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Luiz Tatit

SE MI ÓT I C A
À LUZ DE
GUIMARÃES ROSA
S emiótica à L uz de G uimarães R osa
L uiz T atit

S emiótica à L uz de
G uimarães R osa
Copyright © 2010 by Luiz Tatit

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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Tatit, Luiz
  Semiótica à Luz de Guimarães Rosa /
Luiz Tatit. – São Paulo: Ateliê Editorial, 2010.

  isbn: 978-85-7480-492-7
  Bibliografia.

  1. Crítica literária  2. Rosa, Guimarães, 1908-
-1967 – Crítica e interpretação  3. Semiótica e
literatura  I. Título.

  10-00348            CDD-801.95

Índices para catálogo sistemático:


1. Análise literária  801.95

Direitos reservados à
Ateliê Editorial
Estrada da Aldeia de Carapicuíba, 897
06709-300 – Granja Viana – Cotia – SP
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2010

Foi feito o depósito legal


Este trabalho foi realizado com bolsa de
Produtividade em Pesquisa concedida pelo CNPq.
S umário

Nota Introdutória. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1. O Destinador Transcendente – “Nada e a Nossa


Condição” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
2. A Verdade Extraordinária – “As Margens da Alegria”. . . . . . 45
3. O Encontro do Ritmo – “Os Cimos”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
4. Práticas Impregnantes – “A Terceira Margem do Rio”. . . . 107
5. Quando o Ser É Substância – “Substância” . . . . . . . . . . . . . 127
6. A Extinção que não se Acaba – “Nenhum, Nenhuma”. . . . 153

Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .187


N ota I ntrodutória

As contribuições do Brasil à semiótica implantada por


Algirdas Julien Greimas não se restringem à execução pura e
simples do projeto original do autor lituano em suas vertentes
teóricas ou aplicativas. Há também contribuições avant la let-
tre que só agora, após algumas conquistas obtidas pelo ramo
“tensivo” da teoria1, podem ser devidamente aquilatadas. Uma
delas – entre muitas no nosso entender – vem da pena de João
Guimarães Rosa, escritor que, pouco antes do viés científico
inaugurado em outro continente por Greimas para a investiga-
ção da forma do conteúdo humano, já versava sobre as articu-
lações desta forma, às vezes em linguagem figurativa, às vezes
em linguagem quase teórica.
Muito analisado como o escritor que refez a experiência li-
terária brasileira no domínio da prosa, tanto na escrita como na

1. Estamos nos referindo aos estudos pioneiros realizados por Claude Zilberberg desde
a década de 1980, cuja síntese mais completa encontra-se em sua obra de 2006b.

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semiótica à luz de guimarães rosa

densidade simbólica do universo semântico criado para tradu-


zir as histórias do seu povo, Guimarães Rosa ainda apresenta
facetas totalmente desconhecidas, por mais que brotem a todo
instante, de todas as vertentes, estudos de grande envergadu-
ra sobre suas novelas e, especialmente, sobre sua obra maior,
Grande Sertão: Veredas. Uma dessas facetas parece-nos ser jus-
tamente a do escritor preocupado em erigir uma sintaxe do uni-
verso antropocultural. Não nos referimos aqui às suas notáveis
reformulações frasais, mas sim à sintaxe de cunho narrativo ou
tensivo que, em alguns de seus contos, adquiriu contornos de
um tratado geral sobre as principais categorias empregadas na
análise do sentido.
Tudo ocorre como se as grandes propostas de Greimas para
a compreensão dos conteúdos que o Homem imprime em seus
textos e em suas práticas de toda ordem já estivessem de algum
modo cifradas na literatura do romancista brasileiro. As funções
de sujeito/objeto ou de destinador/destinatário, os processos
persuasivos e avaliatórios, a concepção dos estratos gerativos de
construção do sentido, o sistema das pressuposições, as ideias de
mundo contínuo (associado a conteúdos sensíveis) e mundo des-
contínuo (associado a conteúdos inteligíveis) e, até mesmo, as
investigações sobre a estesia, que o semioticista empreendeu já
no final da vida, são matérias examinadas com tanto critério por
Guimarães Rosa que chegam a sugerir a existência de uma inten-
ção teórica por trás das soluções literárias (como veremos nos
capítulos que vêm a seguir). Trata-se de uma demonstração ine-
quívoca de que, muitas vezes, a reflexão científica e o pensamento
artístico concorrem para o mesmo objetivo último de sondagem
dos mistérios do imaginário.

12
nota introdutória

O universo figurativo da literatura tende normalmente a apa-


gar as marcas de suas operações sintáxicas2 para justamente provo-
car um efeito de sentido mais eficaz, sem a exibição indesejável dos
dispositivos técnicos. Só a descrição nos leva a esses componentes.
Entre as particularidades de Guimarães Rosa está a de articular,
sem prejuízo do resultado figurativo do texto, as relações profun-
das que asseguram nossa compreensão de superfície. Esse é talvez
um dos motivos pelos quais o escritor consegue intrigar tantos es-
pecialistas, de áreas tão diversas, e atraí-los para a decifração de sua
obra. Os romances e os contos de sua lavra não devem ser consi-
derados apenas como objetos de estudo, já que são eles próprios
estudos sobre os processos de construção do sentido.
A semiótica de Greimas, por sua vez, depois de se valer dos
princípios da linguística estrutural elaborados por Ferdinand
de Saussure, Louis Hjelmslev, Viggo Brøndal, Lucien Tesnière e
Roman Jakobson, dos modelos antropológicos de Claude Lévi-
-Strauss e Vladimir Propp e da fenomenologia na versão de Mauri-
ce Merleau­-Ponty, passou a investigar, desde o decênio de 1980, as
“teorias” codificadas nos textos literários ou nas palavras de artistas
e poetas pensadores. O próprio Greimas visitou, entre outros, os
trabalhos de Michel Tournier, Rainer Maria Rilke, Julio Cortázar e
Italo Calvino para desenvolver sua reflexão sobre estética. O semio-
ticista Jacques Fontanille recorreu a Marcel Proust, enquanto Clau-
de Zilberberg reviu diversos conceitos da teoria apoiando-se insis-
tentemente nas conferências e aforismos de Paul Valéry. Ignácio
Assis Silva, importante semioticista brasileiro, lançou mão do pen-

2. Ao preferir “sintáxico” a “sintático”, a semiótica pretende realçar as relações actan-


ciais (narrativas) e tensivas presentes na manifestação do sentido, diferenciando-as
das tradicionais relações entre componentes frasais.

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semiótica à luz de guimarães rosa

samento gráfico de Pablo Picasso e de René Magritte para estudar


as metamorfoses profundas previstas pelo conceito geral de figura.
Todas essas iniciativas confirmam que as ideias concebidas num
domínio figurativo podem obter alto rendimento teórico, desde
que seus elementos relacionais sejam devidamente semiotizados.
De nossa parte, ficamos especialmente impressionados com
o que já havia de pura semiótica na concepção de alguns contos
do volume Primeiras Estórias, lançado por Guimarães Rosa em
1962. Boa parte das questões que, nas décadas seguintes, seriam
centrais para o conhecimento da construção do sentido nos textos
já estava ali presente sob o véu fino do tratamento literário. Re-
conhecemos, na descrição do conto “Nada e a Nossa Condição”,
um meticuloso exame do conceito de destinador, realizado pouco
antes da estreia dessa denominação no campo semiótico. Ainda
que o autor brasileiro se esmere em ocultar a amplitude teórica
do tema em sua habitual – e extraordinária – fartura de criações
figurativas, pudemos demonstrar a força sintáxica desse actante,
ou seja, sua capacidade de fazer evoluir a trama narrativa, a partir
de uma análise detalhada das funções atribuídas ao personagem
Tio Man’Antonio ao longo do texto. Cremos ter configurado
com mais precisão o estatuto “transcendente” do destinador (em
oposição ao estatuto “imanente” do sujeito narrativo), muitas
vezes apontado por Greimas, mas sem a devida elaboração.
Os contos “As Margens da Alegria” e “Os Cimos” nos ofere-
ceram os instrumentos adequados para a explicitação das con-
dições tensivas e narrativas que norteiam as ideias de Greimas
em seu intrigante volume intitulado De l’Imperfection3. Tivemos

3. Lançado em 1987 na França, esse último trabalho exclusivo de Greimas já ganhou ver-
são brasileira (Da Imperfeição, 2002) à qual nos reportaremos ao longo deste volume.

14
nota introdutória

oportunidade de descrever o que entra em jogo, do ponto de vista


semiótico, quando nos deparamos com um “acontecimento ex-
traordinário”, próprio das situações epifânicas, e o que se produz
em nosso cotidiano antes e depois desse evento. Ambos os contos
dedicam-se às noções que Greimas deixou apenas esboçadas em
seu livro. “Os Cimos” chega a nos apresentar com todos os por-
menores as razões tensivas que, muitas vezes, nos impedem de
apreciar plenamente os bons acontecimentos.
A partir da famosa história de “A Terceira Margem do Rio”,
introduzimos os conceitos de práticas utilitárias, práticas artísti-
cas, práticas desvairadas e, por fim, práticas impregnantes, de modo
a ampliar as noções de gestualidade concebidas pelo semioticis-
ta no célebre artigo “Condições para uma Semiótica do Mundo
Natural” (Greimas, 1975: 46-85). Nessas últimas práticas, iden-
tificamos o “acontecimento extenso”, aquele que se alimenta de
repetidas ocorrências do mesmo fenômeno ou da mesma atitude,
todas elas contribuindo para impregnar a mente do observador de
conteúdos que jamais se atenuam; ao contrário, cada nova ocor-
rência desse gênero de acontecimento representa uma ampliação
do seu poder de espantar (causar assombro ou admiração).
Fomos desvendando, ao longo dessas análises, os valores ten-
sivos que subjazem às categorias narrativas e mobilizam os en-
redos dos contos. Nem sempre as personagens se definem pelas
ações que praticam nem a dinâmica das histórias depende exclusi-
vamente desse fazer. Na realidade, pudemos verificar que mesmo
as cenas literárias consideradas pouco “movimentadas” contêm
forças de atração e envolvimento do leitor baseadas na ampli-
tude do campo de conteúdo selecionado (mais extenso, menos
extenso), nas variações de acento, de ênfase, atribuídas a elemen-
tos desse campo (mais intenso, menos intenso), bem como nas

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semiótica à luz de guimarães rosa

oscilações de andamento (mais rápido, mais lento) que regem o


mundo íntimo das personagens. Em outras palavras, reconhece-
mos as gradações de extensidade e intensidade – gradações até
certo ponto musicais – que mantêm vivo o interesse de um con-
to, independentemente do comportamento pragmático de suas
personagens. De maneira muito especial, os contos “Substância”
e “Nenhum, Nenhuma” permitiram-nos demonstrar que o en-
contro ou desencontro de seus atores fundamentam-se, antes de
tudo, em sutis ajustes ou desajustes tensivos.
Em resumo, os seis capítulos deste volume incidem sobre tó-
picos teóricos que, a nosso ver, não podem mais ser ignorados
por uma semiótica que sempre teve como horizonte prioritário a
pesquisa de método para a abordagem da construção do sentido.
Entre eles, destacamos:
1. A força transcendente do actante destinador.
2. O “fazer de conta” como um parecer necessário à mobili-
zação (sintáxica) do sujeito, mesmo que este ainda não conheça
o valor do objeto.
3. O conceito de presença não apenas como campo de inser-
ção dos objetos do conhecimento, mas também como um siste-
ma de ativação e desativação das funções de destinador e antis-
sujeito.
4. O quadro actancial que regula a apreensão do aconteci-
mento inesperado. A diferença entre fratura e escapatória.
5. As correlações tensivas que nos permitem (ou não) fruir
os acontecimentos.
6. As práticas impregnantes e o acontecimento extenso.
7. A interação entre surpresa e espera.
8. A importância do conceito de intervalo.
9. O papel semiótico da potencialização.

16
nota introdutória

10. O papel semiótico das operações concessivas.


11. O papel semiótico das correlações inversa e conversa.
12. A função metodológica das sílabas tensivas “mais” e
“menos”.
13. A intensidade como parâmetro musical de análise dos
textos.
Por tudo isso, cremos que a presença das iniciais de Guimarães
Rosa logo nas primeiras letras do nome de Greimas constitui uma
coincidência que não se limita ao plano da expressão. Os prolegô-
menos a uma teoria científica da construção do sentido humano já
vinham sendo delineados na escrita do escritor mineiro, quando
Greimas, seguindo outras veredas, começou a decifrá-los.

***

Embora o mais adequado fosse reproduzirmos a íntegra dos


seis contos de Guimarães Rosa como preâmbulo dos capítulos
escritos neste volume, tivemos que desistir do formato diante da
impossibilidade de obter as devidas autorizações de uso acadêmico
da obra do grande escritor. Desse modo, remetemos o leitor aos
conhecidos capítulos de Primeiras Estórias, cuja leitura (ou releitu-
ra) certamente facilitará a compreensão das ideias aqui lançadas.

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1. O D estinador T ranscendente –
“N ada e a N ossa C ondição ”

Para Zyun Masuda

I ntrodução

Mais do que elaborar uma descrição semiótica do conto ro-


siano, pretendemos, neste capítulo, obter uma compreensão de-
talhada do estatuto sintáxico do actante destinador, do seu valor
transitivo e seu poder de determinação em toda e qualquer ma-
nifestação narrativa, mesmo que para isso tenhamos que tomar o
sentido inverso do caminho percorrido pelo escritor, explicitan-
do o que ele soube tão bem ocultar.
O primeiro sinal dessa prática de ocultar comparece na ca-
racterização do personagem central, Tio Man’Antônio, que, ins-
tituído como herói das principais performances relatadas no tex-
to, embarca o leitor nas realizações do sujeito e relega para plano
secundário as meta-atuações (próprias do fazer fazer) do destina-
dor. De fato, o ator Tio Man’Antônio reveste ao mesmo tempo as
funções actanciais de sujeito e destinador, mas não há dúvida que
esta última define a própria razão de ser do conto. Já na primeira

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semiótica à luz de guimarães rosa

frase, o enunciador apura o estatuto pouco material do protago-


nista, assinalando a preponderância do destinador sobre o sujei-
to: “Na minha família, em minha terra, ninguém conheceu uma
vez um homem, de mais excelência que presença”.

E statuto P rofundo do D estinador

Na realidade, Guimarães Rosa está abordando um conceito


profundo de destinador, algo que poderíamos identificar com
a noção de “destinador transcendente” (Greimas e Courtés,
2008: 255), já adotada – mas não suficientemente explorada –
por Greimas.
O destinador transcendente possui um estatuto especial. Re-
presenta uma função transitiva responsável pelo projeto maior
do sujeito: sua constante busca de junção. Esse destinador arti-
cula disjunção e conjunção como estágios de um mesmo pro-
cesso que mantém o sujeito em continuidade. Propõe logo a su-
tura em lugar da fratura. Difere portanto – já que pertence a um
nível mais profundo – do manipulador e do julgador (embora
possa eventualmente manifestar-se como tais), que constituem,
respecti­vamente, etapas inicial e final do percurso narrativo. O
destinador transcendente paira sobre todas as operações execu-
tadas e as paixões vividas pelo sujeito ao longo de sua trajetó-
ria. Ele acolhe as interrupções como elementos indispensáveis à
continuidade. É por seu intermédio, pela força transitiva de sua
atuação, que as narrativas não param.
O valor quantitativo do destinador transcendente já foi devi-
damente assinalado pela semiótica na esteira das descobertas de
Vladimir Propp. De fato, nos contos populares, a instância trans-

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o destinador transcendente – “nada e a nossa condição”

cendente define-se como um lugar “onde se supõe que as doações


nunca diminuam, já que se postula como inesgotável a quantida-
de dos bens” (Greimas e Courtés, 2008: 509). Se essa explicação,
sugestiva mas pouco esclarecedora, foi extraída do contato do
eminente antropólogo russo com as narrativas folclóricas de seu
país, o valor profundo – tensivo e aspectual – dessa importante
função já está concebida em Guimarães Rosa, na figura desse per-
sonagem que também poderia ter sido um “velho rei” (figura tí-
pica do actante destinador) ou um “príncipe mais moço” (figura
típica do actante sujeito), só que nas “futuras estórias de fadas”.
Tio Man’Antônio era proprietário e morador de uma fazen-
da distante, na qual vivia com sua mulher, Tia Liduína, suas três
filhas e numerosos servos que o ajudavam na lida diária. O enun-
ciador descreve a atuação do personagem – e sua função trans-
cendente – a partir de três experiências de perda: a morte de Tia
Liduína, o casamento de suas filhas que se foram para longe e a
emancipação dos empregados, a quem o fazendeiro doa suas ter-
ras. Por fim, o falecimento do próprio protagonista que encerra
sua atividade humana – de “príncipe” –, mas mantém intacta a
função de destinador transcendente.
Por meio da figura de Tio Man’Antônio, o autor estuda minu-
ciosamente o nível profundo e abstrato da construção do sentido,
onde simula a existência de formas anteriores à manifestação do
significante e do significado ou até dela independentes (“talvez
murmurasse, de tão dentre em si, coisas graves, grandes, sem som
nem sentido” ou, mais adiante: “Nada dizia, quando falava, às ve-
zes a gente mal pensava que ele não se achasse lá, de novo assim,
sem som, sem pessoa”) e, para tanto, repropõe os dados necessá-
rios à compreensão do termo complexo, aquele que subsume e
articula elementos contrários e, mais do que isso, nutre-se da ten-

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semiótica à luz de guimarães rosa

são ocasionada pela presença simultânea dos opostos: “Definia-


-se, ele, ali, sem contradição nem resistência, a inquebrantar-se,
desde quando de futuro e passado mais não carecia”.
Uma das características fundamentais do termo complexo
é a de jamais se fixar, por muito tempo, em suas configurações
extremas. Sua presença, ao contrário, significa passagem, eter-
na passagem, em cujo interior os termos polares não são mais
que memória e antevisão. Nesse sentido a função complexa não
permite divisão interna nem exclusões (Tio Man’Antônio apa-
rece como “individido”). Transita de um termo simples a ou-
tro, de tal modo que o primeiro continua participando da ins-
tância do segundo e vice-versa. Se, na fase inicial da descrição,
Tio Man’Antônio “pensava o que não pensava”, na fase final, o
personagem “pensava o que pensava”. Esse exemplo elementar
indica a passagem de um estado a outro e, ao mesmo tempo, de-
fine o pensamento do fazendeiro numa estrutura que contém sua
própria negação (retomaremos essa passagem à frente):

PENSAR

pensar não pensar

A precisão do autor chega ao ponto de qualificar, por três


vezes, a função do personagem, utilizando variações do concei-
to de transição: Tio Man’Antônio, o “transitório”, o “transito-
riante”, o “transitoriador”. Essa função abre a escrita rosiana
para o uso generalizado das antíteses contíguas sem que cau-
sem maior estranhamento. Aliás, justamente por serem contí-

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o destinador transcendente – “nada e a nossa condição”

guas, tais antíteses definem-se como elementos participativos


do mesmo processo. Assim, em vez de incompatibilidade, te-
mos apenas a tensão indispensável a qualquer noção progres-
siva quando Tia Linduína aparece como “certa para o nunca
e sempre”, ou quando se constata que “só estamos vivendo os
futuros antanhos”.
A morte de Tia Liduína manifesta a atuação de um antissu-
jeito que vem introduzir o sentimento de falta no seio da família
do fazendeiro e promover uma parada disfórica num cotidiano
que progredia sem obstáculos. Ato contínuo, essa intervenção
mobiliza no ator Tio Man’Antônio a função de destinador em
sua conformação sintáxica mais completa: a que nega terminan-
temente a parada – instituindo a parada da parada (Zilberberg,
2006a: 133) – e restabelece a ação do sujeito, mesmo que a fi-
nalidade última do projeto ainda não esteja bem definida. Pela
experiência de vida e pela personalidade descritas, somente Tio
Man’Antônio é capaz de decifrar o sinal de alerta que acompanha
o impacto daquela morte: cedendo espaço ao antissujeito, muito
em breve a função “transitoriante” do destinador estaria anulada
e o inevitável momento final (consubstanciado ali no falecimento
de Tia Liduína) poderia se precipitar mais uma vez, apanhando-
-os desprevenidos. Nesse sentido, parar no luto e nas homena-
gens à esposa equivaleria a se submeter às forças antagonistas e
perder o controle do próprio projeto de vida.
Não podendo explicar às filhas, muito jovens, as razões ab-
solutas – de ponto de partida e ponto de chegada – de suas
iniciativas, dado que essas razões são próprias da dimensão
transcendente do destinador, Tio Man’Antônio atém-se aos
pequenos intervalos narrativos, à etapa seguinte, pondo em evi-
dência apenas os processos eufóricos de superação das paradas

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semiótica à luz de guimarães rosa

e das oclusões. No decorrer do conto, percebe-se que apenas o


fazendeiro, na condição de destinador, possui consciência de
todo o processo vital. Às filhas, apresenta somente as condutas
que têm efeito imediato na continuidade do processo narrati-
vo, sempre modulando as indagações que esbarram nos con-
teúdos extremos para não se deixar perder em considerações
de ordem absoluta (como origem, destino, verdade, existên-
cia). É significativa a resposta dada a uma delas, quando esta se
mostra apreensiva com tantas mudanças na fazenda logo após
a morte de Tia Liduína. A filha dileta pergunta-lhe “se não se-
ria aquilo arrefecido sentimento, pecar contra a saudade?” Tio
Man’Antônio imediatamente dilui o fator dramático da ques-
tão com um simples: “Nem tanto, filha… Nem tanto”. Não atin-
gir os extremos faz parte de seu quadro durativo e transitório
(“de ter sido e vir a ser”) que corresponde, em última instância,
à permanência da passagem: “Ele, permaneceu, de outrora a
hoje-em-diante, ficou, que”.

C ompromisso com a C ontinuidade

Mais do que caracterizar as formas de manifestação do des-


tinador – incoativo, quando empreende a manipulação, e ter-
minativo, quando toma conhecimento e julga o fazer do sujeito
(Greimas e Courtés, 2008: 132) – a formulação de Guimarães
Rosa ajuda a definir o coeficiente tensivo do destinador trans-
cendente, atribuindo-lhe um valor emissivo (Zilberberg, 2006a:
129-147), responsável pela obstinação do progresso narrativo:
além de desencadear a ação, cumpre a esse destinador acompa-
nhá-la à distância e intervir toda vez que houver ameaça à sua

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o destinador transcendente – “nada e a nossa condição”

continuidade. Greimas e Courtés já previam, em 19791, que uma


semiótica da manipulação deveria considerar as interferências do
destinador não apenas no âmbito do sujeito, mas também nas
atuações do antissujeito – “com a estratégia da astúcia que permi-
te, por exemplo, operações de ‘recuperação’, de ‘subversão’ etc.”
(Greimas e Courtés, 2008: 303) –, na medida em que os valores
remissivos, deflagradores dos antiprogramas narrativos, respon-
dem pelas saliências, pelos pontos de conflito que precisam ser
ultrapassados. A superação dos embates, por sua vez, retraduz
a noção de continuidade em termos de negação dos obstáculos
ou, como já dissemos, de parada da parada. Cabe ao destinador,
portanto, administrar essa constante retomada de percurso que
assegura nossa impressão de progresso narrativo.
Decorre ainda desse enfoque outra importante consequên-
cia teórica. A categoria da junção, lançada por Greimas em bases
paradigmáticas (Greimas, 1983: 33), pede hoje uma reformula-
ção sintagmática: representando uma “metafunção” que liga os
sujeitos a seus valores, a junção é um termo complexo que supõe
uma direção entre os termos simples, seja em favor da conjunção
com valores desejados ou devidos, seja em nome da disjunção
com esses mesmos valores, a depender da natureza do projeto
em jogo. “Guardião” dos valores juntivos e artífice maior da di-
reção (ou intencionalidade) narrativa, o destinador renova em
suas manobras continuativas a ideia de que há uma ascendência
dos valores emissivos sobre os remissivos e que, em última ins-
tância, a conjunção dirige a disjunção (Zilberberg, 2000: 103). Se
esta última constitui a manifestação intensiva da junção, oriunda

1. Ano de publicação da primeira edição do Dicionário de Semiótica na França, pela


editora Hachette.

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semiótica à luz de guimarães rosa

da oposição exclusiva, a conjunção compreende sua forma ex-


tensiva, oriunda da lei geral de participação (Hjelmslev, 1991:
101), integrando disjunção e conjunção numa relação orientada:
disjunção → conjunção. Isso significa que mesmo quando leva o
sujeito a abrir mão dos bens e dos valores, como veremos mais
adiante, o destinador está também exibindo sua conjunção com
o valor maior: poder sustentar a continuidade narrativa em qual-
quer de suas orientações.
O personagem de Guimarães Rosa, Tio Man’Antônio, em-
bora se manifeste como ator-figura – e não poderia ser de outro
modo – e como actante-sujeito, pois chega a trabalhar ombro a
ombro com seus empregados em algumas empreitadas (“ele se
levantava, submetia-se, sem sabida precisão, a algum rude, duro
trabalho – chuva, sol, ação”), atinge seu maior rendimento no
desempenho da metafunção de destinador transcendente, quase
sem presença concreta, mas influindo sorrateiramente na ordem
dos acontecimentos e em suas próprias atuações como sujeito:
“Ele, por detrás de si mesmo, pondo-se de parte, em ambíguos
âmbitos e momentos, como se a vida fosse ocultável; não o co-
nheceriam através de figuras”.
Tio Man’Antônio faz a si mesmo caminhar como se, na con-
dição de destinador, possuísse um saber secreto do qual decor-
reriam projetos com finalidades precisas. Esse saber, no entanto,
jamais se transmite ou mesmo se revela (“De si para si, quem
sabe, só o que inútil, novo e necessário, segredasse; ele consigo
mesmo muito se calava”), a não ser em termos cifrados, quando,
por exemplo, o fazendeiro se vê impelido a aplacar as inquieta-
ções das filhas. Na realidade, seus projetos são mais sintáxicos que
semânticos e nisso reside o interesse semiótico desta abordagem.

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o destinador transcendente – “nada e a nossa condição”

Se a morte repentina da mulher, Tia Liduína, narrada como


um corte abrupto em seu cotidiano, produz uma perda irrepa-
rável no âmbito do sujeito, desperta no destinador o ímpeto da
continuidade, traduzido pela forma espacial sintáxica da abertu-
ra: “Tio Man’Antônio, com nenhum titubeio, mandou abrir, par
em par, portas e janelas, a longa, longa casa”.
Ao instalar a abertura na sequência da oclusão, o destinador
estabelece o ritmo que deverá persistir ao longo do texto, indepen-
dentemente dos conteúdos investidos. Um ritmo e uma direção,
porquanto a continuidade depende do fechamento para atingir
a abertura e da falta para atrair o preenchimento. Ao tomar co-
nhecimento da morte da esposa querida, Tio Man’Antônio sente
necessidade premente de expandir o olhar pela paisagem que tão
profundamente conhecia. Compreende, então, que o passado reti-
do naqueles espaços pouco contribuiria para a continuidade de sua
existência, embora representassem com precisão a “imobilidade”
atual de sua Liduína em meio a um “amontoo de flores”. Em ou-
tras palavras, o personagem sofre na condição de sujeito, mas não
abandona o sentido de progresso narrativo inscrito em sua função
de destinador: “Isto, porém, que o encoberto dele a todos se impu-
nha, separativo. Acordado, querente, via-se. Senão que, homem,
e, como todo homem, de fracos ossos? Outra, contudo, parecendo
ser a razão por que não se cansava nunca, naquela manência, indi-
ferentes horas. Porque fazia ou sofria as coisas, sem parar, mas não
estava, dentro em sua mente, em tudo e nada ocupado”.
Imbuído de razões transcendentes, Tio Man’Antônio faz fa-
zer sem que seus destinatários compreendam as finalidades de seus
projetos. Ele próprio só sabe – ou, pelo menos, manifesta que sabe
– que precisa das carências para fazer a vida continuar, indepen-

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semiótica à luz de guimarães rosa

dentemente da existência de um ponto de chegada predefinido.


Esta certeza lhe é assegurada pelas interações que mantém com a
paisagem local (e universal), disposta em espacialidade vertical: em
cima, os picos das montanhas com suas asas celestiais apontando
para um futuro de esperanças (“Ou – a si – ia buscar-se, no futuro,
nas asas da montanha”) e, embaixo, as grotas profundas infernais
de onde procedem as ameaças e as interrupções da narrativa da
vida (“A quem e de quem os fundos perigosos do mundo”).
Valendo-se de suas atribuições de destinador, o fazendeiro
relaciona-se de igual para igual com as funções transcendentes
inscritas na paisagem. Por intermédio da contemplação, presta
homenagem aos senhores dos cimos e aos senhores das profun-
dezas, mas espera, em contrapartida, que esses representantes do
universo transcendente o auxiliem nos momentos difíceis. Note-
-se que, para garantir o progresso na instância imanente2, o desti-
nador mantém pacto com deus (figuração do próprio destinador
comprometido com o futuro do sujeito) e com o diabo (figura-
ção do antissujeito) ao mesmo tempo: “Sim, se os cimos – onde
a montanha abre asas – e as infernas grotas, abismáticas, pro-
fundíssimas. Tanto contemplava-as, feito se, a elas, algo, algum
modo, de si, votivo, o melhor, ofertasse: esperança e expiação,
sacrifícios, esforços – à flor. Seria, por isso, um dia topasse, ao
favorável, pelo tributo gratos, o Rei-dos-Montes ou o Rei-das-
-Grotas – que de tudo há e tudo a gente encontra?”
É dessa perspectiva, extremamente ampla, que o personagem
pode contemplar todo o espectro possível de conteúdo, das inter-

2. Instância em que o sujeito desenvolve o seu percurso narrativo em busca dos valo-
res já devidamente avaliados na instância transcendente pelo destinador (Greimas e
Courtés, 2008: 255).

28
o destinador transcendente – “nada e a nossa condição”

venções disfóricas às superações eufóricas, e ainda praticar a transi-


ção entre esses extremos sem se fixar em nenhum deles. Semelhante
vocação tensiva é reiteradamente expressa em predicados que tes-
temunham esse grau de amplitude: “propenso a tudo”, “Seduzível
conheceu-se, ele, de encarar sempre o tudo?” e “Tio Man’Antônio,
rumo a tudo”. Sua casa enorme situava-se num ponto estratégi-
co entre os cumes alados das montanhas e as grotas abismais, de
maneira que sua visão jamais deixava de considerar a atuação si-
multânea das duas espécies de valores, emissivos e remissivos: “Ali,
em sua velha e erma casa, sob azuis, picos píncaros e desmedidas
escarpas, sobre precipícios de paredões, grotões e alcantis abismo-
sos – feita uma mansão suspensa – no pérvio”.
É do “pérvio” que Tio Man’Antônio promove incessante-
mente as transições e sela de vez o seu compromisso com a con-
tinuidade. Se as forças antagonistas ameaçam a “liberdade” e a
“esperança” de seus destinatários – entre os quais figuram suas
filhas, seus empregados e, principalmente, ele próprio na con-
dição de sujeito – o destinador reinstaura o percurso narrativo,
mesmo que não haja motivação semântica convincente para
tanto. A ele basta o gesto sintáxico de negação da parada ou das
formas de oclusão, representadas em várias passagens da novela
pela expecta­tiva de luto, após a morte de Tia Liduína: “Com ver,
porém, que Tio Man’Antônio a andar de dó se recusasse, sensato
sem cuidados, intrágico, sem acentos viuvosos”.
Neste ponto, a reflexão teórica de Guimarães Rosa torna-se
de fato admirável. O escritor encontra um interessante viés fi-
gurativo para caracterizar, por assim dizer, uma narrativa pura,
aquela que representa um fazer, uma transformação ou um pro-
cesso transitivo, independentemente das razões e dos investi-
mentos discursivos.

29
semiótica à luz de guimarães rosa

Descobrindo a porção de incerteza que comporta o destino


humano e, de algum modo, suspeitando, como o fazendeiro, dos
cumes e das grotas, Felícia, a filha mais jovem, consulta o pai a
respeito da interinidade da conjunção: “Pai, a vida é feita só de
traiçoeiros altos-e-baixos? Não haverá, para a gente, algum tem-
po de felicidade, de verdadeira segurança?”
Tio Man’Antônio, que tacitamente concorda com as afirma-
ções contidas nas indagações da filha, apresenta-lhe apenas uma
solução sintáxica: “Faz de conta, minha filha… Faz de conta”.
Algumas considerações semióticas de alta relevância desta-
cam-se dessa resposta. Se a conjunção, termo simples, é efêmera,
a junção, termo complexo, é perene. Em outras palavras, não ha-
vendo segurança conjuntiva, há pelo menos uma segurança jun-
tiva que alterna disjunção e conjunção. Nesse sentido, estar em
disjunção corresponde precisamente a estar a caminho da con-
junção, visto que ambos os termos são necessários para saturar a
junção, valor maior – e complexo – que permanece intacto. Estar
a caminho de, por sua vez, pressupõe um processo narrativo, ao
qual Tio Man’Antônio tem por hábito conduzir seus destinatários
mesmo que esses não estejam convencidos da sua real utilidade.
O que importa ao destinador transcendente é levar o desti-
natário-sujeito a fazer, antes mesmo que se configurem os valores
descritivos ou modais. Em outras palavras, enquanto esses valo-
res não se manifestam, não custa nada, de acordo com o viés do
destinador, já manter o percurso em andamento, a progressão,
como uma espécie de compromisso dos actantes com os valores
emissivos, aqueles que, em nível profundo, denegam os limites e,
na superfície, instruem as noções processuais. Nesses termos, “fa-
zer de conta” é buscar o valor antes de sua configuração temática
e figurativa. Significa ater-se ao valor em sua forma mais abstrata,

30
o destinador transcendente – “nada e a nossa condição”

ou seja, à pura continuidade. Trata-se, pois, de uma construção


eminentemente sintáxica camuflada numa expressão figurativa
do linguajar coloquial.
A resposta “Faz de conta, minha filha” pressupõe ainda uma
relação de confiança entre destinador e destinatário de tal ordem
que se tornam dispensáveis as argumentações e os habituais ex-
pedientes persuasivos que sustentam a manipulação. Ouve-se,
portanto, a voz do destinador transcendente3 de quem o poder e
a sabedoria não são questionados, até porque, em sua instância,
esse actante não arbitra sobre valores ideológicos; sua função é
revelar o dispositivo sintáxico que faz a vida prosseguir. Decor-
re disso a pressa com que Tio Man’Antônio põe em andamen-
to, assim que se despede para sempre de Tia Liduína, o plano
de transformação do “aspecto do lugar”. E quando sua “filha di-
leta, Francisquinha”, manifesta-lhe a angústia de ver alterada a
paisagem dos tempos de sua mãe, Tio Man’Antônio, em vez de
confortá-la com as esperadas justificativas, limita-se a “mostrar”
às filhas os efeitos da abertura e expansão da paisagem local, como
se a escolha dos valores emissivos fosse suficiente para dirimir
qualquer dúvida sobre suas intenções: “Mostrou-lhes: lá os cam-
pos de desdobra – o que limpo, livre, se estendia, em quadro largo,
sem sombrios, aberta a paisagem – o descampado airoso e verde, ao
mais verde grau, os capins naquela vivacidade”4.
A expressão “faz de conta” tem, por fim, um sentido maior na
medida em que traduz nossas convicções temporárias em finali-

3. “Mais que o poder em exercício, é o poder preestabelecido que caracteriza o estatuto


hierárquico do Destinador: é provavelmente por meio dele que convém definir a
instância transcendente em que o inscrevemos” (Greimas e Courtés, 2008: 333).
4. Grifamos os termos que assinalam com insistência o processo sintáxico da abertura
e do consequente movimento.

31
semiótica à luz de guimarães rosa

dades e projetos, mesmo reconhecendo sua insignificância diante


das grandes indagações existenciais da humanidade que têm na
morte inexorável o seu principal mistério. Na impossibilidade de
acesso direto ao sentido do ser5, só nos resta operar no plano do
parecer, tentando formulá-lo da melhor maneira possível, para
que, durante algum tempo, esse plano nos pareça ser verdadeiro.
Trata-se, pois, de uma valorização dos progressos parciais, das
crenças provisórias e, aspectualmente, dos pequenos intervalos.
Nesse sentido, a expressão de Tio Man’Antônio ensina que a
transferência do sujeito para a etapa seguinte de sua história é a
continuidade possível e que a “segurança” de um itinerário nar-
rativo aberto, sem acidentes de percurso, constitui um anseio psi-
cológico legítimo, mas irrealizável num universo supervisionado,
ao mesmo tempo, pelo “Rei dos montes” e o “Rei das grotas”.
Entretanto, para que não se interrompam os progressos par-
ciais – e o próprio ritmo regular de oclusão e abertura – é neces-
sário que o sujeito deposite toda a sua confiança na ação subse-
quente como se, por ela, fosse possível eliminar a insegurança
básica do ser. Nesse ponto, o fazendeiro faz a intermediação e,
como destinador transcendente que conhece as fundadas incerte-
zas do sujeito com relação ao futuro, aconselha-o: “faz de conta”,
ou seja, vamos fingir que acreditamos em algo mais essencial e
definitivo para não interrompermos os processos parciais tem-
porários. Algo como: só o temporário é definitivo.
Não podemos deixar de assinalar aqui a semelhança do enfo-
que rosiano com a visão de ciência de Lévi-Strauss: “Porque mes-

5. Greimas teria dito que enquanto a filosofia prossegue em sua busca do “sentido do
ser”, à semiótica caberia apenas conceber o “ser do sentido” (leia-se: seu processo de
construção).

