábulo, não se pode desenhar no quadro nenhum triân­
gulo. Para isso é necessário acrescentar por conta própria mais
alguns atributos que não estão naquela significação, como sejam
um tamanho preciso para os lados da figura e uma precisa aber­
tura de seus ângulos; só com tais acréscimos um triângulo é
um triângulo. "Amor", "triângulo" não possuem, em rigor, uma
significação, mas apenas um embrião dela, um esquema de signi­
ficação, algo assim como a fórmula algébrica que não é por
si uma conta, mas sòmente um esquema de contas possíveis, es­
quema que reclama a sua completação, substituindo-se as suas
letras por cifras determinadas.
Não sei se, com isso, consegui fazer com que se veja a
peregrina condição que têm as palavras, e, portanto, a lingua­
gem; pois advém daí que, se tomarmos sòmente o vocábulo e
tal como vocábulo, — amor, triângulo, — êle não tem propria­
mente significação, pois tem sòmente um fragmento dela. E, se,
— em vez de tomarmos a palavra por si, na pura e estrita ver-
balidade, — a dizemos, é só então que ela se carrega de efetiva
e completa significação. Mas: de onde vem à palavra, à lingua­
gem, isso que lhe falta para cumprir a função que se lhe cos­

— 2Ó7
O HOMEM E A GENTE

tuma atribuir, a saber: significar, ter sentido? Não lhe vem de


outras palavras, não lhe vem de nada daquilo que até agora
se chamou linguagem e que é o que aparece dissecado no voca­
bulário e na gramática; mas de fora dêle, dos sêres humanos
que o empregam, que o dizem numa determinada situação. Nessa
situação são os sêres humanos que falam, com a precisa inflexão
de voz com que pronunciam, com a cara que fazem enquanto
o fazem, com os gestos concomitantes, liberados ou retidos, que
pròpriamente "dizem". As chamadas palavras são apenas um
componente dêste complexo de realidade e só efetivamente são
palavras quando funcionam nesse complexo, inseparáveis dêle.
Do som "tinto" partem diversas séries de significações possíveis
e, por isso mesmo, nenhuma efetiva. Dito por alguém numa
taberna, o vocábulo se completa automàticamente com elementos
não-verbais, com tôda a cena da "tasca" e, sem vacilação, a
palavra cumpre perfeitamente a sua missão, dispara ineqüívoca
o seu sentido e significa: "êste quer vinho tinto". A coisa, na sua
mesma trivialidade, é enorme pois nos mostra que todos os de­
mais ingredientes de uma circunstância, que não são palavra,
que não são sensu stricto "linguagem", possuem uma potenciali­
dade enunciativa,- portanto, a linguagem consiste não sòmente em
dizer o que ela por si diz, mas em atualizar essa potencialidade
dizente, significativa do contôrno. O fato inqüestionável é que
acaba surpreendendo como a palavra se entrega como tal pa­
lavra, — isto é, realiza a sua função de enunciar, — em coales-
cência súbita com as coisas e os sêres em tôrno, que não são
verbais. O que a palavra diz por si é muito pouco, mas opera
como um fulminante que dispara o poder quase-verbal de tudo
mais. Isto não ocorre de igual modo com a linguagem escrita,
mas deixemo-la estar, uma vez que é evidente ser esta: secun­
dária e subseqüente à oral ou, — como dizia Goethe, — que a
escrita é mera e deficiente substituta ou sucedânea da palavra
falada.
Vimos anteriormente que "eu, tu, aqui, ali", eram palavras

268 —
O DIZER DA GENTE

que tinham sentido diferente conforme quem as diz e o lugar


em que se encontra quem as diz; os gramáticos as chamam, por
isso, "palavras de significação ocasional". Disse eu, então, que
se poderia discutir com os lingüistas sôbre se, em vez de uma
significação ocasional, não têm inumeráveis significações. Entre­
vemos agora, mesmo nestas sumaríssimas considerações que, em
rigor, acontece algo parecido a tôdas as palavras, que a sua
significação autêntica é sempre ocasional, que o seu sentido pre­
ciso depende da situação ou circunstância em que sejam ditas.
A significação que o dicionário atribui a cada vocábulo é sò­
mente o esqueleto das suas efetivas significações, sempre mais
ou menos diferentes e novas, as quais, no fluir nunca quieto,
sempre variante do falar, põem nesse esqueleto a carne de um
sentido concreto. Em vez de esqueleto, talvez seja melhor dizer
que são a matriz maleável na qual as palavras, quando real­
mente o são, portanto: quando são ditas a alguém, em virtude
de certos motivos e em vista de determinada finalidade, rece­
bem uma primeira moldagem.
A lingüística teve de começar por isolar na linguagem real
êsse seu lado esquelético e abstrato. Graças a isso, pôde elabo­
rar a gramática e o vocabulário, coisa que fêz a fundo e com
perfeição admirável. Mas, apenas conseguido isso, os lingüistas
viram que assim não se havia feito senão começar, porque o
efetivo falar e escrever é uma quase constante contradição
àquilo que a gramática ensina e o dicionário define, a ponto
de que quase se poderia dizer que a fala consiste em faltar à
Gramática e exorbitar do dicionário. Pelo menos e muito for­
malmente, o que se chama ser um bom escritor, isto é, um escritor
com estilo, é causar freqüentes erosões à gramática e ao léxico.
Por isso, um linguista tão grande como Vendryès pôde definir o
que é uma língua morta, dizendo que é aquela língua em que
não há direito a cometer faltas, — o que, invertido, equivale a
dizer que a língua viva vive de cometê-las. Com isso, chegamos
à curiosa conjuntura em que hoje se acha a lingüística e que

— 269
O HOMEM E A GENTE

estriba em rodear a gramática e o léxico, — constituídos por ela


própria durante a sua etapa anterior, — com uma orla de inves­
tigações cada vez mais ampla e que estuda o como e o porquê
dessas faltas, faltas a que agora, — está claro, — se reconhece
um valor positivo; isto é, que são exceções tão constitutivas da
linguagem como as próprias regras. Essa orla que vai envolven­
do a lingüística tradicional é a estilística. Para trazer o exemplo
mais grosso e trivial, se alguém grita "Fogol" ofende à gramá­
tica porque, ao gritá-lo, quer dizer algo, e gramaticalmente todo
dizer, como correta enunciação, reclama uma frase inteira, —
a palavra solitária, já no-lo disse Aristóteles, não diz nada, —
por exemplo: "nesta casa o fogo produziu um incêndio". Mas a
emoção do pânico e a urgência vital do caso fazem com que o
homem renuncie a êsse complexo enunciado, — que segundo a
velha lingüística seria o correto, — e condense a frase num único
vocábulo eruptivo.
Como se vê, a estilística, diferentemente da gramática, faz
entrarem no estudo científico da linguagem, elementos extra-
verbais que são o estado emocional e a situação determinada,
em que alguém pronuncia a palavra e, precisamente, uma parte
de tudo aquilo que, — como vimos antes, — é inseparável da
palavra, mas que a gramática e o dicionário tinham separado
dela. Isto quer dizer que a estilística não é, como ainda se crê
hoje, um vago acréscimo à gramática, mas sim, nem mais nem
menos do que tôda uma nova lingüística incipiente que se resolve
a tomar a linguagem mais perto da sua concreta realidade. E
não creio que seja arrôjo insensato vaticinar que a recente lin­
güística, hoje breve orla que encrespa o severo perfil da gra­
mática e do léxico, está destinada a devorá-los e a incorporar
o capital e os juros de tôda a lingüística (3). Há bastantes anos,
postulo uma nova filologia, que tenha ânimo para estudar a
linguagem na sua íntegra realidade, tal e como é, quando é

(3) No original: "alzarse com el santo y Ia limosna" (N. do T.)

