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josé mattoso
trinta anos depois
de ‘identificação de um país’
por francisco josé viegas
as muçulmanas europeias
não existem
por henrique raposo
ADÍLIA LOPES
[Manhã. Assírio & Alvim, 2015]
SUMÁRIO
Sem liberdade 52
a democracia
é uma farsa
por Ian McEwan
32 Leonor
José Mattoso Entrevista
Baldaque
Anatomia de um clássico
Na altura, Mattoso «reconhecia o carácter indefinível da Nação e a impossibilidade Flaubert descreve um
mundo de onde está
de conhecer o que a distingue de qualquer outra». Trinta anos depois da primeira
ausente qualquer metafí-
Karl Ove Knausgård
edição de Identificação de Um País, que marcou a nossa relação com a História e com
o passado, o que pensa do livro o seu autor? Entrevista de Francisco José Viegas. sica ou contemplação. 60 3600 páginas de confissão
O livro mais íntimo tornou-se um caso público
e o seu autor ascendeu a um estrelato pouco
76 comum com a literatura que pratica. O no-
rueguês Karl Ove Knausgård arriscou tudo
por uma obra e agora pergunta sobre o que
se segue, o «e depois?» a que muitos autores
não sobreviveram. Entrevista de Isabel Lucas.
LER
pediuumacríticaséria de comunicação? O ro-
explicadas apenas pela lógica.» Sete anos após o seu último livro de contos, Lydia Davis volta
aatrocidadescometidas mance português dá-
É a escritora mais popular da Turquia e uma das mais à ribalta com um extraordinário volume de histórias curtas
pormulheres.Texto de -lhes atenção especial.
polémicas. A Bastarda de Istambul valeu-lhe um processo – exemplos perfeitos da sua arte concisa. Nada está fora
Henrique Raposo. Texto de Filipa Melo.
emtribunal,em2006.EntrevistadeBrunoVieiraAmaral. do alcance das suas ficções. Texto de José Mário Silva.
Todos os textos são publicados segundo o Acordo Ortográfico em vigor. Excetuamse os de alguns cronistas e eventuais extratos de obras citadas.
Em http://www.ler.blogs.sapo.pt/ informação diária sobre edição, livros e autores.
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firmemente os meus, / menos como quem
quer rivalizar do que por amor, pois o meu
desejo é imitar-te.» A sua natureza de poema
didático, apresentando o epicurismo (Epicu-
ro é a sua fonte direta, o seu deus terreno),
discorrendo sobre os fenómenos naturais
e a finitude das coisas, faz desta tradução
de Luís Manuel Gaspar Cerqueira uma pé-
rola no meio do ruído e da ignorância.
Da Natureza das Coisas
Lucrécio
Relógio d’Água
Literatura de heteroajuda
Um livro em que,
através da histó-
ria conturbada e
heroica de Marie
Curie, a escritora
Sobrevivendo ao inverno, as estantes relembram saídas re- espanhola Rosa
Montero procede a
centes, distribuídas ao acaso, atravessando diversos géneros. Ler um exame cuida-
pode ser um vício perigoso, mas é a única coisa que temos nes- doso do seu luto
tas páginas. pela morte do ma-
rido. Algures entre o romance, a biografia,
o ensaio e as memórias, A Ridícula Ideia
de Não Voltar a Ver-te é uma meditação ao
mesmo tempo incisiva e delicada sobre
a questão da perda e do sofrimento, mas
também dos caminhos tortuosos que as
mulheres têm de percorrer para ver re-
conhecido o talento sem nunca abdicarem
de viver plenamente as suas paixões.
A Ridícula Ideia de Não Voltar a Verte
Rosa Montero
Porto Editora
Da importância das instituições Euforia das bibliotecas Novos Olhares sobre Redol
U
Londres ou Nova Iorque alberga pode albergar em meia dúzia de hectares todas © Jeremy SuttonHibbert/Getty Images
sobrenatural nem sequer se e terror, desde a morte pelo fogo estão a ser empurrados para fora
põe, tal como, para os demais, de William Tyndale por ter das suas pátrias. Na Turquia,
a existência de religiões extintas, traduzido a Bíblia para inglês, a liberdade de imprensa é
Toth, Frigga ou Apolo. Dos seus até às atrocidades da Inquisição permanentemente atacada
diversos templos as religiões e, em troca, à abominável por conservadores religiosos.
blasfemam todos os dias umas selvajaria contra os católicos. Os regimes árabes autoritários
contra as outras. Jesus é O islão, do Paquistão à Arábia usam de forma cínica a lei
o filho de Deus? Não, para um Saudita e outros Estados do da sharia como um meio para
muçulmano. Maomé é o último Golfo, da Indonésia e da Turquia deter a oposição política. O Boko
mensageiro de Deus na Terra? ao Egito, vive a sua própria Haram e o Estado Islâmico, com
Não, para um cristão. versão de uma fase totalitária. a sua tenebrosa intolerância,
O Universo é melhor explicado Todos os dias nos chegam representam o agravamento
ou explorado a partir da notícias de tortura, prisão a um absurdo assustador
cosmologia ateia baseada e execução de muçulmanos daquilo que é praticado
na física? Não, para um que desejam ou deixar o islão em certos Estados. Na Arábia
muçulmano ou um cristão. ou abri-lo à discussão. Sofrem Saudita, onde se encontram
Quem garantirá a paz? por violações dos códigos os santuários mais venerados
Não será a religião. A História islâmicos da apostasia e da do islão, a apostasia implica
europeia recorda-nos que blasfémia que se prestam a pena de morte. A mais recente
quando o cristianismo vivia o a interpretações diversas. repressão brutal da liberdade
seu esplendor totalitário pré- No Paquistão, os políticos de expressão no país, mil
-iluminismo, e depois o seu do país usam as leis da blasfémia chicotadas e 10 anos de prisão,
maior cisma, a intolerância às como arma mortífera. No Egito mostra um Governo denegridor
pequenas diferenças conduziu, uma professora foi condenada do islão enquanto religião de
como no caso da Guerra dos a três anos de prisão por falar paz e provocou repugnância
Trinta Anos, à barbaridade e à de outras fés aos seus alunos. em todo o mundo, parte
chacina numa escala horrenda. Por todo o Médio Oriente, dela eloquentemente
E a perseguição, tortura o cristianismo e o zoroastrismo expressa por muçulmanos.
ESCRITORES FAMOSOS
Henrik Ibsen (1828-1906) Amalie Skram (1846-1905) obra mais conhecida é a trilogia Kristin La-
É considerado o fundador do teatro realista É uma das mais importantes escritoras no- vransdatter, sobre a vida na Escandinávia na
moderno, e também do modernismo tea- rueguesas de sempre e ainda hoje continua Idade Média, retratada através da vida de
tral. As suas peças analisam a realidade que a ser uma influência. Escreveu sobre o casa- uma mulher. A sua visão feminista influen-
se esconde por detrás das convenções mento, a sexualidade feminina, a subser- ciou muitas autoras.
sociais. Teve um olhar muito crítico sobre viência da mulher ou as brutais condições Jon Fosse (n. 1959)
a moralidade da sua época. dos hospitais psiquiátricos. Poeta, escritor e dramaturgo, é apontado
Bjørnstjerne Bjørnson (1832-1910) Knut Hamsun (1859-1952) como um sério candidato ao Prémio Nobel.
Nobel em 1903. O seu primeiro romance, Recebeu o Prémio Nobel de Literatura em Os seus textos são sempre minimalistas
uma história sobre a vida campestre, tor- 1920. É um dos mais influentes e inovado- e obedecendo a uma estrutura rígida, forte-
nou-se um dos pontos de viragem na litera- res escritores do século XX, e por muitos mente estruturados, cuja principal marca
tura norueguesa. Foi um dos grandes inspi- considerado o «pai da literatura moderna», estilística acaba por ser a repetição, abrindo
radores dos primeiros escritos de Hamsun, e pioneiro nas técnicas literárias do «fluxo com isso caminho a um espaço reflexivo que
mas desaconselhou-o de ser escritor. de consciência» e do «monólogo interior». está presente em toda a sua obra.
Jonas Lie (1833-1908) Influenciou autores como Thomas Mann, Jo Nesbø (n. 1960)
É um dos quatro grandes autores norue- Kafka, Zweig, Hermann Hesse, Heming- É o autor norueguês mais traduzido. Autor
gueses do século XIX. As suas obras focam way, entre muitos outros. de romances policiais, que têm o submun-
essencialmente a tradição, a natureza, e o es- Sigrid Undset (1882-1949) do de Oslo por cenário e onde se move a fi-
pírito social da Noruega. Prémio Nobel de Literatura em 1928. A sua gura do inspetor Harry Hole.
Sobre Dag Solstad (n. 1941) sentido século e meio depois de ter sido es- professor. Não mais voltaria a lecionar. Como
ele está traduzido para português crita: «Prive o homem comum da sua men- iriaelecontaràmulher?–foiumdosseuspri-
cie de hipocrisia piedosa em que a célebre das ideologias, das utopias, a notícia de que o
frase do dramaturgo Henrik Ibsen (tornada Homemficouprivadodeesperança,massem
central por Dag Solstad) continua a fazer perder o seu lado de crítico social e político.
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Trinta anos depois da sua primeira publicação,
o livro que mudou a nossa maneira de olhar para
os primeiros séculos da nacionalidade – e que
mostra como a Nação portuguesa surgiu e evoluiu
durante 200 anos. São 940 páginas imprescindíveis.
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Círculo de Leitores. Assinale com X caso não pretenda que os seus dados sejam facultados a terceiros ___.
Manifestos
Roupa para cientistas, televisão pública, Bob Geldof, escândalos franceses, bons livros,
Scarlett Johansson. Não, não – desta vez não falamos de Scarlett Johansson.
revista inglesa The Bookseller apre- além de respirarem a poeira das estrelas, dade: grande parte dos autores convidados
A sentou a escritora Joanne Harris
como figura principal da mais recente pe-
têm algumas necessidades básicas. Joanne
Harris mencionou o facto de alguns festi-
nas duas centenas de festivais literários que
ameaçam cada país são, «por vezes», abor-
quena polémica sobre os ganhos, atribui- vais convidarem músicos, personalidades recidos. Muitas vezes, não preparam uma
ções e dividendos a recolher pelos autores. da televisão» e «conferencistas especiais» intervenção e salpicam-na debanalidades.
O que disse de tão grave a autora de Cho- que são efetivamente pagos com um cachê Isto tanto acontece em Inglaterra como,
colate, Danças e Contradanças ou Malig- pela sua aparição. A literatura e o livro são imagine-se, em Portugal. Joanne Harris tem
na? Que os festivais literários – uma o parente pobre destas procissões. Ora, por- uma solução: pois os escritores que se apli-
iniciativa muito em moda que ameaça des- quê os sorrisos de desdém? Porque os au- quem – ou não serão mais convidados.
tituir as Feiras Medievais e as Semanas de tores já são largamente beneficiados pela A solução é perversa e pode querer dizer
Gastronomia – deviam pagar um fee aos circunstância de serem convidados, porque que o escritor se deve transformar num
autores que convidam, já para não falar ao serem convidados estão a motivar os lei- pregador-tipo-Edir-Macedo, arrebatando
das despesas de transporte, alimentação tores presentes a comprarem os seus livros, as massas, ou num personagem cómico
e alojamento. Tamanha ofensa mereceu e ao venderem os seus livros estão a ganhar que, em vez de falar de literatura, aparece
alguns sorrisos de desdém. a inacreditável fortuna que se sabe (o que vestido como um Chacrinha que, por sua
A ninguém escapa – exceto aos militan- dá bem uma ideia da sua importância na vez, faz imitações de Juca Chaves (vão
tes do Partido dos Piratas, que são contra chamada «cadeia de produção»). à Net, caso não saibam de quem se trata).
a simples menção à expressão «direitos de Evidentemente que há um problema nis- Mas o problema existe, sim, e os autores
autor» – que os autores são cidadãos que, to tudo – e deve ser encarado com honesti- merecem esse debate. FJV
e vez em quando, de forma inespe- a arder, «alertas». Começam no tom um a escrever cartas ao diretor ou comen-
D rada e um tanto aleatória, mas com
uma frequência cada vez maior, grupos
pouco enfadado de quem anda nisto há
muitos anos e rapidamente entram
tários anónimos na Net) são transforma-
das em vultos (só no caso das questões
de personalidades resolvem escrever car- numa espiral de insanidade, com ad- culturais), para emprestarem à cena um
tas a políticos, instituições internacionais moestações, reprimendas, predições ca- ambiente fantasmagórico, punitivo. Para
ou ao mundo em geral e a todas as pes- tastróficas e lista das consequências limpar um pouco a atmosfera, convém
soas em particular. Todo o processo de apocalípticas (incluindo pragas de gafa- que sejam oriundas de todos os quadran-
produção destes documentos é enigmá- nhotos e rios transbordantes de sangue) tes ideológicos (ou, em alternativa, de Fer-
tico. De quem partiu a ideia? Quem foi o que o mundo sofrerá no caso de os desti- não Ferro) o que, neste universo epistolar,
escrivão? Como é que se arregimentam natários não seguirem as suas indicações. significa personalidades de esquerda e
todos os nomes que a subscrevem? Mis- Em termos literários, são obras entre o personalidades outrora de direita mas
térios para os quais a ciência ainda não profético e os pedidos de resgate. A dife- que se zangaram com a atual liderança
descobriu uma resposta. É possível que rença é que as cartas de que falamos não dos seus partidos. Cola-se o selo e lá vai
os subscritores se juntem num descam- são compostas com letras recortadas de a cartinha. É sabido que da sociedade ci-
pado na serra de Sintra e, de mãos dadas jornais: são publicadas em jornais. Quan- vil – esse antro pútrido onde nidificam as
e dispostos em semicírculo, recebam ins- do chegamos à lista, encontramos sem boas consciências – irrompem por vezes
truções de uma antiga divindade celta. As surpresa inúmeros economistas, meia estas manifestações um tanto bizarras,
cartas que escrevem nunca são simples dúzia de artistas plásticos, dois ensaístas, mas é preciso algum comedimento. Se
mensagens com propostas concretas que, um realizador de cinema, um engenheiro assim não for, quem nos garante que da-
no caso de serem aplicadas, transfor- civil e dois funcionários autárquicos. Em qui a uns meses não temos a astróloga
mariam o mundo num lugar perfeito. certos casos, as personalidades (as im- Maya a encabeçar uma manifestação em
São quase sempre «apelos», uma vez por personalidades raramente são convida- defesa das G3 da Fábrica de Braço de
outra são «pedidos» e, se a casa já estiver das para estes projetos e acabam os dias Prata? Paulo Lencastre
UM DEUS DESCONHECIDO
igantes que nos contemplam: os budas
G de Bamiyan (do século V), por exem-
plo, furiosamente destruídos em 2001 pelo
governo talibã do Afeganistão. Escondidas
nas rochas de Hazarajat, pouco sobra des-
sas estátuas grandiosas cujo desapareci-
mento foi festejado por muitas autoridades
islâmicas. Nestes dois últimos meses, o
exército do Estado Islâmico destruiu o que
pôde: estátuas, pinturas, museus, símbolos
do mundo. Recentemente, um dos líderes
da canalha, Salem al-Gohary, anunciou um
plano para destruir a Grande Pirâmide de
Gizé e a Esfinge. Na Arábia Saudita, as no-
vas autoridades no poder proibiram o uso o seu consulado, os barbudos tinham proi- onde os alucinados possam entregar-se
de cor na roupa feminina – e o vice-primei- bido a música, a fotografia, o cabelo das às suas orgias e delírios teológicos, proibin-
ro-ministro turco anunciou, entretanto, mulheres, o ensino e o futebol. É justo que do-se uns aos outros – e deixar-nos em paz,
juntando-se ao festim, que as mulheres não nos perguntemos se seria possível encon- como simples incréus, a contemplar os gi-
deviam rir em público. Em Cabul, durante trar um enclave, devidamente murado, gantes da ilha de Páscoa. FJV
O GOVERNO MUSCULADO
Sobre o aparecimento, lá para os lados da Grécia, de um Governo messiânico
o momento em que escrevemos, a Europa ainda não se en- muito mais do que uma «lufada de ar fresco», desengravatada,
N tendeu com o novo Governo grego, embora lhe tenha ga-
bado o bom gosto na indumentária. De acordo com os apoiantes
motoqueira e com cachecóis da Burberry: trouxe para a Euro-
pa essa novidade absoluta, a política. Percebendo que isto be-
portugueses do Syriza – verdadeiras autoridades quando se tra- neficia os gregos aos olhos dos povos europeus, os outros
ta de decidir quem tem razão e quem não tem –, a política re- Governos também procuraram entrar no jogo político, mas,
gressou finalmente à Europa porque há um Governo que, ao nesse caso, os apoiantes do Syriza são perentórios: é chantagem
contrário dos outros, quer negociar. Logo quando o Syriza for- sobre o sacrificado povo grego. Quando o Governo grego não
mou Governo com um partido de extrema-direita, enquanto os cede, é política; quando os representantes dos outros Governos
nefelibatas procuravam um lugar suave para a aterragem, os não cedem, é chantagem. De entre as muitas palavras que de-
mais intrépidos não perderam tempo para compor a nova nar- vemos aos gregos, demagogia continua a ser das que tem mais
rativa: «É a política, estúpidos!» Portanto, o Syriza representa saída. BVA
elle Harper Lee tem hoje 88 anos quela de Não Matem a Cotovia. A tiragem
N e vive na sua pacata terra natal, Mon-
roeville, no Alabama, longe dos eventos
inicial vai ser de 2 milhões.
O problema era saber-se se Harper Lee,
literários. Tal como J.D. Salinger, por alojada num lar de idosos e com proble-
exemplo, Harper Lee desapareceu de cir- mas de memória depois de um AVC sofri-
culação depois de ter publicado um dos do em 2007, podia garantir que esse livro
livros mais amados e venerados pelos era mesmo seu – e não uma invenção da
americanos, To Kill a Mockingbird (Não sua advogada ou de um editor suficien-
Matem a Cotovia, 1960), entretanto adap- temente inescrupuloso. Para lá do com-
tado ao cinema, com Gregory Peck no preensível festival de marketing dos seus
AI SE TU ME OFENDES
O Charlie Hebdo voltou às bancas com a «irreverência» dos seus melhores e que é melhor não fazer nada que ofenda seja quem for, o que nos levará a um
piores momentos. A eurodeputada Ana Gomes, por exemplo, acha que o jor beco sem saída onde estaríamos todos esquizofrénicos, a vigiar o parceiro do
nal satírico fez mal em utilizar de novo a imagem do profeta Maomé, porque lado. O problema está em criminalizar as ofensas e em ocupar o espaço pú
isso ofende os muçulmanos. Pessoalmente, acho que estar sempre arecor blico com essa esquizofrenia. As camisolas do FC Barcelona vão retirar a sua
rer à imagem do Profeta, sem ofensa, é bem capaz de ser infantil demais: uma discretíssima cruz para que os seus serviços comerciais possam vender me
pessoa diz «chichi» e as crianças riemse perdidamente – mas há uma altura lhor os jogos do clube no Qatar e no Dubai – e para não ofender, digamos,
em que o recurso se torna insuportável. Há uma longa lista de coisas que ofen os traumatizados do cristianismo. Para o ano, como exemplo, e com espírito
dem os muçulmanos mais radicais, os judeus mais fundamentalistas e os cris preventivo, não haverá Natal – porque isso ofende muçulmanos e deixa judeus
tãos mais conservadores. Proteger uns (as Pussy Riot) e não proteger outros indiferentes (claro, Irving Berlin era judeu mas escreveu as melhores canções
(os adoradores do Bezerro de Ouro) seria uma injustiça sem perdão, de modo sobre o white christmas, desculpem se estou a ofender alguém). FJV
Últimas palavras
T
odo o escritor, como artista que é – ou deve ser – tem meio da maior perplexidade: «Todos temos que morrer, mas sem-
tendência a fazer um bocadinho de teatro. Sejamos pre acreditei que seria, no meu caso, feita uma excepção. Então,
saudavelmente cruéis: mostra-se inclinado a ser exi- agora, o que é que eu faço?» Como costuma acontecer, nestes casos,
bicionista. E essa tendência não morre facilmente, ficou sem resposta. O poeta Hart Crane, atirando-se pela borda fora,
nem mesmo no momento de… morrer. Old vices die hard. De aí de um navio, no meio do oceano, gritou com entusiasmo: «Adeus
a tentação de fazer cair o pano, ao som de algumas bonitas e «úl- a toda a gente!» Ao dramaturgo irlandês George Bernard Shaw nin-
timas palavras»: para que conste. guém conseguia enganar, por isso, às blandiciosas palavras da en-
As últimas palavras dos «grandes homens» – e não só escritores: fermeira, retrucou, incisivo, no momento de passar-se: «Irmã, está
os outros também, ocasionalmente, fazem teatro – constituem uma a querer preservar-me vivo, como uma preciosa antiguidade, mas
das mais pitorescas antologias que se possa imaginar. Há-as de to- estou feito, arrumado, vou mesmo morrer.» E morreu. Os filósofos,
das as cores e formatos. Desde o sublime – «Mais luz!» (Goethe) – nestas coisas, deixam-se do abstrato das filosofias e chafurdam na
ao mais descontraidamente autofacecioso – «Estou a morrer como urgência do concreto: Sócrates, por exemplo, no momento subli-
sempre vivi: acima das minhas posses», dizia Wilde, sem vintém, me, dirigiu-se a um amigo, com um pedido terra a terra: «Críton,
mas beberricando champanhe. Henry James, cheio de pudor, devo um galo a Asclépio; vais lembrar-te de pagar a minha dívida?»
como a velha e patusca solteirona que sempre foi, recebeu a Parca, O grande escritor satírico Rabelais não era homem de certezas apa-
nestes termos jamesianos: «É então isto a eminente criatura!» Lady ratosas, por isso mudou do aquém para o duvidoso além, com es-
Mary Montague não esteve para choradeiras e consolou-se com um tas palavras: «Vou para o grande talvez.» Disraeli, o primeiro-mi-
passado repleto: «Foi tudo extremamente interessante.» Gertrude nistro favorito da rainha Vitória, ao ser-lhe dito, no leito de morte,
Stein, sempre muito lógica e «to the point», perguntou «Qual é a res- que a soberana pretendia visitá-lo, comentou: «Para quê? Tudo o
posta?» e, não a tendo obtido da sua amiga Alice B. Toklas, mur- que ela quer é entregar-me um recado para o seu querido Alber-
murou: «Nesse caso, qual é a pergunta?» Max Baer, famoso cam- to.» Mas uma das saídas de que mais gosto foi a desse mago da short
peão de pesos-pesados, encarou a Grande Ceifeira, com galhardia story que se chamou O. Henry: na hora da verdade, falou como um
de verdadeiro desportista: «Aí vou eu!» David Herbert Lawrence, puto assustado: «Acendam as luzes; não estou para entrar em casa
o autor de Sons and Lovers, passou para o «outro lado», com san- às escuras.»
guíneo optimismo: «Sinto-me agora melhor.» William Saroyan, o fic- Isto é só uma pequena amostra. Posso dar-vos mais, da próxima
cionista e dramaturgo americano de origem arménia, morreu no vez, se, entretanto, vos não tiver legado as minhas últimas palavras…
O bebé falso
de American Sniper
o momento em que esta revista chegar às ban-
N cas, American Sniper, de Clint Eastwood, já será
o filme de guerra mais rentável da história do cine-
ma, destronando O Resgate do Soldado Ryan. O de-
bate sobre a natureza do filme – propaganda
militarista ou homenagem ao herói americano – está
ao rubro, mas a grande questão do momento é outra.
Por que razão o personagem interpretado pelo ator
Bradley Cooper segura um bebé falso nos braços? Há
quem diga que se trata do primeiro momento brech-
tiano de Eastwood. Será? BVA
DR
DR
PUB
Virtudes cardeais
Coisas verdadeiramente Importantes
James Patterson (que doou um milhão de dólares para bibliotecas americanas) escreve 10 livros por ano. É isso bom ou mau?
O papa Francisco ameaçou proteger a sua mãe à força de sopapo. É isso justo ou não?
Castidade – A cena mais polémica d’As Cinquentas Sombras Caridade – Há 10 anos ninguém imaginaria que as conversas so-
de Grey, o livro, não passou para As Cinquentas Sombras de Grey, bre Johnny Depp – à época a atravessar a fase mais fulgurante en-
o filme. Ao que consta, envolvia um tampão. Há malandrices que quanto estrela rentável – seriam uma espécie de obituários anteci-
se leem muito bem no conforto do ipad mas que mostradas num pados, resumos de uma carreira decadente, contemplações do local
ecrã gigante podem provocar alguns arrepios. onde acabou de se despenhar um veículo mágico. Ao alinhar uma
Generosidade – Bill Gates, o homem mais rico do mundo ou o se- série horripilante de fracassos, Depp tem sido acusado de já não
gundo homem mais rico do mundo, bebeu um copo de água feito conseguir representar personagens de carne e osso, o que fez com
a partir de dejetos humanos e acredita que essa será a solução para que os espectadores se cansassem das suas figuras cartoonescas,
os países pobres, onde falta entre o universo gótico-in-
água potável. Entretanto, fantil de Tim Burton e os
ficámos a saber que 1% da modos exagerados do pi-
população mundial (que rata Jack Sparrow. Coitado
inclui Bill Gates) detém do Johnny.
50% da riqueza. E tudo isto Humildade – No início
é tão natural como a nossa era tudo lindo. Martin Scor-
sede. sese, um dos maiores rea-
Diligência – James Patter- lizadores da história do ci-
son é o escritor que mais nema, preparava-se para
vende em todo o mundo. Já realizar um documentário
vendeu mais de 300 mi- sobre Bill Clinton, um dos
lhões de exemplares dos maiores mulherengos da
seus livros e, como a má- história da Casa Branca.
quina que produz mais Trocaram elogios e lança-
de 10 livros por ano não ram mãos à obra. Até que
pode parar, tem uma equi- Scorsese se começou a sen-
pa de 20 pessoas a traba- tir limitado no seu traba-
lhar com ele (ou para ele) lho. Se o filme era sobre
naproduçãodassuasobras. Clinton, este queria decidir
Há quem o compare a um como é que ia aparecer na
estúdio de cinema à antiga fotografia. Afinal, são mui-
mas ele prefere designar-se tos anos de spin e de ima-
como o Henry Ford dos li- © Pedro Vieira gens retocadas. O projeto ter-
vros. O certo é que Patterson não dá minou antes de ver a luz do dia.
descanso aos dedos – aos dele e aos dos seus colaboradores. Temperança – «Se aqui o doutor Gaspari chamar nomes à mi-
Paciência – Miguel de Cervantes morreu há 399 anos. Foi sepulta- nha mãe, pode esperar como resposta um murro.» O autor desta
do numa igreja de Madrid mas, após algumas obras de remodelação, frase não é Mike Tyson – que nem sequer conhece nenhum Dr. Gas-
perdeu-se o rasto aos restos do homem. No entanto, uma equipa de pari – mas o papa Francisco, ídolo de multidões e católico revolu-
arqueólogos está prestes a descobrir os ossos ou a descobrir que não cionário. Dar a outra face e perdoar as ofensas dos outros era a nor-
consegue descobrir. Ainda não sabem. Se, por acaso, encontrarem ma, mas para o sucessor de Pedro isso perde efeito quando insultam
um esqueleto também não poderão ter a certeza de que se trata de a nossa mãezinha. Aí passa a vigorar o que consta daquele obscuro
Cervantes porque não será possível comparar o ADN com nenhum versículo bíblico que reza assim: «Se insultarem a tua mãe, sopapo
dos descendentes. Estará o autor do Quixote às voltas no túmulo? nas trombas.»
A pneumática página 3 furou (ou talvez não) Um dos meninos que foi ao céu – têm sido
A página mais emblemáticas da imprensa mundial morreu e ressuscitou ao terceiro dia. tantos que a TAP já pondera abrir uma
nova rota – afinal não foi ao céu. Alex Ma-
larkey, o rapaz que não foi ao céu, afirmou
publicamente que era tudo mentira e que
O que é que fazem os jornais quando os valores da nossa civilização estão sob ataque cer-
mais antigas.
ticamente correto, a barbárie. Valham-nos as páginas de anúncios no Correio da Manhã.
(Graças a Deus, o Sun voltou atrás na decisão.)
PUB
LEITURAS MIÚDAS V CARLA MAIA DE ALMEIDA
Asimov, Stephen King... e tudo mudou. Wonka assemelha-se a uma estrela rock; e o
«Quando estava mesmo Vivendo da liberdade Há muitos livros com Com o projeto guys-
Edward Tulane, todos traduzidos em portu-
a começar os trabalhos poética e metafórica do avôs e avós, mas poucos read.com, Jon Scieszka
guêspelaGailivro.Émuito bom tê-la de volta.
de casa, fomos atacados texto, que explora a liga- tocam o tema doloroso pôs milhares de miúdos a
por Vikings.» Um rol de ção entre as pessoas e os das doenças degenera- ler, graças a livros como
desculpas estapafúrdias, espaços onde se movem, tivas. Das recordações este. Mas desde o sub-
entre o nonsense e o hu- Não Há Dois Iguais man- felizes da infância aos versivo The Stinky Chee-
mor negro, (im)próprias tém o leitor em suspense comportamentos bizar- se Man and Other Fairly
para todas as idades até ao fim. É o primeiro ros, a memória está no Stupid Tales (1992)
Flora & Ulisses
e ilustradas a rigor pelo trabalho de Catarina cerne desta narrativa que já tinha mostrado
mesmo autor de A Can- Sobral «apenas» como que combina lirismo ser um inconformista.
Kate Di Camillo
tiga do Urso.
e K.G. Campbell (ilust.)