32
o destinador transcendente – “nada e a nossa condição”

mo que nos dediquemos a andar de aparência em aparência, não


é indiferente saber que é sensato parar em algum lugar, e onde
parar. Entre as aparências superficiais e a busca estafante de um
sentido por trás do sentido que nunca é o certo, uma experiência
plurimilenar parece mostrar que existe um nível intermediário
em que os homens sentem prazer em situar-se, porque lá encon-
tram mais conforto moral e intelectual, lá sentem-se melhor ou
menos mal que em outra parte, sem recorrer a outras considera-
ções se não as hedonistas: esse é o nível do conhecimento científi-
co, da atividade intelectual e da criação artística. Pois bem, então
nos apeguemos a isso e, resolutamente, ‘nos comportemos como
se’ […]” (Lévi-Strauss e Éribon, 2005: 229-230).
“Façamos de conta”, poderia dizer o antropólogo francês,
que, além disso, ainda estabelece relação entre essas crenças in-
termediárias, com “fins práticos”, e uma crença maior, cuja exe-
cução narrativa está fora da escala humana. E o autor conclui
seu pensamento: “[…] a fim de acreditar nisso para todos os fins
práticos, não sem, de tempos em tempos, acenarmos com um
signo de inteligência para um memento mori que engloba nosso
universo e, com ele, nós próprios” (idem: 230).
Crer nos pequenos intervalos narrativos – ou, se preferirmos,
na ação seguinte – corresponde a fingir crer no intervalo maior
(ou supremo), que compreenderia a história de uma existência.
Esse princípio está na base da persuasão e manipulação do desti-
nador Tio Man’Antônio que jamais espera de seus destinatários
um compromisso extenso com valores de longo alcance. A ele
basta que o sujeito simule crer, pois com isso já definiria a opção
tensiva pelos valores-fluxo (aqueles que mantêm o processo em
curso): faz de conta que os valores-fluxo substituem os valores-fim
(essas expressões estão em Zilberberg, 2006a: 117). Nessa acep-

33
semiótica à luz de guimarães rosa

ção, o grau de crença exigido a cada etapa manipulatória não vai


além do suficiente para se restabelecer a transição entre parada e
parada da parada (ou entre oclusão e abertura): “Um projeto, de
se crer e obrar, ele levantava”.
Claude Zilberberg considera que, na visão de Greimas, o
destinador só interviria nas grandes demarcações, de início e de
término, do percurso narrativo, deixando ao sujeito as segmen-
tações realizadas em pequenos intervalos, classificadas como pro-
grama narrativo de uso (2000: 104). Essa visão nos parece muito
esquemática e pouco esclarecedora. Se o antissujeito representa
uma força de contenção da trajetória do sujeito, produzindo o
que chamamos de segmentos narrativos, o destinador deve atuar
incessantemente em sentido contrário, fazendo com que o su-
jeito, a cada passo, ultrapasse as barreiras que lhe são impostas.
A definição mais próxima do destinador de Guimarães Rosa é a
que surge em outro texto do mesmo C. Zilberberg: “finalmente, o
destinador seria, ao pé da letra, ‘aquele que nada poderia deter!’;
o destinador faz precisamente agir (ou padecer) o destinatário
porque ele próprio se priva de agir” (2006a: 111).
Guimarães Rosa estuda as operações do destinador na tan-
gente do itinerário do sujeito. Caso o destinatário não se sinta
totalmente persuadido para empreender, como sujeito, a etapa
seguinte, o destinador o faz fazer de conta que vale a pena conti-
nuar. Assim, Tio Man’Antônio desencadeia o projeto de trans-
formação da paisagem local, tanto na posição apenas de desti-
nador (“Ao revés, porém, Tio Man’Antônio concebia. – ‘Faça-se
de conta!’ – ordenou, em hora, mansozinho”), como nas funções
simultâneas de destinador e destinatário-sujeito: “Seus pés-no-
-chão muito camaradas, luzindo a solsim foices, enxadas, facões,
obedeciam-lhe, sequacíssimos, no que com talento de braços exe-

34
o destinador transcendente – “nada e a nossa condição”

cutavam, leigos, ledos, lépidos. Mas ele guiava-os muito comedi-


do, pelos sabidos melhores meios e fins, engenheiro e fazedor,
varão de tantas partes; associava com eles, dava coragem. – ‘Faz
de conta, minha gente… Faz de conta…’–”.
O que está em jogo, no fundo, é a missão dinâmica e, ao
mesmo tempo trágica, do destinador transcendente: fazer o su-
jeito prosseguir em sua busca de valores, a despeito da inexora-
bilidade de seu estado final de disjunção com toda e qualquer
conquista. Essa consciência passa a nortear o comportamento
de Tio Man’Antônio, a partir da morte de Tia Liduína. A dor da
falta que atinge o sujeito desperta a atenção do destinador para
a inversão de rota que, a médio prazo, deverá se impor àquela
trajetória de vida até então pautada pelas conquistas. Cabe a
ele, como destinador, assegurar a continuidade do sujeito nos
perío­dos de aquisição, mas também nas fases de privação que,
aliás, costumam estar imbricados no interior das narrativas.
No período retratado no conto, o personagem, com sua sa-
bedoria silenciosa, pressente que, depois da plenitude emocional
e material atingida em sua biografia, terá que se preparar para as
inevitáveis perdas que já despontam no horizonte de sua existên-
cia. E ao naturalizar esse sentimento do personagem, como uma
espécie de instinto humano que capta e administra uma lei evolu-
tiva da espécie, Guimarães Rosa está articulando uma lei sintáxi-
ca do plano do conteúdo que determina o ressurgimento, sob os
mais diversos aspectos, do valor preterido, toda vez que se torna
hegemônico o valor selecionado. Trata-se de uma lei oriunda do
universo transcendente que o escritor estabelece nos seguintes
termos: “Em termos muito gerais, haveria uma mor justiça; mis-
ter seria. Se o paiol limpo se deve de, para as grandes colheitas:
como a metade pede o todo e o vazio chama o cheio”.

35
semiótica à luz de guimarães rosa

Para garantir o sucesso na colheita, Tio Man’Antônio – como


destinador – aciona um princípio sintáxico: investe nos valores
remissivos, aqueles que engendram a falta, para fazer ressurgir
os valores emissivos e recuperar a plenitude pretendida. O mes-
mo raciocínio, aplicado de forma inversa, orienta as decisões do
personagem que tem consciência de seu atual estado de plenitu-
de e que, na fronteira de seus domínios emissivos, paira a força
remissiva que, no episódio repentino da morte da esposa, apenas
começava a mostrar os seus sinais.

O C aminho de V olta

Para não ceder espaço ao antissujeito, o destinador toma as


rédeas da situação e passa a conduzir, à sua maneira, o próprio
processo de abdicação dos valores. Ainda que lhe restem algumas
conquistas a empreender (como, por exemplo, nos negócios de
venda de gado), o fazendeiro mostra-se bem mais preocupado
em acompanhar seus projetos de despojamento emocional e ma-
terial. Sabe que motivar o sujeito a fazer (ou não fazer) em nome
da disjunção é consideravelmente mais difícil e que o sucesso da
missão depende de estratégias muito bem urdidas pelo destina-
dor: “O grande movimento é a volta. Agora, pelos anos adiante,
ele não seria dono mais de nada, com que estender cuidados”.
Daí a importância da expressão “faz de conta” adotada para
sempre logo após a morte de Tia Liduína. Na qualidade de “tran-
sitoriador”, responsável pelo percurso vitorioso do sujeito rumo
às aquisições, o destinador terá então de enfrentar o seu maior
desafio, que é fazer com que o sujeito aceite e percorra gradativa-
mente seu caminho de volta, rumo às privações.

36
o destinador transcendente – “nada e a nossa condição”

Compreende-se melhor agora por que Tio Man’Antônio, tão


logo encerra o cerimonial fúnebre da esposa, altera incontinenti
a paisagem do local. Mais que uma continuidade progressiva, o
destinador já está pensando no caminho de volta, na disjunção
com o aspecto visual associado ao programa narrativo das aqui-
sições. Em seguida, o fazendeiro promove o casamento de suas
três filhas e, nesse momento, já se pode sentir que as disjunções,
e a consequente solidão, começam a fazer parte de um projeto
eufórico: “Sozinho, sim, não triste. Tio Man’Antônio respeitava,
no tangimento, a movida e muda matéria”.
Algum tempo depois, o fazendeiro passa a propriedade das
terras a seus empregados, num processo de doação pouco frequen-
te, cujo êxito depende de cuidados especiais da parte do doa­dor. Às
filhas, fez de conta que vendera as terras, enviando-lhes o dinheiro
arrecadado com vendas de gado e de outros produtos da fazen-
da (“E ele mesmo, de seu dinheiro ganho, fingia estar vendendo
as terras, cabidamente; dinheiro que mandava, pontual, às filhas e
genros, sendo-lhes levado recado, para fazer crer”).
Deixa tudo por escrito para resguardar seus servos de fu-
turos processos e, na condição de destinador que não suporta
a estagnação do sujeito, Tio Man’Antônio mantém estrita vigi-
lância durante algum tempo, para que os novos proprietários,
inexperientes, não se deixem prejudicar pela má administração
dos bens (“Sábio, sedentariado, queria que progredissem e não
se perdessem, vigiava-os, de graça ainda administrava-os, deles
gestor, capataz, rendeiro”).
Embora ainda mantivesse a “majestade” do destinador, Tio
Man’Antônio passa a exibir a condição de sujeito que renuncia
aos bens em nome de um projeto maior de desapego aos valores
terrenos, sejam esses materiais ou emocionais. Apenas a meta-

37
semiótica à luz de guimarães rosa

função de destinador transcendente – a que assegura a passagem


de um estado a outro, considerando-os sempre transitórios –
permanece incólume, desta feita para bem conduzir o sujeito ao
estado disjuntivo, o outro extremo da categoria juntiva.
O caminho de volta ainda é representado teoricamente pela
inversão do percurso regular do quadrado semiótico, estabelecida
com os termos da categoria complexa pensar já vista anteriormen-
te. Na fase inicial do relato, Tio Man’Antônio “pensava o que não
pensava”; na fase intermediária, ele “não pensava o que pensava”;
no final do texto, o fazendeiro “pensava o que pensava”.
Ora, não é difícil completar, por catálise, os quatro termos
do quadrado:

pensava o que pensava pensava o que não pensava

[não pensava o que não pensava] não pensava o que pensava

No entanto, a trajetória adotada pelo relato, para definir a


evolução do personagem no universo do pensar, perfaz o caminho
de volta, normalmente não considerado pela lógica do quadrado,
como se fosse possível inverter também as pressuposições:

pensava o que pensava pensava o que não pensava

[não pensava o que não pensava] não pensava o que pensava

38
o destinador transcendente – “nada e a nossa condição”

R eta F inal

O enunciador sintetiza em três parágrafos, simétricos do


ponto de vista sintáxico e distribuídos ao longo do texto, as três
principais privações sofridas pelo sujeito a partir, mais uma vez,
de três transformações narrativas que incidem sobre Tia Liduína,
as três filhas e os servos:
1. “Tia Liduína, que durante anos de amor tinham-na visto
todavia sorrir sobre o sofrer – só de ser, vexar-se e viver, como,
ora, dá-se – formava dolorida falta ao uso de afeto de todos. Tia
Liduína, que já fina música e imagem”.
A parte inicial do parágrafo descreve Tia Liduína como um
ser resignado, recatado e altivo em relação aos sofrimentos da
vida. Tudo indica que a presença da personagem no universo de
Tio Man’Antônio constituía um verdadeiro anteparo à atividade
do antissujeito. Ao anunciar sua morte repentina, o enunciador
convoca os valores remissivos que até então figuravam na trama
apenas como realizáveis. Dá-se, assim, o primeiro contato direto
do fazendeiro com as forças antagonistas que representam amea­
ça efetiva ao seu percurso de sujeito. O efeito dessa parada é tão
devastador que imediatamente desperta a função do destinador
transcendente, até então adormecida no ator principal, e seu
compromisso essencial com os valores emissivos.
Dentro do quadro existencial em que Guimarães Rosa abor-
da a questão narrativa, a parada imposta pelo antissujeito não se
traduz apenas como um acidente de percurso passível de supe-
ração e sim, bem mais do que isso, como um sinal metonímico
do inexorável momento terminativo. Portador das funções de
destinador e sujeito, Tio Man’Antônio não hesita em assumir a
condução do processo em qualquer das duas orientações que gra-

39
semiótica à luz de guimarães rosa

duam internamente a categoria juntiva. Ao invés de ceder espaço


ao antissujeito, administra tanto a aquisição quanto a renúncia
paulatina dos valores. A surpresa causada pela morte da esposa
transforma-se em alerta – contra o antissujeito – para uma pro-
gramação meticulosa da espera do momento remissivo final.
O parágrafo ainda nos informa que a passagem de Tia Li-
duína para uma outra dimensão (“já fina música e imagem”)
ocasiona em todos à sua volta um doloroso sentimento de falta
que Tio Man’Antônio rapidamente preenche com atividades
transformadoras que fazem de conta que vale a pena prosse-
guir apesar da perda. Na verdade, do ponto de vista narrativo,
o destinador prepara o destinatário-sujeito para outras perdas
inevitáveis que estão por vir.
2. “Três, as filhas, que por amor de anos ele tinha visto reno-
varem a descoberta de alegria e alma – só de ser, viver e crescer,
como, ora, se dá – formavam sentida falta ao seu querer de ternura
experiente? Suas filhas, que já indivisas partes de uma canção”.
A segunda privação já tem um caráter de etapa programada
pelo destinador, sem interferência direta do antissujeito. Porta-
doras de valores emissivos, as três filhas representam o que há de
alegria, renovação e crescimento na vida do fazendeiro, verdadei-
ras personificações da continuidade tão cara ao destinador trans-
cendente. Esse parágrafo, situado logo após o triplo casamento
promovido pelo pai, assinala a transferência das filhas para lon-
gínquos lugares narrativos (“para longes diversos”) – onde se-
guirão suas histórias, certamente atreladas a outros actantes (“já
indivisas partes de uma canção”) – e, consequentemente, o seu
desligamento do programa narrativo de Tio Man’Antônio.
O ponto de interrogação após o predicado que insere a “fal-
ta” modifica totalmente o sentido da frase e da situação narrati-

40
o destinador transcendente – “nada e a nossa condição”

va vivida pelo sujeito. O enunciador põe em dúvida, desta vez, a


relação direta entre a separação efetiva e o esperado sentimento
de falta que deveria afligir o sujeito, já que, agora, a ruptura não
mais decorre da atuação antagonista; faz parte, isto sim, de um
programa de abandono progressivo dos vínculos pessoais e ma-
teriais orientado pela função do destinador. Daí a frase, já citada,
que descreve, na sequência do parágrafo em exame, a nova con-
dição de Tio Man’Antônio: “Sozinho, sim, não triste”.
3. “Seus muitos, sequazes homens, que, durante o ignorar de
anos, não os tinha de verdade visto consistir – só de ser, servir e
viver, como ora e sempre se dá – faziam agora falta à sua neces-
sidade de desígnio? Seus homens, já exigidas partes de um texto,
sem decifração”.
Num misto de julgamento e manipulação, Tio Man’Antônio
premia a fidelidade de seus empregados com a doação das terras,
embora os beneficiados continuem no anonimato e exercendo a
eterna servidão. De todo modo, eles passam a figurar como per-
sonagens favorecidos num texto minuciosamente redigido para
salvaguardar no futuro seus direitos sobre a terra. Mais uma vez,
a falta que esses homens fariam à execução dos sucessivos proje-
tos empreendidos pelo fazendeiro é posta em dúvida pela recor-
rência do ponto de interrogação.
Na realidade, o único projeto doravante abraçado pelo des-
tinador é o de abdicação gradativa dos bens afetivos e materiais e
desativação dos valores emissivos, que vinham sendo convertidos
em ações, em virtude da aproximação inexorável do momento
remissivo final. Esse desígnio, portanto, permanece intacto, as-
sim como o poder do destinador (“Não o amavam, seguramente,
já que sempre teriam de temer sua oculta pessoa e respeitar seu
valimento, ele em paço acastelado, sempre majestade”).

41
semiótica à luz de guimarães rosa

Tio Man’Antônio faz questão de dirigir a seu modo a própria


privação (“Fazia de conta nada ter”) até atingir o esvaziamento
da função de sujeito (“fazia-se, a si mesmo, de conta”) e a neutra-
lização do fazer (“ele fazia, alta e serena, fortemente, o não-fazer-
-nada, acertando-se ao vazio, à redesimportância”).
Complementando a função do doador, os donatários das ter-
ras também “faziam de conta que eram donos” e, assim, o projeto
de renúncia dos valores evolui até atingir o paroxismo, quando o
destinador arbitra sobre a própria morte: “Morreu; fez de conta”.
Para espanto e desespero dos ex-servos que continuavam re-
verenciando Tio Man’Antônio como um legítimo representante
do universo transcendente (“atontavam-se e calaram-se, todos,
no amedronto de que um homem desses, serafim, no leixamento
pudesse finar-se”), seu último e único bem, a grande “Casa” da
fazenda, incendeia-se durante o velório, reduzindo o corpo iner-
te a cinzas. O episódio, desvinculado de qualquer razão aparente,
é narrado como um caso de manifestação das forças transcen-
dentes à maneira das intempéries que sucedem a crucificação de
Cristo no relato bíblico.
O fogo consome a “criatura do mundo”, mas ajuda a con-
sumar, em todos os pormenores, o projeto de disjunção coor-
denado pelo destinador, mantendo ilesa, portanto, a função
sintáxica que identifica esse actante com uma indestrutível força
de “continuidade”. É assim que Tio Man’Antônio (como desti-
nador) conduz a si próprio (como sujeito) à “gleba tumular”6,
demonstrando que, nem mesmo nessa hora, perde o seu poder

6. Significando “terreno próprio para o cultivo” ou “terra em que se nasce” (cf. Dicio-
nário Houaiss), o termo “gleba” mantém a isotopia da abertura mesmo ao se referir a
um recinto sepulcral (observação que nos foi assinalada por José Miguel Wisnik).

42
o destinador transcendente – “nada e a nossa condição”

transitivo. Tudo ocorre como se sobrasse apenas uma determina-


ção sintáxica pura – a mesma que deu origem ao “fazer de con-
ta” –, pela qual destinador e destinatário se inscrevem no mesmo
ator assegurando-lhe a autossuficiência: “Até que, ele, defunto,
consumiu-se a cinzas – e, por elas, após, ainda encaminhou-se,
senhor, para a terra, gleba tumular, só; como as consequências de
mil atos, continuadamente. Ele – que como que no Destinado se
convertera – Man-Antônio, meu Tio”.

43
2. A V erdade E xtraordinária –
“A s M argens da A legria ”

R elatos E pifânicos

Ao pinçar relatos epifânicos1 de obras do seu agrado e co-


mentá-los detalhadamente na primeira parte, intitulada “A Fra-
tura”, do volume Da Imperfeição (2002), Greimas introduz no
mundo semiótico uma noção particular de estética, segundo a
qual o irrompimento de um acontecimento extraordinário tem o
poder de retirar o sujeito do seu cotidiano e de deixá-lo exposto e
vulnerável aos encantos do objeto. Mais do que isso, o semioticis-
ta depreende nesses relatos certa transferência das propriedades
ativas do sujeito para o âmbito do objeto, de tal maneira que,
durante o breve espaço de tempo do acontecimento, as funções
actanciais tornam-se oscilantes e o sujeito chega a figurar como
“presa” do magnetismo exercido pelo objeto.

1. Estamos empregando esse termo a partir do sentido próprio de epifania: “manifes-


tação ou percepção da natureza ou do significado essencial de uma coisa” (Dicio-
nário Houaiss).

45
semiótica à luz de guimarães rosa

Na segunda seção do livro, intitulada “As Escapatórias”,


Greimas vislumbra a possibilidade de uma estética inserida no
cotidiano, mas, ao mesmo tempo, dependente de programas,
ainda que efêmeros, de negação de seus ritos dessemantizados.
Justamente por estar mergulhado num universo em que a vida
lhe parece sempre incompleta – e, portanto, imperfeita – o sujei-
to alimenta a espera de um estado pleno, caracterizado por sua
fusão com o objeto, como se temporariamente ambos os actantes
pudessem constituir um ser integral.

C ontrato E missivo

Na realidade, são muitos os pensadores que já se debruçaram


sobre as circunstâncias que cercam esses acontecimentos extraor­
dinários e suas implicações estéticas, mas poucos conseguiram,
como Greimas, fazer dessa reflexão uma espécie de introdução a
um estudo sistemático da apreensão artística. Pois encontramos
também em Guimarães Rosa um brilhante equacionamento des-
se estudo em seu conto “As Margens da Alegria”.
O protagonista desse texto é um menino que viaja com
os Tios ao local onde será construída uma grande cidade. Em
cumplicidade com os sentimentos do Menino, o enunciador
descreve sua partida num avião da própria “Companhia” res-
ponsável pela execução do projeto e toda a ansiedade eufórica
que o faz sentir que “a vida podia às vezes raiar numa verdade
extraordinária”.
Temos a impressão, a princípio, de que a viagem como um
todo já representa para o personagem principal um aconteci-
mento extraordinário, desde o momento em que desperta de

46
a verdade extraordinária – “as margens da alegria”

madrugada e é conduzido pelos pais ao aeroporto onde seus Tios


o aguardam para o voo. Tudo parece significar ruptura do coti-
diano e encantamento com a nova experiência. O Menino, no
entanto, sabe bem que o ápice da experiência ainda está por vir e
que, nesse instante, vive apenas seus preparativos, ou seja, elabo-
ra o que Greimas chamaria de “espera do inesperado”. Até onde
consegue entender, o jovem se sente participando do programa
narrativo dos Tios cujo objetivo explícito é a permanência, por
uns dias, no canteiro de obras onde se constrói a nova cidade.
A fase contratual da narrativa que então se inicia é relata-
da com profusão de detalhes para bem configurar os acordos, as
integrações, enfim, os elos juntivos que mantêm os sujeitos em
perfeita comunhão afetiva, requisito fundamental para o êxito
da jornada: “Sorria-se, saudava-se, todos se ouviam e falavam”.
Definem-se as funções actanciais, com os Tios na posição de des-
tinador e o Menino na condição de sujeito-destinatário: “A Tia e
o Tio tomavam conta dele, justinhamente”. E tais laços eufóricos
resultantes da seleção de valores emissivos, contínuos, instruem
a modalidade do /querer/, representada figurativamente pela vi-
vência de um verdadeiro sonho: “Era uma viagem inventada no
feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho”.
O enunciador esmera-se em fornecer todas as indicações ne-
cessárias para caracterizar a fácil circulação dos conteúdos entre
os actantes: “e as coisas vinham docemente de repente, seguindo
harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes”. Ou
seja, prevalecem os acordos explícitos e as relações solícitas, num
clima de fartura e boa vontade, como se os conflitos e os empe-
cilhos, que são a própria razão das histórias, pudessem ser supri-
midos da base dessa novela. É o modo pelo qual o enunciador
exibe a predominância inequívoca dos valores emissivos, aqueles

47
semiótica à luz de guimarães rosa

que garantem às funções actanciais sua complementaridade ple-


na (destinador persuadindo o destinatário e sujeito sendo atraído
pelo objeto), e remete para uma instância potencial, quase inati-
va, as forças antagonistas.
Isso porque a semiótica deve reconhecer que os valores
tensivos convivem em permanente oscilação. Quando a esco-
lha emissiva é desbragadamente dominante, como nesse trecho
inicial de Guimarães Rosa, significa que os valores remissivos
também foram escolhidos pelo mesmo enunciador – normal-
mente representado por um narrador –, só que sua presença
é recessiva ou, por vezes, até mesmo “residual” (Wisnik, 2004:
271). À medida que cresce a dominância dos primeiros valores
selecionados, a presença dos valores latentes vai se tornando,
paradoxalmente, mais sensível. A qualquer momento eles po-
dem emergir como consequência de uma espécie de lei rítmica
que subordina o progresso narrativo à alternância, não necessa-
riamente simétrica, dos períodos de distensão e contenção ou,
em outros termos, de prevalência, ora dos valores emissivos,
ora dos remissivos. A experiência cultural secular dos povos
com suas narrativas fez do imaginário humano uma instância
polemológica na qual a continuidade evolutiva caracteriza-se
sempre por denegação de descontinuidades2.
As figuras compostas por Guimarães Rosa no nível dis­
cursivo descrevem com precisão tanto a dominância dos va-
lores emissivos, eufóricos, como a latência potencializada dos
valores de limite: “Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de seguran-
ça virava forte afago, de proteção, e logo novo senso de espe-

2. Essa é uma das teses defendidas por G. Bachelard no volume intitulado A Dialética
da Duração.

48
a verdade extraordinária – “as margens da alegria”

rança”. É evidente que nesse afivelamento do cinto há uma des-


continuidade embrionária que, por enquanto, apenas subjaz ao
fluxo desobstruído dos contatos humanos. Assim também, ou-
tros trechos, ainda dessa etapa inicial, demonstram que a hege-
monia plena da modalidade do /querer/ terá como destino um
processo de denegação cujos limites já podem ser vislumbrados
na atuação disciplinadora do /dever/: “as satisfações antes da
consciência das necessidades”.
Mas o que importa nesse início do conto é a perfeita con-
junção entre destinador (os Tios) e destinatário (o Menino),
assegurando a transferência contínua dos valores do primeiro
actante ao segundo. Considerando que o destinador é o grande
responsável pelo poder de atração do objeto – na medida em
que sublinha as qualidades que lhe são inerentes durante o pro-
cesso de persuasão do destinatário-sujeito –, todos os acordos
obtidos na etapa inicial do processo narrativo acentuam a im-
portância da conquista final. Tudo ocorre como se a continui-
dade que define o elo entre destinador e destinatário se repro-
duzisse na relação entre sujeito e objeto e fosse sólida a ponto
de afastar qualquer intervenção antagonista.
Em outras palavras, um contrato bem-sucedido reforça sig-
nificativamente o teor da espera por valores positivos, mesmo
que o objeto, ou o acontecimento em si, ainda não se manifeste
como algo bem definido na mente do sujeito. A confiança no
destinador é suficiente para que o destinatário-sujeito se pre-
pare para uma espécie de “casamento desejado”: ainda que não
conheça o outro “cônjuge”, o sujeito pressente que encontrará
sua “cara-metade”, ou seja, a parte que lhe falta na configuração
da própria identidade.

49
semiótica à luz de guimarães rosa

D ensidades de P resença A ctancial

Nesse sentido, um acontecimento extraordinário, que soa


como verdade incomum, vem corrigir temporariamente as im-
perfeições de vínculo do sujeito com seus objetos cotidianos. A
sensação de plenitude não se deve apenas à perfeita integração
desses actantes, mas também à renovação da confiança do des-
tinatário-sujeito no destinador que lhe permitiu entrever um ser
completo – ou seja, uma categoria que sincretiza sujeito e objeto
numa só unidade – e, mais do que isso, experimentar, por um
instante, a suspensão de seu compromisso de busca.
Uma vivência epifânica supõe, portanto, uma evolução con-
tínua, sem acidente de percurso, que alinhava o /fazer crer/ do
destinador com a plena competência interpretativa e modal do
destinatário-sujeito e com a conquista de um objeto que, por sua
vez, confirma as qualidades enaltecidas inicialmente pelo desti-
nador. Supõe, como já dissemos, uma franca predileção pelos
valores emissivos que, selecionados em nível profundo, deve-
rão instruir, no nível narrativo, a participação de modalidades
extensas como as do /querer/ e do /poder/ e, ao mesmo tempo,
garantir a continuidade que vai do destinador inicial até o obje-
to final, passando pelas funções de destinatário e sujeito. Em Da
Imperfeição, Greimas examina a manifestação do acontecimento
extraordinário sob a égide da “fratura” e da “escapatória”.
1. No primeiro caso, subentende-se que houve uma mudança
súbita no quadro de evolução narrativa do sujeito. A partir de al-
gum estímulo sensorial, esse actante se vê repentinamente intera-
gindo com outras forças actanciais, exercidas por atores que não
participam de seus programas narrativos de rotina. Em vez da
busca habitual do objeto, o sujeito se sente tomado pela presença

50
a verdade extraordinária – “as margens da alegria”

ofuscante de um acontecimento que o retira temporariamente de


sua trajetória de vida e lhe rouba parte da própria condição ativa
de sujeito. Em outras palavras, o ator discursivo experimenta am-
bas as funções (ativa e passiva) ao mesmo tempo, sentindo-se em
total fusão com a fonte do acontecimento extraor­dinário. Essa
nova situação narrativa pressupõe uma alteração geral das forças
actanciais que circundam essa união plena entre sujeito e objeto,
mas não podemos afirmar que Greimas – que, por ocasião da ci-
tada publicação, se eximiu da responsabilidade de manter o cos-
tumeiro rigor semiótico – tenha se detido na reformulação dos
elementos narrativos que participam desse estado excepcional.
Ainda assim, reconhecemos que os termos da segunda parte do
livro Da Imperfeição deixam entrever o rearranjo narrativo que
não se efetiva na primeira.
2. De fato, sob a noção de “escapatória”, Greimas reflete
sobre nosso anseio de ressemantização do cotidiano e sobre as
possibilidades de reprogramá-lo no sentido de favorecer nosso
contato com os acontecimentos estéticos comentados na primei-
ra parte3. Não se trata mais de um exame dos efeitos subjetivos
produzidos por um acontecimento inesperado, mas, ao contrá-
rio, de verificar até que ponto o sujeito pode “construir” o que o
próprio autor denomina “espera do inesperado”. Seria possível
propor “sequências articuladas de comportamentos e atitudes”
que conduzissem o sujeito a essas experiências de cunho revitali-
zador? Ou, ainda nos termos do semioticista, “seria possível uma
sintaxe da vida ‘aceitável’?” (Greimas, 2002: 86). Há um parado-

3. Eric Landowski desenvolve essa ideia no texto “De l’Imperfection, o Livro do Qual
se Fala”, publicado na seção final da versão brasileira do famoso volume do fundador
da semiótica (Greimas, 2002: 125-150).

51
semiótica à luz de guimarães rosa

xo no fato de que essa vida aceitável (ou ressemantizada) nega,


mas, ao mesmo tempo, pressupõe os programas automatizados e
desgastados do ritmo de vida cotidiano. Nega, na medida em que
a esperança de uma vida verdadeira, na qual não haja separação
entre sujeito e objeto, em princípio não deixa espaço para nossas
carências e disputas diárias. Pressupõe esses programas, na me-
dida em que o sujeito só pode alimentar sua esperança de avistar,
ou depreender, essa condição perfeita do ser – a união plena entre
sujeito e objeto – pelas frestas formadas nas juntas imperfeitas
de sua realidade aparente do dia a dia (o que a semiótica desig-
na como parecer). Isso equivale, lembra Greimas, à concepção
de “dissimetria” utilizada por Baudelaire em suas apreciações
sobre o “belo” nas artes: para se tornar sensível ao espectador,
a “beleza” deve contar com um padrão de gosto já integrado na
comunidade e promover a transgressão dessa expectativa (idem:
88). O que importa aqui não é, evidentemente, a velha questão
do papel da novidade nas artes, mas sim a natureza efêmera des-
sas experiências extraordinárias que jamais deixam de constituir
breves escapatórias.
Trata-se, na verdade, de duas dimensões indissociáveis do
mesmo acontecimento extraordinário: de um lado, ele nega os pro-
gramas narrativos habituais do cotidiano e, então, define-se como
“fratura”; de outro, ele pressupõe os mesmos programas e define-
-se assim como “escapatória”. Nos dois casos, entretanto, surge
um desvio narrativo que afeta especialmente a condição de presen-
ça das categorias de antissujeito e destinador e que, praticamente,
não foi levado em consideração no volume Da Imperfeição.
Tomando como referência a reformulação dos modos de exis-
tência semiótica nos percursos previstos pelo quadrado semiótico
apresentado no livro Tensão e Significação (Fontanille e Zilber-

52
a verdade extraordinária – “as margens da alegria”

berg, 2001: 136-253), cremos poder afirmar que, diante de um


acontecimento extraordinário que lhe intercepta a continuidade
narrativa e lhe produz o sentimento de perfeita fusão com o ob-
jeto, o sujeito experimenta também um novo quadro de determi-
nações narrativas que compreende a potencialização do antissujei-
to e, ao mesmo tempo, a atualização de um novo destinador. Em
outras palavras, sucedem mudanças instantâneas e significativas
naquilo que a semiótica denomina “densidade de presença”, nes-
te caso, das categorias actanciais:

realização virtualização

atualização potencialização
do destinador do antissujeito

De um lado, o sujeito atinge sua identidade plena como um


ser uno, perfeitamente realizado (em total comunhão com o ob-
jeto). Essa condição pressupõe a atonização simultânea da fun-
ção de antissujeito – parte inerente da vida “dessemantizada” do
sujeito –, sem o qual não se pode conceber uma integração tão
absoluta entre actantes: trata-se, pois, de um antissujeito poten-
cializado, ou seja, temporariamente inativo4. Por outro lado, o
caráter “extraordinário” do acontecimento indica a presença de
novos valores – por vezes, até de outra axiologia – dando respal-
do ao êxito do encontro. Ao não demonstrar qualquer hesitação
no ato de reconhecimento do objeto, ou do valor do objeto, o

4. Referimo-nos neste capítulo à acepção átona de potencialização. Veremos à frente


(p. 154 e ss.) que esse conceito traz também uma acepção tônica.

53
semiótica à luz de guimarães rosa

sujeito deixa entrever que já possuía um destinador virtualizado,


uma espécie de guardião dos valores utópicos, e que essa função
ganha presença imediata assim que o sujeito toma consciência do
evento inesperado.
Na realidade, o sujeito vê o que vê e sente o que sente em
razão desse destinador que se atualiza no instante de seu contato
com o objeto. E, nessa situação específica, pouco importa se o
destinador se atualiza como actante incoativo (manipulador) ou
terminativo (julgador). O efeito sobre a cena do encontro “ines-
perado” é o mesmo: a presença, ainda que virtual, do destinador
indica o quanto já havia de “esperado” no encontro inesperado.

V erdade E xtraordinária

Dizíamos que a confiança no destinador é o fato principal que


nutre a espera eufórica do sujeito. Ao personagem principal de “As
Margens da Alegria”, sobram-lhe requisitos para viver a experiên-
cia singular que lhe fora reservada, a começar das promessas dos
Tios – seus destinadores “oficiais” – que fortalecem mais e mais sua
crença no que está por vir: “O Menino via, vislumbrava. Respirava
muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido – as novas tantas
coisas – o que para os seus olhos se pronunciava”.
Sem empregar os termos, Guimarães Rosa opera, ao mesmo
tempo, com as noções de escapatória e fratura. Em princípio, todo
o episódio de visita ao local de construção da nova cidade cons-
titui, em si, uma escapatória bem planejada da rotina do garoto.
O ápice da experiência, entretanto, de acordo com os valores e as
previsões dos Tios, seria chegar “aonde a grande cidade vai ser”.
As funções de destinador-persuasivo e destinatário-sujeito esta-

54
a verdade extraordinária – “as margens da alegria”

vam consolidadas em bases suficientemente seguras para garantir


o sucesso desse encontro, quando então se dá a fratura.
Seguindo o esquema de antecipação já visto, das satisfações
antes das necessidades (“Ainda nem notara que, de fato, teria
vontade de comer, quando a Tia já lhe oferecia sanduíches”),
também a esperada “verdade extraordinária” precipita-se diante
do sujeito, como a demonstrar que uma preparação – leia-se, o
contrato entre destinador e destinatário – bem construída tende
a apressar o aparecimento do fenômeno. Eis que, numa “breve
clareira” entre a mata cerrada e a pequena morada onde se instala
com os Tios, o Menino depara com uma ave soberba que con-
substancia todos os valores supremos cultivados ao longo da via-
gem e, talvez, ao longo da vida. Tem diante dos olhos um peru,
cuja “grandeza tonitruante” representa o que de mais sublime
havia visto em sua ainda pequena história.
Tudo ocorre como se os preparativos e contratos anteriores
convergissem para esse momento. Trata-se de um estado de rea­
lização plena (“Satisfazia os olhos”) e sensação de “eternidade”
(“o peru para sempre”). Mas o que fora, na realidade, fratura,
figurava de início como o auge da escapatória, como ponto cul-
minante da viagem para o qual tudo concorria desde a partida
no avião da Companhia. O maior signo dessa espera está no em-
prego do artigo definido, “avistou o peru”, cujo caráter anafórico
não deixa dúvida de que esse encontro já estava previsto: algo
como o tão esperado peru! A aparição epifânica (“era de se tan-
ger trombeta”) e sinestésica – um espetáculo visual completado
pela audição do “gluglo” que, de tempo em tempo, faz do so-
nho realidade –, justamente por reforçar os contratos já firmados
pelo sujeito e por neutralizar a presença do antissujeito, tende
a proporcionar um encontro de intensa integração actancial. As

55
semiótica à luz de guimarães rosa

próprias funções, ativa e passiva, que definem respectivamente


sujeito e objeto, confundem-se nesse estado de fusão completa,
como se, num brevíssimo período, o primeiro actante pudesse
experimentar a perfeição de ser uno (sujeito e objeto).
Como esse tipo de realização se dá em meio às imperfeições do
cotidiano, à maneira de uma brecha na rotina diária – uma “breve
clareira”, na figuração espacial de Guimarães Rosa – sua densidade
de presença tende a diluir-se com certa rapidez, ficando apenas a
lembrança nostálgica da plenitude. Mas esse mesmo elo de lem-
brança que liga o sujeito ao objeto (ou acontecimento) passado,
estende-se também ao futuro em forma de esperança de um novo
encontro. Se a realização em si é efêmera, a possibilidade de repe-
tição do encontro é o que preserva certa densidade de presença
do acontecimento na memória do sujeito. Tanto que o Menino de
nossa história vê e, imediatamente, revê a cena – o que nos remete
ao conceito de refrão musical – como se fosse para se assegurar da
experiência vivida: “Mas só bis-viu. Já o chamavam para passeio”.
O encontro com o peru não estava, na realidade, nos planos
dos adultos, que, aliás, sequer tomaram conhecimento da expe-
riência do Menino. Queriam, em última instância, mostrar-lhe
a transformação da natureza em espaço urbano. No entanto,
durante o passeio de automóvel, o Menino se maravilhava com
os detalhes do mundo vegetal e animal que brotavam na grande
extensão da paisagem, fortemente iluminada pela luz solar (“Essa
paisagem de muita largura, que o grande sol alagava”). Só de ma-
neira local e contida surge aqui e ali a ameaça dos incômodos
também existentes na natureza (“O buriti, à beira do corguinho,
onde, por um momento, atolaram”). Para o Menino, porém,
tudo ainda faz parte do cenário exuberante que deu destaque
ao seu principal protagonista, o peru. Ele aceita de bom grado

56
a verdade extraordinária – “as margens da alegria”

o passeio como se fosse um recurso a mais para a valorização do


reencontro com a ave.

