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1Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Sociabilidade do XXVII Encontro Anual da Com-
pós, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte - MG, 05 a 08 de junho de 2018.
2 Laura Guimarães Corrêa; docente no PPGCOM UFMG; doutora pela UFMG. E-mail:
guimaraes.laura@gmail.com
3 Pâmela Guimarães-Silva; doutoranda em Comunicação no PPGCOM UFMG. E-mail:
pamelaguimaraes14@gmail.com
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1. Introdução
Esses diálogos reais aconteceram e acontecem conosco e com nossas colegas negras
quase todos os dias. É comum que nós, mulheres negras, não sejamos vistas nos espaços
públicos como doutoras, esposas, namoradas, hóspedes, diretoras, clientes, mães, professoras,
pesquisadoras, intelectuais. Somos constantemente lidas como atendentes, babás, empre-
gadas, acompanhantes, prostitutas, vendedoras, trabalhos socialmente desvalorizados e
geralmente mais relacionados ao corpo, ao cuidado e à manutenção da vida do que à atividade
intelectual. Esses “equívocos” acontecem em lugares e situações as mais diversas e já
percebemos que importa pouco se vestimos roupas caras ou baratas, para o trabalho ou para o
lazer. O trabalho corporal e do cuidado parece estar inscrito socialmente na cor da nossa pele,
cor que parece nos afastar dos lugares do saber, da decisão e do poder. Principalmente do
poder de falar.
O estranhamento com o qual as pessoas nos veem, ou nos veem e não nos recon-
hecem, está baseado em sistemas de poder e de representação na sociedade estratificada em
que vivemos, marcada por desigualdades de gênero, raça e classe, entre outras. Esses sistemas
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opressores, assim como as representações que os apoiam e reproduzem, não são recentes, mas
arraigados em um passado escravista e patriarcal que marcou a formação e o funcionamento
da sociedade brasileira, definindo lugares de negros e brancos, homens e mulheres, ricos e
pobres. Mesmo considerando suas especificidades, podemos afirmar que há semelhanças com
outros países em que o colonialismo esteve presente.
Nos textos e imagens mais autorizados e valorizados em nossa sociedade, as mulheres
são faladas muito mais do que falam. São mais pesquisadas do que pesquisadoras. Esses dis-
cursos, assim como os sujeitos e as instituições como a ciência, a medicina, a psiquiatria, a
história, o direito, a política, a mídia, têm sido majoritariamente masculinos, brancos, heteros-
sexuais, provenientes das classes médias e altas. Assim, historicamente, a mulher negra tem
sido muito mais objeto do que sujeito do discurso hegemônico e oficial. O grupo social mul-
heres negras tem sido marcado por opressões baseadas na diferença como um desvio do
padrão não marcado homens brancos.
A mulher, então, não é definida em si mesma, mas em relação ao homem e através do
olhar do homem, como Beauvoir apresenta em seu percurso filosófico. A constatação é com-
plexificada e sofisticada por intelectuais negras 4, que apontam que a mulher negra – por não
ser nem branca, nem homem – ocupa uma posição ainda mais difícil na sociedade. Ela é o
“outro do outro”, uma dupla alteridade resultante de uma dupla antítese, da branquitude e da
masculinidade.
Como afirma Guacira Louro, a hegemonia da voz de determinado grupo só pode ser
enfrentada e transformada através de embates entre os vários sujeitos no terreno da cultura.
Apropriar-se dessas instâncias culturais e aí inscrever sua própria representação e
sua história, propor as questões de seu interesse, mostrar sua estética e sua ética
tornam-se uma meta urgente para (...) grupos antes submetidos. A luta no terreno
cultural é, fundamentalmente, uma luta em torno da atribuição de significados. Sig-
nificados que são produzidos em meio a relações de poder – não apenas porque eles
expressam posições de poder, mas também porque têm efeitos de poder. (LOURO,
2002, p. 232)
Nesse ponto, cabe destacar que o termo luta, empregado pela autora, expressa com
precisão essa relação entre o cultural e o político que se dá permeada por tensões nas quais os
sujeitos disputam “o poder e a habilidade de conceber não apenas a própria história, mas a do
4 Como Lélia Gonzalez (1983), bell hooks (1995), Heidi Mirza (1997), Grada Kilomba (2008) e Djamila Ribeiro
(2017).