270 —
O DIZER DA GENTE

efetivo, vivo dizer, e não como mero fragmento que foi ampu­
tado à sua completa figura. Essa nova filologia terá, por exem­
plo, — conste que se trata sòmente de um exemplo escolhido por
causa de sua relativa singeleza, — de elevar a princípio formal
da lingüística a vetusta receita que, com uma indicação secun­
dária, sempre orientou a interpretação prática dos textos e que
reza: duo si idem dicunt non est idem; se dois dizem o mes­
mo. .. já não é o mesmo.
A lingüística, — seja fonética, seja gramática, seja léxico,
— estudou, sob o nome de linguagem, uma abstração a que
chama "língua", a qual, supondo que se possa precisar-lhe a
figura, é algo que qualifique! de maravilhoso e que já quere­
riamos possuir em qualquer outra disciplina de Humanidades.
Mas é evidente que com isso ela não conseguiu conhecer a lin­
guagem, senão numa primeira aproximação, porque isso a que
chama língua não existe em rigor, é uma figura utópica e arti­
ficial criada pela própria lingüística. Com efeito, a língua não
é nunca "feito", pela singela razão de que nunca está "feita";
ao contrário: sempre se está fazendo e desfazendo ou, dito em
outras palavras, é uma criação permanente e uma incessante
destruição. Daí vem que a gloriosa façanha intelectual que a
lingüística, — tal e qual é hoje, — representa, a obriga preci­
samente, — nobreza obriga, — a conseguir uma segunda apro­
ximação mais precisa e mais enérgica no conhecimento da rea­
lidade "linguagem", e isto só poderá tentar, se ela estudar a
linguagem, não como coisa feita, mas como fazendo-se, portanto:
in statu nascendi, nas raizes mesmas que a geram. Seria um êrro,
se a lingüística cresse bastar-lhe, para conhecer a língua no seu
fazer-se, reconstruir suas formas anteriores à atual ou, dito mais
geralmente, à forma que apresenta numa determinada data. A
lingüística já realizou isso, que é um saber importantíssimo. Essa
chamada "história da língua" não é, porém, na verdade, mais
do que uma série de gramáticas e léxicos do aspecto que, em
cada estado pretérito, a lingua, já feita naquela data, mostrava.

— 271
O HOMEM E A GENTE

A história da língua nos mostra uma série de línguas sucessivas,


mas não o seu fazer-se.
Embora isso seja fecundíssimo, é claro que não somos for­
çados a ir ao passado para estudar o fazer-se de uma língua,
porque, sendo ela, efetivamente, um constante fazer-se e desfa­
zer-se, isso acontece igualmente hoje e ontem. O seu passado
importa muito; importaria, porém, ainda mais que a lingüística
se resolvesse a tomar o fenômeno da linguagem em um estrato
mais profundo, a saber: antes de estar feita a palavra, em suas
raízes, em suas causas genéticas.
Em forma lacônica, eu exporia assim a minha idéia de uma
nova lingüística:
Falar é principalmente, — já se verá o porquê desta reserva,
— usar de uma língua enquanto feita e nos é imposta pelo
contôrno social. Mas isso implica que essa língua foi feita, e
fazê-la não é simplesmente falar, é inventar novos modos da
língua e, originàriamente inventá-la, em absoluto. E evidente que
se inventam novos modos da língua, porque os que há, e ela
já tem, não satisfazem, não bastam para dizer o que se tem
de dizer. O dizer, isto é, o anelo de expressar, manifestar, de­
clarar é, pois, uma função ou atividade anterior ao falar e à
existência de uma língua, tal e qual esta já existe aí.
O dizer é um estrato mais profundo do que a fala e a
êsse estrato profundo deve dirigir-se hoje a lingüística. Não exis­
tiríam as línguas, se o Homem não fôsse constitutivamente o
Dizente, isto é, o que tem coisas a dizer; portanto, postula uma
nova disciplina básica de tôdas as demais que integram a lin­
güística e que chamo Teoria do Dizer. Por que é o homem dize-
dor e não silente ou, no máximo, um ser como os demais que
se limita a assinalar aos seus, semelhantes, com gritos, uivos,
cantos, um repertório de situações práticas dado de uma vez para
sempre? Von Frisch conseguiu distinguir com suficiente precisão
um pequeno repertório de vôos diferentes que produzem dife­
rentes rumores, com cada um dos quais a abelha assinala às

272 —
O DIZER DA GENTE

suas companheiras uma determinada situação. Mas êsses sinais


não são um "dizer" da abelha, mas reflexos automáticos que as
diferentes situações disparam nela.

Um dos inconvenientes de não partir do dizer, — função


humana anterior ao falar, — e que se considera a linguagem
como a expressão daquilo que queremos comunicar e manifestar;
sendo assim que uma parte muito grande do que queremos ma­
nifestar e comunicar fica inexpresso em duas dimensões, uma
por cima e outra por baixo da linguagem. Por cima, o inefável.
Por baixo o que "se cala por sabido". Ora, êsse silêncio atua
constantemente sôbre a linguagem e é causa de muitas das suas
formas. Humboldt já disse: "Na gramática de tôda língua, há
uma parte expressamente designada ou declarada e outra, sôbre-
acrescida, que se silencia. Na língua chinesa, aquela primeira
parte está numa relação infinitamente pequena com a última".
"Em tôda língua, o contexto da fala tem de vir em auxílio da
gramática; êle é, no chinês, a base para a mútua compreensão
e frequentemente a construção só pode ser derivada dêle. O
próprio verbo só pode ser reconhecido graças ao conceito ver­
bal" (4), — quer dizer: graças à idéia de uma ação verbal que
o contexto sugere. Sòmente se se adverte isto, se explicam as
frases sem sujeito, como "Chove!" ou as exclamações "Fogo!,
Ladrões!, Vamos!".

Mas, se o homem é quem "diz", urgiria determinar o que


é que diz, ou, expresso de outra maneira, quais são as dire­
ções primárias do seu dizer; que coisas são as que o movem a
dizer e quais as que o deixam silencioso, isto é, quais as que
êle cala. E patente que essa necessidade de dizer, — e não
uma vaga e qualquer, mas um preciso sistema de coisas que
tinham de ser ditas, — foi o que levou ao invento e existência
posterior das línguas. Isto nos permite avaliar se êste instru-

(4) Humboldt, V. 319

— 273
O HOMEM E A GENTE

mento inventado para dizer é suficiente, e em que medida o


é ou não.
O homem, quando se põe a falar, o faz porque crê que
vai poder dizer o que pensa. Pois bem, isso é ilusório. A lingua­
gem não dó para tanto; ela diz, pouco mais ou menos, uma
parte do que pensamos e põe uma vala infranqueável à trans­
fusão do resto; serve bastante bem para enunciações e provas
matemáticas; já ao falar de física começa a ser equívoca e insu­
ficiente,- e, segundo a conversação se ocupa de temas mais im­
portantes do que êsses, mais humanos, mais "reais", vai aumen­
tando a sua imprecisão, o seu entorpecimento e o seu confusio-
nismo. Dóceis ao preconceito inveterado de que "falando nos
entendemos", dizemos e escutamos com tanta boa fé que aca­
bamos por nos mal entender muito mais do que se, mudos, nos
ocupássemos de nos adivinharmos. Mais ainda: como nosso pen­
samento está adstrito em larga medida à língua, — embora eu
resista a acreditar que essa adstrição seja absoluta, como se
costuma sustentar, — advém que: pensar é falar consigo mesmo
e, consequentemente mal-entender a si próprio, e correr grande
risco de se tornar um puro embrulho.
Em 1922 houve uma sessão na Sociedade de Filosofia de
Paris, dedicada a discutir o problema do progresso na linguagem.
Tomaram parte nela, junto aos filósofos do Sena, os grandes
mestres da escola lingüística francêsa, que era, de certo modo,
ao menos como escola, a mais ilustre do mundo. Pois bem:
lendo o extrato da discussão, encontrei umas frases de Meillet que
me deixaram estupefacto, — de Meillet, mestre supremo na
lingüística contemporânea: "tôda língua, — dizia, — expressa quan­
to é necessário à sociedade de que é órgão.. . Com qualquer fo-
netismo, com qualquer gramática, pode expressar-se qualquer coi­
sa". Salvo o respeito devido à memória de Meillet, não parece que
há também nessas palavras um evidente exagêro? Como averiguou
Meillet a verdade de sentença tão absoluta? Não será na qualida­
de de lingüista. Como lingüista, êle conhece apenas as línguas dos

274 —
O DIZER DA GENTE

povos, e não os seus pensamentos; seu dogma, porém, supõe


que êle haja medido êstes com aquelas e haja verificado que
coincidem,- ademais, não basta dizer: tôda língua pode formular
todo pensamento, mas sim: se tôdas podem fazê-lo com a mesma
facilidade e imediatismo. A língua não só oferece dificuldades
à expressão de certos pensamentos, mas também, por isso mesmo,
estorva a recepção de outros, paraliza a nossa inteligência em
certas direções. (5)
Não se entende na sua raiz a estupenda realidade que é a
linguagem, se não se começa a advertir que a fala se compõe
sôbre tudo de silêncios. Um ser, que não fôsse capaz de renun­
ciar a dizer muitas coisas, seria incapaz de falar. E cada língua
é uma equação diferente entre manifestações e silêncios. Cada
povo cala umas coisas para poder dizer outras. Porque tudo
seria indizível. Daí a enorme dificuldade da tradução: nela se
trata de dizer em um idioma precisamente o que êsse idioma
tende a silenciar. A "teoria do dizer, dos dizeres" teria de ser
também uma teoria dos silêncios particulares que os diversos
povos praticam. O inglês cala inumeráveis coisas que os espa­
nhóis costumamos dizer. E vice-versa!
Em um sentido ainda mais radical, será forçoso que a lin­
güística se oriente numa "teoria do dizer". Até agora ela estudou
a língua tal e qual esta se nos apresenta e tal e qual se acha
aí, isto é, como já feita. Em rigor, porém, a língua nunca está
feita, mas fazendo-se sempre, como tudo que é humano. A lin­
güística crê corresponder a essa estrita realidade não se con­
tentando com estudar a língua hoje presente, mas investigando a
sua evolução, a sua história. E a famosa distinção de Saussure
entre a lingüística sincrônica, — que contempla os fenômenos da
linguagem coexistentes na atualidade, — e a lingüística diacrô-

(5) [Veja-se também sôbre o tema o "Prólogo paro franceses" de A rebelião doe
mossas e Miséria e esplendor da Tradução — Obras Completas, volumes IV
e V, de onde se tomaram parcial e respectivamente os dois últimos pará­
grafos.]