E feito de E ternidade

Do ponto de vista semiótico, agora é todo o acontecimento


extraordinário que se potencializa como se essa perda de densi-
dade de presença fosse condição necessária para a sua reatualiza-
ção num futuro próximo. Afinal, é através da tela do parecer que
se pode entrever os contornos perfeitos do ser. O sujeito leva para
o cotidiano a memória da experiência marcante e isso altera seu
sistema de expectativas, do mesmo modo que as realizações lin-
guísticas imprimem suas marcas no sistema das línguas naturais:
“Todas as coisas, surgidas do opaco. Sustentava-se delas sua in-
cessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida em novos aumentos
de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos
já armados. Tudo para a seu tempo ser dadamente descoberto,
fizera-se primeiro estranho e desconhecido”.
A impressão de eternidade provocada pela alta densidade de
presença de uma verdade extraordinária não pode, em princí-
pio, fazer parte dos fatos da vida, normalmente descontinuados
por forças antagonistas, a menos que se entenda eternidade como
uma ocorrência iterativa. O contato do sujeito com esses acon-
tecimentos excepcionais supõe limites no espaço e brevidade no
tempo, o que faz do encontro com o objeto uma realização neces-
sariamente tensa: nem bem começa a experiência já se delineia o
seu término. Como acabamos de dizer, é pelas frestas do cotidia-
no, seu lugar habitual de contemplação, que o sujeito consegue
identificar as condições especiais que caracterizam a cena epifâ-

57
semiótica à luz de guimarães rosa

nica: nela não aparece a função de antissujeito própria dos pro-


gramas narrativos diários e, portanto, não se concebe separação
entre sujeito e objeto. Tudo ocorre como se a perfeição sugerida
pela sensação de verdade extraordinária fosse sempre um caso de
concessão de nosso mundo imperfeito.
Só há uma forma de conservar a presença desse evento excep-
cional no campo de existência do sujeito: tirá-lo de foco e con-
vertê-lo em potencialização. Ao perder densidade de presença, o
acontecimento ganha uma zona pouco mais difusa no interior da
extensidade, figurando ao lado de outros acontecimentos que di-
luem sua carga tensiva. Nesse estado – distensivo – o evento pode
durar indefinidamente até que novas condições tornem urgente sua
reconvocação. Entretanto, o fato de ter adquirido alta densidade de
presença quando em realização, ou seja, de ter proporcionado uma
relação simbiótica com o sujeito, faz com que esse acontecimento
tenda a permanecer pouco tempo em estado potencial e virtual, já
que ocupa um lugar de destaque na mente de quem viveu a ex-
periência. Muito rapidamente, de memória marcante transforma-
-se em falta subjetiva (atualização), com boas perspectivas de nova
rea­lização. Vejamos os termos da presença5:

plenitude incompletude
(realização) (virtualização)

falta perda
(atualização) (potencialização)

5. Com alguma alteração lexical, esse quadrado reproduz a proposta de J. Fontanille e


C. Zilberberg em seu estudo sobre a “presença” (2001: 134).

58
a verdade extraordinária – “as margens da alegria”

E a sensação de eternidade, dizíamos, decorre justamente do


caráter iterativo desse processo de reconvocação dos aconteci-
mentos marcantes. Note-se que o Menino saboreia a espera do
reencontro como se precisasse dessa etapa para retirar o melhor
rendimento possível da nova realização: “Pensava no peru, quan-
do voltavam. Só um pouco, para não gastar fora de hora o quen-
te daquela lembrança, do mais importante, que estava guardado
para ele, no terreirinho das árvores bravas”.
E, ao mesmo tempo, o enunciador explicita os coeficientes,
respectivamente acelerado e desacelerado, dos termos da presença,
demonstrando que a eternidade (ou profundidade) da experiên­
cia está associada à passagem do efêmero e tônico ao duradouro e
átono – da realização à potencialização –, o que justifica o modo
aparentemente paradoxal de se referir ao peru: “Só pudera tê-lo
um instante, ligeiro, grande, demoroso”.

V alores - limite

Assim que chegam do passeio, os Tios, os engenheiros e o Me-


nino sentam-se à mesa para almoçar. Já com o pensamento vol-
tado para o reencontro com o peru, o protagonista sente falta do
“grugulejo” da ave, índice inegável de uma atualização em curso.
Isso apressa sua busca (“Saiu, sôfrego de o rever”). Traduzindo a
expectativa subjetiva do Menino, o enunciador vai modulando,
agora não mais a passagem da realização à potencialização no in-
terior do mesmo sistema de presença, mas sim a passagem radi-
cal (o salto) do sistema de presença para um quadro de ausência
(“Não viu: imediatamente”). Como se o matagal, um tanto cres-
cido, estivesse cobrindo a ave. Por fim, os indícios irrefutáveis: “Só

59
semiótica à luz de guimarães rosa

umas penas, restos, no chão”. E a parada de todos os programas


narrativos que o haviam conduzido ao peru: “Ué, se matou”. Ao
se dar conta de que seu objeto mais precioso reduzira-se ao ban-
quete de aniversário “do doutor”, o Menino vê desmoronarem
seus elos narrativos, suas crenças e sua competência modal.
Se até aquela altura havia compreendido seu encontro com o
peru como o ponto culminante de um projeto que se iniciou com
a viagem ao canteiro de obras, de repente caem por terra todos os
contratos firmados em seu imaginário e, acima de tudo, desapare-
ce, “num lufo, num átimo”, toda a confiança depositada no desti-
nador. As funções actanciais que asseguravam o êxito do primeiro
encontro com o peru sofrem um rearranjo repentino que também
pode ser compreendido dentro das articulações de um sistema de
presença, mais uma vez no nível narrativo: o destinador perde
densidade de presença e o antissujeito – até então neutralizado
na faixa entre a potencialização e a virtualização – atualiza-se com
todos os valores descontínuos próprios de sua constituição:

realização virtualização

atualização potencialização
do antissujeito do destinador

Num primeiro momento, é só o impacto da ação antagonista


que afeta o imaginário do Menino. O objeto lhe é roubado por
forças que têm o poder também de anular seus actantes aliados
(basicamente, destinador e adjuvante). Portanto, mais do que a
perda do objeto, o personagem se ressente da perda de confiança

60
a verdade extraordinária – “as margens da alegria”

nos outros sujeitos, confiança essa que lhe assegurava na vida o re-
conhecimento de uma “verdade extraordinária”, e de tudo que isso
podia trazer de paz e “eternidade” à sua existência: “Tudo perdia a
eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas
coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Sou-
besse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru –
aquele. O peru – seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um
minuto, o Menino recebia em si um miligrama de morte”.
Se a eternidade define-se pelo encontro iterativo com a ver-
dade extraordinária e, portanto, por sua permanência num siste-
ma de presença em que se alternam breves períodos de alta densi-
dade (atualização → realização) com médios ou longos períodos
de pouca densidade (potencialização → virtualização), a morte
define-se justamente pela supressão desse sistema, o que, em ter-
mos narrativos, representaria a vitória total do antissujeito.
Mas não é “morte” em seu sentido absoluto de interrupção
definitiva de uma trajetória a noção que predomina na maior parte
na obra de Guimarães Rosa. Bem mais importantes para o autor
são os seus indícios disseminados ao longo da vida (ou dos textos),
em forma de “oclusão”, “parada”, “resistência antagonista” ou, em
duas palavras, em forma de valores remissivos. Trata-se, na verdade,
de um movimento recíproco entre o todo e suas partes. A morte
fragmenta-se em pequenas doses (“miligramas”), mas, ao mes-
mo tempo, por obra dessas experiências descontínuas pontuais, o
sujeito vai tomando consciência de que há uma descontinuidade
suprema e inexorável para a qual, em última instância, tudo se en-
caminha. Em “As Margens da Alegria”, ao se dar conta da ausência
do peru e do grau de contundência que pode adquirir a atuação
do antissujeito, o Menino tem o seu primeiro aprendizado sobre a
morte: “descobria o possível de outras adversidades”.

61
semiótica à luz de guimarães rosa

Num segundo momento, surgem-lhe ao menos duas dúvi-


das: 1. teria executado uma ação em desacordo com o projeto
narrativo estabelecido pelo destinador? Nesse caso, o maravi-
lhoso encontro com o peru estaria atendendo a interesses de
outro destinador, cuja configuração atorial em nada poderia ser
identificada com as características de seus Tios. Tal possibili-
dade provoca-lhe vergonha: “Teria vergonha de falar do peru.
Talvez não devesse, não fosse direito ter por causa dele aquele
doer, que põe e punge, de dó, desgosto e desengano”; 2. esta-
riam os Tios, na verdade, desempenhando o papel de antissujei-
to da principal narrativa por ele assumida? “Mas, matarem-no,
também, parecia-lhe obscuramente algum erro”. Nesse caso,
qual seria o ator que, na condição de destinador, o havia feito
encontrar o peru? A primeira dúvida ocasiona-lhe uma decep-
ção consigo próprio. A segunda, uma decepção com os Tios.
Em ambos os casos, sua crença nos sujeitos, a começar de si
próprio, sofre sério abalo.
A reviravolta narrativa que atinge o seu imaginário a partir da
repentina supressão do sistema de presença, que havia assegura-
do o seu encontro inesquecível, provoca-lhe profunda confusão
mental. Afinal, são mudanças marcadas pela rapidez e pela sínco-
pe das etapas intermediárias: sem possibilidade de gradação, não
há como reorganizar a espera, ainda que se trate, nesse caso, de
elaborar uma espera do inesperado, a “escapatória” greimasiana
(“entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima,
quase nada medeia”).
As alterações surpreendentes exigem demais de sua cabeça
de Menino (“Seu pensamentozinho estava ainda na fase hiero-
glífica”), e, sob o signo de uma aceleração insuportável, só lhe
resta a paralisação, figurativizada como extremo cansaço (“Sen-

62
a verdade extraordinária – “as margens da alegria”

tia-se sempre mais cansado”). Sem forças para se reposicionar


na própria trajetória narrativa, o Menino deixa-se conduzir
pelos acontecimentos e, só aos poucos, pela voz do enuncia-
dor, podemos confirmar a presença virtual de um antissujeito
impregnado de valores tecnológicos, típicos do mundo citadi-
no. De fato, esse actante se atualiza e, imediatamente se realiza
quando, para fazer uma simples demonstração à Tia da eficácia
do aparato técnico, um “tratorista” derruba uma árvore “fresca,
de casca clara”, gesto que provoca no Menino uma silenciosa
repugnância: “O Menino fez ascas”.
Se os Tios estavam do lado dos exterminadores dos seres vi-
vos – das árvores e da ave – quem teria incorporado a função de
destinador no episódio de seu encontro com o peru? Quem lhe
teria realçado o valor do objeto? Embora o enunciador deixe de
designar um ator específico para desempenhar esse papel, seus
termos são suficientes para configurar a axiologia que sustentou
aquela apreensão extraordinária. Desde a chegada dos persona-
gens ao local em que a cidade ainda estava por ser construída,
não foram propriamente os sinais de urbanização que levaram
o Menino a criar suas expectativas em relação à experiência da
viagem. Os conteúdos que de fato alimentavam seu imaginário
procediam justamente da natureza considerada hostil aos ideali-
zadores das obras de engenharia. Embora hospedado na pequena
casa que os “protegia” da mata selvagem, o Menino inspirava-se
nos mistérios daquela natureza para formular suas perguntas e,
consequentemente, instituir seus objetos: “das árvores que não
podem entrar dentro de casa. Altas, cipós e orquideazinhas ama-
relas delas se suspendiam. Dali, podiam sair índios, a onça, leão,
lobos, caçadores? Só sons. Um – e outros pássaros – com cantos
compridos. Isso foi o que abriu seu coração”.

63
semiótica à luz de guimarães rosa

R evelação do D estinador

Foram os conteúdos da mata que o prepararam para o ex-


traordinário encontro com o peru e que o fizeram ver a ave
com a intensidade descrita. A ausência de um ator discursi-
vo bem definido para preencher a função sintáxica em nada
prejudica a atuação do destinador persuasivo que reúne todas
as condições para fazer o destinatário-sujeito (o Menino) en-
xergar diretamente os valores (“grandeza”, “poder”, “beleza”,
“eternidade” etc.) associados ao objeto. Nesse sentido, de um
ponto de vista retrospectivo, pode-se verificar que aquilo que
parecia ter realizado uma “escapatória” do cotidiano, minucio-
samente planejada pelos familiares do protagonista, constituiu
na verdade uma típica “fratura”, daquelas que retiram o sujeito
de sua trajetória de vida e o colocam em contato direto com
um objeto desejado, mas não esperado. Nesse caso, a partir do
estímulo objetal, todo o esquema narrativo se reconfigura, com
um destinador (os mistérios e fantasia provenientes da nature-
za local) fazendo o destinatário-sujeito atingir uma realização
plena, ao reconhecer no objeto (o peru) justamente os valores
necessários à composição de sua própria identidade. O engano
desconcertante do personagem principal – justificável, diante
dos contratos firmados no início da novela – foi ter confun-
dido os atores que de fato haveriam de preencher a função de
destinador. Na realidade, em lugar dos Tios, sempre estiveram
presentes os desígnios da natureza.
Esse remanejamento atorial exige do Menino exaustiva ela-
boração psíquica que, em termos tensivos, corresponde a um
processo de desaceleração, de transformação da surpresa em es-
pera. Ele sente-se cansado e precisa de tempo para poder com-

64
a verdade extraordinária – “as margens da alegria”

preender, pela voz do enunciador, que sua experiência extraor-


dinária foi o apogeu de um programa narrativo – realizado no
contrafluxo do projeto dos Tios –, cuja perspectiva de iteração
foi friamente podada pela ação, mais estabanada que voluntária,
dos antagonistas. E, aos poucos, compreende também que sua
viagem como um todo reiterava as imperfeições do cotidiano,
com suas insignificâncias e frustrações. O contato acidental com
o peru havia permitido a fratura desse cotidiano e a atualização
de valores já existentes em escala virtual. A mata, inóspita aos
engenheiros encarregados da nova cidade, teria sido então o ator
mais definido que, representando a natureza, assumira a função
de destinador do feliz encontro.
A volta ao plano dessemantizado da vida sem grandes en-
levos fica bem circunstanciada com a aparição, já no fim do
conto, de um novo peru, sem o mesmo poder de atração do an-
terior: “faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a
beleza esticada do primeiro”. Essa ave tem agora outra função.
Mais do que trazer um consolo ao Menino por lhe despertar a
lembrança do outro peru, sua presença, arremedando o origi-
nal, serve na verdade para consolidar a noção de adversidade
na consciência do personagem e, igualmente, para bem esta-
belecer sua posição narrativa diante de um mundo que come-
çava a se tornar um pouco mais compreensível: “alguma força,
nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma”. Esse
peru imperfeito pertencia à instância do antissujeito, na qual
operavam seus Tios e os demais trabalhadores da nova cidade.
Tanto que a ave movera-se com “ódio” em direção à “cabeça
degolada” de seu semelhante para bicá-la com a ferocidade de
um inimigo mortal.

65
semiótica à luz de guimarães rosa

M undo C otidiano e M undo E pifânico

A comparação figurativa das duas aves põe em destaque as


diferenças e as dependências que mantêm o mundo cotidiano e o
mundo epifânico em fases de distanciamento e de aproximação.
O novo peru, com suas insuficiências (“Menor, menos muito”),
confirma que o Menino está inserido no espaço das imperfeições,
onde a evolução do sujeito esbarra sempre nas resistências im-
postas por um antissujeito, mas demonstra também que sua visão
de um mundo epifânico, sem intervenções antagonistas, depende
justamente desse lugar de observação, imerso numa rotina pouco
semantizada. É o novo peru quem destrói de uma vez por todas
a esperança do Menino de rever a ave perfeita, da qual expõe a
cabeça degolada, mas, ao mesmo tempo, é quem lhe permite, por
meio de uma comparação precisa das duas instâncias, constatar
que a perfeição é um valor à parte, associável a outros objetos,
desde que esses se definam em esquemas narrativos especiais,
fora do espaço cotidiano.
Finalmente, a distinção dos dois mundos esclarece também
a relação de pressuposição que há entre eles: o mundo epifâni-
co define-se como elemento englobado, que pressupõe o mundo
cotidiano, englobante. Nesse sentido, ao entrar em contato com
um acontecimento extraordinário, o sujeito se deixa envolver por
um arranjo actancial particular, cuja dinâmica obedece a delimi-
tações rigorosas de espaço e tempo: domínio restrito e duração
efêmera. Como já dissemos, o espaço englobado figura como
uma concessão do espaço englobante. Desse modo, a sensação de
plenitude do sujeito que vive uma experiência extraordinária é
um estado durativo com demarcações precisas de começo e fim.
Antes do começo e depois do fim existe o mundo cotidiano, do

66
a verdade extraordinária – “as margens da alegria”

qual esse sujeito jamais se desvencilha. Ao contrário, como já fri-


samos, o ator que se entrega a essa espécie de apreensão estética
ocasional tem consciência de que participa simultaneamente de
dois percursos narrativos, um no mundo epifânico e outro no
mundo cotidiano.
Do ponto de vista tensivo, o mundo cotidiano caracteriza-
-se pela profusão de limites – que instruem, no nível narrativo, a
função de antissujeito – que conturbam os intervalos durativos e
a evolução contínua do sujeito em direção à conjunção definitiva
(a figura típica dessa evolução é o “progresso na vida”). O mundo
epifânico valoriza o intervalo, ou seja, uma porção de tempo e
espaço em cujo interior só transitam continuidades, as mesmas
que instruem, no nível narrativo, o êxito das interações entre des-
tinador → destinatário e sujeito → objeto. Entretanto, por estar
incrustado no mundo cotidiano, esse intervalo tem como destino
inexorável um limite, ou seja, sua própria finalização.
Partícipe dos dois mundos e sobretudo engajado na dinâ-
mica fragmentada do dia a dia, o ator vive, ao mesmo tempo, a
duração estética proporcionada pelo acontecimento extraordiná-
rio e a urgência de sua finalização, afinal, tudo não passa de um
intervalo. Nesse sentido, embora seja um caso de conjunção, esse
gênero de encontro possui uma cifra inevitavelmente tensiva, na
medida em que está sempre prestes a acabar.
Ao sabor dos acontecimentos e sem condições de conciliar os
dois mundos em seu imaginário (“O Menino não entendia”), o
protagonista demonstra, assim mesmo, que conseguiu absorver
da experiência algumas conclusões de imediata aplicação às eta-
pas seguintes de sua vida. Ele já consegue conceber objeto e valor,
descolados um do outro, e admitir que este valor pode ser regido
por velocidades variáveis e por regimes iterativos que só ajudam

67
semiótica à luz de guimarães rosa

a preservar o efeito de eternidade. De fato, diante das mesmas


condições narrativas – em especial, sob a influência do destina-
dor transcendente “mata” – que o permitiram distinguir no peru
uma verdade extraordinária, o Menino procede à transferência
do valor perfeição a outro objeto, um vagalume, cuja figura fugaz
lhe sugere tratar tal valor como uma combinatória de instanta-
neidade e iteratividade: “Voava, porém, a luzinha verde, vindo
mesmo da mata. O primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim,
era lindo! – tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante,
indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria”.
A exuberância do peru, sua materialidade farta ocupando
toda a cena descrita anteriormente, aparece agora reduzida a seus
traços essenciais:
1. Um mínimo de massa flutuando no espaço, o suficiente
para ser apreendido pela visão.
2. Um mínimo de tempo, o suficiente para que se processe
o envolvimento pleno entre sujeito e objeto. A interrupção pre-
coce do contato do personagem com o peru ensinou-lhe que a
alegria tem sempre suas margens, mas que essas não invalidam
a profundidade da experiência. Ao contrário, faz parte do estado
de espírito do encontro a possibilidade tensa de precipitação do
seu término.
3. Uma iteração pressuposta. O que garante o efeito de eter-
nidade do acontecimento extraordinário é sua integração num
sistema de presença que se manifesta com graus diferentes de
densidade. Um objeto realizado com alta densidade de presença,
logo se integra ao sistema com menos densidade (potencializado)
e assim permanece na memória do sujeito durante sua trajetória
no mundo cotidiano, até que se virtualiza como uma possibilida-
de de retorno e, então, se atualiza como necessidade premente.

68
a verdade extraordinária – “as margens da alegria”

Abre-se, por fim, o caminho para uma nova realização. A eterni-


dade diz respeito a essa permanência no sistema (ou na memó-
ria) e, portanto, à inserção do objeto numa dinâmica iterativa:
ele deve ressurgir, de tempo em tempo (“outra vez em quando”),
com toda a sua densidade de presença. Mas o Menino ainda des-
cobre, numa escalada de abstrações, que não é propriamente o
objeto que reaparece, mas sim o seu valor (com seus coeficientes
sintáxicos) materializado em objetos diferentes.

C onclusão

A “verdade extraordinária” com suas “margens” permite-nos


conceber essas experiências excepcionais eufóricas como pequenos
segmentos englobados por demarcações ao mesmo tempo recentes
e iminentes: nem bem começam já estão prestes a terminar.
O conceito de “imperfeição”, que está na base das práticas
dessemantizadas do mundo cotidiano, tem um papel essencial
na compreensão daquilo que move o sujeito em direção aos
acontecimentos epifânicos ou que o atrai inesperadamente,
roubando-o por alguns instantes de sua rotina. É negando a im-
perfeição e manifestando sua ânsia de completude, de ser uno
e de poder romper de uma vez por todas com as rupturas que o
mantém afastado do objeto – enfim, manifestando o seu ímpeto
de alcançar esse estágio de suspensão das paradas –, que o sujei-
to se predispõe a responder sensivelmente aos breves sinais da
perfeição. Ele os apreende no quadro de narrativas-relâmpago,
realizadas num espaço englobado e com um sistema de presen-
ça actancial muito bem definido (antissujeito potencializado e
destinador atualizado).

69
semiótica à luz de guimarães rosa

A efemeridade dos sinais epifânicos deve-se à simultaneidade


dos dois percursos narrativos, cotidiano e epifânico, no imaginá-
rio do sujeito e ao fato de o primeiro tender sempre à superação
dos limites, impostos por forças antagonistas, e portanto à evolu-
ção ininterrupta, enquanto o encontro epifânico representa um
intervalo, uma duração sem limites internos, que, por ser intenso
– a alta densidade de presença retém o progresso do espaço en-
globante –, tende a ser comprimido e, por fim, suprimido pelo
mundo cotidiano. Em termos figurativos, podemos dizer que o
mundo epifânico é um sinal de harmonia, já que não há solução
de continuidade entre sujeito e objeto, mas o preço dessa harmo-
nia é a extinção do sentido, pois, integrado completamente ao
objeto, o sujeito não vê razão para seguir em outras direções – em
outros sentidos.

70
3. O E ncontro do R itmo –
“O s C imos ”

I ntrodução

Em “Os Cimos”, Guimarães Rosa aprofunda sua reflexão


sobre as precondições do sentido gerado por um acontecimento
extraordinário e introduz o que talvez possamos chamar de dialé-
tica tensiva (em oposição à relação dialética entre categorias), ou
seja, aquela que envolve seleção de valores aspectuais por parte do
enunciador, simultaneidade de processos narrativos antagônicos
e oscilação na densidade de presença das funções actanciais.
Essa novela, a última do volume Primeiras Estórias, dá conti-
nuidade às indagações elaboradas em “As Margens da Alegria”, a
primeira do livro, numa espécie de recomposição do cenário fí-
sico e dos principais personagens ali construídos. Em ambas, o
“Menino” e seus Tios (nesta última, não há a presença da Tia)
se hospedam na casinha provisória situada no lugar onde se er-
gue uma grande cidade. Em vez do aparecimento (in)esperado do
“peru” no terreiro da casa, que constitui o núcleo de “As Margens

71
semiótica à luz de guimarães rosa

da Alegria”, desta vez, temos o surgimento de um “tucano” nos


cimos das árvores, exercendo funções bem próximas às da outra
ave. Mas não é a figura do peru que gera o ritmo e a sintaxe pró-
prios do comportamento do tucano e sim a visão do “vagalume”
(“tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se”),
no desfecho do primeiro conto. A iteração luminosa promovida
pelo inseto, seu caráter fugaz, sua ocorrência nas alturas, bem
como sua partida iminente perfazem uma correspondência quase
perfeita com as funções que definem a aparição recorrente do tu-
cano. Inseto e ave constituem, “outra vez em quando, a Alegria”.
A estratégia do enunciador em “Os Cimos” também parece
ser a mesma de “As Margens da Alegria”: valer-se da visão do
Menino para verificar todos os ângulos implicados na apreensão
de um acontecimento extraordinário. Ao contrário da primei-
ra viagem, “inventada no feliz”, esta transcorre sobre um pano
de fundo sombrio. O Menino tem consciência de que sua Mãe
está enferma e de que, ele próprio, está sendo poupado pelos fa-
miliares de sofrimentos possivelmente prestes a ocorrer. Daí sua
repentina viagem com o Tio e a excessiva complacência dos adul-
tos que o acompanham. O olhar infantil do protagonista não o
impede de captar sutilezas de sentido no ambiente que o circun-
da: o aumento de atenção e carinho por parte do Tio e da equipe
provoca-lhe imediatamente a desconfiança de que algo terrível
está para acontecer (“Era assim: alguma coisa, maior que todas,
podia, ia acontecer?”).
A solicitude dos adultos, também presente nas duas nove-
las, adquire funções específicas nos momentos iniciais de cada
história. Em “As Margens da Alegria”, os Tios e os tripulantes
da aeronave que os transportam ao canteiro de obras adulam o
Menino, preparando-o para um encontro “inesquecível” com a

72
o encontro do ritmo – “os cimos”

nova cidade edificada no coração da mata. Automaticamente, o


pequeno protagonista comporta-se como destinatário de todo
aquele cuidado, entusiasmado que está com as novidades que lhe
são anunciadas a todo instante. O fato de o sobrinho ter eleito
por fim a aparição do “peru”, em vez da cidade, como o aconte-
cimento supremo decorrente da atuação dos Tios, reconhecidos
até então como os principais promotores (e, portanto, destinado-
res) da viagem, não invalida a inocente adesão inicial do persona-
gem às intenções sinceras dos parentes.
Já em “Os Cimos”, a adulação dos adultos soa como disfarce de
uma situação ameaçadora da qual o Menino tem plena consciên­
cia. Em lugar da promessa de encontro, há o prenúncio horripilan-
te da separação, e, como se pode prever, o papel de destinador de
um programa narrativo que leva à ruptura do vínculo primordial,
mesmo que desempenhado por atores associados ao “bom” e ao
“bem”, facilmente se confunde com o de antidestinador.
No primeiro conto, o Menino desprende-se pouco a pouco
do liame narrativo com os Tios, à medida que se apega aos desíg-
nios da Natureza (configurada na mata virgem), da qual se sente,
no final das contas, destinatário. Em “Os Cimos”, o que está em
jogo é o elo natural. A função de destinador encarnada pela Mãe
não pode ser simplesmente transferida a outros personagens por
mais que se mostrem plenos de boas intenções: “A Mãe da gente
era a Mãe da gente, só; mais nada”. Em ambas as histórias, as in-
definições atinentes aos atores que exercem o papel de destinador
enfraquecem o sujeito (o Menino) incapacitando-o para a ação.
O sintoma figurativo decorrente é o extremo “cansaço” que
sempre acomete nosso personagem nas situações de crise, quan-
do não consegue reconhecer seus valores essenciais nas atitudes
dos adultos ou quando decresce sua confiança naqueles que o

73
semiótica à luz de guimarães rosa

cercam. Em “As Margens da Alegria”, o cansaço sobrevém no


meio da novela, após a inexplicável morte do “peru”. Em “Os
Cimos”, o sintoma já se manifesta na primeira cena, assim que o
sujeito entra no avião.
Afinal, já está em andamento um antiprograma narrativo
que mina o poder do destinador-mor, aquele que, ao que parece,
num passado recente, alimentava os sonhos do sujeito. Esse anti-
programa pressupõe, no nível tensivo, uma atonização progressi-
va da própria vida do personagem principal (“não queria brincar,
mais nunca”). Seu desamparo só não é total por ter trazido consi-
go um “bonequinho macaquinho”, mais que um brinquedo um
companheiro dos dias felizes, com o qual cultiva uma união qua-
se simbiótica que funciona como um antídoto às ameaças cons-
tantes da cisão fundamental. Ao mesmo tempo, porém, a criança
pode se ver no bonequinho como “um muito velho menino” já
sem vitalidade para reagir. O declínio aspectual aqui descrito ten-
de à minimização, ou seja, à anulação da intensidade. O único
valor que aumenta é a quantidade de menos1.

V ida do S ujeito e V ida do O bjeto

O plano da viagem com os parentes tinha o propósito ex-


plícito de reabilitação do ânimo daquele jovem que mal podia
compreender a possibilidade de ocorrências fatais. Coube ao Tio
promover o antiantiprograma, cuja cifra tensiva pode ser retrata-
da pela noção de restabelecimento (menos menos) de algum grau

1. Claude Zilberberg introduz os elementos mais e menos (e suas combinatórias) como


se fossem “sílabas” tensivas responsáveis pelos graus ascendência e descendência no
plano da intensidade (Zilberberg, 2006b: 44-45).

74
o encontro do ritmo – “os cimos”

de tonicidade no mundo íntimo do sujeito. A consequência na-


tural de sua intervenção se daria na abertura do espaço subjeti-
vo do Menino e na recuperação de sua temporalidade interna
voltada para o futuro – a esperança. Entretanto, desajeitado, o
personagem do Tio só tem olhos para uma temporalidade exter-
na, cronológica (“O Tio media tudo no relógio”), e seus sinais
de insincera despreocupação e de excessivo desvelo em relação
ao sobrinho só aumentam a munição do antiprograma narrativo
(“O Menino cobrava maior medo, à medida que os outros mais
bondosos para com ele se mostravam”).
Com percepção e sensibilidade bastante aguçadas, o jovem
mede o potencial “beligerante” do antiprograma pelo tanto de
intensidade que o indesejável acontecimento pode trazer (“algu-
ma coisa, maior que todas”). O “mais mais” pode atingir um nível
desmedido que precisa de algum modo ser atenuado. Para con-
trabalançar esse movimento ascendente em seu mundo interior, o
Menino leva em conta outras medidas que certamente poderiam
encetar leituras tensivas mais favoráveis do processo em curso.
Por exemplo, a gravata verde do Tio era bonita demais para
ser usada em momento de tristeza (“decerto não havia de ter
posto a gravata tão bonita, se à Mãe o perigo ameaçasse”). Essa
pequena exorbitância dava ares mais competitivos ao antianti-
programa empreendido pelo Tio, coisa que jamais os adultos
conseguiram voluntariamente demonstrar com os “excessivos de
agrado, sem o jeito nenhum”.
Assim também, no que diz respeito a seu próprio senti-
mento em relação à doença da Mãe, o garoto não podia deixar
transparecer qualquer indício de alegria, sob pena de se sentir
cúmplice de seus antagonistas. A presença contínua do bone-
quinho macaquinho junto de si, com sua aparência divertida,

75
semiótica à luz de guimarães rosa

era suficiente para lhe trazer algum “remorço” por infidelidade


à lembrança de seu ente mais querido. Por outro lado, livrar-se
dele não fazia o menor sentido. Tal como o próprio Menino,
aquele ser inanimado não merecia um abandono tão drástico,
ainda mais depois de figurar tanto tempo como o seu melhor
companheiro e até como o último guardião de seus vínculos
afetivos. Mas, de todo modo, não custava nada diminuir um
pouco o seu coeficiente de alegria, eliminando-lhe o chapeuzi-
nho com a pluma. Agora, um pouco menos engraçado, o bone-
quinho se adequava às apreensões do momento.
Do ponto de vista da extensidade, o Menino se concentra
num espaço subjetivo mínimo, totalmente alheio às imensas
paisagens que poderiam ser vistas da janelinha do avião (“E o
menino estava muito dentro dele mesmo, em algum cantinho
de si”) e situado “muito para trás”, imagem que gera, no nível
discursivo, uma ambivalência espaço-temporal: sentado atrás
na nave e, ao mesmo tempo “atrasado” em relação ao tempo
presente vivido pelo Tio (que sempre consulta o relógio) e os
demais tripulantes. Seu tempo interno é outro e só pode ser
investigado num nível pré-narrativo. Sente que os aconteci-
mentos estão muito acelerados para que possa absorvê-los ou
ao menos captá-los com seus recursos perceptivos. Os fatos es-
capam de sua apreensão e, na realidade, nem sequer lhe atraem
a atenção. Tudo se mostra atonizado – ou minimizado – nessa
direção temporal. Seu desejo é não só parar o tempo, mas tam-
bém fazê-lo retroceder até um ponto em que possa restaurar o
vínculo materno ou, em termos semióticos, recuperar o acordo
com o destinador, aquele que o faz ser (e fazer) no mundo.
Essa interação subjetiva é a condição para que o Menino se
organize e possa, então, reorientar sua relação com os objetos.

76
o encontro do ritmo – “os cimos”

Em seu momento presente, há um descompasso entre vida do


sujeito e vida do objeto. A primeira precisa de uma pausa e, mais
que isso, um estágio nessa suspensão do tempo até que as coisas
voltem a fazer sentido. A outra vida, eminentemente cronológica,
está atrelada à sucessão dos minutos e exige do sujeito um anda-
mento compatível, sob pena de perder suas melhores oportuni-
dades. Vivendo a vida do objeto, o Tio se guia pelo relógio. Sem
outra opção a não ser preservar a vida do sujeito, o Menino clama
por uma desaceleração que, em seguida, poderia se converter em
parada ou até em retorno do tempo: “A vida não parava nunca,
para a gente poder viver direito, concertado?” (grifos nossos). Na
primeira aparição, o termo refere-se à vida do objeto; na aparição
verbalizada, à vida do sujeito.
Mas o desejo de parada também é dosado no âmbito da
intensidade. Um modo de se retirar da vida do objeto seria en-
tregando-se ao sono, como um porto seguro: “A gente devia
poder parar de estar tão acordado, quando precisasse, e ador-
mecer seguro, salvo” (grifos nossos). Na expressão “tão acorda-
do”, o que está em jogo é o alto grau de vigília inviabilizando
o sossego. “Parar”, no caso, significa “diminuir esse grau”. Mas
os efeitos da vida do objeto são implacáveis e exigem o aumen-
to do índice de vigília por meio da figura dos “olhos abertos”:
“Tinha de tornar a abrir demais os olhos, às nuvens que ensaiam
esculturas efêmeras” (grifo nosso).
Logo depois, o desejo de parada projeta-se no voo do avião
(“que parecia estar parado”) com tamanha energia que, des-
ta vez, faz o tempo retroceder na busca do vínculo perdido: “O
avião então estivesse parado voando – e voltando para trás, mais,
e ele junto com a Mãe, do modo que nem soubera, antes, que o
assim era possível” (grifo nosso). O advérbio em itálico ajuda-

77
semiótica à luz de guimarães rosa

-nos a entender a possibilidade de conjunção como fruto de maior


intensidade na retroação. Por fim, admite que, na vida do objeto,
não há como lançar mão do expediente de recuo do tempo para
abrandar o golpe do destino (“Ainda que a gente quisesse, nada
podia parar, nem voltar para trás, para o que a gente já sabia, e
de que gostava”). Só lhe resta, portanto, continuar operando no
âmbito da vida do sujeito.
Não se trata aqui apenas da conjunção com o objeto ou da
recuperação do acordo com o destinador que, para nossos fins,
correspondem à mesma continuidade actancial. O que está em
foco é a intensidade do vínculo promovendo a mais ampla rea­
lização do sujeito em relação aos demais actantes de seu pro-
grama narrativo. Ora destinador, ora objeto, o ator Mãe, nesse
tempo regredido, encontra-se em fusão perfeita com seu des-
tinatário-sujeito, o ator Menino, atingindo uma densidade de
presença capaz de anular qualquer ação antagonista: “Soubesse
que um dia a Mãe tinha de adoecer, então teria ficado sempre
junto dela, espiando para ela, com força, sabendo muito que
estava e que espiava com tanta força, ah. Nem teria brincado,
nunca, nem outra coisa nenhuma, senão ficar perto, de não se
separar nem para um fôlego, sem carecer de que acontecesse o
nada” (grifos nossos).
Portanto, para as condições internas do Menino, aquilo que
atinge o máximo de integração – uma verdadeira fusão – na es-
fera da extensidade, ainda é pouco para se precaver das ameaças
de ruptura. Por isso introduz um acréscimo de intensidade (mais
mais), uma espécie de “excedente juntivo”, como anteparo ao pe-
rigo iminente: “Como sentia: com ela, mais do que se estivessem
juntos, mesmo, de verdade” (grifo nosso).