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lência vivenciadas por mulheres. Entretanto, essa hipótese é colocada em questão, pois seu
filho é negro. Ela diz:
meu filho é um menino negro. E liberdade não é um direito que ele vai poder
usufruir se ele andar pelas ruas descalço, sem camisa, sujo, saindo da aula de fute-
bol. Ele corre o risco de ser apontado como um infrator. Mesmo com seis anos de
idade. Quando ele se tornar adolescente, ele não vai ter a liberdade de ir para sua
escola, pegar uma condução, um ônibus, com sua mochila, com seu boné, seu ca-
puz, com seu andar adolescente, sem correr o risco de levar uma investida violenta
da polícia ao ser confundido com um bandido. No Brasil, a cor do meu filho é a cor
que faz com que as pessoas mudem de calçada, escondam suas bolsas e blindem
seus carros. (ARAÚJO, 2017, TEDx São Paulo, grifo nosso)
Araújo citou estatísticas para comprovar o que afirmou sobre gênero e raça no Brasil.
Ainda assim, logo após a divulgação do vídeo, as redes sociais foram tomadas por memes que
ironizaram sua fala. Pelo menos dois dos memes (FIG. 1 e 2) foram compartilhado pelo pres-
idente da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) Laerte Rimoli, um homem branco em
importante cargo público que desvalorizou e ridicularizou a fala e a reivindicação antirracista
de uma também importante atriz negra brasileira. O historiador Marco Antônio Villa comen-
tou a fala da atriz no noticiário Jornal da Manhã da Rádio Jovem Pan: “Ah, que que é isso?
Ela tá imaginando que o Brasil é a África do Sul, é o Apartheid? Que isso? E uma atriz da
classe dominante, que ganha ‘milhões’? Haja picaretagem!”. Cesar Benjamin, secretário de
Educação do Rio de Janeiro, também um homem branco, classificou a fala de Araújo como
uma "idiotice racial". Muitos outros comentários nas redes sociais, vindos de pessoas comuns,
criticaram a atriz no mesmo sentido.
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FIGURAS 1 e 2. Memes compartilhados pelo presidente da EBC. FONTE - Site Catraca Livre, 2017.
No mesmo mês, novembro de 2017, a vlogueira conhecida como Day McCarthy di-
vulgou um vídeo em que faz comentários ofensivos sobre Tissomo, filha adotiva de Bruno
Gagliasso e Giovanna Ewbank. Os famosos atores são brancos, com pele, cabelos e olhos
claros, fenótipo que constitui o padrão de beleza preponderante no Brasil. A criança, conheci-
da como Titi, nasceu no país africano Malawi 6, tem quatro anos, pele escura e características
fenotípicas negras. Essas características foram bestializadas e estigmatizadas por McCarthy,
que declarou: “(…) ficam elogiando aquela macaca, preta, horrível, e o povo fala que a meni-
na é linda. Essas mesmas pessoas vêm no meu Instagram criticar a minha aparência? Você só
tá puxando o saco porque é adotada por famosos?".
A fala racista da vlogueira foi repudiada imediatamente nas redes sociais e na impren-
sa, com mais de um milhão de likes na publicação de Gagliasso no Instagram sobre o assunto
e centenas de milhares de mensagens de apoio à família ofendida (FIG. 3). Pouco tempo de-
pois, Ewbank agradeceu a comoção pública em prol da criança e se posicionou nas redes so-
ciais: “racismo é crime, e já estamos tomando as devidas providências perante a lei". Na sem-
6 O Malawi é também o país de origem dos quatro filhos adotivos da cantora Madonna: David Banda e Mercy
James, ambos com 12 anos; e as gêmeas Estere e Stelle, de cinco anos.
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ana seguinte, Bruno Gagliasso prestou queixa contra a vlogueira e, ao sair da delegacia, fez
uma declaração à imprensa: "Não vai ficar impune. A delegada foi bem clara para mim:
'Bruno, ela cometeu um crime. Ela pode estar em qualquer lugar do mundo, mesmo assim vai
ter que responder por isso’". Bruno também postou em suas redes sociais uma foto com o ros-
to e a frase da filósofa, ativista e feminista negra Angela Davis: "Numa sociedade racista, não
basta não ser racista, é necessário ser antirracista". O tema também foi abordado em programa
do Fantástico, com participação do casal Gagliasso Ewbank e de pessoas negras não famosas
que relataram episódios de discriminação pelos quais elas e suas crianças passaram.
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FIGURA 3 - Post sobre o episódio de racismo contra Titi.
FONTE - Perfil de Bruno Gagliasso no Instagram, novembro de 2017.
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Assim, o grupo de insiders tende a aceitar o padrão cultural de vida legado a ele pelos
ancestrais, professores e autoridades, como um inquestionável guia nas situações cotidianas.