— 275
O HOMEM E A GENTE

nica, — que persegue para trás as transformações que êsses fe­


nômenos sofreram na história da língua. Mas essa distinção é
utópica e insuficiente. Utópica, porque o corpo de uma língua
não está quieto nem um instante: não se dá nela estritamente
um sincronismo de todos os seus componentes e, além disso, por­
que o diacronismo não faz mais do que reconstruir outros rela­
tivos "presentes" da língua, conforme existiram no passado. Ela
nos faz ver, portanto, sòmente mudanças; faz-nos assistir à substi­
tuição de um presente por outro presente, a sucessão de figuras
estáticas da linguagem, como o "film" com imagens quietas gera
a ficção visual de um movimento. Isso nos proporciona, no melhor
dos casos, uma visão cinemática de linguagem, e não uma com­
preensão dinâmica em que se nos tornasse inteligível o próprio
fazer-se das mudanças. As mudanças são apenas resultados do
fazer-se e desfazer-se, são a externidade da linguagem, e cabe
postular uma concepção interna dela, em que descobrimos, não
formas resultantes mas as próprias forças operantes.
A lingüística declarou tabu o problema da origem da lingua­
gem, e isso é razoável, se se tem em conta a falta absoluta de
dados linguísticos suficientemente primitivos. Mas o caso é que a
língua nunca é sòmente datum, formas lingüísticas prontas, feitas;
mas está, ao mesmo tempo, originando-se constantemente. Isto
significa que, numa ou noutra medida, continuam funcionando
hoje as potências geratrizes da linguagem, e não parece haver
razão para pensar que seja impossível pôr em evidência no falar
de hoje essas potências. Não tentar isso é o que torna impossível
tratar com alguma verossimilhança a origem da linguagem.
Vem daí que as teorias sôbre a origem da linguagem tenham
sempre oscilado entre êstes dois extremos: ou consideravam que
a linguagem havia sido presenteada ao homem por um poder di­
vino, ou tentavam derivar a linguagem de necessidades que são
as normais em todo animal, como o grito, a chamada, o impe­
rativo, — assim últimamente G. Revesz, — ou o canto, como nos
pássaros (Darwin, Spencer), a interjeição, a onomatopéia, etc. A

27Ó —
O DIZER DA GENTE

explicação teológica é, neste como em todos os demais casos,


o contrário de uma explicação; porque dizer que Deus fez o
homem em princípio "animal racional", isto é, lhe deu de pre­
sente, sem mais nada, a chamada "racionalidade", e que esta
implica a linguagem e, portanto, lhe deu de presente a lingua­
gem, equivale a declarar que nem a "racionalidade" nem a lin­
guagem necessitam de explicação. A verdade é que o homem
não foi inicialmente racional, nem sequer o é ainda. Trata-se de
uma espécie surgida, — afirma-se hoje, — faz um milhão de
anos, espécie que na sua evolução, — isto é, na sua história, —
tomou um caminho que poderá levar em futuros milênios a uma
efetiva racionalidade. Temos de contentar-nos por enquanto com
instrumentos intelectuais bastante grosseiros e que possuem sò­
mente em dose minguada algo assim como "razão". Mas é tam­
bém um êrro pretender derivar a linguagem a partir de um ser
que fôsse animal no mesmo sentido dos demais. De outra ma­
neira não se compreende porque outras espécies não chegaram,
— uma vez que nessas teorias se lhes atribuem as mesmas neces­
sidades atribuídas ao homem, — a elaborar linguagens para si.
Não é forçoso sequer que fôssem linguagens fônicas articuladas:
caberia em princípio uma linguagem de gritos. Muitas espécies
animais, não sòmente os primatas, têm no cérebro um aparelho
"eletrônico", suficiente de sobra, para reter um sistema de gritos
diferenciais, sistema bastante rico para que merecesse ser chama­
do "língua", embora a língua interviesse pouco e a laringe agisse
mais.
É evidente que no homem teve de existir, desde que começou
a sua "humanidade", uma necessidade de comunicação incompa-
ràvelmente superior à de todos os animais restantes; e essa ne­
cessidade tão veemente só podia originar-se de que êsse animal
que vai ser o homem "tinha muito, anormalmente muito que
dizer". Havia nêle algo que não se encontrava em nenhum outro
animal, a saber, um "mundo interior" transbordante, que recla­
mava manifestar-se, ser dito. O êrro está em supor-se que êsse

— 277
O HOMEM E A GENTE

mundo interior era racional. Basta contemplar com um pouco de


rigor isso que hoje é em nós a chamada "racionalidade", para
que vejamos paladinamente, nela mesma os sintomas de um com­
portamento mental que foi obtido com grande esfôrço ao longo
da trajetória humana; que, longe de ser originário, é um produto
de seleção, educação e disciplina exercitada durante centenas e
milhares de anos. No animal que a seguir acabou "homem", teve
de surgir, em desenvolvimento e super-abundância anormais, uma
função primigênia: a fantasia, e, sôbre esta função, atuou a dis­
ciplina milenária que conseguiu fazer dela aquilo que hoje, bas­
tante abusivamente, chamamos "razão". Porque numa espécie
animal brotou aquela torrente de fantasia, de hiper-função ima­
ginativa, é tema a que aludo na primeira lição e de que me
ocupei em outro trabalho meu. Não é possível aqui entrar nêle.
Quero, no entanto, observar que, diante da doutrina teológica,
que faz do homem uma especial criação divina, e a zoológica,
que o inscreve nos limites normais da animalidade, cabe um ter­
ceiro ponto de vista que vê no homem um animal anormal. Sua
anormalidade teria consistido nessa super-abundância de imagens,
de fantasmagorias, que nêle começou a manar e dentro dêle
criou um "mundo interior". O homem seria, dessarte, — e em
vários sentidos do vocábulo, — um animal fantástico. Tal riqueza
interna, alheia aos demais animais, deu à convivência e ao tipo
de comunicação que entre êles existe um caráter totalmente novo;
porque já não se tratou sòmente do envio e da recepção de sinais
úteis referentes à situação em seu contorno, mas de manifestar a
intimidade que, exuberante, oprimia por dentro aquêles sêres, os
desassossegava, excitava e atemorizava, reclamando saída para
o exterior, participação, autêntica companhia; isto é, intento de
interpretação. Não basta o utilitarismo zoológico, para que nos
possamos representar a gênese da linguagem. Não basta o sinal
que está associado com algo que existe ou acontece fora e pode­
mos perceber; mas é preciso supor, em cada um daquêles seres,
a incoercível necessidade de tornar patente ao outro aquilo que,