78
o encontro do ritmo – “os cimos”

L uta C ontra a V ulnerabilidade

O controle do próprio pensamento parece ser a única arma


do filho “tão sem mãe”. É nesse plano que consegue preservar
o vigor do seu vínculo e, por extensão, a presença do destina-
dor em sua trajetória pessoal. Só não pode baixar a guarda. Já
percebeu que o excesso de zelo dos adultos é parte do jogo an-
tagonista, visto que mina suas forças e, ao mesmo tempo, mani-
festa a clara intenção de mantê-lo distraído. Em seu imaginário,
o antiprograma – que gera o acontecimento ruim – conta com a
dispersão e a atonização de seus elos afetivos para entrar em cena
com todo o peso. A densidade de presença do antissujeito é tanto
maior quanto mais rarefeita se mostrar a instância do destinador
e dos valores emissivos. Nessa linha de consciência, previne-se
até contra os brinquedos infantis: “Enquanto a gente brincava,
descuidoso, as coisas ruins já estavam armando a assanhação de
acontecer: elas esperavam a gente atrás das portas”.
Essa resistência, que na ordem figural2 se resume em sustentar
a tonicidade da vigilância, revela-se na ordem figurativa como um
esforço supremo do Menino para não deixar o corpo à mercê do
chacoalhar ininterrupto do jeep, durante as saídas com o Tio. Do
mesmo modo, mantém os olhos bem fechados para evitar a poei-
ra indesejada. Confirmando a posição adversa que o sobrinho em
seu âmago lhe imputa, o engenheiro, com a melhor das intenções,
recomenda-lhe que reduza a intensidade dessa resistência e que re-
laxe o corpo para suavizar os efeitos daqueles balanços inevitáveis.
Essa adaptação ao que vem de fora poderia lhe oferecer mais con-

2. O termo “figural” diz respeito a valores subjacentes às figuras discursivas (Greimas e


Courtés, 1986: 92-93).

79
semiótica à luz de guimarães rosa

forto e bem-estar (“o Tio disse que ele não devia se agarrar com tão
tesa força, mas deixar o corpo no ir e vir dos solavancos do carro”
– grifo nosso).
Mas a estratégia do Tio colide com a do Menino que não vê
segurança alguma na descontração. Seria deixar às forças antago-
nistas um ponto expugnável. Único aspecto da argumentação do
parente que lhe cala fundo é a possibilidade de ele também ser aco-
metido por uma doença grave, caso se mantenha invulnerável aos
estímulos externos. Sua preocupação com a tal doença é de ordem
extensiva: “como ia ficar, mais longe da Mãe, ou mais perto?”
Esse espaço transitório, das indefinições, é o domínio cons-
tante de sua atual existência subjetiva. Do ponto de vista narrati-
vo, o Menino é um “soldado” que perdeu contato com a base e se
sente à deriva (sem direção), apenas se esquivando, para ganhar
tempo, das investidas do antissujeito. Nada lhe parece ter sentido
enquanto não restabelecer a conexão com o destinador.
Mas a vivência dessa fase passageira, em que se encontra ao
sabor dos acontecimentos, é um constante ir e vir entre sonho
e realidade, entre “não-estar-mais-dormindo e não-estar-ainda-
-acordado”, que lhe permite “receber” pensamentos bastante im-
prováveis em sua faixa de idade (“feito ele estivesse podendo co-
piar no espírito ideias de gente muito grande”). E suas indagações
incidem justamente sobre a apreensão dos acontecimentos: “que
a gente nunca podia apreciar, direito, mesmo, as coisas bonitas ou
boas, que aconteciam. Às vezes, porque sobrevinham depressa e
inesperadamente, a gente nem estando arrumado. Ou esperadas,
e então não tinham gosto de tão boas, eram só um arremedado
grosseiro. Ou porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam tam-
bém, de lado e do outro, não deixando limpo lugar. Ou porque
faltavam ainda outras coisas, acontecidas em diferentes ocasiões,

80
o encontro do ritmo – “os cimos”

mas que careciam de formar junto com aquelas, para o completo.


Ou porque, mesmo enquanto estavam acontecendo, a gente sa-
bia que elas já estavam caminhando, para se acabar, roídas pelas
horas, desmanchadas”.

T eoria sobre os A contecimentos

São nada menos que cinco razões, todas de natureza tensiva,


pelas quais não chegamos a apreciar plenamente os bons acon-
tecimentos:
1. “porque sobrevinham depressa e inesperadamente, a gente
nem estando arrumado”.
O acontecimento, no plano do objeto, corresponde ao sobre-
vir, no plano do sujeito (Zilberberg, 2006b: 214). A alta veloci-
dade própria do acontecimento confere ao objeto um já-ser que
colide com o não-ser-ainda do sujeito caracterizado pela espera
(Valéry, 1973: 1290). Vive-se então a hegemonia da surpresa: a
velocidade verificada é maior que a velocidade presumida (Zil-
berberg, 2000: 177), fenômeno que afeta a capacidade humana
de ordenação temporal. Até que o sujeito consiga refazer a conti-
nuidade repentinamente subtraída de seu mundo subjetivo, pre-
valece o sentimento de “desarrumação” interna com o qual lhe é
difícil apreciar os fatos externos.
Nesse sentido, o acontecimento (bem-vindo ou indeseja-
do) traz consigo um valor de precipitação que retira o sujeito de
seu próprio fluxo constante de vida e o faz, a contragosto, saltar
etapas. A perda de segmentos temporais subjetivos, cujo enca-
deamento garante a consciência do ser no mundo, produz nesse
sujeito lacunas de identidade que precisam ser preenchidas. Não

81
semiótica à luz de guimarães rosa

é por outra razão que o indivíduo surpreendido por algo se põe


imediatamente a reconstituir a duração omitida na esperança de
reassumir o controle do seu tempo interior, vale dizer, de sua
própria identidade. “Arrumar-se” para avaliar um acontecimen-
to corresponde a desacelerar o que se apresentou de modo exces-
sivamente veloz e a transformar o sobrevir em devir.
De acordo com essa primeira acepção, o acontecimento per-
tence à vida do objeto cujo descompasso com a vida do Menino
já apontamos anteriormente. A impotência desse personagem no
que tange a estancar o escoamento descontrolado do tempo con-
trasta com a extrema desenvoltura do Tio, que se serve do reló-
gio para manter domínio total sobre a evolução cronológica dos
fatos. Essa impotência não impede, como já vimos, que o sobri-
nho imagine situações de parada ou até de retorno do tempo que
restabelecem, em sua mente, um sistema de presença actancial
ideal para a fruição dos bons acontecimentos. Nele, reatualiza os
elos contratuais com o destinador, tão plenamente atorializado
na figura materna e, só assim, sente-se “arrumado” para promo-
ver sua escapatória, sua espera do inesperado, contando com o
devido domínio do tempo interior.
2. “Ou esperadas, e então não tinham gosto de tão boas, eram
só um arremedado grosseiro”.
Nesse caso, a velocidade realmente verificada do aconteci-
mento é igual ou menor que a velocidade presumida pelo sujei-
to. O traço impactante próprio de todo acontecimento dilui-se
numa espécie de ordem implicativa (se… então), muito próxima
das leis lógicas e gramaticais que determinam nosso ritmo co-
tidiano de vida e comunicação. Representando a espera do es-
perado, esse pseudoacontecimento apresenta baixa tonicidade e

82
o encontro do ritmo – “os cimos”

tendência à rarefação, ou seja, a misturar-se com as ocorrências


diárias que pouco retêm nossa atenção.
Ainda assim, segundo a reflexão do Menino, esses eventos
são lançados (por alguma instância) como fatos surpreendentes,
verdadeiras iscas, para desviar-nos dos projetos mais consistentes
que, no plano narrativo, requerem a atualização de um destina-
dor. Se nos chamam a atenção, porém, é porque identificamos ali
sinais de uma intenção antagonista: trata-se de “um arremedado
grosseiro” criado para nos iludir. Na novela “As Margens da Ale-
gria”, essa função tem como figura mais expressiva o segundo
peru que é imediatamente avaliado pelo Menino como um im-
postor. Durante a apreciação desse tipo de ocorrência, enquanto
cresce a densidade de presença do antissujeito, enfraquece a do
destinador. O efeito discursivo é sempre o de um “mau” aconte-
cimento. Reconhecida a função, desvendado o antiprograma em
andamento, o grau de tonicidade do fenômeno tende a zero.
3. “Ou porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam tam-
bém, de lado e do outro, não deixando limpo lugar”.
A terceira razão é de ordem extensiva. Do ponto de vista es-
pacial, os bons acontecimentos acham-se sitiados pelos maus, o
que lhes fecha a possibilidade de expansão unilateral. O “inimi-
go” reside em toda a vizinhança e qualquer passo em falso signi-
fica atravessar a fronteira proibida. Do ponto de vista temporal,
os acontecimentos eufóricos evoluem em concomitância com os
disfóricos (“prosseguiam também”), mas com eles não se mistu-
ram nem se combinam. As oposições paradigmáticas (ou… ou)
adquirem onipresença, de maneira que nunca se configura um
acontecimento excluído. A ameaça é permanente e, por isso, a
boa surpresa facilmente se converte em susto, enquanto, de sua

83
semiótica à luz de guimarães rosa

parte, a apreciação se processa ao mesmo tempo com pouco pra-


zer e muito desassossego.
Contrariando o senso comum, os bons e os maus aconteci-
mentos obedecem aqui a uma correlação conversa3: quanto mais
evoluem os primeiros, mais evoluem os últimos. A consciência
desse processo mantém o Menino em constante vigília. Deixar-
-se envolver, sem maiores precauções, pelos bons acontecimentos
significa abrir um flanco para o ingresso dos maus, que crescem
na mesma proporção. Resta-lhe, então, promover o fortalecimen-
to (a tonificação) de seu território tensivo.
4. “Ou porque faltavam ainda outras coisas, acontecidas em
diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com aque-
las, para o completo”.
A consistência dos bons acontecimentos depende de sua in-
tegração com outros de mesma natureza, ocorridos em circuns-
tâncias temporais diversas. Mais uma vez, convoca-se o plano da
extensidade, mas agora com o propósito de realmente estabelecer
ampla combinação sintagmática (e… e), como se a meta fosse
encadear valores já vividos e integrados para, enfim, harmonizar
o território tensivo em que despontam os novos eventos. Esses
elos de continuidade, que servem de base para a apreciação do
acontecimento, são os mesmos que, no nível narrativo, assegu-
ram a confiança e os acordos entre destinador e destinatário-su-
jeito. Respondem, portanto, pela plenitude juntiva necessária à
recuperação da identidade do sujeito (o Menino, no caso) e pelo
aumento da densidade de presença do destinador em detrimento
das forças antagonistas.

3. Para o exame das correlações inversa e conversa, recomendamos a leitura de Fonta-


nille e Zilberberg, 2001: 26-28.

84
o encontro do ritmo – “os cimos”

Nessa nova condição, reabilita-se a correlação inversa entre


bons e maus acontecimentos: o progresso dos primeiros corres-
ponde ao retrocesso dos últimos. Apegado intuitivamente a essa
ideia, o Menino prepara-se, sem o saber exatamente, para a vi-
vência epifânica (a visão do tucano), aquela que o afasta tempo-
rariamente das apreensões do momento.
5. “Ou porque, mesmo enquanto estavam acontecendo, a
gente sabia que elas já estavam caminhando, para se acabar, roí-
das pelas horas, desmanchadas”.
A última razão possui o formato descrito por Saussure em sua
teoria da silabação. De fato, durante a manifestação da cadeia fô-
nica que conduz o significante verbal, toda explosão anuncia uma
implosão iminente – e vice-versa. O auge do efeito de ponto vo-
cálico (abertura sonora maior ou menor em relação aos fonemas
vizinhos) determina o fechamento sonoro subsequente, responsá-
vel pelo efeito de fronteira silábica (Saussure, 1971: 71). O linguista
suíço identifica, por trás desse processo, as funções de soante e con-
soante, cada uma tendo como destino as propriedades da outra.
Essa forma de evolução se reproduz no plano do conteúdo
e pode ser analisada tanto no nível tensivo como no narrativo.
No primeiro caso, temos o ritmo aspectual que faz de nossa vida
um continuum portador de limites e durações, de paradas e re-
tomadas, com cuja alternância já nos habituamos a conviver: o
que dura (continuidade) tende a cessar (parada) e o que cessa
tende a recobrar o fluxo (parada da parada) e assim por diante.
No segundo, temos os liames actanciais que sustentam o progra-
ma narrativo (por exemplo, destinador → destinatário → sujei-
to), barrados pelos mesmos liames que compõem o antiprogra-
ma (antidestinador → antidestinatário → antissujeito); aqueles
abrem o campo de ação do sujeito enquanto esses o fecham.

85
semiótica à luz de guimarães rosa

R elação do M enino com os A contecimentos

Imbuído desses ritmos, aspectual e narrativo, o Menino sente


que mal “explode” o acontecimento sua duração já começa a min-
guar pela natural conversão do sobrevir em devir. Um aconteci-
mento de grande impacto estabelece um máximo de mais numa
progressividade tensiva que absorve totalmente a atenção do su-
jeito. Entretanto, assim como todo efeito vocálico já traz a marca
da implosão ( > ), a recrudescência desenfreada de uma tonicida-
de tende a atingir um ponto de desativação do processo de ascen-
dência. É quando o mais se converte em demais (além da conta)
e imediatamente atualiza um basta (Zilberberg, 2006b: 94-95). O
que se ativa então é um processo de descendência tensiva, pelo
qual se retira do acontecimento um pouco de mais. No caso do
bom acontecimento, essa atenuação representa perda do primeiro
impacto positivo e ainda o início de uma atonização que, no limi-
te, pode reduzir o fato a um estado habitual sem maior significa-
do4. Esse parece ser o temor do Menino quando pensa na ação do
tempo decorrido sobre o acontecimento: “a gente sabia que elas
[as coisas] já estavam caminhando, para se acabar, roídas pelas
horas, desmanchadas”. Tudo ocorre como se o destino natural da
razão 1, vista anteriormente, fosse se transformar na razão 2.
Mas o Menino consegue entrever nesse percurso de descendên-
cia o intervalo. Como se a apreciação das “coisas bonitas ou boas”
só fosse possível num lapso de tempo mínimo, entre o impacto do
acontecimento propriamente dito e a sua assimilação. Mais preci-
samente, depois do acontecimento, mas antes de sua assimilação.
Esse “hiato”, que pressupõe alguma diminuição de velocidade da

4. A oposição entre “acontecimento” e “estado” aparece em F. Saussure (2004: 200).

86
o encontro do ritmo – “os cimos”

ocorrência sem que lhe seja acrescentada lentidão, só pode ser en-
tendido “com o coração”, concebe o Menino mais à frente.
Do mesmo modo, é com o coração que decide se reaproxi-
mar da Mãe simulando sua sanidade física e negando qualquer
opinião contrária: “Dentro do que era, disse, redisse: que a Mãe
nem nunca tinha estado doente, nascera sempre sã e salva!” Sem
dar atenção às notícias objetivas, o filho aplica-se na reconstru-
ção do “lugar” materno em seu íntimo, como se disso dependesse
a continuidade de sua própria vida. Refaz o actante para esperar
o retorno do ator. Os sinais desse gesto já apareceram anterior-
mente na hipertrofia conjuntiva que, em passagem já comentada,
o Menino lamentava não ter cultivado: “Soubesse que um dia a
Mãe tinha de adoecer, então teria ficado sempre junto dela, es-
piando para ela, com força, sabendo muito que estava e que es-
piava com tanta força, ah”. Acrescentando mais ao mais conjun-
tivo (“mais do que se estivessem juntos, mesmo, de verdade”), ele
imaginava que poderia ter assegurado melhores condições para o
encadeamento dos bons acontecimentos.
Por outro lado, sua incansável vigília contra as “coisas ruins”
que, segundo a razão 3, caminham em sincronia com as boas, tinha
o intuito de reduzir o campo de ação do antissujeito ou, pelo me-
nos, retirar um pouco de sua potência igualmente vigorosa. Enfim,
fortalecendo o elo com o destinador, nosso herói aumenta o grau
de conjugação das coisas que concorrem para uma apreciação ple-
na do acontecimento (razão 4); ao mesmo tempo, mantendo-se
atento às táticas traiçoeiras das “coisas ruins” (“Enquanto a gente
brincava, descuidoso, as coisas ruins já estavam armando a assa-
nhação de acontecer”), consegue de algum modo frear suas atua-
ções e retirar um pouco de sua força de ocupação de espaço (me-
nos mais). Entre a exacerbação dos elos afetivos e a atenuação da

87
semiótica à luz de guimarães rosa

potencialidade antagonista, inaugura-se novo intervalo de onde,


talvez, o Menino pudesse apreciar as “coisas bonitas ou boas”.
De fato, sua primeira “claridade de juízo” – na qual desenvol-
ve a complexa análise já exposta sobre a impossibilidade de uma
apreciação satisfatória dos acontecimentos positivos ­– deu-se jus-
tamente no hiato entre “não-estar-mais-dormindo e não-estar-
-ainda-acordado”. A segunda claridade, a dos cimos das árvores,
que antecede e prepara sua visão epifânica, sobrevém na “entrema-
nhã” (crepúsculo pós-madrugada e pré-matinal), sobre o “alpen-
dre”, definido como um “passadiço, entre o terreirinho e a mata e
o extenso outro-lado”. É na delicadeza e fugacidade do intervalo
entre tempos, espaços e forças que o Menino se equilibra para, en-
fim, poder apreciar a coisa bonita que está prestes a acontecer.
A figura espacial de fundo é a do milagre, amparada pelas
acentuações do brilho e da altitude: “os cimos das árvores se dou-
ravam”. O conceito auxiliar é o da leveza que mantém as coisas
suspensas no ar até que a força gravitacional faça valer sua supre-
macia. E a unidade figurativa em primeiro plano é o esquivo tuca-
no que surge todos os dias numa hora precisa do alvorecer e logo
se vai após dez minutos de atuação saltitante no topo das árvores.
A estonteante visão do pássaro realiza-se no intervalo entre o
“inesperado” descrito na razão 1 e o “esperado” definido na razão
2. Se havia algum excesso de rapidez na imprevista aparição do
tucano, o Menino já se encarregara de diminuir levemente esse
impacto, o suficiente para torná-la apreensível no calor da hora.
Acreditar na Mãe sã e salva era “arrumar-se” para o aconteci-
mento, uma vez que fazia existir a função de destinador, con-
dição para o êxito da experiência, mesmo que o ator em si fosse
temporariamente pura criação do seu desejo fervoroso. Por ou-
tro lado, o “embrevecido instante”, cuja expressão já traz inscrita

88
o encontro do ritmo – “os cimos”

a brevidade do embevecimento, embora ceda um mínimo de sua


força impactante aos comportamentos preventivos do Menino,
em nenhum momento ganha um grau de superfluidade que pu-
desse descaracterizá-lo como acontecimento extraordinário.
Daí a emoção do personagem principal em poder deleitar-se
com a chegada do pássaro sem os incômodos que às vezes acom-
panham a surpresa (excesso de subitaneidade) e a espera (exces-
so de previsibilidade). O tratamento isotópico desse segmento
é farto em coordenadas visuais que oscilam das cores concen-
tradas na figura ínfima do tucano até a extensa luminosidade
celestial produzida pelo sol. Os olhares dos hóspedes da casa são
atraídos para o topo das árvores e, em seguida, desviados para o
horizonte oriental. O foco principal está na altitude (“cimo das
árvores”, “alto azul”, “topo”, “para cima”), mas também na le-
veza do voo (“Saltava de ramo em ramo”, “pulando no meio do
ar”, “supenso esplendidamente”, “a bola de ouro a se equilibrar
no azul de um fio”) e no brilho das cores (“alumiado amarelo”,
“meigos vermelhos”, “toda a luz era dele”, “cores pairantes”, “a
luz por tudo”).
Esses recursos discursivos de superfície descrevem com espe-
cial requinte o processo de abertura espacial que, no plano tensivo,
vem arejar a mente do Menino. Tudo começa com a focalização
do pássaro, como um ponto móvel mas altamente concentrado.
A figura que imediatamente emana dessa extensidade mínima é
a da luz no final do túnel. Em seguida, o foco se desloca para o
“outro imenso lado” e perfaz a abertura gradual do brilho até
atingir a extensidade máxima: “o meio-sol, o disco, o liso, o sol,
a luz por tudo”. Todas essas articulações são depreendidas pelo
personagem (“Apanhava com o olhar cada sílaba do horizonte”)
e acabam por conformar sua “claridade de juízo”.

89
semiótica à luz de guimarães rosa

T eoria do “F az de C onta ”

Esse grande momento de plenitude (fusão entre sujeito e


objeto), conquistado pelo Menino na efemeridade dos interva-
los já vistos, traz consigo um componente semiótico que não fez
parte da visão epifânica apresentada em “As Margens da Ale-
gria”. Ali, o Menino sentia-se apoiado por um destinador que
lhe permitia reconhecer o poder de atração do objeto, embora
se enganasse a respeito do verdadeiro ator que ocupava a men-
cionada categoria.
No caso de “Os Cimos”, o personagem não tem dúvida de
que um único ator é capaz de assumir a função de destinador
persuasivo e de avalizar as impressões sublimes que colhe da
visão do pássaro: sua Mãe em perfeito estado de saúde. Entre-
tanto, o enunciador deixa claro que, embora tenha atingido o
objeto em toda a sua extensidade, do tucano à resplandecência
solar, o filho não chega a sentir a presença materna ocupan-
do o lugar sintáxico que lhe fora reservado: “Mas não pudera
combinar com o vertiginoso instante a presença de lembrança
da Mãe – sã, ah, sem nenhuma doença, conforme só em ale-
gria ela ali teria de estar”. Não contou nem mesmo com seu
adjuvante de todas as horas, o bonequinho macaquinho, que
poderia ao menos servir de testemunha daquele acontecimen-
to excepcional.
Acontece que as providências que o Menino vem tomando
para poder atuar nos intervalos são suficientes para preservar a
categoria narrativa do destinador – e mesmo boa parte dos valo-
res esculpidos com os critérios de altitude, brilho e leveza –, mas
impotentes para recompor a figura do ator em si. Esta, afinal,

90
o encontro do ritmo – “os cimos”

depende de um “milagre”. Pois o enunciador aproveita esse mo-


mento decisivo para conceber uma articulação actancial ainda
não explorada pela semiótica e elaborá-la no decorrer de uma
seção apropriadamente intitulada “O Trabalho do Pássaro”.
Além de ser objeto de contemplação do Menino, do Tio e
dos acompanhantes, o tucano exerce um fazer que não se reduz
às suas práticas instintivas de ave. Todos os valores estéticos que
emanam de sua aparição atuam sobre o Menino de modo a fazê-
-lo recompor aspectos de seu universo subjetivo. Não seria em
razão desse fazer fazer que o enunciador deixa “escapar” a expres-
são “senhorzinho vermelho” numa das vezes em que se refere ao
tucano, logo após o primeiro contato?
Muito já se falou, desde o impacto causado pelo último li-
vro individual de Greimas, Da Imperfeição, que a emoção esté-
tica pressupõe uma certa inversão de tendências, uma vez que
o objeto contemplado parece adquirir forças ativas que des-
pertam a sensibilidade do sujeito (Zilberberg, 2006a: 144-145).
Este, por sua vez, encontra-se apassivado, apenas experimen-
tando as emoções provocadas pelo objeto. O enlevo emocio-
nado do Menino diante do que viu no topo da árvore confir-
ma essa alteração sintáxica, mas não deixa de abrir uma outra
frente de disposição dos papéis narrativos, conforme veremos
em seguida.
O ator que, de direito, ocupa a categoria do destinador é a
Mãe sã e salva. Entretanto, o desejo ardente do filho de tê-la em
seu posto reconstrói esse ator também com funções objetais.
Tudo que o menino mais quer é a recuperação da figura mater-
na. Não tendo poderes para lhe restituir a saúde nem para re-
troceder a uma época em que desfrutava plena conjunção com

91
semiótica à luz de guimarães rosa

o seu objeto maior, nosso herói “faz de conta”5 que sua Mãe
está presente na função de destinador e reativa essa categoria ao
menos para avalizar breves programas narrativos – talvez pro-
gramas de uso –, desses que permitem apreciar as coisas boas
nos intervalos entre tempos, espaços e forças. Já descrevemos,
em diversas passagens, a ginástica que o personagem principal
executa para reunir as condições de apreensão do acontecimen-
to milagroso no hiato entre os estados claramente definidos.
Acrescentemos, agora, que esse esforço produz, na verdade,
uma narrativa de mão dupla, na qual apenas ele, o Menino, se
estabiliza na categoria do sujeito.
Na primeira orientação, um simulacro da presença materna
– obtido a partir dos numerosos ajustes de intensidade e exten-
sidade elaborados pelo Menino desde o início de sua viagem à
“grande cidade” e por ele mantido mediante rigorosa vigilância
contra as ações antagonistas – permite-lhe contemplar o Belo (o
fascinante tucano), com alegria, num lapso de tempo reduzido.
Ou seja, no jargão semiótico, um destinador, ativo do ponto de
vista sintáxico (mas contendo apenas a sombra do ator), desen-
cadeia a ação (ou inação) de seu destinatário-sujeito (o Menino)
que se resume numa fruição emocionada do valor (a beleza) de
seu objeto (o tucano). O encontro desse objeto é um sinal evi-
dente de que os pontos vitais do programa narrativo (destinador/
destinatário-sujeito) estão despertos e atuantes para garantir o
êxito da experiência-limite descrita pelo enunciador.

5. “Fazer de conta” é a recomendação básica que o destinador transcendente por exce-


lência, Tio Man’Antonio, transmite a seus destinatários na novela “Nada e a Nossa
Condição”. Confira, aqui mesmo (pp. 30-33), o estudo específico do alcance desta
recomendação em Guimarães Rosa.

92
o encontro do ritmo – “os cimos”

Consumado o processo, inicia-se “o trabalho do pássaro”


que já mencionamos. Na orientação inversa, o tucano age como
destinador – no plano figurativo, esse “senhorzinho” surge nas
alturas, traz a luz, a leveza, a exatidão e ainda prenuncia o nascer
do sol – que leva o Menino, sempre na qualidade de sujeito, a
recompor a presença materna, agora como objeto, a partir dos
valores a ela associados. A reconstrução do ator-Mãe se apoia na
fé do filho, que, depois da visão do tucano, se torna obstinada
em virtude do imediato efeito especular da narrativa: o desfrute
da cena arrebatadora do pássaro demonstra que a instância do
destinador está operante no interior do sujeito, pois é dela que
vem o arcabouço estético que o permite apreciar o “embreveci-
do instante”. Nesse sentido, o tucano reforça no protagonista a
esperança de que o seu bem precioso esteja cada vez mais próxi-
mo. Daí em diante, a fé do Menino eleva-se acima dos fatos, de
tal modo que ele não mais reconhece as mensagens que possam
ameaçar sua certeza: “Mas, então, fosse o que fosse, o Menino,
calado consigo, teimoso de só amor, precisava de se repetir: que a
Mãe estava sã e boa, a Mãe estava salva!”
“Fazer de conta” que a Mãe sempre esteve presente em seu
mundo interno é a estratégia vital do Menino para superar a imo-
bilidade a que se sentia reduzido. Na verdade, “fazer de conta”
reflete a epistemologia rosiana que concebe as essências da vida
como resultados de pequenas narrativas, em geral intermitentes,
destinadas a manter o ser humano em atividade mesmo que o
Sentido de sua existência lhe seja sempre nebuloso. Esse ideário
não se mostra distante das constatações de grandes pensadores e
artistas quando refletem sobre as razões profundas que motivam
o seu trabalho. É fazendo de conta que, apesar de tudo, vale a pena
prosseguir que as ciências e as artes mantêm boas conquistas na

93
semiótica à luz de guimarães rosa

escala humana e, ao mesmo tempo, reiteram sua insignificância


para dar respostas definitivas às questões vitais. Uma boa hipóte-
se de pesquisa pode ser aquela que proporciona ao cientista uma
intensa atuação investigativa com possíveis achados, mesmo que,
ao final, ela em si seja refutada6.
A “hipótese” (ou simulacro) da Mãe sã e salva ajuda o Meni-
no a se afastar dos valores pesados, dispersivos e demasiadamen-
te terrenos, associados à “realidade” cotidiana (“Não suportava
atentar, a cru, nas coisas, como são, e como sempre vão ficando:
mais pesadas, mais-coisas – quando olhadas sem precauções”), e,
por conseguinte, lhe desobstrui a trajetória para o encontro com
as “coisas bonitas ou boas”: “Mas, esperava; pelo belo. Havia o
tucano – sem jaça – em voo e pouso e voo”. Em contrapartida,
como já vimos, a visão inebriante do pássaro e, em seguida, de
toda a luminosidade celeste, faz o Menino reconstruir o seu ob-
jeto maior, primeiramente, a partir de seus traços abstratos, ou
seja, do reconhecimento de uma força sintáxica efetiva que lhe
permite captar aqueles valores estéticos supremos; depois, pelo
progressivo investimento semântico daquela posição actancial
que se manifesta ora como destinador, ora como objeto.

E spelhamento de P rogramas N arrativos

Após o êxito do primeiro contato matinal com o tucano, o


Menino põe-se a negar terminantemente a doença da Mãe. Como
poderia ter tido aquela experiência epifânica se não dispusesse da
precondição para tanto? O verdadeiro trabalho do pássaro é o de
lhe proporcionar uma nova fase que não mais permite regressões:

6. Ver atrás, pp. 32-33, como C. Lévi-Strauss formula essa ideia.

94
o encontro do ritmo – “os cimos”

“Ainda que relutasse, não podia pensar para trás. Se queria atinar
com a Mãe doente, mal, não conseguia ligar o pensamento, tudo
na cabeça da gente dava num borrão”.
Cada nova aparição da ave e, em seguida, do sol, nos horá-
rios precisamente demarcados, reforça a crença e a premonição
do filho de que “a Mãe tinha de ficar boa, tinha de ficar salva!”
Se, por fim, a hipótese da salvação materna é confirmada, num
contexto mítico em que o crer vale muito mais que o saber, isso
não se deve apenas à encenação figurativa do milagre, pela qual
as forças que vêm das alturas e de um clarão luminoso atendem
ao forte desejo do Menino, mas sobretudo ao minucioso trabalho
de ajuste tensivo e de precaução narrativa por ele desenvolvido
desde o início da novela. Essa palavra, “trabalho”, transferida
metaforicamente ao pássaro tem a função de definir a segunda –
e principal – orientação narrativa: destinador (tucano) → sujeito
(Menino) → objeto (Mãe).
Mas o Menino intui que o êxito desse programa narrativo
principal depende da recorrência sistemática do programa au-
xiliar, cuja configuração básica – destinador (valores associa-
dos à Mãe) → sujeito (Menino) → objeto (tucano) – pressupõe
um “faz de conta” atorial, suficiente para manter ativa a sintaxe
actan­cial. Esse remanejamento recíproco de atores nas funções
de destinador e objeto só é possível quando há forte identidade
dos valores cultivados em ambos os polos. Nesse caso, as articu-
lações figurais dos “cimos” (altitude, leveza, luminosidade) po-
dem ser condensadas tanto na figura da ave como na figura da
Mãe. Portanto, reforçar uma das orientações já significa de algum
modo reforçar a outra. Apreciar a beleza do pássaro é alimentar o
pressentimento da presença materna.

95
semiótica à luz de guimarães rosa

Por isso, ao longo da seção “O Trabalho do Pássaro”, o me-


nino se programa constantemente para reviver com intensida-
de o seu encontro matinal com o tucano. Em cada experiência
renovam-se os traços figurativos da leveza (“em voo e pouso e
voo”), da altitude (“copa alta”) e da luminosidade (“luz de dou-
rada água”). Mas, desta vez, o Menino consegue manter em ati-
vidade o sistema de presença que fora prematuramente abortado
no conto “As Margens da Alegria”. Basta lembrarmos que seu
relacionamento com o peru só se efetivou numa única oportuni-
dade. Armou-se o sistema, a partir da alta densidade de presença
da ave em sua mente, mas não houve possibilidade de garantir o
seu funcionamento regular.
Agora, em “Os Cimos”, o encontro extraordinário se poten-
cializa e se reatualiza diversas vezes, o que o torna viável nos in-
tervalos das razões que, segundo o personagem, nos impedem
de apreciar “as coisas bonitas ou boas”. A visão se desfaz em dez
minutos, antes de se tornar demasiadamente esperada (razão 2),
e se refaz a cada manhã, em horário e local precisos, portanto
após qualquer possibilidade de precipitação (razão 1). Mesmo
por ocasião do primeiro surgimento do pássaro, o Menino já se
achava “arrumado” para o acontecimento: as funções do destina-
dor (ainda sem a materialização da Mãe) já tinham sido calibra-
das em seu íntimo.
A preservação das coisas boas proporcionadas por um encon-
tro especialmente marcante com o objeto (um encontro epifânico)
depende, como já vimos no capítulo anterior, dos modos de exis-
tência que regulam o campo perceptivo do sujeito. Logo depois de
uma conjunção plena entre sujeito e objeto, quando o aconteci-
mento adquire o seu grau máximo de densidade de presença, é ne-
cessário que esta se dilua em termos de tonicidade e se acomode no

96
o encontro do ritmo – “os cimos”

domínio de uma extensidade átona como forma de conservação de


seus efeitos impactantes (“Depois do encanto, a gente entrava no
vulgar inteiro do dia. O dos outros, não da gente”).
Em outras palavras, após a realização do encontro “perfeito”
sobrevém a potencialização da experiência na mente do sujeito, a
passagem do evento à memória, lugar onde transcorre a assimi-
lação da vivência extraordinária e de onde pode surgir novo an-
seio virtual de reatualização: “A tornada do pássaro era emoção
enviada, impressão sensível, um transbordamento do coração. O
Menino o guardava, no fugidir, de memória, em feliz voo, no ar
sonoro, até à tarde” (grifos nossos).

plenitude incompletude
(realização) (virtualização)

falta perda
(atualização) (potencialização)

A perda de densidade de presença é condição para que a


experiência de plenitude se mantenha no universo subjetivo do
sujeito. De acordo com nosso ritmo de vida introjetado, jamais
uma situação de êxtase emocional pode se alongar indefinida-
mente. Entretanto, se atenuamos sua presença, convertendo-a
em motivos associados às figuras da lembrança, da nostalgia ou
da saudade, essa situação de encontro pleno pode adquirir um
caráter permanente e, se for caso, recobrar de quando em quando
– e por alguns instantes – sua alta densidade de presença.
Manter-se nesse sistema de presença, que tem por base a jun-
ção, significa reconhecer que o objeto também possui aspectos ati-

97
semiótica à luz de guimarães rosa

vos que vão além de sua condição de acontecimento inesperado.


Não é por outro motivo, aliás, que o Menino rejeita a velocidade
excessiva apontada na razão 1. Ele pressente que aquele impacto
pode e deve ser renovado, e que o seu fazer ali não é unilateral, ao
contrário, concatena-se com as propriedades ativas do objeto. Há
o trabalho do Menino e o trabalho do pássaro que precisam ser
ajustados em nome de um projeto maior, a salvação da Mãe.
A atração exercida pelo tucano reproduz o poder de sedução
próprio dos objetos estéticos. No caso de uma canção, por exem-
plo, que nos sensibiliza e nos incute o desejo da reaudição, seu
encanto normalmente vai além desse primeiro contato e, mesmo
que a tenhamos ouvido reiteradas vezes, há um momento em que
nossas necessidades momentâneas se mostram satisfeitas, mas
isso não significa que, no dia seguinte, não queiramos repetir a
dose. Ao suspendermos a audição, nosso trabalho de assimilação
continua mas sentimos falta do trabalho do objeto, ou seja, da
canção que tanto agiu em nosso mundo subjetivo, remodelan-
do-o para outras experiências.
Portanto, aquilo que foi potencializado (presença transferi-
da à memória), e na sequência virtualizado (presença latente),
provoca o sentimento de falta (recomposição da presença) e a
necessidade da renovação do encontro. Dentro desse sistema de
presença, preserva-se o que podemos chamar de renovação das
novidades, ou seja, renovam-se as chances de conhecimento mais
apurado do “outro” e, ao mesmo tempo, cria-se um pequeno rito
(“hábito”, para alguns semioticistas7) de reencontros, nos quais

7. Eric Landowski propõe, nessa linha, uma interessante formulação para o conceito
de “hábito”: “O hábito é justamente esse processo de entrar em relação com a pre-
sença imediata do outro e, ao mesmo tempo, o meio de acesso ao sentido cultivado

98
o encontro do ritmo – “os cimos”

são aprofundados e fusionados os valores que fazem do sujeito e


do objeto uma só entidade.
Pois o tucano reúne em si as propriedades do impacto, que
atrai a atenção do Menino e dos habitantes da casa, e do rito,
que permite uma programação rítmica dos encontros matinais.
Ambas as características são sintetizadas na expressão “soência
de sobrevir”, cujo elo sintático interno desfaz a contradição entre
costume e acontecimento, como se este pudesse ser preservado
por aquele. É essa expressão ainda que traduz a atuação do Me-
nino no intervalo entre as razões 1 e 2, manobrando as etapas do
sistema de presença já descrito.
Além disso, o tucano não é apenas um representante das aves
arborícolas que desperta a curiosidade dos que vêm das grandes
cidades. Para o Menino, ele é um indivíduo selecionado de sua
comunidade, portador de valor absoluto, que desenvolve missão
bastante precisa: “Primeiro, aparecera por lá uma bandada de
uns trinta deles, vozeantes, mas sendo de-dia, entre dez e onze
horas. Só aquele ficara, porém, para cada amanhecer”.
A precisão de seus ressugimentos é o que gerou a noção
de “soência de sobrevir”, já que sempre “chegava, a-justo, a-
-tempo, a-ponto, às seis-e-vinte da manhã; ficava, de arvoragem,
na copa da tucaneira, futricando as frutas, só os dez minutos”,
quando então encerrava a missão do dia. Era suficiente para que o
Menino se habituasse um pouco mais com aquelas especificidades
que lhe pareciam vir de outro mundo, mas que lhe confirmavam
valores essenciais conciliados com o seu tempo e espaço internos.

na interação com os próprios elementos que definem sua alteridade. É por esse
motivo que, em vez de privar o objeto de sua novidade, ele [o hábito] a renova
do seu interior, como o efeito do ajuste entre as duas forças vivas e recíprocas que
caracterizam a relação entre o sujeito e o seu outro” (2004: 157).