O estrangeiro, por sua vez, não compartilha dessa receita e “descobre a si mesmo como um
caso limite fora do território coberto pelo esquema de orientação corrente dentro do
grupo” (ibidem, p.124). Ele tem outra história e, por isso, outros esquemas de ação e inter-
pretação, diferentes daquelas receitas dos insiders.
O conceito de outsider within, expressão que pode ser traduzida como estrangeira de
dentro, foi cunhado por Patricia Hill Collins em 1986. Trata-se de um útil operador teórico
para se pensar o ponto de vista e a fala de mulheres negras quando inseridas em lugares nos
quais sua presença é reduzida ou marginal, isto é, em quase todos os espaços de poder. Base-
ando-se nas ideias de Simmel e Schutz sobre o lugar que o estrangeiro ocupa em grupos de
pessoas relativamente semelhantes, a autora afirma que os benefícios do status de outsider
within incluem a habilidade da mulher negra estrangeira em “ver padrões que dificilmente
podem ser percebidos por aqueles imersos nas situações” (COLLINS, 2016, p. 100). Ela
destaca que a visão de mundo desses membros do grupo original, os insiders, pode ser espe-
cialmente parecida se eles “compartilharem padrões de classe social, gênero e background
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racial similares”, uma vez que eles “passaram por experiências similares, dividem uma
história em comum e compartilham conhecimentos tomados como certos e que caracterizam
o ‘pensar como de costume’”. (ibidem, p. 116, grifo nosso)
Collins afirma que o ponto de vista sobre o mundo que vem da estrangeira de dentro
é influenciado pela sua localização como parte de um grupo social num contexto histórico
específico de desigualdade de raça, gênero e classe. O status de outsider within, apesar de de-
sprivilegiado, possibilita uma produção marcada pela criatividade, pois esse lugar propor-
ciona às mulheres negras “um ponto de vista especial quanto ao ‘self’, à família e à so-
ciedade” (ibidem, p. 100). As interações sociais das mulheres negras ocorrem de forma es-
pecífica, permeadas por confrontação e objetividade típicas de estrangeiros que, por não
serem inerentes ao grupo, são livres das amarras sociais que o engendram (SIMMEL, 1983, p.
185), ao mesmo tempo em que têm sua atuação desconsiderada por não obedecerem ao sis-
tema de interpretação vigente.
Quase uma década depois da publicação do texto de Collins, bell hooks7 (1995) dis-
cute a importância do trabalho das intelectuais negras. A autora parte de uma perspectiva
pessoal, na qual afirma que sua opção de se voltar para este exercício da intelectualidade está
relacionada ao objetivo de sobreviver a uma infância dolorosa. E, assim, argumenta que nun-
ca pensou ser possível apreender a intelectualidade separada do exercício da política do cotid-
iano. Ela acredita no trabalho intelectual como uma parte necessária da luta pela libertação.
Porém, compreende que as opressões de raça e gênero continuam a invisibilizar e desval-
orizar a obra das intelectuais. Para melhor entender esse status de estrangeiras de dentro das
intelectuais negras que carregam as dualidades: visível e invisível, próximo e distante,
propomos uma aproximação de três temas-chave propostos por Patrícia Hill Collins (2016).
a) A autodefinição e a autoavaliação por mulheres negras. Para ela, a "autodefinição
envolve desafiar o processo de validação do conhecimento político que resultou em ima-
gens estereotipadas externamente definidas da condição feminina afro-americana" (ibidem,
p. 92); consiste em tomar a palavra, emitir um discurso sobre si e assim legitimar-se como
7bellhooks é o pseudônimo adotado pela escritora negra estadunidense Gloria Jean Watkins em homenagem à
mãe e à avó, usando seus sobrenomes. Seu nome é grafado em letra minúscula, opção da própria autora.
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8 A preocupação com a natureza interligada da opressão também pode ser verificada nos trabalhos de Beale
(1970), Gonzalez (1979), Davis (1981), Dill (1983), hooks (1981), Lewis (1977), Murray (1970), Steady (1981),
entre outras.
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Para além disso, o fenômeno de deslegitimação de sua fala nas redes sociais é outro
fator que reforça o nosso argumento sobre o pertencimento de Taís a esse status. Em nossa
afirmação, filiamo-nos à noção de epistemicídio de Sueli Carneiro, para quem:
(...) o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação dos povos subjuga-
dos, um processo persistente de produção da indigência cultural (...). Isto porque
não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem
desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes.