278 —
O DIZER DA GENTE

no seu próprio "interior", fervia oculto, — o íntimo mundo fan­


tástico, — uma necessidade lírica de confissão. Mas, como as
coisas do mundo interior não se podem perceber, não basta
"assinalá-las"; o simples sinal teve de converter-se em expressão,
isto é, em um sinal que leva em si mesmo um sentido, uma signi­
ficação. Só um animal que "tem muito a dizer", sôbre o que não
"está aí", no contôrno, se verá obrigado a não se contentar com
um repertório de sinais; ao contrário, choca-se com a limitação
que êsse repertório representa, e tal choque o leva a superá-lo.
E é curioso que êsse choque com um meio de comunicação insu­
ficiente, ao qual parece que se deve atribuir a "invenção" da
linguagem, é o que nela perdura e continua atuando em inces­
sante série de pequenas criações. E o permanente choque do
indivíduo, da pessoa que quer dizer a novidade que surgiu na
sua intimidade e que os outros não vêem, com a língua já feita,
— o fecundo choque do dizer com a fala.
Por essa razão, indicava eu, antes, que a origem da lin­
guagem pode em parte ser investigada hoje. A língua, a fala, é
o que a gente diz, é o ingente sistema de usos verbais estabele­
cido numa coletividade. O indivíduo, a pessoa, desde que nasce
está submetida à coação lingüística que êsses usos representam.
Por isso, a língua materna é, talvez, o fenômeno social mais típico
e claro. Com ela, a gente penetra dentro de nós e se instala
ali, fazendo de cada qual um caso da gente. A língua materna
socializa o mais íntimo do nosso ser e, graças a isso, todo indi­
víduo pertence, no mais forte sentido do têrmo, a uma sociedade.
Poderá fugir da sociedade em que nasceu e foi educado, mas
na sua fuga, a sociedade o acompanha inexoràvelmente, porque
êle a leva dentro de si. Este é o verdadeiro sentido que pode ter
a afirmação de que o homem é um animal social, (Aristóteles,
para dizer "social" usa a palavra "político"). E social, embora
seja, — como ocorre com frequência, — insociável. A sua socialidade
ou pertença a uma determinada sociedade não depende de sua
sociabilidade. A língua materna cunhou-o para sempre. E, como

— 279
O HOMEM E A GENTE

cada língua leva em si uma figura peculiar do mundo, impõe-lhe,


junto a certas potencialidades afortunadas, tôda uma série de
limitações radicais. Vemos aqui, com tôda transparência, como
aquilo que chamamos o homem é uma acentuada abstração. O
ser mais íntimo de cada homem já está informado, modelado
por uma determinada sociedade.
Mas também é verdade o vice-versa. O indivíduo que quer
dizer algo muito seu e, por isso mesmo, novo, não encontra
no dizer da gente, na língua, um uso verbal adequado para
enunciá-lo. O indivíduo, então, inventa uma expressão nova. Se
esta tiver a fortuna de ser repetida por um número suficiente de
outras pessoas, é possível que acabe por consolidar-se como uso
verbal. Tôdas as palavras e giros foram inicialmente inventos indi­
viduais e a seguir se degradaram em usos mecanizados, e então,
só então, passaram a formar parte da língua. Entretanto, a maior
parte dessas invenções não produz conseqüências nem deixa ras­
tros, porque, em virtude de serem criação individual, não são
entendidas pelos demais. Essa luta entre o dizer pessoal e o
dizer da gente é a forma normal de existir da linguagem. O indi­
víduo, prisioneiro da sua sociedade, aspira com alguma freqüên-
cia a evadir-se dela, tentando viver com formas de vida suas
próprias. Isso se dá às vêzes com bom êxito, e a sociedade mo­
difica tais ou quais dos seus usos, adotando aquelas formas no­
vas; o mais frequente, porém, é o fracasso do intento individual.
Temos, assim, na linguagem, um paradigma do que é o fato
social.
Os etnógrafos nos falam de que, em muitos povos primiti­
vos, é frequente, — quando a situação excita os indivíduos, —
que êstes pronunciem fonemas não existentes na língua. Tais fo-
nemas são criados porque a fisionomia do seu som expressa ade­
quadamente o que o indivíduo naquele momento sente e quisera
dizer. Isso deve ter sido mais frequente na etapa primária,
quando as línguas se originaram e eram sòmente esboços de lin­
guagem.

280 —
O DIZER DA GENTE

O que não parece tão claro, — na criação dos vocábulos,


— é se o decisivo, o que leva a produzir tal som e não tal
outro, é a sua fisionomia sonora, como acabo de dizer, para
ater-me em princípio ao que costumam pensar os lingüistas. Te­
nho, porém, a suspeita de que também a fonética reclama ser
construída a partir de um extrato mais profundo.
A redução da linguagem à palavra sensu stricto, isto é, à
sua porção sonora, já é uma abstração; portanto, algo que não
coincide com a realidade concreta. Essa abstração, constitutiva
da ciência lingüística, conforme até agora se elaborou, não cau­
sava dano a que se pudesse levar a cabo um estudo amplíssimo
e, no seu tipo, exemplarmente rigoroso, do fenômeno "lingua­
gem". Mas, precisamente, o triunfo alcançado pela lingüística
projeta-a sôbre investigações cada vez mais sutis, e então come­
çam a descubrir-se os limites que aquela abstração inicial impõe.
Já vimos anteriormente a necessidade de que a lingüística inclua,
na sua análise da fala, uma porção de coisas que nela não
estão ditas. Mas agora é preciso atrever-se a fazer constar um
ponto de vista mais radical, a saber: a fala não consiste só
em palavras, em sonoridades ou fonemas. A produção de sons
articulados é só um lado do falar. O outro lado é a gesticulação
total do corpo humano enquanto se expressa. E claro que estão
incluídos nessa gesticulação não só os movimentos de mãos, bra­
ços e pernas, mas também as leves modificações do tom muscular
nos olhos, faces, etc. Todos os linguistas estão dispostos, desde
muito, a reconhecer isso oficialmente, mas não o tomam a sério.
E, sem embargo, é preciso tomá-lo a sério e resolver-se a aceitar
esta enérgica fórmula: falar é gesticular. E isso num sentido mais
agudo e mais concreto do que se presume ao ouvi-lo.
Alguns povos, sobretudo alguns povos do Ocidente, há já
dois séculos, praticam ao falar uma disciplina que logrou reduzir,
— em casos extremos, até pràticamente suprimir, — as gesticula-
ções macroscópicas. Recordemos os ingleses, que não falavam
tão quietos como hoje, nos tempos da Merry England. Entre

— 281
O HOMEM E A GENTE

Falstaff e Mr. Eden houve uma enorme poda de gestos. Se isso


é bom ou mau para a função eloquente, é coisa bastante pro­
blemática. Mas conforme retrocedamos a estádios mais elemen­
tares, a gesticulação aumenta, até a ponto de que, hoje mesmo,
não poucos primitivos da África são incapazes de entender um
explorador ou um missionário que conheçam bem a sua lingua­
gem, simplesmente porque, êstes gesticulam pouco. Ainda mais:
há povos centro-africanos nos quais à noite, quando é plena a
escuridão, os indivíduos não podem conversar, porque não se
vêem e, por não se verem, fica amputada da fala a gesticulação.
Mas fatos dêsse gênero não são o fundamento último que
dá sentido à fórmula: "Falar é gesticular".
Quando a lingüística, nos começos do século passado, quis
entrar naquilo que Kant chama "o seguro caminho de uma ciên­
cia", resolveu contemplar, a linguagem pelo lado mais franqueá-
vel às investigações rigorosas; pôs-se, então, a estudar o funda­
mento do aparelho bucal quando emite sons da língua. A êsse
estudo chamou "Fonética", nome inadequado, porque não se
ocupa dos sons como tais, mas sòmente dos movimentos articula-
tórios que os produzem. Daí vem que, ao classificar os sons da
linguagem, ela lhes dê nomes tomados ao funcionamento da
bôca: labiais, dentais, etc. E inquestionável, não obstante, que
tal método alcançou exemplar eficácia. Mas é evidente que
atender à pronunciação é um ponto de vista secundário: é con­
templar a linguagem a partir do que fala e não do que ouve,
e a palavra não é palavra dentro da bôca daquêle que pronun­
cia, mas no ouvido do que escuta. Ora, aquêle que pronuncia
se esforça para articular, a fim de produzir um determinado som,
um fonema que prèviamente ouvira dos outros. Na língua feita é,
pois, primário o ouvir, e a língua é antes de tudo um fato
acústico. Advém daí, que fôsse uma excelente idéia do príncipe
Trubetzkoi, — quando há uns trinta e cinco anos começou a
estudar os sons da linguagem como tais sons e a determinar
que parte sonora do fonema é a que efetivamente torna dife­