Presença autora das ilustrações. com perplexidade. Traduzam-no, por favor.
tema da «identidade no seu Labirinto da Saudade. Nunca quis Aí tinha como modelo La Mediterranée
O
portuguesa» foi sem- entrar nesse debate. Mas, como profes- à l´époque de Philippe II, de Fernand
pre tratado como pro- sor da disciplina de História Medieval de Braudel, publicado em 1949, onde ele
priedade dos litera- Portugal, tinha de estudar as origens da lançou a sua teoria do «tempo longo».
tos – a quem, muitas nacionalidade, isto é, averiguar como Curiosamente, Braudel, durante anos e
vezes, sobra intuição é que a identidade passou do não-ser ao anos, foi reunindo apontamentos e estu-
mas faltam dados e estudos. Já o seu ser. Ao reconstituir o processo que con- dos parciais para uma futura história da
livro trata da «identificação». São coisas duziu ao nascimento do país que veio a França, da qual só chegou a publicar dois
inteiramente diferentes? chamar-se Portugal, descobria também volumes. Sabe com que título? L’identité
A diferença que há entre identidade e como ganhou a sua identidade. Para de la France. Foram publicados dois
identificação é que a identidade é um mim, de facto, a identidade nacional não anos depois da minha Identificação de
substantivo abstrato que designa ao é uma questão literária. O seu lugar pró- Um País. Não estou a insinuar que Brau-
mesmo tempo um conceito e uma qua- prio situa-se, por um lado, na psicologia del tivesse plagiado o meu título. Mas
lidade; e identificação um substantivo social, como fenómeno do comporta- fiquei contente com a coincidência…
abstrato que designa uma ação ou um mento coletivo; e, por outro lado, na His- Interpretei o facto como concordância
processo. No meu livro não procuro defi- tória, como fenómeno cultural e político com o uso do conceito de tempo longo
nir o que constitui a identidade portu- intimamente ligado à formação das na- para o estudo das origens da identidade
guesa; partindo do princípio que ela ções. De facto, não se pode fazer história nacional.
existe e se pode definir, tento averiguar nacional, sem averiguar como é que a na- De que maneira esses três séculos que
como se formou, no caso de Portugal e cionalidade aparece e evolui ao longo dos estuda no livro podem explicar as mar-
dos portugueses. É verdade que na nossa séculos. Para isso dispunha de modelos cas da nossa identidade ao longo dos
cultura se trata geralmente da identida- baseados numa erudição abundante e se- outros séculos?
de e não da identificação. Muitas vezes gura, como a obra de Sánchez Albornoz Três séculos é o período durante o qual
a noção subjacente é contestável ou ne- intitulada España, un enigma histórico, eu estudo um determinado tipo de factos,
gativa. Por isso gera críticas e juízos de publicada em 1948 para contradizer as e procuro um determinado tipo de indí-
valor. Creio que, de facto, o tema se con- opiniões de Américo Castro apresenta- cios que depois interpreto como resposta
sidera entre nós como «propriedade dos das dois anos antes num livro chamado às minhas perguntas. O arco temporal
literatos»; como se a singularidade por- La realidade histórica de España. Eram que escolho, desde a concessão do Con-
tuguesa se exprimisse melhor nas fontes obras bem conhecidas, mas não suscita- dado Portucalense até ao fim do reinado
literárias. Situada na praça pública, e ram nenhuma réplica em Portugal. Ba- de D. Dinis, corresponde ao período em
sendo propriedade de todos, tem provo- seavam-se em fenómenos culturais e que se constituiu o que hoje chamamos
cado debates confusos e solilóquios sem políticos, de interpretação nem sempre «Estado», sob a forma de uma monarquia
fim. Raramente suscita reflexões tão per- segura. Pareceu-me necessário interro- feudal. Mas o meu ponto de partida si-
tinentes como as de Eduardo Lourenço gar os fenómenos económicos e sociais. tua-se no «tempo longo», ou melhor, no
culação» tomou conta das aspirações para os portugueses. Acha que se tra- O nosso tempo foi sempre escravo da eco-
dos adolescentes de hoje... tou de um novo ciclo – negativo ou não, nomia. Em países onde se percebeu que
Creio que hoje a preocupação dominante isso não interessa – na nossa vida? Que a racionalidade era mais eficaz do que a
é saber como podemos sobreviver numa a partir daqui tudo vai ser diferente? ideologia, a religião ou a magia, e onde,
conjuntura tão difícil e aparentemente Creio que o futuro próximo vai ser de por isso, a sociedade se organizou a partir
com tão poucas saídas, em vez de procu- facto muito diferente do passado. Não da técnica, a economia pôde, até certo
rar a solução para a crise no recurso a um por causa da intervenção estrangeira ponto, respeitar e proteger a cultura. São
vago «destino português». Teoricamente, (suponho que se refere à atuação da as nações civilizadas do nosso tempo.
a conjuntura devia conduzir à intensifi- troika), mas porque a globalização, a Mas não desapareceram por completo as
cação de todos os tipos de solidariedade, luta entre uma economia da alta finança comunidades que também não são es-
um pouco como quem tenta dar as mãos e a economia de produção, a alteração cravas da economia porque confiam na
para ajudar e ser ajudado pelos outros das formas de comunicação humana natureza. Mas o que liberta a sociedade
para sobreviver. Mas o uso e abuso das es- introduzidas pela informática, as alte- da economia não é a racionalidade nem a
tratégias partidárias, leva a cozer remen- rações climáticas e outros problemas técnica, mas o amor, o silêncio, a verdade,
dos em fatos que não vestem ninguém, tão vastos como estes, não podem deixar todas as artes, a compaixão pelos que so-
ou, até, a empreender lutas que provo- de deslocar por completo a nossa civi- frem, a solidariedade, o diálogo, a conju-
cam estragos dificilmente reparáveis. lização. Mas ninguém sabe como será gação das diferenças. Quando se dá um
A tentativa de esconder ou de fingir resol- o dia de amanhã. Talvez não seja tão sentido a estas realidades, ou seja quando
ver os problemas até ao dia das eleições mau como se teme. É sempre melhor estas abstrações se concretizam, também
orienta os recursos para objetivos enga- viver no presente do que no passado ou a liberdade humana encontra o seu sen-
nadores e produz crispações irreparáveis. no futuro. tido, sem temer nenhuma escravidão.
Os pequenos grupos de ação solidária, Que visão tem do País neste momento? Em 1994, numa entrevista à LER, falá-
que são, a meu ver, o aspeto mais positivo Um barco no meio da tempestade, com mos de Deus, de religião, do invisível.
da situação atual, dificilmente podem os tripulantes às turras entre si (des- Nessa altura lembro-me de mencio-
conseguir subsistir, mesmo quando pro- culpa-se o vulgarismo), a maior parte dos narmos a queda do número de portu-
curam, na colaboração em rede, a segu- passageiros a gritarem «Salve-se quem gueses que se afirmavam católicos, e
rança de que necessitam para dar frutos puder», e um deles, com pequeno grupo a falta de prática religiosa... Preocupa-
efetivos. Não creio que o recurso a pro- à volta, a dizer «Não tenham medo». -o essa «debandada», hoje muito mais
cedimentos de base ideológica como essa Estava a pensar que, nos últimos cinco notória?
do «destino português» possa contribuir anos, as notícias de economia e de Pessoalmente não me preocupa. Entris-
para dar eficácia e dimensão suficiente crime (e de futebol, bem vistas as coi- tece-me. Manifesta a falência da Igreja
à formação de verdadeiras comunidades. sas...) são as mais frequentes na aber- que procurou nas instâncias do poder
Estamos em 2015, no termo de uma in- tura dos telejornais... O nosso tempo e do dinheiro os recursos para continuar
tervenção estrangeira, muito dolorosa tornou-se escravo da economia? a ocupar um lugar importante na socie-
No prefácio que escreveu para a nova edição de Identificação de Um País (a publicar nesta primavera
pela Temas e Debates), José Mattoso conta como chegou a este título e como situa o seu livro na histo-
riografia da época, continuando a sublinhar o carácter indefinível da nação e a dificuldade de isolar
o que nela é único ou a distingue das outras nações.
Uma das questões fundamentais do conhecimento his- de identidade de um indivíduo pode registar o sexo, a cor dos cabe-
tórico consiste em averiguar como se formaram as nações. Pode los, a estatura, o nome dos pais, a data do nascimento, etc., mas ne-
ser abordada, por um lado, num plano teórico, como fenómeno pró- nhum destes elementos revela, só por si, a sua identidade, muito
prio da sociologia política e da sociologia da cultura, ou, por outro menos a sua personalidade. Não é possível descobrir o segredo que
lado, no plano concreto do tempo e do espaço, como fenómeno his- faz com que alguém seja ele próprio. Somos todos diferentes uns
tórico próprio de uma determinada Nação. O livro que agora se dos outros. Mas podemos procurar algumas características que nos
publica trata de História; não é um tratado de sociologia. Reduz a ajudem a compreender como adquirimos a nossa autonomia, as
análise do seu objeto a uma unidade espacial definida por um terri- nossas preferências, os nossos desejos, os nossos defeitos… Ou seja,
tório e por um vínculo político que se prolonga no tempo. Procura como é que estas diferentes maneiras de ser se conjugam entre si.
averiguar como é que a Nação portuguesa surgiu e como evoluiu Com estas considerações tento explicar o que pretendo com este
durante 200 anos. livro a que dei o nome de Identificação de Um País. A metáfora sub-
Não pretendo descrever o que aconteceu a Portugal, ou em Por- jacente ao título inspira-se no magnífico filme de Antonioni, Identi-
tugal, por meio de uma narrativa sequencial inscrita no tempo – ou ficação de Uma Mulher, apresentado em 1982. As suas cenas ainda
seja, contar a História de Portugal –, mas explicar como evoluiu a estavam bem vivas na memória dos espectadores quando o meu
Nação, como Nação, durante os seus primeiros tempos. Para isso é livro foi editado (1985). Conta a história da paixão de Niccolo, um
preciso comparar entre si os fenómenos e acontecimentos que a ma- realizador de cinema, por uma atriz chamada Ida. Niccolo tem por
nifestam, enquanto entidade inseparável do seu próprio território e ela uma atração irresistível e é correspondido; mas não consegue
da memória dos homens e mulheres que nele viveram. Neste sen- penetrar no segredo íntimo da sua personalidade. Separa-os um
tido, não podemos esquecer que nem sempre as mesmas causas obstáculo incompreensível. Talvez Ida preferisse perder o amor do
produzem os mesmos efeitos. Há sempre alguma coisa de peculiar que a liberdade. Acaba por desaparecer, sem ficarmos a saber o seu
numa questão histórica tão complexa como esta. segredo.
Paralelamente a este problema, verifica-se, do ponto de vista Ao adotar esta metáfora como título do meu livro, reconhecia o
social, que a nacionalidade não depende só da existência de um Es- carácter indefinível da Nação e a impossibilidade de conhecer o que,
tado, com os seus órgãos, leis e território; implica também um vín- na verdade, a distingue de qualquer outra. O filme de Antonioni,
culo mental que associa entre si os seus cidadãos, o qual, apesar de com a sua resposta simbólica, traduzia bem o inacabado da análise
não se poder definir como objeto concreto, se pode reconhecer sob a que procedi, a partir da perspetiva histórica. A História não me
a forma de manifestações infinitamente variadas, muitas delas ex- revelava o mistério, mas mostrava-me como se foram montando,
pressas em termos metafóricos, simbólicos ou míticos. Estas ma- no caso de Portugal, as peças que o compõem.
nifestações fazem pressupor uma identidade coletiva, a «Nação Na década de 80, serenados, já, os ânimos, depois da agitação
portuguesa», sem que se possa defini-la objetivamente. Usamos este desencadeada pelo 25 de Abril, prevalecia na sociedade portuguesa
conceito para poder falar de um ser coletivo autónomo, mas inde- o desejo de construir um país novo, totalmente diferente daquele
finível, ao qual atribuímos existência e identidade. que o regime anterior deixava nas suas mãos. Para isso, era preciso
Todavia, só podemos distingui-lo de outros seres da mesma espé- desmitificar a narrativa patriótica, anteriormente propagada em ter-
cie por meio dos caracteres comuns e das suas variantes. O bilhete mos que evidenciavam a sua falsidade primária. O futuro de Portu-
recentes sobre as matérias nele abordadas, para as articular e har- A esta pergunta, tenho, quanto a mim, de responder afirmativa-
monizar com as minhas hipóteses interpretativas de base, e sem dei- mente. Creio que dei um sentido aos indícios que selecionei acerca
xar de manter a sua marca de «ensaio» (por isso ganhou nesse ano dos primeiros dois séculos da nossa Nacionalidade. Creio que o mé-
o Prémio de Ensaio do PEN Club). Esta edição corrigida e revista todo que adotei, qualquer que seja a sua justificação teórica, permi-
(a 5.ª), foi publicada em 1994. Em 1999, foi inserida, sem modifica- te, de facto, encontrar nas coisas e nas palavras os indícios concre-
ção alguma, no conjunto das minhas Obras Completas do Círculo tos de um sentimento coletivo e de um vínculo comum que surge
de Leitores, onde, a partir de certa altura, só podia ser adquirida com como suportado por uma instância política. Não devo a minha res-
os restantes volumes da coleção, e acabou por se esgotar. Volta agora posta ao brio profissional, nem a qualquer convicção moral ou cívi-
a estar disponível como obra autónoma. Reproduz o texto de 1994 ca. Devo-a aos indícios, muitos deles indiretos, das várias formas dos
com as suas atualizações bibliográficas, correções e acrescentos, compromissos por meio dos quais os homens e as mulheres pro-
como já indiquei. curam associar-se entre si para, juntos, vencerem dificuldades,
Em breve, porém, estas atualizações começaram a ser insuficien- se protegerem mutuamente e atingirem objetivos comuns.
tes. A produção historiográfica portuguesa aumentou rapidamen- Com efeito, estou persuadido que todos os agrupamentos hu-
te, diversificou-se e internacionalizou-se. O levantamento biblio- manos prenunciam, de algum modo, o nascimento da Nação: as
gráfico especializado e o registo das inovações científicas deixaram associações, as comunidades, as confrarias, os espaços e territó-
de ser ocupações individuais, e passaram a ser trabalho próprio de rios delimitados, as fronteiras, os caminhos e circuitos, os conce-
equipas especializadas. As técnicas de recolha, armazenamento e lhos, o exercício da autoridade legítima, os pactos de guerra e de
análise de dados exigiram a criação de novos métodos. As conceções paz, os rituais. As associações, por sua vez ostentam a sua identi-
da Nova História foram postas em dúvida. A escola dos Annales per- dade por meio de símbolos e emblemas, de escudos e bandeiras,
deu o seu prestígio; as suas sínteses e conclusões foram criticadas. de títulos e insígnias, de hábitos e fardamentos; organizam-se por
A nível mais filosófico, os desiludidos do iluminismo e da moderni- meio de agrupamentos, classes, hierarquias, assembleias, delibe-
dade ocidental faziam da História um discurso ilusório e sem fun- rações, códigos, distribuição de tarefas, atribuição de responsabi-
damento; todavia o pós-modernismo demoliu teorias e convicções, lidades. Assim o homem consegue, em conjunto com o seu seme-
mas não construiu nada de novo. Por sua vez os adeptos do linguis- lhante, o que, isolado, lhe é impossível. Por isso assinala e, de certo
tic turn desacreditaram a investigação histórica de carácter conce- modo, dá realidade à esperança num futuro melhor. Tudo o que
tual. Assim, o meu livro, imóvel, foi-se tornando, para o mal ou para enumerei são indícios diretos e indiretos da Nacionalidade. Pro-
o bem, cada vez mais datado. curamo-los no passado para lhes dar um sentido, isto é, para
Neste momento não sei se deve ser considerado como demons- revelar o «laço divino que une as coisas» como diz Saint-Exupéry
tração de uma tese de história política ou como repositório de infor- na Citadelle (n. 108).
mações acerca dos usos e costumes, das pessoas e das instituições, Ou seja, pouco importa que a obra esteja ou não «datada». A dife-
das crenças e dos conhecimentos dos habitantes daquele território rença não está na datação, mas no sentido. E o sentido não está nas
que, no século XII, se tornou Portugal. Não sei se é eficaz o método coisas, mas nos olhos de quem o procura.
que adotei de procurar nos vestígios do passado o que de alguma
maneira ainda é presente, e que, por isso, nos interpela. São Pedro do Estoril, 3 de março de 2015 José Mattoso
nal, a mesma estrutura de pensamento ou o mesmo padrão de dese- Coube a Eça, que escreveu sobre Júlio Dinis palavras de grande
jo já se exprimia há muito na voz corrente do desgraçado que, atolado simpatia quando ele morreu, o mérito da descoberta do filtro rústi-
em trabalho, desabafa: «Precisava era de estar em casa doente, mas co: «Depois das Pupilas do Sr. Reitor, as obras de Júlio Dinis passa-
sem me doer nada.» Não é bem querer sol na eira e chuva no nabal, é ram de leve, entre as atenções transviadas. Terá o seu dia de justiça e
fantasiar um filtro com que se remova o princípio activo dum com- de amor. À maneira daqueles povoados que ele mesmo desenha, es-
posto sem lhe prejudicar a acção terapêutica. A irreverência respeito- condidos dos vales sob o ramalhar dos castanheiros, os seus livros
sa seria, nesta lógica, a irreverência desfalcada do desrespeito. Ou pu- serão procurados como lugares repousados, de largos ares, onde os
rificada, no vocabulário de disposição conservadora. nervos se vão equilibrar e se vai pacificar a paixão e o seu tormento.»
Pode haver quem entenda que, como se dizia antes, é tudo uma Pergunto-me, lendo isto, se esse dia não terá chegado sem que dés-
questão de mentalidades, não de semântica. O respeito é exigido ape- semos por ele…
Elif Shafak
memória. Por isso, através de Asya e Armanoush quis discutir esta uma literatura académica que demonstra que muitos desses mitos
questão da memória e da amnésia. são recentes, são modernos, não vêm dos tempos antigos.
No caso de Asya, trata-se de alguém que prefere não conhecer Como no livro The Invention of Tradition, coordenado por Eric
o seu passado. Acha que isso, ignorar o passado, não será o me- Hobsbawm e Terence Ranger.
lhor em algumas circunstâncias? Sim, e o Belated Modernity [livro de Gregory Jusdanis sobre as lite-
Especialmente quando o passado é doloroso, quando há mágoa nes- raturas nacionais], ou o Imagined Communities [livro de Benedict
se passado, as pessoas preferem ignorá-lo, esquecê-lo. O mesmo Anderson sobre os nacionalismos]. Há uma literatura vasta sobre o
acontece com os países. Mas isso é artificial, não é uma abordagem assunto que me interessa bastante e que mostra que todas os Esta-
saudável. Temos de lidar com o passado, temos de o enfrentar, mes- dos-nação têm estascaracterísticas. Masé importante que se digaque
mo que seja doloroso, e então depois avançar. Os extremos não são quando há liberdade de expressão e democracia os historiadores
saudáveis. Não é bom ignorarmos completamente o passado mas podem dizer: «Esperem lá, deixem-me mostrar-vos as coisas de uma
também não é saudável que a nossa identidade seja toda ela basea- outra perspetiva.» E dessa forma uma sociedade tem no seu interior
da no passado. vozes distintas que se equilibram. Visto que na Turquia a liberdade
É isso que acontece com os personagens arménios deste ro- de expressão não tem feito progressos, há muitas vozes que têm sido
mance? Estão presos a uma identidade e a um passado e não são silenciadas, e isso é um problema. Ou seja, há muitas semelhanças
capazes de avançar? entre a Turquia e outros Estados-nação mas o que interessa saber
Para os arménios o passado está cheio de dor, de tragédias, de his- é se há liberdade de expressão, multiplicidade de vozes, pluralismo.
tórias por contar. Gostaria que, a longo prazo, as pessoas fossem ca- Por exemplo, em Inglaterra há muitas pessoas que criticam aberta-
pazes de esquecer um pouco, mesmo que só um pouco, mas para mente o passado colonial da Grã-Bretanha e não vão a tribunal por
que eu possa esperar que os arménios esqueçam um pouco, em pri- causa disso, enquanto que na Turquia as pessoas são processadas.
meiro lugar, enquanto turca, tenho a responsabilidade de lembrar. Foi o que aconteceu consigo quando este livro saiu na Turquia.
Se eu não recordo como é que posso esperar que o outro esqueça? Foi processada por «insultar a identidade turca». Como é que na
Como tal, em primeiro lugar está o dever de lembrar porque só en- altura lidou com isso?
tão podemos pedir ao outro que esqueça um pouco. Esquecer, nes- Eu sabia que ia receber críticas mas não estava à espera de ser pro-
te sentido, não significa ignorar, não me interprete mal, só que é ne- cessada por causa de um romance. Foi a primeira vez que isso acon-
cessária uma certa dose de esquecimento e de perdão. Contudo, teceu, em 2006. Foi surreal porque em tribunal o meu advogado
insisto, o primeiro passo deve ser o da memória, e esse passo tem de teve de defender personagens de ficção.
ser dado pelos turcos. Se os políticos turcos não dão esse passo terão Porque um dos personagens usava o termo «genocídio».
de ser os turcos, enquanto indivíduos, a fazê-lo. E por criticar o passado da Turquia. Foi muito surreal. Ele tinha de
E como poderão fazê-lo? relembrar as pessoas que se tratava de ficção, de imaginação. Acho
Enquanto escritora posso dar esse passo. Uma bailarina poderá fa- que atualmente todos os poetas, jornalistas e escritores têm noção
zer uma coreografia. Talvez alguém possa fazer um filme sobre de que podem ter problemas por causa de uma palavra. Escreve-
o assunto. As histórias são sempre melhores do que os silêncios. mos sempre com essa consciência, o que resulta em muita auto-
E na Turquia tem havido muitos silêncios sobre o passado. Está na censura.
hora de falarmos sobre esses silêncios. Há coisas que não escrevem por recearem as consequências?
Disse em entrevista que a Turquia vive uma espécie de amnésia No que diz respeito aos acontecimentos de 1915, as deportações e os
coletiva. No entanto, neste livro há um personagem arménio que massacres, houve alguns progressos. As pessoas falam cada vez
diz que acontece o mesmo com todos os países. Os Estados- mais sobre isso, têm saído mais livros sobre o assunto. Em compa-
-nação criam os seus mitos e as pessoas agarram-se a esses mi- ração com o que acontecia há 10 ou 15 anos há progressos na socie-
tos. Concorda que esta não será uma característica exclusiva dade civil, conferências, debates, documentários, filmes. A socieda-
da Turquia? de não está calada. As pessoas escrevem e debatem mais do que há
Claro que não é uma característica exclusiva da Turquia ou do Es- uns anos, mas ainda assim trata-se de um assunto complicado e
tado turco. Se pensar nos Estados-nação, na Alemanha, em Israel, a verdade é que, em termos gerais, no que diz respeito à liberdade
na Itália, até no nacionalismo escocês, todos os nacionalismos são de expressão a Turquia recuou. No índice da liberdade de impren-
criados retroativamente e somos levados a crer que as coisas sem- sa caímos [em 2002, a Turquia ocupava o 99º lugar e em 2014 tinha
pre foram assim. E as coisas nem sempre foram assim. Há toda caído para 154º]. Centenas de jornalistas ficaram sem emprego, mui-
Creio que há dois tipos de escrita: uma é quase engenharia, mais matemática, em que o escritor sabe o que cada personagem vai fazer.
Conheço escritores assim, respeito o que fazem, mas esse não é o meu estilo. Gosto de me sentir inebriada ao escrever, mais
irracional, de não saber o que vai acontecer dali a seis páginas. Gosto de ser surpreendida por um personagem porque dessa forma
o leitor também será surpreendido. Como para mim a escrita é um mistério, acho que as pessoas não devem interpretar em demasia.
a pede. Creio que há dois tipos de escrita: uma é quase engenharia, teresso-me muito por personagens desse género, desempenham
mais matemática, em que o escritor sabe o que cada personagem um papel muito importante nos meus livros. Só que a minha defi-
vai fazer. Conheço escritores assim, respeito o que fazem, mas esse nição de minoria é muito ampla, pode ser uma minoria sexual,
não é o meu estilo. Gosto de me sentir inebriada ao escrever, mais étnica, cultural ou qualquer pessoa que num dado momento his-
irracional, de não saber o que vai acontecer dali a seis páginas. Gos- tórico se tenha sentido o outro. Então, quero ouvir as histórias das
to de ser surpreendida por um personagem porque dessa forma margens, da periferia. E isso faz-se através da imaginação e da em-
o leitor também será surpreendido. Como para mim a escrita é um patia, mas para que isso seja possível em primeiro lugar tenho de
mistério, acho que as pessoas não devem interpretar em demasia. ler e de pesquisar. Sem isso não se consegue imaginar. Depois pode-
Uma das coisas que me impressionou neste romance foi a ideia se voar para onde se quiser mas em primeiro lugar tem de se fazer
de que o amor pode ser opressivo. Em Black Milk conta uma li- o trabalho de casa.
ção que a sua avó lhe ensinou, de que para destruir alguma coi- É necessária uma base.
sa basta cercá-la, rodeá-la. Será que esses muros que destroem Sim,construirdebaixoparacima.Façomuitapesquisa,levoissomui-
podem ser feitos de amor? to a sério. Para escrever este livro li muitas obras, consultei arquivos,
Digamos que sem verdadeira liberdade não há verdadeiro amor. documentos históricos, falei com muitas pessoas de origens muito di-
O sentimento de posse não combina com o amor. Um ego muito for- ferentes e todo esse conhecimento também me transformou. A mi-
te não combina com o amor. Onde há muito amor tem de haver nha mãe era diplomata e quando estávamos em Madrid, a organiza-
pouco ego. Mas o que queremos é ter um grande amor e um gran- ção terrorista arménia, ASALA [Exército Secreto Arménio para a
de ego, de uma forma muito possessiva. Oiço as pessoas a dizerem Libertação da Arménia] tinha como alvo diplomatas turcos e, como
«a minha mulher», «o meu marido», «a minha noiva», e a ênfase tal, tenho memórias muito negativas da palavra «arménio», da pala-
é no pronome, mas essa pessoa não nos pertence, essa pessoa é vra, não do povo arménio. Era a palavra em si que tinha conotações
Elif Shafak
negativas e eu tive de fazer uma viagem interior para me livrar dessa uma ligação. É compreensível que assim seja e é por isso que temos
conotação negativa e olhar para a História com empatia. Enquanto de pegar nessas histórias cada vez mais. Até no jornalismo é preci-
indivíduos todos temos de fazer as nossas próprias viagens interiores. so cada vez mais contar histórias.
Tem dito que os seus muitos leitores têm origens muito diferen- Neste romance há muitas coincidências, aquilo a que chamou «si-
tes mas a verdade é que as pessoas podem ler os mesmos livros nais» noutro dos seus livros. Acredita nas velhas qualidades do
e, na vida real, voltarem às suas trincheiras, sem qualquer alte- romance, com um tão grande número de coincidências ou sinais?
ração. Será que a literatura não é tão poderosa quanto gostaría- Interesso-me muito pelo sufismo [corrente mística e contemplativa
mos que fosse? do islão], e não apenas pelo misticismo islâmico; interesso-me pelo
Acredito que a literatura é poderosa e, mais do que isso, tem a ca- misticismo judeu, pelo misticismo cristão. Para mim são muito idên-
pacidade de transformar as pessoas. Como é que eu sei? Porque eu ticos. E as pessoas que seguiram estas correntes sempre estiveram
fui transformada pela literatura. na periferia das suas religiões e muito interessadas no que não se vê,
Em A Bastarda de Istambul os livros são importantes para os na essência. Não são tanto as leis e as regras à superfície que lhes in-
personagens e também disse, em Black Milk, que os livros a sal- teressam, mas o significado oculto, e esse significado é universal. Os
varam. sufis acreditam que estamos todos ligados, que as nossas histórias
Salvaram-me, transformaram-me,mudaram-meem tantos aspetos. e destinos estão ligados entre si. Hoje isso percebe-se melhor porque
Não quero romantizar mas foi o que me aconteceu e acredito que após o 11 de Setembro vimos que o que acontece a uma pessoa num
acontece com outras pessoas. Naturalmente, em escalas diferentes. determinado lugar afeta as pessoas no outro lado do mundo. Exis-
Por exemplo, por vezes falo com leitores que são bastante homofóbi- tem estes fios invisíveis que nos ligam. Não me importo de dizer que
Os sufis acreditam que estamos todos ligados, que as nossas histórias e destinos estão ligados entre si. Hoje isso percebe-se melhor
porque após o 11 de Setembro vimos que o que acontece a uma pessoa num determinado lugar afeta as pessoas no outro lado do mun-
do. Existem estes fios invisíveis que nos ligam. Não me importo de dizer que sou uma pessoa irracional, acredito que na vida há magia,
que há coincidências ou sinais. Isso não faz com que eu seja religiosa, não sou religiosa, distingo a espiritualidade da religiosidade.
coseacabampormedizerqueadoraram um personagem gay deum sou uma pessoa irracional, acredito que na vida há magia, que há
dos meus livros. Ou pessoas que gostaram muito de um personagem coincidências ou sinais. Há coisas que não podem ser explicadas ape-
turco, arménio ou judeu, pessoas que eu sei que são xenófobas no dia nas pela lógica. Isso não faz com que eu seja religiosa, não sou reli-
adia.Comoéqueistoseexplica?Naminhaopinião,ofascismoéuma giosa, e faço questão de distinguir a espiritualidade da religiosidade.
doença coletiva. Somos sempre mais reacionários, menos tolerantes A religião é uma coisa organizada, com hierarquias e que divide
e menos liberais quando estamos acompanhados. Quando estamos o mundo entre nós e eles, enquanto que um místico, na minha
juntos,emsociedade,gozamoscomosoutros,vamosnacorrente,mas opinião, não divide o mundo entre nós e eles.
quando estamos sozinhos é diferente, há um espaço interior que se Mas essa falta de organização faz com que permaneçam na margem
abre. O romance dirige-se a esse espaço porque exige que o leitor es- das próprias religiões.
teja só. Vamos juntos ao cinema ou a um concerto, mas lemos sozi- Não só por isso. Não podemos esquecer que alguns desses movimen-
Após o sucesso do terceiro romance, Um Dia (ed. Civilização, ao meu agente [Jonny Geller, da agência Curtis Brown], ele achou-o
dois milhões de exemplares vendidos, em 37 línguas), esteve cin- muito plano e depressivo. Eu concordei. O facto de estar escrito na
co anos sem publicar. Entretanto, deitou para o lixo as cerca terceira pessoa não ajudava nada: era tudo muito frio e judicativo,
de 35 mil palavras de uma primeira versão de Nós. Porquê? como se eu observasse os personagens de cima. Tive de começar
Eu costumo admitir que tive um bloqueio, mas, na verdade, não pa- tudo de novo. Mantive a ideia de uma tournée cultural de pai e filho
rei de escrever nesses cinco anos. Produzi três argumentos para ci- pela Europa, mas decidi descrever também o casamento dos pais
nema e cerca de seis milhares de páginas para televisão. Acontece e o funcionamento da família. Douglas Peterson [o pai, protagonis-
que andava demasiado ocupado, demasiado disperso e tudo me pa- ta e único narrador de Nós] devia ser o oposto de Dexter Mayhew
recia aquém da qualidade de Um Dia. Durante um ano e meio, tra- [o autoconfiante protagonista de Um Dia]. Medroso, ansioso, com
balhei uma sequela. Escrevi sobre um pai que convida o filho para uma espécie de bondade atabalhoada, Douglas era capaz de senti-
fazerem juntos uma Grand Tour [roteiro de viagem cultural pela mentos fortes, mas não conseguia expressá-los. Para descrever esta
Europa, praticado pelos jovens da classe alta britânica no século incapacidade e humanizar o personagem, não bastava pô-lo a agir
XVIII], em reparação por ter estado afastado dele durante 10 anos. e a falar, era preciso usar a primeira pessoa do singular e entrar den-
Um romance moral? tro da cabeça dele.
Sim, a piada era que o pai tinha a postura de um adolescente, en- Já a tinha usado no primeiro romance, Uma Questão de Atra-
quanto o adolescente se comportava como um adulto. A atitude ção. Aliás, há muitos escritores que usam a narrativa na pri-
do pai era deplorável. Não havia personagens femininas, nenhuma meira pessoa nas obras de estreia. Talvez porque a achem mais
relação amorosa, nenhum flashback. Quando dei o original a ler literária...
episódios, acontecimentos e encontros, e para saltar com facilidade fáceis de adaptar. O mais difícil é reproduzir o enredo intricado,
e fluidez entre o passado e o presente. a subtileza irónica, as paixões que obcecam os personagens e lhes
Quando Douglas pensa em alguma coisa, ela acontece diante dos determinam o destino.
nossos olhos. O que contraria a regra de ouro: num romance, A jornada de revelação do personagem é cada vez mais valori-
pensa-se e sente-se; num argumento, fala-se e age-se. zada nas séries televisivas norte-americanas de autor. Viu Brea-
Isso foi o que me custou mais a aprender. Quando o meu primeiro king Bad – Rutura Total?
romance saiu, um amigo, romancista, disse-me: «Tu agora já podes Vi todos os episódios, enquanto estava a escrever Nós.
dizer “ele pensa” ou “ela sente”.» Para mim, isso era inconcebível. E gostou? Eu cansei-me pelo meio e detestei aquele final; acho
Num guião, se surge algo como «X bate com a porta furiosamente, que estragou o embrulho todo.
com o rosto tomado pela raiva», de certeza que o ator vai riscar tudo, Tem razão, a certa altura aquilo tornou-se bastante chato. Eu teria
menos «X bate com a porta», porque acha que é a ele que cabe ima- cortado um bom bocado do argumento. Mas o curioso é que exis-
ginar e interpretar. tem muitas semelhanças entre o meu protagonista e Walter White
As novas séries televisivas quebraram bastante esse tabu e tra- [protagonista de Breaking Bad; um desenxabido professor de quí-
tam cada vez mais do que não é dito... mica que, ao descobrir que tem cancro, decide fabricar e comer-
Com certeza. Mas pergunto-me se isso advirá do argumento ou das cializar MA-metanfetamina «99 por cento pura»]. Ambos são
orientações do realizador ou do ator. Porque, por exemplo, não é personalidades apagadas, espartilhadas, nas quais, de repente,
possível escrever o arrependimento de um personagem; ele tem de se desencadeia uma mudança radical. Ambos passam por vários
ser representado ou, quando muito, apresentado através de uma acidentes de percurso (entre eles, uma crise conjugal e problemas
voz off, um recurso muito artificial. Os romances mais difíceis de com um filho) até à revelação de um outro eu.
adaptar para cinema ou televisão são os narrados na primeira pes- Como prepara tudo à partida, suponho que o carácter e o per-
soa ou nos quais existe uma discrepância grande entre o que acon- curso de Douglas já estivessem formados quando Walter Whi-
tece e o que é pensado, entre o que é dito e o que é sentido. Esta te surgiu na sua vida?
última característica é muito distintiva da literatura inglesa. Por Sim, mas isso não impede que Nós seja uma espécie de Breaking
exemplo, nas obras de Edward St. Aubyn [Nicholls adaptou para Bad... mas sem dealers ou cristais de metanfetamina. [Risos.] Isso
televisão Deixa lá e Más Novas, os dois primeiros romances da sé- prova que o conflito entre o eu público e o eu privado não é uma in-
rie Patrick Melrose, editados em Portugal pela Sextante], os perso- venção inglesa.
nagens pertencem à alta sociedade, logo, nunca expõem os seus Que série atual o faz rir?
sentimentos. Nunca dizem exatamente o que estão a pensar. Es- Girls, escrita pela Lena Dunham para a HBO. Gosto imenso, apesar
cudam-se por detrás da ironia, do dito espirituoso, da hipocrisia de me fazer sentir muito velho. O humor nova-iorquino agrada-
ou do sarcasmo. -me muito: um certo cinismo, a autodepreciação...