99
semiótica à luz de guimarães rosa

O fascínio que sentia pelo tucano baseia-se, portanto, no re-


conhecimento de seus próprios valores no “outro” e, ao mesmo
tempo, na constatação de que esses contatos trazem também o
desconhecido, o diferente, o misterioso, enfim, a alteridade pro-
priamente dita, com a qual todos somos obrigados a conviver se
quisermos provar uma existência menos limitada. O Menino já
havia teorizado sobre isso nos termos da razão 4: talvez não pudés-
semos apreciar as “coisas bonitas ou boas… porque faltavam ainda
outras coisas, acontecidas em diferentes ocasiões, mas que careciam
de formar junto com aquelas, para o completo” (grifos nossos).

A M ãe de V olta

A convivência com o pássaro é um exercício de aceitação e,


mais que isso, de respeito e admiração pelos que procedem de
lugares ocultos e misteriosos, onde provavelmente estariam as
coisas que ainda não compreendemos e que, no entanto, par-
ticipam, com todos os seus segredos, da nossa vida cotidiana.
A presença do tucano significa também uma espécie de inter-
câmbio moderado com esse setor da existência que sempre será
indecifrável: “De dia, [o tucano] não voltava lá. Se donde vinha
e morava – das sombras do mato, os impenetráveis? Ninguém
soubesse seus usos verdadeiros, nem os certos horários: os de-
mais lugares, aonde iria achar comer e beber, sobre os pontos
isolados. Mas o Menino pensava que devia acontecer mesmo
assim – que ninguém soubesse. Ele vinha do diferente, só don-
de. O dia: o pássaro”.
Assim como o pássaro ressurge, nas alvoradas, dessas zonas
obscuras e desconhecidas e ainda traz um encanto irresistível,

100
o encontro do ritmo – “os cimos”

seus entes queridos bem que poderiam também reaparecer com


todo o esplendor desses mesmos locais inomináveis para onde,
provável e inexplicavelmente, haviam se retirado por algum
tempo. À medida que aprofunda o seu relacionamento com o
tucano e que o reconhece como representante de uma instância
transcendente, distinta da sua mas afinada com valores estéticos
e míticos semelhantes, aquilo que não passava de busca e atração
entre sujeito e objeto vai se transformando igualmente em sólido
acordo entre destinador e destinatário. Esse novo programa nar-
rativo prevê a volta triunfal da Mãe dessa “outra-parte, aonde as
pessoas e as coisas sempre iam e voltavam”.
Os sinais do tucano neutralizam todas as atuações antagonis-
tas concentradas nas más notícias que por vezes chegam ao co-
nhecimento do Tio. O Menino só se deixa conduzir pelos signos
de leveza que a pequena ave emite: “o voo do pássaro habitava-o
mais”. A veemência com que defende a liberdade do “senhorzi-
nho”, quando percebe que os adultos cogitam sua captura como
forma de presenteá-lo, mostra bem qual é o foco do seu interesse:
“o voo exato” que, no alvorecer, descreve “o hiato”, o intervalo
que leva ao novo dia.
Toda a capacitação conquistada para distinguir as coisas
boas (como o tucano) nos entremeios da vida agora é posta a
serviço do programa narrativo essencial, aquele tão bem urdi-
do pelo protagonista para trazer a Mãe de volta. O pássaro, a
esta altura, já é o outro, transcendente, assimilado pelo sujeito
como o destinador das forças inexplicáveis. O seu trabalho tem
por objeto fazer o Menino recuperar o seu bem mais valioso. A
forte crença de que esse momento chegaria já se manifestara na
adoção virtual da figura da Mãe, seguindo a estratégia rosiana
do “faz de conta”, como destinadora plenipotenciária do pro-

101
semiótica à luz de guimarães rosa

grama de apreciação do tucano e do nascimento do dia. Mas,


nesse instante, o que parece iminente é o programa contrário
de “materialização” do objeto-Mãe, sob os influxos altamente
persuasivos do pássaro. Ao final do processo, estará compro-
vada a hipótese imaginada pelo Menino de que a Mãe jamais
abandonou o seu posto nem deixou de lhe garantir uma inten-
sa atividade subjetiva (“a Mãe nem nunca tinha estado doente,
nascera sempre sã e salva”).
Quando o enunciador comunica, de chofre, a cura da Mãe
(“Ao quarto dia, chegou um telegrama. O Tio sorriu, fortíssimo.
A Mãe estava bem, sarada!”), contrariando as previsões sombrias
da mensagem anterior recebida pelo Tio, a notícia não soa total-
mente inesperada para quem acompanhou, num plano mítico, o
trabalho do pássaro em consonância com o incansável trabalho
subjetivo do Menino. Nada mais justo (embora raramente a vida
real se movimente de acordo com a justeza dos fatos) que esse
desfecho recompense o esforço quase sobre-humano e quase so-
litário empreendido pelo herói da novela.
Findo o principal programa narrativo, seus personagens, suas
cenas e suas coisas vão perdendo densidade de presença na mente
no Menino. Tudo se transforma em memória saudosa numa es-
pécie de volta ao cotidiano atonizado. Compatibilizando-se com
essa distensão geral, até a gravata que o Tio usava naquele mo-
mento já não tinha o brilho da outra que chamou a atenção do
sobrinho no início da estória (“não era tão bonita”). A figura des-
sa potencialização é o estado de sonolência (“já quase na frontei-
ra soporosa”) em que mergulha o Menino, quando se acomoda
na aeronave de volta à casa.
Mas como “a vida, mesmo, nunca parava”, nova ruptura des-
faz o estado, bem mais hipotético que factual, de continuação da

102
o encontro do ritmo – “os cimos”

continuação8, essa espécie de repouso absoluto. De repente, nova


situação de perda se configura: o Menino dá pela falta do bone-
quinho macaquinho, de quem praticamente se esquecera duran-
te o período crucial de reconquista da Mãe. Seu parceiro fiel foi o
preço pago pelo resgate materno. De fato, o progressivo aumento
de densidade de presença da Mãe, a partir do “acordo” mantido
com o pássaro, foi acompanhado do desaparecimento, também
gradativo, do bonequinho adjuvante (“o bonequinho macaqui-
nho quase caíra e se perdera: já estando com a carinha bicuda e
meio corpo saídos do bolso, bisbilhotados!”). Agora, com a Mãe
recuperada, o bonequinho some das vistas do Menino.
O sentimento de falta se reatualiza, mas, antes que o Menino
se desespere, o “ajudante do piloto” lhe traz algo de que tinha
se livrado dias antes para calibrar a figura alegre do bonequinho
com o seu estado de espírito abatido: o chapeuzinho vermelho de
alta pluma que dava ao brinquedo um ar ainda mais divertido.
Naquela ocasião, o protagonista sentia que esse gesto de despo-
jamento abrandava (menos mais) o que havia de excessivamente
“engraçado” no bonequinho macaquinho e que o tornava ina-
dequado ao momento vivido. Agora que o Menino sofre com o
desaparecimento total (o máximo de menos) do boneco, o “cha-
peuzinho sozinho” lhe traz um significado de restabelecimento
(menos menos), por menor que seja, do companheirinho. É o su-
ficiente para lhe interromper o choro. Com a experiência acumu-
lada, o Menino percebe que novo ciclo se inicia e, como sua Mãe,
o macaquinho passara à “outra-parte”, oculta e misteriosa, para

8. Na esteira de C. Zilberberg, desenvolvemos as formas de articulação desse conceito


com o de “continuação da parada” em outros trabalhos (Tatit, 2001: 156-157, 170,
177, 190, e 2007: 185).

103
semiótica à luz de guimarães rosa

em seguida retornar ao seu convívio. O chapeuzinho no bolso é


um sinal de que a recuperação já está em andamento.

P or F im , o R itmo

Mais que isso, o final feliz da história da Mãe e o começo um


tanto doloroso da história do bonequinho macaquinho assina-
lam novo intervalo que o Menino já apreende como parte de um
ritmo necessário à condição da existência humana. Algo que pode
ser descrito como a expressão sintáxica da Alegria, já exposta na
primeira novela do volume: “outra vez em quando”. Recorde-
mos, no final de “As Margens da Alegria”, o êxtase do Menino
com o vagalume: “Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo
da mata. O primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! –
tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era,
outra vez em quando, a Alegria”.
Já temos aí a concentração tônica no “embrevecido instante”
(“um instante só”) que dá respaldo tensivo aos valores isotópi-
cos do brilho (“luzinha verde”), da altitude (“alto, distante”) e
da leveza (“Voava… pequenino, no ar”), todos minuciosamente
cultivados pelo protagonista em “Os Cimos”. São esses mesmos
valores, fundados sobre a mesma base tensiva (“o inesquecível
de-repente” que “durou um nem-nada”), que se reproduzem no
“desmedido momento” vivido pelo Menino ao final desse conto:
“Como se ele estivesse com a Mãe, sã, salva, sorridente, e todos,
e o Macaquinho com uma bonita gravata verde – no alpendre do
terreirinho das altas árvores… e no jeep aos bons solavancos… e
em toda-a-parte… no mesmo instante só… o primeiro ponto do
dia… donde assistiam, em tempo-sobre-tempo, ao sol no renas-

104
o encontro do ritmo – “os cimos”

cer e ao voo, ainda muito mais vivo, entoante e existente – parado


que não se acabava – do tucano, que vem comer frutinhas na
dourada copa, nos altos vales da aurora, ali junto de casa. Só aqui-
lo. Só tudo” (grifos nossos).
Os termos em itálico confirmam a presença do brilho, da al-
titude, da leveza e do denominador comum (“no mesmo instante
só”) que permitem a integração temporária de todos os atores,
com destaque para a Mãe e o macaquinho, vivendo sua plenitude
conjuntiva e eufórica, ocupando todos os espaços explorados na
viagem (“em toda-a-parte”) e eternizando a experiência diminu-
ta (“parado que não se acabava”), como se fosse possível um flash
que torna simultâneo o que é de natureza rítmica. Tal flash, real-
mente, daria conta de “tudo”.
O Tio, preposto do tempo cronológico, quer interromper o
“desmedido momento” com os valores-limite do já: “Chegamos,
afinal”. O Menino, agora dominando o tempo rítmico das leis9,
quer estender ao máximo a duração da vivência: “Ah, não. Ainda
não…”. O enigma do seu tempo subjetivo está decifrado.

9. “Toda lei depreendida numa sucessão é ritmo” (Valéry, 1973: 1279).

105
4. P ráticas I mpregnantes –
“A T erceira M argem do R io ”

P reliminares T ensivas

O conto “A Terceira Margem do Rio” elabora uma questão


aparentemente contraditória da significação humana: como tor-
nar habitual um acontecimento extraordinário? O tema é formu-
lado na passagem: “A gente teve de se acostumar com aquilo. Às
penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em
si, na verdade”.
“Aquilo” diz respeito à decisão inesperada de “nosso pai”, o
personagem que abandona o cotidiano regrado de sua vida fa-
miliar para passar o resto de seus dias isolado numa canoa es-
pecialmente fabricada para “durar na água”. Ele não volta, mas
também não se vai de vez. Permanece no rio, “perto e longe de
sua família”, prolongando indefinidamente um estado que, em
princípio, se coaduna com a transitoriedade: transferir-se de uma
margem à outra, dedicar-se à pesca, a algum esporte ou, simples-
mente, fazer um passeio. Não é, portanto, o fato em si (flutuar

107
semiótica à luz de guimarães rosa

de canoa num rio) que singulariza o acontecimento, mas o seu


coeficiente temporal e espacial: o período de permanência sobre
as águas estende-se para além de qualquer previsão razoável e o
espaço normalmente aberto às duas margens fecha-se num habi-
tat de todo improvável para a vida humana. Podemos dizer ainda
que esse alongamento desmedido do tempo pressupõe a escolha
enunciativa de um andamento desacelerado (a lentidão estende a
duração), enquanto o fechamento do espaço pressupõe, ao con-
trário, um grau de tonicidade bastante elevado que acaba por cir-
cunscrever a área do acontecimento principal – onde a energia se
concentra – separando-a do espaço externo, considerado átono.
Ora, os efeitos da “doideira” que afloram no nível discursivo
já estão formulados nas categorias mais abstratas que regulam
o campo tensivo deste conto. Do ponto de vista da extensida-
de, difícil admitir que possa “caber” tanta duração num espaço
rigorosamente delimitado. Do ponto de vista da intensidade, o
vigor tônico não se harmoniza imediatamente com a desacele-
ração. Ambos os casos pedem recursos de compatibilização, ou
seja, concessões de toda ordem, para que o enredo sustente a co-
existência dos paradoxos tensivos.
Dois excessos, para mais no caso temporal e para menos no
caso espacial, retiram o sujeito “nosso pai” de um cotidiano que
jamais comportou exorbitâncias (“era homem cumpridor, ordei-
ro, positivo”) e que, pelo contrário, se satisfazia com insuficiên-
cias, cujos graus são indicados por doses de ausências e negati-
vas em relação aos comportamentos esperados. Esses traços são
descritos no momento crucial em que se despede da família para
seguir o estranho destino: “Sem alegria nem cuidado… Nem fa-
lou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma
recomendação”.

108
práticas impregnantes – “a terceira margem do rio”

P ráticas U tilitárias

No interior desse quadro tensivo desenrolam-se as reflexões


do enunciador sobre o pai “na vagação, no rio no ermo”. A sus-
pensão brusca da linguagem verbal por parte do canoeiro (“E
nunca falou mais palavra, com pessoa alguma”) elimina a possi-
bilidade de uma análise semêmica da insólita experiência a partir
do personagem mais enigmático. Toda explicação passa a depen-
der da leitura predominantemente visual praticada pelo próprio
enunciador, que tenta decifrar, em meio a uma avalanche de
emoções decorrente do forte elo familiar, as razões e a finalidade
da iniciativa do “pai”. Não faltam, porém, hipóteses mais nobres
que pudessem mitigar o caráter gratuito e desonroso da primei-
ra suposição, a da “doideira”: pagamento de promessa, doença
deformante ou prenúncio do final dos tempos; o filho ainda pro-
cura o construtor da pequena embarcação a quem o pai poderia,
segundo alguns, ter confidenciado o motivo da empresa. Nada se
confirma e nem o artífice da canoa sobreviveu para contar histó-
ria. Resta, portanto, ao filho, apenas a leitura direta das imagens
que distingue na superfície das águas e as poucas conjecturas que
consegue formular a respeito do cotidiano intangível do pai.
Mas o que importa, nesse ponto, é justamente a necessidade
de decifração do que estaria regendo a atitude inusitada do ho-
mem que resolveu “permanecer naqueles espaços do rio”. Na ver-
dade, quando em lugar dos esclarecimentos verbais só contamos
com a possibilidade de interpretação de atitudes manifestas ou
de sequências gestuais, costumamos acionar um setor específico
de nossa aptidão semiótica, qual seja, o que reconhece diversos
níveis de programação no âmbito do significante dando conta de
um significado global que pouco, ou nada, tem a ver com as cor-

109
semiótica à luz de guimarães rosa

respondências parciais entre os dois planos da linguagem. Trata-


-se, segundo Greimas, de uma capacidade que já se manifesta em
nossa apreensão das unidades do plano da expressão da língua
natural (1975: 81).
De fato, o fonema “e” pode apresentar-se, por exemplo, como
um signo autônomo, um conectivo, mas pode também constituir
parte de uma sílaba configurando novo signo (“eu”) ou mesmo
parte de uma sequência silábica mais extensa (“europeu”). Se o
projeto combinatório do falante define-se em “europeu”, ime-
diatamente os demais signos envolvidos (“eu” e “e”) se desfazem
em favor do mais amplo; suas sonoridades permanecem, mas
despidas das respectivas correspondências no plano do conteú­do
(pronome e conectivo). Em outras palavras, o projeto semântico
mais abrangente depende da dessemantização de eventuais sen-
tidos associados a segmentos fonológicos de menor dimensão.
Os fonemas ou as sílabas que poderiam ter valor de signo em
contextos particulares conservam, nesse caso, apenas seu valor
metonímico em relação à sequência silábica mais ampla.
Do mesmo modo, ainda de acordo com Greimas, nossa leitu-
ra da linguagem gestual praticada cotidianamente supõe que te-
nhamos capacidade não apenas de apreensão de figuras parciais,
ligadas cada qual a um comportamento natural (como os ace-
nos e as expressões fisionômicas), mas também de transforma-
ção desses pequenos sinais em células de uma gestualidade mais
ampla e complexa cujo encadeamento programado no plano da
expressão neutraliza o valor semiótico daquelas figuras iniciais.
Assim, estender a mão a alguém perfaz, em princípio, a figura do
cumprimento. Entretanto, se verificarmos que esse alguém esten-
de em seguida sua outra mão a uma terceira pessoa e esta a uma
quarta e assim por diante, formando uma corrente com o objeti-

110
práticas impregnantes – “a terceira margem do rio”

vo de amparar um indivíduo que está na iminência de sofrer uma


grave queda, nada restará do conteúdo inicial de cumprimento.
O gesto de dar as mãos adquire então um sentido de aquisição de
firmeza com vistas a um projeto mais amplo de salvamento.
No conto de Guimarães Rosa, o enunciador passa a maior
parte da vida tentando desvendar um possível projeto detrás das
cenas do pai nas águas do rio. Parece-lhe insensato que a figura
definida por “estar no rio” não se atrele a outras figuras, todas
vinculadas a um programa mais vasto referente a um significado
global. Daí sua procura de razões, que não a insânia, para propor
um arranjo mais convincente das cenas fluviais observadas à dis-
tância. Se conseguisse vislumbrar o projeto de tais cenas, certa-
mente cada uma delas perderia um pouco de sua tonicidade para
compor o programa gestual completo entendido como signifi-
cante desse projeto. A atitude do pai poderia então se enquadrar
no campo das práticas utilitárias, no qual prevalece uma tendên-
cia geral para a dessemantização das figuras parciais em nome da
valorização do projeto geral.
Entretanto, a impossibilidade de decifração desse conteúdo
global mantém a individualidade das sequências gestuais, que se
limitam às aparições cada vez mais raras da embarcação ao largo
da margem, reduzindo drasticamente suas chances de desseman-
tização em favor de um encadeamento metonímico do qual re-
sultasse o referido conteúdo. Daí a dificuldade de o enunciador
“se acostumar” com sequências que não se integram sintagma­
ticamente, por mais que se tornem, com o passar do tempo,
previsíveis. As imagens longínquas de “nosso pai” atingem um
alto grau de tonicidade, simplesmente por articular em seus con-
tornos as tensões inconciliáveis de um espaço delimitado (a ca-
noa exígua e o próprio rio como habitat) e um tempo irrestrito

111
semiótica à luz de guimarães rosa

(para sempre): “A estranheza dessa verdade deu para estarrecer


de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia”. Se não existe
perspectiva de abertura do espaço nem de abreviação do tempo,
jamais teremos compatibilidade tensiva suficiente para dissolver
a tonicidade de cada visão e muito menos para neutralizar seus
significados individuais em função de um sentido maior.
Portanto, a atividade do personagem que flutua nas águas
não pode, em princípio, ser interpretada como uma prática ges-
tual utilitária. De nada adiantaria também traduzi-la como ges-
tualidade mítica (Greimas, 1975: 64-65), própria de algum rito
que, em última instância, dependeria igualmente de um projeto
geral (por exemplo, se todas as aparições do pai estivessem ci-
frando um prenúncio do final dos tempos). Ambas as gestualida-
des – utilitária e/ou mítica – dependem de uma dessemantização
das figuras parciais.

P ráticas A rtísticas e P ráticas D esvairadas

Mudando um pouco o enfoque, poderíamos inserir as ima-


gens do canoeiro no campo das práticas poéticas ou, mais ge-
nericamente, das práticas artísticas. Essas se caracterizam por
conservar o valor semântico das figuras parciais em estreito en-
trosamento com o projeto de sentido mais amplo. Muitas vezes,
a extensão total do plano do conteúdo se condensa num peque-
no segmento do plano da expressão. No conto em exame, todo
ressurgimento da frágil canoinha na imensidão do rio renova no
enunciador (e nos leitores) o sentimento de impossibilidade de
perpetuação do acontecimento, ao mesmo tempo que evidencia
a concessão típica dos textos de Guimarães Rosa: embora seja

112
práticas impregnantes – “a terceira margem do rio”

impossível que isso aconteça, desta vez está acontecendo. E a


evolução da história contribui para intensificar esses aspectos: as
figuras vão acumulando durações (“esta vida era só o demora-
mento”) que, em contraste com a circunscrição espacial, tornam-
-se insuportáveis.
Se as coordenadas tensivas desta novela são claramente ar-
ticuladas no interior das figuras, não se pode dizer o mesmo de
seu investimento semântico. Tudo ocorre como se o enunciador
trabalhasse com programações de significante, correspondentes
a significados parciais de alta relevância que nunca perdem sua
densidade sêmica particular em nome de uma composição sin-
tagmática mais ampla. Todas as figuras contêm em si o conflito
tensivo (de tempo e espaço) apontado, mas nenhuma define uma
orientação semântica (razões, causas, finalidades etc.) que pudes-
se justificar o projeto da iniciativa paterna. Sem esse significado
global e sua costumeira ancoragem nas figuras parciais, perma-
necemos, igualmente, a uma certa distância das práticas artísti-
cas, pelo menos em sua configuração mais comum.
Podemos pensar ainda que as cenas nas águas se enquadram
no que propomos chamar de práticas desvairadas, aquelas que
conservam a autonomia das figuras parciais, até mesmo valori-
zando-as para que jamais se esvaziem de seus sentidos localizados
nem se alinhem na constituição de um projeto geral. São práticas
que rejeitam o encadeamento sintagmático nos moldes reconhe-
cidos pela coletividade, mas nem por isso se restringem às indi-
vidualidades dos gestos naturais (como os acenos, por exemplo)
denotativos. Cada imagem traz sua própria carga semântica e não
se dirige nem se integra a um sentido mais amplo, o que elimina
também a possibilidade de servir de âncora poética às articula-
ções extensas do conteúdo.

113
semiótica à luz de guimarães rosa

Apesar da firme recusa em aceitar essa hipótese, a da prática


desvairada (“Ninguém é doido. Ou, então, todos”), o enunciador
manifesta a presença do fantasma do desatino rondando o seu
pensamento, mesmo que na condição de elemento descartado.
As visões do pai constituem sempre momentos tônicos, inesque-
cíveis e de grande significação em sua vida; o fato de tornarem-se
crônicas não chega a amenizar o impacto de suas ocorrências.
Não há como se habituar com um gesto desta natureza: o gesto
sem direção é, para a nossa cultura, um gesto sem sentido.
Acontece que a decisão do pai incide exatamente sobre a
permanência “naqueles espaços do rio, de meio a meio”, como
se o elemento de passagem se convertesse em finalidade e, com
isso, criasse uma prática na qual o projeto gestual (o significa-
do) rea­liza-se na manifestação iterativa do significante… sem
projeto. Cada nova aparição de “nosso pai” faz expandir uma
temporalidade que há muito já ultrapassara seus limites lógicos
de coexistência com a dimensão espacial. Em vez de produzi-
rem encadea­mento sintagmático, por meio da combinação de
ocorrências complementares, as visões constituem, de fato, um
só acontecimento que se avoluma e se adensa, a ponto de exceder
o próprio quadro concessivo em que se concretiza. O que está
em jogo não é mais a constatação de que o impossível acontece,
mas sim a de que o impossível se hipertrofia, ou seja, não cessa
de aumentar o seu coeficiente tônico.

P ráticas I mpregnantes

A esta altura, estamos longe de poder identificar práticas uti-


litárias na sucessão de figuras gestuais exibidas pelo pai na canoa,

114
práticas impregnantes – “a terceira margem do rio”

visto que essas jamais se dessemantizam e, portanto, jamais se


convertem em puras unidades de significante operando em favor
de um projeto de significado geral. Também não podemos reco-
nhecer sinais de transação entre gestos pontuais do personagem
no interior do barco e sua condição global de isolamento no rio,
o que dificulta uma leitura do ato como prática artística. Não dis-
tinguimos tampouco os traços típicos das práticas desvairadas,
ainda que essas se caracterizem pela inexistência de projeto geral
e pela autonomia semântica de cada figura gestual. Afinal, não se
trata, como vimos, de atuações distintas, desintegradas entre si
e de seu significado mais amplo. Talvez os demais personagens
da novela, incluindo os membros da família que acompanham
o caso durante um bom tempo, tenham, por fim, lido o episó-
dio como manifestação de uma prática desvairada, cujo desen-
volvimento ninguém mais poderia reverter. Por isso, os parentes
acabam se afastando do local, depois de excomungar, freudiana-
mente, a palavra “doido” do seu vocabulário cotidiano.
Mas essa leitura não coincide com a do enunciador. Para este,
à medida que o tempo passa e que a ausência do pai parece irreme-
diável, cresce a preocupação com as condições de vida do homem
que envelhece no rio, sem o conforto de uma vida regrada (“De tão
idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a
canoa emborcasse”), cresce a aflição com a proximidade da morte
do velho em estado deplorável (“Apertava o coração”) e cresce ain-
da sua culpa por algo pouco definido (“Sou culpado do que nem
sei”), mas que certamente não se resume à condição de pertencer
à família da qual o pai se apartou nem ao fato de falhar, como os
demais, na tentativa de dissuadi-lo da incompreensível decisão. Na
verdade, seu sentimento de culpa se agrava à proporção que au-
menta sua admiração pelo gesto paterno.

115
semiótica à luz de guimarães rosa

O enunciador sofre mais que todos as consequências do meio-


-vínculo que o canoeiro mantém com a família: nem volta nem
parte de uma vez (“nem queria saber da gente, por que, então,
não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-en-
contrável?”). Ao mesmo tempo que assume a função de principal
cúmplice do autor da façanha (“Eu permaneci, com as bagagens da
vida. Nosso pai carecia de mim”), o filho tenta transferir um pouco
de sua culpa ao pai (“De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se
o meu pai, sempre fazendo ausência”). Mas nem o orgulho de ser
cúmplice nem a ligeira reprovação que ousa externar pelo fato de o
chefe ter abandonado a família são verdadeiros no contexto global
da novela (“Meu pai, eu não podia malsinar”).
A admiração pelo pai torna o enunciador cada vez menos
capaz de ocupar a posição que assumira desde o início e de proce-
der a qualquer espécie de julgamento sobre o episódio. Uma das
coisas que mais o impressiona no caráter paterno é justamente
o poder de superação da culpa que lhe foi tantas vezes atribuída
por parentes e amigos. Ele permanece no rio apesar de tudo. Isso
só faz aumentar a culpa pessoal do enunciador, uma vez que teve
coragem de condená-lo por não sentir culpa.
Assim, podemos dizer que o filho é, no final das contas, a
principal vítima de uma prática que desdobra o impacto do acon-
tecimento em ocorrências sucessivas, ou seja, as visões do pai na
canoa acumulam-se, ampliando a repercussão do fenômeno no
espírito do filho. Não há com o que se acostumar, pois todas as
aparições estão qualificando – e construindo – a complexidade
do mesmo acontecimento. Estão intensificando o peso do seu
impacto. Tudo ocorre como se o espanto pudesse se prolongar
no âmbito do sujeito-observador enquanto houver reaparição
das práticas observadas. Os elementos empregados como signi-

116
práticas impregnantes – “a terceira margem do rio”

ficante valem mais por sua recorrência cênica do que pela pro-
gramação sintagmática que eventualmente pudessem adquirir ao
longo dos anos: a “estranheza” da “verdade”, que se resumia em
“permanecer naqueles espaços do rio” para sempre, alimenta-se
justamente da manifestação intervalada da mesma ocorrência.
Por isso, a gestualidade produzida pelo pai jamais se desse-
mantiza em função de um projeto geral de significado nem se
individualiza como se fosse expressão autônoma. Ela compõe o
que arriscamos denominar “acontecimento extenso”, aquele que
só se realiza plenamente ao cabo de numerosas ocorrências do
mesmo gesto ou do mesmo fenômeno1. Os significantes que sus-
tentam esse tipo especial de evento decorrem de práticas impreg-
nantes, ou seja, de atos que se somam no campo de percepção do
sujeito comprometendo sua capacidade de dar respostas parciais
a cada um deles. No caso em pauta, as aparições longínquas do
homem na canoa representam etapas do mesmo fenômeno que
vão impregnando a mente do filho, intensificando o seu espanto,
à maneira de um acontecimento que demora a acontecer plena-
mente. O efeito de todo esse processo é semelhante ao do acon-
tecimento inesperado que surpreende o sujeito e lhe rouba mo-
mentaneamente a capacidade de reagir. Como se trata, porém,
de um acontecimento extenso, prolongado, o efeito do impacto
também tende a permanecer e, até mesmo, a recrudescer em vir-
tude das novas ocorrências.
Sentindo-se penetrado por um acontecimento que não se
consuma, mas que lhe consome o mundo subjetivo, o filho re-

1. O que mais se assemelha a esse caso de acontecimento extenso é a aparição de óvnis


no espaço. A densidade do acontecimento amplia-se a cada nova visão do fenômeno.
O espanto dos observadores só tende a aumentar com a repetição dos mesmos sinais
de presença do objeto espacial.

117
semiótica à luz de guimarães rosa

tarda indefinidamente sua resposta às atuações paternas, o que


aumenta ainda mais sua culpa. Afinal, o seu tempo de reflexão e
organização mental foi totalmente subtraído pela exuberância do
acontecimento interminável. Resta-lhe a admiração pelo pai que,
nesse caso, pode ser definida como um “assombro” (de tonicida-
de estrita) que progressivamente se converte em “veneração” (de
tonicidade ampla).
A longa duração das práticas impregnantes ocasiona em ge-
ral um efeito suplementar: ao se sentir cada vez mais tomado por
sinais estranhos a seu cotidiano, o sujeito começa a suspeitar da-
quilo que considera como sua “realidade”. A frequência com que
recebe os estímulos de um universo a princípio fora do comum
passa a configurar uma espécie de cotidiano concorrente que
acusa a existência de uma realidade paralela. Em outras palavras,
o aspecto extraordinário que normalmente define um aconteci-
mento ameaça tornar-se ordinário, habitual e, mais uma vez, ex-
tensivo ao indivíduo como um todo, visto que poderá eventual­
mente conduzir sua vida diária.
Entretanto, em nenhum momento, essa estranheza que se vai
tornando corriqueira traduz-se em atonização dos estímulos im-
pregnantes. Esse outro cotidiano possui um caráter assustador que
só se intensifica à medida que se impõe ao sujeito. Paul Valéry já
havia descrito a repercussão do acontecimento intenso em nossas
mentes quando afirmou que “Todo acontecimento brusco atinge o
todo” (Valéry, 1973: 1288). Atingir o todo, para o poeta, significa a
ocupação plena do universo subjetivo do indivíduo pelo fator sur-
presa peculiar a qualquer acontecimento, o que lhe traz embaraços
para responder prontamente às circunstâncias.
Essa ocupação subjetiva reproduz-se tal e qual no caso do
acontecimento extenso gerado pelas práticas impregnantes, só

118
práticas impregnantes – “a terceira margem do rio”

que o processo integral de preenchimento do domínio psíquico


se estende ao longo do tempo. As ocorrências sucessivas vão pene-
trando na vida do sujeito a ponto de prejudicar seu desempenho
mental e enfraquecer o seu poder de resposta. Tudo se resume na
perda do controle sobre o tempo-espaço interno e, portanto, na
impossibilidade de desdobramento e elaboração dos conteúdos
vivamente introjetados. A densidade das ocorrências próprias do
acontecimento extenso apresenta o mesmo valor da surpresa (ou
do inesperado) no campo do acontecimento intenso. Ambas afe-
tam o indivíduo em sua totalidade, prolongando sua condição de
sujeito de estado e minando sua capacidade de esboçar reação.

O J ogo das R espostas

Em “A Terceira Margem do Rio”, o filho passa a maior parte


da vida deixando-se impregnar pelas cenas do pai desprotegido
em sua frágil canoa na imensidão do rio. Sentindo-se responsável
pelos desdobramentos da iniciativa paterna, mas, ao mesmo tem-
po, perplexo com o fato de que “aquilo que não havia, acontecia”,
o enunciador só consegue formular uma resposta consequente ao
canoeiro quando percebe em si próprio os primeiros sinais da
velhice, a mesma que já estaria, havia muito, castigando seu pai.
O longo tempo decorrido permitiu que se conformassem
no espírito do filho duas realidades concomitantes, uma com-
partilhada com o restante da família e outra decorrente de sua
progressiva absorção das práticas impregnantes. No momento
em que exprime sua resposta, o filho demonstra que já admite a
“segunda realidade” como fator predominante em seu cotidiano,
a ponto de se engajar de corpo e alma na “missão” que finalmente

119
semiótica à luz de guimarães rosa

se desvenda aos seus olhos: “Pai, o senhor está velho, já fez o seu
tanto… Agora, o senhor vem, não carece mais… O senhor vem,
e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo
o seu lugar, do senhor, na canoa!”.
Pela primeira vez, desde que se lançou à experiência de estar
no rio para sempre, “nosso pai” ouve uma resposta afinada com
sua decisão de vida, sem as costumeiras tentativas de dissuadi-lo
da empresa. Pela primeira vez, também, parece tomar consciên-
cia de que seu gesto se impôs, não mais como acontecimento ex-
traordinário, efêmero por natureza, mas sim como atuação regu-
lar, própria de uma outra dimensão de existência. Com a resposta
do filho a tudo que se passara anteriormente, pode-se considerar
encerrado o ciclo do longo acontecimento e aberta a passagem
para um novo cotidiano.
O que o filho não previa, porém, era a prontidão da resposta
do pai à resposta que levara décadas para conceber. O velho rea­
ge como se já esperasse que, em algum momento de sua longa
experiência sobre as águas, o enunciador compreendesse o seu
gesto e se aliasse à missão de “permanecer naqueles espaços do
rio” como seu sucessor natural. Nesse sentido, o apelo citado an-
teriormente não lhe causa o mesmo espanto paralisante – nem
intenso nem extenso – que teria caracterizado o comportamento
do filho durante todo o episódio. Ao contrário, na condição de
mensagem esperada, aquelas palavras penetram com moderação
no mundo subjetivo do canoeiro sem provocar qualquer desar-
ranjo em sua capacidade de pensar. Isso equivale a dizer que seu
tempo e espaço interiores não sofrem o impacto desnorteante
das ações inesperadas nem a subtração progressiva das ações im-
pregnantes, e, desse modo, preservam a faculdade de assimilação
dos conteúdos, bem como de preparação quase imediata de nova

120
práticas impregnantes – “a terceira margem do rio”

resposta. Mais uma vez, temos a comprovação de outro aforismo


de Valéry: “A penetração do inesperado [é] mais rápida que a do
esperado – mas a resposta ao esperado, mais rápida que ao ines-
perado” (1973: 1288).
Na realidade, o apelo lançado pelo enunciador teve o sen-
tido de abrandar seu sentimento de culpa em relação à desgas-
tante proeza do pai (“E, assim dizendo, meu coração bateu no
compasso do mais certo”). Jamais o filho poderia imaginar que
sua manifestação servisse de senha para desativar um sistema
já tão consolidado e enraizado ao longo dos anos, no qual fi-
gurava como eterno sujeito de estado, observador das práticas
impregnantes executadas por outro sujeito (o pai) cuja atuação
se limitava a longínquas aparições, em intervalos cada vez mais
espaçados, o que contribuía para aumentar o poder de pregnân­
cia de cada cena. Mas o fato de conseguir, enfim, expressar o
seu recado ao canoeiro não apenas desmontou o sistema como
também rompeu a fronteira entre as duas dimensões da realida-
de. Tudo indica que a morosa leitura das práticas impregnantes
elaborada pelo enunciador funcionou, durante décadas, como
anteparo diante do outro mundo configurado nas ações pater-
nas. Agora, nada mais assegurava a separação e a integridade de
ambas as formas de existência.
O signo mais expressivo de toda essa mudança é a repenti-
na conversão das práticas impregnantes em práticas utilitárias,
transformando o rito das aparições em atividade cotidiana. De-
pois de emitir um gesto simples associado ao comportamento
natural (“ele tinha levantado o braço e feito um saudar de ges-
to”), o velho delineia uma programação gestual (“Ficou em pé.
Manejou remo n’água, proava para cá”) cujo encadeamento de-
nuncia o inopinado projeto de finalmente regressar à terra firme.