282 —
O DIZER DA GENTE

rencial ou discernível cada um e, portanto, eficaz para a função


da fala, — aquela idéia de chamar a êsse estudo, — e agora o
nome é adequado, — "Fonologia".
Não há dúvida que êsse ponto de vista é primário, em
comparação com aquêle que inspira a fonética. Ocorre pergun­
tar, porém, se não fica ainda por trás dêle outro caráter mais
radical da linguagem. A fonologia estuda os sons da língua
como tais. Ora, êsses sons, já fixados na língua feita, tiveram de
ser algum dia pronunciados pela primeira vez; isto é, volta agora
a apresentar-se-nos a pronunciação como o primário, mas num
sentido muito diferente daquele que aparece na fonética. Porque
agora se trata, não de uma pronunciação que se esforça para
reproduzir um som pré-existente e conhecido, uma pronunciação,
portanto imitativa; mas de uma pronunciação que não tem diante
de si uma pauta ou modêlo sonoro para intentar reproduzir e
que, consequentemente, não consiste em movimentos adaptativos,
selecionados de fora do falante pela imagem sonora do vocá­
bulo pré-existente. E como cada língua consiste num sistema
peculiar de fonemas, há-de supor-se atrás dêle um sistema
peculiar de movimentos articulatórios, de caráter espontâneo e
não voluntário e imitativo. Mas, movimentos com êsses atributos
são os que se chamam movimentos expressivos ou gestos, em
oposição aos movimentos com os quais procuramos conseguir uma
finalidade.
Qualquer que seja a nossa surprêsa, isso nos leva a sus­
peitar que os sons da linguagem surgiram da gesticulação interna
do aparelho bucal, inclusive os lábios. Em cada povo havia
predominado e continuaria predominando hoje uma não delibe­
rada, involuntária preferência por determinados movimentos arti­
culatórios que expressariam os caracteres íntimos mais frequentes
nêle. E como a gesticulação intra-bucal se produz acompanhada
dos gestos que o resto do corpo emite, teríamos que o sistema
sonoro de cada linguagem representa, em projeção, a "alma"
dêsse povo. Já os linguistas nos sugeriram que, para aprender

— 283
O HOMEM E A GENTE

um idioma alheio, a primeira coisa que convém fazer é colocar-


se numa determinada atitude corporal. Para aprender o inglês
começa-se por levar adiante a queixada, apertar, ou pouco me­
nos, os dentes e quase imobilizar os lábios. Dessa maneira surge
nos ingleses a série de leves miados displicentes em que con­
siste a sua língua. Para aprender o francês, ao contrário, tem-se
de projetar todo o corpo em direção aos lábios, adiantar êstes
como para beijar e fazê-los resvalarem um sôbre o outro, gesto
que expressaria simbòlicamente a satisfação de si mesmo, satis­
fação que o homem médio da França soube sentir. Outra variante
da própria satisfação de ter uma grande idéia de si mesmo é a
acentuada nasalização que os americanos fizeram que a língua
inglêsa sofresse. Ao nasalizar um som, trazêmo-lo ao fundo da
bôca e para o alto, deliciando-nos em fazê-lo retumbar nas fossas
nasais, o que é uma forma de nos sentirmos mais enèrgicamente
a nós mesmos, de ouvir-nos por dentro. E, como entre os lingüistas
não falta o audaz, os americanos podem ver como o inglês
Leopold Stein, no seu livro The Infancy of Speech and the Speech
of Infancy, atribui a origem da nasalização ao Pithecanthropus.
Dessa maneira fica a linguagem, por sua própria raiz, que
é a pronunciação, incluída no repertório de gestos, — em lugar
de repertório talvez se pudesse dizer sistema, — do homem. Ora,
êsse repertório de gestos que o indivíduo emite é, sòmente em
mínima parte, de caráter pessoal. Quase todos os nossos gestos
provêm da nossa sociedade, são movimentos que fazemos por­
que a gente os faz: por isso, costuma bastar-nos ver um homem
gesticular para averiguarmos a que povo pertence. A gesticula­
ção é um conjunto de usos como aquêles que estudamos nas
lições anteriores, e no seu exercício encontramos os mesmos pro­
blemas. Também aqui o indivíduo se sente pressionado pelo que
se faz no seu contorno; também aqui há vigências, e, — se se
houvesse feito a história da gesticulação, — aparecería bem claro
que o uso e o desuso e o abuso dos gestos obedecem às leis
gerais do uso. Nêles vive cada sociedade com o seu caráter

284 —
O DIZER DA GENTE

mais visível e cada povo sente um choc ao perceber a gesticula­


ção peculiar do outro. Com freqüência êsse choc se consolida em
indomável antipatia e repulsão, de modo que coisa aparente­
mente tão nímia, como são os movimentos expressivos de cada
coletividade humana contribui, mais do que se costuma reconhe­
cer, para a distância e a hostilidade entre uns e outros.
XII

O DIZER DA GENTE: AS “ OPINIÕES

PÚBLICAS”, AS “VIGÊNCIAS” SOCIAIS.

O PODER PÚBLICO

A língua materna está aí. Fora de cada um de nós, em


nosso contôrno social e, desde a primeiríssima infância, vai pe­
netrando mecânicamente em nós, ao ouvirmos o que diz a gente
ao nosso redor. Se, em sentido estrito, entendemos por falar
fazer uso de uma linguagem determinada, falar não é senão a
conseqüência de têrmos recebido mecânicamente, de fora, essa
língua. Falar, pois, é um operação que começa na direção de
fora para dentro. Mecânica e irracionalmente recebida do exte­
rior, é mecânica e irracionalmente devolvida ao exterior. Dizer,
no entanto é uma operação que começa dentro do indivíduo. E
o intento de exteriorizar, de manifestar, de patentear algo que
existe na sua intimidade. Para tal fim consciente e racional,
procura empregar todos os meios que encontra à mão: um dêles
é falar, mas sòmente um dêles. Tôdas as belas artes, por exemplo,
são maneiras de dizer. O falar se apresenta mais ou menos à
disposição do indivíduo, conforme tenha recebido mais ou menos
bem, uma língua, várias línguas. A fala é como uma série de
discos gramofônicos que, segundo a intenção do seu dizer, dis­
para. Essa contraposição nos permite ver claramente que enquanto
dizer ou intentar dizer, é uma ação propriamente humana de um
indivíduo como tal; falar é exercitar um uso que, como todo uso,
já não é nem nascido em quem o exercita, nem suficientemente

— 287
O HOMEM E A GENTE

inteligível, nem voluntário, mas imposto ao indivíduo pela cole­


tividade. Portanto, na fala, que os antigos chamavam nada me­
nos nada mais do que ratio e logos, volta a aparecer-nos essa
estranha realidade que é todo fato social; estranha porque é,
a um tempo, humana, — fazem-na os homens; exercitam-na com
plena consciência de exercitá-la, — e inumana porque isso que
exercitam, os atos do falar, são mecânicos. Mas, se perseguirmos
para trás a história de cada palavra da língua, de cada estru­
tura sintática, com freqüência chegaremos ao que podemos cha­
mar, ao menos relativamente, a sua origem; e então, veremos
que, na sua origem, — sua etimologia, — a palavra, ou o giro
foram uma criação que tinha sentido para aquêle que a inventou
e para os seus imediatos receptores; foi, portanto, uma ação
humana que, ao entrar no uso da língua, se esvasiou de sen­
tido, se converteu em disco gramofônico, em suma: se desumani-
zou, se desalmou. Durante a nossa guerra civil, alguém inventou
a expressão "manda-más". Sem dúvida, aquêle que a inventou
não entendia porque se chama "mandar" ao mandar, nem por­
que a ser "más" se chama más; mas a combinação de ambos os
vocábulos foi, efetivamente, uma criação original sua, que para
êle e para o seu contôrno tinha um sentido, era inteligível e es­
clarecia inteligentemente um fato da vida pública, tal qual era
naqueles dias; tanto o esclarecia e iluminava que, descrever com
alguma precisão o sentido tragi-cômico da palavra, — sublinho
os dois componentes de "tragi-cômico", — nos daria a definição
mais exata da situação em que então se achava o poder público.
Passada aquela situação superlativamente anômala e, porisso, in­
capaz de perdurar e de se estabilizar, a palavra "manda-más"
já se usa com freqüência incomparàvelmente menor e o provável
é que desapareça após a sua breve existência. Temos, pois, aqui,
um exemplo de um uso: o dêsse vocábulo que estêve em vigor e
gozou de vigência lingüística uns anos e que logo, já agora, vai
caindo em desuso. Imaginem, porém, que, por uma causa ou
por outra, continuasse vivaz no dizer da gente; dentro de poucas