E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento ‘legíti-
mo’ ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subju-
gado ou sequestra muita da sua capacidade de aprender e etc. É uma forma de se-
questro da razão em duplo sentido: pela negação de racionalidade do Outro ou pela
assimilação cultural em que outros casos lhe é imposta.” (CARNEIRO, 2005, p. 97).
(…) dentro do patriarcado capitalista com supremacia branca toda a cultura atua
para negar às mulheres a oportunidade de seguir uma vida da mente e torna o
domínio intelectual um lugar interdito. Como nossas ancestrais do século XIX, só
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através da resistência ativa exigimos nosso direito de afirmar uma presença intelec-
tual (hooks, 1995, p.468).
Taís Araújo, por certo, sabe que sua condição socioeconômica difere da grande parcela
da população negra brasileira. Suas palavras, entretanto, não perdem sentido por esse motivo,
pelo contrário, assumem o lugar de representação. Isto é, a partir da figura simbólica de seu
filho, um menino negro, a atriz expõe em seu discurso a realidade da violência social racial
no Brasil: a cada 23 minutos, um jovem negro é morto no Brasil e, segundo o Atlas da Vio-
lência 2017, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os negros pos-
suem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças
(já descontado o efeito da idade, escolaridade, do sexo, estado civil e bairro de residência).
Com esses dados, Araújo, emocionada, mostra que seu filho negro (mesmo sendo um menino
rico) pode ser vítima do racismo no Brasil, assim como outros meninos negros.
A reação das pessoas à figura de Taís Araújo, mulher e negra, que ingressa na ordem
do discurso tematizando a própria condição e a de seus pares, também deixa ver a configu-
ração do universo de valores que orienta a vida dos sujeitos na sociedade brasileira. Assim,
não apenas as palavras de Taís têm peso de representação, como também a sua imagem, a sua
aparição na cena pública em um papel diferente do que era esperado. Ela cria um hiato entre o
seu corpo e sua capacidade de construção de um olhar crítico sobre a situação vivida. Disso-
cia a capacidade laboral esperada do seu corpo, da sua capacidade olhar criticamente. Há em
sua fala a constituição de uma voz política, que apresenta também dimensões de afeto e
emoção.
Lélia Gonzalez, precursora dos estudos que interseccionam raça e gênero no Brasil e
no mundo, afirma que o racismo, enquanto um discurso de exclusão, trata o grupo excluído
como objeto e não sujeito.
Consequentemente, é infantilizado, não tem direito a voz própria, é falado por ele. E
ele (o discurso racista) diz o que quer, caracteriza o excluído de acordo com seus
interesses e seus valores. No momento em que o excluído assume a própria fala e se
põe como sujeito, a reação de quem ouve só pode se dar nos níveis acima caracteri-
zados. O modo mais sutilmente paternalista é exatamente aquele que atribui o
caráter de “discurso emocional” à verdade contundente da denúncia presente na fala
do excluído. Para nós, é importante ressaltar que emoção, subjetividade e outras
atribuições dadas ao nosso discurso não implicam numa renúncia à razão, mas, ao
contrário, num modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou
metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão (GONZALEZ, 1979, p.16)
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Nós nos damos a conhecer, dizemos quem somos – e nos construímos e reconhece-
mos enquanto tais – através dos discursos que proferimos. (...) Processos iden-
titários estabelecem tanto as semelhanças e os semelhantes quanto à diferença e os
diferentes – o outro. Ora, nas sociedades estratificadas em que vivemos, marcadas
pela diferença mas também pela dominação e intolerância, o "outro" não fala. Ele é
"falado" pelos discursos identitários que, ao estabelecer o padrão (quem somos nós),
vem exatamente posicioná-lo enquanto "outro" (o "outro" do "nós"). (FRANÇA,
2001, p. 4)
Nesse sentido, enquanto o discurso e os papéis adotados pelos pais de Titi ocuparam
um lugar esperado pela sociedade, tanto como pais quanto como pessoas brancas; a fala de
Taís Araújo colocou em questão a naturalização da distinção de lugares sociais. Ao fazer isso,
a atriz se coloca como sua própria testemunha conhecedora9, capaz de analisar as forças que
atuavam sobre ela, tanto como sujeita quanto como parte de uma comunidade de sujeitos de
grupos subalternizados. O trabalho intelectual envolvido na cena da palestra de Taís, por meio
da exposição de um pensamento e um posicionamento crítico, além da própria tomada da
palavra, lhe permitiram, simbolicamente, a construção de autonomia e cidadania.