Que dificuldades encontrou ao adaptar Dickens para o cinema Isso é nova-iorquino e judeu.
(Grandes Esperanças, 2012)? Claro. Pelo menos até ao início dos anos 90 (e a Maridos e Mu-
Os romances de Dickens são negríssimos, muito trágicos, com uma lheres, o último filme dele de que gostei de facto), Woody Allen foi
espessa densidade emocional. E, no entanto, nunca deixam de ser a influência mais marcante.
um entretenimento maravilhoso. Dickens é o meu autor prefe- Afinal, não falámos de outra coisa, desde o início desta entrevis-
rido. Às vezes, acho-o fastidioso, enfastiado, sentimentaloide ou ta, senão da importância da autodepreciação...
demasiado frio, mas é inegável que, em todos os momentos, ele Parece que sim. Para fugir ao estereótipo do protagonista reprimido,
exibe uma capacidade de experimentação e inovação notável. ansioso,deWoody,quandoescrevi UmDia,crieiDexterMayhew,um
Se calhar por sempre ter desejado representar ou escrever para o homem cheio de autoestima e autoconfiança. Mas agora reparo que
teatro (as peças dele são horrorosas, por sinal), Dickens tem um Douglas,nasuaderivaenasuainsegurança,àsvoltasdentrodesimes-
sentido da cena extraordinário. É por isso que os diálogos são tão mo,temmuitomaisavercomigo...equenãohácomofugiraisso.[Ri.]
O escritor impecável
Flaubert descreve um mundo de onde está ausente qualquer metafísica, onde não há tempo para a contemplação. Paris
é ponto para onde confluem todas as atenções de uma nação, que não se constrói malgrado essa agitação humana. À mi-
núcia das descrições de Flaubert, à penetração da suas observações, opõe-se a dissolução do pensamento daqueles homens
e mulheres.
Educação Sentimental é um exem- estudar pintura – porque não entrar para cial. Pois a chave, em Paris, para um arrivista
românticas: escrever uma peça de teatro, alterar em nada os objetivos secretos que
se perseguem, quanto era fácil encontrar uma terra lamacenta para décors mudam de aparência em função do ponto de vista do obser-
onde escorregar. Mas a terra lamacenta de Paris – como Flaubert o vador; ou porque os décors se enriquecem ou empobrecem em fun-
descreve admiravelmente – é perfumada, cheia de palacetes, de bons ção do seu proprietário; ou porque os elementos do décor passam
partidos e de cocottes, de salões privados onde se come bem demais, de uma casa a outra, ou porque são leiloados, de mão em mão, ou
de interiores de calèches acolchoadas a seda. porque as casas são abandonadas e com elas os salões e os canapés,
O romance começa com um ritmo lento, a lentidão no limite do onde estivemos também nós presentes. A matéria em Flaubert
aborrecimento — o aborrecimento de um Frédéric pré-herança, e é o elemento que amordaça o ser humano, é o supérfluo que deter-
pré-Paris. E aos poucos, com uma constância implacável, o ritmo mina quase tudo.
das frases aumenta e, concomitantemente, aumenta o ritmo dos A Educação Sentimental é também um puzzle gigantesco de per-
eventos, as razões de palpitar do coração de cada personagem, o rit- sonagens que se cruzam, e recruzam muitas vezes onde menos se
mo da História. Deixamos para trás a pacatez aparente de um regi- espera. Flaubert conhece-os intimamente. É essencial, para com-
me, transparece a ameaça de uma guerra civil, estoura uma revo- preender A Educação Sentimental, não pensar que há personagens
lução, que é oprimida no sangue, torna-se o regime ainda mais secundários. Com dois gestos, uma veste, duas frases, o personagem
sórdido; ao mesmo tempo Frédéric «desabrocha» neste mundo, faz está cunhado. E depois, lentamente, veremos este tipo humano evo-
pequenos compromissos que cada vez se tornam maiores, perde- luir na sociedade: Martinon, o menino de boas famílias que não sabe
-se crescentemente. O que há de admirável nesta construção rítmi- pensar, mestre em lisonjear o poder, acima de tudo com o seu si-
ca é a força com que ela descreve o facto de que o acelerar do ritmo lêncio, vestido como deve ser, nunca levanta a voz, e um dia apare-
de uma vida, e de uma época, não significa necessariamente uma ce rico, num cargo de poder, onde serve zelosamente. Dussardier,
transgressão, nem uma construção. Aqui, o ritmo que se acelera o personagem mais generoso da obra, o operário que conhece três
cada vez mais é apenas sinónimo de desperdício. Os espasmos cada livros, ávido por conhecer mais, mas cuja vida de escravo não lhe dá
vez mais brutais d’A Educação Sentimental acabam todos por recair um dia de ócio, ainda assim acredita nas utopias e está pronto a dar
num vazio, numa inutilidade. a vida por elas. Deslauriers, o filho do pai severo, criado na miséria,
Este é o retrato de uma humanidade que ama a submissão. Ra- que pagou pelos seus estudos, se tornou advogado e que tem que
ros são os elos positivos que ligam estes homens entre si. A própria cobrar à vida uma série de vinganças, e para isso trai os amigos, ser-
grande paixão de Frédéric parece não ter sido mais do que a ma- ve-se das mulheres, despreza os patrões, desgasta-se ao envelhecer,
neira de ocupar um espaço em si. Paris surge nesta obra como um e contenta-se com cada vez menos. A Educação Sentimental é este
íman que atrai vazios, e cada personagem, por muito que tenha enfiar de pérolas num pescoço que se esgana: uma cidade cada vez
relações, não tem nenhuma ligação, a começar pela a ligação com mais moderna, e cada vez mais arcaica nas formas da sua violência.
si mesmo. Flaubert descreve um mundo de onde está ausente qualquer me-
Flaubert nunca recorre a fórmulas «universais» para descrever tafísica, onde não há tempo para a contemplação. Paris é ponto para
a humanidade. Nenhum aforismo, raríssimas afirmações gerais so- onde confluem todas as atenções de uma nação, que não se constrói
bre «os homens». Cada homem é visto particularmente. Flaubert malgrado essa agitação humana. À minúcia das descrições de Flau-
observa como um sociólogo.Todas as descrições nascem de uma ob- bert, à penetração da suas observações, opõe-se a dissolução do pen-
servação meticulosa do que viu, e de anotações que tomou. Os dé- samento daqueles homens e mulheres. Não é a descrição do final de
cors são documentos de uma época, com a sua vida e intensidade um mundo, e do início de um outro, mas de um mundo que não ces-
intactas, e os seres humanos, em vez de serem colocados diante dos sa de acabar, e de renascer igual, ou pior. Mas este mundo, estranha-
décors, são envolvidos no seu próprio tecido. Os espaços onde os per- mente, não tem nada de surreal – e aqui reside a sua tragédia: neste
sonagens se movem parecem-nos reais, pois como os personagens, mundo tudo parece palpável, tudo parece animar-se de uma lógica
também eles são moventes. Não há em Flaubert espaços estáticos. inabalável. Não há, nesta humanidade, a consciência do absur-
Ou porque os personagens se deslocam nos décors, e fazem desfilar do, nem mesmo «do cómico em tudo» – que Flaubert, justamente,
o que os envolve, o que os consome, o que cobiçam ; ou porque os por todo o lado buscava.
DEMOCRACIA
Nascer a meio de um século não é bom Três sílabas de quê? – de bancarrotas, Por uma vez não me queixo,
augúrio para o início do próximo. Mesmo de naufrágios, do Minho a Timor, não procuro culpados, nem exijo
comcuidado,ocalendárioarredondasessenta ou dos dividendos do Banco de Angola? reféns. Leio com atenção as notícias,
anos, cinco dúzias, quatro arrobas, um verifico os resultados desportivos,
arrátel de memórias que perderam Nasce-se por aqui, em aldeias já que é impossível contar
apólices, de enganos que deixaram de ter na serra, ou vilas na planície, e o cercado o número de mortos por bomba,
perigo. vai ficando cheio de mortos: fome ou rajada. Nem mesmo
Em início de tarde, as vítimas de desastres naturais
com saxofone alto, corneta e secção tantos, que não se arrumam em três ou do afundamento de um navio.
de ritmo, ainda parece permissível sílabas. Pátria? (outras tantas,
partir em viagem, tentar perceber com ditongo) – cais de partida, Com tudo isto, vou ficando mais
se o próximo vai desistir velho, mas ainda não me queixo.
por cansaço ou falta de estilo. calabouço de memórias: as que vingam Os anos que passaram tiveram
e as que estariam melhor esquecidas. a mesma alquimia de desespero,
Interrogação que é fogo fátuo, moeda Problema sem solução? – que solução mágoa e alegria – os mais distantes
para arrumador de carros, compaixão têm a bênção do esquecimento,
por histéricos, deferência pela obrigação teria que coubesse nesta língua, nada mais. Não desjo enumerar
de estar vivo e comprar flores para enfeitar em que por sorte e maravilha, os sinais de decadência, nem
campas, no dia dos Fiéis Defuntos. prevaricamos? Promessa mudar de práticas. Se não me calha
morrer de véspera, também
não cumprida? – há por aí soutos, não tenciono transferir perdas
pomares, ribeiras do Mar Atlântico, para outro plano quinquenal.
que garantem que para ossos
José Alberto Oliveira nasceu em 1952, no Fundão (Souto da Casa). É autor de, entre outros, Por Alguns Dias, O Que Vai Acontecer, Mais Tarde, Nada Tão
Importante Que não Possa Ser Dito, Peças Desirmanadas e Outra Mobília ou Tentativa e Erro (poemas escolhidos). Todos publicados na Assírio & Alvim.
O declínio da literatura ou os
vasoscomunicantesdaficção
É provável que Jane Austen, Hemingway, Scott Fitzgerald, Camilo e Eça, se vivessem
hoje, estivessem a trabalhar sobretudo em áreas como o cinema, a televisão e os vi-
deojogos – e não a, exclusivamente, escrever contos e romances. Francisco Vale, edi-
tor da Relógio d’ÁGua, não está pessimista nem acredita num declínio da literatura.
O livro mais íntimo tornou-se um caso público e o seu autor ascendeu a um estrelato
pouco comum com a literatura que pratica. O norueguês Karl Ove Knausgård
arriscou tudo por uma obra e agora pergunta sobre o que se segue, o «e depois?»
a que muitos autores não sobreviveram.
A
ENTREVISTA de ISABEL LUCAS
conversa começa onde o livro acaba. Com a úl- guês depois da edição de A Morte do Pai, o título que deu origem
tima frase, sem que nada das cerca de 3600 pá- a tudo. «Tens de contar a tua história, Karl Ove», o imperativo
ginas que a antecederam e que compõem a obra perseguia o homem de forma obsessiva. «Tinha de descobrir
fique comprometido. «Vou gostar, realmente gos- a forma de me libertar do desespero.» Descobriu, alimentando
tar, da ideia de não ser mais um autor.» É o fim de A Minha Luta, esse sofrimento e escreveu e publicou um dos livros mais pri-
volume seis, ponto final da autobiografia que lançou no mundo vados, mais íntimos que se conhecem, usando a primeira pes-
uma discussão entre literatura e ética ou sobre os limites da ex- soa sem subterfúgios. «Sim, eu sou aquele, mas só até ao ponto
© Ulf Andersen/Getty Images
posição de alguém que avançou para a escrita com a pergunta em que escrevo “eu”.»
que condicionaria tudo: «Quem és tu quando não sabes que exis- O «eu» autor e o «eu» protagonista são mediados pelo proces-
tes?» – ou de outra forma: «Quem eras tu quando não te lem- so de escrita que quer replicar a memória e chegar a uma iden-
bravas que existias?» São reflexões que surgem no livro quatro, tidade. «Há algo que se perde irremediavelmente entre um e ou-
o volume que vai sair em abril na tradução inglesa, pela Relógio tro, o eu que escreve e o eu que viveu as experiências», refere
d’Água quando se anuncia para maio o segundo livro em portu- Karl Ove Knausgård numa conversa a partir da casa para onde
se mudou em 2011, com a mulher e os quatro filhos, numa aprovado, como pelo pai. Ou seja, quando começou a escrever
pequena vila do Sul da Suécia onde quase ninguém sabe nada «como um homem só» no que considera uma experiência limi-
de literatura nem da dimensão mundial que o seu nome ganhou te de que sabe que não se irá redimir. «Vai haver sempre culpa,
depois de publicar o primeiro volume de A Minha Luta. Ali, mas quando estava a escrever, como um autista, eu não sabia
ele voltou a ser Karl Ove, e não o autor Karl Ove Knausgård que disso.» No espaço da liberdade total não existe esse conceito. Cul-
desafiou todas as convenções literárias, criando um estilo difícil pa, o julgamento do outro, a hipótese de falhar, a ideia de fra-
de catalogar, tão privado que se tornou um caso público, quase casso. Era como quando apanhava bebedeiras na adolescência
político. Alguém que mesmo depois de expor toda a sua intimi- e percebeu que tinha blackouts, imensas partes brancas por
dade é chamado a revelar-se mais um pouco em cada entrevis- preencher na memória dos factos enquanto o cérebro era co-
ta, palestra, conferência, textos publicados nas mais prestigia- mandado pelo álcool. Nem um registo ficava do que fazia nesses
das páginas de literatura um pouco por todo o mundo, onde está momentos em que entrava noutra dimensão onde nada o im-
a ser traduzido a um ritmo mais lento do que o da própria es- pedia de fazer o que queria. Desejava replicar aquela sensação
crita, que foi voraz. «Se há algo que descobri sobre mim é que o mais possível. O que lhe aconteceu aos 39 anos, uma década
sou capaz de escrever 800 páginas num mês», ironiza acerca do depois da morte do pai, casado pela segunda vez, pai de um bebé
desafio mais arrojado a que se propôs: ser o mais verdadeiro nascido do seu segundo casamento com a escritora sueca Linda
possível na resposta à pergunta «Que raio sei eu?». Não com Boström Knausgård, foi comparável a essa liberdade etílica. Per-
a «ficção que combate a ficção» porque tira o sentido ao ponto der-se sem medo e contar finalmente tudo sobre a morte do pai
de partida, como explica no livro, mas com a ficção que aceita por achar que isso o «iria aliviar» e revelar. «Foi o mais sur-
«as coisas como elas são» e se cria a partir daí. preendente, perceber que quanto mais escrevia mais me afun-
Como se libertar
dava em mim, tornando-me egoísta na perseguição desse des-
conhecido, verbalizando-o. Todo o sentido vinha da luta contra
«Quem raio era eu?» Na tentativa de resposta à pergunta havia a minha frustração e da dor que me incutia. Tinha de continuar,
um tema recorrente: a imagem do pai. Ele tinha sido fulcral na era a minha única meta e se me dissessem que ia ficar só eu não
criação dessa identidade, no seu desejo primordial de agradar, me importaria. Era uma embriaguez.»
muitas vezes acobardando-se. Quando o pai morreu, escrever Há quem chame ato de coragem ao que fez, coragem de se re-
sobre essa morte impôs-se. Como? «Não conseguia nada. Esta- velar sem concessões. «Não há coragem nenhuma aqui», volta
va bloqueado e muito frustrado. Queria escrever uma obra gran- a dizer. Prefere falar em risco, mas «como era inconsciente não
diosa, mas tudo o que saia era banalidade, uma treta, nem boa conta». «Há um truque». Já dissera isso numa entrevista publi-
nem má, como tantas outras», assim se refere a Out of the cada na edição do último inverno da Paris Review: escrever tão
World, tradução inglesa de um livro de 1998, e A Time to Every depressa que não houvesse espaço ou tempo para se editar.
Purpose Under the Heaven, de 2004. A crítica norueguesa re- «Bastava abrandar para que fosse diferente. Uma pausa e eu iria
cebeu-os bem, mas não era aquilo que ele queria. A descoberta chumbar coisas que só passaram na malha pouco apertada da
veio durante o «inferno» em que «não havia uma linha escrita semi-inconsciência da rapidez», salienta agora, outras palavras
que prestasse»; veio «quando percebi que há que enfiar os cor- para o mesmo sentido, e confessando que foi também aí que
nos no texto» para encurtar a distância entre pensamento e lin- chegou à forma: seguir a memória com tudo o que ela convoca
guagem. «Escreve e alguma coisa sairá da sombra», revelando- sem tentar domesticá-la. Ou seja, subjetividade e objetividade
-se e ganhando um significado. «Como se entre o pensamento a neutralizarem-se num equilíbrio complexo, próximo daquele
– ou não sei se será pensamento, mas aquela torrente de ima- que confere identidade e está na origem do «eu» literário inau-
gens que veem à cabeça – e o momento em que a imagem ou a gurado por Santo Agostinho em A Cidade de Deus (426 d.C.).
ideia ganha a forma de palavra acontecesse qualquer coisa, uma Nada disto ou nada como isto teria existido sem o tal «enfiar
descoberta.» os cornos» no texto que é mais do que meter a cabeça. É marrar,
É isso a escrita? «É assim que sou capaz de escrever, escre- insistir, «ir à luta».
vendo», ouve-se a voz grave dizer. Escrever sem filtro «tudo o que Estamos sempre nos limites da capacidade da linguagem sem-
dói e envergonha», continua. «Eu não sabia que era assim até pre que se fala do universo de Karl Ove Knausgård. Como dizer
o desespero tomar conta de mim»; quando decidiu abandonar o então toda esta conversa num português que tem como ponto
que para ele sempre fora uma condição: agradar aos outros, ser de partida de pensamento o norueguês e passa pelo filtro do in-
glês, que não é língua-mãe de nenhum dos interlocutores mas segue a essa singularidade, seja algo que lhe escapa e acerca
é a única em que eles conseguem comunicar? «Perceber o que do qual está a aprender a situar-se com a certeza de que houve
se perde aqui é já saber que a linguagem tem limites», continua perdas.
O discurso público
o autor, identificando esse espaço invisível entre o que é possí-
mento estava em risco. Tinha outro filho a caminho. «Olhar isso -me sensações e levava-me a reflexões. De uma maneira muito
agora é um pouco estranho. Como pude ser aquela pessoa? Não simplista, é isto», volta como se nunca saísse desse labirinto que
estou a condenar-me. Também tento entender o processo. Eu ti- ele próprio construiu. Precisou dele para sair do desespero. Não
nha absolutamente de fazer aquilo e tudo o que se seguiu, a pro- sai dele sem culpa. Outra vez a palavra. «Sinto culpa, vou ter de
moção, as entrevistas, as palestras eram uma espécie de perfor- viver com ela.»
mance», confessa. Onde fica então a verdade a que se propôs? A família paterna cortou relações com ele, levou-o a tribunal,
«Não significa que esteja a falsear. Mas sou muito tímido, muito por achar humilhante e difamatório o modo como se referiu
reservado, e sou sobretudo isso mais do que a pessoa que se ex- à avó no fim da vida, uma alcoólica, meio senil que foi encontrar
põe, mas agora também sou essa pessoa. Precisei da literatura quando o pai morreu na casa onde ambos viviam. «O cheiro era
para isso. Aquele “eu” é tão verdadeiro quanto me foi possível, nauseabundo. A casa tresandava a mofo e urina», escreve. A ex-
mas quando o livro acabou a audácia foi-se com ele. Ficou no li- -mulher, que primeiro não se opusera a que falasse dela, acabou
vro. Esse meu “eu” privado tornou-se o meu “eu” público. Outra por recorrer a todos os meios possíveis para repor o que ela cha-
vez paradoxal, mas é assim que sinto. O Karl Ove continua e tem ma de verdade e acusá-lo de infâmia: foi pelo segundo livro que
de lidar com isso. Interpreta publicamente esse “eu” e, mais uma soube que Karl Ove se apaixonara pela atual mulher quando ain-
vez, da forma mais verdadeira de que é capaz.» da estavam casados. As repercussões do que escrevia apanha-
Quando saiu em 2009, A Morte do Pai, assim se intitula o pri- ram-no de surpresa. «Eu era um ingénuo, ou melhor, estava in-
meiro livro, vendeu um milhão de exemplares num país com génuo na minha atividade.» Ainda alterou nomes, poucos, fez
menos de cinco milhões de habitantes e estima-se que um em uma ou outra concessão, mas acabou por achar que tinha de as-
cada nove noruegueses tenha lido toda a saga. Era discutido em sumir-se. «Eu tinha de ser verdadeiro comigo, não um dissimu-
conversas de café, nos transportes, em almoços e jantares, as- lado. Aquele “eu” do livro sou eu despojado de autocensura, que
sunto de conferências, primeira página de jornais e o autor dis- pela primeira vez na vida se marimbou e que só por isso foi ca-
tinguido como personalidade nacional e honras de Estado. Um paz de se revelar. Nunca pude imaginar a dimensão de tudo isto.
homem revelava-se no que tinha de mais íntimo sem medo das Eu era, e sou, banal. Nada há de extraordinário a não ser essa to-
consequências. «Não era bem isso. Naquela vertigem eu não tal exposição a que me propus e a forma como o fiz e isso é dolo-
tinha pensado nelas. Estava demasiado focado em mim. Não sei roso antes de mais, para mim. Penso nos meus filhos, no que eles
como pude! [Pausa.] Sei, os sentimentos adaptam-se ao meio e eu podem pensar ao ver ali os seus nomes e os de pessoas que co-
era tudo, ali», continua numa frase que parece ecoar outra do nhecem bem. Mas eles ainda são pequenos. Acho que vou ter de
mesmo livro. «Os sentimentos são como a água, adaptam- abrandar a preocupação, esperar e ir-lhes dizendo o que forem
-se sempre ao meio», escreveu a propósito do luto pelo pai, a mor- perguntando. Sei que a relação que tenho com eles não é igual à
te como tema que a vida torna impossível. «Só a conhecemos que tive com o meu pai, mas não sei que ideia irão ter de mim.»
a partir da vida e é da vida a linguagem com que a nomeamos. A pequena aldeia da Suécia onde quis preservá-los da exposi-
Como se fala dessa experiência impossível de comunicar en- ção pública já é visitada por jornalistas estrangeiros. Como se
quanto tal. A morte é o exemplo das limitações da linguagem?» faltassem sempre pontas à pergunta porque é que alguém se ex-
Ao longo da entrevista, as respostas nunca são lacónicas. Ne- põe assim? O livro conta isso tudo. Dá os factos, expõe as moti-
las, sente-se a mesma fluência do livro. Tudo é um desafio que vações em vários níveis de discurso que o tornam complexo.
convoca vários níveis de linguagem: coloquial, metafórica, com Onde termina a curiosidade? «Não sei. A curiosidade pode ser
longas digressões interiores, referências da música e da pintu- alimentada de forma infindável. Pergunto-me o que me leva a
ra. Pode ser rude, poética, não elimina clichés, é plena. Lenta nas querer saber mais de autores cuja obra parece ter tudo. É como
primeiras páginas, uma reflexão sobre a morte. «Não somos se nos quiséssemos apropriar de uma aura.» Ouve-se o telefone.
isso? Sérios e patéticos, vulgares e profundamente singulares? Pede cinco minutos. Tem de resolver um problema doméstico.
Nada do que fiz foi ensaiado. Conto as minhas experiências, mas Quando retoma a conversa sabe onde parou. «Isso leva a outra
quando as conto elas já não são as mesmas experiências, a me- pergunta: como é que que somos apreendidos? Acho que é aí
mória tem um esquema que tentamos desmontar mas que nos que está um dos pontos mais misteriosos de tudo isto e é aí que
© Pedro Loureiro
ultrapassa sempre. Isso é fascinante. Por isso estive obcecado começa a literatura», sublinha.
com o fluxo. Um cheiro levava-me a uma imagem e eu ia buscar A literatura, como em qualquer obra de arte, só obtém reco-
uma conversa com gente que tinha esquecido e isso despertava- nhecimento com a fruição ou é outra coisa. Quando foi traduzi-
do para inglês, em 2012, o fenómeno Knausgård tornou-se glo- cio da nossa identidade, o que a moldou. É o livro mais ficcional,
bal. Está traduzido em 22 línguas e o autor ganhou estatuto se- por aí, o que tem um trabalho mais complicado sobre a memó-
melhante a uma estrela pop, facto que poderia ser pouco com- ria. Não me posso lembrar dos diálogos. Sigo o impulso e o que
patível com a complexidade da obra literária que assinou. No acharia verosímil ter acontecido em determinadas circunstân-
princípio de toda a campanha, antes da literatura, o isco era cias», refere, pondo ênfase nas imagens. «Vivo através de ima-
mais mundano, quase irresistível, uma grande provocação. Não gens, leio e escrevo com imagens. As palavras sugerem-me ima-
apenas o homem que se expõe e com isso adquire o estatuto gens, os cheiros para mim têm imagens. Um copo é tudo o que
de maldito por quem lhe é mais próximo, mas também o título essa imagem me sugere, tudo o que a minha memória guardou
do novo livro que se anunciava. A Minha Luta, Min Kamp no dela. O sabor, a temperatura.»
original norueguês, próximo da grafia e provocatoriamente per- Quem já leu, sabe que são muitas as referências à pintura,
to do Mein Kampf de Hitler, com Knausgård a comparar o Ho- às artes plásticas. As emoções que um quadro pode ou não pro-
locausto à impossibilidade da linguagem. «Quis andar por esses vocar, a viagem que permite e, outra vez, o modo como a arte
limites, quis explorá-los. O que fazer quando a linguagem não é recebida, apreendida. Recorre a Adorno para explicar a ideia,
parece possível, quando é limitada perante o que somos?» Quan- a da consciência da obra e da nossa posição em relação a ela.
to à provocação, nega-a. «Nunca tive essa intenção. O título é «[…] o que me enriquecia ao ler Adorno, por exemplo, não era
aquele e a ideia nem foi minha, mas do Geir. Eu achei boa, ajus- o que lia mas a perceção que tinha de mim enquanto lia»,
tava-se na perfeição ao processo que fora a sua escrita.» escreve em A Morte do Pai. Isso é verdade em todas as artes,
esses dois homens cuja obra admira. A não ser na tal luta. «Es- me surpresa. Não tem a ver com a minha escrita, mas com a for-
crever é essa luta por reinventar algo novo. No meu caso eu que- ma que encontrou para contar a história, quando a história,
ria fazer algo muito especial. Queria inovar, não repetir fórmu- o enredo, nem é o mais importante. É aquele todo, é tudo mui-
las porque, fui descobrindo, nenhuma entre as conhecia se to vivo, emocionante.» E continuam os convites para sair, para
ajustava ao que queria contar de mim, ao modo como queria falar do projeto que lhe mudou a vida. Sabe que o livro vai con-
chegar até ao ponto de felicidade. Eu achava que conseguia e per- tinuar, as traduções estão a sair, mas diz que o que aconteceu na
segui essa ideia. Queria vida e sentia que me estava a afastar Noruega com esse livro o preparou para o resto. «Nada há de ser
dela. Escrever sobre a morte tinha a função de me libertar da tão violento e surpreendente como o que aconteceu lá.» Foi em
morte.» casa que o homem que expôs a sua intimidade sem limites
Volta às primeiras cinco páginas do livro. Considera-as o me- e, com a dele, a dos que lhe são ou foram mais próximos e a casa
lhor do que fez. «Aí estou ao nível que sempre quis estar. Foram tornou-se um tumulto.
muito revistas, pensadas, editadas. Orgulho-me delas.» O resto, O que se pode dizer, então, quando já se disse tudo? «Pois é,
afirma, «é outra coisa, feita no oposto desse início» que foi para as pessoas continuam a querer saber e isso como tudo o que
ele essencial enquanto prova. «Tudo o que se seguiu foi no medo aconteceu a seguir a este livro é uma grande surpresa para
de me perder se parasse, o medo de voltar a não sair nada. Às mim. Quando penso que estou a dar uma entrevista ou a falar
vezes é bom, outras aborrecido. Não tive nem quis ter domínio para uma sala cheia de gente não penso em mim, Karl Ove, mas
sobre isso com receio de perder a verdade.» O paradoxo está num personagem. Sou alguém numa performance. Não quero
sempre presente e esta conversa é disso um exemplo. O que dizer que minta, falseie, me esconda. Acho que é uma defesa
pode a linguagem perante um diálogo onde o autor que está no contra a minha timidez. Sou muito tímido e por vezes não acre-
momento desse trágico «e depois?» dizer acerca do que mudou dito que tenha feito aquilo. Fiz, e depois interpreto esse eu que
nele desde que publicou A Minha Luta? O que mudou no modo descobri ao longo da escrita. O eu que escreve, o eu escrito, o eu
como olha para esse texto quando tantas vezes foi chamado a fa- que fala desses dois. É mais ou menos isso.» A voz soa grave,
lar dele? O que se pode dizer mais de uma intimidade onde nada o sotaque como o de um alemão. Se há impaciência ou irrita-
parece ter ficado por dizer? «Eu não sabia que ia ser assim. ção por estar mais uma vez a falar com um jornalista sobre A Mi-
E sim, é verdade, estou nesse “e agora?”.» Podia dizer vazio? nha Luta não se nota. Depois de cada pergunta há uma pausa.
«Não tive tempo» Agora quer ter. «Em 2015 vou parar. Vou es- O autor não quer parecer um autómato, com as mesmas re-
crever.» Antes não sabia se seria capaz, mas faz a revelação: «Te- postas a perguntas que se resumem a uma: porquê e como tudo
nho estado a escrever duas horas todos os dias, pequenos textos aquilo aconteceu. «Teimosia e ingenuidade, luta contra um tem-
a partir de uma palavra. Escrevo um por dia. Levanto-me mui- po que me tornava velho e incapaz. Ou era aquilo ou não sei.
to cedo, às quatro ou cinco da manhã, e quando vou levar as Estava disposto a hipotecar a minha vida: casamento, filhos,
crianças à escola, tenho o texto feito.» Talvez venha um roman- amigos… Era a minha grande prova, eu ser capaz de fazer algo
ce depois. «Não tenho projetos. Tenho a certeza de que não que- maior do que eu na literatura e fui na vertigem, meio autista,
ro repetir formas. A Minha Luta está escrita. Talvez não volte meio inconsciente, como alguém drogado. Só acordei desse tor-
à primeira pessoa. Não sei.» por depois, quando todos falavam do que eu tinha feito. E isso
Abriu uma editora. Isso torna-o leitor de outra forma. Além foi brutal. Penso muitas vezes que se soubesse que era assim
dos ensaios, da não-ficção onde passa mais tempo, há descober- não teria avançado. Queria isolar-me outra vez, mas era im-
tas que o fazem parar. «Estou a ler Elena Ferrante. É uma enor- possível. Tenho de seguir.»
Narrativa, ciência,
prática, medicina
moderna
Neste fim de inverno, a Lua de Papel publica Ser Mortal, de Atul Gawande.
Como subtítulo, o mais significativo de tudo: «A medicina e o que mais importa
no final.» João Lobo Antunes apresenta a «segunda grande arte» de Gawande
e lembra o seu estatuto de grande escritor entre médicos.
tul Gawande ocupa hoje uma posição de singular destaque Quase todos usaram da clínica o método e o manancial inesgo-
A na corte dos médicos-escritores, e é importante distingui- tável de histórias, tantas vezes reveladoras daquilo que Tchekov
TEXTO SEGUNDO O ANTERIOR ACORDO ORTOGRÁFICO
-los dos escritores-médicos porque, neste caso, a ordem de chamava o «estofo vulgar da humanidade». Para ele, a medicina era
factores não é arbitrária e a forma como se alinham depende na- a mulher legítima e a literatura a amante e, dizia, quando se can-
turalmente da preponderância dos ofícios. É verdade, como expli- sava de uma, passava a noite com a outra.
cou Miguel Torga, que a medicina sempre gerou escritores, em- Os médicos-escritores colhem, igualmente, da vida clínica, nar-
© Brad Barket/Getty Images
bora, segundo ele, se limite simplesmente «a preservar o dom aos rativas, episódios, situações e deles se servem para ilustrar um dis-
que nasceram com ele, o que já não é pouco». A lista dos escritores- curso mais científico, pedagógico, filosófico ou ético, assoprando
-médicos é extensa e ilustre: entre nós além de Torga, Júlio Dinis, a vida real em matérias de mais sisuda gravidade.