288 —
"OPINIÕES PÚBLICAS", "VIGÊNCIAS SOCIAIS" — PODER PÚBLICO

gerações é provável que "manda-más" se teria contraído e se


pronunciaria mal-más ou algo assim. Então, os que continuassem
a usá-lo não entenderíam porque àquele que efetivamente manda
mais, em certas situações confusas de autoridade, se chamava
de "mal-más (1).
A ação humana, cheia de sentido, do compatriota que ge­
nialmente a inventou, transformada em puro uso verbal e peça
da língua comum, se haveria desumanizado. Isso é precisamente
o que hoje nos acontece com as palavras mandar e mais. Assim
é, de tal forma que nem sequer o grande lingüista que foi
Meillet conseguiu entender bem esta última. Convém que nos
detenhamos um momento nela, porque, sôbre servir-nos como um
exemplo mais do desalmamento, da desumanização que é o uso
da língua, antecipa assuntos de monta, com que logo nos vamos
encontrar.
"Mais" vem do latim "magis", cuja significação nos aparece
se dissermos, por exemplo, magis esse. Do mesmo radical provém
magnus. Meillet acrescenta duas advertências como marginais e
que, pelo visto, nada lhe dizem e das quais não extrai nenhum
suco. Adverte que em latim para dizer mais existiam também
outras duas palavras: grandis, que se refere ao tamanho espacial
e plus, que indica abundância numeral, quantitativa. Por outro
lado, — acrescenta, — magnus, por tanto: magis, tem com fre­
qüência uma idéia acessória de fôrça, de poderio, que não há
em grandis nem em plus. Meillet não dá mais substância, mas,
com o que diz, basta para extrair-se dêste radical mag, — ou
mai, — um sentido importante. De magis esse, de ser mais, pro­
vém magister, em rigor magis-tero-s, de onde magisteratus, magis-
tratus. Mas magistrado é em Roma o governante, o que manda.
E, pois, mais que os outros cidadãos, porque é o que manda e
já vimos que man-dar, de manu-dare, é o impor-se porque se

(1) Em rigor, era transformação fonética é pouco provável, caso persista o vo­
cábulo, como me fêz saber o senhor Lapesa, porque os compostos de sílabas
em o costumam ser muito resistentes a qualquer modificação de som.

— 289
O HOMEM E A GENTE

pode, porque se Tem poaer superior, porque se é poderoso. O


êrro de Meillet, neste caso como em muitos, está em que êle
fica diante da coisa nomeada pela palavra, como se a coisa
existisse em virtude de pura magia; quero dizer: não percebe que
qualquer coisa diante de nós é mero resultado, decantação ou
precipitado de uma energia que a causou e a "sustém no ser",
como dizia Platão. Magistrado é quem é mais, — e êste ser mais
é poder mais. Isto nos pãe na pista do que significou originária­
mente o radical mag, — de magnus e magis, — que também apa­
rece na majestade, nada menos. Com efeito, se passamos ao
germânico, averiguamos que êsse mesmo radical não significa
simplesmente ser mais, mas cínica e claramente, poder, Macht; no
alto alemão, magan é poder; no velho franco amoier, assustar,
causar espanto, esmoi, de onde, no francês atual: émoi. Em inglês:
may, poder; might, poderio. No alemão corrente, mogen é poder,
ser capaz de, mõglich é possibilidade, o que tem poder para ser,
o que pode ser. Mas em grego temos o mesmo: megale não é
só grande em tamanho e quantidade; mas, "poder de fazer algo";
mechané, mecanismo, mecânica e máquina.
Tudo isso nos revela que numa etapa da evolução indo-
européia mag, — mais, significou "poderio", "fôrça". Como todo
homem tem alguma fôrça e algum poderio, evidentemente signi­
ficou, de início, um poderio ou potência superior aos dos demais,
— portanto, prepotência, poder mais, e, como mandar é poder,
advém que magistrado significa pròpriamente manda-mais. O ma­
tiz diferente que o nosso recente vocábulo tem se esclarecerá a
seguir. Ninguém hoje ao dizer "magistrado" pensa naquilo, mas
isso demonstra a que ponto as palavras são cadáveres de antigas
significações. Porque, se refletirmos, não sôbre a palavra, mas
sôbre a realidade "magistrado", mesmo no valor que êste ofício
tem hoje, logo perceberemos que o magistrado é magistrado por­
que faz funcionarem as forças de polícia. Não digamos em Roma,
onde o magistrado, o cônsul, era ao mesmo tempo o capitão
geral do exército.

290 —
"OPINIÕES PÚBLICAS", "VIGÊNCIAS SOCIAIS" — PODER PÚBLICO

Não é jôgo vão o jôgo das etimologias, porque quase sem­


pre êle põe a nu umas realidades da vida humana que séculos
posteriores, mais afeiçoados à hipocrisia e às formas eufemísticas,
ocultam. Detive-me um momento em fazer ver mais uma eti­
mologia porque, além de recalcar, de novo, que as palavras, —
ao deixarem de ser invenções individuais e ao entrarem no sis­
tema de usos verbais que é a língua, — perdem a sua inteligibili­
dade, a sua alma, e perduram desalmadas, convertidas em peças
mecânicas, essa etimologia antecipa algo muito importante, que
não é questão lingüística e que vamos encontrar em seguida.
O caso é que com essas peças mecânicas, — as palavras
que perderam o seu próprio sentido, — dizemos mais ou menos,
melhor ou pior, o que pensamos. Com efeito, o nosso contôrno
social, a gente, ao injetar-nos, desde a infância, a linguagem
usadiça em nossa sociedade, nos insufla de passagem as idéias
que, com tais palavras, mediante elas, diz. Isso já é mais grave.
As idéias sôbre o que são as coisas, os outros homens, nós mes­
mos, — em suma: sôbre o que é a vida, — são aquilo que mais
profundamente nos constitui e, caberia dizer-se aquilo que so­
mos. A vida é um drama e, em virtude disso, tem sempre um
argumento; êsse argumento varia principalmente segundo as nossas
idéias sôbre o mundo e o homem. E sem dúvida bastante dife­
rente o argumento de sua vida, para aquêle que crê que há
Deus e para aquêle que crê que só há matéria. Pois bem: a
maior parte das idéias com as quais vivemos e das quais vivemos
não as pensamos nós nunca por conta própria; nem sequer as
repensamos. Empregamo-las mecânicamente por conta da coleti­
vidade em que vivemos, coletividade da qual elas vieram cair
sôbre nós, penetrando-nos por pressão, como o lubrificante no
automóvel. Se fôsse possível, — e não o é, — seria curioso poder
fazer-se uma estatística de quantas pessoas numa sociedade, —
por exemplo: em tôda a nossa nação, — pensaram alguma vez,
o que se chama pensar, que dois e dois são quatro ou se o sol
amanhã vai nascer. Daí advém que a imensa maioria das nossas

— 291
O HOMEM E A GENTE

idéias, apesar de serem idéias e de atuarem em nós como con­


vicções, nada têm de racionais, mas são usos como a língua ou
o cumprimento; em definitivo: elas são nada mais do que usos
mecânicos, ininteligíveis e impostos a nós como usos. Fique claro
o seguinte: tomamos em consideração um sentido primário e tôsco
daquilo que significa uma frase inúmeras vêzes repetida em
nosso redor; distinguimos uma coisa de outra e isso nos permite
ter uma vaga idéia da idéia que a frase enuncia. Advirta-se,
porém, que a frase "dois e dois são quatro" representa uma
idéia porque declara uma opinião sôbre êsses números, portanto:
algo que pretende ser uma verdade. As idéias são idéias de ou
sôbre algo e, em conseqüência, são opiniões, — verdadeiras ou
falsas, — e, portanto, só são idéias quando tornamos presentes
a nós, além do seu sentido rigoroso, as razões que fundamentam
a sua verdade e demonstram o seu êrro. Só então, graças às
suas razões, são racionais. Ora, nada disso ocorre na emissão
de idéias que constantemente fazemos. Dizemos, dizemos coisas
sôbre todos os assuntos do universo, por conta daquilo que a
gente diz, como se sacássemos constantemente sôbre um Banco
cujo balanço nunca lemos. O homem costuma viver intelectual­
mente a crédito da sociedade em que vive, crédito do qual nunca
se fêz questão. Vive, portanto, como um autômato da sua socie­
dade. Só em tal ou qual ponto se dá o trabalho de revisar as
contas, de submeter à crítica a idéia recebida e rejeitá-la ou
readmiti-la; mas, desta vez, porque a re-pensou êle mesmo e
examinou os seus fundamentos.
Nosso contorno social, que está cheio de palavras, de di-
zeres, está, por isso mesmo, cheio de opiniões.
Se contemplarmos o enxame incontável das idéias ou opi­
niões que ao nosso redor saem sem cessar, revoando, do dizer
da gente, notaremos que elas se podem diferenciar em duas
grandes classes. Umas são ditas como coisa que anda natural­
mente e, ao dizê-las, de início se conta com que as admite aquilo
que se chama "todo o mundo". Outras, diversamente, são enun­