9 Enlightened witness, termo criado pela psicanalista Alice Miller (1997) e citado por hooks (1995, p. 466).
Preferimos a tradução de enlightened como conhecedora em vez de esclarecida, como em algumas traduções. A
testemunha conhecedora é alguém que ajuda outra pessoa (geralmente uma vítima de abuso infantil) a recon-
hecer as injustiças que sofreu, a compreender e dar vazão a seus sentimentos de raiva, dor e indignação; e assim
a quebrar ciclos de violência e discriminação.
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Já Taís Araújo, celebridade negra que se posiciona contra o racismo, fala de um filho
que nunca expôs na mídia; seu filho é um exemplo quase anônimo de crianças e adolescentes
negros brasileiras. Taís fala de um racismo estrutural e, por isso, mais teórico, num discurso
mais hipotético – embora embasado estatisticamente por dados alarmantes – e também mais
geral; ela fala do racismo que atinge todos os meninos negros. O filho de Taís não veio de
outro país e não é filho de pai e mãe brancos; ele representa, na fala da mãe, um menino co-
mum, plebeu, que corre o risco de ser agredido pela polícia na rua. Sobre a maternidade ne-
gra, que compreende um senso de comunidade, Collins chama a atenção para a pesquisa de
Gilkes (1980), que destaca o poder do sentido de maternidade negra, observando que “muitas
das ativistas políticas negras (…) se envolveram nos trabalhos da comunidade por intermédio
do seu papel como mães. O que comumente começava como trabalho em nome dos próprios
filhos evoluía para um trabalho em nome dos filhos da comunidade. (COLLINS, 2016, p.
112). Ao tematizar o racismo, Taís fala de uma maternidade expandida, ela fala por outras
mulheres negras mesmo que use apenas seu filho como exemplo.
Considerações finais
Este trabalho é uma espécie de narrativa em abismo que define Taís Araújo e a nós,
que estudamos seu caso, como estrangeiras de dentro, que pensamos e falamos a partir de as
nossas experiências e de nosso olhar opositivo. Mesmo que muitas pessoas nos olhem com
estranhamento e insistam em nos atribuir outros lugares sociais, nós, autoras, insistimos em
nos autorizar, autodefinir e autovalorizar enquanto intelectuais negras, confiando em nossas
próprias experiências e “biografias pessoais e culturais como fontes significativas de conhec-
imento." (COLLINS, 2016, p. 123).
Nosso lugar fronteiriço de estrangeira de dentro é um espaço de encontros de diversas
opressões, de falta de privilégios, de não pertencimento, de proximidade e de distância. Entre-
tanto, é também um lugar de potência e de tensão criativa. As opressões incidentes funcionam
como lente; a falta de privilégios opera como impulsionadora da criatividade; o não per-
tencimento favorece a liberdade do ver e do falar; o sentimento de exclusão é o lembrete para
observar o outro. Collins nos lembra que qualquer grupo de outsiders menos poderoso pode
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viver essa tensão que marca o lugar de estrangeiras de dentro das mulheres negras e podem,
também, se beneficiar da perspectiva peculiar de estrangeiro de dentro num determinado
grupo de insiders. Assim, para além de pensar os grupos de outsiders como objetos, é possív-
el e preciso pensá-los como interlocutores e interlocutoras.
Em seu recente livro, Lugar de Fala, a intelectual negra Djamila Ribeiro (2017) de-
fende a necessidade de se dar voz a esses grupos, não como únicos capazes de discursar sobre
suas especificidades, mas como pessoas com espaço para aceder à existência, à cena pública.
Dito de outra forma, para a autora, é preciso abrir espaço para as múltiplas vozes na so-
ciedade. Para isso, é preciso romper com formas de ver que solidificam pessoas em lugares
sociais determinados e estanques, que determinam quem pode e quem não pode falar.
Somente dessa forma é possível entender a comunicação midiática não como produto-
ra de sujeição e apagamento simbólico, mas como instância de múltiplas experiências de in-
teração nas sociedades estratificadas. As intelectuais negras nos convidam a pensar a so-
ciedade – e nós acrescentamos que, especialmente, a comunicação – como ambientes nos
quais são travadas disputas de sentidos sobre as narrativas da vida social que, para o es-
trangeiro de dentro, se constituem na própria luta por ser contado como sujeito social dotado
de cidadania e autonomia, um sujeito relacional com acesso à fala, à visibilidade e à aparição
na cena pública.
Referências
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no evento Tecnology, Entertainment and Design, em São Paulo (TEDx 2017). Disponível
em:https://www.youtube.com/watch?v=H2Io3y98FV4. Acesso em: 23 de fev. 2018
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