Namora e o meu irmão António; de outras terras, Somerset Mau- O sucesso de Gawande nesta segunda arte – porque a sua pri-
gham, William Carlos Williams e o mais genial de todos, Anton meira (ou primeiras) são a cirurgia e a saúde pública – é bem ates-
Tchekov. tado pelas inúmeros prémios que o distinguiram. Ainda recente-
mente a revista Science (juntamente com a Nature, a mais presti- para se exprimirem, de um dialecto universal, nascido na profun-
giada revista científica do mundo) incluía-o na lista dos «Top 20» didade da nossa frágil condição.
cientistas mais seguidos no twitter, com 96.800 seguidores, à fren- Este é, na minha leitura, um livro sobre ética: não uma ética nor-
te de um outro famosíssimo neurologista-escritor, Oliver Sacks. mativa, refém de princípios rígidos derivados da filosofia analítica,
A inclusão é tanto mais de salientar quando Gawande não é, maniqueísta, que ilude as sombras, mas da ética que mais prezo,
rigorosamente, um cientista, mas a sua forma de comunicar co- que trata da carne viva dos valores e das crenças, da compaixão
locou-o a par de físicos, biólogos, neurocientistas físicos e outros e da finitude, da «ternura egoísta do homem pelo homem», para
cientistas mais ou menos «puros». usar a expressão tão doce de Albert Camus.
Eu creio que, em parte, o êxito se explica pela relevância comum Parece que aquilo que eu próprio tenho escrito sobre estas ma-
dos temas que trata, e o estilo que ele adoptou para falar de coisas térias tem merecido o reparo dos especialistas que me acusam de
sérias. O estilo é puro New Yorker. Para os que não conhecem a excessivo protagonismo da minha própria persona, pelas referên-
New Yorker, vale a pena explicar que é uma revista publicada na cias frequentes às experiências que vivi. Gawande fá-lo com abso-
Big Apple desde 1925, que sai 47 vezes por ano. É sofisticada, cos- luta liberdade, e não poupa as «incursões no seu próprio ser» – ex-
mopolita, e abraça o comentário político, o ensaio, a ficção (a lista pressão do meu amigo (e um dos mais humanos e sofisticados
de escritores que lançou é impressionante: Salinger, Updike, Chee- cultores da ética entre nós) Walter Osswald. E esta «ética narrati-
ver, Roth), crítica literária, de cinema etc. Foi na New Yorker que va» tem, quanto a mim, as virtudes do «conhecimento das vidas».
John Hersey publicou uma reportagem histórica sobre Hiroxima, Tenho insistido que aprendi mais com ficção – e a citação, logo no
e foi a New Yorker que enviou Hannah Arendt a Jerusalém para fa- início, da novela tremenda de Tolstoi, A Morte de Ivan Illitch, tem
zer o relato do julgamento do criminoso nazi Adolf Eichmann, pu- a ressonância de uma abertura trágica – de que em muitos trata-
blicado em 16.3.1963. A reflexão de Arendt sobre o que chamou dos de ética. Martha Nussbaum, uma filósofa bem atenta à reali-
a «banalidade do mal» – e a expressão ficou para a história – valeu- dade do nosso tempo, sublinhou, com pesar, o facto de os filósofos
-lhe intermináveis dissabores. modernos se escusarem a aceitar a literatura como um modo sé-
Gawande é, na New Yorker, um staff writer e a sua técnica lite- rio de argumentação moral. Para eles a literatura é demasiado
rária, usada aliás com extremo sucesso em livros como A Mão Que mole, emocional e particularizante. Preferem a sua ética seca e ló-
Nos Opera, Ser Bom Não Chega e O Efeito Checklist, é escolher his- gica, a ética dos princípios e dos axiomas. Na realidade, a literatura
tórias reais de que foi testemunha e, muitas vezes, participante ac- revela o sentido das coisas que não são redutíveis a teoremas e pro-
tivo, contá-las de um modo muito simples, não raramente entran- testa contra a tirania da abstracção. E, no entanto, este livro ilustra
çando-as, ou seja, não as descrevendo com a frieza de uma bem como os dois discursos não são incompatíveis.
anamnese clínica, mas tornando-as tão vivas (e neste livro, tão do- Este livro é também uma carta de viagem, ou seja, a descrição do
lorosamente vivas) que o leitor se sente parte da narrativa e não um caminho do nosso devir. Escrevia Montaigne: «Tous le jours vont
mero espectador. A partir dessa narrativa ele reflecte sobre a ciên- à la mort, le dernier y arrive» («Todos os dias caminham para a
cia e a prática da medicina moderna. morte, o último chega lá»). Com o assombroso progresso da medi-
Três personagens ocupam neste volume um protagonismo mais cina o caminho é mais longo, e o viajante chega ao fim cada vez
destacado – a avó da mulher do escritor, o pai deste, e uma mulher, mais extenuado e débil. É o resultado do processo de envelheci-
ainda jovem, que percorre o longo calvário de uma doença oncoló- mento, do «bombardeamento silencioso pela artilharia do tempo»,
gica fatal. A narrativa está entremeada de comentários de uma eru- que Gawande trata com sensibilidade e bom senso. Recorro a uma
dição simples, sábia, mas não intimidante, e a seriedade do autor citação de O Animal Moribundo, de Philip Roth, que nos últimos
obriga-o a incluir no final do livro uma lista utilíssima de referên- livros (que incluem o admirável Património, em que descreve
cias bibliográficas. Estas não se intrometem no texto, nem clamam a doença do pai), tanto cuidou deste tema: «Se somos saudáveis
atenção com a impertinência de uma nota de pé-de-página. Natu- e nos sentimos bem, vamos morrendo invisivelmente.»
ralmente tudo isto é olhado através de uma lente cultural muito O autor descreve o que hoje se pode e deve fazer para cuidar dos
própria. Quero eu dizer que o livro é muito «americano», mas co- nossos velhos, as várias formas de lhes guardar, até ao fim, a auto-
tejando-o com muito do que eu próprio tenho escrito sobre as ma- nomia, a independência e a dignidade. Escrevi num texto que de-
térias que trata (perdoem-me o atrevimento de referir a recolha de diquei a meu pai («A História de Um Velho»): «O meu velho sobre-
ensaios a que chamei Uma Inquietação Interminável), é evidente viveu porque foi dignamente médico até lhe faltarem as forças
que o sofrimento, a angústia, a esperança, a dignidade servem-se, e isso deu-lhe uma persistente razão de viver.» Entre nós fala-se
“
com a morte, porque, no seu íntimo, que percepcionamos. A sua defini-
esta é quase sempre tomada como ção de coragem é mais rebuscada do
equivalente à derrota. A luta que tra- que a que adoptei há anos: «Coura-
vam pode assumir duas faces: uma Quando chega o tempo de parar, ge is grace under pressure.» É claro
é a tendência «pugilística» de com- chega o tempo das decisões dilaceran- que o sentido de «grace» nesta defi-
bate e a outra, mais enganadora, tes, que muitas vezes rasgam um nição é difícil captar num sinónimo
é a da ritualização do optimismo. português, mas é algo em que se en-
Como o autor sublinha, a formu-
tecido familiar cerzido com emoções laçam o bem, a verdade e o belo.
lação do prognóstico está longe contraditórias, memórias partilhadas, Atul Gawande conclui com a co-
de ser uma ciência exacta e é, como vontades presumidas, e as cintilações movente descrição do cumprimen-
tenho dito, a porção mais afectiva do que conferem a cada um de nós to dos rituais sagrados que emba-
acto médico e uma tarefa da diabó- a identidade única que é o cerne da lam os restos mortais de seu pai.
lica dificuldade, pois os doentes e as Aqui está muito próximo do final
famílias exigem que seja precoce,
dignidade. O autor tem razão quando de A Morte de Ivan Illitch : «a morte
seja correcto e seja optimista. De fac- dedica um capítulo à coragem. não existe mais», isto é, a morte não
to, algo mudou radicalmente, pois a triunfou. E esta alusão a uma espiri-
morte em casa hoje é quase excep-
ção. Gawande cita uma estatística de
” tualidade contida deve fazer-nos
pensar que há sempre uma dimen-
1980 que documenta que só 17% das mortes ocorrem em casa. En- são espiritual na vida e na morte, embora muitas vezes abafada ou
tre nós os números são um pouco diferentes. No livro A Morte e o até negada. Mas é ela que obriga a interrogarmo-nos sobre qual
Morrer em Portugal (Maria do Céu Machado e col., Almedina 2011) a nossa razão de existir.
os valores apresentados são 29,9 %. Dos restantes, 61,4% morrem Seja-me permitida mais uma nota pessoal, mas a leitura é assim,
no hospital e 8,7% noutros locais. Descrevi a morte do meu avô, pois um livro bom está aberto a que lhe acrescentemos outros pa-
explicando como tinha sido um acontecimento tribal, isto é cerca- rágrafos. Meu pai morreu há 10 anos, e enquanto minha mãe foi
do pela família e pelos amigos mais íntimos, e religioso, como fora viva, a biblioteca que construíra e que vigiava com zelo feroz, man-
aliás a morte do Dom Quixote. Hoje a morte é um acontecimento teve-se quase intacta. Minha mãe morreu há pouco. Agora, filhos
secular, solitário e discreto. e netos (muitos) foram esvaziando as prateleiras, conforme as suas
A ênfase nos cuidados paliativos (que chamei de «medicina do preferências intelectuais ou os seus interesses académicos. Porque
crepúsculo») e nas várias opções na morte é inevitável numa obra descobrira um livro que, pensei, seria muito do gosto da minha
desta natureza. Recordo um admirável ensaio de Fernando Gil in- filha mais velha, telefonei-lhe a dar-lhe conta disso. Passados mi-
titulado Mors Certa, Hora Incerta, em que é bem analisada a reali- nutos mandou-me o seguinte SMS: «É bom fazer parte de uma
dade desta incerteza. De facto, a sociedade hoje parece oferecer uma família em que os livros são tão preciosos como as jóias.»
mão-cheia de opções na morte, e alimenta a percepção ilusória Este livro sobre o qual escrevi estas palavras ficará na minha
de sermos capazes de escolher a hora, o local, e o modo de morrer. biblioteca, esperando que um dia alguém o leve – como jóia.
D
urante muitos anos, Lydia Davis (n. 1947) foi um dos uma história poderosa em poucas linhas, está nos antípodas
segredos mais bem guardados da literatura norte- da típica megalomania dos romances-calhamaço que obcecou
-americana. Mais do que uma escritora para escri- não poucos autores, ansiosos por verem o seu nome associado
© David Levenson/Getty Images
tores, ela fazia parte de uma categoria ainda mais ao próximo great american novel. Em certa medida, Davis pro-
específica e sofisticada: a dos escritores admirados cura o exato oposto desse paradigma: no lugar de uma ambi-
pelos escritores para escritores. Ao contrário do ex- ciosíssima ficção total, vasta e abrangente, a tentar engolir a
-marido, Paul Auster, pai do primeiro filho (Daniel), ela nunca sociedade inteira (ou uma determinada época), as suas minia-
chegou a um grande público. Além disso, a sua escrita de tre- turas captam parcelas microscópicas do zeitgeist sob uma luz
menda contenção e virtuosismo estilístico, capaz de resumir crua, e de repente vemos expostos os labirintos do tédio, as ruí-
nas afetivas, os pequenos absurdos do quotidiano, coisas apa- murmurar «É assim, é assim mesmo, não se podia dizer melhor».
rentemente simples, mas talvez não tão simples se observadas O conto, de cinco linhas, intitula-se O Meu Amigo de Infância:
de um outro ângulo, de uma outra perspetiva. «Quem é este velhote que passeia com um ar ligeiramente carran-
Davis começou a deixar de ser o tal segredo bem guardado em cudo e um boné de lã na cabeça? Mas quando o chamo e ele se volta,
2009, quando foram publicadas The Collected Stories (em portu- também não me reconhece de início – esta velhota a sorrir dispara-
guês, Contos Completos, Relógio d’Água, 2012), um volume que reu- tadamente para ele com um casaco de inverno.»
nia os primeiros sete livros de ficção breve. Foi este corpo de cente- Davis atingiu uma particular mestria na construção minuciosa
nas de textos incisivos e de uma inteligência feroz, mais do que o seu das histórias curtas, indispensável para garantir a sua eficácia. Se
único romance (The End of the Story), a criar um imparável cres- numa novela, ou num conto longo, há uma certa margem de erro,
cendo de entusiasmo crítico. Como corolário dessa ascensão ao céu na chamada short short story qualquer passo em falso é fatal. Exi-
das letras anglo-saxónicas – empurrada tanto por críticos influen- ge-se, assim, uma absoluta precisão linguística, tanto gramatical
tes (James Wood) como pelos seus pares, de Jonathan Franzen e como vocabular. Logo na primeira história, um senhorio italiano de
Dave Eggers a Zadie Smith, Colm Tóibín ou Rick Moody (que dela Brooklyn cura salames no barracão das traseiras do seu prédio. Al-
disse ser «a melhor prosadora da América») –, Davis foi distinguida, gumas pessoas, e até um jornal (quando as viandas são roubadas),
em 2013, com o Man Booker International Prize, pelo conjunto de chamam-lhes «salsichas», mas ele nunca deixa de corrigir: «Não
uma obra ficcional que revela «a brevidade e precisão da poesia». eram salsichas. Eram salames.» Muitos contos deste livro existem
Estas duas qualidades essenciais voltam a ser encontradas na sua para sublinhar detalhes como este: a necessidade imperiosa de não
mais recente e muito aguardada recolha, Can’t and Won’t, lançada confundir o que não deve ser confundido. E de repor os factos, des-
nos EUA em 2014 e editada em Portugal pela Relógio d’Água (Não fazendo equívocos, ilusões, erros de paralaxe. Outro exemplo: «Po-
Posso nem Quero, trad. Inês Dias) neste início de 2015, o que a pro- dia ser o meu marido. Mas não é o meu marido. É o marido dela.
jeta desde já para a lista dos mais fortes candidatos a livro do ano. E por isso tira-lhe uma fotografia a ela (e não a mim), com a sua rou-
Desde Varieties of Disturbance, de 2007, Davis nunca deixou de pu- pa de praia às flores, em frente da velha fortaleza.» Há nisto um efei-
blicar ficção, mas fazia-o sobretudo em revistas, desde as de inata- to de máxima nitidez e transparência. Todavia, será que os equívo-
cável reputação (Cambridge Literary Review, Granta, The Paris cos se desfazem mesmo? Provavelmente não. Porque até quando
Review) até projetos mais ou menos experimentais e underground. parecem mais claros e afirmativos, os contos de Davis estão sempre
A lista com a proveniência dos contos de Não Posso nem Quero é fincados nas areias movediças da ambiguidade.
impressionante: eles espalharam-se por 42 publicações muitíssimo Nunca sabemos o que esperar, quando chegamos a uma página
diferentes umas das outras. Curiosamente, ao chegar ao fim deste de Lydia. Em Não Posso nem Quero, como nos livros anteriores, há
volume, ficamos com a impressão de ter lido uma obra homogénea, de tudo: histórias reversíveis; ideias subliminares; situações um pou-
de assinalável consistência. Porquê? Talvez porque Lydia, embora co embaraçosas, bastante embaraçosas ou muitíssimo embaraço-
escreva para muitos lados, nunca deixa de escrever, em primeiro sas; um texto que simula a linguagem do spam eletrónico; toda a
lugar, para si mesma. É ela a sua leitora ideal, por certo a mais sorte de mulheres solitárias, seja diante de um peixe no restauran-
implacável e a mais exigente. te, ou a querer guardar a bagagem num cacifo durante uma viagem
Um dos triunfos de Davis está no modo como consegue, recor- no estrangeiro, ou aflitas com as contingências de um voo atribula-
rendo a elementos descritivos mínimos e a ténues arquiteturas nar- do que pode bem ser o último. Há também inventários, entre os
rativas, criar personagens credíveis. Pessoas de carne e osso, como quais um que enumera as estratégias para ler «o mais depressa pos-
as que encontramos numa carruagem de comboio ou numa venda sível» números antigos do Times Literary Supplement, outro que é
de garagem, ao fim do dia. Elas podem ser obsessivas, indecisas, he- uma divertida coleção de queixumes («[…] Sentaram-nos demasia-
roicas, cobardes, ofendidas, insistentes, belicosas, doentias, super- do perto da cozinha. Há uma fila enorme no balcão das encomen-
ficiais, maníacas, melancólicas, maquiavélicas, inconstantes, para- das. Tenho frio enquanto espero no carro. O punho da minha ca-
noicas, desiludidas, entediadas, trapalhonas, impulsivas, limitadas, misola está húmido. A pressão do duche é fraca. Tenho fome. […]»),
resilientes, sabotadoras, mal-educadas, irrepreensíveis, fugazes, vo- outro que estabelece o historial de uma gata (com todas as suas
lúveis, intensas, atentas, distraídas, desinteressadas, perdidas. São características e idiossincrasias), e ainda um outro que inventa
é sempre humanas. Humaníssimas. Veja-se, por exemplo, como a obituários banais de gente banal, deixando para trás feitos banais.
derrocada da velhice, que tudo alisa e anula, nos é mostrada sem Esta capacidade de transformar a irrelevância em arte atinge o zé-
qualquer páthos, mas com uma espécie de exatidão que nos faz nite num extraordinário texto fragmentário intitulado «As Vacas»,
ntre a queda do muro e a queda das torres, um mantra Apesar das diferenças óbvias, os liberais americanos da globali-
desde o conhecimento científico das faculdades até à liberdade mente a força deste soft power. A proximidade entre culturas gera-
sexual e laboral das mulheres, venceria de forma natural as da pela globalização económica e tecnológica (televisão por satélite,
resistências das velhas culturas do Médio e Extremo Oriente. internet, viagens baratas) não criou apenas concórdia, também criou
hostilidade. Basta olhar para o pai do islamismo moderno, Sayyd O «outro» não tem cabeça
Qutb (1906-1966). Qutb não criticou os EUA sem desconhecimen- Se a América vivia fascinada com a ideia da globalização como im-
to de causa, não concebeu as cidades ocidentais enquanto Babiló- pério invisível, a Europa labutava no mito da globalização assassi-
nias pestíferas a partir de uma gruta. Qutb odiava as cidades oci- na. Segundo Negri, Amin, Ramonet, Boaventura, a «globalização
dentais porque conheceu várias cidades norte-americanas nos dois predatória» era a arma que o Ocidente usava para sugar a riqueza
anos em que estudou e trabalhou nos EUA, no final dos anos 40. do Resto do Mundo; nós, os pestíferos ocidentais, estávamos a enri-
Onde um cidadão ocidental via cidades cosmopolitas, ele viu a de- quecer à custa dos não-ocidentais. Quem desafiasse este mantra era
sordem da «oficina barulhenta»; onde um ocidental via mulheres li- de imediato escorraçado e acorrentado à galé que albergava as vo-
vres, Qutb viu o demónio. A inquietação feminina é fundamental. zes ilegítimas, eurocêntricas, neoliberais. Sucede que o mantra es-
Qutb sentiu asco pelas mulheres emancipadas no trabalho e sobe- tava errado. Tal como diziam os ilegítimos remadores da galé, a glo-
ranas na cama. Para este intelectual egípcio, uma mulher insinuante balização teve um efeito democratizador: o Resto do Mundo entrou
num bar era a representação curvilínea de Belzebu; uma mulher a numa trajectória de enriquecimento, centenas de milhões de chi-
trabalhar fora de casa era a prova máxima da decadência ocidental. neses, indianos, indonésios, brasileiros e até africanos saíram da po-
Ou seja, Qutb odiava o tal soft power. É por isso que não faz sentido breza; o Ocidente perdeu poder relativo e a mesa dos crescidos da
conceber o islamismo como uma reacção ao hard power composto ordem internacional já não é um exclusivo de cadeiras ocidentais.
por F-16 a largar bombas em Mossul ou Cabul. Muito antes dessa Além de estar errado, o mantra da «globalização predatória» criou
agitação geoestratégica, o islamita odeia os seios de Pamela Ander- um problema ainda maior: viciou o ar do tempo nas lentes econó-
son que lhe entram em casa através da parabólica, tal como odeia micas; tudo passou a ter explicação económica; tudo passou a ser ex-
programas de televisão sobre ciência, democracia ou igualdade en- plicado pela opressão económica do Ocidente. Os valores religiosos
tre sexos, três conceitos considerados impuros e reveladores da ar- ou culturais do «outro» deixaram de contar; o «negro», o «muçulma-
rogância do Ocidente, esse Ícaro que desafia Alá com asas feitas de no» ou o «oriental» deixaram de ser agentes morais com consciência
soberba pagã. E devemos sempre sublinhar que esta reação anti- própria e passaram a ser meros títeres dos ventos estruturais lança-
ocidental é liderada pela elite que foi exposta ao Ocidente. Em No dos pelo Ocidente. Em consequência, as sociedades europeias per-
País das Mulheres Invisíveis (Quidnovi), a médica e colunista Qan- deram a capacidade de criticar os povos orientais. A própria lingua-
ta Ahmed mostra como o fanatismo antiocidental é mais aceso na gem que permitiria semelhante crítica moral não estava disponível.
elite saudita educada no Ocidente do que nas tribos de beduínos. Fi- Nem sequer tínhamos os instrumentos semânticos (ex.: «barbárie»,
lhos da elite privilegiada da Arábia Saudita, treinados nas universi- «terrorista», «inimigo», «imoral») para esboçar um juízo de valor em
dades americanas e inglesas, habituados a escapadinhas sexuais na relação a fenómenos ocorridos em países muçulmanos ou africanos.
Europa, os colegas sauditas de Qanta celebraram o 11 de Setembro As grandes vítimas desta forma de pensar eram as mulheres nas-
ali mesmo no Hospital da Guarda Nacional do Rei Farad. Até enco- cidas na categoria do «outro». A violência que sofriam às mãos de
mendaram bolos especiais, talvez com duas torres feitas de açúcar. homens não-caucasianos era um fenómeno secundário e só podia
Sabiam fazer operações de peito aberto com tecnologia de ponta, ser abordado através do ângulo da exploração económica da globa-
mas não compreendiam a diferença moral entre alvo militar e alvo lização e, claro, pelo prisma das guerras que os americanos lança-
civil, entre danos colaterais e atentado terrorista. vam com o objetivo de manter os pilares desta opressão. Quando
Mas para nós, europeus, o problema não estava nas pessoas que lia coisas como Desonrada, de Mukhtar Mai (Livros do Brasil), este
comemoraram o 11 de Setembro em Riade ou Gaza. O problema es- ar do tempo desculpabilizava o machismo islamita e justificava tudo
tava e continua a estar nas pessoas que celebraram o 11 de Setem- com a globalização. Sim, a repressão sentida por raparigas como
bro em bairros de Paris, Londres, Amesterdão, Berlim, Hamburgo. Mai em aldeias perdidas no Paquistão tinha de ser enquadrada na
Até porque o 11 de Setembro foi conduzido pela célula de Hambur- ofensiva das multinacionais americanas, essas entidades que em-
go. E, já que estamos em Hamburgo, recorde-se que um jornal de pobreciam os homens paquistaneses, levando-os assim a cometer
Hamburgo, o Hamburger Morgenpost, foi atacado com cocktails actos de violência misógina. Por artes mágicas, era a Nike que des-
molotov dias depois do ataque ao Charlie Hebdo. Estamos a falar poletava a seguinte sucessão de acontecimentos: se um rapaz pa-
de um dos poucos jornais que reproduziu na íntegra os cartoons de quistanês namoriscasse sem autorização uma rapariga de um clã
Charlie Hebdo logo após o ataque. O problema esteve sempre aqui, superior, o tribunal da aldeia decretava que uma irmã desse rapaz
algures numa marquise de Hamburgo ou Roterdão e não numa devia ser violada pelos homens do clã ofendido. Da mesma forma,
gruta no Afeganistão. só a economia do petróleo podia explicar o que sucedeu a Touria
fícios da globalização.
É por isso que artistas muçulmanas como a afegã Lida Abdul cau-
savam e ainda causam um certo desconforto. Como a própria Ab- por a ideia de que não existe uma moral acima do relativismo das
dul reconhece, o público ocidental nem sempre acolhe o seu traba- culturas, pois cada cultura desenvolve a sua própria moral. Nesta
lho, porque as fotografias e vídeos que expõe não entram na grelha de pensamento, o homem ocidental não pode criticar as ou-
categoria do exótico ou porque não refletem as agruras económi- tras culturas porque não existe qualquer critério de avaliação uni-
cas vividas pelos povos muçulmanos. Nas suas obras, Abdul pro- versal, objectivo e verificável; não existe qualquer norma ética ou ra-
cura aquilo que todo o artista deve procurar: atingir um eco univer- cional capaz de transcender a imanência da tradição vivida numa
sal a partir de um contexto concreto, procurar uma parábola dada comunidade. Cada cultura, nação ou religião é uma verdade
intemporal a partir de uma realidade histórica. Mas parece que o autónoma e orgânica que se autovalida em circuito fechado, uma
meio artístico ocidental nem sempre aprecia esta ambição trans- ilha de «nós» num oceano de «eles». O que é espantoso nesta meta-
cendente do «outro». É como se Lida Abdul não tivesse direito ou in- morfose da esquerda é que os progressistas não perceberam (ou não
teligência para atingir o nível conceptual que existe em Paris ou Nova quiseram perceber) que estavam a entrar nos terrenos da velha
Iorque. É como se ela só tivesse autorização para recriar as péssi- direita nacionalista e mesmo pré-fascista.
mas condições de vida dos afegãos e as pernas estropiadas por bom- Em Direito Natural e História (Edições 70), Leo Strauss afirmou
bas americanas. É como se Abdul só pudesse ser um espelho passi- que, apesar da derrota alemã na Segunda Guerra Mundial, as ideias
vo do complexo do homem branco. alemãs permaneceram no centro do debate europeu. O filósofo de
O resultado final desta falácia intelectual foi a incompreensão Chicago tinha razão: o ataque relativista ao direito natural e a noção
total do 11 de Setembro. Como o «outro» não podia pensar pela sua de que não existe uma transcendência moral ou racional acima da
própria cabeça, como não se admitia a existência de uma agência cultura histórica eram os dois pilares da direita romântica alemã que
moral, religiosa e autónoma nos povos orientais, o maior ataque ter- reagiu ao universalismo da Revolução Americana, da Revolução
rorista da História do Ocidente foi encarado como uma justa res- Francesa e do liberalismo inglês representado pela linhagem pro-
posta dos exércitos maltrapilhos de Fanon e Negri contra o império gressista de Mill e pela linhagem conservadora de Burke. Ora, na se-
capitalista. O facto de Bin Laden e Mohammed Atta pertencerem a gundametadedoséculoXX,osfilhosmulticulturalistasdeSaideFou-
uma elite rica e educada não parecia perturbar ninguém. A esquer- cault reproduziram à esquerda este esquema romântico de Herder,
da da globalização predatória era tão paternalista como os liberais Fichte, Tönnies, Spengler, Jünger, etc. Tal como estes velhos reaças, a
do fim de História. esquerdamulticulturalistareergueuaglóriavitalistada Gemeinschaft
(comunidade)contraa Gesellschaft (sociedade).Sim,aesquerdamul-
A esquerda reaccionária ticulturalista construiu-se com base no erro clássico do reacionário:
A par da tese da globalização predatória, outra estirpe de esquerda reduziu o indivíduo a uma única identidade (religião/comunidade),
fez o seu caminho nestes anos. Estamos a falar da esquerda mul- desprezando todas as outras identidades (ideologia, patriotismo, pro-
ticulturalista. Apoiada no relativismo epistemológico e cultural fissão, clube de futebol, bairrismo, hóbis). Para os multiculturalistas,
de Said e Foucault, esta escola de pensamento empenhou-se na o muçulmano é só isso: o muçulmano. É como se a cultura fosse uma
destruição ativa do direito natural. Pela via religiosa ou secular, variável tão imóvel e sufocante como a biologia. É como se a «comu-
a velha tradição do direito natural garantia que todos os indivíduos nidade muçulmana» fosse um destino genético.
nascem com direitos inalienáveis, direitos eternos e válidos em qual- As grandes vítimas deste irracionalismo de esquerda foram as mu-
quer país ou cultura; antes de ser um cidadão, antes de ser membro lheres muçulmanas. Esta pulsão reaccionária conhecida pelo eufe-
de uma religião, um indivíduo tem direitos universais que não mismo de «multiculturalismo» impediu uma crítica séria a atroci-
dependem da validação de políticos, imãs ou bispos. Assumindo dades como aquela que se abateu sobre Asia Bibi, uma católica
que esta tradição era mais um pérfido tentáculo das estruturas paquistanesaquefoicondenadaàmorteporqueousoubeberáguade
de poder eurocêntricas, a esquerda multiculturalista começou a im- umavasilhadestinadaamuçulmanos.Estahistóriacontadaem Blas-
fémia (Alêtheia) é chocante, mas ainda é mais chocante pensar a si- corta pequenas fatias daquele pele amarelecida como se estivesse
tuaçãoatravésdoprismamulticulturalista:AsiaBibiestavaaapanhar a cortar cebola com uma lâmina; de quando em vez, há sexo funcio-
bagas, ficou com sede, bebeu da vasilha comum, foi rotulada de «por- nário e reprodutor depois da pedicura. Na cena-chave desta clausu-
ca católica» e, de seguida, foi condenada à morte pelo ancião da aldeia, ra, Nazneen visita o centro de Londres 30 anos depois de chegar à
masnós, ocidentais,temosde respeitaro episódioporqueháaquium cidade. Sim, 30 anos depois. É como se aqueles míseros quarteirões
«contexto» cultural validado pelas suas próprias premissas; porven- tivessem a dimensão de Sete Mares e Treze Rios (o título da edição
tura, até devemos ficar comovidos com a misericórdia final do ancião: da Dom Quixote). Quando as filhas (Bibi e Shahana) começam a dar
«Se não queres morrer, deves converter-te ao islão.» Mas, verdade seja sinais de rebeldia, Chanu exige o regresso da família ao Bangladesh.
dita, o lado mais negro desta fraude intelectual não estava na relação É a forma que ele encontra para travar a aculturação das raparigas,
entre os progressistas europeus e as mulheres a viver nos arrabaldes sobretudo Shahana, a rebelde que insiste em viver como uma in-
do Paquistão ou nas torres do Dubai. O problema estava na relação glesa, que recusa o sari e que ameaça fugir. Depois de peripécias vá-
entre esta agenda multiculturalista e as muçulmanas europeias. Du- rias, Nazneen escolhe o lado das filhas. As três ficam em Londres,
rante décadas, a esquerda europeia viu com bons olhos a implemen- Chanu regressa. A heroína de Monica Ali liberta-se da prisão men-
tação informal mas efetiva de um sistema legal paralelo baseado na tal quando assume que «ficar ou ir depende de nós as três».
sharia; durante décadas, os multiculturalistas exigiram que os Esta- O processo de libertação de Nazneen está relacionado com algo
dos (sobretudo Inglaterra, Holanda, Alemanha) financiassem o imo- que ela considera misterioso ao início: a privacidade. Esta jovem ben-
bilismo cultural das «comunidades muçulmanas»através,por exem- gali fica boquiaberta com a liberdade privada das suas vizinhas
plo, de escolas de fé. E este cenário até acabou por provocar uma brancas. O véu delas é diferente, é um véu moral e até jurídico que
situação caricata: o Estado que lançou guerras no Médio Oriente em lhes permite criar um espaço só delas onde podem fazer o que bem
nome da Liberdade à maneira de John Stuart Mill era o mesmo Es- entendem, desde tatuar o braço até fazer amor com diversos na-
tado que financiava escolas de fé corânicas que pregavam o obscu- morados. Nazneen não compreende este véu privado, porque o seu
rantismo qutbista no centro de Londres. Estamos a falar da Inglater- apartamento é um prolongamento da comunidade; as anciãs da tor-
ra de Tony Blair, o homem que foi liberal e multiculturalista ao re entram sem pedir licença, dão-lhe ordens até na educação das fi-
mesmo tempo, o homem que falava de uma Liberdade em abstrato lhas e fazem campanha ativa contra a tal privacidade. A Sra. Islam,
para o Grande Médio Oriente enquanto permitia a clausura das mu- moralista-mor da torre e agiota nos tempos livres, é a rainha deste
lheres muçulmanas que viviam a poucos quilómetros do n.º 10 cilindro comunitário que esmaga qualquer nesga de privacida-
de Downing Street. Viviam e vivem. Passados 14 anos sobre o 11 de de. Ora, cá fora, na vida real do Médio Oriente e nas «comunidades
Setembro preparado em Hamburgo, pouco ou nada mudou. muçulmanas» da Europa, a via sacra das mulheres começa aqui.