292 —
"OPINIÕES PÚBLICAS", "VIGÊNCIAS SOCIAIS" — PODER PÚBLICO

ciadas com o matiz mais ou menos assinalado de que não são


opiniões admitidas; com pleno caráter, às vêzes, de oposição às
comumente admitidas. No primeiro caso, falaremos de opiniões
reinantes; no segundo, de opiniões particulares. Se se atentar na
fisionomia diferente que têm o dizerem-se umas e o dizerem-se
outras, notar-se-á que as opiniões particulares são emitidas com
brio, como que fazendo-as constarem sublinhadamente, ou, vice-
versa, timidamente com o temor de desgostar, mas quase sempre
com certa veemência interna que procura ser persuasiva e con­
tagiosa, quase sempre mostrando, ainda que seja sòmente em
brevíssimo escôrço, as razões que as abonam. Em todo caso,
adverte-se com clareza que o opinante tem plena consciência
de que aquela sua opinião particular necessita, para ter alguma
existência pública, que êle ou todo um grupo de afins, a afirme,
declare, sustenha, apoie e propague. Tudo isso se torna mais
patente ainda quando o comparamos com a expressão de opi­
niões que sabemos ou supomos admitidas por êsse "todo o mun­
do". A ninguém ocorre dizê-las como um descobrimento próprio,
nem como algo que necessita o nosso apoio. Mais do que dizê-
las com energia e persuasão, é bastante que nos refiramos a
elas, talvez com uma mera alusão; e, em vez de tomar a atitude
de sustê-las, fazemos antes o inverso: mentamo-las para nos
apoiarmos nelas, como um recurso a instância superior, como se
fôssem uma ordem, um artigo de regulamento ou de lei. E é
que, efetivamente, essas opiniões são usos estabelecidos e "esta­
belecidos" quer dizer que nõo necessitam de apoio e suporte
por parte de indivíduos ou grupos determinados; mas, ao revés,
se impõem a todos, exercem sôbre todos a sua pressão. Isso é o
que me leva a denominá-las "vigências". O vigor dessa vigência
é claramente percebido, — e, com frequência, aborrecidamente,
pelo que tenta opor-se a ela. Em todos os instantes normais da
existência coletiva, exerce a sua vigência um repertório enorme
daquelas opiniões estabelecidas, — que são o que chamamos
"tópicos". A sociedade, a coletividade não contém idéias prò-

— 293
O HOMEM E A GENTE

priamente tais, isto é: clara e fundadamente pensadas. Contém


sòmente tópicos e existe na base dêsses tópicos. Com isso não
quero dizer que sejam idéias falsas, — podem ser magníficas idéias;
— o que digo é que, como são vigências, ou opiniões estabelecidas,
ou tópicos, não atuam aquelas suas possíveis egrégias qualidades.
O que atua é simplesmente a sua pressão mecânica sôbre todos os
indivíduos, a sua coação sem alma. Não deixa de haver interêsse
em que, na língua mais vulgar se chamem "opiniões reinantes". O
seu modo de estar na sociedade se parece sobremaneira ao que tem
o Govêrno: imperam, efetivamente, reinam. São o que se chama
"opinião pública", da qual dizia Pascal que é a rainha do mundo,
e que não é uma noção moderna. Já no século V a. C., Protá-
goras usa a mesma expressão: dógma poleón, — cito-o porque é
pouco conhecido, — e Demóstenes, no século IV diz, na oração
XVIII, que há uma "voz pública da pátria". Reina como reina
o cumprimento, como reinam os costumes, dêle similares; reina
como reina a língua. Tudo o que é verdadeiramente social é,
sôbre os indivíduos, pressão, coação, império e, portanto, reinado.
Há, pois, uma diferença radical entre a opinião particular
de um grupo, — por mais enérgico, proselitista e combatente
que seja, — e a opinião pública, isto é: a opinião efetivamente
estabelecida e com vigência. Para que esta se afirme, ninguém
tem de preocupar-se em sustê-la; por si mesma e sem necessidade
de defensores, enquanto é vigente, predomina e impera; ao passo
que a opinião particular não tem existência, senão estritamente na
medida em que um, vários ou muitos se dão ao trabalho de sus­
tentá-la.
Quase sempre, em livros, estudos e muito especialmente nas
pesquisas que fazem nos países anglo-saxões determinados Insti­
tutos, dedicados ao mister de investigar a opinião pública, êles
confundem esta com uma opinião particular sustentada por maior
ou menor número de indivíduos. Mas, o fenômeno sociológico fun­
damental que é a vigência e que se dá, não só na opinião, mas
em todo uso; que é, portanto, o caráter mais substantivo do fato

294 —
"OPINIÕES PÚBLICAS", "VIGÊNCIAS SOCIAIS" — PODER PÚBLICO

social e da sociedade como conjunto dos fatos sociais, a vigên­


cia não consiste na adesão individual muito ou pouco numerosa.
Todo o acêrto de uma sociologia estriba em que se veja isso
claramente. Quando algo é uso não depende da adesão dos
indivíduos, mas precisamente é uso porque a êles se impõe.
Graças a isso, tudo que é o social é realidade diferente do
individual. Com motivo do cumprimento, — exemplo de uso que
nos serviu de paradigma, — fiz notar que, embora todos os
indivíduos que fazem parte de uma reunião sejam in pectore
inimigos de dar a mão, êsse uso continua gravitando sôbre êles,
enquanto não se ponham paladinamente de acôrdo para anular
o uso entre êles. Como, porém, o uso não se forma nessa redu­
zida reunião, mas nos grandes espaços multitudinários de tôda
uma sociedade, será mister então, para que um uso deixe de ser
vigente ou vice-versa, — que é o que agora nos interessa, —
para que um comportamento, uma opinião, por exemplo, chegue
a ser uso, isto é, chegue a ter vigência, será mister que estejam
de acôrdo com referência a êle todos os indivíduos dessa socieda­
de?. .. Evidentemente, não. Mas, então: qual a proporção, rela­
tivamente ao número total de indivíduos?... Naquela ocasião,
indiquei que a instauração ou estabelecimento de um uso não é
forçosamente, — nem de fato costuma ser, — efeito da coinci­
dência numa maioria de indivíduos. Nisso padecemos de um êrro
de ótica que nos vem de haver sido, durante quase cem anos,
opinião vigente, tópico reinante, o princípio majoritário que
tolamente acreditaram os nossos tataravós e bisavós deduzir-se,
ineludivelmente, da idéia democrática.
E, pois, questão que, por si, daria matéria a muito sabo­
rosas investigações, determinarem-se as condições em virtude das
quais algo, — seja uma opinião ou seja qualquer outro uso, —
adquire êsse peculiaríssimo caráter de vigência social. Desgraça-
damente é tema que nos é forçoso deixar intacto. Mas, quero
fazer constar que, com ser assunto de tanta importância, é
muito mais importante que se compreenda bem a idéia mesma

— 295
O HOMEM E A GENTE

de vigência, alfa e ômega de tôda a sociologia, mas que não


é fácil de ver e, mesmo uma vez vista, propende a escapar da
nossa intelecção. Insisto em que os seus dois mais assinalados
caracteres são êstes:

I — A vigência social, seja de que origem fôr, não se nos


apresenta como algo que depende de nossa individual ade­
são; mas, pelo contrário: é indiferente à nossa adesão, está
aí, temos de contar com ela e exerce, portanto, sôbre nós,
a sua coação — pois, já é coação o simples fato de que,
queiramos ou não, tenhamos de contar com ela;
II — Vice-versa: em qualquer momento podemos recorrer a ela,
como a uma instância de poder, na qual nos apoiemos.