121
semiótica à luz de guimarães rosa

Em vez das visões que se acumulam como agravantes do mesmo


fenômeno, a partir desse instante, os segmentos gestuais se desse-
mantizam em favor do extraordinário conteúdo do regresso que,
por sua vez, também figurativiza a transposição do limite entre
as duas dimensões. Essa identificação inesperada de uma gestua-
lidade utilitária, procedente do mesmo núcleo de onde emanou
por anos a fio, à maneira de um rito, as mensagens impregnantes,
trouxe ares de “realidade” a um acontecimento que, apesar de to-
das as evidências, em virtude do tempo decorrido, já não parecia
mais pertencer a este mundo. Como se o enunciador constatasse
de repente que “aquilo” estava vivo.
Ora, mesmo não podendo jamais “se acostumar com aqui-
lo”, o filho teve de conviver com o estranho fenômeno a partir
do instante em que assumira “as bagagens da vida”. Nesse sen-
tido, voluntária ou involuntariamente, passou a promover um
progressivo ajuste entre ambos os “hábitos” (no sentido estrito
de “maneiras de ser”), a ponto de se deixar penetrar, como já
vimos, pelos valores cada vez mais preciosos que emanavam da
pequena embarcação2. Durante essa lenta adaptação, a figura do
pai, definida como um sujeito capaz de sustentar um gesto extre-
mo, foi adquirindo estatura de mito e, portanto, de representan-
te de uma outra esfera de valores. É no aprofundamento desse
convívio que cresce sua admiração pelo incansável canoeiro e, ao
mesmo tempo, sua convicção de que seu papel filial se resume à
contemplação angustiada, sempre na condição de sujeito de esta-
do, dos feitos do herói.
A manifestação imprevista do pai provoca um desarranjo ge-
ral nesse ajuste tão obstinadamente conquistado. O apelo para

2. Sobre o “ajuste dos hábitos”, ver texto de Eric Landowski já citado à página 98, nota 7.

122
práticas impregnantes – “a terceira margem do rio”

uma troca de posições narrativas (o velho volta à terra e o filho


se incumbe da canoa) tinha o intuito explícito de aliviar a culpa
do enunciador, mas nunca de reverter um quadro que os “hábi-
tos” já haviam tão bem estabilizado. A importante presença do
cotidiano mítico do pai no cotidiano trivial do filho fundava-se na
distância solene e respeitosa entre suas práticas – impregnantes e
utilitárias, respectivamente – e isso só se revela quando o enuncia-
dor justifica seu terror pela possibilidade efetiva de atendimento
ao seu apelo: “ele me pareceu vir: da parte do além”. O desejo de
mitigar o sofrimento paterno não se confunde com o desejo real de
volta do herói à vida prosaica, e, acima de tudo, a ideia de assumir
as funções do canoeiro nas condições oferecidas nunca foi tarefa
para o comum dos mortais.

A juste T ensivo

Dentro desse cenário, a imediata resposta do pai se transfor-


ma em acontecimento intenso, brusco, que novamente – e agora
de uma só vez – atinge o filho em sua totalidade, retirando-lhe as
condições básicas necessárias para honrar a própria oferta. Não
há tempo e espaço internos suficientes para elaborar o impacto
do imprevisto. A necessidade urgente de produzir uma resposta
à altura da resposta paterna, com as mesmas presteza e deter-
minação, desestabiliza de vez o já debilitado universo psíquico
do enunciador (“Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi,
me tirei de lá, num procedimento desatinado”), obrigando-o a
experimentar, enfim, os sempre negados sintomas do desatino e
a reconhecer que, de fato, em nada se assemelhavam aos gestos
convictos e perseverantes do canoeiro.

123
semiótica à luz de guimarães rosa

E o enunciador se sente cada vez menor diante do homem


que conseguiu aprisionar uma eternidade no vão de uma canoi-
nha, que delimitou o infinito… O filho não pode, decididamente,
corresponder à imensidão do pai e se lhe resta alguma força é para
rogar ao velho (ou a quem possa atendê-lo) que o perdoe. Mas no
horizonte desse “falimento” geral o filho vislumbra uma possibi-
lidade de redenção, desde que sua pequenez possa ser de algum
modo compensada pelo mesmo recurso que mediou a relação do
pai com o tempo incomensurável: o agigantamento do rio.
De fato, o rio já ingressa na história com um porte respeitá-
vel (“se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de
não se poder ver a forma da outra beira”), mas, no decorrer da
novela, sentimos ampliar ainda mais os seus limites, toda vez que
a pequena embarcação desaparece nas águas. Inicialmente, o ca-
noeiro consegue frustrar todas as tentativas de contato empreen­
didas por familiares, pelo padre, pela polícia e pela imprensa,
apenas retirando-se nos meandros do rio. Depois, estabilizada a
situação, “nosso pai” ausenta-se sistematicamente e por tempo
indeterminado, dando provas da existência de numerosos luga-
res fora do campo de visão das pessoas que se acham na margem.
Por fim, durante a longa vigência das práticas impregnantes, o rio
vai adquirindo um formato oceânico que, grosso modo, elimina a
presença da segunda margem. Impõe-se, assim, como um espaço
permanente, agora desprovido dos traços de transitoriedade que
lhe foram imputados no início. É quando o conto atinge uma de
suas formulações centrais: “rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo”.
O que temos no fundo é a resolução da incongruência ten-
siva assinalada desde as primeiras linhas deste capítulo: o rio
transforma-se num lugar tão vasto quanto a extensão temporal
reivindicada pelo canoeiro. O espaço ilimitado do rio se harmo-

124
práticas impregnantes – “a terceira margem do rio”

niza então com o tempo eterno de permanência nas águas e am-


bas as extensões fundam as coordenadas de uma outra dimensão
de existência, numa terceira margem.
Apenas a canoinha detém para sempre a imagem do espaço
exíguo. O rio adquire a largueza e a dinâmica comparáveis às dos
seres de grande estatura cuja força de continuidade torna-se im-
possível deter. Sua “água que não para” é a mais legítima expres-
são da perseverança de “nosso pai”, de maneira que, por seu in-
termédio, o enunciador ainda espera uma aproximação modesta
(já que em caráter totalmente passivo), quase de consolo (já que
minimizada), da imensidão paterna: “Mas, então, ao menos, que,
no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também
numa canoinha de nada, nessa água, que não para, de longas bei-
ras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio”.

125
5. Q uando o S er É S ubstância –
“ S ubstância ”

I ntrodução

Na semiótica rosiana, substância lembra um pouco as figuras do


plano da expressão do mundo natural que, na conhecida formula-
ção de Greimas, se convertem em figuras do plano do conteúdo da
nossa língua, mas também adquire contornos aristotélicos quando
se reporta a elementos que não perdem as propriedades essenciais
mesmo que sejam submetidos a variações, acidentes ou desvios.
No conto de Primeiras Estórias que leva esse título, o polvilho
e sua extrema brancura surgem de um processo de decantação:
a massa da mandioca é ralada, hidratada e mexida de modo que
as impurezas subam à superfície líquida e o polvilho genuíno se
acumule no fundo do recepiente, como um efeito prodigioso de
toda a operação de triagem (“Do ralo às gamelas, da masseira às
bacias, uma polpa se repassa, para assentar, no fundo da água e
leite, azulosa – o amido – puro, limpo, feito surpresa”). Uma raiz
natural se transforma num produto agrícola que, ao lado de seu

127
semiótica à luz de guimarães rosa

valor mercantil, emana qualidades estésicas, às vezes salutares,


às vezes nocivas. De todo modo, a alvura dessa substância final
define o tom e o ce­nário que sustentam a história de amor entre
Sionésio e Maria Exita.
Esta última personagem, encarregada desde criança de serviço
braçal na Fazenda de Seo Nésio, também se depura com o tempo,
deixando de ser “a menina, feiosinha, magra, historiada de des-
graças” para se tornar uma jovem atraente que cai nas graças do
proprietário. Polvilho e moça se fazem de repente (“Sem se dar
ideia, a surpresa se via formada”), ao ver de um patrão que não tem
o tempo nem a têmpera de quem repara em transformações.
Mas a identidade entre a massa substancial e a moça transcen-
dental (“por cima da vida”) é bem mais profunda. O polvilho ab-
sorve Maria Exita em sua matéria (“até para cima dos cotovelos”)
de tal modo que a jovem sequer se dá conta da arduidade de seu
trabalho. Quebrar os blocos de polvilho nas lajes parece-lhe uma ta-
refa natural a que se entrega de corpo e alma sem acalentar nenhum
outro projeto de prosperidade. Na verdade, nem sente as mazelas
decorrentes do excesso de branco que inunda a Fazenda Samburá.
Se a alta luminosidade do produto, que só se amplia sob a incidência
solar, agride o olhar de Sionésio e dos demais trabalhadores, não há
qualquer ressonância desse efeito no corpo de Maria. A intensidade
de seus infortúnios familiares pregressos – mãe leviana, irmãos per-
versos e pai leproso – são antídotos suficientemente poderosos para
conter a intensidade igualmente cruel do brilho da luz.
Como já vimos, as figuras do plano da expressão de seu mundo
natural (representadas pelo branco disseminado na Fazenda em que
vive) cobrem o universo figurativo de seu plano do conteúdo (repre-
sentado por suas origens e experiências anteriores) e harmonizam-
-se numa só substância, ao mesmo tempo ameaçadora e atraente.

128
quando o ser é substância – “substância”

C oeficientes T ensivos dos P rotagonistas

Sionésio, ator que reúne em si os papéis de destinador ma-


nipulador (“ele era a pessoa manipulante”), definido pelo fazer-
-fazer (“chamava e pagava braços”), e de sujeito, marcado por
suas ações diretas no interior da Fazenda1, enfrenta sua prova
narrativa mais penosa quando se vê atraído perdidamente por
uma parte do que já é seu. De fato, Maria Exita, desamparada de
familiares, crescera em suas terras e, de um ponto de vista mera-
mente físico, jamais esteve fora do seu alcance.
Esse sentimento de não-disjunção, aliás, torna-se mais rele-
vante à medida que o fazendeiro vai delineando para si mesmo
o objeto de amor. De início, identifica a especificidade da moça
na imensa Samburá (“a alma do jeito e ser, dela, diversa dos ou-
tros”); em seguida, reconhece os sinais do sentimento amoroso
(“estava amando mais ou menos”); por fim, Exita torna-se “o
exato, grande, o repentino amor – o acima”. É neste programa
narrativo principal que Sionésio mergulha como um sujeito ain-
da pouco seguro de sua competência, mas pronto para adquiri-
-la desde que isso propicie o encontro maior de sua vida. E agir
como sujeito não é, nesse caso, suficiente. Terá também de ema-
nar valores próprios de um objeto desejável que mobilize o que-
rer de Maria Exita (“se ela já gostasse de alguém?”). Em nenhum
momento, o ator Sionésio se serve das prerrogativas do destina-
dor quando assume a função do sujeito em busca de um valor
amoroso (“Se bem – ele ali o dono – sem abusar da vantagem”).
Mas a substância, no sentido de solidez que permanece, também
caracteriza essa zona de interseção entre a massa branca produzida

1. Trata-se da mesma cifra narrativa de Tio Man’Antonio, personagem analisado no


primeiro capítulo.

129
semiótica à luz de guimarães rosa

na Fazenda e o ser carnal e espiritual da moça que está sempre à es-


pera dos blocos de polvilho. Maria Exita é signo de um trabalho pa-
ciente e contínuo que não dá margem a interrupções, imprevistos
ou qualquer forma de contenção. Sua perspectiva temporal é longa
(“ela era sempre a espera”) e sua dimensão espacial, diretamente
associada à amplitude do branco que se espalha (“coisa sem fim”),
contém traços abertos e generosos (“uma esperança mais espaço-
sa”, “A imensidão do olhar – doçuras”). Em vez de se incomodar
com a luminosidade ofuscante do polvilho que atormenta a visão
dos camponeses, a jovem “nem espremia ou negava os olhos, mas
oferecidos bem abertos”. O branco lhe traz sensação de segurança,
aconchego e descontração (“uma espécie de alívio”), tudo isso de-
terminado por um andamento desacelerado (“o sorriso devagar”,
“juriti nunca aflita”) que sustenta sua integração com a matéria.
Sionésio, antes de manifestar interesse por Maria Exita, é
descrito no quadro de uma temporalidade bastante restrita. Já
comentamos que sequer pôde observar o crescimento de sua
amada nos domínios da Fazenda por se achar envolvido demais
na “azáfama” da labuta diária. Também não dispunha de tempo
para comprar nova sela de montaria nem para visitar sua “quase
noiva” em terra um tanto distante. Diz o enunciador que o fa-
zendeiro costumava “espreguiçar-se ao adormecer, para poupar
tempo no despertar”. Ao contrário de Exita, Sionésio vive sob
o signo da pressa, característica que se manifesta mesmo aos
domingos, quando percorre a cavalo o seu imenso mandiocal.
Mantém um olhar “sôfrego descabido” sobre todas as coisas da
Samburá e seu tempo de descanso é sempre o menor possível
(“demorava um menos”). “Os olhos de Sionésio não podiam
suportar” a alvura do polvilho exposto ao brilho do sol, a não
ser mantendo-se quase fechados. Todos na Fazenda, aliás, in-

130
quando o ser é substância – “substância”

comodados com o brilho excessivo dessa matéria, cerravam os


olhos ou divisavam ao longe um ponto escuro, sempre com o
intuito de abrandar os efeitos torturantes da brancura (“a gente
se perdendo por um negrume do horizonte, para temperar a
intensidade brilhante, branca”).
Os coeficientes tensivos iniciais atribuídos aos dois prota-
gonistas são, portanto, precisamente delimitados: Maria Exita
pauta-se por um andamento desacelerado, uma temporalidade
alongada, emissiva, que explica a sua paciência (ou poder de
espera), e uma espacialidade aberta, que a integra à substân-
cia branca do polvilho disseminada sob o sol e a preserva de
suas consequências danosas; Sionésio, ao contrário, modela-se
pela alta velocidade e pela recusa da duração, de maneira que
seu tempo, remissivo por excelência, jamais se deixa estender,
sobretudo nas situações locais de entretenimento em que pre-
dominam a folga e/ou a algazarra (“desgostava-o aquilo, a fol-
gazarra”), enquanto o seu espaço de visão mostra-se cerceado
pela intensidade da luz. A figura abaixo reproduz de modo con-
densado essa contraposição dos atores.

aceleração Sionésio

andamento
Maria
Exita
desaceleração

breve temporalidade longa

fechada espacialidade aberta

131
semiótica à luz de guimarães rosa

S upressão dos E xcessos

Maria Exita é portanto a única pessoa daquela roça que não


carece fitar a vista no horizonte em busca de algum “negrume”
que a alivie da claridade exorbitante do polvilho. Sua origem mar-
cada pela infelicidade já fora suficientemente sombria para apla-
car os efeitos perniciosos de qualquer excesso de brilho (“contra
a menos feliz, a sorte sarapintara de preto portais e portas”). O
que há de sinistro e torturante nos blocos brancos recebidos dia-
riamente jamais ultrapassa a cota de mazelas que a personagem
já conheceu na infância. Exita traz consigo o antídoto da desgraça
nos fatos que marcaram a sua história e que têm agora o poder
de neutralizar os transtornos causados pela “coisa alva”. É nesses
termos que, dizíamos atrás, seus conteúdos de vida e as figuras
de expressão do seu mundo exterior constituem uma só substân-
cia. Os efeitos da alta luminosidade do polvilho decrescem diante
de uma luminosidade de outra espécie, algo como um contra-
veneno, emanada dos olhos de quem já traz consigo a escuridão
(“nem enrugava o rosto, nem espremia ou negava os olhos, mas
oferecidos bem abertos – olhos desses, de outra luminosidade”).
Por tudo isso, a moça se sente bem numa atividade por todos re-
jeitada na Fazenda e, mais que isso, não vê razão para apartar de
si a matéria que se confunde com sua própria existência.
Mas o vínculo de Maria Exita com a matéria tem uma razão
mais profunda. Já vimos que ao assumir o serviço marcado pela
“despreferência” de todos, a protagonista afronta os tormentos
sensoriais causados pelo polvilho (“o trabalho pedregoso, no
quente feito boca-de-forno, em que a gente sente engrossar os
dedos os olhos inflamados de ver, no deslumbrável”) com as
maldições que até então fizeram parte de sua biografia (“os vá-

132
quando o ser é substância – “substância”

rios sem-remédios de amargura”); contrapõe um mal a outro,


exibindo uma espécie de imunidade em relação a seus efeitos.
Como esses males estão associados ao excesso que incide tanto
sobre o branco concreto da massa de mandioca quanto sobre o
preto metafórico (no sentido de “situação preta”) que devastou
sua infância, há uma compensação figurativa no encontro da ex-
pressão do polvilho com o conteúdo de Maria Exita: a substân-
cia torna-se, assim, nem tão branca nem tão preta. Mas isso tem
igualmente uma explicação tensiva.
A personagem de Maria Exita renasce das cinzas. Ficamos
sabendo que sua mãe desapareceu, seu pai foi isolado num laza-
reto, um de seus irmãos está preso e o outro, foragido. Mesmo
de sua madrinha, “de luxo e rica”, não se teve mais notícias. Sua
condição de vida ao chegar à Fazenda era visivelmente degressiva:
cada vez mais menos familiares, até atingir a situação-limite de
não ter mais ninguém, ou seja, só menos. Nesse ponto, ou temos
a extinção do processo – que poderia se manifestar com a morte
da personagem, por exemplo – ou sua continuidade numa orien-
tação necessariamente inversa.
A retomada da progressividade depende, segundo Zilber-
berg, da retirada de ao menos um menos (2006b: 49). De fato, esse
mínimo configura-se na novela pela ação da velha Nhatiaga que,
diante das circunstâncias dramáticas em que se encontrava a me-
nina, a introduz no serviço braçal das terras de Sionésio. A partir
daí, a sua recuperação é contínua, passando pelo estágio cada vez
menos menos (de menina “feiosinha”, acolhida na Fazenda por
“compaixão da Nhatiaga”, passa a “protegida” do dono) e ingres-
sando deliberadamente numa orientação ascendente, cada vez
mais mais (de “tão linda, clara, certa… moça feita em ca­choeira”
passa a “única Maria no mundo”).

133
semiótica à luz de guimarães rosa

Mas o início do restabelecimento (menos menos) de Maria


Exita, que corresponde à conversão da descendência (movimento
degressivo) em ascendência (movimento progressivo) para evitar
a extinção do processo, coincide com suas primeiras atividades
de manuseio do polvilho na Samburá. Depois de viver uma espé-
cie de apagamento de todos os laços afetivos, a menina entra em
contato com o brilho esplendoroso da massa branca, altamente
potencializado pela incidência do sol, e experimenta, na ordem
sensorial, o que podemos definir como um excesso de mais (“na
roça o polvilho se faz a coisa alva: mais que o algodão, a garça, a
roupa na corda”).
Esse ponto culminante, cuja saturação é confirmada pela
resposta ocular do proprietário das terras (“que os olhos de
Sionésio não podiam suportar, machucados, tanto valesse olhar
para o céu e encarar o próprio sol”), também só pode evoluir
revertendo a direção tensiva, ou seja, subtraindo ao menos um
mais desse extremo de ascendência, de maneira a dar início ao
processo de atenuação (menos mais). Os efeitos do brilho da
alvura vão se tornando, pouco a pouco, menos agressivos aos
olhos até que, ao final do conto, sob a influência do cada vez me-
nos mais, o fazendeiro já pode encontrar algum alívio mental no
fato de contemplar o polvilho (“Ainda que por instante, achava
ali um poder, contemplado, de grandeza, dilatado repouso, que
desmanchava em branco os rebuliços do pensamento da gente,
atormentados”).
Ora, o restabelecimento de Maria Exita e a atenuação da lu-
minosidade do polvilho são duas faces do mesmo processo ca-
racterizado como formação da substância, essa fusão entre ser
humano e natureza. Os fatos pregressos da vida da moça que
assombram os camponeses são os mesmos que combatem o

134
quando o ser é substância – “substância”

excesso de brilho da massa branca e, em contrapartida, é essa


mesma claridade que devolve a Exita a luz subtraída na infân-
cia. Resultado: o excesso de branco não lhe causa nenhum dano
(“Destemia o grado, cruel polvilho, de abater a vista, intacto
branco. Antes, como a um alcanforar o fitava, de tanto gosto.
Feito a uma espécie de alívio, capaz de a desafligir”), assim como
o alto índice de fatalidades, que reduziu sua vida a quase nada,
não afeta sua beleza atual.

O perações C oncessivas

É nesse cenário tensivo que o fazendeiro resolve se aproximar


de Maria Exita. Diversos ajustes são portanto necessários para
que esse projeto se consolide.
Em primeiro lugar, não é possível dissociar a moça da ma-
téria branca em que se encontra integrada. Ambas compõem
uma só substância. As insuficiências acarretadas pelos males
que estigmatizaram a biografia de Exita transferindo-lhe um
excesso de menos, aliadas à exorbitância do clarão provocado
pelo polvilho, esse excesso de mais, ressurgem no nível narra-
tivo como antissujeitos poderosos que retardam a ação efetiva
do sujeito Sionésio. Em segundo lugar, ambos os personagens
decorrem, como vimos, de formulações tensivas opostas que
impedem qualquer entrosamento imediato: a celeridade com
que o proprietário daquelas terras controla o seu tempo não
se adapta em princípio ao ritmo suave e desapressado com o
qual Exita transforma suas durações de vida em verdadeiros
compassos de espera. Por fim, a substância como essência vital,
conteúdo íntegro que permeia os seres e as coisas a despeito das

135
semiótica à luz de guimarães rosa

evoluções e alterações circunstanciais, converte-se em atração


objetal irresistível que define a direção narrativa do sujeito.
Nesses termos, a força que emana de Maria Exita tonifica
a duração, ou seja, faz expandir o tempo subjetivo de Sionésio
(acostumado a “cuidar só dos estritos de sua obrigação”), tanto
para o passado (ela lhe é inesquecível) quanto para o futuro
(“ele, a queria, para si, sempre por sempre”); e tonifica o es-
paço, leva o patrão a querer “aumentar as terras” e, num sen-
tido mais profundo, a se acostumar com a luminosidade que
espalha o branco pela Fazenda, até poder avançar de uma vez
para “dentro da luz”. Ambas as tonicidades demonstram que,
embora o esforço de ajuste e adaptação no interior desse campo
tensivo provenha de Sionésio, o poder de incitamento conferi-
do à Maria Exita mobiliza o patrão em duas frentes narrativas:
atrai-o como objeto e impulsiona-o como destinador persua-
sivo; desse modo, garante-lhe, respectivamente, um ponto de
chegada e um ponto de partida. Resta ao sujeito “apenas” coor­
denar as fases transitórias, eventualmente complexas, para, no
final, atingir os valores associados à amada e experimentar a
sensação de plenitude.
Por intuir, desde o princípio, que havia uma forte identidade
entre a moça e a matéria branca – afinal, Nhatiaga lhe assegurara
que era a própria camponesa quem desejava permanecer no ser-
viço ingrato de quebrar o polvilho nas lajes (“Ela é que quer, diz
que gosta. E é mesmo, com efeito”) –, Sionésio inicia sua conquista
fazendo alusão à boa qualidade do polvilho de sua fazenda: “que
o polvilho, ali, na Samburá, era muito caprichado, justo, um dom
de branco, por isso para a Fábrica valia mais caro, que os outros,
por aí, feiosos, meio tostados…”. Não se trata portanto de “as-
sunto fora de propósito”, como diz o enunciador para caracte-

136
quando o ser é substância – “substância”

rizar – e caracteriza – o modo embaraçoso com que o patrão se


aproxima de sua criada. Destacar a qualidade do polvilho é tecer
elogios indiretos a Maria Exita. É valorizar sua fonte de recupera-
ção (“espécie de alívio”) dos elos perdidos e de tonificação do seu
espaço subjetivo (“uma esperança mais espaçosa”).
Mas a grande demonstração do quantum de amor que o fa-
zendeiro devota à trabalhadora pode ser observada por uma ope-
ração concessiva. Sionésio ama Maria Exita apesar de sua indese-
jável herança sanguínea. A lepra contraída pelo pai, a leviandade
da mãe ou mesmo a perversidade dos irmãos são precedentes
genéticos suficientemente negativos para desencorajar o assédio
natural dos moços da Samburá. Essa é a avaliação corrente que
chega aos ouvidos de Sionésio e até certo ponto o tranquiliza em
relação ao futuro de Exita: a infeliz história familiar transforma a
jovem atraente num ser de fato inamável pelos “namoristas” da
região. Ao lhe dedicar seu amor apesar de tudo, Sionésio adiciona
tonicidade a sua afeição, impondo-se, assim, a qualquer possí-
vel pretendente que não manifeste o mesmo recurso concessivo.
Só ele, até esse momento, parece capaz de realizar o irrealizável:
amar aquela que é considerada inamável.
Mas essa ampla operação concessiva que singulariza o amor
de Sionésio ao longo de toda a novela não deixa de se confron-
tar com outras operações localizadas que, por vezes, ameaçam a
hegemonia do dono da Fazenda. Alguns sintagmas implicativos,
desses que retratam o funcionamento habitual, regular, das re-
lações humanas, permanecem subentendidos nas atuações, ora
convictas ora hesitantes, de Sionésio. Um deles, o mais óbvio,
responde por seu primeiro sinal de inquietação: “Se outros a qui-
sessem, se ela já gostasse de alguém?” O sintagma implicativo pode
ser expresso com toda a simplicidade: se Maria Exita encontra-se

137
semiótica à luz de guimarães rosa

no auge de sua juventude e beleza física, então, certamente, será


cortejada pelos jovens da Fazenda, o que instaura no íntimo do
dono um sentido de urgência (de andamento acelerado) nas deci-
sões e revelações afetivas. Outro sintagma de mesma espécie vem
a seu socorro, atenuando a sofreguidão imposta pelo primeiro: se
todos ali conhecem a procedência da moça, suas mazelas paren-
tais, então, provavelmente, não terão coragem de propor-lhe uma
união verdadeira.
A preponderância desta última implicação sobre a primeira
– que permite abrandar temporariamente a índole afoita do fa-
zendeiro – manifesta-se numa formulação concessiva do próprio
enunciador: “Ainda que em graça para amores, tão formosa, ela
parava a cobro de qualquer deles, de más ou melhores tenções.
Resguardavam a seus graves de sangue” (grifo nosso). Nesse for-
mato, podemos sentir que a balança tensiva pende para a segunda
implicação, aquela que prevê o afastamento dos possíveis candi-
datos ao amor de Maria Exita em decorrência de sua hereditarie-
dade. Isso realmente serena os ânimos de Sionésio que acredita
na reciprocidade afetiva de sua protegida (“E, ela, havia de gostar
dele, também, tão certamente”). Se sonda o seu comportamen-
to nos encontros festivos da Samburá é porque não está livre de
se deparar com um concorrente imbuído de igual intensidade
amorosa (“Mas a gente nunca se provê segundo garantias per-
pétuas”), alguém disposto a conquistar a quebradora de polvilho
apesar da “doença incerta”.
O ponto de vista concessivo de Sionésio o coloca francamen-
te na contramão das decisões prudentes tomadas pelos jovens
que, como ele, admiram os encantos de Maria Exita. As alegações
ou ponderações daqueles moços não são suficientes para impedir
que sua atuação amorosa só se intensifique ao longo do conto.

138
quando o ser é substância – “substância”

Os sinais dessa tonicidade incidindo sobre a sua temporalidade


subjetiva despontam na figura da persistência (Zilberberg, 2006b:
59) passional (“Achou-se em lágrimas, fiel”), e na focalização de
Maria Exita como sua meta narrativa cada vez mais restrita (“a
única Maria no mundo”). Assim como o polvilho decorre de um
processo de decantação, a protagonista surge, aos olhos do pa-
trão, apartada de qualquer impureza comprometedora (“Maria
Exita era a para se separar limpa e sem jaças, por cima da vida;
e de ninguém. Nela homem nenhum tocava”), mas essa mesma
triagem que particulariza as qualidades da moça pode trazer um
efeito perverso se vier associada a outro tipo de redução da exten-
sidade, conhecida como contração temporal.
É justamente a possibilidade desta associação que perturba o
imaginário de Sionésio: quanto tempo duraria essa condição de
mulher única? Quando se manifestaria a “doença incerta, sob a
formosura”? Teria a beleza um valor breve diante da inexorabi-
lidade extensa da herança sanguínea? Já vimos que o fazendeiro
responde a essas questões com operações concessivas: “sem em-
bargo de que, ele, a queria, para si, sempre por sempre” (grifo
nosso). Mas a dúvida o assombra até nos momentos cruciais,
quando ousa a se declarar para a amada: “Se a beleza dela – a fru-
tice, da pele, tão fresca, viçosa – só fosse por um tempo, mas depois
condenada a engrossar e se escamar, aos tortos e roxos, da estragada
doença? – o horror daquilo o sacudia”.
A triagem que faz de Exita “a única Maria no mundo” (“Ne-
nhumas outras mulheres, mais, no repousado; nenhuma outra
noiva, na distância”) constitui uma extração de ordem quantita-
tiva, mas carregada de acentos qualitativos: ela se difere das ou-
tras e, ao mesmo tempo, se sobressai como ente venerável, quase
sagrado. O potencial desse valor absoluto atribuído a Maria Exita

139
semiótica à luz de guimarães rosa

deflagra outros aumentos na esfera do trabalho agrário de Sioné-


sio: no plano da intensidade, o recrudescimento de sua disposição
subjetiva para as atividades da Fazenda (“a atirada trabalheira”,
“o sobre-esforço” – grifos nossos) e, no plano da extensidade, a
multiplicação dos resultados de seu fazer (“crescer os produtos”,
“aumentar as terras” – grifos nossos).
Uma eventual supressão do termo regente, no caso, a figu-
ra de Maria Exita, destruiria a sintaxe concebida por Sionésio.
Quando ouve dizer que a mãe ou a madrinha de Exita ainda po-
deriam, por qualquer razão, vir buscá-la, deixa-se abater por um
sentimento de urgência que não mais lhe permite adiar “a ação
de a ter”. Desdobra-se, então, em dois actantes, o julgador e o
julgado, e inicia a sanção tão rosiana quanto greimasiana.
O estado radicalmente passional em que se encontra o su-
jeito protagonista (“consumição de paixão, romance feito”),
nos dois sentidos do termo – amoroso e passivo –, já traz uma
causa narrativa facilmente localizada pela instância julgadora: o
ator Sionésio vinha convivendo com outra duplicação actancial,
desta vez com funções antagônicas, que lhe paralisava as ações.
Enquanto um actante-sujeito lidava para satisfazer os próprios
desejos, focalizando com precisão o objeto (Maria Exita), ou-
tro, claramente um antissujeito, criava empecilhos para que essa
união não se consumasse. Ambos emanavam do seu próprio ser
(“o que era ele mesmo contra ele mesmo”). Não conseguindo
se definir por um dos actantes na claridade do dia, o dono da
Fazenda jogava intempestivamente com seus representantes sim-
bólicos na obscuridade da noite (“no disputar do dia, criava as
agonias da noite”).
Assim, em plena madrugada, desperta seus trabalhadores
para recolher o polvilho e protegê-lo da chuva – antissujeito na-

140
quando o ser é substância – “substância”

tural. Se pensarmos que o polvilho está em contiguidade com


Maria Exita, essas ações noturnas apenas encenam a conquista
objetal que não se realiza à luz do dia. É bem mais fácil sustentar
uma batalha contra a chuva que uma guerra contra si próprio
(“consigo forcejava”). Lá, sua competência é inegável, aqui, fal-
tam-lhe modalidades: quer agir, mas não se sente capaz (“Queria
e não podia”); além disso, desconhece a fonte de seus temores
(“Que temia, pois, que não sabia que temesse?”).
Reconhecendo que o sujeito da conquista não pode realizá-
-la nem sabe enfrentar suas próprias resistências, o julgador, que
também é parte de Sionésio, formula a pergunta decisiva: “Tinha
por onde a merecer?” O fazendeiro preferia, às vezes, que tudo
aquilo nem fosse (não-ser) nem parecesse verdadeiro (“tomara
a ele que tudo ficasse falso, fim” – grifo nosso), para se livrar da
“ilusão” (parecer + não-ser) ou, mais tecnicamente, “mudar de
parecer” e retomar a lida diária com seu ritmo acelerado, única
realidade verdadeira (ser + parecer) que lhe restituiria o “sosse-
go” perdido. Mas sua fidelidade amorosa, ou, como já vimos,
sua persistência (tonicidade → temporalidade) fala mais alto e
a decisão da conquista concretiza-se, uma vez mais, por meio da
operação concessiva (aquela que torna possível o impossível).
Embora não pudesse, abriu o jogo com Maria Exita (“Mas não
podia. Mas veio”).

A justes “M usicais ” entre S ionésio e M aria E xita

A presença constante da concessão nas ações e decisões de


Sionésio confirma o caráter anguloso de sua história de vida. Suas
intervenções bruscas, por vezes alarmantes, na rotina serena do

141
semiótica à luz de guimarães rosa

campo são sintomas incontestáveis de sua atuação descontínua,


plena de hesitações, de idas e voltas, cujas bases se apoiam no re-
gime da aceleração. O trecho a que já nos referimos retrata bem
esse andamento: “De repente, na madrugada, animava-se a vigiar
os ameaços de chuva, erguia-se aos brados, acordando a todos: –
‘Apanhar polvilho! Apanhar polvilho!…’ ” (grifo nosso).
Considerando que a concessão, de acordo com a semiótica, é
a forma discursiva mais apropriada (e veloz) para se criar aconte-
cimentos, justamente por favorecer a ocorrência do inesperado,
só podemos concluir que essa é a operação por excelência ado-
tada pelo fazendeiro, tanto nas resoluções proveitosas como nas
desastrosas. É a que lhe permite aceitar Maria Exita, apesar da
ameaça sanguínea, mas, ao mesmo tempo, é a que lhe oferece as
manobras reflexivas para questionar tal escolha, ainda que jamais
deixe de reconhecer a intensidade do seu amor. É também pelo
pensamento concessivo que Sionésio cogita lançar mão de mais
um subterfúgio – consultar Nhatiaga – para adiar o seu pedido
direto de casamento à própria trabalhadora, mesmo não contan-
do com a possibilidade de uma recusa. É ainda por intermédio da
mesma operação que o protagonista se debulha em pranto pela
amada logo depois (e apesar) de a ter mentalmente repudiado
por considerá-la a fonte de seus tormentos (“A diverso tempo,
dava o bravo: tinha raiva a ela”).
Essa configuração subjetiva farta de desvios e hesitações, de-
notando um ritmo apressado de conduta por trás da insegurança
manifestada, faz de Sionésio o antípodo complementar de Maria
Exita. Ele precisa da quietude, da paciência e da amplidão alva –
livres dos sustos, das surpresas, das interrupções e das saliências
– de sua estimada camponesa para aplacar o caráter frenético e
muitas vezes desajeitado daquilo que faz ou deixa de fazer. Ao

142
quando o ser é substância – “substância”

lado da provável atração carnal e espiritual pela jovem, subsiste


uma atração, digamos, “musical” pelo ritmo pausado, gradativo
e alongado de Maria Exita, e pela projeção espacial desses valores
na substância branca do polvilho que até então repelira o olhar de
todos na Samburá. Fundir-se naquela extensão contínua parece-
-lhe agora ser a única forma de recuperação da serenidade.
É no âmbito dessas características tensivas individuais de
ambos os personagens que fazem sentido as alterações de anda-
mento ocorridas durante suas fases de aproximação gradativa ao
longo da novela. O ingresso de Maria Exita no universo subjetivo
de Sionésio tem uma natureza acumulativa. O sentimento amo-
roso, definido a princípio como “mais ou menos”, vai ocupando
o espaço do trabalho na mente do fazendeiro até se tornar a razão
absoluta de suas demais atividades e ambições de vida. Trata-se
de um fenômeno totalmente imprevisto (“Nem por nada teria
adiantado atenção a uma criaturinha, a qual”) na história de um
homem que já tinha uma “quase noiva” – mais particularizada
pela extensidade (“na distância”) do que pela intensidade afetiva
– e, sobretudo, uma dedicação desmedida ao cultivo da mandio-
ca e à fabricação do polvilho em seus vastos alqueires de terras.
Nesse sentido, Maria Exita é um acidente, um acontecimen-
to, na trajetória do fazendeiro, mas com o caráter extenso que já
identificamos em “A Terceira Margem do Rio”. O espírito de Sio-
nésio vai-se impregnando paulatinamente do modo de ser, ainda
que discreto, da trabalhadora, até encontrar-se completamente
tomado por sua beleza e “maneiras” irresistíveis. Esse preenchi-
mento total do mundo interior equivale ao impacto repentino da
surpresa (ou do susto), com a diferença que, chegando por eta-
pas, o acontecimento só se instala de fato na alma do indivíduo
depois de tonificado pela recorrência confirmativa do mesmo

143
semiótica à luz de guimarães rosa

fenômeno. Em outras palavras, Sionésio não se deixa penetrar


de imediato pela presença de Maria Exita, mas à medida que os
efeitos encantatórios dessa presença se acumulam e se compro-
vam em sua rotina, aquilo que lhe parecia improvável torna-se a
única “realidade” a ser enfrentada.
Portanto, embora não se manifeste de modo brusco, o acon-
tecimento “Maria Exita” propaga-se descontroladamente no ín-
timo de Sionésio, subtraindo-lhe o tempo interno e a perspecti-
va de formular uma boa resposta ao seu maior desafio. Mesmo
as frases já concebidas não chegavam aos ouvidos de amada, pois
pertenciam a “um futuro talvez dizer”, sempre protelado por
falta de condições ideais… ou mínimas. O impacto do aconteci-
mento inesperado faz do homem regido pela aceleração um ser
moroso que teme perder o amor de sua vida por adiar indefini-
damente o que já deveria ter feito.
Quando, por fim, consegue fazê-lo, não prevê as forças ten-
sivas que emanam de Maria Exita. Regida pela desaceleração
(“ela era sempre a espera”), a trabalhadora vinha se preparando
há muito para esse momento. Seu tempo interno não sofre-
ra qualquer ruptura que precisasse ser emendada para fazer-se
completo e coerente. Desde que chegou à Fazenda, estabeleceu
perfeita comunhão não só com o trabalho, mas com a própria
substância do polvilho. Jamais quis mudar de serviço nem de
rotina. Mesmo a proximidade cada vez mais evidente do pa-
trão em nada alterou o seu cotidiano (“Não se perturbava”).
Pode-se dizer que pressentia as intenções ao mesmo tempo
simpáticas e confusas de Sionésio toda vez que este lhe dirigia
a palavra, mas limitava-se a sorrir e a responder o estritamente
necessário, como se soubesse que seu trunfo era poder esperar
o momento azado.