No País das Mulheres Invisíveis, Qanta Ahmed vislumbra este pro-
Nazneen blema na mulher mais bonita das Arábias: Ghadah. Depois de um
No romance Brick Lane, Monica Ali construiu o arquétipo literário início de vida conjugal no Canadá, Ghadah e o marido voltaram
destas muçulmanas europeias através da personagem Nazneen. à Arábia e o choque foi inevitável:
Oriunda do Bangladesh, Nazneen é forçada a casar-se com um ho- «Não temos tempo para viver só em família. Nenhum! Às vezes
mem que já vivia em Londres. Parece que os homens do Bangladesh até me dá vontade de gritar. Quero dizer, adoro os meus pais e os
a viver em Londres são assim: gostam de importar esposas das al- meus parentes, mas é evidente que um casamento, uma família,
deias da pátria antiga, pois assim garantem uma mulher-anjo, in- precisa de ter tempo só para si, um espaço só para si. E aqui sinto
génua, moldável, espancável, com um pureza que as bengali con- que não temos nenhum, que pertencemos aos outros.»
taminadas pela vida inglesa já não têm. Para citar Chanu, o marido, Em Fim de Tarde em Mossul (Presença), a jornalista Lynne
Nazneen é uma «rapariga da aldeia, totalmente intacta». Nazneen O’Donnell fala-nos de duas inglesas que fizeram o percurso inver-
casa, tem filhos, nunca sai do seu apartamento perdido numa torre so ao de Nazneen e de Ghadah: foram viver para o Iraque porque
já de si perdida, não fala inglês e continua a ver-se a si mesma como casaram com dois iraquianos. A principal queixa destas duas mu-
mercadoria. Foi educada para não desejar coisas e até para sentir lheres, Pauline e Margaret, volta a ser a falta de privacidade. «As pes-
culpa quando pensa pela própria cabeça. «Se Deus quisesse que nós soas da família aqui pensam que a minha casa é a casa deles», diz
fizéssemos perguntas, tinha feito de nós homens», ensinou-lhe a Pauline. Aparecem a qualquer hora do dia e da noite sem avisar, exi-
mãe. Dentro dos conformes, Nazneen assume o papel de incuba- gindo conversa, café, comida. Qual é o resultado desta profanação
dora e de calista: depura os calos dos pés de Chanu todas as noites; da privacidade? Se não existe na rua e se em casa não tem um es-
reza à escala global; a «comunidade muçulmana» é responsável por POR 96% DESTES CRIMES NA E UROPA .
96% destes crimes na Europa.
Não é «violência doméstica» forçadas a casar a partir dos 12 anos e onde os meninos aprendem
Nas cidades europeias, o final feliz de Nazneen e Shahana nem sem- a apelidar de «puta alemã» qualquer rapariga que recuse usar o véu.
pre encontra reprodução na realidade, até porque nem todos os ma- Esta barbárie foi construída com o beneplácito dos responsáveis
ridos e pais muçulmanos são tão bonacheirões como Chanu. As vi- pela integração e dos media que recusaram sempre fazer críticas à
das das Naznnen reais são mesmo perigosas. Em 2006, Banaz «comunidade turca» mesmo quando se tratava de expor a mais ab-
Mahmod foi assassinada pelo pai, Mahmod Mahmod, pelo tio, jecta misoginia. Felizmente, este racismo invertido do multicultu-
Ari Mahmod, e pelo primo, Dana Amin; mataram-na com um cor- ralismo só podia desesperar as turcas-alemãs que lutam pela sua li-
dão de sapato e deixaram o seu corpo num jardim de Birmingham. berdade. Serap Çileli é um desses casos. Durante os anos 90, Çileli
O que fez ela para merecer isto? Separou-se do marido e começou tentou publicar artigos e livros sobre a condição feminina dos bair-
uma vida nova com outro homem. Na Alemanha, o flagelo é idênti- ros turcos, até porque ela própria fora forçada a casar aos 15 anos,
co. Hatun Suruçu foi baleada pelos próprios irmãos numa paragem mas o meio literário e jornalístico recusou sempre os seus textos.
de autocarro em Berlim em 2005. O que fez ela para merecer isto? «As pessoas», diz Serap, «tinham medo de serem apelidadas de na-
«A puta queria viver como uma alemã», diziam. Aos 23 anos, Hatun zis caso levantassem questões sobre os muçulmanos. Tudo o que
divorciou-se do primo que lhe tinha sido imposto pelos pais aos eu escrevia era rejeitado, até pelos jornais; diziam-me que estava
16 anos no casamento forçado da praxe; também deixou de usar a escrever sobre uma minoria e eles tinham medo de ser apelidados
lenço, recusou a vida de dona de casa (inscreveu-se numa escola de racistas». A perversão moral deste raciocínio fala por si. Serap é
profissional) e começou a namorar um alemão. Num claro eco de turca, experimentou as agruras do casamento forçado, estava a cri-
Sayyd Qutb, a família decretou que Hatun havia cometido o pecado ticar o machismo islamita a partir de um ponto de vista muçulmano,
dos pecados: deixou-se conspurcar pela vida impura do Ocidente. estava a defender a emancipação das mulheres, mas mesmo assim
Matá-la era uma questão de honra. o meio intelectual alemão só encontrava uma palavra para descre-
Hatun não é um caso isolado. Na última década e meia a Alema- ver os seus ensaios e livros: «racismo». Outra autora turco-alemã,
nha conheceu centenas de casos idênticos. Por norma, os familiares Seyran Ates, é ainda mais dura na crítica à mentalidade multicul-
escolhem o irmão mais novo para o papel de assassino da irmã de- turalista. Para esta autora e advogada especializada nos «crimes de
vassa, porque sabem que a justiça alemã não pode ser dura com me- honra», a posição da esquerda feminista é insustentável. Por um
nores de idade. Estes meninos acabam por crescer como «heróis de lado, critica a Igreja Católica e o machismo do homem branco, mas,
honra» da família e dos bairros que vivem num universo paralelo. Há por outro lado, fecha os olhos à repulsiva condição das mulheres
relatos de crianças que chegam à escola sem compreenderem uma muçulmanas. Ates levanta o véu e permite-nos ver a traição do
sílaba de alemão; há relatos de bairros controlados por um sistema feminismo ocidental em relação às mulheres muçulmanas.
legal paralelo e informal assente na sharia e tutelado por «mediado- Esta traição é de larga escala, porque a maioria das vozes femi-
res islâmicos». Estes mediadores, anciãos de aldeia a viver em mar- nistas também está presa nos dois complexos ideológicos do costu-
quises, realizam casamentos à margem da lei e, aos olhos da comu- me: ou são multiculturalistas convictas, ou são defensoras do «poli-
nidade, aqueles casais ficam mesmo casados. Algumas associações ticamente correto», a versão descafeinada do multiculturalismo.
de proteção de mulheres muçulmanas afirmam que estes casa- Se são multiculturalistas a sério, as feministas argumentam que
mentos paralelos já representam 20% da população muçulmana de o véu e demais misoginias islamitas são uma representação legítima
Berlim; as associações também declaram que os tais «mediadores is- de uma cultura que temos de respeitar; isto quer dizer que, na prá-
lâmicos» (outro belo eufemismo) nunca tomam o partido das rapa- tica, só defendem os direitos das mulheres brancas que são vítimas
rigas que recusam casar com os primos impostos pelas famílias. Não da alegada opressão cristã, capitalista e do homem caucasiano (o ho-
surpreende. Estamos a falar de comunidades onde as meninas são mem não-caucasiano, como se sabe, é o bom selvagem). Quando
nio de Hatun Suruçu ou Banaz Mahmod. É uma equivalência infe- É A GLÓRIA D O MULTICULTURALISMO : UM CRIME CONTRA UMA
liz porque existe uma diferença de natureza entre a chamada «vio- MULHER PASSA A SER UM FENÓMENO CULTURAL
lência doméstica» e os «crimes de honra». É claro que os homens da
maioria branca matam mulheres. Muitas tascas portuguesas, por está mal, muda-se. Hirsi Ali acabou por ingressar no Partido Libe-
exemplo, ainda se regem pelo «ela estava a pedi-las» quando há pro- ral e, após o assassínio do amigo Theo Van Gogh, emigrou para
vas ou rumores de adultério. Mas estes assassínios são atos isola- os EUA. Já não se sentia segura ou respeitada na Holanda. Os seus
dos de um único indivíduo, o marido, que obviamente não encon- vizinhos exigiram em tribunal que ela saísse da própria casa.
tra cúmplices materiais no sogro ou cunhados. Além disso, estes Hirsi Ali, Seyran Ates e Serap Çileli e as milhares de vítimas dos
assassínios não são manifestos culturais ou religiosos contra a «cul- «crimes de honra» foram, são e serão traídas por uma esquerda blo-
tura ocidental». A conversa muda de figura nos tais «crimes de hon- queada na questão islâmica. Este espetáculo de incoerência dura
ra». Estamos a falar de atos coletivos e familiares. O pai junta-se a há décadas e deverá continuar por mais algum tempo: os alegados
irmãos, filhos e tios para matar a própria filha e a restante família progressistas defendem o modo de vida mais reacionário e misó-
apoia o assassino e não a vítima. gino do mundo. Naquele que continua ser o livro definitivo sobre
Em 2008, em Hamburgo, Ahmad esfaqueou a irmã Morsal o assunto (Identidade e Violência, Tinta-da-china), Amartya Sen
23 vezes. A justiça condenou-o a prisão perpétua e a decisão causou expôs ao ridículo esta esquerda reacionária com um exemplo mui-
indignação na família que estava ao lado do irmão assassino e não to simples: imagine-se que uma rapariga muçulmana de Londres,
ao lado da irmã assassinada. Sim, existe uma diferença entre «vio- uma Shahana real, quer namorar com um rapaz inglês; este de-
lência doméstica» e os «crimes de honra» muçulmanos. Mas femi- sejo é travado pela família, pelos alegados líderes religiosos da «co-
nistas ocidentais e islamitas continuam a argumentar que a mera munidade muçulmana» e pelos ideológicos multiculturalistas da
constatação desta diferença é um ato «racista». esquerda britânica. Como salienta um espantado Sen, «é precisa-
Seyran Ates e Serap Çileli não são as únicas autoras que se sen- mente a proibição dos pais que parece receber a defesa mais clara
tem abandonadas. Hirsi Ali é outro caso famoso de abandono. De e visível dos alegados multiculturalistas, com base na importância
resto, a sua autobiografia (Uma Mulher Rebelde, Presença) é uma de honrar as culturas tradicionais, como se a liberdade da jovem
história de desilusão com a esquerda. Natural da Somália, Hirsi Ali não tivesse relevância».
chegou à Holanda no início dos anos 90 depois de sofrer os danos Além de trair as muçulmanas, esta esquerda também atraiçoa os
da sua cultura natal (excisão genital, casamento forçado). Cedo in- intelectuais muçulmanos que procuram reformar e racionalizar o
gressou naquele que lhe parecia o partido natural para a sua posi- islão. Esta indústria intelectual que grita «islamofobia» a cada mo-
ção crítica em relação à misoginia islamita – o Partido Trabalhista. mento acaba por reconhecer os radicais islamistas como os líderes
Estava enganada. No dia 12 de Setembro de 2001, Hirsi Ali encon- legítimos do islão, deixando de parte os reformadores como Sayd Ba-
trou o líder dos trabalhistas, Ruud Koola, que de imediato quis mos- hodine Majrouh, o Voltaire afegão que recolheu os poemas de um gé-
trar a sua compreensão: «Não achas estranho que toda a gente pen- nero popular cantado em segredo pelas mulheres afegãs – os landay.
se que a culpa é do islão!?» Hirsi Ali teve ali a sua epifania e começou Em A Voz Secreta das Mulheres Afegãs (Cavalo de Ferro) podemos
de imediato a tentar acordar os colegas de partido. Começou a avi- ler estes poemas que gozam com a repressão masculina. Não, não
sá-los em relação aos perigos do multiculturalismo, uma política pú- são poemas da mulher-anjo desejada pelos islamitas, não são sus-
blica que legitimava e financiava comunidades inteiras que não res- surros místicos e inocentes. São ânsias carnais. Estas mulheres que-
peitavam os direitos mais básicos das mulheres e dos homossexuais. rem sexo, cantam sobre sexo porque – muito simplesmente – não o
Quando ouviam este discurso, os colegas trabalhistas de Ali fran- têm. Os homens passam o dia a discutir assuntos tribais e religiosos;
ziam os olhos e diziam que não, aquilo era um discurso «direitista»; à noite, dormem. É um coro de donas de casa desesperadas: «Não ha-
© Pedro Loureiro
estavam paralisados pela necessidade de se mostrarem sensíveis às verá um louco nesta aldeia? / As minhas calças cor de fogo ardem-
culturas das minorias, fosse qual fosse a essência dessas culturas, -me nas coxas.» Estes pequenos versos têm um poder de fogo supe-
fosse qual fosse a condição feminina vigente nessas minorias. Quem rior a toda a armada americana, porque submetem ao ridículo o có-
digo de honra islamita a partir da cama dos mulás: «Que o mulá gri- relativismo? Só é possível resolver a equação através de exemplos
te a sua chamada à oração matinal / Enquanto o meu amante qui- práticos. Neste sentido, devemos olhar para o par que toda a gente
ser, não me levantarei.» Como se sabe, estas mulheres são assassi- tem na cabeça: o muçulmano e a sua mulher a viver na Europa.
nadas se forem apanhadas com o tal amante. E, como seria de Não apreciamos e até podemos considerá-las repugnantes, mas
esperar, Majrouh foi assassinado por islamitas no mesmo ano da fat- podemos tolerar a existência de comunidades patriarcais que colo-
wa lançada sobre Salman Rushdie (1988), outro intelectual traído. cam a mulher num lugar subalterno. Não apreciamos, até podemos
Tal como o próprio recorda na sua autobiografia (Joseph Anton, Dom considerar repugnantes alguns aspectos, mas os nossos espaços le-
Quixote), Rushdie sentiu-se abandonado pelos seus pares, pelo meio gais podem aceitar essa diversidade. É assim com as «comunidades
intelectual, e figuras como Cat Stevens e John Le Carré colocaram- ciganas» há anos. Pode ser assim com a «comunidade muçulmana».
se objetivamente ao lado dos aiatolás. Ou seja, podemos aceitar a condição doméstica das Nazneen. Não
Entre 1988 e 2015, a posição de John Le Carré tornou-se cada vez concordamos com essa realidade, mas podemos aceitá-la se existir
mais poderosa. Este predomínio ficou evidente na polémica dos car- consentimento da parte da mulher. Devemos ter a humildade para
toons e ainda se vê na forma como mulheres da linha de Hirsi Ali e conceber que pode estar ali outra conceção de Bem. Não podemos
Qanta Ahmed são rotuladas de traidores da sua própria cultura. Não estar sempre a traçar riscos na areia, até porque a tolerância é isto:
deixa de ser curioso: as intelectuais muçulmanas que rompem com aceitar realidades de que não gostamos. Tolerar não é amar acritica-
o islão (Ali) ou com o islamismo radical (Ahmed) são destratadas mente o «outro» em toda a sua diversidade; tolerar é respeitar o «ou-
como «direitistas» ou «vendidos ao Ocidente», tal como os dissiden- tro» apesar de odiarmos partes da sua natureza. Há, porém, limites
tes dos países comunistas há 30 ou 40 anos. Nos anos 60, 70 e 80, à tolerância e ao esforço contextualizador. Se tudo fosse relativo, o ca-
os dissidentes na linha de Havel, Sakharov ou Soljenitsine eram nibalismo seria uma questão culinária; se tudo fosse cultural, o ape-
criticados ou ignorados pelos marxistas ocidentais que viviam no drejamento de mulheres seria uma questão de pontaria; se tudo fos-
conforto do mundo NATO; de forma quase cómica, aqueles que se relativo ao contexto, o único ponto a debater na excisão genital seria
conheciam de facto o comunismo recebiam lições de moral dos o grau de desinfeção da lâmina. Portanto, se podemos aceitar a su-
intelectuais marxistas que nunca viveram de facto em países balternidade das Nazneen, não podemos aceitar os casamentos for-
comunistas; hoje em dia, as mulheres que viveram e vivem de fac- çados das Shashana aos 12 anos. Se podemos aceitar o véu, não po-
to as agruras do islamismo são silenciadas, secundarizadas ou mes- demos aceitar a excisão genital de meninas como Bibi. Se podemos
mo rotuladas de «vendidas» pelos intelectuais pós-marxistas que aceitar que a mulher ande dois passos atrás do marido, não podemos
têm as seus cátedras financiadas pela indústria da «islamofobia». aceitar desculpas culturalistas para atos tão graves como uma vio-
lação. Mas, infelizmente, isto já é uma realidade. Na Austrália, um
Compromisso afegão chamado Esmatullah Sharifi violou duas raparigas. O tribu-
Comoéquepodemoschegaraumacordo?Comoéquepodemosen- nal de primeira instância condenou-o à pena máxima, mas o tri-
contrar um chão comum entre a velha arrogância liberal que via no bunal de segunda instância aceitou a argumentação relativista do
«outro»umatábuarasaeoatualmulticulturalismoquevêno«outro» advogado de defesa. O juiz reduziu a pena porque Sharifi é oriundo
um espelho passivo da culpa ocidental? Talvez valha a pena recordar de uma cultura sem «uma noção clara do conceito de consentimen-
EdmundBurke,umliberalàmodaantiga,umliberal-conservadorque to da mulher no momento do acto sexual». É a glória do multicul-
era – ao mesmo tempo – um adversário da arrogância iluminista à turalismo: um crime contra uma mulher passa a ser um fenómeno
Stuart Mill e um inimigo do romantismo relativista de Herder. Burke cultural se for perpetrado por um homem sem pele branca.
defendia a governação e os valores britânicos, mas recomendava cau- O panorama é este e não há sinais de mudança mesmo depois do
telaàarrogânciaimperial,vistoqueexistiamelementosválidosnosva- 7 de Janeiro de 2015. A BBC, por exemplo, recusa apelidar de «ter-
lores indianos. Temos de recuperar esta velha prudência burkiana. roristas» os assassinos que mataram 12 pessoas no Charlie Hebdo.
Em TwoFacesofLiberalism,JohnGraytentaesseexercícioerecorda- O termo correto, diz a estação inglesa, é «militantes». Em Paris, no
-nos que diferentes conceções de Bem podem coexistir na mesma so- final de Janeiro, uma peça da artista francesa Zoulikha Bouabdel-
ciedade.Não,nãodevemosconsiderarqueumaculturaéoInimigosó lah foi retirada de uma galeria de arte para não ferir susceptibilida-
porque defende uma conceção de Bem diferente da nossa. Contudo, des. Um grupo local de muçulmanos avisou que a presença daque-
este pluralismo deve ter limites. Sem limites, o pluralismo cosmopo- le peça poderia desencadear «violência incontrolável». O que mostra
lita transforma-se em relativismo. Mas como é que traçamos esse a peça? Saltos altos pousados num tapete de oração.
risco? Ou melhor: onde é que traçamos o risco entre pluralismo e A traição continua.
Na primavera de 2006, Após a exibição de cada Num primeiro momento, o «affaire Bé-
Cinema», destacava
crónica semanal no Público que estava mais ou menos mesquinha das permanen-
preferida, a mais
do Cinema desde 1991 – na prática, era dentemente das razões de cada um), mas
paradigmática – e
responsável pela programação da insti- atesta a importância de Bénard da Costa não
tuição desde 1980, quando fora nomeado só para o cinema português, e para a Cine-
escalpelizava-a na voz
subdiretor pelo então secretário de Esta- mateca em particular, como para toda a cul-
cigarros, enquanto
nard da Costa atingira a idade da reforma dia da sua morte e nos seguintes, espalha-
em fevereiro do ano anterior. Nessa altu- ram-se por artigos de jornais e posts de blo-
no tampo da secretária,
são, mas não pretendia prolongá-la agora. ele e de quem nunca o tinha visto. De Miguel
Crónicas: Imagens Proféticas e Outras, foi ticar a hipocrisia do código de honra interno Montgomery Clift e Elizabeth Taylor. «E no-
editado no ano passado. do Partido Socialista, falar de discussões so- tava duas ou três coisas que teriam ficado da
No entanto, Mexia destaca outra aventura bre as melhores adaptações cinematográ- intenção original de Eisenstein. Iluminando
editorial, mais antiga. Ligado desde o tempo ficas de O Corcunda de Notre Dame com o quarto sombrio em que o jovem Eastman
da faculdade ao grupo dos católicos progres- Hugh Hefner, dissertar completamente (Clift) sonhava com “um lugar ao sol” viam-
sistas, composto ainda por Nuno Bragança, à vontade sobre as melhores interpretações -se os néons publicitando o nome Vickers,
Pedro Tamen, Alberto Vaz da Silva e Antó- das sonatas de Mozart e o mesmo para ópe- mostrando que era esse nome (e os milhões
nio Alçada Baptista (mais velho do que os ras, de Mozart e não só; literatura, paisagens, a ele associáveis) muito mais do que a rapa-
restantes), Bénard da Costa seria um funda- palácios, assuntos do quotidiano.» riga que o usava (Elizabeth Taylor) que mo-
dores da revista O Tempo e o Modo – da qual João Bénard da Costa iniciara-se muito jo- tivava a paixão do rapaz. Quando este, pela
foi chefe de redação e chegou a dirigir – em vem nas grandes salas lisboetas dos anos 40 primeira vez, pensava matar a sua pobre co-
1963. «Tenho a minha esperança de que, e 50, onde observou os enormes rostos das lega e amante (Shelley Winters) como úni-
com o passar do tempo, se vá valorizar a im- maiores estrelas de Hollywood da época pro- ca forma de, sem escândalo, poder chegar a
portância que teve O Tempo e o Modo e todo jetados nos ecrãs – o livro Muito lá de casa Elizabeth Taylor, ouvia-se na banda sonora
aquele grupo como um dos momentos mais reúne apenas textos sobre os atores e atrizes o latir de cães. […] Ora eu tinha visto o filme
importantes da história da cultura portugue- que tanto amou (a expressão «muito lá de duas ou três vezes e não tinha visto nada
sa. Foi a revista que deu atenção ao Jorge de casa», entretanto caída em desuso, ficar-lhe- disso. Pensei que o crítico delirava e voltei
Sena, deu atenção ao Eduardo Lourenço, -ia sempre associada). A muitos anos do ad- ao Monumental para tirar teimas. Tinha
deu atenção à Agustina. Uma revista que vento das cassetes de vídeo (e a muitos mais ele toda a razão, não tinha eu nenhuma.»
conseguiu romper o unanimismo na oposi- do DVD), que revolucionaram a vida do ci- A partir daí, daria mais atenção à crítica
ção ao Estado Novo», diz Mexia. néfilo, o cinema era o único sítio onde se po- e aos críticos, aprendendo a acreditar em
Por ter apenas 24 anos e residir longe de dia ver filmes, uma e outra vez. «Já não há todos, depois, a desconfiar dos mesmos, en-
Lisboa, o blogger (no «Cine Resort») e ciné- ninguém que seja capaz de distinguir a In- contrando finalmente a sua «família» nos
filo João Palhares não deu com Bénard da grid Bergman do São Luiz da Ingrid Berg- Cahiers du Cinéma de André Bazin, Jean-
Costa nos corredores da Cinemateca. Co- man do Polytheama, a Jennifer Jones do Ti- -Luc Godard, François Truffaut, Jacques
nheceu-o através dos textos. «Os meus pais voli da do Éden, a Rita Hayworth do Condes Rivette – «E revi tudo a outra e definitiva
tinham dois livros da coleção das “Folhas da da do Império. Quem sabe hoje – desapa- luz». Mas, apesar de ter escrito sobre cine-
Cinemateca”, o de Frank Capra e o de John recida a última fila do Tivoli – o que é um ma a vida toda, nunca se considerou um
Ford. O de Ford e a folha de João Bénard da plongée? Ou, desaparecido o camarote 37 crítico. «Não é um crítico nem no sentido
Costa sobre A Desaparecida [de John Ford] da terceira ordem do Gymnasio, o que é um mais imediatista da pessoa que acompa-
foram o primeiro grande contacto, que era o enquadramento em oblíqua? Mesmo os es- nha a atualidade cinematográfica, nem
único filme que eu tinha visto. Deve ter sido pectadores da 1.ª fila (agora, a quilométricas é um crítico teórico. Uma das coisas que
em 2005, 2006. As crónicas do Público, tam- distâncias de minúsculos écrans) ignoram marca muito a crítica de cinema, não nos
bém. Mas lia sem perceber grande coisa; em absoluto o que seja um autêntico contre- jornais mas em livros e catálogos, é uma
só comecei a perceber alguma coisa muito plongée», escrevia numa crónica de 1988. certa sofisticação que tem a ver com cor-
depois, quando comecei a ver filmes do Se a princípio os filmes eram escolhidos rentes de pensamento que não se limitam
Howard Hawks em DVD e li as folhas de por quem o levava ou, quando passou a ir ao ao cinema, a psicanálise, o estruturalismo,
Bénard da Costa sobre os filmes dele, que cinema sozinho, pelo trailer, pelo cartaz, pe- o marxismo», diz Pedro Mexia. «De vez em
me levaram a Rivette e aos Cahiers... Ensi- los atores, Bénard relata uma epifania: «[…] quando, o que ele “via” nem sequer era fac-
nou-me e ainda me ensina a ver melhor os um dia deparei com um longo texto sobre o tual, aquilo que ele dizia passar-se no filme
filmes, a tentar compreendê-los.» Contudo, filme A Place in the Sun de George Stevens, não era exatamente aquilo que se passava
Palhares salienta a diversidade de assuntos que me tinha levado às nuvens». Era uma no filme. O que, se ele estivesse a fazer um
abordados por Bénard, que nunca se res- crítica de Alves Costa que falava mais de trabalho académico, seria considerado um
tringiu ao cinema. «Já o li a elogiar teoremas Serguei Eisenstein, que esteve para filmar erro.» O próprio Bénard da Costa repudia-
matemáticos, pintura holandesa (o olho dele uma versão de Uma Tragédia Americana va essas correntes de análise, culpando-as
para a pintura é uma coisa prodigiosa), cri- de Theodore Dreiser nos anos 30, do que de do desencontro entre crítica e o público de
tivéssemos direto ao
d que critica (a sua plena iluminação) ou mudo, alemão e soviético, ele tem um cari-
Guinness do máximo
a formação do gosto de quem eu quero nho particular pelo cinema americano, o
Começávamos à hora do
«Quando estava na faculdade, tive aulas na Cinemateca, era bastante relutante em
almoço e só parávamos
com o João Mário Grilo. Lembro-me de es- ousar cinematografias mais atuais, como se
tar uma vez a discutir um trabalho e ele di- estivesse um pouco parado no tempo», diz
a primeira pessoa
a arder», relembra Luís Miguel Oliveira. o Pedro Costa, o João César [Monteiro], o Jor-
«Não tenho problema algum em dizer que ge Silva Melo, e depois um ou outro filme.
do singular do pretérito
o João Bénard era um excelente crítico, mas Se ele não gostasse, não eram programados.
© DR
então, criar uma cooperativa, o Centro Por- se um gosto, significava que não era preciso o consulado Bénard na Cinemateca «teve
tuguês de Cinema, visando o apoio da Gul- ter um programador mas uma espécie de a ver mais com o nosso crescimento, com a
benkian. Bénard da Costa, à frente do Ser- programa informático. É bom ter um gosto, necessidade de crescer. Ele era uma figura
viço de Cinema da Fundação nesse período, é bom ter uma memória. Nos ciclos temáti- extremamente absorvente, era difícil ter
esteve, assim, envolvido na decisão dos fil- cos, os nexos entre os filmes são uma obra uma ideia melhor. E tivemos de ir à procura
mes a subsidiar. «Não era um observador, criativa como qualquer outra. A programa- do nosso próprio espaço».
era alguém que até certo ponto também fa- ção também é uma arte, a ideia de encontrar João Bénard da Costa licenciou-se em
zia parte dessa história. Mas era muito cui- nexos insuspeitos entre filmes», diz Pedro Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade
dadoso na maneira como lidava com o ci- Mexia. A este propósito, Luís Miguel Olivei- de Letras, no final dos anos 50, mas nunca
nema português e com a sua programação. ra recorda o «célebre dia em que [a Cinema- pôde lecionar no ensino superior por razões
Muito cuidadoso, primeiro pela questão teca] passou o Behind the Green Door [filme políticas, tendo sido professor no Externato
institucional e também em termos pes- pornográfico realizado pelos irmãos Mit- Frei Luís de Sousa, no Colégio Moderno
soais», afiança Luís Miguel Oliveira. «Ele chell] e o Pinóquio [de Walt Disney]». e no Liceu Camões. No Camões, onde havia
programou imensa coisa, e não estou a fa- Apesar de reconhecer em Bénard da Cos- sido aluno (e chumbado dois anos segui-
lar de umas sessõezinhas aqui e ali, estou ta alguém muito convicto e difícil de contra- dos), começou a organizar cursos de cine-
a falar de ciclos, ou de que não gostava ou riar, Oliveira contesta a ideia de que era au- ma. «No anfiteatro de Geografia, que estava
pela qual não tinha nenhum interesse es- toritário. «Era uma pessoa a quem podia cheio, a rebentar, às quartas-feiras à tarde,
pecial. Mas achava que do ponto de vista sugerir ideias, estando certo de que ele pelo falando ele, eu diria que era das duas da tar-
institucional era importante fazer», conti- menos as consideraria. Podia achar depois de até às seis – sem parar –, de cinema, co-
nua, refutando a ideia de que Bénard ape- que não eram muito interessantes, mas con- meçando no mudo, no Griffith, na Lillian
nas programava para si próprio. Mesmo sideraria. E não tinha problemas nenhuns Gish, quase tudo filmes que nenhum de nós
a noção de que Johnny Guitar – o qual, em recebê-las e fazê-las andar para a frente», tinha visto (nem podia ver, porque não ha-
em 1988, Bénard já teria visto 68 vezes – avança. «Assim como com os catálogos. Po- via Cinemateca, havia a censura, o cinema
passava na Cinemateca a toda e qualquer dia haver conversas, [gostava de] saber como moderno não passava, estava escondido)
oportunidade é falsa. «Tornou-se quase estava a correr, o que é que ia lá estar, mas e nós éramos miúdos, portanto muitos dos
uma piada, uma brincadeira em que ele ali- ele só via o catálogo quando estava pronto. filmes nós nem podíamos ver porque eram
nhava também, quase um running gag.» Dava imensa margem.» para maiores de 17 anos», diz Jorge Silva
«Havia um gosto predominante. Seria es- Nas palavras de Manuel S. Fonseca, a sua Melo no documentário João Bénard da Cos-
tranho que não o houvesse. Se não houves- saída e as de outros colaboradores durante ta – No Tempo do Cinema, de José Carlos
Chegados aí, e vistos do futuro, admirar Rousseau foi um indício deríamos dizê-lo a mais um volume de sonetos. Dizê-lo é, porém,
da nossa alienação latente, como o fora a coleção de gravuras de Joa- acenar à pessoa de que fomos um dia o futuro. O nosso convívio com
na d’Arc que acumulámos ao longo dos anos por razões aparente- os nossos autores é, nesta medida, um convívio com essa pessoa, e
mente estéticas e não religiosas. Que estejamos destinados a pade- não um convívio com os nossos autores. O futuro era o seu, atuali-
cer, como as nossas inclinações livrescas demonstravam, não era zado agora, por eles criado. O que se interpõe entre nós e os livros
sinal de que tal estava escrito, era antes sinal de que o caminho que não é quem somos, mas o obstáculo mais portentoso que é o nosso
fazemos acordados é, por vezes, um roteiro para o caminho que fa- futuro desvendado.
zemos no escuro, como se apenas nos fosse dado a ver a sombra A posteridade é, por tudo isto, uma realidade acessível. A nossa pos-
da vida que, sem sabendo, estamos a viver. À sombra que os nossos teridade não são os que nos sobrevivem, mas as «sobrevivências» que
gostos literários revelam podemos chamar «o futuro». somos. A filósofa inglesa Elizabeth Anscombe usou uma vez esta ex-
O futuro não é, pois, o que há de vir, mas o que vive em nós sem que pressão para designar a origem da linguagem e do sentido na mora-
o saibamos. Apesar de passarmos todo o tempo a reconhecer-nos no lidade, dizendo que os conceitos morais que usamos são «sobrevi-
que lemos, os livros distraem-nos do futuro, e não propriamente da- vências» de um tempo que se perdeu. O termo serve igualmente para
quilo que vivemos enquanto os lemos; mas isto apenas significa que designar não apenas a linguagem em que falamos, mas a natureza
nos distraem de nós mesmos, apesar de parecermos ensimesmados. das revelações que a literatura nos faz. A literatura revela o nosso fu-
O peso que a liberdade de escolha parece ter na coleção dos nossos turo, mas em relação a esse futuro somos um resto, da mesma forma
gostos literários pareceria ser contrariado por esta forma de distração. que, nas batalhas que projeta em paragens de autocarro, todo o lou-
Porém, o futuro apenas pode cumprir-se em nós enquanto estamos co do século XX é um fóssil quatrocentista. O futuro de Joana d’Arc
distraídos. Perguntamos mais vezes a Camões «Será que sou assim?» não vem nos livros. Estaciona-nos o carro hoje em dia perante a nos-
do que «Será que virei a ser assim?». O futuro de todos nós revelado sa visão do parquímetro a dois metros, distraídos do arrumador
pela literatura constitui um colapso entre ambas as perguntas. Não de carros que trazemos em nós e que nunca saudamos.