A palavra "vigência" procede da terminologia jurídica, em


que se fala de leis vigentes, diante das derrogadas. A lei vigente
é aquela que, quando o indivíduo precisa dela e a ela recorre,
dispara automàticamente, como um aparelho mecânico de poder.
E note-se que não só o nome "vigência", mas êsses dois caracte­
res mesmos que lhe atribuímos, coincidem com aquêles que tra­
dicionalmente se atribuem ao direito e à ação do Estado. Isso
torna já manifesto que foi um êrro comum aos filósofos do di­
reito, julgar que são atributos específicos do direito que o seu
funcionamento não dependa da nossa adesão individual e que
êle nos sirva como instância coletiva a que recorremos ou pode­
mos recorrer. Com efeito, encontramo-los claramente perceptíveis
no primeiro uso que submetemos a análise, embora se tratasse
de um uso débil, simplesmente cerimonial: o cumprimento. Tra­
ta-se, pois, de atributos constitutivos de todo fato social. A socie­
dade, conjunto dos usos, de um lado no-los impõem; de outro
lado, sentimo-la como instância à qual podemos recorrer e na
qual nos podemos amparar. Uma e outra coisa, — ser imposição
e ser recurso, — implicam que a sociedade é, por essência, poder,
um poder incontrastável diante do indivíduo. A opinião pública,
a opinião reinante, tem por trás de si êsse poder e o faz fun­

296 —
"OPINIÕES PÚBLICAS", "VIGÊNCIAS SOCIAIS" — PODER PÚBLICO

cionar nas diversas formas que correspondem às diversas dimen­


sões da existência coletiva. Êsse poder da coletividade é o "poder
público".
Mas, existe e se arrasta, nunca curado de todo, um vício
intelectual que impede que se vejam com clareza os fenômenos
sociais. Consiste tal vício em não conseguir perceber-se uma
função social, se não há um órgão social especializado em servi-
la. Dessarte, até há pouco, os etnógrafos, ao estudarem as so­
ciedades mais primitivas, — em que não existem magistraturas
judiciais, nem um corpo ou um indivíduo que legisle, — julgavam
que nelas não existia o direito, isto é, a função jurídica, nem
a função estatal.
O mesmo acontece com o poder público. Êle não é visto
senão quando, numa etapa muito avançada da evolução social,
toma a figura de um corpo armado especial, com o seu regula­
mento e os seus chefes às ordens dos governantes. Mas a ver­
dade é que o poder público está atuando constantemente sôbre
os indivíduos que integram a coletividade, desde que exista uma
agrupação humana; e que, mesmo na nossa, opera sem cessar,
à parte as intervenções da polícia e do exército. O que acontece
é que, por ser tão constante e ubíquo êsse poder, não o perce­
bemos como tal, exatamente, como nos acontece com a pressão
atmosférica ou com a dureza do solo em que os nossos pés se
apoiam. Mas a sua eficácia se manifesta incessantemente em
nosso comportamento, que por êle está regulado em nós; e tão
prontamente o faz como quando por vontade, descuido ou azar,
saimos do álveo marcado pelos costumes, e nos vemos batidos
pelo protesto ameaçador do nosso contôrno, que se encrespa
numa borrasca contra o nosso abuso.
Ê claro que não existe nos povos primitivos uma polícia
encarregada de vigilar, de inspecionar. Quer isso dizer que o
corpo social não exerça a sua função? A verdade é o contrário-,
exerce-a e com uma minuciosidade e continuidade muito superior
às praticadas pela nossa polícia.

— 297
O HOMEM E A GENTE

Speiser, — na sua contribuição ao livro The Depopulation of


Melanesia, — faz notar que nas Novas Hébridas os homens vivem
o dia inteiro juntos para o seu lado e as mulheres para o delas.
A ausência de um homem é sempre notada e, assim, deverá ter
uma justificação. Não falemos da presença de um homem entre
as mulheres.
Forçosamente, os costumes têm de ser o que costuma cha­
mar-se, — ignoro porque razão, — "bons". A coletividade vela,
— sem se propor a isso, — sôbre cada minuto da vida individual.
Para que um "corpo" especial de polícia? Ao chegarem os euro­
peus e ao desarticularem a sociedade nativa, atraindo os homens
para trabalhos industriais e agrícolas, desapareceu a vigilância
espontânea do corpo coletivo e foi substituída por autêntica po­
lícia. Ora, no mesmo momento os costumes das ilhas começaram
a ser "maus".
Poderia aduzir muitos fatos como êste, mas creio suficiente,
por agora, o citado, para adestrar a nossa vista na percepção
das funções que tôda sociedade exerce, sem se dar o ar de o
fazer.
O poder público não é, pois, senão a emanação ativa, ener­
gética da opinião pública, na qual flutuam todos os demais usos
ou vigências que dela se nutrem. E a forma, a maior ou menor
violência, com que o poder público atua, depende da maior ou
menor importância que a opinião pública atribua aos abusos ou
desvios do uso. Numa boa porção de povos africanos atuais, de
língua banto, a palavra com que se diz "crime" significa "coisas
odiosas à tribu", isto é, contra a opinião pública.
Mas, se isso é verdade, também o será o vice-versa: o poder
público supõe sempre atrás de si uma opinião que seja verda­
deiramente pública, portanto: unitária, com robusta vigência.
Quando tal não acontece, em vez de opinião pública nos en­
contramos sòmente com a opinião particular de grupos, os quais
geralmente se associam em dois grandes conglomerados de opi­
nião. Quando tal acontece é que a sociedade se cinde, se parte

298 —
"OPINIÕES PÚBLICAS", 'VIGÊNCIAS SOCIAIS" — PODER PÚBLICO

ou se dissocia; então, o poder público deixa de sê-lo, fragmen­


ta-se ou se parte em partidos, E a hora da revolução e da
guerra civil.
Essas dissensões máximas, porém, não são senão o superla­
tivo de um fato que se dá em tôda sociedade, fato que lhe é
anexo, a saber: o caráter anti-social de muitos indivíduos: o
assassino, o ladrão, o traidor, o arbitrário, o violento. Isso bas­
taria para que percebéssemos que chamar "sociedade" a uma
coletividade é um eufemismo que falseia a nossa visão da "vida"
coletiva. A chamada sociedade nunca é o que êsse nome pro­
mete. E sempre, ao mesmo tempo, em uma ou outra proporção,
"dissociedade", repulsão entre os indivíduos. Como, por outro lado,
pretende ser o contrário, necessitamos abrir-nos radicalmente à
convicção de que a sociedade é uma realidade constitutivamente
enfêrma, deficiente, — em rigor é, sem cessar, a luta entre os
seus elementos e comportamentos efetivamente sociais e os seus
comportamentos e elementos dissociadores e anti-sociais. Para con­
seguir que predomine um mínimo de sociabilidade e que, graças
a isso, perdure a sociedade como tal, ela precisa fazer intervir
com frequência o seu interno "poder público", em forma violenta,
e até criar, — quando a sociedade se desenvolve e deixa de ser
primitiva, — um corpo especial encarregado de fazer funcionar
aquêle poder, de forma incontrastável. E o que ordinàriamente
se chama o Estado.
ÍNDICE PREVISTO

No índice previsto figuravam, depois das lições transcritas


anteriormente, as oito seguintes:

XIII - O Estado.

XIV — Estado e Lei.

XV — Direito.

VXI — As formas da Sociedade: horda, tribo, povo.

XVII - Nação.

XVIII — Inter-nação.

XIX — "Sociedade" animal e Sociedade humana.

XX — Humanidade.
O HOMEM E A GENTE
Curso de doze lições, por José Ortega y Gasset (1)

I — O homem: Vida humana. — Mundo, contôrno e circuns­


tância. — Êste e aquêle. — Pronomes demonstrativos e
pronomes pessoais. — Antiguidade e posteridade.

II — O homem: Êle, nós, tu, eu. — Breve excursão em tôrno


a Ela.

III — Nesta lição se apresenta a gente: O indivíduo único e


o indivíduo vago. — Perspectiva de humanidade: o pró­
ximo e o distante. — Pessoa, regulamento e burocracia.

IV — Meditação sôbre o cumprimento: Os usos, substância da


sociedade. — Vigências. — Usos, desusos e abusos. —
Usos brandos e usos fortes.

V — O dizer da gente: a língua: Dizer, falar e calar. — Lin­


guagem. — Conversação. — Gramática e estilística. —
Palavra, gesto e fisionomia. — Meditação sôbre a per­
turbação.

VI — Meditação sôbre a tertúlia: O dizer da gente: opinião


pública. — Os mitos. — A verdade sôbre "a alma cole-

(1) [Acrescentamos também o programa anunciado para o curso no Instituto de


Humanidades, no qual foi pronunciada a maior parte das lições transcritas.]

— 303
tiva". — Exemplo: o "portuguesismo" ou meditação sôbre
a "saudade". — O "espanholismo".

VII — O Estado. Poder público. — Genealogia do Estado. —


A Política.

VIII — O Direito: Direito consuetudinário e Lei. — Algo sôbre


o direito romano. — Direito, Jurisprudência e "filosofia
do direito". — Direito e moral. — As duas justiças.

IX — A sociedade e as suas formas: Idéia da horda, da tribo,


da cidade. — Grupos internos. — A família. — "Classes"
sociais. — A "gente do bronze" e a "boa sociedade".

X — Nação, ultra-nação, inter-nação.

XI — "Sociedades animais" e sociedades humanas: As oculta-


ções do social. — Destroem-se alguns sociólogos: Weber,
Durkheim, Bergson.

XII — Humanidade.

304 —
Êste livro terminou-se de
imprimir no dia 24 de março
de 1961, nas oficinas gráficas
da
UTO-TIPO GUANABARA S.A.
Rua Maia de Lacerda, 700 — Rio

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