144
quando o ser é substância – “substância”

Ao ouvir a proposta pouco direta do seu pretendente (“Você


tem vontade de confirmar o rumo de sua vida?”), Maria Exita,
por já ter cultivado uma espera contínua e produtiva, sente-se
pronta para dar sua resposta num padrão de velocidade e ob-
jetividade totalmente inesperado por Sionésio: “Só se for já…”.
Como diria Paul Valéry, “o tempo dispensado antes é restituído
depois… O tempo da execução depende do tempo de prepara-
ção” (1973: 1288).
De um ângulo exclusivamente tensivo, a espera paciente
de Maria Exita remete-nos à eterna espera do “nosso pai” nos
espaços do rio, na estória já analisada, assim como sua respos-
ta imediata à declaração do fazendeiro reproduz a instantânea
aceitação do canoeiro, quando, ao final, o filho se oferece para
substituí-lo no barco. Em ambos os casos, a longa espera prepa-
rativa determina a pronta resposta, cuja velocidade surpreende
as previsões dos proponentes, causado-lhes novos impactos e
desajustes no universo subjetivo. Para o filho que permanece
na margem do rio, esse dano é existencial e definitivo; para Sio-
nésio, é passageiro e se desfaz após alguns instantes de dúvida
e hesitação.
De todo modo, não é difícil perceber a indesejável “pro-
pagação do brusco” (idem) no interior do fazendeiro: “Mas, de
repente, ele se estremeceu2 daquelas ouvidas palavras. De um
susto vindo de fundo” (grifos nossos). A resposta ágil e direta
de Exita, seguida de um riso franco e caloroso com significa-
dos ambíguos, penetra a alma de Sionésio provocando-lhe nova

2. A cifra tensiva de “estremecer”, na acepção empregada, contém os elementos de acelera-


ção dos demais termos grifados. Basta conferirmos a definição desse verbete no Dicioná-
rio Houaiss: “ter rápido calafrio, tremer súbita e rapidamente por (medo, susto etc.)”.

145
semiótica à luz de guimarães rosa

descontinuidade interna. O primeiro efeito é a duplicação da


imagem da própria amada: a Maria que acaba de dar a resposta
é a mesma que trabalhava em silêncio na Fazenda? A presteza
com que formulou a frase em torno do núcleo “já”, mais o riso
e a vivacidade marota dos “olhos sacis” recuperam num átimo
o viés diabólico atribuído a sua herança de sangue. Nesse ritmo
extremamente acelerado, até sua formosura ganha contornos
ardilosos que repelem o olhar de Sionésio, a esta altura já teme-
roso de uma ação traiçoeira.
Já há, como sabemos, uma história de vida, conhecida do
proprietário das terras, que poderia explicar a duplicação da
personagem a partir de funções antagônicas. De fato, em nível
narrativo, além de ser destinatário e objeto amoroso de Sionésio,
Maria Exita abriga em si, mesmo que virtualmente, as funções de
antissujeito e antiobjeto que, na verdade, jamais se manifestaram
em sua biografia. Ao pronunciar seu pedido de união, o rapaz já
havia claramente superado a fase de suspeita sobre as fatalidades
genéticas que poderiam macular o futuro da moça. Por isso, a
nosso ver, a volta desse receio tem bases bem mais tensivas que
narrativas. A velocidade da resposta e o inesperado imediatismo
do conteúdo dito (“Só se for já”) fizeram enorme contraste com
o estilo “musical” que até então caracterizara o modo de ser de
Exita: desacelerado, prolongado e contínuo.
Mesmo que a rapidez da resposta se justifique como com-
pensação do tempo preparativo de sua espera, a simples expres-
são desse andamento na esfera de ação da jovem não deixa de
ser também um primeiro sinal de proximidade ao estilo tensivo
de Sionésio. Mas para este, Maria Exita apenas distanciava-se de
si mesma, desdobrava-se em dois andamentos e, portanto, duas
personalidades que reatualizavam as apreensões difundidas entre

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quando o ser é substância – “substância”

os moradores da Samburá. Assim, em sua presente placidez po-


deriam estar dissimuladas as condenações do porvir.

P lenitude C onjuntiva

Convém lembrarmos, a esta altura, que Maria Exita já en-


trara em fusão com a matéria alva, a tal ponto que seu patrão lhe
dirigira o primeiro galanteio elogiando a qualidade do polvilho
daquela Fazenda. Tudo ocorre como se a trabalhadora e o pol-
vilho constituíssem, respectivamente, a versão concentrada e a
versão difusa da mesma substância. Nesses termos, presumimos
que ambas as figuras possam ser articuladas no plano da extensi-
dade. Só assim podemos compreender que, em vez de se debater
contra os seus fantasmas nesse instante decisivo, numa atitude
tipicamente narrativa, Sionésio, involuntariamente, deixa que
seu olhar se acomode na vastidão branca do polvilho, como se o
contato com a forma difusa de sua amada fosse a única solução
para baixar o pico da intensidade que assola a sua mente (“achava
ali um poder, contemplado, de grandeza, dilatado repouso, que
desmanchava em branco os rebuliços do pensamento da gente,
atormentantes”). Faz valer a correlação inversa entre ambas as
dimensões: reduz a tonicidade que recai sobre Maria Exita, com
seus “graves de sangue”, e expande o olhar aos planos mais aber-
tos de sua identidade, os que se confundem com a matéria branca.
Em outras palavras, diminui a intensidade e aumenta a extensi-
dade. Adota, intuitivamente, o recurso que a própria camponesa
pôs em prática desde que chegou à Fazenda e deixou para trás as
saliências indesejáveis, aquelas que “a sorte sarapintara de pre-
to”. Entrega-se à luminosidade indistinta do branco como que

147
semiótica à luz de guimarães rosa

munido dos mesmos “negrumes” que permitiram a Exita fixar os


olhos na alvura do polvilho sem sofrer os efeitos da ofuscação.
Em poucas palavras, Sionésio assume de vez o ponto de vista
de Maria Exita e experimenta (mais do que compreende) em seu
próprio corpo a interação que a moça mantém com a substância
luminosa de Samburá. Compartilhando com ela a “outra lumi-
nosidade”, a que provinha dos seus olhos de menina, Sionésio
consegue vislumbrar pela primeira vez o branco sem os excessos
do brilho e a mulher sem as faltas (de saúde, de caráter, de berço
etc.) que lhe eram imputadas. Ambos numa só substância.
O branco representa agora o apagamento das constantes dú-
vidas, dificuldades e diferenças que vinham impedindo a realiza-
ção do encontro supremo. É como se Sionésio deixasse de hesitar
para finalmente exitar ao lado de sua Maria. A extensão espacial
encarrega-se de absorver as descontinuidades e abrir um campo
de circulação regido pelo /poder/ (“achava ali um poder”), onde
os obstáculos antigos se encontram atonizados, “desmanchados
em branco” e, talvez possamos dizer, zerados.
Dá-se então a grande virada. A partir do mesmo cenário fi-
gurativo de farta brancura, alteram-se as relações de intensidade
que vão reger o epílogo da novela (“A Alumiada Surpresa”). Dei-
xando de ser o que fora “por instante”, ou seja, fator de distensão,
dissolução e “repouso” para os efeitos danosos da racionalidade
desmedida que guiava o comportamento do fazendeiro, a difu-
são da claridade (“Alvava”) atrela-se à tonificação do sentimento
amoroso, desta vez em bases totalmente sensíveis (“aplicou o co-
ração”). Inicia-se então o processo que poderíamos caracterizar
pela correlação conversa: mais extensidade pedindo mais inten-
sidade (Fontanille e Zilberberg, 2001: 26). Quanto mais se abre
para a visão do polvilho (“abriu bem os olhos”), mais Sionésio

148
quando o ser é substância – “substância”

se imbui da exatidão e grandeza do amor que lhe chega: “Assim;


mas era também o exato, grande, o repentino amor – o acima”.
Aquilo que a concentração em Maria Exita não lhe permitia dis-
tinguir, agora se explicita na expansão luminosa (“Socorria-a a
linda claridade”). É como se a forma difusa explicasse a forma
concentrada (“Ela – ela!”).
Mesmo quando a união se torna inadiável (“Ele veio para
junto”), Sionésio ainda se vale da mediação extensiva do polvilho
(“Estendeu também as mãos para o polvilho – solar e estranho: o
ato de quebrá-lo era gostoso, parecia brinquedo de menino”). Só
então se sente em condições de formular o pedido oficial que, a esta
altura, já pressupõe a união e, portanto, pode se ater à supressão de
um eventual limite terminativo: “Você, Maria, quererá, a gente, nós
dois, nunca precisar de se separar? Você, comigo, vem e vai?”
Esse modo de dizer radicaliza a proposta de junção, uma
vez que compreende a eliminação da disjunção, ou seja, com-
preende a conjunção, ter alguma coisa no presente, acrescida da
não-disjunção, conservação de alguma coisa ao longo do tempo
(Greimas e Courtés, 2008: 90). É nítida a proposta de pereniza-
ção do vínculo, o que representa, uma vez mais, o movimento
converso de tonificação da temporalidade. Crescem simultanea-
mente a intensidade e a extensidade, de maneira que seus efeitos
podem ser observados igualmente na subdimensão espacial: a ex-
pressão “Você, comigo, vem e vai?” figurativiza a proposta de con-
vívio também nos itinerários da vida. O alongamento e a aber-
tura da extensidade, caracterizada na figura do polvilho, de tão
acentuados acabam por ultrapassar qualquer noção de limite (“O
polvilho, coisa sem fim”), fenômeno que já vem expresso na res-
posta de Maria Exita: “Vou, demais”. “Lado a lado”, ambos agora
contemplam a vastidão brilhante e nem sequer se dão conta de

149
semiótica à luz de guimarães rosa

que a porção de negrume que servia para temperar o excesso de


cintilação restringe-se, nesse momento, à “sombra da Nhatiaga”
que está por perto como que zelando pela hora sublime.
O máximo de intensidade amorosa coincide então com o
máximo de extensidade da matéria branca. O resultado dessa
correlação conversa entre ambas as dimensões pode ser ilustrado
pelo pensamento irônico criado nas páginas de Candide, de Vol-
taire, toda vez que seu personagem Pangloss recobra o mote “et
tout est pour le mieux dans le meilleur des mondes possibles”.
C. Zilberberg lembra-nos que esse conceito articula justamente
essa forma de correlação, com os valores de impacto crescendo
na mesma proporção dos valores de universo, numa espécie de
progressão implicativa: se aumenta a intensidade, então aumenta
a extensidade (2006b: 76). Mas, em “Substância”, esse lugar con-
ceitual nada tem de irônico ou impossível. Constitui, isto sim, a
união dos amores e dos amantes no ponto de fusão da intensida-
de (“refulgir”) com a extensidade (“o todo branco”), ambas em
seu grau mais elevado.
Levar as duas dimensões tensivas a seu ápice corresponde,
aqui, a conquistar a plenitude conjuntiva no nível narrativo e a
assumir o mesmo ponto de vista no nível discursivo. Surgem, as-
sim, um único ator (“um-e-outra”), um único actante (“em-si-
-juntos”) e a total aglutinação dos conteúdos sensíveis e inteligí-
veis (“coraçãomente” e “pensamor”). Desaparecem as variações
de andamento e tonicidade que afetavam o tempo e o espaço in-
ternos dos protagonistas, e isso significa dizer que são suprimi-
das as diferenças entre eles. As intensidades e extensidades, em
seus graus mais elevados, acabam neutralizando o próprio campo
tensivo dentro do qual transcorrera a história até aquele instan-
te. Consciente disso, o enunciador define o que acontece como

150
quando o ser é substância – “substância”

“o não-fato, o não-tempo”, em outras palavras, como algo que,


agora, já não cabe mais na mesma esfera de forças e formas cons-
truída anteriormente.
Sobra apenas um núcleo que é princípio de alguma coisa, um
“alvor” que congrega, num só fenômeno, Sionésio, Maria Exi-
ta e o clarão do polvilho. Trata-se de um núcleo pulsante, um
“ponto sem parar”, um embrião tensivo que ainda aguarda o seu
ingresso em outro campo de expansão. A abertura espacial se
processa quando esse ponto luminoso é absorvido por uma luz
maior, num âmbito em que os afetos parecem prevalecer sobre os
efeitos (“Avançavam, parados, dentro da luz”). Mas é claro que
esse estágio intermediário, na medida em que significa alguma
(ou muita) coisa, também se insere num campo tensivo cuja cifra
forneceremos daqui a pouco.
O complemento da frase final, “como se fosse no dia de Todos
os Pássaros”, justificado normalmente pelas imagens populares
associadas ao paraíso sublime, traz também sua inflexão semiótica
se recuperarmos a figura do pássaro tal como foi apresentada por
G. Bachelard em A Poética do Espaço (1989: 240). O filósofo parte
de uma reflexão de Jules Michelet, fundada em conceitos tensi-
vos, sobre a rotundidade do pássaro. Diz o historiador francês: “O
pássaro, quase totalmente esférico, é por certo o ápice, sublime e
divino, da concentração viva. Não se pode ver, nem mesmo ima-
ginar, um grau mais elevado de unidade. Excesso de concentração
que faz a grande força pessoal do pássaro, mas que implica sua
extrema individualidade, seu isolamento, sua fraqueza social.”
Bachelard acrescenta que “Michelet captou o ser do pássaro
em sua situação cósmica, como uma centralização da vida guar-
dada por todos os lados, encerrada numa bola viva, portanto no
máximo de sua unidade” (idem). Ora, não é difícil enxergarmos

151
semiótica à luz de guimarães rosa

o mesmo “excesso de concentração”, a mesma figura da “bola


viva”, atribuídos ao pássaro, na fusão dos personagens princi-
pais de “Substância”, quando “um-e-outra” passam a “viver em
ponto sem parar, coraçãomente”. Do mesmo modo, parece-nos
evidente que, a partir da neutralização das diferenças entre Sio-
nésio e Exita, esse encontro definitivo dos amantes converte-se
também no máximo possível de unidade.
É neste ponto que a aproximação das figuras pássaro/casal
ainda explica a nova condição tensiva dos personagens. A “gran-
de força pessoal do pássaro” e sua “extrema individualidade” as-
sinalam a alta intensidade (“grande força”) conferida à operação
de triagem, aquela que, no plano da extensidade, realça o indiví-
duo, o uno, e desconsidera os demais elementos de um conjunto.
Trata-se, pois, da mesma correlação inversa (alta intensidade e
baixa extensidade) que define o estado do casal nessa fase inter-
mediária, pouco antes de ingressar na “luz”: a dupla se individua­
liza sob os efeitos de um processo de concentração tonificada.
Desnecessário frisar que o aspecto social nem entra em cena nes-
se ponto culminante do desfecho.
O casal-pássaro festeja então o seu dia penetrando na subs-
tância luminosa que existe justamente para acolher todos os in-
divíduos da mesma espécie.

152
6. A E xtinção que não se A caba –
“N enhum , N enhuma ”

I ntrodução

O enunciador deste conto tenta recuperar por meio de seus


pontos tônicos um período de sua vida, na infância, em que ocor-
reram fatos cruciais, mas pouco nítidos para a apreensão imatura
de uma criança. As lembranças se confundem com as distâncias,
de maneira que não há certeza nem do tempo nem do espaço em
que se deram os episódios. Tudo se resume a “lampejos”, que
identificam muito mais intensidades de sentimento que referên-
cias concretas. Aliás, a própria “veracidade” dos fatos relatados é
posta em dúvida, já que nada restou para comprovar ou esclare-
cer os eventos penosamente reconstituídos pela memória.
Em outras palavras, o que se passou numa determinada “man-
são” rural (“casa-de-fazenda”), encoberta por “serras e serras… à
beira de algum rio, que proíbe o imaginar”, numa data (“1914”)
que “não poderia ser aquela”, envia ao enunciador alguns sinais
capazes de justificar a existência humana, mas, ao mesmo tempo,

153
semiótica à luz de guimarães rosa

esses mesmos sinais podem também se reportar a personagens e


ações que sequer existiram. Daí o mote poundiano adotado ao
longo de todo o texto: não saberemos “nunca mais”.
Temos, assim, já de partida, um modo de dizer mobilizado
bem mais pela crença na intensidade subjetiva das apreensões que
pela compreensão objetiva dos encadeamentos narrativos. Alguns
pontos de saliência iniciais, altamente tonificados, são decisivos
para que o enunciador restitua o conteúdo até então desfeito na
“porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente
enganar-nos, ou, pelo menos, retardar que perscrutemos qualquer
verdade”. Entre eles, podemos destacar 1. a beleza da Moça (“a
mais formosa criatura que jamais foi vista”), 2. a extraordinária
longevidade da velhinha (“velhíssima”, “ancianíssima”), ultra-
passando em muito o limite temporal de vida cabível a um ser
humano (“além de todas as raias do viver comum e da velhez”)
e 3. a resposta extrema da Moça ao pedido de união que o Moço
lhe formula; ela crê que deveriam adiar a decisão de casamento
para a hora da morte, quando então estariam seguros de que o
amor entre eles teria sido por toda a vida. Pela alta densidade de
presença obtida e pelo impacto causado no universo subjetivo do
enunciador, esses três fenômenos lhe serviram de balizas para a
recordação minuciosa – e possível – dos conteúdos vividos.

P otencialização

Para a semiótica da presença, a memorização supõe, de um


lado, o retorno dos dados realizados à condição de norma ou sis-
tema em nosso universo cognitivo. De outro, supõe uma reabsor-
ção da experiência sensível num quadro em que o tempo interno

154
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

do sujeito, suspenso pelo choque do acontecimento, começa a


se recompor até poder se reatualizar em discurso, não mais com
a agudeza sensorial de sua apreensão direta inicial, mas com a
inteligibilidade necessária para se tornar também um fato social.
Por isso, dizemos que memorização em si corresponde à poten-
cialização, combinando os aspectos átonos e tônicos da acepção
do termo. No primeiro caso, potencializar significa passar de um
estado de realização para um estado “potencial”, latente, inativo,
configurando uma amenização do impacto da experiência para
que esta possa durar na mente do indivíduo. No segundo, poten-
cializar refere-se a tornar mais potente, intensificar, reforçar um
conteúdo na memória para que, cedo ou tarde, seja sentido como
falta e se reatualize em novo processo discursivo. Essas diferenças
de intensidade estão diretamente associadas à densidade de pre-
sença (concentração) que os elementos de uma prática semiótica
qualquer obtiveram no auge de sua realização.
Há uma atividade contínua de potencialização átona na as-
similação regular dos ritos, hábitos e estereótipos que vão se tor-
nando quase automáticos ao longo de nossa vida, e na incorpo-
ração que fazemos dos célebres “traços das operações sintáticas
anteriormente efetuadas” (Greimas e Courtés, 2008: 402), tão
mencionados pelos semioticistas. Trata-se, aqui, de elementos
memorizados, disponíveis, que desfrutaram de pouca densidade
de presença quando em estado de realização. Possuem, portanto,
uma atonia básica que transita por todos os modos de presença
sob a forma de gramática ou de rito, inconscientes, mas que, por
outro lado, assegura a estruturação de novas práticas significan-
tes. Não são jamais motivos para a reatualização dessas práticas,
mas constituem condição inerente para que elas se efetivem.

155
semiótica à luz de guimarães rosa

Já à potencialização tônica pertencem os conteúdos que se


realizaram com alta densidade de presença e que, em seguida, se
integraram no universo subjetivo como crenças essenciais, assu-
midas, e que, provavelmente, serão incentivos para novas atuali-
zações. Ou seja, aquilo que fora força, tonicidade, em realização,
torna-se diferença, destaque, em potencialização. Na passagem
de um modo a outro presume-se que haja perda de densidade e,
portanto, atenuação do impacto que caracteriza a apreensão ini-
cial. Entretanto, um conteúdo que tenha tido presença marcante
na experiência do sujeito sempre conservará uma espécie de sau-
dade da comoção, cujo valor tônico incita as reatualizações e as
futuras realizações em novas formações semióticas.
Os três pontos de saliência do conto, numerados anterior-
mente, que ajudam o enunciador a reconstituir as ocorrências
esmae­cidas na memória, constituem, assim, potencializações tô-
nicas que dão respaldo à aventura de restabelecer o enredo de
“Nenhum, Nenhuma”. A esses pontos, foi acrescentado mais um:
a dúvida. O sentimento de que algo fora ocultado ao Menino
num dos quartos da fazenda, durante a primeira fase de sua es-
tadia, também carregava a tonicidade suficiente para mais tarde
lhe servir de referência aos esforços de recordação (“A dúvida que
isso marcou, no Menino, ajuda-o agora a muito se lembrar”). Não
era uma dúvida qualquer, mas o pressentimento de que o cami-
nho interditado lhe furtava um saber essencial (“todos pensavam
esconder-lhe o que havia num determinado quarto, e mesmo o
passo do corredor para onde dava aquele quarto”). Ali, soubera
depois, era mantida Nenha – redução de “nenhuma” –, a velhi-
nha que já ia além do período regular de vida.
Embora parecesse realmente uma representante do além, Ne-
nha é descrita como a própria negação da Morte ou de qualquer

156
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

entidade sobrenatural (“a velhinha não era a Morte, não… Antes,


era a vida”, “não era sombração, mas sim pessoa”). Na verdade,
ela ingressava na “perpetuidade” assim como o Menino ingres-
sava na vida. Surgem daí algumas identidades irresistíveis para o
pequeno visitante da fazenda. A velhice a fez encolher de tal sorte
que se tornara “pequenina como uma criança”. Acomodavam-na
“num cesto, que parecia um berço”. Esses traços infantis são cap-
tados pelo garoto como uma possibilidade de supressão brusca
do longo intervalo de tempo e, por conseguinte, da distância es-
pacial que o separa da velhinha (“o Menino de repente se esque-
ceu e precipitou-se: queria brincar com ela!”), não fosse a pronta
intervenção dos adultos para conservar o afastamento prudente
entre os personagens.
Por isso, apesar das diferenças evidentes que definem, de um
lado, a personagem mais jovem e, de outro, a mais velha, não há
uma oposição polar entre ambas. O fato de já ter ultrapassado a
fronteira entre a vida e a morte faz de Nenha uma figura situada
em outra dimensão, onde afloram mais afinidades que dispari-
dades em relação ao Menino. Podemos encontrar uma oposição
mais aguda se confrontarmos o papel do Menino com o do ve-
lho, o Homem alto, pai da Moça, cuja subjetividade permanece
obscura ao longo do texto. Enquanto aquele devota uma atenção
especial às relações humanas entretidas no interior da fazenda,
esse Homem, “sem aparência” e “sem aspecto”, se mostra alheio
a tudo que ali ocorre. Enquanto o Menino entra na vida queren-
do compreender os seus conteúdos essenciais, o Homem velho,
acometido de doença fatal, já sabe que em breve deixará essa vida
e, portanto, não mais se envolve com o destino dos que ficam.
O principal foco de observação do Menino recai sobre o re-
lacionamento do casal que se acha justamente no apogeu da ju-

157
semiótica à luz de guimarães rosa

ventude, no ponto para o qual ele próprio se dirige. É ali que


cria o simulacro do seu período futuro, no qual vê encenada uma
história de desencontro amoroso que o abala profundamente.
A Moça e o Moço, atores que a princípio parecem concebidos
um para o outro, tornam-se expressão máxima da fatalidade do
desencontro e sinal da preponderância dos valores descontínuos
sobre os contínuos, tanto no tempo como no espaço, de acordo
com o curioso princípio: se o amor estará sujeito a alguma rup-
tura no decorrer de toda a vida, não há razão para se constituir
um vínculo aqui e agora (“E como saber se é o amor certo, o único?
Tanto é o poder errar, nos enganos da vida”). Esse ponto de vista,
a um só tempo fundamental e insensato, defendido pela Moça,
desorienta o Moço (“simples homem, são em juízo”), e, por ex-
tensão, o Menino, que a esta altura sofre o efeito inebriante dos
encantos da jovem marcados pela alta tonicidade (“formosura
tão extremada”).

D istribuição A spectual dos A tores

As relações entre esses papéis narrativos são mais complexas.


Fascinado pela figura da Moça, o Menino enxerga-se no Moço,
ator que reúne as condições aparentemente ideais para conquis-
tá-la e que até mesmo já conta com sua estima (“A Moça e o
Moço, quando entre si, passavam-se um embebido olhar, dife-
rente do dos outros”). Nesse sentido, o lado sensato de sua mente
infantil solidariza-se com a visão do Moço, a ponto de se mostrar
igualmente abatido pela proposta drástica contida nas palavras
da Moça (“Ouvida a resposta da Moça, o Menino estremeceu,
queria que ela não tivesse falado”).

158
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

Mas há outro lado em sua maneira de sentir e pensar que


intui uma verdade naquela declaração extremada da jovem e que
o põe em conflito velado com o pretendente. Essa perspectiva,
que vai se ampliando ao longo da novela, explica, em discurso,
sua antipatia ciumenta pelo Moço, mas sobretudo, em nível pro-
fundo, sua predileção pelos valores contínuos, os que permitem
conceber uniões duradouras. São valores regidos pelo andamen-
to desacelerado e pela correspondente dilatação do tempo e espa-
ço subjetivos, e que são identificados pelo enunciador desde que
faz sua primeira descrição do casal no auge do convívio amoro-
so: “Mas a Moça estava devagar. Mas o Moço estava ansioso”.
O alentecimento que cifra as atuações da jovem e lhe permite
esperar o quanto for necessário para atingir os seus propósitos
contrasta com a avidez acelerada do jovem que só consegue abra-
çar projetos a curto prazo1.
Tal incompatibilidade tensiva adiciona mais uma desconti-
nuidade, agora no interior da geração que sucede à do Menino,
num quadro de relações já caracterizado pela perda dos elos pa-
rentais. O protagonista encontra-se separado de seus familiares e
não sabe dizer se tem algum vínculo com as pessoas da fazenda.
O Homem alto, pai da Moça, já não se comporta como tal, ape-
nas cumpre os ritos finais de seu ocaso, abstraído dos outros.
Da velhinha Nenha, ninguém mais lembra o real laço de pa-
rentesco (“Não sabiam mais quem ela era, tresbisavó de quem
[…] apenas com a incerta noção de que fosse parenta deles”).
A privação da memória decorrente da idade ultra-avançada, a
morte sucessiva de diversas ancestrais femininas da família, seus

1. As cifras de andamento aqui adotadas são as mesmas que regem, respectivamente,


Maria Exita e Sionésio, em “Substância”.

159
semiótica à luz de guimarães rosa

períodos vividos entre “estranhos”, tudo isso contribui para o


seu isolamento genealógico (“daí, rompido o conhecimento”). O
desvelo com que é tratada se deve bem mais à bondade natural da
Moça que a alguma ligação de ordem familiar.
Assim, embora estejam juntas na fazenda e, em alguns casos,
pareçam cultivar afeições recíprocas, as pessoas que ali convivem
não se pautam por vínculos sanguíneos ou sociais muito bem de-
finidos. Jamais saberemos o que realmente as congregou naquele
lugar e naquele momento histórico, mas é certo que preenche-
ram posições decisivas no íntimo do Menino e que tiveram nele o
seu denominador comum. Em outras palavras, o modo pelo qual
os fatos foram potencializados no mundo subjetivo do Menino e,
agora, reatualizados pelo enunciador apresenta-se como a única
fonte para a religação de personagens até certo ponto “avulsas” e
para uma reflexão minuciosa sobre, justamente, a profundidade
da junção, valor semiótico indispensável no reconhecimento dos
processos narrativos (“Se eu conseguir recordar, ganharei calma, se
conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro e real, já havi­do”).
Já vimos que a memorização de um acontecimento de toni-
cidade elevada se converte em diferença e destaque no âmbito da
potencialização, o que contribui para o seu retorno em práticas
semióticas futuras, não mais como evento inesperado por certo,
mas como conteúdo essencial já elaborado no interior do indiví-
duo. Não podemos esquecer, porém, que entre os efeitos causa-
dos por esse tipo de acontecimento figura também o desarranjo
imediato do universo subjetivo de quem sofre o seu impacto. A
ideia de que algo importante sobrevém e se impõe à trajetória
de vida autodelineada pelo sujeito pressupõe um embate de an-
damentos antagônicos. Aquilo que irrompe, que se apresenta de
maneira abrupta, traz sempre um coeficiente de alta velocidade

160
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

que é incompatível com a evolução constante, mas passo a pas-


so, da nossa história de vida. A aceleração produz rupturas no
modo contínuo próprio da desaceleração. Por isso o Menino se
“estremece” e se sente “atordoado” – poderíamos acrescentar, es-
tarrecido – diante da resposta pouco ortodoxa da Moça. Vive ali
a força de um acontecimento imprevisto que invade seu íntimo,
interrompe seu tempo subjetivo e, nesse ato, fratura sua própria
identidade. Em razão dessa desordem interna geral, o Menino
se sente ora como “ninguém” (“Atordoado o Menino tornado
quase incônscio, como se não fosse ninguém”), em oposição a to-
dos os outros personagens da fazenda, ora como parte integrante
desse grupo dos outros, numa autêntica oposição participativa
(“ou se todos uma pessoa só, uma só vida fossem: ele, a Moça,
o Moço, o Homem velho e a Nenha”), nos termos definidos por
Hjelmslev2. O enunciador se atém a este último formato, do qual
extraímos a seguinte ordenação aspectual:

DEMARCAÇÃO EXTENSÃO DEMARCAÇÃO EXTENSÃO


INCOATIVA DURATIVA TERMINATIVA INCOATIVA-DURATIVA
início da vida meio da vida final da vida além da vida
Menino Moça-Moço Homem velho Nenha

É essa, em princípio, a distribuição das personagens no es-


paço tensivo criado no interior do conto. Ao constatar que pode
ser todos ao mesmo tempo (“uma só vida”), o Menino descansa

2. De acordo com o linguista dinamarquês, o sistema sublógico que estrutura as lín-


guas naturais prevê tanto as articulações lógicas, baseadas na exclusão, como as
articulações pré-lógicas que incluem a oposição participativa do tipo: a vs. a + b + c
(Hjelmslev, 1978: 158).

161
semiótica à luz de guimarães rosa

o olhar em Nenha (“em quem trouxe os olhos”), reforçando sua


identidade incoativa com a “menina ancianíssima” e sugerindo a
perpetuação desses ciclos vitais a partir da mesma configuração
aspectual. Enquanto o Homem velho representa a totalização de
uma vida, a velhinha representa sua infinitização. Um ser desti-
nado a acabar, outro, destinado a durar, mas ambos já desconec-
tados dos conflitos diários que ocasionam as transformações ao
longo da existência. O Homem dirige-se ao “nunca mais”, um
dos Leitmotiven do conto; Nenha, ao “para sempre”. Duas ex-
pressões que perfazem respectivamente as faces negativa e positi-
va da mesma determinação.

I mutabilidade

O limite terminativo, que aspectualiza a função do Homem,


e a expansão temporal além da vida, que caracteriza a velhinha,
são categorias reiteradas nos dois principais gestos da Moça: o
que põe fim a sua relação com o Moço (nunca mais) e o que a
leva a viver “para sempre, na soledade”. O ponto em comum en-
tre o “nunca mais” e o “para sempre” é a imutabilidade, principal
valor cultivado pela Moça e que deve ser aqui examinado com
mais atenção.
Uma coisa é a luz (tônica, veloz e enfocada) que a Moça irra-
dia e que penetra no mundo interno do Menino fazendo com que
este receba sua formosura como algo irresistível, entre o sublime
e o fantástico, capaz de afetar, por si só, suas crenças mais pro-
fundas. Outra coisa são os valores agregados a essa personagem,
todos eles determinados pela desaceleração da velocidade e pela
dilatação do tempo subjetivo, que exigem do Menino, não ape-

162
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

nas a introjeção pura e simples da experiência impactante, mas a


adesão aos conteúdos extensos que essa lhe traz. O primeiro sinal
dessa aceitação plena de tudo que provém da Moça é emitido
pelo próprio enunciador quando associa sua bela figura feminina
ao tema da “paz”, extenso por natureza: “A lembrança em torno
dessa Moça raia uma tão extraordinária, maravilhosa luz, que, se
algum dia eu en­contrar, aqui, o que está por trás da palavra ‘paz’,
ter-me-á sido dado também através dela”. É o brilho concentrado
que causa a difusão de uma serenidade de ânimo.
Do mesmo modo, o que fez perdurar a data de 1914 nos
ouvidos do Menino, como a que estaria inscrita no quarto-es-
critório da fazenda – mesmo que o enunciador a considerasse
improvável –, foi sem dúvida a voz da Moça (“Foi a Moça quem
enunciou, com a voz que assim nascia sem pretexto, que a data
era a de 1914? E para sempre a voz da Moça retificava-a”), a que
tem o poder de expandir os conteúdos no tempo e torná-los imu-
táveis a despeito de qualquer outra evidência. Ou seja, embora
a personagem da Moça tenha invadido o íntimo do Menino à
maneira de um acontecimento, no sentido semiótico do termo,
ela própria, em sua caracterização atorial, resiste à aceitação de
fatos inesperados que possam transtornar suas esperas vitais (“A
Moça não queria que coisa alguma acontecesse”). Decorre daí o
instante crucial do conto em que ela rejeita o pedido de união
enunciado pelo Moço, cujas consequências poderiam transfor-
mar sua vida, e, mesmo sofrendo, volta-se para a velhinha que,
seguramente, não lhe apresenta qualquer ameaça de mudança
(“ela se abraçava com o incomutável, o imutável”).
A perspectiva temporal “para sempre” assegura o liame en-
tre as mulheres do conto. De um simples olhar da Moça para a
velhinha já se depreende que a longa duração é o valor prepon-

163
semiótica à luz de guimarães rosa

derante (“Olhava para a Nenha, extremosamente, de delonga,


pelo curso dos anos, pelos diferentes tempos, ela também me-
nina ancianíssima”). Se o Menino “de repente” “precipita-se” –
ambas, expressões de aceleração –, achando que poderia brin-
car com a velhinha, a Moça intervém, mas se servindo de uma
intensidade descendente (“com brandura, sem o repreender”),
como se apenas precisasse reduzir o andamento que regeu o
impulso do garoto. São esses gestos de permanência, de longo
prazo, que a tornam, no dizer do enunciador, “insubstituível”,
na mesma medida em que Nenha está, como vimos, na esfera
do “incomutável”. É próprio da Moça manter para sempre sua
beleza impecável, como se fosse personagem de conto de fadas
(“era a mais formosa criatura que jamais foi vista, e não há fim
de sua beleza. Ela poderia ser a princesa no castelo, na torre”).
Ela é um misto de inteireza espacial e conservação temporal,
dois atributos que se consubstanciam na cena em que traz um
copo d’água para a velhinha: “A Moça trazia a água, vinha com
nas duas mãos o copo cheio às beiras, sorrindo igual, sem dei-
xar cair fora uma única gota – a gente pensava que ela devia
de ter nascido assim, com aquele copo de água pela borda, e
conservá-lo até a hora de desnascer: dele nada se derramasse”.
Nessa plenitude, nada falta (nem “uma única gota”), nada ex-
cede (ou “derrama”), e tudo cabe exatamente no período de
existência que lhe é reservado (do “nascimento” ao “desnasci-
mento”). A expressão figurativa de tal perfeição está na imagem
do sorriso da jovem reproduzida pela linha da água na borda
superior do copo.
Portanto, os valores da inteireza e da permanência emana-
dos da Moça convertem-se em crença e critério de discernimen-
to no íntimo do Menino que se esforça para “ler” os conteúdos

164
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

humanos criados à sua volta. Não lhe escapam nem mesmo as


mazelas que também são inerentes aos contos de fadas (“Em re-
dor da altura da torre do castelo, não deviam de revoar as ne­gras
águias?”). Elas se concentram, em princípio, no silêncio absorto
do Homem velho que cultiva o seu segredo (enfermidade fatal)
como se fossem flores, indiferente ao cotidiano que o cerca. É o
personagem que encarna os valores-limite do conto, sobretudo
em sua configuração terminativa, mas que suporta de maneira
resignada o fardo de conhecer – e, ao mesmo tempo, desconhe-
cer – o seu destino. Em relação à proximidade da morte, “Ele
sabe. Mas não sabe por que!” Já no início da estória, diante da
indefinição de sua aparência, quando o enunciador tenta em vão
identificá-lo, pela semelhança sonora dos nomes, com “um des-
ses velhos tios” conhecidos, a conclusão se impõe como um caso
de complexidade que se estenderá por todo o texto: “os dois, o
ignorado e o sabido, se perturbam”.
De um lado, portanto, o Homem traz ao Menino a consciên-
cia dos limites entre a vida e a morte, entre a paz, já associada à
Moça, e a angústia (“Mesmo um menino sabe, às vezes, desconfiar
do estreito caminhozinho por onde a gente tem de ir – beirando en-
tre a paz e a angústia”); de outro, lhe traz um exemplo sereno de
convivência com o “ignorado”, já que todo o trabalho do enun-
ciador-Menino consiste em decifrar o desconhecido a partir dos
destaques impressos na memória (“Na própria precisão com que
outras passagens lembradas se oferecem, de entre impressões confu-
sas”). E quanto mais conhece o que lhe parece essencial, menos
reconhece o que lhe parecia familiar, correlação inversa que o
acompanha até o final da novela: “Porque eu desconheci meus
Pais – eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente
conhecê-los, eu; eu?”