Teatro de Sombras
Ao longo dos últimos anos, o designer Rui Rodrigues fotografou as sombras de Lisboa – parte dessa viagem está
fixada na plataforma Instagram – procurando estabelecer uma cartografia (da idade, do subúrbio e dos bairros
históricos e operários, dos edifícios abandonados, da arquitetura dos meados do século XX) atravessada por uma
respiração literária que nunca o abandonou. Estes são alguns dos exemplos recolhidos.
ESTÁ
enquanto se apuram métodos e ferramentas
paralhesdarapoio.Asgaleriasrecebemassuas
expressõesartísticas.Oromanceportuguêscon-
temporâneo dá-lhes atenção especial. Fomos
conhecer Rares Iancu e Paulo Amores e encon-
trámos,apardeummundofísicoecognitivocujas
limitações podem ser conhecidas de fora, um
teatro privado mais ou menos enigmático. Onde
AÍ?
não entra quem pode, só entra quem já lá está.
«A crença de que a nossa perspetiva da realidade é a única limites da comunicabilidade, da razão e da autoconsciência. Uma
realidade existente é a mais perigosa de todas as ilusões.» visita, guiada por uma pergunta: como se exprimem e se fazem
PAUL WATZLAWICK entender, e como são representadas na literatura, as pessoas com
deficiências limitativas da capacidade de comunicação?
Quando estava dentro da barriga da mãe, Rares erguia uma das
RARES TEM UM SORRISO TÃO EFICAZ COMO UM ABRA- mãos e parecia acenar-lhe através do ecrã ecográfico. «Foi uma
ÇO ou uma extensa declaração escrita de amor. É um miúdo criança muito desejada. Sempre soube que seria um menino e sem-
raro. Paulo tem o olhar em fuga e o apelido de Amores. Dese- pre quis que se chamasse Rares.» Porquê Rares? Carmen não faz
nha engenhosas autoestradas de signos, com destino infinito. ideia, tão-pouco conhecia a raiz da palavra romena, descendente do
Nos dois casos, o que sei de teoria e factos que os caracterizem latim rarus («incomum»; «com muito mérito»). Nisto como em todo
é-me relatado ou descrito por terceiros. Nem Rares, nem Pau- o percurso acidentado do filho de seis anos, o instinto e o lado práti-
lo conseguem verbalizar a sua vida interior. Contudo, poucas co da mãe mostraram-se bem mais importantes do que quaisquer
pessoas imprimem a sua presença de forma tão excecional explicações.
e misteriosa naqueles que se dispõem a conhecê-las, racional Carmen nasceu a cerca de 200 quilómetros de Bucareste, em Cur-
ou intuitivamente. tea de Argeş, a cidade natal do injustiçado escritor absurdista ro-
Ao encontro de Rares e Paulo e de umas quantas personagens meno Urmuz (vale a pena ler o poema heroico-erótico Fuschiada;
de ficção, esta é uma incursão num mundo contíguo ao nosso, nos começa com o nascimento de uma criança que opta por sair pelo
do a partir do programa informático Boardmaker, que disponibi- Naquele mesmo ensaio, Ramachandran sugeriu que a perda
liza bibliotecas universais de mais de cinco mil Símbolos Pictográ- de neurónios-espelho está na origem de grande parte dos sintomas
ficos para a Comunicação (SPC). Depois de ter apurado a comuni- e características das perturbações do desenvolvimento do espectro
cação gestual (através do método Makaton) e a expressão de palavras do autismo (PEA, agrupadas em três: síndroma de Asperger; autis-
de conteúdo, sem elementos de ligação, Rares está a tentar construir mo; transtorno global do desenvolvimento, sem outra designação).
algo semelhante a frases. Não é possível avaliar a amplitude da sua Primeiro identificados em macacos, em 1994, por um grupo de neu-
compreensão verbal (que surpreende a terapeuta), mas a mãe as- rofisiologistas italianos, os neurónios-espelho são células localiza-
segura que a capacidade de expressão emocional e social aumentou das no córtex motor e ativadas tanto quando o sujeito realiza uma
significativamente. «Ele já consegue pôr a cabeça e os pés, só falta o ação como quando ele vê um outro realizar essa mesma ação. Gra-
tronco.» Falta-lhe o mais subtil: a vírgula que prolonga a frase, a pon- ças a neurónios-espelho com um funcionamento mais sofisticado
tuação que determina a narrativa. do que o dos macacos, o cérebro humano é capaz de simular uma
No caso de Rares, a mãe é a principal tradutora, ao mesmo tem- ação e aprender por imitação. São eles que nos permitem reconhe-
po, do universo infantil e do mundo externo que chega até ele. É im- cer e interpretar, criar um modelo interno das ações e intenções das
possível prever qual será o grau de desenvolvimento da capacidade outras pessoas, logo, estabelecermos relações afetivas e sociais.
de comunicação ou expressão ou de autonomia de Rares quando Para Ramachandran, uma disfunção ao nível do sistema dos neu-
for adulto. Por enquanto, «a sua maior arma é o afeto». Uma arma, rónios-espelho implica a perda da empatia com os outros. Aliada
garanto-vos, poderosa. Se soubesse desenhar, dedicava-lhe uma à perda de «reverberação» entre o cérebro e o resto do corpo, ela im-
banda desenhada, dava-lhe o papel do herói e lançava-o à descober- plica a perda do Eu apurado que caracteriza os humanos. O resultado
ta do conserto do mundo. é a redução do sujeito ou, mais radicalmente, o seu encerramento
numa realidade ou espaço não-racionalizados ou racionalizáveis. Daí
EM 2010, NO ENSAIO CONTROVERSO The Tell-Tale Brain: que sintamos que aqueles que sofrem perturbações do espectro do
A Neuroscientist’s Quest for What Makes Us Human, o neurocien- autismo habitam, ainda que em níveis diferentes, um outro mundo,
tista indiano Vilayanur S. Ramachandran dedicou um capítulo do qual não conseguem escapar e ao qual não conseguimos aceder.
ao autismo e intitulou-o «Onde está o Steven?». A pergunta foi-lhe Paulo Amores tem 49 anos de idade e há 42 que reside e é acom-
colocada por uma mãe, mas exprime um lamento partilhado por panhado em permanência na sede da APPDA-Lisboa. Aparen-
muitos pais de crianças autistas. «Doutor, eu sei que o Steven está temente nada o diferenciou das outras crianças até aos cinco anos
preso algures lá dentro. Se ao menos o senhor conseguisse encon- de idade, quando lhe foram diagnosticados distúrbios do espectro
trar uma maneira de dizer ao nosso filho o quanto o amamos, tal- do autismo. Situada no Alto da Ajuda, a sede da APPDA-Lisboa
vez o conseguisse trazer cá para fora.» inclui quatro lares-residências, um Centro de Atividades Ocupacio-
Paulo Amores entra na oficina de artes da Associação Portuguesa nais, uma Escola de Educação Especial, um Pavilhão Ajudautismo,
para as Perturbações do Desenvolvimento e do Autismo (APPDA, uma estufa (para atividades de hortofloricultura) e uma piscina
em Lisboa), com os olhos postos no chão. Move-se com rapidez, sen- terapêutica com cobertura. Bem-vindos à casa do Paulo.
ta-se com o corpo enviesado à secretária, em frente da terapeuta Há 17 anos que Isabel Costa trabalha aqui. Na oficina das artes,
ocupacional. Sem levantar o olhar, repete os cumprimentos, dela onde estamos agora, acompanhou a aprendizagem funcional, a
e meu: «Olá. Olá. Olá. Olá.» Isabel põe sobre a mesa um conjunto de familiarização de Paulo com utensílios, materiais, limites e estru-
sacos dobrados de papel reciclado e um estojo de canetas de feltro turas (através da modelagem do barro), o percurso de desenvolvi-
(«Este é só dele»). Paulo inclina-se sobre a mesa e deita mãos à obra. mento até à criação livre que ele prefere: bidimensional e com ca-
Nos 10 minutos seguintes, desenha traços contínuos e descontínuos, netas de feltro ou tintas.
signos, letras e números mais ou menos definidos, mais traços, mais «Gostas de pintar, Paulo? Sim?» «Sim.» «Não gostas de pintar, pois
signos, horizontalidades, verticalidades, riscos sequenciais, com não?» «Não.» A expressão verbal é marcada pela ecolalia: a repe-
cores alternadas, até cobrirem toda a superfície do papel. O empe- tição automática de palavras ou sons escutados, como um eco.
nhamento físico na tarefa é evidente e, com uma cadência particular, O olhar é rápido, fugaz quando encontra outro. Paulo reage, res-
acompanha a coordenação de cada composição. Ritmo contínuo, ponde, mas não toma a iniciativa do contacto. Agora, tem o olhar
pausa curta, respiração. Paulo avalia o conjunto e prossegue, deter- fixado no papel e no deslizar da caneta. Continua a desenhar. Isa-
minado, atento ao detalhe e à posição precisa de cada elemento. Gere bel toca-lhe ao de leve na mão; é uma das poucas pessoas a quem
e preenche o espaço disponível. De novo. De novo. ele permite o toque, das poucas capazes de descrever a sua perso-
nalidade: «O Paulo tem um sentido de humor extraordinário. Um sinestésicos) serve e justifica o registo modernista, a incoerência
humor subtil. É um gozão; gosta de rir do que acontece aos outros. da gestão do tempo e do espaço no romance, qualificado pelo escri-
Está sempre alerta, sempre na expectativa do que vai acontecer. tor norte-americano como o seu «mais esplêndido fracasso». Em ter-
Há sempre uma ansiedade latente. Mas, se ele grita e, em resposta, mos alegóricos, Benjy é uma figura crística, o símbolo da redenção
eu o assusto, ele ri-se.» perante o declínio e a morte, ao mesmo tempo o sinal da impotên-
Na pintura, Paulo não se interessa pela figura humana. Quando cia de Cristo e da Graça no mundo moderno. Faulkner, que na ver-
pinta com canetas, gasta a escolhida até se acabar e é raro optar pela dade nunca foi bom a explicar-se, aponta de forma bastante desu-
cor preta. Quando usa tintas, mobiliza o corpo todo, ajusta a posição mana a sua criação mais humanista.
dos pés, debruça-se sobre a bancada; muitas vezes, o gesto fica mar-
cado na textura dos trabalhos. Quando parece estar menos bem, usa DE SEGUNDA A SEXTA, Miguel e Luciana passeavam-se numa
apenas uma cor ou pinta só de uma maneira. Recentemente, uma valsa estranha pelos corredores da Associação de Pais e Amigos do
exposição de obras de Paulo Amores inaugurou uma galeria em Cidadão Deficiente Mental (APPACDM), onde se tinham apaixona-
Cascais, a Raw, na Cidadela Art District. «Há coisas que ele faz que do. «Primeiro o Miguel sempre arrastou os pés com os braços des-
não se ensinam. Acredito que ele é um experimentador da expres- caídos e a barriga para a frente. Depois, não se acompanhavam lado
são», diz Sílvia Perloiro, a professora de artes plásticas que também a lado, ela colocava-se atrás dele e usava-o como escudo. Em fila in-
o acompanha na oficina da APPDA-Lisboa. Ali, ganha forma a sin- diana, ele esticava o braço para trás e agitava os dedos em busca dos
gularidade do universo de Paulo. dedos agitados dela. Seguiam caminho e, como um fole, aproxima-
vam-se e afastavam-se ao ritmo do andamento.» No dia em que Lu-
«[A VIDA] É UMA HISTÓRIA CONTADA POR UM IDIOTA, cheia ciana quis fugir da instituição, Miguel agarrou-a e fê-la voltar. À noi-
de som e fúria. E sem sentido», escreveu Shakespeare (Macbeth, te, fechado no quarto, repetia em voz alta a façanha: «Um heroi, um
Cena V, Ato V). Tal como as pessoas na vida real, na história da homem. Nao é bebe.»
literatura as personagens com deficiências (motoras, mentais, Miguel é o irmão do narrador, sem nome, da primeira obra de fic-
visuais, auditivas, da fala ou orgânicas) não compõem um quadro ção de Afonso Reis Cabral (24 anos), vencedora do Prémio Leya
homogéneo. Até muito recentemente, a sua presença servia quase 2014. O Meu Irmão, romance marcante pela humanidade e domí-
em exclusivo de alerta para a vulnerabilidade e para a imperfeição nio estilístico, faz um uso indireto da experiência autobiográfica do
da condição humana. Assumia um objetivo funcional, moral ou autor, que tem, ele mesmo, um irmão com síndroma de Down (tam-
jocoso e, na maioria das vezes, este sobrepunha-se à definição da bém designado «trissomia do cromossoma 21»). «Foi um desafio
personagem enquanto sujeito, à tradução-revelação do seu mun- dar voz a quem não a tem ou tem-na de uma maneira muito pouco
do interno. eficaz. Mas eu não sou, nem quis ser, porta-voz de nada. Apenas fui
Veja-se, por exemplo, Benjamin, o autista do clã Compson, em absorvido por um tema, um estado de espírito inicial: o do conflito
O Som e a Fúria, e o modo como William Faulkner se lhe referiu entre dois irmãos, acentuado pela clara desvantagem de um deles»,
(em entrevista à Paris Review): «A única emoção que consigo ter por explica Afonso.
Benjy é de aflição e de pena por toda a humanidade. Não se conse- Quando morrem os pais, Miguel, 40 anos, fica à guarda do irmão,
gue sentir nada por Benjy porque ele não sente nada. A única coisa professor universitário, divorciado, um ano mais novo e há vinte se-
que consigo sentir por ele, pessoalmente, é uma preocupação em parado dele. O que se passa a seguir entre os dois, no Porto ou numa
saber até que ponto ele é credível tal como o criei. Ele é um prólo- minúscula aldeia de xisto, perto do rio Paiva e com apenas mais três
go, tal como o coveiro nos dramas isabelinos. Cumpre o seu papel habitantes (um casal e o filho), é contado na primeira pessoa do sin-
e vai-se embora. Benjy é incapaz do bem e do mal porque não tem gular. Miguel não tem capacidade de expressão, por isso o irmão-
conhecimento do bem e do mal.» -narrador assume-se como voz e intérprete: «Muitas vezes omite-
E, no entanto, Benjy e a expressão literária da sua desordenada -lhe a expressão, noutras impõe-lhe uma linguagem [há um nós que
corrente da consciência (notavelmente pontuada por registos preenche a ausência de diálogo entre os dois irmãos]. Trata-se de
um mau intérprete, com falhas de carácter, alguém com dificulda- mais recente de Gonçalo M. Tavares. Mais uma das suas inves-
des em aceitar-se e que, por isso, se vê em combate permanente com tigações ficcionais sobre a História, o Mal, as categorias racionais e
o outro e o usa como ferramenta das suas próprias frustrações.» os seus limites irracionais, o corpo restringido pelo espaço e pela
Em O Meu Irmão, a inveja é um motor dramático, explorado velocidade, a sombra e a luz.
por oposição à entrega constante e ao amor incondicional gerado ou Há vários anos que o escritor português está ligado a uma cadei-
oferecido por Miguel aos outros. Num romance português anterior, ra de reabilitação psicomotora e participa em ateliês com a lisboeta
Autismo (2012, Abysmo), de Valério Romão, o tratamento pouco Cooperativa de Educação de Crianças Inadaptadas de Sta. Isabel
convencional do tema da deficiência surgira mais cru e sombrio, (Crinabel) e com a companhia de dança madeirense Dançando com
focado no conflito entre a abnegação completa de uma mãe em fun- a Diferença. Esta experiência de contacto determinou e modelou a
ção do filho autista e os sentimentos de rejeição e ciúme do pai em criação de Hanna e, com certeza, alargou a reflexão sobre lingua-
relação a ele. Ali, o sujeito deficiente surge apenas como personagem gem, corpo e pensamento.
secundária, sem voz. «No início do contacto, temos tendência a adaptar completamente
No caso de Miguel, o «mongoloide» de O Meu Irmão, Afonso Reis o discurso. Ao fim de algum tempo, e até para criar à-vontade e evitar
Cabral procurou deixar a personagem em aberto, não exercer sobre uma forma de tratamento paternalista, passamos a falar normal-
ela qualquer tipo de autoridade. Como? «Foi um bocado sair da fren- mente. Quando se controla muito a linguagem, a relação pessoal fica
te e não lhe pôr muitos obstáculos.» O silêncio de Miguel era uma muito limitada.» Para Gonçalo M. Tavares, a presença afetiva é uma
dificuldade implícita, mas também não havia garantias de que das características mais marcantes dos portadores de trissomia 21
a transposição das suas dificuldades de fala funcionasse, sem pare- (saliente-se: possuem personalidades muito distintas entre si). Existe
cer forçada. «Optei por partir o português o mais possível, incluir umalheamentoaoníveldalinguagem,masnãoaonívelfísicoecorpo-
gralhas, adaptar a pontuação. Era isso ou deixá-lo calado.» ral. Esta outra maneira de estar, com simplicidade desarmante, con-
Na sua linguagem afetiva pura, Miguel representa o «amor em car- diciona e determina todos aqueles que contactam com ela.
ne, amor em força bruta». É como «um anjo na terra», Caim que su- Marius e Hanna passeiam por uma rua de Berlim. Primeiro con-
cumbe a Abel, empenhado em destruir a inocência, a bondade natu- tam coisas iguais; depois, contam as pessoas que passam por eles a
ral, a «condição de felicidade» do irmão. O lirismo da história de amor sorrir. Marius constata: «De uma forma objetiva, eram muito mais
entre ele e Luciana, com um tom ultrarromântico, quase camiliano, as pessoas que sorriam quando mais próximas de nós. Poderia pen-
funciona, segundo o autor, «porque eles são personagens inocentes, sar que se tratava de um puro acaso e que o facto simples era que
que nem sequer entendem o próprio conceito de pureza». O final do as pessoas que estavam a maior distância estariam mais neutras
romance é inconclusivo, mas Miguel, ainda que vulnerável, revela- ou infelizes, mas o que se passava realmente era que Hanna como
se um «heroi», cuja linguagem moral transcende todas as outras. que fazia batota, induzindo, sem consciência, o aparecimento de ex-
pressões simpáticas.»
UMA RAPARIGA. CATORZE ANOS. Olhos: pretos. Cabelo: casta- Ao longo de Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura
nho. «Estou à procura do meu pai», diz. A rapariga traz consigo uma do Pai, Hanna é quase sempre o centro corporal. A força desta pre-
pequena caixa e, lá dentro, muitas fichas, cada uma com um tópico, sença física chega ao ponto de alterar o comportamento das pessoas.
seguido de um conjunto de passos, atividades ou questões. Por Por outro lado, como quase não intervém, ela é uma observadora.
exemplo: explorar objetos; indicar a parte do corpo que dói; ir à casa Estando de fora de todas as linguagens, apresenta-se como um mis-
de banho por iniciativa própria; andar pelos passeios; dar gritos, tério. Gonçalo M. Tavares clarifica: «Há qualquer coisa que ela não
vocalizações diferenciadas para desconfortos específicos, sorrir consegue explicar, um segredo, uma coisa quase perversa. Marius
ou vocalizar em resposta à presença de uma pessoa ou situação tem uma carga agressiva que, estranhamente, fica mansa ao lado
agradável... Trata-se de um catálogo-guia para a Aprendizagem das de Hanna. No início, ele é um homem acossado, perseguido não
Pessoas com Deficiência Mental. sabe por quê. De repente, desacelera a sua velocidade e vai com Han-
Marius encontra a rapariga perdida na rua. Chama-se Hannah. na procurar alguma coisa. Muita da sua violência fica neutraliza-
Este é o nome que está escrito, mas ela não o reconhece e, por isso, da. Hanna provoca um intervalo na vida de Marius, mas, no final,
Marius retira-lhe o «H» final. Em fuga não se sabe de quê, o homem ele sente vontade de voltar à sua individualidade, à sua dor.»
decide ajudar a rapariga a procurar um pai que está algures, não
se sabe onde. Hanna, com síndroma de Down, protagoniza Uma «QUANDO SE CONSEGUE ENTRAR no olhar de um autista, ele
Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai, o romance fixa-nos e nós entendemos que lá dentro está a pessoa», diz Sílvia
Perloiro. Acontece que, para se conseguir trazer a pessoa autista, Eis o que mais importa. As pessoas com autismo típico não che-
por exemplo, até uma qualquer forma de expressão criativa, é pre- gam ao nível da metáfora. «Se tivéssemos de pensar à la Rama-
ciso tempo e recursos habitualmente indisponíveis. Reconhecer chandran, a expressão mais pura de uma pessoa com autismo típi-
e incentivar este tipo de capacidade de expressão implica um in- co seria a de alguém que apenas desenha o que vê [algo muito
vestimento e uma dedicação semelhantes aos que a mãe põe figurativo]. Pensaríamos na linha da surpresa que a relação dessa
ao serviço do bebé, até conseguir identificar os mil cambiantes pessoa com a realidade nos traz a nós, ditos “normais”.»
do seu choro. Paulo Amores guardou referências do período anterior ao diag-
Grande parte do respeito pela diferença das expressões artísticas nóstico de perturbações do espectro do autismo. Filho de um
das pessoas com deficiência passa por dar espaço a outras formas engenheiro matemático, com certeza que o viu muitas vezes a
de sensibilidade. Jean Dubuffet definiu as obras de arte bruta como escrever, a fazer contas ou a desenhar. O cérebro de Paulo, que
criações marginais, expressões de uma «operação artística com- então foi impregnado por séries de símbolos gráficos, fá-los re-
pletamente pura, bruta, cujas frases são totalmente reinventadas nascer agora, quando que se lhe deparam canetas e papel. Os seus
pelo autor, a partir somente das suas próprias pulsações». Pensem trabalhos serão sobretudo paisagens de lembranças desse tem-
nisto: uma visita à Collection de l’Art Brut (mais de 60 mil obras de po, uma «fixação da qual não é possível sair com facilidade».
mil autores), instalada no Chatêau de Beaulieu, em Lausana, vale Quando ele as exprime, é porque as associa a uma emociona-
tanto como uma ida ao Prado ou ao Louvre. E vão lá. lidade, a um certo conforto afetivo. É neste sentido que o seu
EdgarGonçalves Pereira, psicólogoclínico, primeirodoutoradopor- universo expressivo é absolutamente incomum e excecional:
tuguês em autismo na área da psicologia, é diretor pedagógico da em suma, raro.
APPDA-Lisboa. Enquanto conversamos sobre Paulo Amores e as ca- Então, como definir o mundo interno das pessoas com pertur-
racterísticasatípicasdo seu autismo (manifestas ao nível do desenho), bações do espectro do autismo? Edgar Gonçalves Pereira explica:
conduz-me por um périplo teórico, ilustrado com imagens e quadros «Não existe nenhum organismo multicelular vivo, sem ser plan-
explicativos exibidos no ecrã de um computador. Percebe-se a cautela. ta, que não tenha mundo interno. A partir da lagosta para cima,
Metemos muitos coelhos e muito diferentes no mesmo saco, se gene- em formas mais mamíferas, é possível haver certas representa-
ralizamossobreaspessoascom deficiênciaslimitativas dacapacidade ções da externalidade na internalidade dos processos biológicos,
de comunicação. Reformule-se, pois, a pergunta: como pode a arte embora não tão complexas como as que o cérebro humano faz.»
funcionar como câmara escura de um mundo que é diferente do nos- Nos humanos, a capacidade de perceção do exterior evoluiu para
so devido aos condicionalismos de uma deficiência? a capacidade de perceção do interior, ou seja, para que conse-
«Muito do que é valorizado em arte é o valor que esta tem de trans- guíssemos pensarmo-nos a nós próprios, em termos linguísticos
mitir um simbolismo qualquer, adquirido em milhões de anos de ou imagéticos. Acrescentemos as funções dos neurónios-espelho
experiência adaptativa.» A necessidade de preservação da espécie e estamos perante um ser que se pensa, pensa os outros, mime-
e o decorrente desenvolvimento de sistemas de alarme fez evoluir tiza e cria empatia. É precisamente no acesso à capacidade per-
as nossas capacidades de tratamento e transmissão de informação. cetiva (logo, à possibilidade de completar este percurso de capa-
Assim, evoluímos na constituição de módulos cerebrais especiali- cidades adaptativas e capacidades percetivas para o outro e para
zados em agrupamento, contraste ou isolamento, na resolução de si próprio) que o autismo se traduz em graves problemas fun-
invisibilidades, na discriminação de coincidências, na identificação cionais internos. Logo, o mundo interno das pessoas com per-
de regularidades ou simetrias. «A transmissão pela metáfora in- turbações do espectro do autismo «provavelmente não será igual
traespécie permitiu que o homem evoluísse de um fechamento em ao nosso».
si próprio para a abertura de uma ligação ao exterior.» Primeiro usa- Faço Sílvia Perloiro repetir: «Quando se consegue entrar no olhar
dos com funções adaptativas, aqueles recursos e operações passa- de um autista, ele fixa-nos e nós entendemos que lá dentro está
ram a servir também a criação de arte: a expressão artística a partir a pessoa.» Porque não é possível não comunicar, cabe-nos a nós
do símbolo e da metáfora. procurar o outro. E perguntar: «Quem está aí? »
O fim não tem fim – dos clássicos aos outros conciliáveis entre si. / Estas partes nem atingem a idade adulta ao
Esta é uma história que não acaba há milénios. Um assunto por mesmo tempo, / nem adquirem simultaneamente a plena robus-
resolver que remonta, por exemplo, ao latino Lucrécio. Os seis li- tez física / nem decaem ao mesmo tempo com a velhice, / não sen-
vros do seu Da Natureza das Coisas não terão recebido a última re- tem os mesmos desejos sexuais nem têm costumes semelhantes, /
visão do poeta. Neste poema, de um epicurismo depurado e trans- / nem têm nos seus corpos os mesmos prazeres» (Da Natureza das
figurado pelo curso imparável das eras, percorrido por um Coisas, Relógio d’Água). Este amplo poema didático, de cariz filo-
ceticismo muito próprio, a mitologia ficava de rastos: «Não penses sófico, cujo encerramento nos suscita a impressão de um fecho pre-
pois, porventura, que podem existir Centauros, / gerados a partir cipitado pela morte, posicionava no seu outro extremo – o começo
de um ser humano e do sémen de besta de carga dos cavalos / ou da obra – um dos elementos que nele são mais intrigantes. Este tri-
que existam Cilas com os corpos semimarinhos cingidos por cães buto poético à doutrina física de Epicuro recua ao mito no arran-
raivosos / e outras coisas deste género, cujos membros vemos in- que das suas palavras iniciais: «Dos Enéadas progenitora, prazer
dos homens e dos deuses, / alma Vénus, tu que sob os deslizantes tima demão na sua Eneida. Embora no caso do mantuano os ver-
astros do céu / enches de vida o mar portador de navios, / enches sos finais do poema não deixem exatamente adivinhar esse facto
de vida as terras de searas produtoras, / porque graças a ti é con- – «Com estas palavras, férvido da ira, enterra-lhe a espada no pei-
cebido todo o género de seres vivos.» Debater-se-á se metáfora, se to. O corpo entorpece-lhe com o frio da morte; a vida, com um
concessão aos padrões culturais. Lucrécio, esse, morto pelo filtro gemido, foge indignada para as sombras» (Eneida, Virgílio, Ber-
do amor, louco nos intervalos da composição do seu magno poe- trand) –, é de crer que o seu autor não tenha levado até às últimas
ma, é um dos primeiros exemplos de um enorme criador cuja cria- instâncias o labor da lima (para usar a expressão de um contem-
tura chegou até nós com a sublime rudeza de uma obra que nos porâneo seu). De resto, segundo a tradição, o futuro guia de Dan-
deixa no limite da completude. Uma geração depois, Virgílio, que te, em A Divina Comédia, teria encarregado o amigo Vário de des-
declaradamente admirou Lucrécio, esteve no centro de uma si- truir a epopeia. Este, contudo, juntamente com o amigo comum
tuação em tudo semelhante. Também ele havia de não aplicar a úl- Tuca, editou o texto (pressionados ambos, sem dúvida, pela ânsia
O livro que, de certa forma, metaforiza o nosso século XX literário é uma obra
inacabada. Porque não é um livro, mas a possibilidade de um livro.
Ou a coexistência de inúmeros livros a lutarem por ser. O Livro do
Desassossego é essa centelha do inacabado, essa impossibilidade de terminar.
do imperador Augusto, desejoso de um poema épico que dignifi- o exemplo de Balzac. São inúmeros os projetos ficcionais que deve-
casse a família do princeps). Assim nos foi legado aquele que é, pos- riam ter integrado a, já de si, literalmente monumental Comédia
sivelmente, um dos expoentes do género épico, e sem dúvida a Humana. Mas também em romancistas de produção comparativa-
mais consumada epopeia da literatura latina. mente mais modesta o inacabado introduziu o seu charme discre-
Séculos depois, a história havia de repetir-se, como, aliás, é seu to. Pense-se nos romances Sanditon, de Jane Austen, ou em The
apanágio. Sucedeu com Kafka, num dos mais afamados episódios Mystery of Edwin Drood, de Charles Dickens – qualquer um deles
de impulso autodestruidor de uma obra literária. A mão executora não terminado pelo seu autor.
do amigo Max Brod foi, felizmente para nós, desobediente. Mas tam- É possível, no entanto, que o epítome do inacabamento na ficção
bém infelizmente, porque com tudo de bom que essa mão amiga da modernidade seja composto por esses dois momentos tão dis-
permitiu, outro tanto de nefasto se acumulou. Pense-se, por exem- tintos, mas tão próximos na grandeza e na inconclusão: Bouvard
plo, num caso como O Desaparecido. De tal forma são as coisas, que e Pécuchet, de Flaubert, e O Homem sem Qualidades, de Musil
é concebível que o título pouco diga, mesmo a leitores acostumados – «O grande-escritor é o sucessor do príncipe do espírito, e assumiu
ao convívio com o grande checo de expressão alemã. Porque, ao lon- no mundo das ideias lugar que os ricos ocuparam em substituição
go de décadas, fomos conhecendo aquele romance fragmentário e dos príncipes no mundo da política» (O Homem sem Qualidades,
inconcluso, por excelência, pelo título América – designação «edito- Robert Musil, Dom Quixote). E apesar disso, estes dois projetos fic-
rial» que culmina uma ação de normalização e alisamento do que cionais funcionam também como dois polos situados em lugares
era, essencialmente abrupto e se expunha aos vendavais de cami- diametralmente opostos. O primeiro concentra a vocação da brevi-
nhos deixados em aberto. O Desaparecido deve, então, permanecer dade e de certa escassez de meios, um minimalismo quase becket-
nas nossas memórias como um dos casos exemplares do inacaba- tiano, por comparação – «Do outro lado da árvore viram outras pes-
do. A sua beleza agreste e áspera, uma condição e uma consequên- soas: uma mulher com cara de albina enxugava as glândulas
cia do seu inacabamento – «depois de contar tudo até ao fim quis ain- supurantes do pescoço. O rosto de uma rapariga quase desaparecia
da voltar uma vez mais a esse momento, mas não foi capaz, pôs o sob uns óculos azuis» (Bouvard e Pécuchet, Cotovia) –; o segundo
rosto entre as mãos e não disse nem mais uma palavra» (O Desapa- representa a expansão e a vizinhança do caos, que espreita qualquer
recido, Assírio & Alvim). empresa desta magnitude. O facto de qualquer um destes roman-
Mas os exemplos são legião. E remontam também à Idade Média ces ter ficado por terminar nada retira, uma vez mais, à expressivi-
de um Geoffrey Chaucer. Se tivermos em conta as palavras do Esta- dade das suas realizações. Projeto irrealizável, maior do que a vida,
lajadeiro, no prólogo dos Contos de Cantuária: «O caso é este, em o vastíssimo romance é um tratado universal. O romance enquan-
suma e sem rodeios: / Cada um dentre vós, por passatempo, conta- to mapa-múndi codificado da civilização ocidental.
Ou a coexistência potencial de inúmeros livros a lutarem por ser. de Fogo, porém, tal qualificativo revela-se a toda a linha insuficiente.
O Livro do Desassossego é essa centelha do inacabado, essa Na verdade, a sua força criativa, e a importância de que se reveste
impossibilidade de terminar. É impossível ter tudo para dizer e fazê- este amplo painel narrativo, tornam-no exemplar para toda uma
-lo. Richard Zenith chama ao trabalho de Bernardo Soares tradição romanesca da modernidade em Portugal. Esta capacidade
«romance estático», ou até mesmo «semirromance» (O Livro do De- de estabelecer o caminho de um romance de formação em que a
sassossego, Assírio & Alvim) – «O meu conhecimento com Vicen- descoberta de si próprio – «Não me sentia, porém, doente, em sabia
te Guedes formou-se de um modo inteiramente casual. Encontrá- se estava vivo ou morto, nem isso tinha importância. Mesmo o dizer
vamo-nos muitas vezes no mesmo restaurante retirado e barato» que eu “estava” não é exacto porque, na suspensão de ser, que era a
(Livro do Desassossego, ed. Jerónimo Pizarro, Tinta-da-china). Ape- minha, o “estar” não tinha sentido nenhum» (Sinais de Fogo, Gui-
sar de podermos lê-lo como um caleidoscópio romanesco, a dis- marães/Babel) – decorre em tão proveitosa simbiose com a arqui-
solução dos géneros, a sua irreprimível tentação da deriva, fazem tetura epocal – «Uma revolução em Espanha não era uma guerra,
vogar este «multilivro» no seio de infinitos leitos – «Quando vim pri- nem tinha alemães que entrassem assim na casa de cada um. Os es-
meiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, panhóis, porém, eram uma gente medonha, quem sabe o que fa-
um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monótona riam?» – faz esquecer o facto de ter ficado por concluir um dos maio-
da menina que nunca vi.» res romances da literatura portuguesa.
O caso de Kaos, configura uma situação claramente distinta. Sem
ter sido propriamente deixado por acabar, este romance póstumo Coda e elogio do inacabado
não beneficiou da costumada leitura crítica de Ruben A, que mor- Podemos retirar de um livro que tem o prodigioso condão de res-
reu antes de a poder levar a cabo. Sem ter ficado realmente inaca- suscitar do limbo cinco ficções de Agustina Bessa-Luís uma provei-
bado, Kaos, na verdade, não chegaria a ser revisto pelo autor. O que tosa questionação do inacabado enquanto tema de debate. Esse
equivale a dizer que não passou pelo crivo de um processo que, nele, livro, na verdade, esteve na génese oculta deste texto. Debaixo da ins-
possuía uma importância determinante, este derradeiro romance piradíssima rubrica O Elogio do Inacabado está reunido um con-
que, seguia um dos veios prevalecentes na ficção do autor de Ca- junto de romances inconclusos da grande mestra da ficção portu-
ranguejo: a problematização do tempo e a questionação da História guesa das últimas décadas do século passado e, justamente, deste.
portuguesa através de processos sabiamente sabotadores – «As no- Num estudo de inusual vigor e concisão, Silvina Rodrigues Lopes
tícias de primeira página no dia seguinte já pareciam escritas há mi- salienta a importância do inacabado enquanto elemento contraria-
lhões de anos tal a distância da última e mais sensacional de todas» dor de uma ilusão. A ilusão de uma totalidade, de um poder que li-
(Kaos, Assírio & Alvim). mita, mas também fortifica os seres, dando-lhes o suplemento ener-
Cartas a Sandra, de Vergílio Ferreira, representa um momento gético de um teto definidor e normativo. Ora, estes romances
a todos os títulos excecional da nossa literatura. No último roman- inacabados de Agustina, como a Bíblia, enquanto «livro sem fim»
ce que escreveu, o autor de Signo Sinal efabula as cartas que Paulo (Silvina Rodrigues Lopes, Elogio do Inacabado, Fundação Gulben-
envia à mulher depois de esta morrer. Tanto a personagem como o kian), podem concretizar uma espécie de apologia dos «espaços em
autor do livro morreram antes de concretizar este projeto narrati- branco». Este branco é que nos guia. É ele que representa o vazio
vo, que cruzava os caminhos da epistolografia e da ficção. E que, no com que preenchemos todas as possibilidades de continuação e en-
fim, acabou por entrelaçar o percurso biográfico de Vergílio Ferreira cerramento. O ilimitado do que não se chegou a pronunciar. Do ina-
e de Paulo, o narrador Vergílio recuperara de Para sempre – «há cabado, surge-nos o eterno. Ou, menos ambiciosamente, aquilo que,
o meu desejo de te fixar na palavra escrita que te diz, para ficares em Bouvard e Pécuchet, constitui a descrição de uma inusitada
aí com o milagre que puder» (Cartas a Sandra, Quetzal). esperança mascarada por um niilismo soturno: «Ao fundo de um
Todavia, cabe a uma obra de génese anterior a glória de ser o gran- horizonte todos os dias mais longínquo distinguiam coisas simul-
de romance inacabado do cânone português. No caso de Sinais taneamente confusas e maravilhosas.»
ma das mais pesadas e duradouras heranças de António convicto do nacional-fascismo, apoiante incondicional de Salazar
das de automóveis e a boémia da Foz e da Póvoa. O gosto pelo cine- tativa de imitar o mestre alemão Walther Ruttmann, e o seu Berlim,
ma foi -lhe incutido pelos frades do colégio jesuíta de La Guardia, Sinfonia de Uma Grande Cidade, e decide apostar nele e apresentá-
na Galiza, onde o pai o matriculou. O riquíssimo engenheiro Fran- -lo a António Ferro como descoberta sua. É assim que Manoel de
cisco José Oliveira, primeiro fabricante de lâmpadas em Portugal, Oliveira surge em público, pela primeira vez, na sessão de abertura
confiava mais nos jesuítas do que nos professores das instituições do Congresso da Crítica, no Salão Central do Palácio Foz, em Lisboa.
republicanas e a eles entregou a tarefa de formação do filho. Fê-lo A sessão exibe não só Douro, Faina Fluvial mas, também, A Se-
quando o pequeno Manoel tinha ainda só 10 anos, logo que concluiu vera, de Leitão de Barros, o primeiro filme sonoro português, que
a instrução primária no Colégio Universal do Porto; expulso de Por- conta a história da prostituta cigana Maria Severa Onofriana das
tugal pelos republicanos. Os jesuítas, a quem a generalidade da aris- tabernas da Rua do Capelão, por quem se apaixonou o conde do
tocracia nortenha confiava a educação dos filhos, davam grande Vimioso e que morreu tuberculosa aos 26 anos. Significactiva-
atenção às artes. Tocado pelo fascínio do cinema, o rapaz inscreve - mente, a empresa distribuidora do documentário de Oliveira é a So-
-se mais tarde, aos 19 anos, na escola de actores criada por Rino ciedade Portuguesa de Actualidades Cinematográficas, de António
Lupo no Porto, que o irmão já frequenta, e estreia -se com ele no fil- Lopes Ribeiro, que assume por inteiro a sua aposta.
me mudo Fátima Milagrosa, do director da escola. Desempenha na Mudo, apesar de ter sido rodado já em tempo de cinema sonoro,
fita – a primeira a fomentar a crença nas supostas aparições da Cova o filme de Manoel de Oliveira, que mostra a azáfama da zona ribei-
da Iria – um papel secundário, ao lado de Beatriz Costa, corista rinha do Porto, é recebido com pateada pela generalidade dos por-
na vida real e ali dançarina de tango. tugueses presentes na sala, que reagem mal às cenas paradas e aos
Quando começa a rodar Douro, Faina Fluvial, que apesar de du- planos longos. Mas Pirandello gosta, talvez pelas mesmas razões,
rar apenas 21 minutos leva dois anos a fazer, Oliveira tem 20 anos. estéticas e políticas, que levaram António Ferro e Lopes Ribeiro a
É ajudado na aventura pelo seu amigo António Mendes, amador da seleccioná -lo. E a generalidade dos outros congressistas também
fotografia. E o inesperado acontece: numa ida aos estúdios da Ulys- gosta, ou finge gostar. É o primeiro sinal do que virá a acontecer ao
sea, António Lopes Ribeiro vê imagens soltas da fita, ainda em fase longo de toda a carreira de Oliveira: a rejeição dos seus concidadãos
de montagem, e gosta. Conversando com o rapaz, confirma a sua ten- e os aplausos dos estrangeiros.
tátua de Afonso de Albuquerque, de 1901. A operação mobiliza -Nação mais antigo da Europa e, bem assim, mais autenticamente
a tempo inteiro, ao longo de 11 meses, 5000 operários, 1000 estuca- europeu do que a Alemanha e a Itália. Tentando inculcar a ideia de
dores, 123 serventes de pedreiro, 15 engenheiros e 12 arquitectos, que haveria uma linha de sucessão entre D. Afonso Henriques
a que se juntam 43 pintores e 19 escultores. e Salazar, colocam-se em destaque entre ambos, como nacionalis-
Para realizar a obra, fazem-se expropriações de terrenos, desa- tas emblemáticos, D. Afonso III, Nuno Álvares Pereira, o infante
lojam-se pessoas e deitam-se abaixo edifícios. O próprio traçado da D. Henrique, Camões, D. João IV e o marquês de Pombal. E Ferro
linha férrea Lisboa-Cascais é alterado na Avenida da Índia. E, para usa o catálogo oficial para lembrar que «no momento em que as
que a envolvente não estrague tudo, procede-se à urbanização da fronteiras caem como castelos de cartas», ao capricho das ambi-
encosta do Restelo, onde emergem moradias apalaçadas com jar- ções, Portugal é uma nação pacífica e imutável através dos séculos.
dim privativo. Antes e depois da exposição, Duarte Pacheco, fasci- Os pretos da Guiné são os primeiros a chegar, oferecendo aos lis-
nado com a arquitectura nazi, desencadeia um impressionante boetas, no momento da atracagem do navio no cais do Jardim
conjunto de obras públicas que alteram profundamente a malha do Tabaco, uma batucada monumental.
urbana da zona ocidental de Lisboa. O primeiro pacote, dado por Pouco depois da inauguração, Ferro consegue um dos seus maio-
concluído em 1940, engloba a construção da Casa da Moeda, o via- res sucessos de propaganda, no plano internacional, ao convencer
duto que atravessa o vale de Alcântara e a gare marítima junto à foz uma equipa de reportagem da Life, que integrava o famoso fotógra-
do Tejo, o Estádio Nacional (e a auto-estrada Jamor-Lisboa) e a fo Bernard Hoffman, a realizar no País um trabalho que ocupou
marginal Algés-São João do Estoril; a remodelação do Palácio nove páginas da revista. O título não podia ser mais simpático – «Por-
de São Bento e o restauro do Palácio de Queluz e do Teatro de São tugal: The war has made it Europe’s Front Door» –, encarregan-
Carlos; e, ainda, a ampliação do Museu Nacional de Arte Antiga, do-se a minuciosa descrição de demonstrar como o regime tinha
a demarcação do Parque Florestal de Monsanto e o início da cons- sido benéfico para Portugal: «The dictator has built the nation.»
trução do Hospital de Santa Maria. Para se poder construir a Praça do Império, que se torna desde
Assumindo como sua a herança dos Descobrimentos, o regime logo uma das maiores da Europa, tem de se destruir uma parte do
exibe a grandeza do seu império colonial, mostrando que «civi- tecido urbano de Belém. A Praça Afonso de Albuquerque é também
lizou» as primitivas populações africanas, possuindo o Estado- remodelada e dotada de quatro estátuas de figuras femininas mito-
lógicas, da autoria de Barata Feyo; e em frente da Praça do Império grupo de cinco elementos. Há serões de mornas na Cervejaria
é erguido o monumento ao infante D. Henrique. Indiana e espectáculos de batuque africano. No Café dos Pretos,
Um dos grandes atractivos da exposição de Belém é a nau Portu- os criados apresentam-se também de tanga, para animar as se-
gal, réplica das antigas caravelas dos Descobrimentos construída nos nhoras. O Teatro do Povo associa-se à festa, instalando-se em Belém,
Estaleiros Mónica, da Gafanha da Nazaré, especialistas em constru- para apresentar ao longo de duas semanas O Auto da Tentação,
ção naval em madeira. O projecto, idealizado por Leitão de Barros, foi de Augusto Santa-Rita e Luís de Oliveira Guimarães.
desenhado pelo arquitecto Raul Lino, tendo Martins Barata estuda- Regressa nesta altura em força o cinema-panfleto, com o filme
do a arqueologia da reconstituição e o oficial de Marinha Quirino Feitiço do Império. O realizador é, obviamente, António Lopes Ri-
da Fonseca feito os cálculos. O lançamento à água na Ria de Aveiro, beiro. Convidado pelo ministro das Colónias, Francisco Vieira Ma-
a 7 de Junho de 1940, foi um desastre. Desviada da trajectória pelo chado, para dirigir a Missão Cinegráfica que filmou exaustivamen-
vento, a caravela bateu com a quina no fundo e tombou, perante a in- te os territórios africanos, ele retribuiu a gentileza com a realização
crédula multidão apinhada no cais. Mestre Bolais Mónica, o patrão desta longa-metragem. A viagem durou nove meses – de Fevereiro
dos estaleiros, desconfiado da qualidade do projecto, tinha previsto a a Outubro de 1938 – e fez escala em Cabo Verde, Guiné, São Tomé
tragédia, mas não lhe deram ouvidos. Evitou a tempo que o bispo de e Príncipe, Angola e Moçambique. O dramaturgo Carlos Selvagem,
Aveiro seguisse a bordo, o que lhe podia ter custado a vida. Posta que integrava a equipa, escreveu os argumentos de vários docu-
de novo a flutuar, com o auxílio de guindastes e mergulhadores, ela mentários de propaganda, que foram obrigatoriamente exibidos
ali está agora, junto à Torre de Belém, como se nada se tivesse pas- nas salas de cinema.
sado. Destinada inicialmente a servir de expositor itinerante das O Feitiço do Império é generosamente financiado pela Agência-
grandezas nacionais, aportando a portos estrangeiros, a nau Portugal -Geral das Colónias, dirigida pelo jornalista Júlio Cayolla, aliada per-
acabou como barcaça de transporte de mercadorias. manente do Secretariado da Propaganda Nacional. A primeira ini-
O cortejo histórico que percorre o recinto a 30 de Junho, encena- ciativa conjunta foi a edição da revista O Mundo Português,
do e dirigido por Leitão de Barros, abre com a passada imponente associada à Exposição Colonial do Porto de 1934. A publicação des-
de um elefante asiático, emprestado pelo Jardim Zoológico de Lis- tinava-se a fornecer ali aos apoiantes do regime argumentos favo-
boa, à frente do Carro Triunfal da Colonização. Os visitantes são con- ráveis à ideia de que os Portugueses, ao defenderem o Império Co-
vidados a percorrer a vasta área da Torre de Belém ao Padrão dos lonial, estavam a cumprir uma missão civilizadora. Além dos textos
Descobrimentos sobre um passadiço construído ao longo do Tejo. doutrinários, publica notícias sobre arte e literatura africanas e re-
A Praça do Império é projectada por Cottinelli Telmo, sob a orien- ferências elogiosas aos intelectuais negros e mulatos assimilados.
tação de Duarte Pacheco. E são dele também a Fonte Monumental, Na área específica do cinema, a Agência co-financia documentários
onde brilham os brasões coloniais, e a Porta da Fundação. A fonte lu- sobre as viagens presidenciais aos territórios coloniais, centrados
minosa circular, em que participa também o arquitecto Carlos Bui- no acolhimento entusiástico, devidamente encenado, das popula-
gas, marca a transição entre a zona cultural e a zona monumental. ções indígenas aos visitantes.
A exposição está estruturada em três grandes secções – História, O Feitiço tem um elenco de luxo, onde brilham como estrelas Al-
Etnografia e Mundo Colonial –, com os focos a incidirem sobre a ves da Cunha, Estêvão Amarante, António Silva e o mano Ribeiri-
Fundação da Nacionalidade, os Descobrimentos, a Colonização e nho. O argumento é uma história da carochinha, da autoria do jovem
a Diáspora.NoRecintodasAldeiasexibem-seusosecostumesemos- jornalista portuense Joaquim Mota Júnior, seleccionada no concur-
tra -se o artesanato, símbolos do Portugal pobre mas feliz. As habi- so aberto para esse efeito pela Agência-Geral das Colónias. Narra a
tações aí montadas são réplicas irreais da Casa Portuguesa ideali- fulminante paixão pelos «territórios ultramarinos» do filho de um
zada por Raul Lino. E os sorridentes figurantes, de dentes muito emigrante português em Boston. Prestes a naturalizar-se america-
brancos, contratados para fazerem de camponeses, vestem trajes no pelo casamento com uma herdeira rica, Luís Morais troca tudo
típicos, carregam muito ouro ao pescoço e exibem belos penteados. pela África colonial, ao visitar a Guiné, São Tomé, Angola e Moçam-
Na área ultramarina, junto ao Jardim Colonial, exibem-se fa- bique. A visita é -lhe sugerida pelo pai, a pretexto de um safari.
mílias completas de negros e mulatos de tanga, em redor das suas O jovem recebe a poção mágica no beijo de Mariazinha, filha de
tradicionais palhotas. Cópias dos padrões deixados pelos navega- um cantineiro do mato, que vive rodeada de indígenas docemente
dores assinalam as parcelas colonizadas, que fazem as delícias dos infantis, que adoram servi-la. A construção do filme é tão primária
colonos, expressamente convidados pela organização. O famo- e tão descarada no plano da propaganda que nela cabe até a visita
so B. Leza, estrela da música cabo-verdiana, surge à frente de um de Carmona e o fantasma de Camões a esvoaçar com Os Lusíadas
NÃO ERA UMA LAGOSTA QUALQUER. ERA UM CRUSTÁCEO desses mesmos amigos meus debicavam desdenhosamente a co-
GIGANTE, de um tamanho descomunal, que se esforçava por ca- mida no restaurante de Gordon Ramsay, deixando a maior parte no
ber no meu prato de porcelana. À minha frente, a mulher de um di- prato por puro exibicionismo. Ou envolviam-se em conversas sobre
plomata britânico sorria nervosamente, partilhando a minha an- o seu mais recente fim de semana prolongado em Cap Ferrat.
gústia quanto ao modo de enfrentar aquele monstro morto. Foi assim que começou o meu fascínio pessoal pelos super-ricos
Estávamos em 1992 e tratou-se do meu primeiro compromisso so- deste mundo, os seus estilos de vida mas, sobretudo, a sua psicolo-
cial com um oligarca russo. Vladimir Gusinsky e a sua mulher, gia. Comecemos pelo que é mais importante: temos de confessar
Lena, tinham convidado um pequeno grupo para jantar no seu que estamos obcecados com os super-ricos. Invejamos e detestamos
apartamento de Moscovo, a pouca distância da maior estátua de Le- o modo como vivem. Dizemos que odiamos o que fizeram à socie-
nine da cidade, a da Praça de Outubro. Os criados de laço pairavam dade, mas adoramos ler coisas sobre eles nas revistas cor de rosa
à nossa volta com uma cortesia excessiva enchendo constantemen- e acompanhar o seu êxito.
te os nossos copos com Chablis Premier Cru. Como é que essas pessoas tiveram êxito – se «êxito» é o termo ade-
A Rússia estava a mudar perante os meus olhos. Uns quantos, quado para a apropriação súbita de riqueza? Porque foram tão ba-
poucos, estavam a ficar mais ricos do que alguma vez haviam so- fejadas? São mais inteligentes, mais determinadas ou têm apenas
nhado. Apenas um ou dois anos antes, os papéis estavam invertidos. mais sorte do que nós? A safra atual de ricos é diferente dos que exis-
Embora o melhor que pudesse oferecer aos meus convidados fosse tiram antes? As pessoas a que se atribuem as culpas da crise eco-
uma lata de Heineken, comprada numa loja só para estrangeiros nómica e de ampliarem a desigualdade continuam a viver nos seus
onde se pagava com divisas fortes, eu sabia que, como membro de mundos paralelos, a recolher as gratificações, a viajar nos seus jatos
um pequeno grupo de estrangeiros ocidentais que viviam bem, era particulares para as suas ilhas privadas, enquanto distribuem uma
alvo de inveja. Em meados dessa década, já de novo em Londres, as- ou outra migalha conhecida como «filantropia». Nesta segunda dé-
sisti à invasão gradual da primeira geração dos novos russos. Alguns cada do terceiro milénio depois de Cristo pensamos que estamos
a viver num período único em termos de divisão e desigualdade. que pensam como eles, enfrentando-se nos mesmos leilões, confra-
Mas estaremos? Decidi investigar, revolver o passado – dois mil ternizando nos iates uns dos outros. Só se comparam entre si, o que
anos, na verdade – à procura de respostas. por vezes conduz a que se sintam insatisfeitos com o que têm, à cren-
Começando pela antiga Roma, passando para a conquista nor- ça de que não são suficientemente ricos ou poderosos. Retribuem ao
manda, o reino do Mali, os banqueiros florentinos e os grandes co- Estado, sob a forma de impostos, o mínimo que conseguem pagar
merciantes europeus de matérias-primas, esta história termina com sem serem apanhados. Cada um reforça as certezas do outro, con-
as oligarquias da Rússia e China modernas e as elites de Silicon Val- vencidos de que o facto de terem adquirido a riqueza, e de a gastarem
ley e Wall Street. Desde a Antiguidade até aos nossos dias, dos pe- em obras de caridade, lhes granjeou um lugar no vértice da tomada
ríodos de estabilidade aos de excesso de confiança e decadência, de decisões mundial e supremacia moral. Lloyd Blankfein, o presi-
os ricos têm mais em comum do que nos apercebemos. Por cada dente e diretor-executivo da Goldman Sachs, falou em nome de mui-
Roman Abramovich, Bill Gates e xeque Mohammed há um Alfred tos dos membros deste grupo quando fez o célebre comentário sar-
Krupp e um Andrew Carnegie. Os super-ricos do século XXI cástico de que estava a «fazer o trabalho de Deus».
não são uma singularidade da história e podem estar gratos aos seus Na sua maioria, são compulsivamente competitivos – a ganhar
antecessores por lhes darem lições. dinheiro e a gastá-lo. A primeira fase após a aquisição da riqueza é
Como é que as pessoas se tornam ricas? Fazem-no por meios ho- 0a ostentação. A opulência tem sido manifestada de formas dife-
nestos e desonestos, por empreendedorismo, apropriação e heran- rentes ao longo dos tempos, mas a psicologia que lhes está subja-
ça. Fazem mercados e manipulam-nos. Derrotam a concorrência ou cente raramente mudou. Basta substituir os escravos, concubinas,
eliminam-na. Obtêm ou compram influência no seio da liderança ouro e castelos da Antiguidade e Idade Média pelos aviões particu-
política e das elites culturais e sociais. Durante mais de um século, a lares, ilhas para passar férias e clubes de beisebol e futebol da Ida-
política americana não fez segredo da ligação; na verdade, festeja-a. de Contemporânea. Para alguns, isso é suficiente. Fogem das luzes
Quanto mais sumptuosa for a angariação de fundos, mais os políti- da ribalta, escondendo-se por detrás dos muros altos das suas man-
cos se sentem obrigados a comparecer. Um exemplo dessa realida- sões, entregando-se, juntamente com os seus pequenos séquitos
de é o Alfred E. Smith Memorial Dinner, um jantar de gala no hotel de amigos e parasitas, a um luxo discreto.
The Waldorf Astoria de Nova Iorque, em memória do primeiro can- Numa fase precoce, intervêm as leis da gravidade. Quanto mais
didato católico à presidência do país. Ninguém que aspire à Casa rico se é, mais rico se fica. Do mesmo modo, quanto mais pobre se
Branca sonharia sequer não estar presente. Em 2000, George W. é, mais fácil é cair ainda mais. Os consultores de investimentos di-
Bush só gracejou em parte ao afirmar: «Este é um grupo impressio- zem que a parte difícil é ganhar os primeiros 10 milhões. A partir
nante – os que têm e os que têm ainda mais. Há algumas pessoas que do momento em que atingir aquele marco, os regimes fiscais be-
vos chamam elites; eu chamo-vos a minha base de apoio.» O co- névolos, os advogados e os reguladores farão o resto por si. Os me-
mentário teve o mérito da honestidade; e podia ser aplicado a inú- lhores cérebros vão sempre atrás do dinheiro e, por isso, os regu-
meros líderes mundiais em muitos períodos. Esta é a topografia dos ladores que ganham uma fração dos seus salários não são
nómadas mundiais – convivem com um grupo reduzido de pessoas adversários à altura. Os plutocratas exortam o Estado a deixá-los
em paz mas, quando as coisas se tornam difíceis, o Estado é inva- Todos aqueles que são alguém estão presentes em Davos, ou nas si-
riavelmente o seu melhor amigo, resgatando bancos e outras ins- gilosas conferências de Bilderberg, ou num casamento da sociedade
tituições consideradas «demasiado grandes para falirem». Os lu- no meio rural inglês, de preferência trazendo consigo um dos mem-
cros são privatizados, as dívidas são socializadas. Como afirma o bros mais novos da família real. As galerias de arte e as obras de ca-
economista americano Joseph Stiglitz: «Grande parte da desigual- ridade em breve terão delíquios perante a magnificência dos ricos.
dade dos nossos dias deve-se à manipulação do sistema financeiro, O êxito social está praticamente garantido. A nova elite funde-se com
tornada possível por alterações das regras que foram compradas e a instalada. O dinheiro velho foi dinheiro novo, outrora.
pagas pela própria indústria financeira – um dos melhores inves- Tendo todas as alavancas à sua disposição, os poucos que acabam
timentos de sempre.» na cadeia ou são postos de parte podem ser considerados falhanços
Hoje em dia, tal como noutros tempos, os símbolos de estatuto so- espetaculares. Infringir a lei ou atrair a animosidade das elites do
cial não chegam. Uma vez saciados pela riqueza, querem mais. Al- poder que se reforçam mutuamente exige algum trabalho. Pelo me-
guns (mas não muitos) procuram cargos políticos. Poderíamos pen- nos é o que acontece em vida. Gerir a reputação depois da morte,
sar em Silvio Berlusconi, que seguiu as pegadas de Marco Licínio o legado histórico, é uma tarefa muito mais complicada mas, com
Crasso. Um caminho mais seguro e mais trilhado é o de empresá- algum planeamento prévio, também é exequível, geralmente.
rio/banqueiro que proporciona influência de bastidores – não em Que pretendo expressar com «os ricos»? A palavra deriva da mes-
segredo, mas também não totalmente à vista de todos. Pensem em ma raiz indo-europeia que produziu a palavra celta rix, a latina rex
Cosme de Médicis; pensem em grande parte das pessoas que ad- e a sânscrita rajah, que significa «rei». Em muitas culturas, ao longo
quiriram poder e notoriedade pública nos tempos modernos, dos dos tempos, o conceito de riqueza esteve associado a realeza. As es-
banqueiros aos magnatas da internet, passando pelos empresários. truturas formais da sociedade podem variar entre eras e culturas,
Um lugar numa comissão do Governo ou numa instituição cultu- mas este vínculo entre dinheiro e posição não variou. Ser rico é um
ral proporcionam-lhes a respeitabilidade por que anseiam, mas termo comparativo e muito poucos atingem esse estatuto. Em diver-
também uma presunção de reconhecimento pelo seu trabalho. sos períodos da História pertenceram à corte, à classe mercantil ou à
A riqueza raramente compra paz de espírito. Os super-ricos con- classe dos profissionais liberais do século XX. As suas vidas são mais
somem-se com o que acontece a seguir. Temem pelo seu patrimó- confortáveis do que as da maioria, mas tendem a estar totalmente
nio e pelos seus filhos. O dinheiro que fizeram ficará seguro nas suas assimiladas na sociedade. As pessoas que foco no meu estudo dos
mãos? A posição que adquiriram na sociedade dissipar-se-á? Farão últimos dois milénios são aquelas que, através da sua acumulação
estátuas com a sua imagem? de riqueza e estilo de vida, se separaram das outras. São, para utili-
Querem ser lembrados por algo mais do que terem feito fortuna. zar um termo moderno e que está na moda, os super-ricos.
O mais importante para eles é a reputação. Os ricos contempo- Quase todos os países do mundo têm uma lista dos mais ricos.
râneos empregam um verdadeiro exército para cuidar da sua mar- Alguns países têm várias. Algumas listas são internacionais. Pro-
ca, para eliminarem factos inconvenientes sobre o seu passado. As vocam reações contraditórias no público em geral e entre os que
fronteiras entre atividade predatória e produtiva, entre o que é juri- nelas figuram. Mas todas elas – desde as mais conhecidas, como a
dicamente corrupto e o moralmente corrupto, são amiúde difíceis de de The Sunday Times, no Reino Unido, à da Forbes, nos Estados
definir. São contratados advogados para porem ações de difamação; Unidos e ao Hurun Report, na China – suscitam fascínio. A Bloom-
e profissionais de relações públicas para manipularem a mensagem berg tem uma lista diária, online, dos duzentos mais ricos do mun-
transmitida. As relações públicas de crise são um negócio em expan- do. As alterações são acompanhadas do mesmo modo que as cota-
são, ajudando a desviar as atenções das extravagâncias de filhos difí- ções das ações. Algumas pessoas ficam encantadas por figurar nas
ceis e caçadores de tesouros. Académicos e amigos nos meios de co- listas e ofendem-se se descerem um lugar. Outras pagam honorá-
municação social difundem o evangelho. O estatuto de «líder rios avultados a consultores para as manterem longe dos olhares do
inovador» tem um preço. Quanto mais escuro foi o caminho tomado público e consideram um sinal de falhanço qualquer referência à
para chegar à riqueza – desde a utilização de cartéis e pressão dis- sua riqueza. Os tímidos e reservados, há que dizê-lo, constituem
creta à violência pura e simples – mais determinado estará o bilio- uma minoria cada vez menor. Hoje em dia é muito mais difícil levar
nárioem ser um pilar da nova ordem, emulando as maneiras e os es- uma vida de fortuna anónima, mas também porque é que uma pes-
tilos de vida dos que se tornaram ricos antes dele. Em tempos antigos, soa haveria de prescindir dos benefícios que a acompanham?
era importante financiar um exército. Na Europa medieval, o papa- É relativamente fácil fazer uma classificação dentro de um perío-
do era o caminho fundamental ascendente na escala social. E agora? do temporal específico – pelo menos aquela parte do rendimento ou
ativos que é conhecida e declarada. É muito mais difícil fazer a com- Este livro não é uma lista numérica de ricos do passado ou dos
paração entre gerações. Já é suficientemente difícil atribuir um valor nossos dias. Muitos, mas não todos, dos que estudei contaram-se
a uma moeda com vários séculos. É importante considerar não só os entre os mais ricos do seu tempo, mas não foram necessariamente
números, mas também aquilo que o dinheiro podia comprar tanto o número um. Cada um deles conta uma história diferente sobre
em termos de bens materiais como de poder e influência, algo que é como se faz dinheiro, como se gasta e como as reputações são fabri-
mais difícil enumerar. A maior parte das listas diz respeito à riqueza cadas e moldadas. Também lançam luz sobre as sociedades da sua
absoluta, por oposição à riqueza relativa – dito de outro modo, o po- época e as suas reações à riqueza. O relato está dividido em duas
der de compra de um indivíduo dentro dos países e a nível mundial. partes, um «outrora» maior e um «agora» mais pequeno. Cada ca-
pítulo histórico conta uma história que pode ser lida autonoma- mundial do seu valor. O reinado de Musa conjugou a ostentação da
mente, identificando temas que ligam os super-ricos desse momento riqueza com manifestações públicas de piedade. Riqueza e poder
aos de séculos subsequentes e, é claro, ao tempo presente. Alguns estavam inextricavelmente ligados. Mas, nos 200 anos subsequentes
capítulos centram-se num único indivíduo; outros combinam figu- à sua morte, o seu reino foi destruído, o seu nome apagado da His-
ras do seu próprio tempo, ou quase contemporâneas, ou fazem tória por europeus que não podiam conceber que um negro africa-
comparações com as de outro milénio. no tivesse reinado sobre tais tesouros.