165
semiótica à luz de guimarães rosa

D o N unca M ais ao P ara S empre

Acontece que a perspectiva temporal “nunca mais”, a face


negativa da imutabilidade, parece ser um elemento constante na
composição figurativa dos homens. É o horizonte para o qual o
Homem velho naturalmente se dirige, mas é também a sina do
Moço, recusado pela Moça, e de quem nunca mais se ouviu falar,
após a volta do Menino à casa. E não se pode esquecer que, à me-
dida que o Moço, rejeitado, se afasta da fazenda, levando consigo
o Menino, o único personagem que insiste no adeus final, posta-
do à soleira da porta, é o Homem velho cuja fisionomia perma-
nece indefinida como ao longo de toda a novela. Essa cadeia de
imutabilidades negativas que atinge os personagens masculinos
é uma ameaça real ao futuro do Menino e o desenrolar dos fatos
não contesta essa predestinação. Assim que o casal se separa de
uma vez por todas – para sempre ou para nunca mais voltar, a
depender do ponto de vista – o Menino só tem por alternativa
seguir o Moço, que, por sua vez, aceita sua companhia como se
estivesse cumprindo uma missão. No ato da separação, o peque-
no se acha de tal modo aglutinado ao Moço que chega a dizer:
“ela se separava da gente”.
Tudo isso justifica os sentimentos ambíguos que o Menino ex-
perimenta em relação ao rapaz. Caso a união com a Moça se com-
pletasse, algo de si, de sua porção masculina, cantaria vitória, pois
estaria superando o estigma da supressão temporal (nunca mais)
e ingressando no universo da plenitude e das longas durações tão
caro à jovem. Nesse caso, o Moço estabeleceria a ponte necessária
para que o Menino alimentasse a esperança de também conquistar
o “para sempre” (“Mas o Menino queria que os dois nunca deixas-
sem de assim se olhar”), mesmo que isso representasse ao mesmo

166
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

tempo uma vida de sofrimento e resignação. Mas o fato de a Moça


não aceitar a proposta do Moço, embora o amasse, apontando-
-lhe as insuficiências afetivas que sacrificariam qualquer projeto a
longo prazo, confirma a intuição do Menino figurativizada como
ciúmes precoces do rapaz. Ele pressente que o Moço não está à
altura dos projetos da Moça. Esta lhe diz, textualmente: “– ‘Você
ainda não sabe sofrer’ ”. E quando aprofunda a questão, cobrando
do Moço uma capacidade de espera (esperar até a hora da morte)
que ultrapassa em muito a do senso comum, para que pudessem
ter certeza de que viviam o “amor certo, o único”, aparecem en-
tão todos os sinais da efemeridade que rege a conduta do Moço
num plano raso e desprovido de ambições espirituais (“Dissesse:
que era um simples homem, são em juízo, para não tentar a Deus,
mas para seguir o viver comum, por seus meios, pelos planos ca-
minhos!”). Sua filiação aos conteúdos provisórios que tendem à
extinção (nunca mais), característica do setor masculino do con-
to, ganha força na duplicidade de sentido da expressão “varões”
contida no trecho: “Deses­perado, o Moço, lívido, ríspido, falava
com a Moça, agarrava-se aos varões da grade do jardim”.
A imutabilidade positiva (para sempre), valor que se vai fir-
mando no decorrer do conto como o mais precioso na ainda bre-
ve história de vida do Menino, adquire um coeficiente tensivo
bastante próximo do que caracteriza o processo de potencializa-
ção tônica definido anteriormente: atenuação de uma realização
conjuntiva cuja alta densidade de presença tenha provocado no
sujeito uma saudade da comoção e, por isso, tenha se preserva-
do na memória com forte probabilidade de reatualização. Essa
noção já surge assimilada culturalmente em máximas do cotidia-
no como quem foi rei nunca perde a majestade. A intensidade do
“rei” distende-se, mas ao mesmo tempo preserva-se – podería-

167
semiótica à luz de guimarães rosa

mos dizer, estende-se – na ideia de “majestade”. Ao reconstituir,


portanto, os elementos potencializados, os que serviram de base
para a reconexão dos dados em sua memória – já que “a memó-
ria não é, pois, uma acumulação, mas uma construção” (Valéry,
1973: 1234) –, o enunciador-Menino desenvolve sua estratégia de
perenização dos acontecimentos que até então pareciam fadados
a desaparecer. Pretende com isso converter o “nunca mais” em
“para sempre”, como se praticasse os ensinamentos, aparente-
mente absurdos, deixados pela Moça.
Na linha de raciocínio desenvolvida na novela, aquilo que
causa impacto deixa rastros indeléveis que podem ser encon-
trados, ou reconstruídos, mesmo que já se tenha passado muito
tempo: “a operação da memória é independente do tempo de-
corrido desde o acontecimento” (Valéry, 1973: 1235). Baseado
nisso, o enunciador põe em destaque os modos de apreensão e
de potencialização dos conteúdos que, mais tarde, o ajudaram a
recuperar as sequências de fatos vivenciados na fazenda. Mostra
que o olfato pode desempenhar importante papel na subsistência
das lembranças, principalmente no caso de um garoto que ainda
não havia adquirido a faculdade da leitura. Era pelo cheiro que
o Menino reconhecia a data (1914) estampada no escritório da
fazenda e sentia os impactos que depois permaneceriam em sua
memória. O enunciador qualifica essa capacidade sensorial como
a “mais vivaz” e “persistente”. Se esse último adjetivo fala por si,
o termo “vivaz” merece atenção especial, já que comporta uma
combinação entre forte intensidade e ampla extensidade. No pri-
meiro caso, encontramos entre as definições do termo arroladas
pelo dicionário Houaiss conceitos como “célere”, “enérgico”,
“intenso”, “penetrante”, “vivo” (velocidade + tonicidade); no
segundo, expressões que caracterizam o que “pode viver muito

168
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

tempo” ou o “que pode durar muito” (permanência no tempo).


Pois é o “cheiro vivaz”, com essas propriedades intensa e extensa,
“que fixa na evocação da gente o restante”, ou seja, as peças e par-
tes da mobília de madeira que ocupam o escritório do casarão.
Ao mesmo tempo, paradoxalmente, é esse mesmo “cheiro” que
nunca mais houve, segundo o enunciador.
Como tudo que se deu naquela longínqua fazenda num breve
período, o cheiro também se extinguiu, mas deixou seus valores
marcados pela força expressiva e pelo potencial de permanência.
É Valéry, mais uma vez, quem traz uma boa síntese de tudo isso:
“O que nos toca persiste e se projeta nas coisas seguintes. O in-
tenso tem, portanto, uma qualidade própria – que é a de persistir
além da duração de sua causa” (1973: 1235). E o poeta francês
ainda se alia a Guimarães Rosa – ou vice-versa – na escolha do ol-
fato como ordem sensorial prevalente nesse caso: “Não apenas o
intenso, mas a impressão que encontra ressonância no sentido ou
no sujeito. Assim como ocorre com o odor” (idem). O cheiro vi-
vaz, intenso e durativo, reproduz, assim, na dimensão sensorial, a
cifra tensiva que rege a personagem da Moça. E quando aplicado
a ela mesma, no nível discursivo, o cheiro se torna ainda mais va-
garoso para assegurar maior longevidade. É o que depreendemos
dos adjetivos “meigo” e “grave”, na cena em que o Menino sente
de perto o aroma que vem do corpo da Moça (“cheirava a vem de
verde e a rosa, mais meigo que as rosas cheiram, mais grave”).
A luta para que as lembranças esparsas se organizem e se fixem
na memória com alguma coerência, se não narrativa pelo menos
afetiva, atinge proporções dramáticas no universo subjetivo do
enunciador. O seu esforço de recuperação dos fatos e de suas co-
nexões é tanto maior quanto mais “tênues” (menos intensos) se
mostram os conteúdos vivenciados. No anseio de obter concre-

169
semiótica à luz de guimarães rosa

tude suficiente para lastrear os pontos vagos de sua recordação,


o enunciador se transfere, em alguns momentos, da dimensão
temporal para a espacial, tentando recompor as “coisas” que ca-
racterizavam a fazenda (“Tênue, tênue, tem de insistir-se o esforço
para a1go remembrar, da chuva que caía, da planta que crescia,
retrocedidamente, por espaço, os castiçais, os baús, arcas, canas-
tras”), atendo-se em especial àquelas que se preservam no tempo
(“talvez as coisas mais ajudando, as coisas, que mais perduram: o
comprido espeto de ferro, na mão da preta, o batedor de cho­
colate, de jacarandá”). Mas permanece-lhe a dúvida: será que sua
infância teria a consistência dessas “coisas” que perduram? Inde-
pendentemente da resposta, o enunciador só conta com o que o
Menino foi capaz de memorizar (“Infância é coisa, coisa?”).
Mais uma vez, o processo de potencialização tônica se evi-
dencia como triagem de elementos concentrados, com alta den-
sidade de presença, que possam, no entanto, durar no âmbito da
memória até se reatualizar em nova criação semiótica, como, por
exemplo, o próprio conto que ora analisamos. Mais uma vez, é
o mito da imutabilidade positiva, concebido e representado pela
Moça, que se apodera do enunciador-Menino. Tal processo é des-
crito na passagem do texto que acabamos de comentar, referente
à duração das “coisas”, pelas expressões “extrair e reter”, ou seja,
pela operação de triagem do que pode realmente permanecer.

C rença na F ábula

Com o desaparecimento ao longo do tempo das pessoas


que poderiam explicar a presença, ou as razões da presença, do
jovem protagonista na desconhecida fazenda onde ocorreram

170
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

os eventos narrados, somente as reminiscências, que despon-


tam aqui e ali no agora enunciativo projetado no texto, trazem
elementos para reconstituir os conteúdos tão profundamente
vivenciados pelo Menino. Mesmo essas lembranças, verdadei-
ras pontas de iceberg, não se beneficiam da celeridade peculiar
às evocações que decorrem da elipse do tempo intermediário.
O “clarão reminiscente” não brilha de imediato. Trata-se, na
verdade, de um “difícil clarão” que “assoma” de modo “muito
lento”, depois de perfazer uma “longuíssima viagem”, como a
realizada pela luz das estrelas. E quando já é possível entrevê-lo,
falta ainda sua maior parte, a que ficará para sempre submer-
sa no plano do ignorado. Quem encarna esse enorme hiato da
memória (“imensa omissão”) é Nenha, cuja longa existência
não está mais conectada com a história pregressa. Ela sela para
sempre o que nunca mais saberemos (“condenados segredos”),
embora nos deixe a certeza de que esses fatos inacessíveis fize-
ram (ou fazem) parte de seu mundo interior.
Para o Menino, essa condição representa um movimento
peculiar na balança tensiva: quanto mais descresce a vitalidade
de Nenha, mais se acentua o seu poder de encantamento. De
fato, o seu vigor não apenas se atenua com a velhice, mas sobre-
tudo experimenta uma espécie de fragilidade intensificada, ou
seja, perde incessantemente funções ativas e no entanto jamais
se extingue por completo. Essa capacidade de suportar cada vez
mais menos (intensidade às avessas), esquivando-se da espera-
da extenuação final, já é em si a origem do processo de encan-
tamento que arrebata o Menino desde o seu primeiro contato
com a velhinha.
Em outras palavras, a operação implicativa, típica de um
decréscimo progressivo de tonicidade, só se completa nesse

171
semiótica à luz de guimarães rosa

caso com o advento de uma operação concessiva de acréscimo


inesperado e inconcebível de… atonia (Zilberberg, 1999: 60).
E o garoto, que apenas começava a estabelecer um quadro de
crenças possíveis a partir de valores preconizados pelo senso
comum, vê-se de repente diante do desafio de crer no “inacre-
ditável” (“Era uma velha, uma velhinha – de história, de estória
– velhíssima, a inacreditável”), outra operação concessiva que
exige um salto subjetivo, agora no plano ascendente: além de
estabelecer suas crenças, o Menino deve também recrudescê-las.
Trata-se, aliás, da mesma operação que lhe permite crer nos ar-
gumentos, igualmente inacreditáveis, lançados pela Moça para
justificar sua recusa ao Moço. O pensamento concessivo está
na base da adesão do Menino a valores considerados fictícios
por romperem com a linearidade lógica das operações implica-
tivas, do gênero crer no acreditável. É com ele que o protagonista
transpõe a fronteira que poderia existir entre realidade e ficção
e passa a crer também naquilo que o encanta, mesmo que a
princípio lhe soe como inacreditável.
Adotar o estilo concessivo significa aumentar a velocidade
das operações mentais para não disperdiçar os saltos intuitivos
que permitem aproximações instantâneas de elementos aparen-
temente paradoxais. Ao recorrer às “coisas que mais perduram”
como meio para reavivar a memória que se vem dispersando em
conteúdos passageiros, o enunciador lança mão de um recurso
implicativo: objetos inanimados, concretos e resistentes pouco se
submetem à ação do tempo e, portanto, constituem balizas natu-
rais para a atividade reminiscente. A partir de coisas que se pre-
servam materialmente, pode-se em princípio recompor passo a
passo os fenômenos de ordem mais abstrata. Por outro lado, ao se
servir das fortes impressões deixadas por Nenha para reconstituir

172
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

suas lembranças, o enunciador-Menino faz uso de uma antilogia


típica do pensamento concessivo: embora seja um ser humano e,
como tal, tenda a uma fragilização orgânica com o passar do tem-
po, Nenha insiste em durar nos termos de uma lógica paradoxal
marcada pela equação menos vigor = mais vida. Claro que essa
combinação “contraintuitiva” pode ser analisada e nuançada de
modo a restaurar as etapas suprimidas em sua formulação (“vi-
gor” diz respeito à intensidade, enquanto “vida”, à extensidade
etc.), mas essa desaceleração apenas quebraria o encanto que a
velocidade provoca na primeira apreensão, quando franqueia o
limite que separa a realidade da ficção. É dentro de um universo
encantado que o Menino compreende melhor não apenas a exis-
tência de Nenha, mas também da Moça e de suas condutas.
O tanto de atonia que se sobrepõe ao já enfraquecido físico
de Nenha sem jamais consumi-lo definitivamente, esse mais me-
nos ilimitado, garante ao Menino, como vimos, a passagem para
um mundo fabular, onde os personagens existem para sempre
mesmo que sofram ameaças de desaparecimento – ou de mer-
gulho nas instâncias do nunca mais. Na verdade, essas ameaças
são marcas do mundo “real” necessárias para a valorização do
mundo imaginário. O enunciador-Menino consegue aquilatar
a proeza perseverante da velhinha justamente por depreender
que seu estado orgânico, via de regra, caracterizaria iminência
de morte e que, contrariamente, essa iminência, nos episódios
relembrados, é sempre postergada, reproduzindo a tensão entre
fugacidade e permanência, tão presente nos esforços de memória
realizados pelo protagonista. Desse ponto de vista, a sobrevida de
Nenha, entre o efêmero e o duradouro, constitui um modelo de
funcionamento que reforça a crença que o enunciador deposita
em suas lembranças.

173
semiótica à luz de guimarães rosa

Portanto, transpondo-se para o plano das representações


fabulares e valendo-se da coexistência de fatos fugazes e fatos
permanentes, que se manifesta tanto na sobrevida da velhinha
como em suas próprias tentativas de recordação, o Menino ex-
prime-se ora em função da transitoriedade, ora em função da
perenidade. Assim, quando vê Nenha imóvel, no cesto, ele tem
a impressão de que Nenha entrou no sono profundo e, então,
movido pelo encantamento, formula a pergunta mais fascinante
do conto: “Ela beladormeceu?” A fragilidade daquele ser delineia
para o observador a exata dimensão do efêmero: “A vida era o
vento querendo apagar uma lamparina”. Afigura aquelas lem-
branças que lhe escapam antes que possa reconhecê-las.
Mas o Menino é também capaz de enxergar na velhinha o
lado duradouro da lembrança, para o qual, aliás, Valéry cria uma
definição na mesma isotopia de Guimarães Rosa: “Imagem da
lembrança – um fogo, ou uma lamparina, que continua aceso de-
pois que a lenha ou o óleo já se consumiram. A chama sobrevive
ao combustível” (Valéry, 1973: 1234). Essa força de permanência
encontra-se, por exemplo, no movimento dos olhos de Nenha:
“No que vagueia os olhos, contudo, surpreende-se-lhe o imanecer
da bem-aventura, transordinária benignidade, o bom fantástico”.
Nesse instante, o Menino formula a pergunta contrária: “Ela
agora está cheia de juízo?” Se, por um lado, a mente da velhinha
já não se lembra de nada, por outro, sua sobrevida parece bem
mais um fato de lembrança3 (a “chama”) que um fato de energia
vital (o “combustível”), o que reforça o projeto do enunciador
de restabelecer sua experiência pregressa servindo-se apenas dos

3. Segundo o Dicionário Houaiss, a definição metafórica de “sobrevida” é justamente


“lembrança da vida de alguém”.

174
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

lampejos da memória, ainda que se incomode profundamente


com as enormes lacunas encontradas durante o processo.

P ercurso A ntagonista

O conto “Nenhum, Nenhuma” apresenta uma força anta-


gonista de grande intensidade que lança alguns de seus atores
num campo de desconhecimento, apaga importantes traços de
memória que poderiam esclarecer seus episódios e ainda esta-
belece como destino fatal a extinção (“nunca mais”). Os que
aderem a essa força, ou pelo menos a aceitam passivamente,
tratam-na como se fosse uma correnteza implacável contra a
qual nada se pode fazer. O Homem velho é a expressão maior
desse não-saber, com sua aparência indefinida, quase invisível,
seu silêncio sepulcral e seu desconhecimento resignado dos mo-
tivos que o trouxeram ao limiar da morte. O Moço, por sua
vez, não hesita em aprovar esse desconhecimento, reforçando-o
com a pergunta: “E para que saber por que temos de morrer?” Em
outra passagem, sua imaturidade e ignorância emocional são
captadas – e sutilmente reveladas – pela Moça num fragmento
de frase que chega aos ouvidos do Menino: “Você ainda não
sabe sofrer…”. E, acima de tudo, o Moço não sabe responder
à Moça se o amor que sente por ela duraria até o final de seus
dias, questão que faz pleno sentido no universo observado pelo
Menino, onde os limites do senso comum são constantemente
ultrapassados pelas infinitudes do imaginário mobilizadas pelas
personagens femininas.
Lembremos, por exemplo, que a Moça é dotada de formo-
sura nunca vista no mundo “real”, o que lhe permite surgir ora

175
semiótica à luz de guimarães rosa

como a “princesa no castelo”, ora como a “madrinha num casa-


mento, num teatro”, embora não se furte jamais à missão prática
e cotidiana de zelar pela vida de Nenha. Tal operação concessiva
justifica uma vez mais a passagem veloz ­– sem gradação – das
cenas triviais para as situações inacreditáveis e se converte em
critério de avaliação positiva dos indivíduos capazes de executar
esse salto. Não era o caso do Moço que, aliás, se mostrava cons-
ciente de “seguir o viver comum […] pelos planos caminhos”.
Importante frisar, desde já, que o único traço de velocidade exi-
bido pelo setor feminino da novela é justamente o salto repen-
tino do campo prático ao campo mítico, valendo-se da lógica
concessiva. Mas o objetivo desse salto, dessa passagem para o
imaginário fabular, é cultivar, com paciência épica, a vagaro-
sidade e o alongamento temporal que, a partir de certo limite,
só é concebível no reino imaginário. Já o Moço, cuja pressa nas
ações cotidianas adapta-se apenas a projetos efêmeros e super-
ficiais, não reúne as condições necessárias para a realização da
mesma proeza.
A força antagonista do não-saber manifesta-se no interior do
Menino pelas constantes ameaças de esquecimento oriundas das
“camadas angustiosas do olvido”. É aqui, no plano da recorda-
ção, que o enunciador trava sua batalha decisiva para fazer jus
à memória da Moça. É aqui que ele lembra, deslembra e “des-
deslembra”, num esforço hercúleo para não apenas recuperar
os pontos salientes de sua experiência, mas também conectá-los
numa ordem que lhe faça sentido nos dias atuais e lhe facilite
a compreensão dos conteúdos essenciais ainda não decifrados.
Esquecer-se do que se passou significaria exibir a mesma inca-
pacidade de seu rival, o Moço, de se manter fiel à lembrança da
Moça por toda a vida. Daí o seu sentimento de missão: “O passa-

176
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

do é que veio a mim, como uma nuvem, vem para ser reconhecido:
apenas, não estou sabendo decifrá-lo”. O passado lhe chega como
uma nuvem e “as nuvens são para não serem vistas”, de acordo
com o pensamento enunciativo que sucede a caracterização do
silêncio do Homem velho.
O enunciador vislumbra com nitidez os pontos tônicos de
sua memória, mas se aflige quando vê se desfazerem os elos que
lhes dão coerência numa espécie de névoa escura difícil de dissi-
par (“Cerra-se a névoa, o escurecido, há uma muralha de fadiga”).
O seu trabalho se assemelha ao do psicanalista que “inventa”
uma ordem para dar consistência ao discurso aparentemente
atabalhoado do paciente. Mas como ambas as funções residem
no mesmo ator, com todas as formas de “esconde-esconde” (su-
blimações, resistências etc.) que isso implica, o sujeito debate-
-se contra si mesmo (“Luta-se com a memória”), mostrando-se
às vezes vencido pelo cansaço, às vezes recuperado para traçar
novos vínculos (“é uma ponte, ponte”). No primeiro caso, sen-
te os efeitos de um encolhimento afetivo e cognitivo, processo
descendente que pode levar à extinção; a viagem do Menino ao
lado do Moço (“Falido, ido”) e seu reencontro final, claramen-
te decepcionante, com os pais, constituem representações fiéis
desse esgotamento contínuo do mundo subjetivo. No segundo,
sente-se capaz de restabelecer o sentido global de suas experiên-
cias, a partir das conexões entre lembranças avulsas, e de expan-
dir consideravelmente o seu mundo interior; a árdua restau-
ração da memória empreendida pelo enunciador durante toda
a história ilustra o movimento ascendente de conquista desse
saber, processo que contribui para a neutralização das ações do
antissujeito. O cruzamento das direções com os pontos de vista
pode ser assim resumido:

177
semiótica à luz de guimarães rosa

DIREÇÕES
ascendente descendente
PONTOS DE VISTA
narrativo (actancialização) sujeito antissujeito
existencial (potencialização) lembrança esquecimento
modal (cognição) saber ignorar
temporal (imutabilidade) para sempre nunca mais

Portanto, o antissujeito, neste conto, é o actante que abre-


via as longas durações e mina tanto as propostas de grande en-
vergadura anunciadas pelas personagens do enredo quanto as
tentativas de recomposição mnésica realizadas pelo enunciador.
É quem promove uma espécie de desperdício de conteúdos hu-
manos ao manifestar indiferença por seus tópicos essenciais ou
incapacidade de discerni-los em meio à dispersão dos fatos coti-
dianos. Em termos tensivos, é quem propaga a baixa tonicidade e
a insuficiência seletiva, em suma, a falta de pertinência. Ora, sem
a presença de ênfases ou destaques, o mundo se torna rasteiro e
desimportante (pequeno demais, na concepção rosiana); sem a
possibilidade de escolha, confuso e desinteressante (grande de-
mais, idem). Em ambos os casos, impera a força antagonista que,
no texto em exame, combina atonia e generalização indistinta.
Contra esse estado geral, debate-se o sujeito, função identificada
com as personagens femininas, mas sem dúvida centralizada no
enunciador-Menino. Cabe a este último procurar uma terceira
via, nem tão pequena (ou seja, de intensidade não tão tênue) nem
tão grande (ou seja, de extensidade não tão dispersiva): “Tem ho-
ras em que, de repente, o mundo vira pequenininho, mas noutro de-
repente ele já torna a ser demais de grande, outra vez. A gente deve
de esperar o terceiro pensamento”. Em outras palavras, o projeto
do sujeito prevê aumentar a intensidade afetiva e concentrá-la

178
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

em valores essenciais. Mas o título do conto – “Nenhum, Nenhu-


ma” – privilegia a atuação do antissujeito.

P ercurso do S ujeito

O percurso do sujeito, porém, exige uma articulação mais


refinada das noções semióticas de intensidade e extensidade.
Talvez possamos estudá-lo a partir da ação inesperada e decisiva
da Moça em resposta ao pedido de união que lhe foi formulado
pelo Moço. Já vimos que o impacto desse momento no univer-
so subjetivo do Menino foi determinante para a potencialização
e posterior recuperação dos conteúdos vividos na mencionada
casa-de-fazenda. O que nos preocupa agora são os fundamentos
tensivos presentes na atuação específica da Moça, personagem
que melhor traduz as intenções do sujeito.
Em relação às duas noções citadas, a Moça só reconhece um
amor comprovadamente pleno, em oposição a todos os outros
que estejam expostos a interrupções ou simples enfraquecimento
dos laços afetivos com o passar do tempo. Nesse sentido, ela acen-
tua a importância de um amor exclusivo, puro, livre dos equívo-
cos que permeiam os amores comuns (“E como saber se é o amor
certo, o único? Tanto é o poder errar, nos enganos da vida”). Não é
difícil constatar que a Moça concentra alta intensidade num único
elemento selecionado na dimensão da extensidade, deixando de
lado toda e qualquer modalidade amorosa que não contemple o
seu critério de escolha. A correlação inversa é nesse caso evidente:
aumento de intensidade associado à redução de extensidade.
Entretanto, ao enunciar seu argumento, nossa personagem
mobiliza apenas uma das duas subdimensões da intensidade, qual

179
semiótica à luz de guimarães rosa

seja, a tonicidade. Claro que leva em conta a outra subdimensão,


o andamento, mas em sua face tênue, desacelerada, justamente
para eliminar qualquer efeito de “acontecimento” ou alteração
brusca (“A Moça não queria que coisa alguma acontecesse”), que,
conforme já dissemos, não se coaduna com o perfil da jovem. Por
outro lado, no âmbito da extensidade e de suas subdimensões
(temporalidade e espacialidade), a Moça também sugere com-
binatórias pouco usuais. Para estabelecer a singularidade do seu
amor, identificado por meio de rigorosa triagem, a protagonista
alonga ao extremo o tempo de espera para que o casal pudesse
optar pela união sem correr o risco de cometer enganos (“esperar,
até a hora da morte”). Com isso, elimina a possibilidade de um
amor ao mesmo tempo efêmero e tônico, como o previsto, por
exemplo, no conhecido verso de Vinicius de Moraes: “Mas que
seja infinito enquanto dure”. Na perspectiva da Moça, que tanto
impressionou o Menino em sua passagem pela fazenda, o amor
só seria “infinito” se durasse toda a existência. Uma espera dessa
proporção justifica plenamente o andamento desacelerado que
lhe foi atribuído desde o início pelo enunciador: “Mas a Moça es-
tava devagar”. Para ela, com exceção da operação concessiva que
lhe permite, num abrir e fechar de olhos, recorrer a outro plano
de sentido, não há saltos nem solução de continuidade. A vida é
uma gradação a ser percorrida com muita paciência.
Mas além da óbvia correlação inversa entre andamento e
temporalidade (menos velocidade, mais duração), o projeto
amoroso da Moça ainda prevê uma correlação conversa entre
tonicidade e temporalidade (mais tonicidade, mais duração). O
amor é tanto melhor (“certo”, “único”) quanto mais possa durar.
A projeção da alta tonicidade sobre o tempo longo garante o efei-
to de “persistência”, um dos mais valorizados pela jovem e, sem

180
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

dúvida, pelo enunciador-Menino em seu esforço de recordação,


mas não pelo Moço. Este, como vimos, confessava não estar pre-
parado para transcender o “viver comum” ou os “planos cami-
nhos”. A ideia de crer no inacreditável, na pureza de princípios
só alcançada no mundo fabular, não faz parte de seus projetos de
vida. Considerando que “a morfologia do espaço adotado mede
a fidúcia de nossa relação com o outro” (Zilberberg, 2008: 18), o
choque ideológico instaurado no âmago das tentativas de enten-
dimento entabuladas pelo casal, acusa o rápido fechamento de
um espaço que, a princípio, estava aberto.
De fato, a Moça e o Moço não apenas trocavam olhares, mas
também chegavam a tocar-se mutuamente (“O Moço pegou
na mão da Moça […]. A Moça, agora, era que pegava na mão
dele”), o que indica uma proximidade franqueada por um es-
paço anteriormente desobstruído. A partir da condição tempo-
ral estabelecida pela jovem (“esperar, até à hora da morte”), as
diferenças pessoais dos pretendentes se acirram, todas elas am-
paradas por andamentos opostos. A espera transcendente pro-
posta pela Moça está de acordo com seu próprio estilo calmo e
determinado – desacelerado – que pode ser extraído das marcas
isotópicas a ela associadas ao longo do texto (“devagar”, “mais
meigo”, “mais grave”, “coisas muito mansas”, “firme e doçura”,
“imutável”), mas, de modo algum, concilia-se com o estilo ace-
lerado do Moço, delineado em série totalmente distinta (“an-
sioso”, “curto”, “sem se sofrear”, “nervoso”, “desesperado”),
que o faz cúmplice de um tempo efêmero repleto de dúvidas
e hesitações. Assim, o espaço em que se insere a Moça fecha-se
definivamente ao Moço, ainda que suas afeições por ele se man-
tenham intactas. A incompatibilidade fiduciária isola os actantes
que pareciam criados um para o outro.

181
semiótica à luz de guimarães rosa

Num primeiro momento, podemos ter a impressão de que


a ruptura narrativa entre os personagens manifesta a lei geral
do desencontro que leva ao encontro futuro, característica ha-
bitual das histórias de amor: disjunção espacial que tem como
fundo a conjunção temporal, ou seja, o vínculo à distância; o
que hoje é concretamente ruptura promete ser algum dia união,
na medida em que o laço afetivo permanece e se converte em
fundamento para a espera (“Ela não concordou. Ela só olhava
com enorme amor para o Moço. Então, ele deu-lhe as costas”).
Mas não é o que se verifica nesse caso particular. O fechamen-
to espacial sobrevém ao Moço com o impacto próprio de um
acontecimento inesperado (“Soturno, nervoso, o Moço não po-
dia entender, considerar no impeditivo”), que, como tal, rompe
também a continuidade temporal interna ao sujeito, a mesma
que sustenta suas crenças ideológicas. Daí a desorientação ex-
pressa no modo como o rapaz se afasta de sua ex-namorada:
“O Moço viera com tropeço, apalpando as paredes, como os
cegos”. Não se trata portanto de um fechamento espacial sim-
ples, sintaticamente implicativo, do tipo que constitui prerre-
quisito para uma abertura posterior – tudo que está fechado,
em princípio, pode ser aberto ­–, mas de uma oclusão inten-
sificada que não permite reabertura em condições normais. A
semiótica diria que, além do “fechado”, há o “hermético”, cujo
descerramento é considerado impraticável. É dessa natureza o
espaço demarcado na resposta da Moça e que leva o Moço a
associar sua oclusão ao domínio do sagrado, do impenetrável
(“Obrigara-se por um voto?”).
Mesmo não se tratando de um espaço propriamente sagrado,
a circunscrição em que a Moça se insere vai de par com sua rigo-
rosa triagem já comentada acima para encontrar o amor “certo”

182
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

e “único”. A tonicidade que recai sobre esse amor específico pro-


voca um efeito de pureza que, igualmente, põe de lado os valores
mundanos. Nesse sentido, a concentração da extensidade equi-
vale ao fechamento do espaço tensivo no que estamos chaman-
do de percurso do sujeito. Delineia-se, então, a prova decisiva
perante a qual o Moço deixa transparecer suas insuficiências e
seu sentimento de derrota: como se desprender da generalidade
implicativa reconhecida no senso comum para compreender e,
mais que isso, adotar valores que dependem de uma capacida-
de de crença bem mais intensificada? Em outras palavras, como
abrir um espaço fiduciário hermeticamente fechado, onde coisas
impossíveis acontecem e onde se acredita no inacreditável, se não
forem empregadas as operações concessivas, as que permitem ao
sujeito subverter uma ordem narrativa? A tonicidade desse fecha-
mento, responsável pelo efeito de hermeticidade, exige do Moço
uma disposição de abertura igualmente acentuada que, tudo in-
dica, não faz parte de seu universo subjetivo.

E pílogo

Mas tal energia de oclusão impede até mesmo a aproximação


do Menino (“Tanto, de uma vez, ela se separava da gente, que
mesmo o Menino não podia querer ficar com ela, consolá-la”),
obrigando-o a estabelecer aliança com o antissujeito por absoluta
falta de autonomia e de oportunidade para manifestar suas esco-
lhas pessoais. Ambos os personagens dão início, assim, ao longo
percurso de afastamento da fazenda, rumo ao nunca mais. Os
que ali permaneceram (Nenha, o Homem velho e a Moça) não
mais serão vistos. Durante a viagem a cavalo, em contato físico

183
semiótica à luz de guimarães rosa

direto com o Moço, o Menino mergulha numa profunda reflexão


sobre a proximidade e o distanciamento que retratam, na esfera
espacial, as uniões e as separações ocorridas no mundo afetivo.
Afinal, ele também fora vítima indireta da forte oclusão que defi-
niu para sempre o futuro dos jovens pretendentes.
Inicialmente, estar próximo do Moço só fazia aumentar no
Menino a sensação de distância da Moça. A necessária convivência
ao longo do percurso o submete a uma cumplicidade totalmen-
te indesejável (“A viagem devia de ser longa, com aquele Moço,
que falava com o Menino, com ele tratava mão por mão, carecia
de selar palavras”). As lamúrias do amante rejeitado consolidam
sua convicção em favor das provas de amor exigidas pela Moça.
Quando o Moço, imerso em devaneios, indaga se a ex-namorada
teria razão em querer esperar até a hora da morte para saber se
realmente teriam vivido o amor “único”, o Menino não tem co-
ragem de responder, mas manifesta, interna e intensamente, sua
concordância com a Moça (“O Menino não respondeu, só pen-
sou, forte: – ‘Eu também!’ ”).
Ao assumir sua oposição ao Moço (“Ah, ele tinha ira desse
moço, ira de rivalidades”), o Menino tenta ao menos diminuir
a proximidade de seus corpos, já que não poderiam, no lombo
do mesmo animal, cultivar uma real distância entre si (“Pediu:
se podia vir à garupa, em vez de no arção? Ele queria não ficar
perto da voz e do coração desse Moço, que ele detestava”). Mas
logo em seguida, diante do pranto sincero do Moço desolado, o
Menino também chora e imagina que se pudesse querer bem esse
rapaz talvez se sentisse mais próximo da Moça (“O Menino sen-
tia: que, se, de um jeito, fosse ele poder gostar, por querer, desse
moço, então, de algum modo, era como se ele ficasse mais perto
da Moça, tão linda, tão longe, para sempre, na soledade”). Toda

184
a extinção que não se acaba – “nenhum, nenhuma”

essa dinâmica espacial se extingue bruscamente com a chegada


do Menino ao lar. O Moço também não será mais visto.
O reencontro do filho com os pais, depois de tudo que se
passou na fazenda, é átono e dispersivo. Seu pai cuida da cons-
trução de um novo “muro” no quintal e sua mãe, depois de
beijá-lo, quer ter notícias de “muita gente”, além de verificar se
sua roupa estava em ordem e se não perdera seus santinhos e
medalhinhas pendurados ao pescoço. Captando intuitivamen-
te as coordenadas tensivas próprias do antissujeito, o Menino
intensifica a própria chegada com choro e grito sem deixar de
assinalar a falta de concentração dos pais em conteúdos que de
fato deveriam merecer a atenção: “E eu precisei de fazer alguma
coisa, de mim, chorei e gritei, a eles dois: – ‘Vocês não sabem
de nada, de nada, ouviram?! Vocês já se esqueceram de tudo o
que algum dia, sabiam!…’ ”. Com esse acontecimento encerra-
-se a grande experiência que marcou a infância do protagonista.
Bem mais tarde, terá início o trabalho do enunciador de combate
ao esquecimento e de recuperação de um saber relevante cujo
registro ficará para sempre nas linhas desse conto. É assim que ele
presta homenagem ao projeto da Moça que tem como cifra a alta
intensidade associada à longa duração, fórmula ao mesmo tempo
sublime e transcendente.

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Título Semiótica à Luz de Guimarães Rosa
Autor Luiz Tatit
Editor Plinio Martins Filho
Produção editorial Aline Sato
Capa Tomás Martins
Editoração eletrônica Daniela Fujiwara
Formato 14 × 21 cm
Tipologia Minion
Número de páginas 189

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