Os capítulos contemporâneos foram concebidos para serem dife- Poucos recordam Cosme de Médicis pelas suas práticas bancárias
rentes. Centram-se em grupos: os xeques, os oligarcas e os génios tec- pouco éticas. Em vez disso, o seu lugar na História foi garantido pelo
nológicos de Silicon Valley, conhecidos também como geeks. No final, patrocínio de grandes artistas e escritores e pela construção de igre-
surgem os banqueiros, os criadores de fundos de cobertura e os gran- jas gloriosas na Florença do início do Renascimento. A prática de
des investidores privados, os vilões de opereta acusados de terem pro- emprestar dinheiro, a usura, é condenada pela Bíblia. Mas Cosme
vocado o crash financeiro de 2007-08 mas que ainda continuam de Médicis e os diversos papas que patrocinou fizeram um acordo
a receber dividendos. Quando os leitores chegarem aos protago- para os tirar a todos de dificuldades. O banco e o Vaticano precisa-
nistas contemporâneos, deverão aperceber-se do aparecimento vam um do outro e ambos recolhiam os lucros, tal como bancos
de um padrão – nada do que aconteceu ao longo destes turbulentos e políticos fizeram no século XXI. […]
últimos anos é único da sua época. Quando se trata dos ricos, a His- O conquistador Francisco Pizarro foi um exemplo de self-made
tória tem o hábito de se repetir. man, filho ilegítimo de um coronel de infantaria e de uma criada,
Começo a minha viagem no primeiro século antes de Cristo. Mar- que conseguiu uma grande fortuna, mas não uma posição social,
co Licínio Crasso fez dinheiro de uma forma que deixaria orgulho- mediante a aquisição de terras e recursos no Novo Mundo. […]
so o agente imobiliário mais desonesto. Com a ajuda dos seus escra- O monopólio de poder e riqueza de que gozavam Luís XIV de
vos, esperava que os edifícios se incendiassem, reconstruía-os e França e Akhenaton, o faraó do antigo Egipto, era tal que construí-
embolsava um lucro generoso. O seu êxito na especulação imobiliá- ram palácios e cidades para veneração do seu reinado. No caso do
ria (pensem nas bolhas imobiliárias, pensem em execução de hipo- faraó, criou até a sua própria religião. A supremacia destes Reis Sóis
tecas) foi tal, que Crasso se tornou o homem mais rico da República semidivinos foi total durante a vida, mas os seus legados desfizeram-
Romana. Reinvestiu os seus lucros para comprar poder. Tornou-se -se de imediato após a morte. Ambos proporcionam inspiração
um pilar da sociedade, fazendo uma aliança com Pompeu, o Gran- à história dos xeques do Golfo nos nossos dias.
de, e «descobrindo» Júlio César, antes de morrer tragicamente. A Companhia Holandesa das Índias Orientais foi o primeiro
Um exemplo mais amplo de açambarcamento de terras aconte- exemplo de capitalismo de acionistas, com os pequenos investido-
ceu mil anos depois. Um dos ingleses mais ricos de todos os tempos res da metrópole a gozarem dos despojos do comércio lucrativo – o
foi Alan Rufus, conhecido também como Alain Le Roux, um ho- equivalente, no século XVII, a uma Oferta Pública Inicial bem-
mem grandemente ignorado pela História. Como um dos sequazes -sucedida dos nossos dias. Os diretores da companhia achavam as
de maior confiança de Guilherme, o Conquistador, participou na ba- técnicas do seu governador-geral, Jan Pieterszoon Coen, um pouco
talha de Hastings e na «devastação do Norte» – o massacre de gran- brutais e vulgares de mais para o seu gosto, mas o gozo da riqueza
de parte da população do Nordeste de Inglaterra. O seu esforço foi que esses jovens aventureiros proporcionavam excedeu quaisquer
recompensado com terras que se estendiam de cima a baixo do país. preocupações éticas que pudessem ter tido fugazmente. Pouco mais
A história de Rufus fala-nos da substituição de uma elite por outra de cem anos depois, Robert Clive transformou a Companhia das
e das recompensas disponíveis para a lealdade. A utilização siste- Índias Orientais numa força dominante no comércio mundial,
mática de violência e limpeza étnica, em que Rufus desempenhou consagrando o domínio britânico no subcontinente durante dois
um papel fundamental, redesenhou o mapa de Inglaterra, criando séculos. A predileção de Clive pelos adornos da riqueza e sua recusa
toda uma estrutura social, política e económica que sobreviveu até em mostrar contrição, no Parlamento, quando os acontecimentos
aos nossos dias. se viraram contra ele, foram a sua perda. Os paralelismos com
No que se refere a um único acontecimento que projetou riqueza, os banqueiros do século XXI são inquietantes.
nada pode bater a hajj do Mansa Musa. O chefe do Império Maliano Alfred Krupp […] foi a quinta-essência do empresário, transfor-
levou consigo milhares de soldados de infantaria e escravos, luxuo- mando uma firma familiar numa companhia mundial, no auge da
samente vestidos, na sua grande peregrinação a Meca, em 1324. Dis- Revolução Industrial. A sua siderurgia negociava com todos – rus-
tribuiu tanto ouro durante o caminho que provocou uma quebra sos, britânicos, franceses –, mas quando precisou de reforçar as suas
façanha e tanto. A arrogância e cupidez que conduziram ao crash à altura de Cosme de Médicis, pelo brilhantismo da sua lavagem
financeiro mundial foram substituídas rapidamente pela autoco- de reputação.
miseração. Embora alguns tenham sido obrigados a demitir-se, Na análise de dinheiro e poder, não há escassez de candidatos en-
sendo o golpe amortecido pela extraordinária riqueza que acumu- tre os imperadores e reis super-ricos. No que respeita à brutalidade
laram, poucos parecem ter sido abençoados com o autoconheci- pura, Gengiscão é difícil de ultrapassar. Entre os antigos, Crasso é
mento necessário para explicarem os seus atos. E ainda assim pode confundido por vezes com Creso, o rei da Lídia e inventor das moe-
ser que nem tudo esteja perdido. Inúmeras figuras do mundo da das no século VI a. C., donde provém a expressão «rico como Creso».
banca regressaram como assessores de Presidentes e primeiros- Mas a ganância de Crasso como magnata imobiliário, político, cria-
ministros. Quanto à opinião pública, a História sugere que também dor de redes de contactos e manipulador apresenta demasiados
ela amansará à medida que as economias recuperarem e as recor- paralelismos modernos para que o seu nome possa ser ignorado.
dações se esfumarem. Independentemente do delito, os ricos cos- Não elaborei um capítulo sobre os herdeiros das empresas do sé-
tumam conseguir garantir a reabilitação… se se dedicarem a isso culo XX, como Henry Ford ou os outros grandes fabricantes de au-
com afinco suficiente. tomóveis, ou Richard Branson que ganhou os seus primeiros mil
Os exemplos que escolhi podem ser lidos independentemente milhões na aviação. […] Poderia ter havido um lugar para o magna-
como histórias isoladas, mas também são estudos de casos que ta da navegação Aristóteles Onassis, ou o magnata do petróleo que
se destinam a ligar o presente ao passado. Cada um deles repre- fundou uma das maiores galerias de arte privadas do mundo, John
senta um período e um tema – desde a apropriação dos bens e a sua Paul Getty. Também não abarquei alguns dos coloridos bilionários
utilização para autoengrandecimento até aos papéis desempe- da Grã-Bretanha do pós-guerra, como «Tiny» Rowland, Robert Max-
nhados pela religião, a arte e a filantropia na obtenção de um esta- well e Mohammed al-Fayed. Por mais coloridas e controversas que
tuto privilegiado, às noções de classe, conquista e aceitação e ain- tenham sido figuras como estas, independentemente da influência
da aos cartéis, à industrialização e ao simples furto à moda antiga. que possam ter exercido sobre alguns políticos, não penetraram em
Então, porque escolhi estes exemplos e não as muitas alternativas todos os cantos da tomada de decisões públicas do mesmo modo que
disponíveis? os banqueiros, oligarcas e gigantes da internet contemporâneos.
Os leitores podem ter a sua própria lista e sinto curiosidade em Passando para o tempo presente, podia ter tratado de futebolis-
saber quem teriam incluído e porquê. Entre as figuras históricas, tas célebres ou estrelas pop, uma categoria especial cujos contratos
dizem que o monarca mais rico foi o czar Nicolau II, da Rússia. No e acordos publicitários astronómicos são perdoados pelo público,
momento em que a dinastia Romanov foi derrubada pela Revo- tal como as suas extravagâncias desordeiras, fora de horas. Tam-
lução Russa, a riqueza da família estava estimada em 45 mil mi- bém podia ter analisado um dos principais executivos das grandes
lhões de dólares (a preços atuais). A sua riqueza era, sem dúvida, empresas retalhistas, como os irmãos Koch ou Sam Walton, tor-
considerável e vistosa, mas era mais acumulada do que projetada nado famoso pela Wal-Mart norte-americana. Os seus contributos
para um fim mais elevado. Optei, em vez dele, por Luís XIV, o Rei para a criação de riqueza – puxar os cordelinhos políticos e impor
Sol, por causa dos paralelismos com tempos antigos e contempo- custos de trabalho baixos por unidade para aumentar as margens
râneos. de lucro – são enumerados algures, nomeadamente na história da
Quanto aos banqueiros, um alemão do século XVI, Jakob Fug- Amazon. No que se refere aos investidores, George Soros aparece
ger, poderia ter constituído uma alternativa como homem abasta- de passagem, enquanto a abordagem generosa de Warren Buffett
do e filantropo medieval, que construiu o primeiro projeto de ha- à filantropia faz parte da minha análise de Bill Gates e da constitui-
bitação social. Poderia ter optado por Thomas Guy, um rico ção da sua fundação.
proprietário de ancoradouros e negociante de carvão que era um Centrei-me menos nos criadores de fundos de cobertura e mais
avarento para com os seus operários, mesmo segundo os padrões nos bancos por causa do seu papel mais visível na derrocada finan-
da Londres do século XVII e, no entanto, deixou um enorme lega- ceira. Um «criador de fundos» […] merece uma menção honrosa
do aos pobres e doentes, nomeadamente para um hospital que ain- aqui. A decisão de John Paulson de comprar seguros de incumpri-
da hoje ostenta o seu nome. Outra alternativa poderia ter sido Al- mento de contratos de crédito sobre milhares de milhões de dólares
fred Nobel, o químico sueco que, depois de ter feito fortuna com a de hipotecas de alto risco antes da queda do mercado, em 2007, trou-
invenção da dinamite, a deixou para prover de fundos os prémios xe-lhe um lucro pessoal de quase quatro mil milhões de dólares e
epónimos. No que se refere à longevidade, poderia ter optado pelos transformou-o de um gestor financeiro obscuro numa lenda do
Rothschilds. Mas nenhum, em minha opinião, consegue chegar mundo da finança. Achava enervante a fiscalização, sobretudo quan-
do tudo correu mal (para alguns) durante o crash. Paulson melin- os super-ricos e a sua microeconomia lucrativa. Se não forem Nova
drou-se quando se referiu que o seu rendimento anual era equiva- Iorque, Londres ou Singapura, porque não Mumbai, Rio de Janei-
lente aos ordenados de 80 mil enfermeiros. «A maior parte das ju- ro ou Dubai – ou a Cidade do México, já que se fala nisso, que está
risdições gostaria de ter empresas bem-sucedidas, como a nossa, lá a avançar rapidamente para se tornar um local onde os super-
instaladas. Decidimos ficar aqui e depois, sabe, gritam-nos. Tenho -ricos são bem-vindos?
a certeza de que se quiséssemos ir para Singapura, estendiam a pas- […] Para muitos, nos países ocidentais, que sofreram durante a re-
sadeira vermelha para nos receber», comentou. Esse ponto é fun- cessão recente, a hostilidade em relação aos super-ricos está liga-
damental. Quase todos os Governos estão numa corrida para atrair da a um certo snobismo ou, inclusive, racismo (como aconteceu em
relação ao Mansa Musa e o reino do Mali). Verem russos, chineses empresa de artigos de luxo, a LVMH, acabou de desistir da ideia,
ou mexicanos na boa vida é, para muitos no Ocidente, uma afron- mas apenas depois de ter ameaçado que processaria o jornal por
ta. Desafia as noções consagradas de titularidade de direitos. Um as- insultar a sua honra.
peto surpreendente deste período atual não é a existência de super- O notável nisto não é tanto os ricos procurarem domiciliar-se e
ricos, mas o facto de existirem em quase todos os países. São um às suas empresas em paraísos de impostos baixos, mas sim a crí-
fenómeno verdadeiramente global. O fosso não está a crescer en- tica em relação a eles ter sido tão ineficaz. A um salto de distância,
tre as sociedades, mas sim no seu seio. do outro lado do Canal, os Governos britânicos de todas as tonali-
Finalmente, esta narrativa não contém uma única mulher. En- dades usaram a abordagem contrária, fazendo o que podem para
tre as antigas, poderia ter escolhido Cleópatra ou uma de diversas atrair os ricos. Apresentaram dois argumentos, o dos princípios e
rainhas medievais. Poderia ter optado pela herdeira Liliane Bet- o pragmático – a criação de riqueza é uma coisa boa (independen-
tencourt, famosa pela L’Oréal; a mulher mais rica da Austrália, Gina temente do modo como tenha sido criada) e alguma liberalidade
Rinehart, uma herdeira da indústria mineira, poderia ter sido uma sob a forma de tributação é melhor do que nada. Os políticos britâ-
boa candidata. Ou poderia ter preferido a rainha Isabel II, que apa- nicos fizeram uma aposta forte nos super-ricos e no efeito do trick-
rece sempre nas listas mundiais de ricos. É triste mas necessário le-down da sua riqueza.
reconhecer que a grande maioria das mulheres que poderiam ter A abordagem francesa é excecional. O modelo anglo-saxónico foi
sido consideradas super-ricas ao longo da História adquiriu a ri- adotado no resto do mundo, onde os países competem para baixar
queza por casamento ou herança. Durante os últimos dois mil anos as «barreiras» ao autoenriquecimento. Ao fazê-lo, estão a seguir o
foram os homens que geraram, e acumularam, riqueza em socie- caminho da História. O período entre 1945 e as reformas Thatcher-
dades que foram exclusivamente patriarcais. Portanto, decidi ficar- -Reagan do início da década de 80 foi um momento raro em que o
me pela minha lista exclusivamente masculina para transmitir Estado tentou intervir para aplanar algumas das arestas mais vivas
uma mensagem intencional. Estou convencido de que se for escri- da desigualdade. Ao mesmo tempo, os ricos abstiveram-se de ter
ta uma versão futura deste livro, talvez mesmo dentro de cinco ou um papel ativo na política uma vez que – pelo menos inicialmen-
dez anos, este desequilíbrio começará a ser corrigido. Efetivamen- te – se considerou que esta abordagem mais igualitária era mais
te, a velocidade de mudança está a aumentar. É mais provável que justa e mais eficiente em termos económicos. Não há escassez de
as primeiras candidatas venham a surgir do sector da tecnologia. estatísticas que sublinham as alterações extraordinárias que ocor-
Sheryl Sandberg, do Facebook, e Marissa Mayer, do Yahoo! (que reram ao longo dos últimos 30 anos. Eis uma pequena seleção:
desempenham papéis menores nesta narrativa), estão a tornar-se Segundo o Congressional Budget Office norte-americano, no pe-
rapidamente figuras importantes entre os ricos e poderosos do ríodo compreendido entre 1979 (as vésperas da eleição de Ronald
mundo das empresas da internet. Diversas mulheres estão tam- Reagan) e 2007 (o início do crash), os rendimentos dos america-
bém a subir rapidamente nas listas de ricos da China. Segundo nos tiveram um aumento global de 62% – depois de deduzidos os
a lista de bilionários da Forbes referente a 2014, dos 268 neófitos, impostos e a inflação. No entanto, os 20% inferiores receberam ape-
42 são mulheres – um recorde em relação a um único ano. Toda- nas um aumento de 18%. O número relativo aos 20% superiores foi
via, salienta que apenas 32 bilionárias – ou uns escassos 1,9% de to- 65%, enquanto os do 1% do topo viram os seus rendimentos au-
dos os bilionários do mundo – tinham tido uma intervenção signi- mentar 275%. Há três décadas, o alto quadro executivo americano
ficativa na acumulação das suas próprias fortunas, por oposição médio ganhava 42 vezes mais do que o operário médio. Em mea-
a herdar a riqueza. Outras novas bilionárias a seguir de perto são dos da década de 2000, esse rácio subira para 380:1. Os dos lendá-
Folorunsho Alakija, da Nigéria, que passou do design de moda para rios 1% que constituem o vértice em termos de salário recebido (os
a prospeção de petróleo, e Denise Coates, uma inglesa que tem alvos principais do movimento Occupy) são atualmente detento-
uma empresa de apostas online. res de 40% da riqueza dos Estados Unidos. Os 300 mil americanos
Em setembro de 2012, o jornal francês de esquerda Libération que ocupam o vértice reuniram quase tanto rendimento como os
apresentou o seguinte título de caixa alta, na primeira página: «Cas- 150 milhões da base. No entanto, a maior transferência de riqueza
se-toi, riche con!» – que podemos traduzir aproximadamente como não aconteceu neste grupo, mas sim nos 0,1 e 0,01% do topo. Quan-
«Põe-te a andar, rico estúpido!». O alvo deste opróbrio era Bernard to menor é o grupo, mais exponencial é a subida. As 16 mil famí-
Arnault, o homem mais rico de França, que acabara de declarar lias mais ricas dos Estados Unido gozam atualmente de um rendi-
que ia mudar--se para a Bélgica como protesto pela taxa fiscal mento médio de 24 milhões de dólares. O seu quinhão do
de 75% imposta pelo Governo socialista. Arnault, que dirige uma rendimento nacional quadruplicou nas últimas três décadas,
R tumes, Volodomir mantém a fé nas vanta- onde eu supunha treva; levou-me a tropeçar
gens do «pistolão» e, após longos rodeios, per- em mistérios que nem sempre era reais, mas
Carta de Amesterdão
J. Rentes de Carvalho
gunta se não estarei inclinado a falar a certa nem por isso menos perturbantes.
pessoa do meu conhecimento que, eventual- O verdadeiro sertão iria aproximar-se de
mente, poderá contribuir para que avance mim inesperadamente uma tarde, quando
Volodomir, na hierarquia do hotel onde agora trabalha. numa rua de São Paulo o acaso me pôs de-
o sertanejo Prego-lheumpequenosermãosobreodes- fronte de um «pau de arara» acabado de che-
prezocalvinistapelacunha,masprometoque gar, os seus passageiros ainda atordoados
Outro encontro em Amesterdão, desta vez farei o que puder, e com simpatia nos íamos pelos milhares de quilómetros percorridos,
com um ucraniano de Petrolina, Pernam- despedirquandoele, desprendendo oabraço, o calor, a poeira, a descrença de que no mo-
buco interior, uma das capitais do sertão. dizcominesperadaintensidade:–Nuncaper- mento em que saltassem para o chão as suas
co a esperança! vidas sofreriam irremediável mudança.
á quase uma hora que conversamos, Pareceu-me ouvir um eco vindo de muito Talvez por isso esperavam ainda. Eles em
H embora a minha parte do diálogo se
limite aos monossílabos de concordância
longe.
O meu primeiro contacto com o Nordeste
andrajos, protegidos pelos seus largos cha-
péus de couro; elas com vestidos que tinham
e uma ou outra expressão de simpatia, brasileiro, então distante como um fim do sidodefestaeondeagoramalseadivinhavam
mas Volodimir, sertanejo de Petrolina, nas- mundo, foi literário. Tomado por aquela ex- as cores, desbotadas pelo sol de anos.
cido de pai ucraniano e mãe cabocla de cessiva identificação de que a juventude tem Emagrecidos, exaustos, apáticos, corres-
misturados sangues, eslavo de pele escura o monopólio, ao ler VidasSecas de Graciliano pondiam estranhamente ao retrato que Eu-
e lábios grossos, está em demasia interes- Ramos sofri literalmente a sede e a fome dos clides da Cunha fizera do sertanejo: « […] des-
sado em me convencer para se dar conta retirantes, «vivi» com eles o desespero dos gracioso, desengonçado, retorcido. Tem a
do meu laconismo. amanhãs sem esperança e os abismos em fealdade típica dos fracos. Acrescente-se-lhe
Chegou à Holanda vai em meia dúzia de queaexistênciadecorresub-humana. OsSer- uma atitude normalmente abatida, que pa-
anos, e por estranhas artes, que não detalha, tões de Euclides da Cunha revelou-me o Nor- rece ser uma manifestação de desencanto
breve conseguiu visto de residência e pouco destemístico,fechadoecruel,reduzidoàsim- e lhe dá um carácter de deprimente humil-
depois a cobiçada cidadania. plicidadededuasfacetas:adobemeadomal. dade». Mas em contraponto o autor citava
Volodomir é solteiro. Volodomir faz gosto Uma outra experiência literária viria a dar- também a inesperada bravura do homem do
em acentuar a sua excelência como garçon, -se muitos depois com Grande Sertão: Vere- sertão, a sua destreza de cavaleiro, o idiossin-
garantindo que no currículo inclui os nomes das, a obra-prima de João Guimarães Rosa. crático pendular entre extremos de melanco-
de alguns dos grandes hotéis deste e do outro Que nele o sertão fosse o do norte de Minas lia e relâmpagos de agitação.
lado do Atlântico. Vago quanto à idade, deve Geraiseradetalhemenor. O espíritoeraidên- Quando finalmente viajei para o Nordeste
andarpelostrinta, emboraseesforceem ade- tico e só através de comparações aparente- nada me surpreendeu. As descrições que
manes de juventude e incomode o café onde menteexcessivasconseguireidarideiadoim- tinha lido da natureza e dos lugares, da mi-
nos encontramos com umas gargalhadas fe- pacto que teve em mim. Desnorteou-me séria, do aspecto irreal que o solo toma com
minis que destoam da sua postura de artes como um ciclone; fez derruir as noções que a longa falta de chuva, mostravam-se fiéis:
marciais. eu tinha da gramática e do pensamento lógi- o «Polígono da Seca» era um inferno.
Se bem que ande por aqui há tempo sufi- co; desvendou-me melodias e ritmos em fun- Em Crateús, aldeia com nome de cidade, vi
ciente para estar ao corrente dos usos e cos- dos insuspeitados da alma; acendeu clarões repetidos,emecosdecampodeconcentração,
TEXTO SEGUNDO O ANTERIOR ACORDO ORTOGRÁFICO
© DR
pal personagem do romance, vem ao seu en-
contro. Está no miradouro das Portas do Sol e cafés que teve, sempre serviu uma comida o Ferreira de Castro, que me contou e afian-
e está prestes a rezar, à Nossa Senhora da esmerada. çou que o autor de A Selva tinha passado
Conceição, para poder ter uma casa para si e Claro, Manel, não era a La Cascata no Paul muito tempo em investigações na Covilhã.
paraasuaesposaIdalina.Mas,desiste,éoseu onde ia o Jorge Amado levado pelo Alçada E mostrou-me para terminar, uma fotogra-
lado crítico contra a Igreja que prometia faci- Baptista mas comia-se bem… fia que ele tinha tirado, mostrando o Ferrei-
lidades no céu mas que na terra nada fazia. Terminei de falar sobre o livro que toca to- ra de Castro a acariciar um cão da serra,
É precisamente neste miradouro que eu dos os covilhanenses e um lisboeta de Man- na estrada para Manteigas.
moro em 2015 e desde sempre vejo o operá- teigas confirma-me que já está balizado o ca-
rio Horácio, um herói que passou da indife- minho que o Horácio fez durante a noite
rença ao combate pela dignidade, pela resis- e com neve e que o levou de Manteigas a Al-
R
tência,contraaopressão.Acidade,entre1943 deia do Carvalho, para ir trabalhar na fábri- Carta de Paris
e 1947, tinha perto de 15 mil operários dos la- ca («um cárcere», como dizia Ferreira de Tiago Moreira Ramalho
nifícios e rapidamente Ferreira de Castro en- Castro). «O Último Fósforo» era um trecho
controu alguns. No Café João Leitão, a dois da nossa selecta literária de Português onde Hors les murs
minutos do Neve-Hotel, na Rua Direita, ele nós (liceais cultos) tomámos conhecimento
instalou-seaouvirtecelõesepegadoresdefios pela primeira vez do autor que se tinha de- Depois de um ano em Londres, o correspon-
etambémaescrever.Aíencontroulogooper- bruçado sobre o nosso passado covilhanen- dente vai para Paris e descobre uma parte
sonagemquedeviaservir-lhedementorideo- se. Era o ano de 1959. da redenção e dos seus segredos.
lógico do Horácio, o «pai» da sua consciência Em 2003, eu coloquei o nosso escritor no
política. O Marreta do romance, é pois um meu romance Café Montalto (café também e Lisboa e Londres têm pequenas e
ersatz dosmuitosoperáriossocialistaseanar-
quistas quehaviadesde muito cedonoséculo
do Sr. Almeida Campos) e fi-lo visitar uma
fábrica com um patrão de esquerda, cum-
S bem delimitadas áreas de provocação
teológica, Paris foi feita como um éden. Os
XX na Covilhã e com mais dois belos atribu- primentando o operário Cardona, ainda vivo 20 arrondissements são separados do
mundo novo.
Mark Twain:
o Salomão hesitante
S
egundo Oscar Wilde, o cínico é aquele que sabe o preço Se tivesse de resumir numa definição semipoética, diria que o cinis-
de todas as coisas e o valor de nada. Nos últimos tempos mo deve ser suportado até ao ponto onde destapa as ruínas da man-
tem havido uma reação contra esta verdadeira religião ofi- são sem nunca esquecer a construção original. Há uma contradição
ciosa da nossa cultura que é o cinismo. Escritores como em Twain que é preciosa: ele vivia sem esperança mas as suas perso-
o Henrique Raposo e o Nuno Costa Santos têm abraçado uma nagens não necessariamente. É preciso uma generosidade redentora
missão que é pregar contra ele. Até o Pedro Mexia, figura central paranãoprenderostextosqueescrevemosàsruasqueachamossem
e representativa da nova geração literária, conhecido por apri- saída. Twain tinha isto. Não acreditava em eternidade, nem no Céu e
morar no que é possível o cinismo anglo-saxónico ao jeito portu- tinha uma visão muito particular acercade Deus. Mas será que pode-
guês, tem feito concessões. O que não o impediu de dizer ríamos dizer o mesmo de Huckleberry Finn? Twain era um cínico
recentemente, com um amplo sentido de oportunidade, que as com uma espécie de fé escondida.
pessoas que o acusam de estar a ficar cínico sejam quase sempre Porquê embirrar com o cinismo? Porque, ao contrário do que mui-
as mesmas que o conduzem ao cinismo. Uma pitada certa de ci- tas vezes é a opinião popular, o cinismo não é o adversário do senti-
nismo pode ser um tempero flagrante de verdade. mentalismo mas o seu irmão gémeo. As pessoas não são cínicas por-
Até um pregador do evangelho como eu precisa dos seus autores que viram a vida como ela realmente é. As pessoas são cínicas porque
cínicos. Aliás, corrigiria a frase. Um pregador do evangelho não pre- – precisamente! – rejeitam vê-la além do escopo seletivo do seu ci-
cisa dos seus autores cínicos pela razão que o próprio evangelho já in- nismo. O Roger Scruton explica exemplarmente isto no seu livro Mo-
clui autores cínicos. No Portugal do Eça de Queirós os intelectuais de- dern Culture. Se o sentimentalista confunde os sentimentos com a
coravam partes do livro do Eclesiastes, do Velho Testamento. demonstração deles, o cínico não faz muito diferente. O sentimenta-
Repetiam «nada há de novo debaixo do sol» sem conseguirem es- lista é um cínico invertido ou disfarçado. Mas quer o sentimentalis-
conder uma ponta de contentamento que revela que, a rigor, o cinis- ta, quer o cínico se relacionam com o que sentem a partir dos resul-
mo só subsiste sob valores mínimos de autossatisfação. Logo, um dos tados que já resolveram querer atingir. Ambos vivem num mundo
meus autores cínicos já incluído no evangelho é o rei Salomão. Salo- faz de conta construído a partir das suas próprias necessidades emo-
mão era filho de David e, ironicamente, foi quem teve o privilégio de cionais. Um chora para ser alegre, o outro alegra-se apenas quando
concluir o que o pai sonhou. Talvez isto explique alguma coisa. Salo- pode chorar. Daí serem frequentes as mudanças entre um polo e
mão foi quem terminou as obras do Templo em Jerusalém e quem outro na cultura contemporânea. O Lost In Translation é um filme
deu à nação judaica o seu auge político e intelectual. Se David foi o rei de uma geração porque serve simultaneamente a narrativa cínica
do coração dos judeus, Salomão foi o rei das suas cabeças. Acabou e a narrativa sentimental. É uma crucial pessegada.
a vida como uma pálida sombra da sua estatura cultural. A Bíblia O papel que Salomão desempenha na Bíblia não será muito dife-
diz que as mulheres perverteram o seu coração (1 Reis 11:1). Está rente do papel que Twain desempenhava num país com uma ten-
tudo de acordo com o figurino do cinismo que ainda hoje permane- dência persistente em ver sonhos mesmo no meio dos piores pesa-
ce: não há sageza de espírito que resista ao encanto feminino. delos. Salomão era sábio porque sabia entender que a beleza da
Mas,comodizia,atéumpregadordoevangelhocomoeuprecisados existência não é só simplicidade. A grandeza de Twain era, por outro
seus autores cínicos que não estejam incluídos no evangelho. O meu lado, acreditar pouco mas não fazer disso uma desculpa para não ver
preferido é o Mark Twain. Para mim Mark Twain é a marca (per- o que é bonito. Há uma equivalência entre os dois que pode ser um
doem-me o trocadilho óbvio) até onde o cinismo deve ser suportado. grande modelo para o uso apropriado do cinismo.
El Periodico
nela. Posso ser muito facilmente convencido
a passar a pensar o contrário do que estava
do Brasil
lheres precisavam de ser ensinadas sobre
literários, Sábado
«Escrever é uma forma de nos libertarmos
Alex Malarkey, coautor de O Menino Que António Gentil Martins, médico, Jornal de Ne-
ramcomessasmentiras,econtinuamafazê-lo.» histórico e irresponsável.» jamento. Realmente não entendo porque
«A liberdade de expressão tem o direito de «É, de qualquer modo, um grande paradoxo: «Os escritores devem ser pagos por irem
Adriano Moreira, i Pierre Assouline, Le Magazine Littéraire Joanne Harris, autora. The Bookseller
«A tolerância não se pode impor por lei.» maiúsculas.» um dia de trabalho.»
Ryan Kearney, a partir de um tweet de Tim Cook, CEO da Apple, sobre ter dormido mais um
de serem pagos ou de receberem uns mimos, passam poucas horas a dormir.»
«Uma pessoa não pode assinar um e-book, ou um Kindle (embora eu acredite que
«Tenho uma paixão quase perversa e inexpli- Margaret Atwood usa um método eletrónico de assinar livros à distância para seus fãs
Erri de Luca, autor, arguido e acusado de «incitamento à violência» (arrisca uma pena de um a
«Esta condenação é o meu primeiro prémio literário em Itália.»
cinco anos) por ter dito que a linha de TGV entre Lyon e Turim «devia ser sabotada». Le Monde
«A tarefa de escrever é muito solitária, cansa-
tiva e toma todo o tempo. Portanto, se uma
©Pedro Vieira
«Hoje, a “cultura” tem um significado obscuro, ridículo e furtivo. Muitas vezes, quando usamos
a palavra “cultura” para alguma coisa, é para sugerir que essa coisa tem uma influência difusa ou perniciosa
(como em “cultura da celebridade”). Em outras ocasiões, o termo “cultura” é usado de forma aspiracional:
instituições que falam sobre a sua “cultura de transparência” ou “cultura de responsabilidade” – muitas vezes
não têm nem ideia do que isso seja. O termo é utilizado de uma forma vulgar, banal: não há verdadeira cultura
em “cultura do café” (embora o café no Culture Espresso, um bar perto do meu escritório, seja excelente).»
Joshua Rothman, The New Yorker
pessoa se dedica apenas a escrever, acaba por «Para mim, o “desencanto” tinha mais a ver com a perceção de que eu não era uma leitora
Alessandro Baricco, autor, El Clarín Zoë Heller, autora. The New York Times
enlouquecer.» pós-estruturalista muito boa ou inteligente.»
«Isto é um flagelo absolutamente americano, «Parecemos tão impregnados na certeza de que os rendimentos masculinos devem ser maio-
© Pedro Loureiro
Um livro que não leu. Um jogador de futebol.
A que político nunca daria
Qualquer um. «Life on Mars» de David
obrigassem? Quem lhe suscita inveja? O fim de semana ideal. mais recentemente.
Chocolate preto. Shit.
Um exemplo de beleza.
Carpe diem. Pessoas que não engordam Dar um grande passeio a pé, All the Birds Singing,
Um passeio no parque ou
facilmente. cozinhar um jantar para de Evie Wyld; H Is for Hawk,
nascido?
conheço. Próximo sonho:
morrer? da cabeça.
Profissionalmente, ter criado
a Jacarandá Editora. Não quero ser sepultada.